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Rio de Janeiro, do escravismo ao capitalismo: demografia histórica e dinâmica ocupacional - 1872-1920. Pedro Guimarães Pimentel Colégio Pedro II/ PPFH-UERJ [email protected] Introdução Boris Fausto em Trabalho Urbano e Conflito Social, procurando distinguir a alocação da mão-de-obra carioca e paulistas no pós-Abolição, afirma, quanto ao “antigo agrupamento escravo” que, no “primeiro caso, sua inserção no sistema socioeconômico, se dá no terciário de mínima produtividade (...) no segundo, tem funções de um exército industrial de reserva”. Para a capital federal, recorre ao recenseamento realizado em 1890, organizando os dados numa tabela pela qual informa a existência de 48.661 indivíduos “empregados na indústria manufatureira” (2016, p.45. Grifos nossos). Sem questionar a verossimilhança dos números apresentados apenas resguardando que “não há distinção entre patrões e operários”, no momento de citar a referência – o historiador prossegue sua argumentação, fazendo uso inclusive do quantitativo arrolado para os anos de 1872, 1900 e 1920 (p.39). Fausto se insere no rol de pesquisadores 1 que debruçados sobre tais fontes, pouca atenção dedicaram à elaboração das mesmas. Assim, escalonaram os dados sem maiores restrições, apontando o crescimento ininterrupto do operariado brasileiro, ao menos no intervalo entre o aprofundamento da luta antiescravista e o fim do primeiro ciclo de industrialização demarcado pela Primeira Grande Guerra. Desse modo, omitiram importantes distinções que os próprios recenseadores propuseram entre uma investigação e outra, ao procurarem aperfeiçoar seus métodos investigativos. Propomos, neste trabalho, uma análise histórico-comparativa que nos permitirá evidenciar aspectos ideológicos e científicos que presidiram a realização dos inventários, 1 Cf. dentre outros. VILLELA, Annibal Villanova; SUZIGAN Wilson. Política do governo e crescimento da economia brasileira, 1889-1943. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1973; MATOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

Rio de Janeiro, do escravismo ao capitalismo: demografia ......estratificação social do período, nos conduziria ao dilema de incluir os 23.481 indivíduos classificados na cidade

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Rio de Janeiro, do escravismo ao capitalismo: demografia histórica e dinâmica

ocupacional - 1872-1920.

Pedro Guimarães Pimentel

Colégio Pedro II/ PPFH-UERJ

[email protected]

Introdução

Boris Fausto em Trabalho Urbano e Conflito Social, procurando distinguir a

alocação da mão-de-obra carioca e paulistas no pós-Abolição, afirma, quanto ao “antigo

agrupamento escravo” que, no “primeiro caso, sua inserção no sistema socioeconômico,

se dá no terciário de mínima produtividade (...) no segundo, tem funções de um exército

industrial de reserva”. Para a capital federal, recorre ao recenseamento realizado em 1890,

organizando os dados numa tabela pela qual informa a existência de 48.661 indivíduos

“empregados na indústria manufatureira” (2016, p.45. Grifos nossos). Sem questionar a

verossimilhança dos números apresentados – apenas resguardando que “não há distinção

entre patrões e operários”, no momento de citar a referência – o historiador prossegue sua

argumentação, fazendo uso inclusive do quantitativo arrolado para os anos de 1872, 1900

e 1920 (p.39).

Fausto se insere no rol de pesquisadores1 que debruçados sobre tais fontes, pouca

atenção dedicaram à elaboração das mesmas. Assim, escalonaram os dados sem maiores

restrições, apontando o crescimento ininterrupto do operariado brasileiro, ao menos no

intervalo entre o aprofundamento da luta antiescravista e o fim do primeiro ciclo de

industrialização demarcado pela Primeira Grande Guerra. Desse modo, omitiram

importantes distinções que os próprios recenseadores propuseram entre uma investigação

e outra, ao procurarem aperfeiçoar seus métodos investigativos.

Propomos, neste trabalho, uma análise histórico-comparativa que nos permitirá

evidenciar aspectos ideológicos e científicos que presidiram a realização dos inventários,

1 Cf. dentre outros. VILLELA, Annibal Villanova; SUZIGAN Wilson. Política do governo e

crescimento da economia brasileira, 1889-1943. Rio de Janeiro: Ipea/Inpes, 1973; MATOS, Marcelo

Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

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denotando a proeminência da organização burguesa do trabalho que tendia a sobrepor-se

à escravista. Ademais, recorreremos a documentação diversa que possa colaborar para a

retificação dos dados oferecidos pelos levantamentos, tais como almanaques e periódicos

de grande circulação. Ainda que cientes das inconformidades das pesquisas estatísticas,

objetivamos formular uma metodologia que seja capaz de regular as diferenças

classificatórias afim de acompanhar o percurso histórico de afirmação da condição

industrial do Rio de Janeiro diante de sua historicidade colonial e escravista.

Verdades corrigidas

Em primeiro lugar, devemos destacar que o uso de fontes seriadas tem sua origem

na chamada História Social, através da transição entre a primeira e a segunda gerações da

Escola dos Annales, com especial destaque para as obras de Fernand Braudel

(CARDOSO; VAINFAS, 2007). Ainda que tenha caído em desuso a partir da década de

1980, em preferência à micro-história, às biografias e às análises focalizadas em pequenos

grupos e períodos que fazem uso de documentação circunscrita a limitados recortes

espaço-temporais (inventários, jornais, processos, diários, etc.) os próprios levantamentos

censitários tem sido objeto de estudos que visam reinseri-los em sua temporalidade a fim

de revelar seu caráter de constructo social2.

A classificação adotada em 1872 é bastante elucidativa de um corpo social em

transição. O recenseamento é o único que, ao dar conta da totalidade da população

brasileira, expõe a contradição fundamental da sociedade, ao distinguir a condição de

escravizados e livres. De acordo com Décio Saes, “a contradição fundamental da

formação social escravista moderna no Brasil era a contradição entre proprietários rurais

escravistas e escravos rurais” (1985, p.83). Isto se deve ao fato de que “a maioria

esmagadora dos escravos era utilizada nas propriedades rurais” (idem), o que os dados do

2 Cf. CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. A construção da medida comum: estatística e política

de população no Império e na Primeira República. 2016. 421f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto

de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2016. Disponível em:

<http://www.bdtd.uerj.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=11653>. Acesso em 25/09/2019.

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recenseamento imperial confirmam: 808.401 escravizados arrolados como “lavradores”,

num total de 1.510.0863 (BRAZIL, 1872, p.1).

Contraditoriamente, o país teve, em seu primeiro censo geral, as atividades

urbanas privilegiadas, restando às agrícolas as categorias de “lavradores” e “criadores”,

antecedendo, na ordem sequencial das profissões, apenas as de “criados e jornaleiros”,

“serviço doméstico” e “sem profissões”; outras 31 classificações precediam àquelas

vinculadas à mais importante e dinâmica atividade econômica nacional, a plantagem.

Segundo Jane Oliveira,

“[a classificação] revela o prestígio atribuído às carreiras letradas - o clero, a

magistratura, os “homens de letra”, os médicos, enfim os bacharéis - numa

sociedade composta predominantemente por iletrados. Sugere, ainda, que a

absorção de trabalhadores se dá pela coexistência de diferentes formas de

produzir, em que despontam a manufatura e a indústria, voltadas

essencialmente para as necessidades de habitação e vestuário; o serviço

público; o comércio e o serviço doméstico. Por outro lado, não deixa de causar

surpresa o viés urbano da classificação - uma única rubrica é feita para as

profissões agrícolas -, dada a feição predominantemente rural da sociedade da

época. (2003, p.14. Grifos nossos)

As três contradições elencadas por Oliveira – letrados versus iletrados, indústria

versus agricultura e urbano versus rural – numa formação social na qual os últimos

aspectos são hegemônicos em relação aos primeiros, indica as transformações pelas quais

passava a sociedade. Os agentes do Estado responsáveis por organizar os procedimentos

estatísticos para a classificação censitária simbolizavam o aspecto burguês que lutava por

se afirmar diante do escravista. Isto se torna mais patente quando observamos que, ainda

que ressaltando a distinção entre livres e escravizados, todos os escravizados são também

subdivididos nas categorias profissionais típicas de uma sociedade que (ainda não era

hegemonicamente) burguesa.

Figura 1. “População considerada em relação às profissões”.

3 Cabe lembrar que, apesar dos lavradores corresponder a 53,53% do total de escravizados, parte

dos 175.377 contabilizados no “serviço doméstico” e dos 357.799 enquadrados como “sem profissões”

estariam ligados à plantagem. Isso para não recorrermos aos 94.488 “criados e jornaleiros” que, com maior

probabilidade, se vinculavam ao meio urbano.

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Fonte: IMPÉRIO DO BRASIL. Directoria Geral de Estatística. Recenseamento Geral da

População do Império do Brasil a que se Procedeu no Dia Primeiro de agosto de 1872. Rio de Janeiro,

Directoria Geral de Estatística, 1873-76.

Desse modo, encontraremos, entre os escravizados, “artistas”, “marítimos”,

“costureiras” e entre todas as dez subclassificações dos “operários”. Entretanto, o registro

histórico do recenseamento faz questão de deixar em branco os espaços destinados a

enumerar a quantidade de “religiosos”, “juristas”, “médicos”, “professores”, “militares”,

“capitalistas e proprietários”, “manufatureiros e fabricantes”, “comerciantes, guarda-

livros e caixeiros” que seriam escravizados. Em outras palavras, não havia nenhum

escravizado ocupando as profissões mais importantes segundo a semiótica estatística do

censo. O que não significa que não havia ex-escravizados exercendo-as, informação que,

infelizmente, o levantamento não revela.

Diego Bissigo, ao dedicar especial atenção à maneira como se processou o censo

de 1872, tendo como fontes, além dos resultados do levantamento, as listas de famílias

nas quais se encontram os dados crus, sinaliza a possibilidade da Diretoria Geral de

Estatística, órgão do Ministério do Império responsável por realizar o recenseamento, ter

se sentido “autorizada a completar lacunas por dedução, pela lógica interna da própria

lista de família, criando informação ao invés de recebê-la dos chefes de família” (2014,

p.162-163). Isto teria ocorrido pelo fato de que a informação fornecida pela família,

muitas vezes, incluía apenas a profissão realizada pelo chefe, o que levaria a dois

procedimentos: ou a extensão da profissão a todo o restante da família – no caso de

lavradores, por exemplo – ou o arrolamento dos demais como “sem profissão”, - a

depender da idade e das condições físicas dos indivíduos. Cientes dessas inconsistências,

concordamos, entretanto, com a pertinência documental do recenseamento, como defende

o autor, especialmente nos trechos que grifamos:

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ainda que bastante prejudicada, esta pesquisa não pode em absoluto ser

desprezada, pois, mesmo com imprecisões e generalizações, ela produz um

esboço de ocupação econômica do país: indica a predominância da agricultura,

a pouca expressão da manufatura, aponta para a diversidade de “meios de vida”

que gerou as profissões “não-classificadas” e nos ajuda a problematizar sobre

os conceitos de “profissão” ao nos questionarmos sobre quais os reais papéis

dos 42% “sem profissão”. É também uma pesquisa válida, pois considerou a

população inteira, em vez de apenas a população livre, ou apenas a nacional.

(p.164. Grifos nossos.)

A problematização da noção de “profissão” envolve, por exemplo, a indistinção

no campo dos “comerciantes, guarda-livros e caixeiros” dos proprietários das lojas,

armazéns e depósitos, de seus trabalhadores e trabalhadoras livres ou escravizados, fato

que, ao nos deslocarmos da observação primária dos dados e almejarmos apreender a

estratificação social do período, nos conduziria ao dilema de incluir os 23.481 indivíduos

classificados na cidade do Rio de Janeiro em diversos níveis (BRAZIL, 1872, “Município

Neutro” p.61). Se atentarmos para a existência de grandes negociantes e mercadores,

nacionais ou estrangeiros e para a ausência de escravizados nesta categoria, verificaremos

que, em realidade, tal classificação é seccionada pela classe dominante, pelos setores

intermediários (“pequena burguesia” comercial) e pelos livres subalternos4. O

levantamento de 1890, confessa, por seu turno, este método, afirmando que, “não se

adoptou a prática, geralmente aceita hoje na Europa, de indicar o número de membros da

família a cuja subsistência provê o indivíduo classificado; nem a de distinguir o patrão e

empreiteiro dos operários ou assalariados” (BRAZIL, 1890, p. XXXIX). Tal escolha

difere, por exemplo da realizada em 1872 que informa 822 manufatureiros e fabricantes,

nenhuma mulher para a urbe carioca (BRAZIL, 1872 “Município Neutro”, p. 61).

Para evitar as distorções operadas pelos diferentes critérios adotados pelos

levantamentos demográficos, é preciso que a) os dados fornecidos pelos quatro

recenseamentos sejam confrontados com outras fontes para que se possa corrigir as

disformidades presentes em algumas classificações, e b) se regule as diferenças

classificatórias entre os próprios censos de modo que as nomenclaturas de cada profissão

possam se equivaler e suas quantidades possam ser escalonadas no tempo5. Somente deste

4 Essa distinção é uma proposição metodológica elaborada a partir da classificação adotada por

Darcy Ribeiro (1995, p.211) a fim de visualizar a hierarquia social da cidade do Rio de Janeiro. 5 Proposta semelhante fora empreendida por Cristiane Miyasaka em seu estudo sobre Inhaúma,

tendo como base os recenseamentos de 1890 e 1906. Cf. MIYASAKA, Cristiane Regina. Viver nos

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modo poderemos acompanhar a evolução da dinâmica ocupacional dos trabalhadores e

trabalhadoras da cidade do Rio de Janeiro durante a transição do escravismo colonial

(GORENDER, 1980) ao capitalismo dependente (MARINI, 2005; LUCE, 2018), tema

central do nosso estudo em desenvolvimento.

Tabela 1. Proposta de equivalência entre as categorias censitárias.

1872 1890 1906 1920

Capitalistas e Proprie-

tários/Manufatureiros e

Fabricantes/Religiosos

Proprietários/Capitalis-

tas/Banqueiros/Sacerdó-

cio/Oficiais

Pessoas que vivem

principalmente de

suas rendas/Religio-

sos/Oficiais

Pessoas que vivem de

suas rendas/Religio-

sos/Oficiais

Militares Funcionalismo militar Força e segurança pú-

blica Força pública

Empregados Públicos Funcionalismo civil Funcionalismo Administração pú-

blica e particular

Juristas/Médicos; Ci-

rurgiões; Farmacêuti-

cos; Partei-

ros/Professores e Ho-mens de Letras/Artistas

Magisté-

rio/Juristas/Médicos e clas-

ses acessórias/Profissões

técnicas/Escritores e Jorna-listas

Profissionais Liberais Profissões Liberais

Artistas Indústria Artística

Indústria relativas às

ciências, letras e artes

e indústrias de luxo

Ciências, letras e ar-

tes/Indústrias de luxo

Comerciantes, Guarda-

livros e Caixeiros Indústria comercial Comércio Comércio

Costureiras/Operários Indústria Manufatureira Indústria Industriais

Marítimos Indústria dos Transportes Transportes Transportes

Criadores/Pescadores Indústria Pastoril/Extrativa Criação/Caça e

Pesca/Extração de

materiais minerais

Criação/Caça e Pesca/Extração de

materiais minerais

Lavradores Indústria Agrícola Agricultura Agricultura

Serviço doméstico Indústria do serviço do-

méstico Serviço doméstico Serviço doméstico

Criados e Jornaleiros SEM EQUIVALENTE

Jornalei-

ros/Trabalhadores

braçais/Profissões

mal especificadas ou

desconhecidas

Mal definidas

Sem profissão Classes Inativas/Sem pro-

fissão declarada

Classes improduti-

vas/Sem profissão de-

clarada

Profissões não decla-

radas e sem profissão

Fontes: elaborada pelo autor. [IMPÉRIO DO BRASIL. Directoria Geral de Estatística.

Recenseamento Geral da População do Império do Brasil a que se Procedeu no Dia Primeiro de

agosto de 1872. Rio de Janeiro, Directoria Geral de Estatística, 1873-76; REPÚBLICA DOS ESTADOS

UNIDOS DO BRAZIL. Recenseamento geral da República dos Estados Unidos do Brasil, em 31 de

subúrbios: a experiência dos trabalhadores de Inhaúma (Rio de Janeiro, 1890 – 1910) Rio de Janeiro:

Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2011, p.52.

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dezembro de 1890: Distrito Federal. Rio de Janeiro: Leuzinger, 1895; REPÚBLICA DOS ESTADOS

UNIDOS DO BRAZIL. Recenseamento do Rio de Janeiro. Districto Federal. Realisado em 20 de

setembro de 1906. Rio de Janeiro: Officina da Estatística, 1907. REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS

DO BRAZIL. Recenseamento do Brazil. Vol.II 1ª Parte. População do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:

DGE/MAIC. Typographia da Estatística, 1923]

É possível decompor algumas dessas categorias recorrendo ao Almanak

Administrativo, Mercantil e Industrial mais conhecido como Almanak Laemmert,

publicado desde o ano de 1844, que afirma, em seu prólogo à edição de 1872 que “hoje

em dia ele ministra a mais eficaz coadjuvação a todas as classes, e mormente ao Comércio

e à Indústria, ora acudindo com prontas e exatas informações, ora poupando o tempo que

se houvera de consumir em prolixas pesquisas” (p. IV). De fato, o Almanak fornece dados

preciosos ao listar nominalmente diversos profissionais, entre eles, médicos, advogados

e, o que interessa ao nosso exemplo, os grandes negociantes, os comerciantes, além dos

proprietários de oficinas, fábricas e indústrias.

Segundo Aline de Morais Limeira, o Almanak,

Por meio de seus anúncios, divulgava serviços profissionais (liberais e

públicos) dos mais diversos ramos de atividade, periódicos publicados na

Corte, instituições religiosas, sociedades de leitura, comércio, livrarias e

tipografias, academias científicas, escolas, aulas avulsas e colégios (públicos, privados, militares, religiosos), hospitais, asilos, associações. Uma infinidade

e variedade de temas. (2009, p.23)

Além disso, a publicação anual do almanaque, corresponde, segundo a autora, às

transformações pelas quais passava a cidade do Rio de Janeiro, valorizando o aspecto

escrito das informações que circulavam, acabando por beneficiar a diversificação de

publicações como estas. Limeira destaca, ainda, o aperfeiçoamento do Almanak durante

suas edições, ressaltando a evolução da quantidade de referências e anúncios que

buscavam dar conta do progresso demográfico e produtivo da Corte. A validade

documental do almanaque se afirma em seu próprio esforço de catalogar os indivíduos,

de maneira gratuita – reservando espaços pagos para aqueles que desejassem, para além

de informar seus nomes e endereços, propagandear suas atividades e produtos -, afim de

fornecer aos potenciais clientes e consumidores subsídios seguros. Desta forma, tal

publicação se insere na dinâmica urbana da oferta e procura de serviços e mercadorias,

executando, sob a ótica da economia política, a mediação entre a produção e a realização.

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Quer dizer, o Almanak, ao listar os produtores e os fornecedores de misteres urbanos age

de formar a favorecer o consumo e a efetuação dos ofícios, reduzindo o tempo entre a

elaboração e a execução das atividades e mercancias, acelerando, pois, a circulação

monetária e o ciclo produtivo.

É o próprio redator quem sublinha que sua publicação oferece “observações a

respeito sobretudo do progresso do comércio e da indústria nesta populosa corte”,

tornando-se, pois, “interessante matéria para comparações com anos anteriores” (p.VII).

Assim, encontraremos, no ano de 1872, 2.832 negociantes de açúcar, escravizados, gado,

comércio de importação e exportação, etc., e 6.071 proprietários de lojas, depósitos e

armazéns, além de mercadores, locatários da Praça do Mercado, etc. Estes números

induzem a redução para 8.903 aquilo que o recenseamento chamou de “comerciantes”, se

quisermos, ao menos, distinguir os grandes comerciantes e proprietários de

estabelecimentos comerciais dos assalariados neste ramo.

Pela dimensão deste trabalho optamos por não contabilizar publicação por

publicação, ano a ano, as informações fornecidas, resguardando apenas a comparação

com a realização dos levantamentos censitários. Assim como as exposições censitárias, o

almanaque não está isento de discrepâncias. O anuário não distingue, como os

recenseamentos, a principal profissão do anunciado. Desta maneira, encontraremos, a

título de exemplo, o Major Luiz José de Carvalho, residente a Rua da Constituição, 21,

figurando na condição de “negociante nacional”, “lapidário de brilhantes” e “negociante

de diamante bruto e lapidado”. Isto é, o Fiscal do 1º Batalhão de Infantaria da Corte era,

além de Conselheiro da “Sociedade Comemorativa da Independência e do Império” e

“capitalista e proprietário”, um grande comerciante. Em qual classificação do Censo de

1872 ele foi incluído? Muito provavelmente entre os 5.474 militares.

Figura 2. “Major Luiz José de Carvalho”

Fonte: Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Côrte e da Capital da Província

do Rio De Janeiro com os Municipios de Campos e de Santos para o anno de 1872. Rio de Janeiro: E.

& H. Laemmert, 1872. p.147

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Se, linhas acima, recorremos ao Almanak para corrigir o Censo, desta feita,

induzimos o inverso. Este vai-e-vem de emendas e reparos entre as fontes, antes de

retratar suas incapacidades de versarem sobre o fenômeno histórico, nos carreiam para

aquilo que Michel Foucault chamou de “uma verdade que se corrige a partir de seus

próprios princípios de regulação” (2002, p.11), referindo-se ao paradigma científico

moderno. Os dados arrolados no Censo e no almanaque são resultados de um processo

metodológico que, com maior ou menor consistência, exprimem as contradições das

realidades que queriam comunicar. Contraproducente seria abandonarmos as fontes sem

erigirmos dispositivos que possam minorar os efeitos desviantes dos números em sua

concretude final.

Para o ano de 1872, o Almanak exibe 402 “médicos e cirurgiões”, enquanto o

recenseamento classifica 394 “médicos” e 44 “cirurgiões”. Se somarmos os 36

“cirurgiões-dentistas” que se anunciaram no almanaque, nos deparamos com a plena

equivalência dos dados fornecidos pelas duas fontes. Evidentemente, essa (feliz)

coincidência não irá se repetir nas outras profissões nem nos outros anos, fato que adverte

duas condições, uma histórica e outra metodológica. A histórica diz respeito ao status

social dos médicos que, no enfrentamento com os sangradores e mezinheiros, legitimaram

sua profissão durante o século XIX (GIUMBELLI, 1997). Indubitavelmente letrados,

informaram aos recenseadores, nas listas de famílias, e aos organizadores do Almanak sua

principal ocupação laboral. Do ponto de vista metodológico, a discrepância entre o

almanaque e o censo, e a ocorrência múltipla dos profissionais no Almanak, nos

condiciona a não condensar os comerciantes – para retomar o exemplo acima – como um

só dado, visto que os entre os 2.832 grandes negociantes há entradas repetidas. Como

afirmado, isto não nos afasta do uso da fonte, outrossim, nos guia para a análise da

diversidade dos fazeres urbanos em sua relação com a fração populacional que abarcam

em preferência à quantidade agrupadas de indivíduos em grandes categorias como as

censitárias. Desse modo, é valioso notar que o Major Luiz José de Carvalho, além de

militar, era negociante de diamantes e possuía uma loja de joias.

Reduzindo o foco: o caso do “serviço doméstico” em Santa Rita.

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A luta constante pela Abolição e pela sobrevivência pós-emancipação estampava

sua resistência “[n]um Rio de Janeiro chamado por Heitor dos Prazeres de ‘Pequena

África’, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, tendo como capital

a praça Onze” (MOURA, 1995, p.131). O que o notório sambista, pintor e compositor

negro, nascido em 1898, compreendia como uma “África em miniatura” (SODRÉ, 1998,

p.18) eram as circunscrições com a maior quantidade de habitantes ainda em 1872 –

73.738 ou 26,81% de toda a cidade – nomeadas pelo poder municipal imperial como

freguesias de Santa Rita e Sant’Anna e, desde 1906, como os distritos de Santa Rita,

Sant’Anna e Gâmboa.

Figura 3. Distrito da Santa Rita.

Fonte: Censo de 1906, p.186.

A Pequena África abrigava 30.998 pessoas não-brancas no ano do único

recenseamento geral realizado pelo Império. Ainda que Santa Rita e Sant’Anna

ocupassem a terceira e a quinta posições na relação de indivíduos não-brancos/indivíduos

brancos (44,73% e 38,94%) entre as freguesias urbanas – e posições mais modestas ainda

se acrescentarmos as freguesias rurais, uma vez que todas essas freguesias possuíam

razões acima de 50,00% (com exceção de Inhaúma) – nenhuma outra região apresentava

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quantitativo absoluto de homens e mulheres “pretos” e “pardos” (e “caboclos”) maiores.

Por outro lado, conservavam as menores proporções entre todas de escravizados sobre o

total das freguesias (excetuando Santa Cruz): 13,72 e 13,26 pontos respectivamente.

Isso nos conduz a compreender a Pequena África como um território que às

vésperas do quarto final do século e da Abolição oferecia, nas palavras de Roberto Moura,

“alternativas concretas de vizinhança, de vida religiosa, de arte, trabalho, solidariedade e

consciência, onde predominaria a cultura do negro vindo da experiência da escravatura,

no seu encontro com o migrante nordestino de raízes indígenas e ibéricas e com o

proletário ou o pária europeu” (1995, p.153).

No âmbito do trabalho, de quais alternativas dispunham os habitantes dessas

regiões?

Tabela 2. Principais ocupações da freguesia de Santa Rita em 1872

Livres Escravizados Escravizados/Ocupação Ocupação/Total

Artistas 2.122 133 5,90% 6,47%

Marítimos 6.478 311 4,58% 19,49%

Militares 1.150 - - 3,30%

Comerciantes, guarda-

livros e caixeiros 3.535 - - 10,15%

Costureiras 848 39 4,40% 2,55%

Operários 2.910 309 9,60% 9,24%

Criados e Jornaleiros 1.932 964 33,29% 8,31%

Serviço doméstico 1.897 2.124 52,82% 11,54%

Fonte: Censo de 1872, “Município Neutro”, p.12.

A reduzida presença relativa de escravizados na região não impedia, entretanto,

que a mesma se elevasse conforme nos aproximamos das ocupações menos elogiáveis na

semiologia protoburguesa do Recenseamento Geral do Império. Se entre os “artistas”,

“marítimos” e “costureiras” os livres alcançam dezenove vigésimos, os “operários”, os

“criados e jornaleiros” e o “serviço doméstico” comprovam que a ideologia do

escravismo moderno na formação social brasileira reservava aos cativos o trabalho braçal

de maior esgotamento físico e “moral” na separação histórica entre o trabalho intelectual

e o trabalho manual (GORENDER, 1980, p. 451-467). Ainda que Santa Rita, enquanto

parte da Pequena África, oferecesse “alternativas concretas de consciência e

solidariedade”, sua proximidade à Candelária – isto é, a extensão de algumas ruas que se

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originavam na freguesia central – fazia com que a porcentagem de trabalhadores

escravizados perante a totalidade atingisse, finalmente, a maioria entre aqueles dedicados

ao “serviço doméstico”. Se não fossem “costureiras”, as mulheres livres que exerciam

alguma profissão eram trabalhadoras domésticas, excedendo, inclusive, o total de

escravizadas nesta classificação: 1.360 contra 949. Por mais inesperado que possa

parecer, o serviço doméstico para homens era majoritariamente escravizado: dos 3.388

que encontravam trabalho neste ramo, 69,36% achavam-se como propriedade de outrem.

O Jornal do Commercio de 02 de janeiro de 1880, anunciava, na R. da Quitanda,

47: “aluga-se uma preta de boa conduta” para lavar, cozinhar e engomar. O Dr. Jacintho

Soares Rebello (Almanak, 1880, p.694) não era tão preciso em seu desejo de assalariar

uma criada quanto os anúncios anteriores, que preferiam uma “criada livre” (R. General

Câmara, 210) ou “uma perfeita engomadeira” (R. da Conceição, 42, sobrado) ou ainda

“pretas afiançadas, por 25$, 30$ e 35$” (R. Senhor dos Passos, 154). Antonio José Pereira

Cibrão, “agente de leilão matriculado” do Ministério da Justiça (Almanak, 1880, p.163)

vizinho do Dr. Jacintho (R. da Quitanda, 49, sobrado), na mesma data, desejava alugar

“um preto, para serviço de chácara e outros”.

Ainda que este último exemplo não condiga exatamente com um “criado preto”

habitando Santa Rita, ilustra, entretanto, a dinâmica ocupacional da região ao demonstrar

parte da relação de trabalho que sobrevive à emancipação e à dissolução do escravismo

na cidade, pelo lado da “demanda”. Outrossim, essas amostras nos permitem angariar

maior exatidão quanto à classificação adotada pelo inventário demográfico de 1872. Na

tabela da “população considerada em relação às profissões”, acima da rubrica “criados e

jornaleiros” constava o termo “pessoas assalariadas”, distinguindo-a das “liberais”,

“industriais e comerciais”, “manuais ou mecânicas” e “agrícolas”. Sendo a única

classificação em que tal termo aparece, percebemos que aquelas pessoas arroladas como

dedicadas ao “serviço doméstico” eram, pois, não-assalariadas. Isto é, ou eram esposas

ou amasiadas que exerciam as tarefas domésticas de reprodução da força de trabalho ou

eram escravizados e escravizadas, ou ainda livres e libertos, que residiam na casa de seus

empregadores numa condição laboral que, como sugere a análise combinada dos reclames

do Jornal com o Censo, não existia, aparentemente, sequer remuneração monetária.

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À medida em que Santa Rita afirma-se, ao mesmo tempo, enquanto moradia para

parte da classe dominante (em sua fração sudeste) e para as classes oprimidas (ocupação

dos morros da Conceição e da Previdência), e região portuária modernizada,

contemplaremos o crescimento da população feminina – branca ou não, nacional e

estrangeira (a primeira e a última acima das demais) – justamente nas classificações nas

quais inteiram maioria: o trabalho doméstico, assalariado ou não, e o desemprego que tem

por consequência a subordinação econômica ao pai, marido, irmão...

Tabela 3. Mulheres classificadas no “serviço doméstico” nos anos de 1872, 1906 e 1920 e suas variações.

1872 1906 1920

Total S. Doméstico 2.309 5.676 660

Freguesia 34.835 45.929 38.164

Crescimento

Direto 145,82% -88,37%

Relativo à população total -25,25% -312,52%

Relativo à Freguesia 357,87% 422,71%

Participação [no] 0,63% -1,49%

Participação 6,63% 12,36% 1,73%

Variação 86,44% -86,01%

Fontes: Censo de 1872 (p.12); Censo de 1906 (p.188-189) e Censo de 1920 (p.558-559).

A análise desta tabela requer cuidados exclusivos. Em primeiro lugar, optamos

por apartar os dados referentes ao inquérito de 1890 (p.420), uma vez que não distingue

as mulheres, apesar de revelar o quantitativo de 3.105 pessoas dedicadas ao trabalho

doméstico, informação que, no cômputo geral (homens inclusive) significaria a redução

de 898 indivíduos. Por outro lado, o espantoso acréscimo de 3.367 mulheres entre 1872

e 1906 – ou 3.605 homens e mulheres entre 1890 e 1906; 84,59% do sexo feminino – que

faz com que o crescimento relativo à variação da circunscrição atinja a cifra de 357,87%,

deve-se, provavelmente, a indiscrição entre mulheres casadas que realizam as tarefas

domésticas em suas residências (ou ainda mulheres que não dispondo de trabalho assim

informaram sua ocupação) daquelas que prestam tal serviço na casa de outrem, fato

criticado pelos recenseadores de 1920 (BRAZIL, 1920, p.CXIX). Entretanto, também

deve causar suspeição o inverso. Isto é, no último intervalo, quando o distrito de Santa

Rita constata a redução percentual de 20,34 de seus habitantes, os resultados da variação

relativa positiva de 422,71% - ou seja, a categoria caiu cinco vezes mais do que própria

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queda da região – e da redução da participação no total do distrito de 12,36% para 1,73%,

denotam, antes, a mudança nos critérios censitários do que a variação da ocupação

feminina nos postos de trabalho.

Isto se confirma quando examinamos as demais possibilidades de alocação das

mulheres na dinâmica produtiva da região. Em 1872 (p.15), as “costureiras” somavam

599 brasileiras, 249 estrangeiras e 89 escravizadas; 90 “criadas e jornaleiras” estrangeiras

e 136 escravizadas; e, finalmente, 4.718 brasileiras sem profissão (70,70% solteiras, sem

distinção da idade), 736 estrangeiras (42,11% solteiras) e 273 escravizadas na mesma

condição. Com exceção de 3 “parteiras”, 14 “professoras”, 21 “artistas”, 52 “capitalistas

e proprietárias” (27 viúvas), 155 “comerciantes” (99 solteiras), 92,04% das mulheres ou

eram “costureiras”, ou do “serviço doméstico”, ou não dispunham de ocupação, segundo

os critérios dos recenseadores (24,54% no “serviço doméstico” e 60,88% “sem

profissão”). Uma vez que o Censo de 1890 não separa a população segundo as profissões

por gênero, observaremos em 1906, 687 brasileiras e 467 estrangeiras na “indústria” de

“vestuário e toillete”; 3.825 brasileiras e 1.851 estrangeiras no “serviço doméstico”; 4.453

brasileiras menores de quinze anos e 2.930 maiores “sem profissão declarada” e 353

estrangeiras menores de quinze anos e 1.388 maiores, na mesma situação (p.418-419).

Isto quer dizer que 31,73% das 17.886 mulheres se alocavam no serviço doméstico e

51,01% encontravam-se sem atividade econômica “declarada” segundo um inquérito que

seria, posteriormente, criticado por exceder o quantitativo real das mulheres dedicadas ao

trabalho doméstico, “não obstante as recomendações constantes dos boletins censitários”

(BRAZIL, 1920, p.CXVIII)! Por último, o rigoroso Censo de 1920 informará 824

brasileiras e 512 estrangeiras desempenhando a “aplicação da matéria prima” no

“vestuário e toucador” e 5.173 brasileiras e 551 estrangeiras menores de 21 anos bem

como 3.106 brasileiras maiores e 2.492 estrangeiras maiores “sem profissão” ou de

“profissão não declarada” (p.574-575). Em outros números, 4,77% das mulheres estariam

no “serviço doméstico”; em compensação, 81,86% sem profissão. Em síntese, o que o

censo quis ocultar por um lado, revelou por outro6.

6 Para confirmar nossa argumentação, basta averiguar a variação da participação feminina na

“produção têxtil”, segunda maior rubrica do território. Entre 1872 e 1906 cresce 23,16% diretamente e -

27,28% relativamente ao movimento da circunscrição. Entre 1906 e 1920, avoluma-se em 15,77% o que

garante a resistência de -193,28% em relação ao distrito. Isto é, enquanto o Santa Rita perde mais de 7mil

habitantes, o trabalho têxtil feminino soma 182 pessoas. A participação no total da região fica em 2,69, 2,51

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Conclusão

Apresentamos, de modo sucinto, uma proposta de metodologia para a apuração

dos recenseamentos gerais realizados no final do século XIX e início do XX, momento

no qual a estatística brasileira buscava se consolidar através dos aportes científicos

originários da Europa, como confessam os próprios levantamentos (BRAZIL, 1906,

passim; BRAZIL, 1920, passim.) Tal iniciativa tem por finalidade municiar a pesquisa

que desenvolvemos acerca da dinâmica ocupacional na cidade do Rio de Janeiro

superando o uso indiscriminado dos dados ao confrontá-los com outras fontes que

apontam, por fim, características diversas daquelas expostas pelos inventários

demográficos.

Nesse momento, contudo, muitos aspectos ficaram de fora: a discrepância entre

os Censos demográficos de 1906 e 1920 em relação ao quantitativo do “operariado”

fornecido pelos Censos Industriais de 1907 e 1920; a distinta terminologia quanto aos

“artistas” que, se em 1872 suscita a compreensão enquanto “artífices”, nos seguintes se

aproxima da ideia de artes cênicas; a ausência do critério “raça” nos anos de 1906 e 1920;

a inexistência de cruzamento específico da população segundo as “raças” e “profissões”

para o ano de 1872 (e do “sexo” em 1890), o que impede de observarmos a distribuição

étnica-sexual da ocupação laboral urbana; a indistinção entre “oficias” e “praças” nos

recenseamentos do século XIX, presente, entretanto, nos de 1906 e 1920; o não-

comparecimento da categoria “jornaleiros” e “trabalhadores braçais” em 1890; fora as

singularidades do censo de 1890 que fornece um detalhado escopo do movimento

imigratório e migratório além de um estudo da composição étnico-racial dos casais

cariocas.

Em nossa pesquisa buscamos, com efeito, articular todos esses elementos afim de,

ao mesmo tempo em que procedemos a crítica às fontes e revelamos sua intencionalidade

enquanto instrumento de organização e ação das tarefas públicas do Estado brasileiro,

obter um método minimamente verossímil que nos permita examinar, sob a ótica das

e 3,50 pontos percentuais para os anos de 1872, 1906 e 1920. Nota-se que, mesmo com o rigor de evitar

arrolar as mulheres no trabalho doméstico, o Censo de 1920 informa que tal setor ainda ocupava a primeira

opção de trabalho feminino: 4,77%.

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alterações na dinâmica produtiva da cidade do Rio de Janeiro, particularidades da

transição entre o escravismo e o capitalismo no espaço urbano.

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