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Lieber RR & Romano-Lieber NS Risco e precaução no desastre tecnológico. Cadernos Saúde Coletiva, 13(1):67-84, 2005 1 1 Risco e precaução no desastre tecnológico Risk and precaution in technological disaster Renato Rocha Lieber Professor doutor do Departamento de Produção da Faculdade de Engenharia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Guaratinguetá, SP Caixa Postal 205 12516-410 Guaratinguetá SP Email: [email protected] Nicolina Silvana Romano-Lieber Professora doutora do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

Risco e precaução no desastre tecnológico - CEPED UFSC · transforma um dado problema em problema científico. ... ambientais expressivas widespread) que excedem a capacidade da(

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Risco e precaução no desastre tecnológico

Risk and precaution in technological disaster

Renato Rocha Lieber

Professor doutor do Departamento de Produção da Faculdade de Engenharia da

Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Guaratinguetá, SP

Caixa Postal 205

12516-410 Guaratinguetá SP

Email: [email protected]

Nicolina Silvana Romano-Lieber

Professora doutora do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de

Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

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Risco e precaução no desastre tecnológico

Risk and precaution in technological disaster

Resumo

Desastres tecnológicos são “acontecimentos” decorrentes do uso do conhecimento

científico. Para entender a sua natureza e as suas implicações, propõe-se uma

abordagem fenomenológica, onde o pressuposto é o conhecimento como uma co-

emergência do fenômeno, redefinindo-se conceitos como acontecimento, evento,

causa e contexto. Como proposta de entendimento, a condição de desastre foi

reconsiderada a partir da interpretação de Poicaré (1902) para a produção e o uso

do conhecimento científico. Com isto, fica explícito que a ciência detém uma

condição de “conhecimento provisório” e de operação na incerteza. Conclui-se que,

os desastres, embora expressem perdas de diferentes gêneros e magnitudes,

também se prestam à superação desta ignorância, presente em toda prática

científica na fronteira do conhecimento. Demostra-se também que, embora o

processo conduzido pela razão faça o conhecimento convergir para o mundo real,

ele, por si mesmo, não pode excluir totalmente a incerteza, de forma que a ação

racional sujeita-se sempre a uma condição de risco. Sendo assim, é próprio da ação,

enquanto racional, impor um limite ao agir. A necessidade de “precaução”, portanto,

não é subjetiva. Subjetiva será a ordem das escolhas, possíveis e necessárias para

a plena relação das pessoas com o mundo.

Unitermos: Ambiente, Incerteza, Causalidade, Acidente

Abstract

Technological disasters are “happenings” that result from the use of scientific

knowledge. A phenomenological approach is proposed to understand their nature

and implications, the premise of which is knowledge as co-emergence of the

phenomenon, redefining concepts as happenings, events, causes and context. As a

proposal for understanding, the disaster condition was reconsidered based on

Poicaré’s (1902) interpretation of the production and use of scientific knowledge. With

this, it is clear that science has a “temporary knowledge” condition that operates in

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uncertainty. One can conclude that disasters, although expressing loss of different

sorts and magnitudes, also allow one to overcome the ignorance present in all

scientific practices carried out on the frontier of knowledge. One can also

demonstrate that, although when the process is led by reason knowledge converges

to the real world, in and of itself, knowledge cannot totally exclude uncertainty, thus,

rational action is always subject to a condition of risk. Therefore, one of the

characteristics of action, while rational, is to impose a limit on acting. The need for

“precaution,” thus, is not subjective. What is subjective is the order of possible and

necessary choices so people can fully relate to the world.

Keywords: Environment, Uncertainty, Causality, Accident

1. Introdução

O início do século XXI foi marcado por comoções de grande impacto. De natureza

súbita e expressando prejuízos de toda ordem, os desastres se configuraram em

quase todas as regiões do globo. Em diferentes magnitudes, grupos populacionais

foram atingidos das mais diversas formas, resultando tragédias coletivas e atenção

especial para a preservação da saúde. Além das guerras ou conflitos armados,

assolando todos os continentes, um terremoto atingiu o Irã e chuvas e inundações

cobriram a Àsia. A cidade de Nova Iorque ficou marcada por atentados terroristas,

além de um “blackout”. A Europa contou com ondas de calor à oeste e inundações

à leste em 2002, promovendo perda de vidas e conseqüências econômicas. No

Brasil, pela primeira vez, registrou-se um tornado no litoral de Santa Catarina. Na

Argentina, cerca de 177 jovens morrem num incêndio em Buenos Aires. E, no final

de 2004, uma maremoto no oceano Índico traz proporção global à tragédia, ao

atingir diferentes países em época de turismo. Nas tragédias, as existências se

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perdem e os sobreviventes se interrogam. Na concepção moderna, as respostas

cabem à ciência.

A busca de entendimento científico relativo aos desastres é relativamente recente e

se deu no curso do século XX a partir do grande incêndio em 1917 na cidade de

Halifax, Canadá. O choque entre dois navios provocou a explosão de um suprimento

de munição atingindo mais de 10.000 pessoas, entre mortos e feridos, além de

25.000 desabrigados (BAKER, 2002). A tragédia promoveu constrangimento público

que não pode ficar sem resposta. É exemplo, portanto, de como a dimensão social

transforma um dado problema em problema científico.

Embora convertidos em objetos da ciência, os desastres não dispõem de definições

inequívocas e a sua conceituação não é tarefa fácil. Além disso, é intuitivo que a

fatos tão dispares como a erupção de um vulcão, um deslizamento de encosta, um

maremoto, um incêndio florestal, um tornado, um vazamento de óleo, um choque

ferroviário, uma contaminação ambiental, uma epidemia ou mesmo, uma crise

econômica, decorrente de conflitos armados ou da obstinação das idéias, podem

todos configurar desastre. É da prática, portanto, se classificar os desastres a

partir de definições ou mesmo de “taxonomias” (KREPS, 1989). Tradicionalmente, os

desastres vêm sendo classificados como “desastres naturais”, e “desastres

provocados pelo homem” (man-made disaster), às vezes confundidos com

“desastres tecnológicos”. Esta forma denota a ênfase no fato deflagrador, quer seja

um terremoto, uma guerra ou um choque de aeronaves, respectivamente. Para

alguns, os “desastres tecnológicos”, como um vazamento radioativo, não podem ser

confundidos com um conflito armado, uma vez que o trauma decorre de períodos de

latência diferentes (HODGKINSON, 1989). Outros ainda entendem que os

“desastres tecnológicos” admitem uma condição crônica como, por exemplo, na

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poluição de um curso hídrico em condições prolongadas (KROLL-SMITH et al.,

1987; SOLIMAN, 1996; GRAMLIN & KROGMAN, 1997).

A mitigação dos efeitos dos desastres envolve com freqüência órgãos

supranacionais, como a Organização da Nações Unidas (ONU). Os seus diferentes

organismos dependem de definições que vão além de meras classificações. A

condução de ações deve ser justificada e, preferencialmente, nas diferentes

dimensões que o fato apresenta. A saúde é apenas um dos componentes e, por

vezes, não o mais importante (LECHAT, 1976). Com isto, ganha importância o

conceito. Desde 1971, com a criação da UNDRO ( Unided Nations Disaster Relief

Organization) as definições vem sendo modificadas, buscando estas dimensões de

singularidade, de impacto social e econômico, além da vulnerabilidade específica.1

Em dezembro de 1989, a ONU estabeleceu a “Década Internacional de Redução de

Desastres Naturais”. Com as sucessivas reformas administrativas dos anos 90,

criou-se a DHA (Department of Humanitarian Affairs), subordinado à Secretaria

Geral, com atribuições mais amplas, inclusive para desastres industriais. A UNDRO

e outros órgãos de assistência foram incorporados e criou-se a ISDR (International

Strategy for Disaster Reduction) dentro da DHA.2 Em sua revisão mais recente, a

ISDR define desastre como:

1 As definições para desastre da UNDRO tornaram-se cada vez mais gerais, graças às sucessivas

revisões dos módulos de treinam ento editados. Para edição mais recente ver STEPHENSON, 1994. 2 Conforme resolução 46/182 de 1992. O DHA conta com dois órgãos, a OCHA (Unided Nations

Office for the Coordination of Humanitarian Affairs) e a ISDR (International Estrategy for Disaster

Reduction). A OCHA tem papel coordenador das diversas entidades envolvidas em emergências. A

ISDR, embora tenha como principal foco os problemas ligados aos fenômenos climáticos “el nino” e

“efeito estufa” , permite articulação do problema nas diferentes d imensões, propondo conceituações

mais gerais. Maiores detalhes em: htpp:// www.unece.org/env/teia/english/R_10.HTM e htpp://

www.ochaonline.un.org.

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“Uma séria ruptura do funcionamento de uma comunidade ou sociedade, causando perdas humanas, materiais, econômicas e ambientais expressivas (widespread) que excedem a capacidade da comunidade ou sociedade em atender (to cope) com os próprios recursos.” (ISDR, 2004)

A América Latina conta com o Centro Regional de Informações sobre Desastres

(CRID), incentivando a pesquisa embora poucas publicadas no Brasil.3 A definição

adotada não é muito diferente daquela formalizada acima, muito embora se faça

distinção entre “desastre natural”, como terremoto, inundação; desastre provocado

pelo homem, como guerra; e “desastre tecnológico”, como aqueles derivados de

acidentes envolvendo substâncias químicas ou equipamentos perigosos (CRID,

2001).

As definições atuais refletem muitos questionamentos colocados na literatura. Nos

anos 80, chegou-se a argumentar, por exemplo, que os desastres deveriam ser

definidos como “atualização da vulnerabilidade do sistema social” (PELANDA, 1981),

ou então pela idéia de “recuperação”, pois um evento que não exigisse recuperação

não seria um desastre (BATES et al., 1989). Mesmo assim, a possibilidade de um

conflito armado vir ou não a constituir-se um desastre não é consensual, conforme

QUARANTELLI, 1995. Na pesquisa científica, portanto, a distinção “natural” e “não–

natural” para os desastres se mantém, enquanto que os órgãos de apoio e ação se

mostram mais favoráveis ao conceito genérico.

Este aparente dissenso foi objeto de análise por KROLL-SMITH et. al., 1991 os

quais identificaram duas abordagens possíveis para conceituação de desastre: (i)

uma definição genérica, baseada exclusivamente na mudança social e (ii) outra

3 Além da monografia editada pela OPAS, 1995; cabe destacar os trabalhos de MATTEDI & BUTZKE,

2001 para desastres naturais e de FREITAS et al., 2000 para desastres tecnológicos.

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baseada nas perspectivas físicas. Para eles, a abordagem deveria ser ecológica,

uma vez que as pessoas interagem com o ambiente e vice-versa, sendo o desastre

subjetivamente apreendido. Para PORFIRIEV, 1995, o entendimento do desastre

deveria partir de categorizações. Por um lado, há a orientação aplicada/pragmática

e, por outro, um enfoque teórico/conceitual.

O propósito deste trabalho é aproximar estes dois entendimentos,

aplicado/pragmático e teórico/conceitual, revendo-se o significado de desastre

tecnológico no âmbito da ação, onde o risco estabelece uma condição de incerteza

(LIEBER & ROMANO-LIEBER, 2003) e a precaução é a lógica decorrente no uso da

ciência.

Como método de abordagem propõe-se uma aproximação fenomenológica,

conforme proposição de Husserl (1859-1938). Nesta caso, o fenômeno é a coisa em

si, identifica-se com o seu ser. Ou seja, aquilo que se percebe ou se imagina é o

fato. Se a coisa pode ser tomada por outras aparências, isso não reduziria a

significação do fenômeno enquanto fato, pois o fato só tem sentido dentro do

contexto da percepção (teoria da Gestalt). O próprio desastre seria o fato em si (no

que a vítima concordaria plenamente), repleto de verdade, para onde todas as

considerações deveriam convergir. A busca de causas ocultas não faria nenhum

sentido, porque estaria migrando para um outro contexto, capaz de revelar outras

verdades, porém carentes de significação para o fato considerado.

A exposição do tema inicia-se reconsiderando o desastre como um fenômeno.

Formaliza-se distinções conceituais entre “acontecimento” e “evento” e analisa-se o

uso do conhecimento científico envolvido no desastre tecnológico. A verificação da

forma de produção e uso da ciência evidencia a incerteza do processo e a

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precaução como decorrência. Nas considerações finais, discute-se as implicações

destes achados nos acontecimentos mais recentes.

2. Desastre como fenômeno

Desastres, entendidos como fenômenos, são acontecimentos ou fatos singulares

caracterizados por diferentes prejuízos, entre os quais aqueles relativos às

condições favoráveis à vida. Embora os desastres possam atingir qualquer ser vivo

indistintamente, a condição social de homem o particulariza. Neste, por um lado,

articulam -se os prejuízos materiais, morais, físicos e emocionais, de forma que os

sobreviventes configuram com freqüência quadros patológicos específicos, como o

bem conhecido estresse pós-traumático (MURRAY, 1992; URSANO, 1997;

HAVENAAR & VAN DEN BRINK, 1997). Ao mesmo tempo, o homem conta com

ação social. Graças à ordem do Estado, das instituições e mesmo das redes

interpessoais nas comunidades, o homem convive melhor com as incertezas, com

os infortúnios e se habilita mais facilmente à recuperação do seu papel social uma

vez superada a crise. Desastres, portanto, não são meros fenômenos naturais.

Enquanto algo que emerge no meio social, os desastres interrogam a sociedade em

seus meios e propósitos, tanto por aquilo que (não) se fez antes (a prevenção e a

precaução), como naquilo que (não) se faz durante (a gestão da crise) ou depois (as

transformações necessárias).

Desastres, enquanto acontecimentos, acontecem. Ou seja, a menos que se trate de

um atentado ou sabotagem, o desastre pressupõe uma condição acidental, onde há

falta de intencionalidade para aquilo que se expressa. Nesse entendimento, é uma

falha conceitual buscar-se “a causa” do desastre. Por que o desastre se deu nesse

instante e não em outro ou atingiu essa pessoa e não outra, só se explica pelo

acaso, ou “falta de causa”, como quis Aristóteles na antigüidade. A questão

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necessária, objeto da ciência, é como se dá o desastre. Ou seja, como diferentes

circunstâncias são reunidas, se articulam num processo e resultam no desastre. A

ciência tenta, portanto, aproximar-se da natureza do fenômeno a partir da

configuração do contexto, cuja forma possibilita o acaso que leva ao desastre

(LIEBER & ROMANO -LIEBER, 2001).

Cada um dos diferentes aspectos que formam o contexto é insuficiente por si

mesmos para possibilitar o desastre. A idéia de atribuir-lhes condição de “causa”,

portanto, sob o ponto de vista lógico, fica impossibilitada. Além disso, o papel

contributivo ou de preponderância de cada aspecto do contexto para o desastre não

pode ser entendido apenas por ele mesmo. O que é favorável numa situação pode

ser prejudicial em outra. As contribuições de contexto, portanto, só podem ser

entendidas no processo, ou na forma como cada uma delas se articula com as

demais. Sendo assim, cada fator de contexto configura-se como uma “contribuição

incerta” ou, mais precisamente, como um fator de risco.

Em síntese, uma compreensão científica do desastre implica em entendê-lo como

fato único, ou acontecimento, onde fatores de risco configuram um contexto próprio

para um acaso perigoso. Exemplificando, um sujeito que morre soterrado numa

encosta desmoronada em dia de chuva é fato único. Mas a presença do sujeito, a

chuva, a natureza da encosta, as possibilidades de socorro e outros aspectos são

fatores de risco, pois a concomitância deles, embora não suficiente para aquela

morte, foi necessária.

3. Acontecimento e evento

As proposições científicas decorrem de inferências dedutivas. A análise de um fato

singular deve sugerir a generalização, cuja validade depende de observações ou

experimentos posteriores, sempre singulares. No caso de um desastre, ainda que

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as condições de contexto se reproduzam, nenhum cientista pode dar “certeza” do

seu resultado. Na melhor das hipóteses, a ciência permite uma medida da incerteza.

Em outras palavras, cada fator de risco pode configurar uma probabilidade de

desastre. Como ?

Para configurar uma probabilidade, se faz necessária uma série histórica. Todavia,

como cada desastre é um acontecimento único, uma série histórica não é possível a

menos que se reduza o acontecimento à uma coleção de fragmentos passíveis de

observação sistemática ao longo do tempo. Estes fragmentos são os eventos.4

Eventos são a presença ou não de dado fator de contexto. Se uma situação reúne

vários eventos antes presentes em outros desastres, pode-se afirmar que esta

também é catastrófica?

A rigor não. Primeiro porque um evento qualquer (presença/ausência de fator de

contexto) não determina, mas apenas possibilita o acontecimento. Segundo, o fato

de um evento ter sido encontrado não exclui o fato de o mesmo evento poder ser

encontrado em outras situações não catastróficas. Na melhor das hipóteses, pode-

se formalizar uma probabilidade, dividindo-se o total de catástrofes pelo total de

ocorrências. E terceiro, como visto, o evento, referindo-se ao fator de contexto, só

tem sentido na configuração do processo. Por isso, o entendimento depende de uma

construção de sentido, aquilo que se conhece como teoria. Por exemplo, a “fase da

lua” é algo que permite uma série histórica, presente ou ausente em desastres.

Todavia, a “fase da lua” só é fator de contexto (ou evento válido) se uma implicação

puder ser estabelecida, dentro de uma acepção lógica no conhecimento existente.

4 Em estatística define-se eventos dependentes e independentes em função das respectivas

variáveis. Aqui, propõe-se preserva-se o termo “evento” para as variáveis independentes e

“acontecimento” para a variável dependente.

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Logo, “fase da lua” pode possivelmente ser fator de contexto para maremoto, mas

dificilmente o será para incêndio ou explosão. Isto porque, há uma teoria possível no

primeiro caso (forças gravitacionais) mas não há ainda para o segundo caso.

Do exposto, fica clara a importância da articulação entre o fato empírico e a

proposição teórica para o entendimento dos desastres. Se a teoria se presta ao

entendimento do desastre, o desastre se presta à teoria, confirmando ou refutando

os seus pressupostos. Isto ocorre particularmente no desastre tecnológico, resultado

do uso da ciência. Antes de se examinar esta particularidade, convém rever como a

ciência moderna convive com a incerteza e produz conhecimento a partir das

evidências empíricas.

4. Evidência e incerteza

Os processos e práticas estabelecidos pela ciência moderna subentendem a

formulação de hipóteses e a verificação empírica. Tal orientação hipotético-dedutiva

capacita (embora sem suficiência) o pesquisador ao prognóstico, ao fazer uso de

teorias. Ao mesmo tempo, ela condiciona a necessária contingência de todas as

afirmações científicas, caracterizadas sempre como um conhecimento provisório e

sujeito a revisão.

Tratando-se de conhecimento científico, portanto, evidência e incerteza se articulam,

pois aquilo que se apresenta, se apresenta graças ao recurso científico, ele próprio

contingente e, ao mesmo tempo, instrumento da constatação da contingência

daquilo que havia se verificado até então. A realidade que se descortina com o uso

de uma lupa dissipa-se com o uso do microscópio ótico ou ganha novos sentidos

quando iluminada por comprimentos de onda que escapam à visão. Em suma, a

cuidadosa apreensão pelos sentidos e o pleno consenso entre os observadores não

garante o conhecimento da coisa. Este foi um dos legados de Galileu (1564-1642) à

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ciência moderna, graças às suas observações astronômicas decorrentes do seu

invento. Todavia, mais importante que o instrumento em si, foi a forma de criá-lo.

Galileu concebeu um telescópio sem jamais ter sido um polidor de lentes e o fez a

partir de relações geométricas, na precisão matemática e não na tentativa e erro do

ato empírico, próprio de sua época. A partir daí, o mundo pensado e o mundo vivido

deixaram de ser incompatíveis, como supunha-se desde a Grécia antiga, e a

realização humana ganhou uma perspectiva ilimitada de realização, porque a

capacidade de imaginação é infinita. Consequentemente, o empirismo abnegado,

limitado ao que é, como da alquimia, perdeu toda a pretensão de ciência. Ao mesmo

tempo, a humanidade tornou-se capaz de manipular não apenas a natureza do

mundo mas a sua própria, como demonstra a intervenção nos genomas.

Mas qual é o significado deste paradoxo de libertar-se das possibilidades do mundo

real para dominá-lo? Ou melhor dizendo, no que consiste essa incerteza decorrente

deste paradoxo? Se evidência e incerteza se articulam como verso e reverso na

ciência moderna, é a análise deste processo que possibilita algum entendimento.

5. Produção do conhecimento científico

Entender o processo da produção do conhecimento científico é uma necessidade

não apenas daquele que faz ciência, mas também daquele que faz uso dos seus

resultados, submetendo alguém ou submetendo-se ele próprio aos seus

prognósticos. Como foi ensinado por POINCARÉ, 1902, a convergência entre a

evidência empírica, em sua circunstância particularíssima da observação controlada,

e o mundo real vindouro, objeto de circunstâncias próprias daquele novo tempo, só

pode se dar pela ponte da formulação teórica. Aquilo que foi obtido no laboratório

tem significado restrito à própria observação, sempre sujeita ao erro. É por isso que

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não se admite em ciência nenhuma extrapolação pura e simples daquilo que se

observa. (figura 1A). No resultado empírico não há a “verdade” do fenômeno,

cabendo à imaginação encontrá-la com o recurso da perfeição do cálculo

matemático. A proposição teórica, portanto, é a “verdade do fato”. É verdade porque

é perfeita, é perfeita porque é matemática e pertence ao fato porque o mundo

empírico liga-se a ela por relações perfeitas (interpolação matemática ajustada).

Além disso, ou sobretudo por isso, é verdade “porque funciona”, conforme o

pragmatismo de Bacon (1561-1626), e possibilita um “mundo novo” fatual, graças à

extrapolação que a função matemática permite (Figura 1B).

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INSERIR FIGURA

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Todavia, existe uma outra “verdade” contida no processo. A escolha da função

matemática (ou relação teórica) não é um processo meramente decorrente das

evidências fatuais. O cientista não só usa um conjunto de gêneros de funções

preestabelecido, como também “ajusta” ou “concilia” sua observações com a função

pretendida. Ao se excluir o “idiossincrático”, salva-se o paradigma teórico. Além

disso, a pretensa perfeição do processo de passagem do dado empírico para o

teórico, decorre do pressuposto de uma lógica no erro! Em outras palavras, as

evidências contém erros, mas estes erros são todos da mesma natureza, basta, por

exemplo, minimizá-los (processo dos mínimos quadrados, por exemplo).

Não surpreende, portanto, que o “mundo criado” seja catastrófico. Surpreendente é

o fato do automóvel rodar como pretendido! Ou, rodar quase sempre assim! Em

síntese, é próprio do uso da ciência, a possibilidade de um desastre particular, o

desastre tecnológico.

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6. Desastre tecnológico

Desastres tecnológicos distinguem-se não apenas dos desastres naturais, como

sugere o senso comum, mas também de desastres técnicos. Isto porque, tecnologia

não é o mero uso de técnicas.

A palavra “técnico” deriva do grego “tekhnikós”, cujo uso equivalente latino é “ars”,

dando origem ao termo “arte”. Técnica pressupõe habilidade, reprodução,

virtuosidade. A condição técnica é própria de um artesão. O artesão, quando

constrói um barco, o faz conforme uma “arte” consolidada. Se o barco naufraga, o

desastre é técnico, pois faltou a perfeição reprodutiva de uma tradição aceita.

A tecnologia é algo muito diferente. A tecnologia é o resultado do traspasse entre o

mundo empírico (próprio ao lidar técnico) e o mundo imaginado (próprio à reflexão),

iniciado por Galileu no século XVII ao criar o telescópio. A partir dele, a imaginação,

como visto, estabeleceu o novo referencial para fazer as coisas. Foi possível

inventar-se um mundo novo, correspondendo aos objetos, máquinas, materiais ou

mesmo seres vivos absolutamente artificiais, cuja disponibilidade, de uma forma ou

de outra, facilita a existência.

Todavia, esta mesma imaginação, embora infinita, não se dá de forma completa. O

mundo empírico continua a surpreender pela sua extravagância. A efetiva

descoberta científica, possível na medida que se avança na prova das possibilidades

da teoria, é o resultado inaudito, contrário aos pressupostos existentes e, portanto,

sempre um “desastre” sob o ponto de vista formal (figura 1C). A nova teoria, agora

mais completa, será, da mesma forma, submetida aos novos limites, até mostrar-se

insuficiente na efetividade do “seu desastre”, recomeçando o ciclo.

Sendo assim, este processo de descoberta, ao proporcionar novas e melhores

possibilidades, não exclui uma perda de fato, relativa não só às idéias e concepções

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incompletas, mas também referente aos objetos e seres vivos colocados à prova. Se

uma simples relação de custo-benefício pode ser estabelecida para os primeiros, o

mesmo não pode ser feito em relação às existências, em particular à do homem,

cujo pressuposto é a dignidade, como lembra HORKHEIMER, 1968/1990: xvii.

A tecnologia, portanto, facilitando a existência e prolongando a vida, decorre da

força imaginativa da teoria cientifica, cujo avanço em validade depende do confronto

empírico, por natureza, desastroso. As implicações do desastre dependem, como

mencionado, daquilo que se faz antes, durante e depois dele. As relações de custo-

benefício, por sua vez, dependem das possibilidades de retorno econômico da nova

descoberta ou proposição teórica decorrente. Este retorno se efetiva na sociedade e

será maximizado com a nova teoria levada agora ela mesma aos seus limites de

predição. Como este limite é desconhecido de antemão, configura-se uma situação

de incerteza ou de risco. A generalização desta situação singular abre espaço para o

surgimento daquilo que veio a ser conhecido como “sociedade de risco”.

7. Sociedade de risco

A expressão “sociedade de risco” foi cunhada por BECK (1986) e tornou-se

referência obrigatória no estudo contemporâneo do risco nas ciências sociais. Sua

análise dos problemas da sociedade contemporânea e do papel do risco cobre

diferentes áreas, tratando de várias questões atuais, como contingência,

ambivalência, pluralismo e individualização.

O termo “sociedade de risco” é introduzido como uma forma de tentar definir o

momento presente, farto de perigos ambientais e das inseguranças decorrentes do

processo de modernização, pois, no seu entender, a modernização envolve não

apenas mudanças estruturais, mas também a transformação das relações entre

estruturas sociais e seus agentes. Assim, observa-se as classes sociais perdendo

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referência, sendo substituídas pela condição de “classes de risco”, onde a

distribuição de risco toma o lugar do processo da distribuição desigual de riqueza.

Para Beck a produção e a distribuição de riqueza é inseparável da produção de risco

e da sua distribuição nas esferas ecológica e psicosocial. Ele argumenta que a cada

avanço na produção tecnológica surge um novo risco imprevisível de degradação

dos recursos ambientais, criando demanda para mais cientificismo na produção. O

processo acaba se configurando numa geração contínua, “algo como um jogo auto-

mantido entre o risco e economia”. Assim, medo e sua saciedade são meramente

simbólicos e independem do seu contexto para satisfazer as necessidades

humanas. Para ele, proliferação de riscos decorre do fato do processo de inovação

tecnológica ter perdido o controle social, convertendo-se em solução para qualquer

problema. A sociedade virou um laboratório em que ninguém mais se responsabiliza

pelos resultados das experiências. Por isso, ele clama por uma “cultura de

incerteza”, distinta daquela mantida até agora, limitada entre a adoção do controle

do risco marginal (seguro) por um lado e a adoção de barreiras à inovação, ou de

segurança absoluta (o não risco), por outro.

A obra de Beck é ampla e extensamente discutida. O entendimento das implicações

depende de outros conceitos, em particular da distinção entre a perspectiva

objetivista e subjetivista para o significado de risco. Risco não é um mero cálculo de

probabilidade, mas é também uma construção social, ditando o que é e o que não é

perigoso, própria para exercício do poder (LIEBER & ROMANO -LIEBER, 2002).

Em síntese, a lógica de mercado, converte o conhecimento científico em mercadoria,

ao transformá-lo em tecnologia. Como em toda lógica de mercado, os retornos

marginais (lucro) são sempre decrescentes e o empreendimento capitalista depende

de inovações para superação das suas crises inevitáveis, conf. Schumpeter (1883-

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1950). A exposição social aos desastres tecnológicos, portanto, decorre desse

convívio cada vez mais próximo com o “mundo de descoberta” (figura 1C), antes

próprio ou exclusivo ao laboratório. Nestes termos, o significado do risco vai muito

além do aspecto científico ou mesmo da aceitação pessoal. É o projeto social que

está em jogo e, assim sendo, trata-se de um problema político, como sugere a

proposta do “princípio da precaução”.

8. Princípio da Precaução

Princípio da precaução (PP) é uma diretriz que se generaliza no mundo da ciência

aplicada, onde as relações, cada vez mais, se exprimem em termos de “riscos” ao

invés de “causas”. Isto por que, enquanto o risco se configura por relações

probabilísticas, o cálculo da probabilidade por si mesmo é apenas capaz de

dimensionar a incerteza, mas não de excluí-la. Há sempre algo em todo fenômeno

que não se pode medir, pois é desconhecido. Logo, como proceder cientificamente

em relação ao que se ignora? Agir com “prudência”, ou com “virtude”, é a resposta

que se dispõe. O “princípio da precaução” é, em síntese, a relação entre esse agir

virtuoso e a natureza do conhecimento científico sempre incompleto.

As primeiras propostas para uso do PP surgem na Alemanha nos anos 70,

originalmente para se lidar com alguns problemas ambientais específicos. A partir

dos anos 90, o uso do PP ganhou maior destaque na França, quando se denunciou

sérias contaminações de sangue e de hemoderivados por HIV. Todavia, só em fins

do ano 2000, a Comunidade Européia chegou a um consenso, possibilitando a

reformulação das legislações nacionais pelos diferentes membros. Hoje, o seu

emprego alcança as mais diversas áreas de proteção à saúde, orientando desde o

uso de telefones celulares até o de organismos geneticamente modificados,

abrangendo desde a saúde ambiental até a farmacoterapia (KRIEBEL e col. 2001).

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O PP aplica-se onde o risco potencial combina o perigo com a escassez de

conhecimentos a respeito da complexidade envolvida. O PP inova ao separar o

conhecimento científico da tomada de decisão, ao inverter o ônus da prova e ao criar

um contexto normativo novo. O PP não é a “prevenção” por si mesmo (não se pode

prever o que não se sabe). Todavia, ele a enfatiza, ao exigir maior formalização do

conhecimento do perigo e não a sua mera “gestão”, como propõe a “análise de

riscos” nos EUA.

A base conceitual do PP é a “certeza da incerteza“. Consequentemente, o PP

interfere em diferentes interesses e relações sociais, sendo objeto de intenso debate

em diversas áreas de conhecimento. Seu emprego crescente (ou mesmo

incondicional) na atualidade decorre sobretudo da crise contemporânea. Por um

lado, há demandas por uma vida mais segura no mundo desenvolvido e, por outro,

os empreendimentos na economia capitalista carecem de inovações para vencer os

retornos marginais decrescentes. Todavia, as argumentações, prós e contra, focam

sobretudo aspectos instrumentais e raramente se atém ao fato que a “certeza da

incerteza” no conhecimento científico decorre do próprio processo da sua obtenção,

como apresentado acima. Além disso, poucos se dão conta também que o PP não

deriva de relações propriamente objetivas. Pelo contrário, ele advém do conjunto de

virtudes proposto na Grécia antiga, o qual permitia justificar as ações éticas de cada

indivíduo na sua comunidade. Sua introdução no mundo atual, assim, não se dá sem

razão.

Na gestão de crises o PP é o mais forte aliado na prevenção das decisões

autoritárias, muitas vezes bem intencionadas mas calamitosas em seus resultados.

Expressando cautela sobre o que se dispõe, o PP embasa relações mais eqüitativas

entre os diferentes interesses. Ele constitui por si um forte argumento para refutar o

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cientificismo, para democratizar a escolha de opções, para promover o avanço das

pesquisas em busca de tecnologias mais seguras e, sobretudo, para inovar os

procedimentos do uso da ciência no entendimento da natureza e da condição

humana.

9. Considerações finais

Nos tempos de polarização ideológica, os desastres puderam ser entendidos como

“mais um outro aspecto da vida normal” no âmbito da “luta de classes” entre os mais

e menos favorecidos (CLAUSEN et al. 1978). Tal conceito, todavia, não basta diante

de um acontecimento em que milhares de suecos morrem em decorrência de um

maremoto no oceano Índico em 2004. Como destacou HERNANDEZ ROSETE,

2001, o marxismo contribuiu para o entendimento dos desastres como um fenômeno

social, mas muito além da ação do homem em oposição à natureza, os desastres

deveriam ser entendidos como fenômenos antropogênicos. Para este autor,

desastres são processos historicamente condicionados e a sua prevenção é um

problema de âmbito político, cabendo questão ao papel da sociedade, da economia

e do Estado na produção de vulnerabilidade. O presente trabalho, contudo, mostra

que muito além destes aspectos está o processo neo-platônico de produção de

conhecimento, base da ciência moderna. É a racionalidade científica que guia e

legitima as ações nestas esferas de poder numa forma tautológica. É graças à

tecnologia que suecos e alemães aos milhares cruzam os oceanos à caminho de um

desastre e é graças também à tecnologia que uma ilha no oceano Índico converte-se

em “atrativo turístico”, mas será sempre pela sua “falta” que os maremotos levam

centenas de milhares à morte.

Não é sem razão, por conseguinte, que na Austrália os fazendeiros são cada vez

mais constrangidos a considerar suas perdas não mais por desastres “naturais”, mas

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sim por falta de “manejo tecnológico” (HIGGINS, 2001). Passa-se ao largo da noção

de vulnerabilidade, pois a maioria das vitimas nos desastres são sempre os mais

carentes de recursos (JASWAL, 2000). Ignora-se que estas mesmas constituem o

foco permanente dos “programas de desenvolvimento”, os quais, por si mesmos,

levam aos desastres ao desestruturar as formas tradicionais de vida em prol da

moderna economia de mercado (STEPHENSON, 1994). Considerando que tais

“programas de desenvolvimento”, calcados na racionalidade científica, quase

sempre se voltam para as “intervenções”, para as “inovações” ou para a “reprodução

de experiências” em novos contextos, não deveria surpreender o resultado em

desastre, pois a única premissa válida das propostas é a inferência teórica que o

agente faz uso. Assim, se deu certo em “X” dará certo em “Y”, observadas as

“condições de contorno” presumido.

Enquanto isto, o “terceiro setor engajado” submete-se ao discurso clássico das

“causas” para os desastres, buscando os “sinais de aviso”5 , desconsiderando que

“sinais de aviso” dependem de uma construção de sentido, conforme uma dada

teoria.

A ciência moderna, com sua inusitada capacidade de predição, tornou-se presente

em praticamente todas as esferas do saber, conduzindo iniciativas e orientando

decisões com sucessos, mas também com fracassos. O brilho do êxito, em

detrimento dos malogros, não decorre apenas da dissimulação das incertezas, nem

da mera relação de freqüência, como poderia sugerir o pensamento utilitarista. O

fato é que, graças à tecnologia, cada vez mais se faz uso de objetos cujo

funcionamento é desconhecido ao homem comum, como denuncia HABERMAS,

5 Ver por exemplo em http://www.cwserp.org/techdis/id.html

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1998. Esta dependência de especialistas para solução de problemas cotidianos

promove uma dimensão irreal. Não é sem razão, portanto, que alguns já entendam o

tempo atual como “pós-história”, como se a existência estivesse livre da natureza

num mundo absolutamente inventado (PAUNESCU, 1996).

A verdade do desastre enquanto fato é a dimensão da ignorância exposta da forma

mais cruel. Ignorância esta tanto em relação à natureza como em relação às

necessidades da condição humana. Embora a noção de compaixão venha sendo

pouco a pouco substituída pela idéia de direito universal, as expressões individuais

de dor continuam carentes na capacidade de tradução, particularmente num

contexto em que o embotamento converteu-se em estratégia defensiva. Logo, são

os desastres, com seus impactos e magnitudes sociais, que reposicionam as

percepções, constituindo, por vezes, a rara oportunidade de manifesto legítimo de

aflições há muito represadas. Todavia, nem a dimensão do acontecimento, nem a

grandeza do clamor são suficientes para promover transformações efetivas. É o

pressuposto da eqüidade, alvo permanente da tradição ocidental, que fomenta a

relação política, dando impulso às realizações sonhadas. Essa vem sendo a lição da

história contemporânea, cujos percalços nas utopias políticas e econômicas

terminaram por mostrar que desenvolvimento científico efetivo se dá na plenitude

democrática. São as chances de questionamento pela sociedade que possibilitam o

seu avanço e não a simples justificação dos meios pelos fins, como é prática no

totalitarismo.

A esfera normativa, como não podia deixar de ser, vai refletir a tradição e o contexto

social transformador em que se vive. Com a incerteza, explicitamente colocada pela

ciência, e com a condição democrática, agora mais plena graças ao exercício de

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liberdades mais fundamentais6, o apelo é a retomada das virtudes. Em outras

palavras, é a constatação que a vida social, embora prescindindo das relações

objetivas proporcionadas pela ciência, não dispensa as relações subjetivas

orientadas pelos valores. O ressurgimento da precaução, um termo de uso mercantil

que se emprega no sentido virtuoso da prudência, próprio da pólis, mostra o projeto

social moderno em vias de transformação. A tradição grega, cuja interrogação era: O

que eu faço para ser bom ?, torna-se alternativa para a tradição latina: O que eu devo

fazer se eu faço correto?, conf. MCINTYRE, 1966/1996: 94-109. Em síntese, o

amparo da sociedade burguesa na exatidão (através da ciência) e nos deveres

imanentes e transcendentes (códigos, leis, culpa e pecado) ficou insuficiente. A

incerteza reconfigura o espaço do possível. E, se para a ciência emerge o novo,

para o homem surge a oportunidade inusitada de realização do juízo, configurando

aquilo que se entende por responsabilidade (LIEBER & ROMANO-LIEBER, 2003).

Concluindo, a distinção entre “desastre natural” e “desastre tecnológico” só procede

numa concepção metafísica, onde o mundo se conduz pelas “causas”, onde os

desejos submetem-se à autoridade das “leis naturais”. No entanto, o desastre expõe

a fragilidade dessa concepção, afrontando o domínio do cientificismo e expondo, em

termos práticos, a condição inerente da incerteza que ele mesmo supera graças à

sua emergência. Um fato natural pode ser um deflagrador, mas a condição

desastrosa será sempre definida pelo contexto, configurado pelo homem.

6 Conf. A. Senn, liberdades fundamentais são aquelas relativas ao corpo, como liberdade de ir e vir ou

liberdade das privações como a fome, ver SENN, 1999. Também H. Arendt enfatiza esta condição,

lembrando que a concepção geral de liberdade como liberdade psíquica ou do espírito foi decorrente

da fé cristã e sua ênfase no controle da vontade. Ver ARENDT, 1954 / 2001:159.

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Todavia, para a existência humana, além dessa ordem do mundo real, há também

uma ordem relativa aos valores. E se a racionalidade impõe objetivamente a

precaução no mundo diante do desconhecido, é no mundo dos valores que se

configura as escolhas que poderão humanizar esta existência.

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LEGENDA DA FIGURA 1

Processo de produção e uso do conhecimento científico. (a) As relações empíricas (

Xi e Yi ) correspondem ao mundo observado mas não podem ser extrapoladas, pois

contém o erro da observação. (b) Quando uma relação teórica é estabelecida, a

extrapolação é possível porque a relação matemática é perfeita, permitindo a

invenção do não existente. (c) A verificação empírica da teoria deixa explícito o

mundo da descoberta. Quando o achado não confere com o esperado, configura-se

o “desastre” e a relação teórica pode assumir uma nova forma, mais completa.

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FIGURA 1

x1 x2 x3

X

y

y3

y2

y1

(a): Relações Empíricas

contorno inválido

Mundo da Observação

yn

y3

y2

x1 x2 x3 xn

X

y y = f(x)

(b): Relações Teóricas

Mundo Inventado

Mundo da Imaginação

x1 x2 x3 xn X

y y = f(x)

(c): Relações de Verificação

Mundo Desejado

Mundo da Descoberta

y = f ’(x)

Achado

Esperado

Desastre