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RITA DE CÁSSIA DA ROSA SAMPAIO BROCHIER AUTOGESTÃO E NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA: UMA INTERVENÇÃO EM UMA COOPERATIVA DE RESÍDUOS PÓS-CONSUMO CANOAS 2015

RITA DE CÁSSIA DA ROSA SAMPAIO BROCHIER - Biblioteca … · Seus sonhos e dissabores De uma luta diária. Inspirada em Paulo Freire Você cultiva um alqueire Do que há de melhor

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  • RITA DE CSSIA DA ROSA SAMPAIO BROCHIER

    AUTOGESTO E NVEIS DE CONSCINCIA: UMA INTERVENO EM UMA

    COOPERATIVA DE RESDUOS PS-CONSUMO

    CANOAS

    2015

  • 2

    RITA DE CSSIA DA ROSA SAMPAIO BROCHIER

    AUTOGESTO E NVEIS DE CONSCINCIA: UMA INTERVENO EM UMA

    COOPERATIVA DE RESDUOS PS-CONSUMO

    Dissertao apresentada no Programa de Ps-Graduao

    em Educao do Centro Universitrio La Salle

    UNILASALLE como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de Mestre em Educao.

    Orientadora: Professora Dra. Maria de Lourdes Borges

    CANOAS

    2015

  • 3

    RITA DE CASSIA DA ROSA SAMPAIO BROCHIER

    AUTOGESTO E NVEIS DE CONSCINCIA: UMA INTERVENO EM UMA

    COOPERATIVA DE RESDUOS PS-CONSUMO

    Dissertao apresentada no Programa de Ps-Graduao

    em Educao do Centro Universitrio La Salle

    UNILASALLE como requisito parcial para a obteno

    do ttulo de Mestre em Educao.

    BANCA EXAMINADORA:

    ___________________________________________

    Prof. Dra. Maria de Lourdes Borges

    UNILASALLE

    ____________________________________________

    Prof. Dr. Balduno Antnio Andreola

    UNILASALLE

    ____________________________________________

    Prof. Dra. Maria Angela Mattar Yunes

    UNILASALLE

    _____________________________________________

    Prof. Dr. Airton Cardoso Canado

    Universidade Federal do Tocantins - UFT

  • 4

    RESUMO

    Esta dissertao objetivou estimular o desenvolvimento da autogesto, por meio de uma

    interveno, em uma Cooperativa de Resduos Ps-consumo de Canoas, com base em Paulo

    Freire. Como reviso de literatura, foi realizado um estudo sobre economia solidria,

    autogesto, nveis de conscincia, dilogo e prxis. Esta pesquisa est inserida na linha de

    pesquisa Gesto, Educao e Polticas Pblicas do Programa de Ps-Graduao do Mestrado

    em Educao do Centro Universitrio La Salle (UNILASALLE). A metodologia utilizada foi

    a pesquisa participante. Como tcnica de coleta de dados, foram utilizadas a observao

    participante (28 encontros registrados em dirios de campo), a pesquisa documental e nove

    entrevistas semiestruturadas. Para a anlise dos dados, utilizou-se a anlise de contedo

    proposta por Bardin (2010). Os resultados indicam, no que se refere constituio de um

    processo autogestionrio na COOPCAMATE, que h um distanciamento no desenvolvimento

    da conscincia crtica que leva prxis, o que acaba no efetivando a autogesto. Tal

    resultado pode ser explicado pelo no empoderamento dos cooperados na gesto de seu

    prprio trabalho, pois no se evidencia no grupo, na maior parte do tempo, prticas que

    diferenciem o trabalho dentro dos princpios Capitalistas e o trabalho cooperativo. Portanto,

    compreende-se que os cooperados da COOPCAMATE, de maneira geral, transitaram, na

    maior parte do tempo da interveno, entre os nveis de conscincia semi-intransitivo e

    transitivo ingnuo, j que a conscincia crtica s formada em momentos especficos de

    efetivao da prxis.

    Palavras-chave: Economia Solidria. Autogesto. Pesquisa Participante.

  • 5

    ABSTRACT

    This thesis aims to encourage the development of self-management, through an intervention

    in a Cooperative of post-consumer waste, based on Paulo Freire, located in the city of Canoas.

    As a literature review, a study was conducted on solidarity economic, self-management, levels

    of awareness, dialogue and praxis. This research is inserted into the search line of

    Management, Education and Public Policies of the Masters Program in Education of the

    University Center La Salle (UNILASALLE). The methodology used was participatory

    research. The data collection technique was the participant observation (28 meetings recorded

    in field diaries), the documentary research and nine semi-structured interviews. For data

    analysis, were used the content analysis proposed by Bardin (2010). The results indicate, as

    regards the establishment of a self-managed process in the cooperative COOPCAMATE, that

    there is a gap in the development of critical consciousness that leads to praxis, which end up

    not making effective self-management. This result can be explained by not empowerment of

    the cooperative members in managing their own work because there is no evidence in the

    group, most of the time, of practices that distinguish the work within the capitalist principles

    and cooperative work. Therefore, it is understood that the cooperative members of

    COOPCAMATE, in general, carried over, most of the time during the intervention, between

    the semi-intransitive consciousness levels and naive transitive, since the critical consciousness

    is only formed at specific times of realization of praxis.

    Keywords: Solidarity Economy. Self-management. Participatory Research

  • 6

    Dedico esta pesquisa minha filha, Maria Antnia.

  • 7

    AGRADECIMENTOS

    Sonho que se sonha s.

    s um sonho que se sonha s

    Mas sonho que se sonha junto realidade .

    (Preldio/ Raul Seixas).

    Escrever esta pgina, no menos importante que o restante da dissertao, significa

    que mais um sonho est se realizando. Porque aqui, neste texto, intitulado Agradecimentos,

    registrarei o meu reconhecimento queles que sonharam junto comigo.

    Seria impossvel priorizar algum, mas existiu uma cronologia para essa realizao.

    O ambiente educacional do Centro Universitrio La Salle, j na graduao promoveu,

    por meio das experincias na Incubadora de Empreendimentos Solidrios e na Empresa

    Jnior, o estimulo continuidade dos estudos. Em especial, aos dois grandes mestres Prof.

    Fbio Maia e Prof. Robinson Scholz, que acreditaram em mim, e, juntos, demos os primeiros

    passos.

    Indispensveis para a realizao de qualquer sonho: a famlia e os amigos. Sozinha,

    jamais teria conseguido!

    Rogrio, marido, apoio incondicional a esse sonho.

    Veridiana, amiga e comadre, apoio tcnico e logstico.

    Tnia, cunhada e a bab perfeita.

    Cassiandra e Cristiano, irm e cunhado, essenciais.

    Antnio e Marina, meus pais, apoio moral.

    Marino e Norma, meus sogros, o carinho dirio.

    Aos amigos, espero que tenham compreendido minha ausncia.

    Malu, minha orientadora, pois nada acontece por acaso. Admiravelmente dedicada

    pesquisa.

    COOPCAMATE, meu agradecimento pela oportunidade de mais uma experincia

    na economia solidria.

    Aos cooperados, protagonistas desta pesquisa, meu reconhecimento pela luta diria.

    Tambm meus sinceros agradecimentos ao Programa de Ps Graduao em Educao

    do Centro Universitrio La Salle (PPGEdu) pelo acolhimento e Fundao de Amparo

    Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) pela viabilizao financeira desse

    sonho.

  • 8

    O lixo tambm belo

    Se a coleta um singelo

    Gesto de puro amor

    Como ao colher uma flor

    De roseira ou de accia

    E assim Rita de Cssia

    Rosa Sampaio Brochier

    Que eu vejo agora voc

    Ouvindo os trabalhadores

    Da Economia Solidria,

    Seus sonhos e dissabores

    De uma luta diria.

    Inspirada em Paulo Freire

    Voc cultiva um alqueire

    Do que h de melhor em pesquisa,

    E o que nisto s visa

    ajudar na construo

    De formas de autogesto

    Sonhando uma sociedade

    Onde todos tenham vez,

    Nesta terra que Deus fez,

    Para toda a Humanidade,

    Como casa e jardim,

    Onde ele prprio sempre a quis,

    Ver fraterna e feliz,

    Desde agora e at o fim...

    (Balduino A. Andreola)

  • 9

    SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................... 11

    1.1 MINHA INSERO NA ECONOMIA SOLIDRIA: UMA NARRATIVA PESSOAL ....................... 12

    2 CONTEXTUALIZAO DA ECONOMIA SOLIDRIA ............................................. 19

    3 PROBLEMA DE PESQUISA ............................................................................................ 21

    3.1 OBJETIVO GERAL ............................................................................................................. 22

    3.2 OBJETIVOS ESPECFICOS DA PESQUISA .............................................................................. 22

    3.3 JUSTIFICATIVA ................................................................................................................. 23

    3.3.1 Estudos sobre Economia Solidria ........................................................................... 23

    4 FUNDAMENTAO TERICA ...................................................................................... 26

    4.1 ECONOMIA SOLIDRIA ..................................................................................................... 26

    4.1.1 A origem ................................................................................................................... 26

    4.1.2 O que economia solidria? Caractersticas e Princpios ........................................ 27

    4.1.3 Autogesto ................................................................................................................ 29

    4.2 NVEIS DE CONSCINCIA: DILOGO E PRXIS ................................................................... 32

    4.2.1 Nveis de Conscincia .............................................................................................. 33

    4.2.2 Dilogo ..................................................................................................................... 34

    4.2.3 Prxis ........................................................................................................................ 35

    4.2.4 Conexes tericas entre autogesto e nveis de conscincia .................................... 36

    4.3 SNTESE DO REFERENCIAL TERICO ................................................................................ 39

    5 CONTEXTO DE PESQUISA ............................................................................................. 41

    5.1 COLETA SELETIVA EM CANOAS ....................................................................................... 41

    5.2 COOPCAMATE ............................................................................................................. 41

    6. PERCURSO METODOLGICO .................................................................................... 43

    6.1 TIPO DE PESQUISA ............................................................................................................ 43

    6.2 PESQUISA PARTICIPANTE ................................................................................................. 44

    6.2.1 Aspectos terico-metodolgicos da Pesquisa Participante ...................................... 44

    6.2.2 Os participantes da pesquisa .................................................................................... 47

    6.3 FASE EXPLORATRIA ....................................................................................................... 48

    6.3.1 Tcnicas de Coleta de dados para o diagnstico interno .......................................... 48

    6.3.2 Delineamento e anlise de dados ............................................................................. 50

    6.4 DESENHO DESTA PESQUISA .............................................................................................. 52

    6.5 DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA ................................................................................... 54

    7. DIAGNSTICO DA COOPCAMATE ............................................................................ 60

    7.1 DADOS DO EMPREENDIMENTO .......................................................................................... 60

    7.2 FINANAS, TRABALHO E RENDA ....................................................................................... 62

  • 10

    7.3 RELAES INTERPESSOAIS ............................................................................................... 66

    7.4 O PROCESSO DE TOMADA DE DECISO .............................................................................. 70

    8 A INTERVENO: ETAPAS DESCRITIVA E ANALTICA ..................................... 75

    8.1 ETAPA DESCRITIVA DA INTERVENO NA COOPCAMATE ............................................ 75

    8.2 ETAPA ANALTICA DA INTERVENO NA COOPCAMATE ............................................ 105

    8.2.1 As relaes ............................................................................................................. 105

    8.2.1.1 As relaes institucionais com a COOPCAMATE ......................................... 106

    8.2.1.2 relaes interpessoais da e na COOPCAMATE.............................................. 108

    8.2.1.3 Privilgios da Coordenao ............................................................................. 112

    8.2.2 A autogesto ........................................................................................................... 114

    8.2.2.1 O Tesoureiro e a autocracia ............................................................................. 114

    8.2.2.2 Credibilidade da gesto financeira .................................................................. 118

    8.2.2.3 Omisso da presidenta ..................................................................................... 120

    8.2.2.4 Tomada de deciso como ritual ....................................................................... 121

    8.2.2.5 A prxis ........................................................................................................... 123

    8.2.3 O trabalho na COOPCAMATE.............................................................................. 126

    8.2.3.1 A renda ............................................................................................................ 126

    8.2.3.2 Organizao do trabalho .................................................................................. 128

    8.2.3.3 O valor do trabalho na cooperativa.................................................................. 130

    8.2.4 O dilogo ................................................................................................................ 132

    8.2.4.1 Dialogar ........................................................................................................... 132

    8.2.4.2 A menina e o vestido dos sonhos .................................................................... 137

    8.3 AVALIAO DA PESQUISA .............................................................................................. 141

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 150

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 159

    APNDICE 1 ........................................................................................................................ 164

    APNDICE 2 ........................................................................................................................ 165

    APNDICE 3 ........................................................................................................................ 166

    ANEXO A .............................................................................................................................. 167

  • 11

    1 INTRODUO

    A economia solidria surgiu na Frana no sculo XIX, quando a solidariedade foi

    estabelecida como fundamento de amparo s consequncias do abalo causado pelo

    desenvolvimento da economia de mercado (CHANIAL; LAVILLE, 2006). Mas, foi na

    Inglaterra que a primeira cooperativa se constitui por organizao popular. Foi em 1844, na

    cidade de Manchester, denominada Cooperativa dos Probos Pioneiros Equitativos de

    Rochdale com 28 operrios de diferentes ofcios. Era uma cooperativa de consumo que alm

    de comrcio de seus produtos, tinha tambm como objetivos proporcionar educao e

    formao aos seus cooperados, consolidao de um grupo autossustentvel e promover

    habitao e emprego a quem necessitasse. Alm disso, no possua funcionrios, os prprios

    cooperados de dividiam entre as atividades da cooperativa (CANADO, 2004). A prtica da

    diviso de atividades uma prtica comum em cooperativas, sendo esta uma prtica

    indicativa da autogesto. Paul Singer, economista, socilogo e Secretrio Nacional da

    Economia Solidria no Brasil, desde a sua fundao em 2003, menciona que a economia

    solidria chegou neste pas, como uma resposta defensiva de pessoas vitimadas da crise do

    trabalho, que adotaram estratgias de sobrevivncia. A economia solidria caracteriza-se pelo

    agrupamento de trabalhadores por iniciativas de produo, autogeridas democraticamente, nas

    quais os ganhos so repartidos proporcionalmente ao trabalho realizado individualmente pelos

    integrantes do grupo (SINGER, 2013).

    O Brasil possua 19.708 Empreendimentos Econmicos Solidrios - EES cadastrados

    no Sistema Nacional de Informaes em Economia Solidria SIES. Este nmero foi

    divulgado em 2013, aps um levantamento realizado entre os anos de 2010 e 2012. Nesses

    EES esto 1.423.631 trabalhadores e trabalhadoras que buscam uma alternativa de trabalho e

    gerao de renda.

    Atrelado ao desenvolvimento da Economia Solidria, a prtica autogestionria

    ressurge como relao de trabalho em EES (ANDRADA; SATO, 2014). De forma

    simplificada, na autogesto no h separao entre a compreenso e a prtica do trabalho, pois

    o trabalho coletivo; trata-se de uma estrutura de trabalho que deve ser acompanhado de um

    processo educacional contnuo no EES (CANADO, 2008). Portanto, o processo de

    desenvolvimento da autogesto tem como base a educao, considerada agente indispensvel

  • 12

    de tal processo. A educao, nesses casos, atua como condutora de um processo de formao

    e conscientizao (MOTA, 1981).

    Para melhor compreender a orientao geral desta dissertao, inicialmente ser

    apresentada a trajetria pessoal de insero no campo de pesquisa da economia solidria, para,

    em seguida, proceder delimitao do tema e objetivos. Na sequncia, se apresentar a

    fundamentao terica que abordar a economia solidria discorrendo sobre a sua origem,

    caractersticas e princpios, e, tambm, sobre autogesto. Ainda, se realizar uma abordagem

    sobre os seguintes temas: nveis de conscincia, dilogo e prxis. Encerrando esta seo, uma

    discusso sobre a relao da autogesto e os nveis de conscincia ser realizada, e, por fim,

    uma sntese do referencial terico abordado. Na seo seguinte, denominada Contexto de

    Pesquisa, uma breve exposio da coleta seletiva de Canoas e, em seguida, da

    COOPCAMATE.

    Na prxima seo, ser apresentado o percurso metodolgico, constitudo das

    seguintes subsees: tipo de pesquisa, pesquisa participante, aspectos terico-metodolgicos

    da pesquisa participante, participantes da pesquisa. Na fase exploratria so apresentadas as

    seguintes subsees: tcnicas de coleta de dados para o diagnstico interno, delineamento e

    anlise de dados, desenho da pesquisa e desenvolvimento da pesquisa. A prxima seo

    contempla o diagnstico da pesquisa, apresentado em quatro subsees: dados do

    empreendimento, finanas, trabalho e renda, relaes interpessoais e o processo de tomada de

    deciso.

    A ltima seo dedica-se apresentao da interveno, primeiro a parte descritiva do

    processo e em seguida a parte analtica que se subdivide ainda em quatro categorias: as

    relaes, a autogesto, o trabalho na COOPCAMATE e o dilogo. Finalizando, uma seo

    sobre a avaliao da pesquisadora pelos cooperados e outra seo sobre os desafios da

    pesquisa participante. As consideraes finais encerram a presente dissertao.

    1.1 Minha insero1 na Economia Solidria: uma narrativa pessoal

    Durante o perodo da realizao do Trabalho de Concluso de Curso da

    Administrao, a fim de dedicar-me ao trabalho de monografia, com as atividades de

    1 Nesta subseo utilizo a primeira pessoa do singular para contar como foi a minha entrada no campo de

    estudo desde o ano de 2012.

  • 13

    aplicao da pesquisa e posterior anlise dos dados, reduzi a jornada laboral para meio turno

    na empresa onde trabalhava. Dessa forma, tambm obtive maior tempo disponvel para

    conhecer outros projetos que at ento, devido ao trabalho em turno integral e ao estudo na

    graduao no turno da noite, no me permitiam conhecer, tal como a Sinergia Consultoria

    Jnior, a Empresa Jnior do Unilasalle, na qual ingressei em abril de 2012.

    Por meio da Empresa Jnior, conheci mais o trabalho das Cooperativas de Reciclagem

    de Resduos Slidos Urbanos de Canoas, e, consequentemente, o envolvente trabalho da

    Economia Solidria. Salienta-se que a Empresa Jnior possui um vis de assessoria nesta rea

    em parceria com a Incubadora de Empreendimentos Solidrios do Tecnosocial/Unilasalle,

    vinculada ao Tecnosocial Unilasalle (doravante denominada Incubadora/Tecnosocial). A

    Incubadora/Tecnosocial tem como objetivo contribuir para a consolidao de EES de Canoas

    e regio na perspectiva de construir tecnologias sociais apropriadas para fortalecer a

    capacidade empreendedora e a dinmica solidria desses empreendimentos, potencializando

    sua atuao sustentvel e autogestionria nos territrios onde atuam. Em outubro de 2012,

    uma oportunidade de estgio (20 horas semanais) na Incubadora/Tecnosocial despertou-me o

    interesse em conhecer melhor o trabalho desenvolvido na economia solidria. Ento, ingressei

    na equipe de trabalho da Incubadora. Mas no poderia antever que esse trabalho me faria

    mudar a direo da minha carreira profissional.

    Ainda em 2012, decidi me desvincular da empresa onde trabalhava e me dedicar ao

    estgio e Iniciao Cientfica. Assim, fui selecionada como bolsista de Iniciao Cientfica

    do Professor Robinson Henrique Scholz que desenvolvia uma pesquisa sobre o

    desenvolvimento da inovao social atravs das prticas de lideranas em EES na cidade de

    Canoas e Regio. Observa-se que o Professor Robinson tambm era o Coordenador da

    Incubadora/Tecnosocial e da Agncia P&D do Unilasalle. Desde julho de 2013, desvinculei-

    me do estgio e me dedico ao Projeto da Empresa Jnior, onde sou a presidenta da associao

    na gesto 2014/2015.

    Posso afirmar que uma experincia vivida durante o estgio realizado na

    Incubadora/Tecnosocial do Unilasalle a motivadora da minha pesquisa, conforme ser

    explicitado a seguir. Um dos sete empreendimentos incubados, denominado Cooperativa de

    Catadores de Material Reciclvel da Mathias Velho - COOPCAMATE, estava passando por

    uma crise financeira e, consequentemente, organizacional no perodo em que atuei na

    Incubadora (2011-2012). Esse grupo, que iniciou seu trabalho em 1986, est localizado no

  • 14

    Bairro Mathias na Cidade Canoas, atua na coleta e triagem de resduos slidos urbanos. No

    perodo referido, contava com 20 cooperados aproximadamente. Entre as minhas atividades a

    serem desenvolvidas, estava a de auxiliar os empreendimentos nos seus processos de gesto.

    A COOPCAMATE passou a ser acompanhada por mim e uma psicloga (eu me dedicava aos

    trabalhos tcnicos em gesto para o empreendimento e a psicloga me dava suporte quanto

    abordagem metodolgica das atividades desenvolvidas com o grupo) to logo iniciou meu

    trabalho na Incubadora.

    Diante da crise, o grupo encontrava-se em nmero reduzido, apresentando-se

    desmotivado, uma vez que a renda mensal estava baixa e havia excesso de material

    armazenado no galpo e no ptio da Cooperativa. Segundo os prprios cooperados, o material

    foi sendo armazenado em funo da falta de mo de obra (motivada pela crise financeira),

    estimavam que houvesse material acumulado h mais de dois anos. Com o passar do tempo,

    alguns materiais foram se deteriorando atraindo abelhas, moscas e outros insetos. O galpo

    teve quase 50% do espao ocupado pelo material acumulado, dificultando at mesmo a

    luminosidade do local. A Fotografia 1 demonstra a situao de acmulo de material na

    Cooperativa:

    Fotografia 1- Material acumulado na cooperativa (e - parte interna / d parte externa).

    Fonte: Arquivos da Sinergia Consultoria Jnior.

    Aps reunies internas na Incubadora, refletimos (a colega psicloga, o nosso

    coordenador e Eu) que to importante quanto reorganizar a situao financeira, tnhamos que

    trabalhar a motivao do grupo para tal processo. Assim, organizamos um cronograma com

    encontros semanais com o grupo, que foram realizados na prpria Cooperativa. A seguir,

  • 15

    sero narradas algumas tcnicas grupais realizadas nas atividades, por mim e pela colega

    mencionada, que se tornaram referncias fundamentais no processo de reorganizao do

    empreendimento. No primeiro encontro, propusemos uma reflexo sobre sonhos atravs do

    refro da msica Preldio do Raul Seixas. Houve a audio da msica e tnhamos um cartaz

    com a sua letra: Sonho que se sonha s. s um sonho que se sonha s. Mas sonho que se

    sonha junto realidade. A partir da vivncia provocamos o grupo a iniciar uma reflexo do

    que estas frases da msica tinham a ver com a realidade da Cooperativa. Todos os cooperados

    tiveram uma boa compreenso das frases; destacamos algumas falas como: Sim, eu entendi.

    Temos que sonhar juntos, porque sozinho a coisa no rende. A partir do que disseram,

    fizemos uma associao com o resultado que tiveram na partilha de dezembro, que foi fruto

    do trabalho conjunto at ento. E, como tema de casa, a tarefa de pensarem em um sonho

    que tivessem e o que precisariam para realiz-lo. Um sonho... Para realizar preciso... Essa

    tarefa ficou colada em um cartaz na parede.

    Para o segundo encontro, realizado uma semana depois do primeiro, levamos flores

    desenhadas e recortadas em papel branco, lpis de cor, giz de cera, canetinhas coloridas e

    pedimos que cada um do grupo escrevesse (no grupo havia analfabetos, para esses ajudamos

    na escrita) o seu sonho. Alguns dos sonhos relacionados foram: Encaminhar meus filhos, ter

    um companheiro, trocar de casa, ter sade; que a cooperativa vire uma micro empresa; paz,

    amor, ser feliz, sade para os filhos, aposentadoria; que a minha nora se acalme; vida,

    cooperao do grupo, dignidade; ter uma casa, ter um filho, casar de novo; curar minha me

    da artrose; levar os quatro filhos, neto e nora para Fortaleza. Depois, coletivamente,

    utilizando materiais reciclveis, o grupo confeccionou um jardim (utilizaram uma caixa de

    isopor, colocaram areia, folhas verdes naturais e alguns outros acessrios para decorar a

    caixa). E, chegou o momento de plantar as flores, ou seja, plantarem os seus sonhos. Cada

    cooperado falou do sonho descrito na sua flor papel e, em seguida, plantou-a no jardim, assim,

    este foi denominado Jardim dos Sonhos. Deixamos como tarefa para a semana seguinte que

    cada um pensasse qual seria o valor necessrio receber por ms para a realizao do seu sonho

    (e para os que no descreveram sonho material, solicitamos que pensassem num valor

    necessrio mensal para viver).

    No terceiro encontro, a proposta era Regar os Sonhos, levamos gotas de gua

    recortadas em papel branco e novamente levamos lpis de cor, giz de cera, canetinhas

    coloridas. Torna-se importante destacar que os cooperados tiveram grande envolvimento na

  • 16

    atividade de pintura, permaneceram por um tempo significativo colorindo suas flores e gotas

    de gua. Depois que coloriram as gotas de gua, pedimos que cada um descrevesse o valor

    que tnhamos pedido para pensar no encontro anterior e cada um regou o jardim com a sua

    gota de gua. Os valores sugeridos foram sistematizados por ns. Salienta-se que, ao final do

    nosso encontro, o grupo fez uma reunio para decidirem se trabalhariam no feriado de Nossa

    Senhora dos Navegantes e no Carnaval. Assim que iniciou o assunto, uma cooperada falou:

    se ficar sem trabalhar em todos os feriados, no vamos realizar nossos sonhos. Isto

    demonstra um exemplo de tomada de conscincia do problema que o galpo estava

    enfrentando, o caso do acmulo de material.

    Para o quarto encontro, organizamos uma planilha que constava o valor mdio

    mensal de renda desejada (R$ 1.000,00) calculado a partir dos valores indicados na atividade

    do segundo encontro. Na planilha, tambm constava uma listagem dos produtos triados e

    vendidos no ltimo ms de produo. Fizemos um clculo proporcional para apresent-los

    quanto de material precisariam triar e vender para atingir a renda mdia de R$ 1.000,00 por

    cooperado ms. Torna-se importante destacar que utilizamos o mesmo formato de planilha

    que o grupo utilizava para o controle de vendas por produto, objetivando sua melhor

    compreenso. To logo, projetamos a planilha na parede do refeitrio, onde todos estavam

    reunidos, uma cooperada que pouco se expressava nas atividades mencionou temos que

    produzir o dobro.... E ela estava certa, pois a renda do ms anterior que tomamos como base

    de clculo se apresentava prxima dos R$ 500,00. Isso fez com que o grupo percebesse a

    necessidade de aumentar a produo para que pudessem aumentar seus ganhos. Assim,

    tomaram como meta de produo os pesos dos materiais descritos na planilha apresentada,

    esta ficou fixada na parede do refeitrio a partir do quarto encontro (este foi o local escolhido

    porque os cooperados circulavam bastante e poderiam visualizar diariamente as metas).

    Os encontros seguintes foram agendados para uma periodicidade de 14 dias, pois o

    combinado foi acompanhar a produo e as vendas para que fizssemos encontros de

    avaliao. No primeiro encontro de avaliao, aps um ms, o grupo ainda no havia atingido

    a meta de produo, a renda continuava baixa e uma grande quantidade de material estava

    armazenada no galpo. Mesmo no atingindo a meta de produo, nesse primeiro encontro, o

    grupo mostrava-se otimista quanto ao trabalho, pois demonstravam acreditar em sua

    capacidade, apesar de ser um trabalho rduo. Tambm nos apresentaram algumas estratgias

    desenvolvidas pelo grupo para o aumento da produo, tais como: dividiram o grupo, alguns

  • 17

    trabalhavam no material acumulado da parte externa galpo e outros trabalhavam no material

    acumulado na parte interna galpo; tambm estenderam uma hora na jornada diria de

    trabalho e fizeram mutires aos sbados.

    Sentindo-me sem respostas para tal situao, pois ainda havia muito material

    acumulado e a renda mantinha-se baixa, levei a problemtica ao o grupo da Sinergia

    Consultoria Jnior da Unilasalle. A questo era a baixa renda versus grande quantidade de

    material armazenado. A partir desse contato/pedido, o grupo da Sinergia realizou trs visitas

    ao empreendimento e, aps a confeco de um diagnstico, propuseram a implementao de

    um Programa 5S. Segundo Rebello (2005), o Programa 5S consiste no conjunto de cinco

    conceitos simples de organizao. Sua origem japonesa, no Brasil foi traduzido da seguinte

    forma: Seiri - Senso de utilizao e descarte; Seiton - Senso de Arrumao e Ordenao; Seiso

    - Senso de Limpeza; Seiketsu - Senso de Sade e Higiene (asseio); Shitsuke - Senso de

    Autodisciplina. Quando aplicados, esses cinco conceitos tornam-se capazes de melhorar o

    ambiente de trabalho, a maneira de os trabalhadores conduzirem suas atividades rotineiras e

    as suas atitudes, agregando valor de forma efetiva aos colaboradores.

    O grupo da Sinergia realizou um encontro com os cooperados para a apresentao do

    Programa 5S, e, ao final do encontro, os cooperados aceitaram o desafio. A principal ao

    era limpar o espao, triar o material armazenado h mais de dois anos no galpo e no ptio.

    Assim, a parceria da Incubadora e da Sinergia colaborou na resoluo de uma problemtica

    antiga na cooperativa. Em paralelo implantao do Programa 5S e o acompanhamento das

    Metas de Produo, comeamos realizar reunies de planejamento financeiro com a

    coordenao da Cooperativa, construmos (tesoureiro, secretria e Eu) um fluxo de caixa para

    organizao do caixa da Cooperativa, tambm foram realizadas reunies sobre processos,

    avaliao e controle. Aps quatro meses de reunies e formaes, o empreendimento

    apresentava-se com 90% de suas dvidas quitadas e iniciando um processo de reorganizao

    em sua estrutura fsica e organizacional.

    Durante o ano de 2013 e tambm 2014, realizei e realizo visitas peridicas

    COOPCAMATE juntamente com o grupo da Sinergia Consultoria Jnior, que, em 2014,

    reimplantou o Programa 5S a fim de reorganizar os processos operacionais da Cooperativa.

    Estas vivncias me fizeram refletir que organizaes, independente do porte, ramo de

    atividade ou modelo, buscam continuamente o aumento de produtividade e reduo de custos

    dentro de um ambiente adequado ao trabalho com o objetivo de otimizar seus ganhos. Para

  • 18

    isso, as organizaes tradicionais contratam mo de obra especializada ou mesmo softwares

    que ajudam a otimizar o trabalho. Mas o que fazer em um EES? Tais empreendimentos

    enfrentam um grande desafio no que tange a prtica da autogesto, justificado pela falta de

    vivncia dos cooperados na prtica de gesto.

    A experincia citada gerou alguns trabalhos acadmicos, tais como:

    a) A Ferramenta 5S Como Instrumento de Gesto na Reciclagem de Resduos

    Slidos Urbanos. In: XX Mostra UNISINOS de Iniciao Cientfica 2013,

    So Leopoldo/RS.

    b) A Ferramenta 5S como Instrumento de Gesto na Reciclagem de Resduos

    Slidos Urbanos O Caso COOPCAMATE. In: IX Semana Cientfica

    Unilasalle - SEFIC, 2013, Canoas/RS.

    c) A relao da produo e da partilha: planejamento de metas de produo e

    um Empreendimento de Economia Solidria de Canoas/RS. In: Feira de

    Iniciao Cientfica Feevale - 2013, Novo Hamburgo/RS.

    d) A Implantao do Programa 5S na Cooperativa dos Catadores de Material

    Reciclvel de Canoas - COOPCAMATE. In: Robinson Henrique Scholz.

    (Org.). Economia Solidria e Incubao: uma construo coletiva de saberes,

    2014.

    e) Projeto 5S: Inovando na Gesto de um empreendimento econmico solidrio

    no Campo da Reciclagem. In: EmprendeSUR, 2014, So Paulo/SP.

    Dessa forma, esta pesquisa poder contribuir para a disseminao do tema,

    fortalecendo os conceitos de Economia Solidria e Autogesto nos meios acadmicos e para a

    sociedade. Tambm contribuir para o desenvolvimento da cooperativa e para a formao da

    cultura autogestora. Canado (2008) relata que h uma escassez de produes bibliogrficas

    no que tange construo da autogesto em EES. Muitas delas, como j foram

    exemplificadas acima, exploram o tema autogesto considerando apenas as necessidades de

    um empreendimento para ser autogestionrio ou os identificam em estudos de casos. No

    existe um foco em estudos que identifiquem ou se preocupem com a construo do processo

    de autogesto, ou seja, como acontece a formao para a autogesto. Isto reafirma a

    originalidade desta pesquisa com enfoque nos temas Economia Solidria e Autogesto.

  • 19

    2 CONTEXTUALIZAO DA ECONOMIA SOLIDRIA

    O Brasil possui 19.708 EES cadastrados no SIES, este nmero foi divulgado em

    2013, aps um levantamento realizado entre os anos de 2010 e 2012. Nesses EES, esto

    1.423.631 trabalhadores e trabalhadoras que buscam uma alternativa de trabalho e gerao de

    renda.

    A criao da Secretaria de Economia Solidria - SENAES no Ministrio do Trabalho

    e Emprego - MTE, em 2003, possibilitou mudanas nas polticas pblicas de trabalho e

    emprego e a garantia de direitos de cidadania, quando o trabalho associado ganhou

    reconhecimento junto s demais polticas pblicas de gerao de trabalho.

    A Economia Solidria de grande importncia para a sociedade brasileira atual, uma

    vez que o trabalho representa uma forma de crescimento e amadurecimento do indivduo.

    Alm disso, a Economia Solidria proporciona este tipo de oportunidade igualmente a todos

    que nela esto inseridos (SINGER, 2008).

    A SENAES possui um Sistema Nacional de Informaes em Economia Solidria, o

    SIES, cujo principal objetivo a constituio de uma base nacional de informaes em

    Economia Solidria, e, desde a sua implantao, em 2004, consolida informaes sobre EES

    em todo o Brasil. Um primeiro levantamento realizado em 2005 identificou 14.954

    Empreendimentos, o segundo levantamento, que foi feito em 2007 encontrou mais 6.905,

    totalizando 21.859 EES. J o terceiro levantamento ocorreu entre os anos de 2010 e 2012, e

    mapeou mais 11.663 novos Empreendimentos no Brasil. Portanto, entre 2005 e 2012, sendo

    33.522 EES foram identificados no Brasil.

    No terceiro mapeamento, alm de identificar novos EES, o SIES revisitou os EES j

    cadastrados no sistema, sendo que dos 21.859 constantes no sistema, apenas 7.839 EES foram

    atualizados e includos na nova base de dados 2010-2012, pois os demais no foram

    localizados, deixaram de existir ou no atendem aos critrios do SIES uma vez que assumiram

    outras formas organizacionais. Assim, a nova base de dados do SIES, denominado Mapa da

    Economia Solidria no Brasil, possui 19.708 EES cadastrados.

    O resultado do Mapa a aplicao de um questionrio de 171 questes que abordam a

    identificao e caracterstica do ESS e dos scios, tipo de atividade, investimento e gesto.

    A seguir, apresentam-se alguns dados do Mapa da Economia Solidria no Brasil

    embasado no SIES.

  • 20

    Figura 1 - Mapa da economia solidria no Brasil

    Fonte: Autora desta pesquisa.

    Conforme apresenta Figura 1, a maior parte do EES so associaes (60%),

    cooperativas (8,8%) e sociedades mercantis (0,6%). Observa-se que o nmero de grupos

    informais relativamente alto (30,5%), mas isto tambm significa dizer que 70% dos EES do

    pas so formalizados.

    Entre os 19.708 EES esto 1.423.631 associados, o que apresenta uma mdia de 72

    associados por Empreendimento, sendo que 56,4% (803.373) so homens e 43,6% (620.258)

    so mulheres.

    Referente categoria social dos scios dos EES do Brasil, a maioria dos scios so

    agricultores familiares (55%), seguido por artesos, com (18%), entre outros. Cabe aqui

    destacar os catadores de material reciclvel que representam (3%) na categoria social dos

    scios no pas.

    Entre outras informaes que o mapa apresenta, destaca-se que dos 19.708 EES do

    Brasil, 331 atuam na coleta de materiais reciclveis e 315 na triagem de matrias reciclveis.

    Ainda, 3.292 (16,7%) dos 19708 EES esto localizados na Regio Sul.

    Tais dados no so frutos do acaso, pois Adams e Santos (2013) relatam que, quando

    as pessoas se envolvem no processo de economia solidria, experimentam a sua prtica,

    acabam se percebendo como educadores da base popular, no sentido de replicar os valores

    construdos atravs do trabalho coletivo. Ainda os autores destacam que a economia solidria

    um lugar de prerrogativa Educao Popular.

  • 21

    3 PROBLEMA DE PESQUISA

    Nesse contexto, o que me instigou foi a possibilidade de compreender o trabalho

    iniciado no aqui denominado Jardim dos Sonhos a fim de contribuir ainda mais no

    desenvolvimento da Cooperativa. Utilizou-se o termo compreender porque enxerguei no

    desenvolvimento desta dissertao a possibilidade de analisar a continuidade do trabalho

    iniciado durante o estgio na Incubadora. Ou seja, enxerguei a possibilidade futura de

    ampliao e fortalecimento do jardim, por meio do entendimento dos complexos processos

    sociais e tcnicos que envolvem o dia-a-dia da cooperativa e seus resultados. O trabalho

    narrado na primeira seo foi uma atividade que, com base apenas no senso-comum, j

    propiciou um processo de transformao na Cooperativa. Busquei, ento, nas bases tericas

    da Economia Solidria e da Autogesto, compreender mais profundamente a realidade

    encontrada na COOPCAMATE em seus aspectos de autogesto e suas consequncias.

    Levando em considerao que a Economia Solidria uma alternativa no modo de

    produo (SINGER, 2008, 2011) e que tem como uma de suas caractersticas a autogesto

    (MTE, 2014) e acredita-se que a educao atue como condutora do processo de formao de

    conscincia para a autogesto em um EES (CANADO, 2008). A Figura 2 simboliza a

    relao entre Economia Solidria, Autogesto e Educao.

    Figura 2 - Interseo entre os elementos tericos da dissertao

    Fonte: Autora desta pesquisa.

    Enfim, o que me estimulou foi a possibilidade de compreender como uma construo

    coletiva se concretiza, o que contribuiu para o meu crescimento profissional e como pessoa

    integrante da sociedade.

  • 22

    O contexto desta pesquisa foi a COOPCAMATE, este um EES que atua no campo

    da reciclagem de resduos slidos urbanos, est localizado no Bairro Mathias Velho na Cidade

    de Canoas. Constituiu-se em 1986 com cinco catadores e, atualmente, possui estrutura fsica

    adequada ao trabalho de coleta e triagem, contando com aproximadamente 30 cooperados.

    Portanto, esta dissertao se props a responder ao seguinte problema de pesquisa:

    Como estimular o desenvolvimento da autogesto, por meio de uma interveno, em

    uma Cooperativa de Resduos Slidos Urbanos de Canoas, com base terica em Paulo Freire?

    Para responder a esta questo, adotou-se o mtodo qualitativo e, como abordagem

    central, a pesquisa participante, definida nesta pesquisa como uma investigao, atravs de

    um processo educacional para gerar transformao em um grupo popular. Nesse sentido,

    quanto aos participantes desta pesquisa, torna-se importante mencionar a respeito do nosso

    posicionamento ontolgico. O posicionamento ontolgico significa a compreenso da

    constituio da realidade, o entendimento sobre o mundo e o ser humano (ACCORSSI, 2014).

    Para esta pesquisa, partiu-se de um posicionamento ontolgico onde os cooperados no foram

    meramente informantes, mas foram os condutores do trabalho. Assim, foram os protagonistas

    de sua prpria histria dentro de um processo educacional pautado pela humanizao. O fato

    de existir define o ser humano como um ser em construo contnua, dono de um processo

    sem fim (TROMBETTA; TROMBETTA, 2008) e assim que os participantes desta pesquisa

    so percebidos, como seres humanos capazes de se (re) construrem permanentemente,

    capazes de se transformarem e transformarem o seu mundo. Tal posicionamento coerente

    com o entendimento de Freire (1999), o qual serve como base terica para esta interveno.

    3.1 Objetivo Geral

    Estimular o desenvolvimento da autogesto, por meio de uma interveno, em uma

    Cooperativa de Resduos Slidos Urbanos de Canoas, com base terica em Paulo Freire.

    3.2 Objetivos especficos da pesquisa

    a) Descrever a maneira como ocorre o atual processo de autogesto da

    Cooperativa de Reciclagem de Resduos Slidos Urbanos de Canoas.

  • 23

    b) Analisar o processo de autogesto da Cooperativa de Reciclagem de Resduos

    Slidos Urbanos de Canoas, discutindo as contribuies tericas de Paulo

    Freire.

    c) Desenvolver e analisar uma interveno, visando o desenvolvimento do

    processo de autogesto a partir das demandas dos participantes de uma

    Cooperativa de Resduos Slidos Urbanos de Canoas com base terica em

    Paulo Freire.

    3.3 Justificativa

    3.3.1 Estudos sobre Economia Solidria

    So relevantes e crescentes os estudos realizados sobre o tema Economia Solidria

    nos ltimos anos. Por se tratar de uma nova realidade social acabou por despertar o interesse

    da pesquisa, principalmente em estudantes de mestrados e doutorados que, com diferentes

    focos de estudo, ajudaram a influenciar o estado da arte. Pesquisadores experientes tambm se

    interessaram por este foco de estudos, o que gerou uma crescente nas pesquisas de mestrado e

    doutorado (GAIGER, 2012). A Tabela 1 apresenta os nmeros:

    Tabela1 - Dissertaes e teses no Brasil sobre Economia Solidria

    Quinqunios Dissertaes Teses Totais

    Mdias Anuais

    (teses e

    dissertaes)

    1996-2000 30 6 36 7,2

    2001-2005 160 35 195 39,0

    2006-2010 307 97 404 80,8

    Totais 497 138 635 _

    Fonte: Gaiger (2012, p.20).

    A Tabela 1 demonstra um relevante crescimento na realizao de pesquisas sobre o

    tema Economia Solidria em teses e dissertaes entre 1996 e 2010. No quinqunio (1996-

    2000) 36 pesquisas (teses e dissertaes) foram defendidas. Entre (2001-2005) 195 defesas,

    foram 159 pesquisas a mais que no perodo anterior. E no perodo de (2006-2010) foram 404

    trabalhos defendidos, mais que o dobro dos quinqunios anteriores. Verificando a mdia

    anual, passou de 7,2 trabalhos em (1996-200) para 80,8 em (2006-2010).

  • 24

    Tambm, numa pesquisa realizada na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e

    Dissertaes BDTD, usando o filtro Economia Solidria como parte do ttulo, no perodo

    de 12 anos (2003 2015), somente para dissertaes, foram encontradas 62 pesquisas. Este

    um dado representativo, pois h um grande nmero de pessoas envolvidas nesse contexto no

    Brasil, mais de um milho e 400 mil pessoas.

    Nas 62 dissertaes encontradas na BDTD com o tema Economia Solidria como

    parte do ttulo, um novo filtro foi feito para identificar quantas delas abordavam tambm o

    tema autogesto. O Quadro 1 apresenta os achados:

    Quadro 1- Estudos sobre Economia Solidria e Autogesto

    N

    Autor /

    Instituio /

    Ano

    Objetivo do estudo

    1

    Edir Antonia de Almeida

    Universidade de So Paulo

    2006

    Compreender e analisar a dimenso contbil nos processos de autogesto

    dos empreendimentos solidrios, levantando desafios e demandas contbeis

    suscitadas nesse processo.

    2

    Lucas Rodrigues Azambuja

    Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul

    UFRGS

    2007

    Compreender o sentido do trabalho autogerido como uma construo

    reflexiva do sujeito a partir de princpios e conhecimentos de natureza

    diversa, que se sedimentaram no seu estoque subjetivo de conhecimento ao

    longo de sua biografia de socializao.

    3

    Edemar Luiz Balbinot

    Universidade Federal de

    Santa Maria

    2007

    Avaliar a existncia de particularidades especficas no modelo de gesto

    aplicado em um empreendimento econmico solidrio.

    4

    Vanessa Moreira Sgolo

    Universidade de So Paulo

    USP

    2007

    Analisar a formao de movimentos sociais de economia solidria nos

    pases Brasil e Argentina, partindo do pensamento de Hannah Arendt,

    especialmente de sua concepo sobre poltica e sua centralidade, e de

    Edward Palmer Thompson, no que se refere construo histrica das

    coletividades.

    5

    Anderson Rafael Barros do

    Nascimento

    Universidade Metodista de

    So Paulo

    2008

    Analisar o processo de escolhas e decises em uma organizao da

    Economia Solidria (empresa recuperada) em So Bernardo do Campo.

    6

    Geanderson Lcio de Souza

    Silva

    Universidade Federal Rural

    do Rio de Janeiro UFRRJ

    2009

    Levantar informaes a respeito das prticas sociais autogestionrias luz

    da teoria e obtendo como resultado um novo modelo caracterstico para as

    organizaes autogestionrias.

    7

    Kelci Anne Pereira

    Universidade Federal de

    So Carlos

    2009

    Identificar quais fatores so obstculos e quais fatores so transformadores

    na construo de um empreendimento econmico solidrio a partir da

    incubao, com foco na autogesto e na participao.

    8

    Aline Suelen Pires

    Universidade Federal de

    So Carlos UFSCAR

    2010

    Verificar como o (as) Trabalhadores (as) cooperados (as) compreendem o

    significado da autogesto, em que medida interiorizam o iderio proposto

    pelo movimento da Economia Solidria e analisar as relaes de gnero nas

    cooperativas formadas majoritariamente por mulheres.

    9

    Andressa Nunes Amorim

    Universidade Federal do

    Esprito Santo

    Analisar se as relaes sociais atpicas da economia solidria convergem

    para a estruturao de um novo modo de produo no capitalista.

  • 25

    2010

    10

    Thais da Silva Mascarenhas

    Universidade de So Paulo

    2010

    Examinar como os processos educativos presentes nas experincias de

    economia solidria, que se baseiam em princpios e prticas da educao

    popular, influenciam o desenvolvimento, entendido como a expanso das

    liberdades de uma cooperativa de 122 mulheres que trabalham com

    artesanato em sisal e outras fibras naturais do semirido baiano, a

    Cooperafis.

    11

    Felipe Vella Pateo

    Universidade de So Paulo

    2012

    Indagar se a formao de empreendimentos econmicos solidrios tem as

    caractersticas de um vir a ser que indica caminhos para fora do sistema

    capitalista.

    Fonte: BDTD.

    No universo de 62 pesquisas encontradas no BCTD contendo no ttulo Economia

    Solidria, entre os anos de 2003 e 2015, 11 abordaram tambm, em seus estudos, o tema

    autogesto. Destaco o estudo sinalizado com o nmero cinco no quadro de autoria de

    Anderson Rafael Barros do Nascimento da Universidade Metodista de So Paulo, 2008. O

    trabalho teve como objetivo analisar os processos de escolhas e decises em uma organizao

    da Economia Solidria (uma empresa recuperada) em So Bernardo do Campo atravs de um

    estudo de caso por meio da metodologia pesquisa-ao, cuja concepo foi um processo de

    formao, com foco na autogesto, de funcionrios para futuros cooperados.

  • 26

    4 FUNDAMENTAO TERICA

    4.1 Economia Solidria

    4.1.1 A origem

    Na Inglaterra foi onde a primeira cooperativa se constituiu fundamentada na

    organizao popular. Foi em 1844, na cidade de Manchester, denominada Cooperativa dos

    Probos Pioneiros Equitativos de Rochdale com 28 operrios de diferentes ofcios. Era uma

    cooperativa de consumo que alm de comrcio de seus produtos, tinham tambm como

    objetivos: proporcionar educao e formao aos seus cooperados, consolidao de um grupo

    autossustentvel e promover habitao e emprego a quem necessitasse. Alm disso, no

    possuam funcionrios, os prprios cooperados de dividiam entre as atividades da cooperativa

    (CANADO, 2004). Na Frana, a economia solidria surgiu no sculo XIX, quando a

    solidariedade foi estabelecida como fundamento de amparo s consequncias do abalo

    causado pelo desenvolvimento da economia de mercado (CHANIAL; LAVILLE, 2006).

    Segundo o MTE, no Brasil a economia solidria chegou no XX, como soluo aos

    trabalhadores vitimados pelas mudanas organizacionais, no mbito financeiro e social, que

    enfraqueceram a relao capitalista do trabalho. Sua difuso aconteceu nos meios rurais e

    urbanos com experimentos de trabalho coletivo. Fortaleceu-se atravs de aes de

    desenvolvimento local, tais como: associaes comunitrias, cooperativas populares, redes de

    produo e comercializao.

    A economia solidria caracteriza-se pelo agrupamento de trabalhadores por iniciativas

    de produo, autogeridas democraticamente, nas quais os ganhos so repartidos

    proporcionalmente ao trabalho realizado individualmente pelos integrantes do grupo

    (SINGER, 2013). A autogesto, como princpio da economia solidria, pressupe a

    participao de todos, porm, sabe-se do desafio da participao de todos no processo

    autogestionrio.

    Com o fortalecimento da economia solidria, como alternativa de combate pobreza,

    promovendo o desenvolvimento econmico e social (SINGER, 2011), os governos federal,

    estadual e municipal passaram a reconhecer esta outra forma de organizao do trabalho. Em

    2003, foi criada a SENAES, vinculada ao MTE, cujo objetivo viabilizar e coordenar

  • 27

    atividades de apoio economia solidria em todo o territrio nacional, visando gerao de

    trabalho e renda, incluso social e promoo do desenvolvimento justo e solidrio (MTE,

    2014). Tambm, h uma articulao da economia solidria atravs de fruns estaduais e

    municipais, alm do Frum Brasileiro de Economia Solidria FBES que nasceu da 3

    Plenria no Frum Social Mundial em 2003 e, atualmente, envolve mais de 3000

    empreendimentos de economia solidria em todo o pas. Singer (2014) entende que a

    economia solidria no Brasil j vista como uma escolha de seus participantes, uma

    alternativa ao modelo de emprego caracterstico das empresas tradicionais.

    4.1.2 O que economia solidria? Caractersticas e Princpios

    Na economia solidria, trabalhadores se organizam de maneira coletiva com o objetivo

    de garantirem seu prprio sustento. So homens e mulheres buscando no trabalho coletivo

    uma alternativa para a gerao de trabalho e renda. Assim, a economia solidria promove o

    desenvolvimento econmico e social sem gerar exageradas dissociaes (SINGER, 2011).

    Para Arruda, a Economia Solidria:

    um sistema socioeconmico aberto, fundado nos valores da cooperao, da

    partilha, da reciprocidade e da solidariedade, e organizado de forma autogestionria

    a partir das necessidades, desejos e aspiraes da pessoa, comunidade, sociedade e

    espcie. (2003, p. 237).

    uma maneira diferente de produzir, vender, comprar e trocar o que necessrio

    para viver, atravs do trabalho cooperativo e igualitrio. Trata-se de uma opo de gerao de

    renda e uma soluo para a incluso social. So diversas prticas econmicas e sociais que se

    estruturam de forma coletiva, formando uma rede, desde a produo at a comercializao,

    bem como o fomento financeiro (MTE, 2014). Alm disso, Singer (2008) menciona que na

    economia solidria se faz uma produo com bases na igualdade, pois a posse do trabalho

    coletiva. Ou seja, indivduos organizados cooperam para o trabalho, sem que haja competio

    ou diferenciao.

    O MTE (2014) define a economia solidria como o agrupamento de aes

    estruturadas pela autogesto voltadas para produo, distribuio, consumo, poupana e

    crdito. A partir desta compreenso, cita quatro caractersticas da economia solidria:

    cooperao, autogesto, dimenso econmica e solidariedade, as quais so apresentadas

    abaixo:

  • 28

    a) Cooperao: haver empenho, aliana e competncias para propsito comuns,

    bem como distribuir responsabilidades e resultados.

    b) Autogesto: exerccio de papel participativo nas aes rotineiras e nas e aes

    estratgicas, promovendo o verdadeiro processo de gesto desempenhado por

    seus legtimos atores.

    c) Dimenso Econmica: princpio motivador para o empenho de recursos

    pessoais, produo e consumo.

    d) Solidariedade: envolve um conjunto de aspectos que fortalecem tal

    caracterstica: partilha igualitria dos resultados; valorizao e

    desenvolvimento para os participantes; retorno comunidade, preservao do

    ambiente e, entre outros, o respeito ao trabalhador.

    Nesse contexto, a economia solidria pode ser vista como uma nova forma de

    desenvolvimento sustentvel, podendo, tambm, reverter os preceitos do capitalismo. E,

    talvez, minimizar a distino de raa, gnero, idade, compartilhando os resultados

    econmicos, polticos e culturais com igualdade.

    J o desenvolvimento prtico da economia solidria pressupe ser regido por oito

    princpios: democracia, participao, igualitarismo, autossustentao, desenvolvimento

    humano, responsabilidade social, cooperao e autogesto (GAIGER, 2004). Atravs da

    democracia, os cooperados exercem a autoridade moral. Com a participao individual,

    tornam-se parte da coletividade. O igualitarismo permite as relaes iguais. A

    autossustentao desenvolve a autonomia no trabalho coletivo. No que tange ao

    desenvolvimento humano, os processos e as interaes no trabalho coletivo propiciam o

    crescimento como indivduo. Tambm, como parte dos princpios, a responsabilidade social

    promove a compreenso das obrigaes como parte de uma sociedade. E, por fim, a

    cooperao e a autogesto, que, segundo Gaiger (2004), so o foco de diferenciao da

    economia solidria. Na cooperao, desenvolvem-se as prticas colaborativas e a autogesto

    oportuniza que o prprio cooperado/trabalhador faa a gesto do empreendimento,

    promovendo maior significao da sua participao nesse contexto da economia solidria.

    Assim, estes princpios reforam os objetivos pelos quais a economia solidria se desenvolve,

    ou seja, majoritariamente pela necessidade de gerao de trabalho e renda.

    Em suma, conforme a literatura apresentada, Arruda (2003) entende a economia

    solidria como um modo de vida, onde se constroem valores que podem ir alm dos valores

  • 29

    da sociedade capitalista. Para Gaiger (2004), a economia solidria um modo de

    sobrevivncia ao neoliberalismo. Alm do mais, Singer (2008, 2011) diz que a economia

    solidria uma alternativa no modo de produo. Contudo, a alternativa pode ser uma

    necessidade, e, nesse caso, a necessidade pode ser um limitador para a compreenso real da

    economia solidria. Tambm, observa-se que, na vida cotidiana de uma cooperativa, nem

    sempre as coisas acontecem como os autores idealizam em seus conceitos, nem tudo acontece

    como se supe na literatura.

    O tema autogesto um dos temas norteadores desta pesquisa, portanto, se faz

    necessrio um maior aprofundamento sobre o assunto, como segue na prxima subseo.

    4.1.3 Autogesto

    A autogesto foi reconhecida como conceito em 1950, na Iugoslvia, pelo partido

    comunista que, na tentativa de modernizar o sistema econmico do pas, atraiu a participao

    de cidados detentores de conhecimento tcnico e profissional das empresas que o governo

    possua o poder (MOTH, 2009).

    Porm, segundo Canado (2008), existem relatos mais antigos sobre o nascimento da

    autogesto, conforme apresenta em seus estudos, demonstrado no Quadro 2.

    Quadro 2 - Histrico da Autogesto

    Autores citados por

    Canado (2008) Histricos

    Mandell (1977)

    Cita a primeira experincia autogestionria, em 1819, aps 11 semanas de

    greve, trabalhadores ingleses do tabaco ordenaram seus prprios trabalhos. E,

    em 1833, depois de organizarem o trabalho como associativo, alfaiates

    franceses dispensaram a necessidade de patres.

    Motta (1981)

    Cita Proudhon como pai da autogesto, este acreditava que a autogesto poderia

    atingir nveis macros, como uma nao, por exemplo, e que esta era a forma

    ideal para organizar uma sociedade.

    Fonte: Canado (2008)

    Entende-se que a autogesto parte de iniciativas de organizao com gesto do tipo

    tradicional, e que, por algum motivo, tiveram que se reorganizar para adequar-se a um novo

    contexto, tornando-se, desta forma, a autogesto um princpio de organizao para a gerao

    de trabalho e renda (MANDELL, 1977 apud CANADO, 2008). Alguns autores indicam

    Proudhon como o criador da autogesto e acreditava nesse processo como forma de

    organizao de uma sociedade, para que o ser humano deixasse de ser controlado pelo prprio

    ser humano (MOTTA, 1981; CANADO, 2008). Assim, a ideologia de um novo formato de

  • 30

    sociedade permitiria que o ser humano no fosse mais controlado por ele mesmo. Nesse novo

    formato prevaleceria a igualdade, e ningum mais seria controlado, o ser humano trabalharia

    de igual para igual fazendo sua prpria gesto, ou seja, sua autogesto. Aproximando-se da

    viso da economia solidria, a autogesto um componente singular do cooperativismo, e

    considerada um sistema em movimento, dada a relao com seres humanos (CARNEIRO,

    1983 apud CANADO, 2008). No mbito da economia solidria, a autogesto deve ser um

    elemento essencial, de caracterstica nica e dinmica, pois uma relao entre seres

    humanos onde acontecem aes e interaes.

    No Brasil, atrelado ao desenvolvimento da Economia Solidria nos anos 90, a prtica

    autogestionria ressurge como relao de trabalho em EES (ANDRADA; SATO, 2014).

    Em uma entrevista concedida Revista Estudos Avanados em 2008, Paul Singer

    relata como iniciou a experincia da autogesto no Brasil. Singer (2008) diz que um caso

    relevante foi tese de doutorado da professora Lorena da Silva, na USP em 1980. O caso

    aconteceu em So Paulo, quando uma fbrica de foges chamada Wallig, a maior do Brasil na

    poca, empregava cerca quatro mil pessoas e teve que fechar suas portas. Com tantas pessoas

    desempregadas, o municpio e o estado se mobilizaram para reabrir a empresa, porm sem

    sucesso. Assim, os ex-empregados se mobilizaram para arrendar a empresa falida, mas no

    tinham noo de como geri-la e nem como operacion-la coletivamente. Ao buscarem bases

    legais para tal processo, encontram uma cooperativa de calados no interior do Rio Grande do

    Sul e, depois de consultarem seu estatuto, descobriram que o formato de cooperativa era a

    melhor forma jurdica para seu contexto. Eles praticamente reinventaram a economia

    solidria, por pura necessidade (SINGER, 2008, p.294). Mas o caso no foi muito

    disseminado na poca. Esta cooperativa ainda existe.

    Em 1992, segundo Singer (2008), que outro caso de empresa falida se tornou notrio

    em todo pas, a empresa de calados Makerli, em So Paulo. Nesse caso, o sindicato da

    categoria mobilizou os ex-funcionrios, tcnicos do Departamento Intersindical de Estatstica

    e Estudos Socioeconmicos - DIEESE e fundaram a Associao dos Trabalhadores em

    Autogesto e Participao Acionria - ANTEAG. A associao tomou como base um modelo

    americano e adaptaram a realidade brasileira. O caso tornou-se conhecido como a fbrica

    sem patres. E, desde ento, vrias empresas falidas passaram a ser geridas por ex-

    funcionrios, ou seja, passaram a ser autogeridas.

  • 31

    Porm, o processo de autogesto mais complexo do que simplesmente uma empresa

    ser gerenciada pelos empregados. A autogesto uma forma de gerir democraticamente, um

    trabalho conjunto, e isso o que difere a economia solidria do capitalismo, mas no um

    trabalho fcil. Nesse modelo, pressupe-se que todas as pessoas trabalham juntas,

    autoadministram e trabalham ao mesmo tempo. Por mais difcil que possa parecer, as prprias

    prticas de autogesto so formativas de cultura autogestionria, pois h aprendizado com a

    prxis. O processo de autogesto se torna automaticamente formativo para a construo da

    cultura autogestionria, pois acontece a formao durante a prtica constante no dia a dia.

    Dessa forma, possvel dizer que h ligao da educao com o processo de formao de

    autogesto. A autogesto deve acontecer para as comunidades, sendo esta a frmula de

    introduzir a democracia no mundo econmico (SINGER, 2011).

    A prtica autogestionria vai alm da gesto e produo coletiva. Para tal, necessrio

    que haja amadurecimento e um resgate da singularidade do cooperado. Amadurecimento, pois

    os trabalhadores/cooperados carregam consigo a cultura do modelo capitalista de trabalho nas

    figuras do patro e do empregado. E o resgate de singularidade, visto que imprescindvel

    que o cooperado manifeste sua subjetividade, como caracterstica nica de cada ser, fazendo

    parte integrante da coletividade (LIMA, 2013).

    Como definio, optou-se pelo entendimento de autogesto para Canado; Canado

    (2009) que :

    Um modo de organizao do trabalho, onde todos os envolvidos participam da

    concepo e execuo, os meios de produo e/ou agregao de valor so coletivos,

    caracterizando-se ainda pela presena de um processo de educao em constante (re)

    construo na organizao. (CANADO; CANADO, 2009, p.105).

    Portanto, a autogesto em EES uma maneira de composio do trabalho, em que o

    modo de produo seja coletivo, sem discernir o trabalho entre a sua concepo e execuo.

    Pode-se questionar se na prtica de uma cooperativa, por exemplo, sero todos os envolvidos

    que participaro do processo, ou se, uma maioria se engajando no processo, resultaria no que

    se pode chamar de autogesto. Ou seja, no deve haver separao entre a compreenso e a

    prtica do trabalho, o trabalho deve ser coletivo; trata-se de uma estrutura de trabalho que

    deve ser acompanhado de um processo educacional contnuo no EES (CANADO, 2008).

    Esse conceito fundamental para a presente dissertao, pois entende a autogesto

    como uma das principais caractersticas da Economia Solidria e atribui um processo

  • 32

    educacional como condio para a sua formao, considerando as limitaes inerentes sua

    aplicabilidade prtica.

    O processo de desenvolvimento da autogesto, segundo Mota (1981), tem como base a

    educao, considerada agente indispensvel de tal processo. A educao, nesses casos, atua

    como condutora de um processo de formao e conscientizao. A implementao da

    autogesto no deve acontecer sem que exista uma formao de conscincia do trabalhador,

    pois, esta falta formao aumenta o risco de desfazerem-se experincias, podendo regredir ao

    meio capitalista (CANADO, 2008). Na verdade, por mais que agentes externos desejassem

    que a autogesto fosse praticada em dada situao, ela no acontece sem a formao de

    conscincia do trabalhador, que depende de um processo educativo.

    Para Adams (2010) a educao um sistema que abrange diversas conexes sociais.

    Assim sendo, existem diferentes ambientes, alm do espao escolar, passveis de

    aprendizagem. Nesse contexto, a cultura popular que d origem construo destes

    diferentes ambientes em que os saberes individuais ou coletivos se reproduzem (BRANDO;

    ASSUMPO, 2009).

    Em vista disso que a economia solidria pode ser entendida como um ambiente

    favorvel educao popular. Para Adams e Santos (2013) a organizao prtica de um grupo

    para o trabalho associado propcio constituio do que pode ser chamado de pedagogia da

    autogesto. O desenvolvimento da autogesto a partir da reproduo dos saberes, por

    exemplo, pode significar a reinveno de metodologias participativas (ADAMS; SANTOS,

    2013).

    Com base em Singer (2011), Canado (2008) e Canado e Canado (2009), observa-se

    que a autogesto necessita de um processo formativo, educacional, para que possa existir de

    fato como organizao do trabalho sob as premissas do trabalho colaborativo. Portanto, a

    partir desses autores e conceitos, esta pesquisa buscou o fortalecimento da autogesto atravs

    de um processo educacional.

    4.2 Nveis de Conscincia: dilogo e prxis

    A definio do autor Paulo Freire como norteador deste captulo se d pela coerncia

    de alguns temas abordados em sua obra e que faro parte tambm desta pesquisa, dentre eles:

    nveis de conscincia, dilogo, reflexo-ao e prxis.

  • 33

    4.2.1 Nveis de Conscincia

    Os nveis de conscincia so discutidos por Paulo Freire no livro Ao cultural para a

    liberdade e outros escritos (1977). Sua compreenso parte do entendimento que o ser

    humano possui da sua prpria realidade e est dividida em trs nveis: a conscincia semi-

    intransitiva, a conscincia transitiva ingnua e a conscincia crtica.

    A conscincia semi-intransitiva o nvel em que o ser humano est mergulhado em

    sua realidade e isso o impossibilita de perceber oportunidades de mudanas ao seu redor. O

    ser humano que se encontra nesse nvel tende a encontrar as justificativas fora do seu

    contexto, fora da sua realidade concreta, acreditando, por exemplo, apenas no destino. Esse

    nvel tambm possui como caracterstica a cultura do silncio, onde raramente as classes

    populares so questionadas e o silncio seja, talvez, uma medida de sobrevivncia (FREIRE,

    1977). Para Kronbauer (2008), este o nvel em que o ser humano no se compreende como

    um ser biogrfico, apenas como um ser biolgico. Ou seja, no se percebe como um ser

    humano capaz transformar e/ou transformar-se, compreende-se como um ser vivo, apenas

    mais um que existe no planeta. No h previso de transformao nesse nvel, o ser humano

    se acha incapaz de mudar, ou melhor, mudar seu destino, que acredita ser s seu

    (CANADO, 2008; CANADO; CANADO, 2009).

    O nvel transitivo ingnuo considera uma transio. O ser humano capaz de

    compreender a necessidade de uma mudana, mas pode ainda no se sentir capaz para tal, a

    conformidade o limita ao novo. A cultura do silncio passa a ser substituda pela percepo da

    realidade. o dilogo que impulsiona a transio para este nvel, que motiva a mudana, pois

    o dilogo apresenta desafios ao ser humano. (FREIRE, 1977). Nesse nvel, o ser humano no

    possui pensamento independente, a negao pela mudana o impede de buscar a origem dos

    problemas (KRONBAUER, 2008). Para Canado (2008), nesse nvel que o ser humano

    comea fazer novas leituras de sua realidade, perceber que nem tudo est ao acaso do destino,

    se d conta de que pode haver mudanas, mas ainda no sabe o que mudar. Freire (1977)

    destaca que, ainda nesse nvel, dois caminhos podem ser tomados, a transio para o

    pensamento crtico, atravs de uma prxis, ou seja, a percepo da realidade e sua presena

    nela como agente de mudana; ou uma deturpao de maneira no racional ou desvairada da

    realidade, e nesse caso, no se percebe a possibilidade de mudana, to pouco ser um agente

    de mudana.

  • 34

    O terceiro nvel, chamado de conscincia crtica, segundo Freire (1977) composto

    pela prxis. quando o ser humano, ainda no segundo nvel, o transitivo ingnuo, consegue

    promover uma mudana e refletir sobre ela. na capacidade de desenvolvimento de dilogo

    que o ser humano progride para a conscincia crtica (KRONBAUER, 2008). Nesse nvel, o

    ser humano capaz de refletir sobre suas aes e seus resultados, assim, desenvolvendo-se e

    promovendo sua prpria histria. Compreende ser o responsvel pelo seu passado, presente e

    futuro (CANADO, 2008; CANADO; CANADO, 2009). Importante destacar que: no

    h fronteiras rgidas entre uma modalidade e outra de conscincia (FREIRE, 1977, p.75).

    Assim, um ser humano pode transitar entre os nveis de conscincia, ou ainda, algumas

    caractersticas permanecerem presentes entre os nveis.

    Em sntese, os nveis de conscincia compem um processo de formao de

    conscincia crtica, impulsionado pelo dilogo e efetivado pela prxis.

    4.2.2 Dilogo

    Paulo Freire (1987) aborda o tema dilogo no livro Pedagogia do Oprimido

    enfatizando-o como a proposta de uma educao dialgica, diferenciando-a da educao

    bancria. A educao bancria refere-se quela que o educador o detentor do conhecimento

    e o deposita no educando. Assim, o educando apenas recebe o contedo, no h interao,

    trocas de saberes e conhecimentos entre o educador e o educando, no h dilogo. J a

    educao dialgica construda por uma conexo entre educador e educando, h uma troca de

    saberes e conhecimentos. Nesta, existe uma relao de partilha entre educador e educando,

    ambos igualmente podem aprender e educar atravs do dilogo. O dilogo um requisito para

    existir e deve ser usado como mtodo de reflexo para a transformao e a humanizao. O

    dilogo potencializa as relaes, promove a unio entre seres humanos. a conjuno dos

    homens comunicados pelo mundo, logo, a relao eu-tu no se esgota (FREIRE, 1987).

    Assim, o dilogo entendido como condio de existncia do ser humano, servindo para uni-

    los, transform-los e humaniz-los.

    O dilogo, desta maneira, participa na construo do mundo comum, pois nele h a

    descoberta do outro e a descoberta de si no outro. A palavra viva dilogo existencial.

    (FIORI, 1987, p.11). Ainda Fiori (1987) diz que o dilogo uma forma de declarar-se e

    declarar o mundo, comunicao, expresso do mundo para o mundo. Por meio do dilogo,

  • 35

    possvel observar o mundo e a sua existncia nele, tambm o dilogo permite enxergar o

    processo em construo do ser humano na sociedade (ZITKOSKI, 2008). Dessa forma,

    entende-se o dilogo como uma forma de expresso, permitindo ao ser humano existir e

    construir-se no mundo.

    Canado (2008) e Canado; Canado (2009) se referem educao dialgica como

    uma forma de valorizao dos saberes e conhecimento de um educando e do um educador,

    destaca, ainda, que o ser humano possui habilidades e competncias, bem como acumula

    experincias ao longo de sua vida. Os saberes e os conhecimentos tm origem nas

    experincias e as vivncias acumuladas ao longo de uma vida. O dilogo permite que o ser

    humano se reconhea capaz de debater, formar juzo e modificar, ou seja, capaz de formar

    suas opinies, ser original, autntico, e, acima de tudo, transformar e/ou transformar-se.

    Em suma, o dilogo uma ferramenta no processo existencial do ser humano,

    permitindo a reflexo para a construo de um mundo comum e a valorizao dos saberes.

    4.2.3 Prxis

    A prxis o resultado de um processo de conscientizao formado pelo dilogo, a

    ao e a reflexo (FREIRE, 1987). A Figura 3 simboliza o processo que tem como resultado a

    prxis:

    Figura 3 - Processo que resulta prxis

    Fonte: Embasada em Freire (1987).

    A Figura 5 representa a prxis como resultado de um processo contnuo formado pelo

    dilogo, maneira de conjuno dos seres humanos, a ao como inteno de transformao e a

    reflexo voltada ao pensamento crtico. Ou seja, atravs do dilogo se constri uma ao que

    promove a reflexo para a formao da conscincia crtica.

    a prxis que transforma a conscincia, segundo Freire (1977), no h possibilidade

    de transformao da conscincia sem prxis. A prxis capaz de transformar o mundo, assim

    Dilogo Ao Reflexo Prxis

  • 36

    como transforma o ser humano, e dessa forma, o trabalho recebe a marca de seu criador.

    (FREIRE, 1977). Sendo assim, a prxis um pressuposto para a formao de conscincia

    crtica, pois atravs dela que acontece a transformao, seja do ser humano, seja do mundo.

    Esclarea-se ainda que, tomada de conscincia e conscientizao se diferem. Para que

    se propague a conscientizao preciso mais do que perceber a realidade tomada de

    conscincia, necessrio que o ser humano realize uma anlise profunda sobre a sua realidade

    refletindo sua natureza como conhecimento. Entende-se a conscientizao como um processo

    contnuo, pois sempre que ela ocorre o ser humano se modifica incitando a uma nova tomada

    de conscincia e posterior conscientizao (FREIRE, 1980). Assim, apenas conhecer a

    realidade no significa refletir sobre ela, a reflexo sobre a ao que permite o

    desenvolvimento da conscientizao.

    Prxis um conceito que acompanha a obra de Paulo Freire, possui forte relao com

    os conceitos de dilogo, ao-reflexo, autonomia, educao libertadora, entre outros.

    Entende-se prxis pela ntima relao da maneira como se enxerga a realidade e a vida, e

    como a prtica se estabelece enquanto ao transformadora a partir desta compreenso

    (ROSSATO, 2008). O que torna a prxis efetiva a compreenso sobre ela mesma, a

    percepo da transformao no contexto real e para a vida.

    Para Canado (2008) e Canado; Canado (2009) a prxis acontece quando o ser

    humano compreende o efeito de suas prprias aes no mundo, aprendendo e progredindo

    com isto. Ou seja, quando o ser humano torna-se capaz de perceber que suas aes podem

    transformar o mundo, de fato quando acontece a prxis, a transformao para a conscincia

    crtica. Assim, atravs da prxis, ele se desenvolve enquanto ser humano dotado de saberes e

    experincias.

    Condensando, a prxis o resultado de um processo que envolve o dilogo e a ao-

    reflexo. A prxis permite que o ser humano compreenda suas prprias aes.

    4.2.4 Conexes tericas entre autogesto e nveis de conscincia

    Compreendida como alternativa de um modo de produo (SINGER, 2008, 2011), a

    economia solidria, tema geral desta pesquisa, entende a autogesto como um de seus

    princpios no desenvolvimento prtico de um EES (GAIGER, 2004). Nesta seo, propem-se

    uma reflexo terica acerca do desenvolvimento da autogesto com base terica em Paulo

  • 37

    Freire. Alm disso, esta pesquisa tem inspirao nos estudos de Canado (2008) e Canado e

    Canado (2009), os quais tem por base o trabalho de Paulo Freire sobre os nveis de

    conscincia. Os autores prope uma operacionalizao da construo de autogesto para um

    EES.

    Os nveis de conscincia compem um processo de formao de conscincia crtica,

    impulsionado pelo dilogo e efetivado pela prxis (FREIRE, 1977; CANADO; CANADO,

    2009). A Figura 4 apresenta as conexes tericas para a operacionalizao da autogesto,

    conforme Canado e Canado (2009):

    Figura 4 - Conexes tericas para a operacionalizao da autogesto

    Fonte: Canado; Canado (2009, p.67).

    A representao apresentada na Figura 4 demonstra que a construo da autogesto

    tem a educao dialgica e a prxis como parte de um processo educacional, atravs da

    progresso entre os nveis de conscincia. Ou seja, a educao como processo para o

    desenvolvimento da autogesto, transitando nos nveis de conscincia, por meio do dilogo e

    da prxis.

    Como forma de operacionalizao da construo da autogesto em um EES, Canado

    e Canado (2009) sinalizam aspectos relevantes para a construo do processo, como segue:

    a) A evoluo dos nveis de conscincia dos cooperados membros do EES que

    determinam a evoluo do processo de construo da autogesto;

    b) necessrio que se faa a identificao dos nveis de conscincia tambm dos

    membros dos rgos de apoio, visto que, na maioria dos casos, as equipes de

    apoio tambm trabalham na construo da autogesto, mas de fato, nunca a

    vivenciaram. Este no um fato limitador para a construo da autogesto,

  • 38

    mas deve ser avaliado e refletido. Dessa forma, os nveis de conscincias

    estariam balizados sob o conhecimento e discutidos por todos.

    c) Dado o objetivo dos rgos de apoio trabalhar, na maioria das vezes, no

    formato capacitao-acompanhamento, utilizam a educao dialgica como

    ferramenta? A no utilizao da educao dialgica pode inibir a progresso

    nos nveis de conscincia e a construo da autogesto.

    d) Os membros dos rgos devem construir o processo com cooperados e no

    para os cooperados. O trabalho do tcnico deve ser desenvolvido atravs da

    educao dialgica, jamais pela educao bancria.

    e) Sobre o desenvolvimento da prxis, sugere-se que sejam utilizados meios

    ldicos juntamente com a educao dialgica, permitindo que os membros,

    tanto os tcnicos, como os cooperados, compreendam as suas aes e o porqu

    das no aes.

    f) Educao dialgica e prxis se completam, porm, possuem estmulos

    diferentes. Para a educao dialgica, o estmulo externo, o tcnico, nesse

    caso, que incita ao dilogo. J a prxis um sistema interno, autognose,

    individual, no h controle por parte do tcnico e outros.

    g) Necessidade de aportes financeiros que proporcionem o fortalecimento do

    EES. Os rgos de apoio devem ser parceiros na construo de projetos para

    captao de recursos financeiros, e estes devem ser discutidas no sentido de

    compreender a verdadeira necessidade do empreendimento.

    h) Um importante posicionamento dos tcnicos deve haver quanto construo

    coletiva, com e no para o EES, pois, um dia, precisaro caminhar sozinhos e

    sabero como fazer, j que participaram do processo de construo.

    i) Um enfoque transparncia nas relaes construdas entre os tcnicos e os

    cooperados pode ser mais importante que o prprio mtodo de trabalho.

    j) E, por fim, a possibilidade de validao dos aportes tericos atravs da prtica,

    ou seja, a experimentao em um EES.

    Portanto, para que o objetivo desta pesquisa fosse alcanado, tomou-se por base

    terica Paulo Freire e a inspirao no trabalho de Canado (2008) e Canado; Canado

    (2009).

  • 39

    4.3 Sntese do Referencial Terico

    Retoma-se, neste momento, os principais conceitos tericos abordados anteriormente

    no referencial terico e que sero os conceitos norteadores do trabalho, sintetizados no

    Quadro 3:

    Quadro 3 - Sntese dos conceitos norteadores da pesquisa

    Fonte: A autora desta pesquisa.

    Sendo este estudo especfico para o contexto econmico solidrio, visando o

    desenvolvimento da autogesto para um EES, atravs de um processo educacional com base

    nos estudos de Paulo Freire sobre os nveis de conscincia, o dilogo e a prxis, sugere-se a

    Figura 5 como uma representao que pretende condensar os principais elementos tericos

    desta dissertao.

    Figura 5- Processo educacional para o desenvolvimento da autogesto em EES

    Fonte: Autora com base em Canado, Canado (2009).

    Conceito Autor/ano Descrio

    Economia

    Solidria

    Singer (2008,

    2011) Alternativa de modo de produo

    Autogesto Canado;

    Canado (2009)

    No h separao entre a compreenso e a prtica do trabalho, o trabalho

    coletivo; trata-se de uma estrutura de trabalho que deve ser acompanhado

    de um processo educacional contnuo no EES.

    Nveis de

    Conscincia Freire (1977)

    Entendimento que o ser humano tem da sua realidade, esto divididos em

    trs nveis: a conscincia semi-intransitiva, a conscincia transitiva ingnua

    e a conscincia transitiva crtica.

    Dilogo Freire (1987) a conjuno do ser humano comunicados pelo mundo, logo, a relao eu-

    tu no se esgota.

    Prxis Freire (1987) o resultado de um processo de conscientizao formado pelo dilogo, a

    ao e a reflexo.

  • 40

    Conforme a Figura 5, a dissertao desenvolvida a partir do referencial terico

    apresentado nesta seo centrou-se em um processo educacional para o desenvolvimento da

    autogesto em uma EES. A base terica em Paulo Freire corroborou com o desenvolvimento

    da pesquisa, uma vez que, o dilogo e prxis podem estimular a formao de conscincia

    crtica. Assim, utilizou-se o dilogo e a prxis como ferramentas estimuladoras para a tomada

    da conscincia crtica em prol do desenvolvimento da autogesto em um EES. Destaca-se

    ainda, conforme Freire (1977), que uma pessoa pode transitar entre os nveis de conscincia,

    bem como, no conseguir avanar entre eles, estagnando-se, ou ainda, identificar-se em um

    determinado nvel, mas possuir caractersticas de outro. A representao da seta apontando

    direo para direita e para a esquerda simboliza esta ideia. Entende-se que as singularidades

    das caractersticas humanas possam explicar este movimento entre os nveis de conscincia.

  • 41

    5 CONTEXTO DE PESQUISA

    5.1 Coleta Seletiva em Canoas

    A cidade de Canoas possui 323.827 habitantes segundo dados do Instituto Brasileiro

    de Geografia e Estatstica - IBGE de 2010. So gerados aproximadamente 0,86 kg de resduos

    por hab/dia. Diariamente, so recolhidos em torno de 280 toneladas de resduos na cidade,

    atendendo 98,9% da populao (Programa Cidades Sustentveis, 2014).

    Desde 2010, atravs da Lei Municipal n 5.485 de 25 de janeiro de 2010, institu-se

    que "o servio pblico de coleta seletiva de resduos reciclveis ser prestado por

    cooperativas ou associaes populares de coleta seletiva" (Programa Cidades Sustentveis,

    2014). Assim, a coleta seletiva de resduos slidos realizada por quatro cooperativas que

    recebem verba pblica mensal para a realizao do servio pblico. Entre elas, a

    COOPCAMATE, contexto desta pesquisa.

    5.2 COOPCAMATE

    A COOPCAMATE um EES, atua no campo da reciclagem de resduos slidos

    urbanos e est localizada no Bairro Mathias Velho na Cidade de Canoas. A cidade de Canoas

    possui 323.827 habitantes segundo dados do IBGE de 2010, sendo que no Bairro Mathias

    Velho esto 27% da populao de Canoas, isto o faz o Bairro mais populoso da cidade.

    A Cooperativa de Catadores de Material Reciclvel da Mathias Velho

    COOPCAMATE iniciou suas atividades de coleta e triagem no ano de 1986 com cinco

    moradores do bairro Mathias Velho na cidade de Canoas/RS. Em 1995, o grupo se formalizou

    como associao. Receberam ento em comodato um terreno de 1449 m com um pequeno

    prdio construdo onde se encontra atualmente. O prdio recebido, que hoje utilizado como

    refeitrio, vestirios, escritrios e banheiro da associao de moradores do bairro Mathias

    Velho. Alguns anos mais tarde (a cooperativa no possui o registro da data), uma empresa

    Alem doou e construiu o galpo para a realizao do trabalho de triagem, totalizando uma

    rea construda de 601,85m. No ano de 2003, o grupo se formalizou como cooperativa. Sete

    anos mais tarde, em 2010, a COOPCAMATE passou a integrar a coleta seletiva de Canoas,

    sendo o trabalho regido por um contrato de prestao de servios com pagamento de verba

  • 42

    mensal cooperativa pelo servio prestado. Porm, a receita que tinha como objetivo, custear

    o servio contratado, contribuir para a estruturao da cooperativa, despertou interesses

    ilcitos na coordenao que atuava na poca. Como resultado em 2011, a cooperativa entra em

    crise financeira, ocasionando, inclusive, a perda do contrato com a prefeitura por trs meses

    durante o ano de 2012. A cooperativa estava fadada extino, quando a secretaria do Meio

    Ambiente, que ainda responde pelo servio de coleta na cidade, interviu junto ao grupo em

    favor de uma troca de coordenao. Em fevereiro de 2012, uma nova diretoria assumiu e,

    alguns meses depois, a cooperativa recuperava o contrato com a prefeitura. No final do

    mesmo ano, a situao financeira do grupo comeou a se estabilizar, permitindo

    investimentos na cooperativa. Os investimentos incluam, reforma do banheiro, reforma do

    refeitrio, reforma do escritrio, todos os cooperados fazem trs refeies dirias na

    cooperativa (caf da m