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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia Roberta Isabelle Bonfim Pantoja PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL BELÉM PA 2018

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Universidade do Estado do Pará

Centro de Ciências Sociais e Educação

Programa de Pós-Graduação em Educação

Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia

Roberta Isabelle Bonfim Pantoja

PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS

POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL

BELÉM – PA

2018

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ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA

PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA

EDUCAÇÃO SENSÍVEL

Dissertação apresentada como parte dos requisitos para

a obtenção do título de Mestre em Educação no

Programa de Pós-Graduação em Educação pela

Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa

Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a

orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.

Belém

2018

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Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA

Pantoja, Roberta Isabelle Bonfim

Para tirar a poesia do olimpo: Poéticas amazônicas por uma educação sensível

/ orientadora Josebel Akel Fares, 2018

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará,

Belém, 2018.

1. Poesia – Estudo e ensino 2. Ensino fundamental 3. Estética. I. Fares,

Josebel Akel (orient.). II. Título.

CDD. 23º ed.372.64

Regina Coeli A. Ribeiro – CRB-2/739

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ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA

PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA

EDUCAÇÃO SENSÍVEL

Dissertação apresentada como parte dos requisitos para

a obtenção do título de Mestre em Educação no

Programa de Pós-Graduação em Educação pela

Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa

Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a

orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.

Data da aprovação: ____/____/____

Banca Examinadora:

_________________________________________– Orientadora – UEPA

Profa. Dra. Josebel Akel Fares

Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

_________________________________________– Examinadora Interna – UEPA

Profa. Dra. Denise de Souza Simões Rodrigues

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará

__________________________________________– Examinador Externo—UFPA

Prof. Dr. José Denis de Oliveira Bezerra

Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará

_______________________________________– Examinadora Convidada –UEPA Prof.

Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos Doutora em Ciências Sociais pela Universidade

Federal do Pará

Belém

2018

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À palavra que vive.

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A poesia está guardada nas palavras—é tudo que

eu sei.

(Manoel de Barros)

A poesia é o presente.

(Ferreira Gullar)

Poesia pra mim é voar. Flutuar na leitura.

(Hermes, 6º ano)

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PARA AGRADECER...

Para iniciar, bato cabeça para os meus Orixás.

À mamãe Oxum, dona de minha coroa, protetora e guia que me ilumina com seu

ouro e guarda com amor em suas águas. Ora yê yê ô, rainha do meu congá!

Ao Pai da justiça, que por sua misericórdia permite que siga o caminho que meu

coração dita. Ouço seu brado meu pai, Kaô Cabelicê, Xangô!

Um colar de beijos e corações à Osmarina, pérola negra que me trouxe ao mundo,

minha fortaleza. Sabe o que deixa o meu coração feliz? O seu coração, mãe!

Uma prece ao meu pai Roberto, que de Aruanda olha por mim.

Todos os jasmins que puder colher para Fábio Lima, que Incansável cuida de mim,

em alimento para o corpo e o pensamento. Meu bem, meu coração se enfeita para te ver,

obrigada por me tocar com teu azul.

Gratidão em cor à minha consciência, Lívia Mendes. Que desde a seleção do

mestrado me incentiva, ajuda, colore meus dias em sua presença vibrante e, que revisou

e se emocionou comigo até a última página desta escritura. Amiga, laço-luz e bella ciao!

Um giro dançante para minha irmã das águas Lívia Faro, que pensou e sonhou

comigo a forma luminosa para embalar meus escritos. Amiga, te entrego minha gratidão

em em rosas brancas. Minha criança interna dança sempre quando te vê.

À casa Toya Jarina e Ogum Beira-Mar, minha família do santo. Pela gratidão de

sentir juntos para vocês eu canto: “Ô gira deixa a gira girar!”

À Muriel, meu sol noturno, pelas noites ao meu lado. E à Lisbela por me ensinar

sobre o tempo.

Gratidão aos irmãos, Pedro e Diego. O primeiro por ser exemplo e o segundo por

ser cuidado.

Aos barrigudos, Paulo e Izabela, pelas vezes que desfizeram minha tensão com

bom humor. Minha gratidão para vocês, górdos é em convite para comer.

À Luciana Martins, meu obrigada embalado em algodão doce, laço e fita pela brisa

leve que traz no sorriso e no abraço.

Estrelas brilhantes para a polarínea Nathália Lobato, por materializar em imagem

o que não coube nas palavras.

À Kátia e Paulo Lima, por todo apoio, carinho e cuidado que dedicaram a mim

fazendo eu me sentir em casa.

Ao amigo Ozzu, gratidão pela companhia espaçosa.

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Um abraço quente como café preto, que nunca faltou nas tardes, na tua casa, Bel

Fares. Você fez de meu voo-pesquisa mais seguro ao me mostrar que é possível ser

“puxada por ventos e palavras.” Quem fica ao teu lado sai encharcado de poesia.

Um abraço longo e um salve à Dani Lobato, pela nossa caminhada, por cima das

folhas, unidas pelo poético.

Um poema-abraço à Dia Favacho pela ressonância da voz e às minhas

miçangueiras favoritas: Margareth, Tereza e Patrícia de parceria e close certo!

Abraço a cada navegante do Rio, turma 12 do mestrado, por descontruir a máxima

tradicional do par concorrente e criar a nossa: Mestrado poder ser leve!

Aos profs. Denis Bezerra e Renilda Bastos, agradeço pelas contribuições e por me

inspirarem, desde a graduação, a subverter o que está posto.

Gratidão em flor à Denise Simões, que com sua espada brilhante, me incitou, no

primeiro encontro, ainda na entrevista de seleção, defender o que acredito com a força de

uma guerreira. Professora, “eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.”

Ao CUMA, núcleo de pesquisa, em que construí verdadeiras relações de afeto.

À FAPESPA, pelo suporte financeiro.

Aos meninos da secretaria do PPGED: Joaquim, Jorginho e Carlos sempre

dispostos a ajudar com um abraço ou um café quente.

À professor Atena por deixar-me entrar em sua sala de aula.

Aos intérpretes que trouxeram a poesia pulsante para estas páginas.

E uma braçada de flores a você leitor. Agora, senhor deste texto.

Saravá!

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RESUMO

A partir das poéticas amazônicas trabalhadas no espaço-escola, a escritura desta

dissertação analisa como a experiência com a poesia pode contribuir para a educação

sensível. De uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como lócus uma escola da rede

estadual, localizada na região metropolitana de Belém, e, como intérpretes, alunos de uma

turma do 6º ano do Ensino Fundamental e uma turma da quarta totalidade da Educação

de Jovens e Adultos (EJA). O que se quer é mostrar as chaves que servem à poesia desde

os conceitos da crítica literária, a movência e maneira que ela socialmente é transmitida,

bem como questões que envolvem a sua escolarização. Diante dessas questões trazemos

a estética da recepção como metodologia apoiada na categoria experiência a partir dos

estudos de Larrosa (2017), que se mostra pela recepção que os intérpretes tiveram do

texto poético, resultado que se tece tanto em texto escrito quanto em desenho. Como

aporte teórico utilizamos como base, principalmente, os escritos de Paul Zumthor (1993)

e de autores que contribuem com o debate das poéticas, da estética da recepção e da

educação sensível, entre os quais citamos: Antônio (2002), Araújo (2008), Barthes

(2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001), Loureiro (2001) e Paz (2012).

Neste estudo demonstro de como a poesia mexe com os sentidos, vaza para o papel, e o

branco da página põe-se a florescer.

PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Estética da Recepção. Educação Sensível.

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ABSTRACT

Based on the Amazon poetics worked in the space-school, the writing of this dissertation

analyzes how the experience with poetry can contribute to sensitive education. From a

qualitative perspective, the research has as locus a school of the state network, located in

the metropolitan area of Belém, and, as interpreters, students of a sixth grade class of

elementary school and a group of the fourth totality from Education of Young and Adults

(EJA). What is wanted is to show the keys which serve poetry from the concepts of

literary criticism, the movement and manner that it is socially transmitted, as well as

issues that involve its schooling. Considering these issues we bring the reception

aesthetics as a methodology based on the experience category from the studies of Larrosa

(2017), which is shown by the reception that the interpreters had of the poetic text, a result

that is woven both in written text and in drawing. As a theoretical contribution, we mainly

use the writings of Paul Zumthor (1993) and authors who contribute to the debate of

poetics, reception aesthetics and sensitive education, among whom we name: Antônio

(2002), Araújo (2008), Barthes (2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001),

Loureiro (2001) and Paz (2012). In this study I demonstrate how poetry affects the senses,

leaks into the paper, and the white of the page begins to bloom.

KEY WORDS: Poetry. Reception Aesthetics. Sensitive Education.

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Lista de Imagens

Imagem 01 — Livro didático I.......................................................................................64

Imagem 02 — Livro didático II.......................................................................................65

Imagem 03 — Livro didático III.....................................................................................66

Imagem 04 — Livro didático IV.....................................................................................67

Imagem 05 — Livro didático V......................................................................................68

Imagem 06 — Livro didático VI....................................................................................69

Imagem 07— Livro didático VII....................................................................................70

Imagem 08 — Poesia amor.............................................................................................81

Imagem 09 — La bamba.................................................................................................82

Imagem 10 — Borboletário.............................................................................................99

Imagem 11 — Mônica e a borboleta...............................................................................100

Imagem 12 — Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura............................................115

Imagem 13 — Lugar lindo de se viver..........................................................................117

Imagem 14 — Poesia é isso...........................................................................................118

Imagem 15 — Lua.........................................................................................................120

Imagem 16— A história do boto cor de rosa.. ..............................................................122

Imagem 17 — Boto cor de rosa 1..................................................................................122

Imagem 18 — Boto cor de rosa 2..................................................................................122

Imagem 19— Boto cor de rosa 3...................................................................................123

Imagem 20 — Boto cor de rosa 4..................................................................................123

Imagem 21 — Boto cor de rosa 5.................................................................................124

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Imagem 22 — Boto cor de rosa fim.............................................................................124

Imagem 23 — Som de Chuva.......................................................................................129

Imagem 24 — Chuva de pipoca....................................................................................130

Imagem 25 — O som das cigarras.................................................................................131

Imagem 26— Uma árvore de sons................................................................................131

Imagem 27 — O som da peteca....................................................................................132

Imagem 28 — O som da pia..........................................................................................133

Imagem 29— Quadrinho A Baladeira 1........................................................................136

Imagem 30— Quadrinho A Baladeira 2........................................................................137

Imagem 31— Quadrinho A Baladeira 3........................................................................138

Imagem 32— Pulf........................................................................................................ 141

Imagem 33— Uma flor..................................................................................................142

Imagem 34 — Quadrinho procissão do senhor morto 1................................................144

Imagem 35— Quadrinho procissão do senhor morto 2................................................ 145

Imagem 36— Quadrinho procissão do senhor morto 3.................................................146

Imagem 37— Dois dias depois......................................................................................147

Imagem 38— Fim..........................................................................................................149

Imagem 39— Era um comedor de fogo........................................................................151

Imagem 40 — Lembrança de um espantalho................................................................151

Imagem 41— The end...................................................................................................153

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SUMÁRIO

PROCURA DA POESIA ............................................................................................... 14

1 TROUXESTE A CHAVE? ......................................................................................... 24

1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra .................................................................. 31

1.2 O caminho para o Olimpo ..................................................................................... 40

2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética ............................................. 51

2.1 Letras que contam: formação do leitor ................................................................. 56

2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível ..................................................... 75

3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre ................................... 89

3.1 O desenho do verbo ................................................................................................ 112

3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos! .................................................... 155

CHAMA POÉTICA ..................................................................................................... 169

REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 172

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PROCURA DA POESIA

“Certa palavra dorme

na sombra de um livro raro.

Como desencanta-la?

É a senha da vida

A senha do mundo

Vou procura-la.”

(Carlos Drummond)

“A poesia pertence a um pequeno número de atividades totalmente

desinteressadas, improdutivas” (ZUMTHOR, 1997. p. 34). Para quem aceita o desafio de

aproximar-se, de tomá-la como estudo, ela se torna uma aventura de descobrimento, de

revelação, de encontro. Bem como uma ventura, pois ela pode nos levar por caminhos

inesperados. E uma vez tocados pelo verbo, os nossos sentidos são despertos. Para mim,

a ventura se deu quando decidi fazer seleção para o Programa de Pós-Graduação da

Universidade do Estado do Pará, período em que eu ainda estava vivendo meu reencontro

com o poético. Um dos primeiros entraves que tive foi sobre o que pesquisar, visto que

um dos critérios para escolha do objeto de pesquisa é a sua relevância acadêmica e social.

Estava afastada da universidade e não sabia por onde começar.

No entanto, percebi que o objeto de pesquisa estava comigo há muito tempo,

mas não sabia se o que ansiava investigar seria de interesse para a Academia, já que o que

me movia era um tema que parecia estar em outras paragens. Uma certeza eu tinha: só

conseguiria levar uma pesquisa adiante para fazer o que gosto. E, assim, deixei os receios

de lado e decidi arriscar no que acreditava. Ao iniciar a produção, percebi que estava

escrevendo mais que um projeto, o que colocava naquelas linhas era a história de uma

relação.

Era a minha história com a poesia, que trago, literalmente, escrita no corpo: “a

poesia é o presente” (GULLAR, 2010, p.28). Precisei olhar para o que está posto, para a

maneira que verbo adere à vida das pessoas, pois, o tema não nascia apenas deste afeto

prazeroso, surgia principalmente de uma angústia que guardava há muito: por quê a

poesia, com a qual tanto me identifico, é considerada difícil para a maioria das pessoas?

A causa dessa angústia é de tempos distantes e, para falar sobre isso com

segurança, precisei fazer um mergulho mnemônico e, nele, perceber que o encontro com

a poesia foi tardio. Tarde, porque só adulta descobri que passei a vida toda acreditando

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que poesia era somente o que havia nos poemas dos livros didáticos da escola. E, quando

lembro dessas atividades, percebo que havia poemas, mas e poesia?

O meu primeiro contato com o texto poético foi no verso da letra, ainda nas

séries iniciais do Ensino Básico e, na época, ao invés de ser estimulada a descobrir as

possibilidades daqueles poemas, tinha apenas que desenvolver a competência gramatical

imposta nas tarefas da aula. E a cada encontro, a gramática rompia o sonho e a fruição

que poderia haver com o poético.

Entre tantas situações que me afastaram da poesia, uma deixou sua marca, como

se a deusa Mnemosyne tivesse se encarregado de guardar esse dia. Aconteceu quando tive

o encontro com os modernos. Mesmo com o desconforto com as atividades envolvendo

poesia, Literatura era uma das minhas disciplinas preferidas e, nesse dia, conheci um dos

poemas mais famosos de Drummond. Ao ler que No meio caminho tinha uma pedra

(ANDRADE, 2013, p. 36) a sala de aula ficou pequena para tudo o que esse poema

despertou em mim. Até que a professora perguntou-me o que o poeta queria dizer com a

pedra. Tentei, em vão, falar de minha recepção desses versos, porém tudo que senti ao lê-

los foi inútil para a finalidade que a professora esperava. Frustrada, só sentia toda a poesia

indo embora e, dali em diante, disse para mim mesma que poesia era difícil demais. Já

não sentia segurança para escrever o que sentia ao ler poemas. Parei de ler. Essa memória

marcou e me afastou da poesia por anos.

Com o tempo essa angústia cresceu, virou um nó, pois vi que essa poesia da

escola não era difícil apenas para mim. Trouxeste a chave? (ANDRADE, 2013, p. 12),

perguntava-me Drummond e não via nem mesmo a porta. O poema estava lá, mas a poesia

não. Seguimos separadas. E para colocar um ponto (final?) na relação veio o vestibular.

Teria que saber todas as características das escolas literárias, precisar decorar a biografia

dos autores, lembrar os textos célebres. Havia tantos e tantos poemas. Mas poesia nada.

Eu era uma leitora. Passeava pelos clássicos, gostava de um romance como ninguém. Mas

evitava a todo custo a poesia do verso, não conhecia a prosa poética, bastava ver um texto

em verso que fechava o livro. Fiz de minha experiência negativa minha própria pedra.

Era o momento de escolher uma profissão. Como era uma péssima calculista e

também não me encontrava com as biológicas, sabia que precisava ir para as Ciências

Humanas. Tive um raciocínio prático: quem gosta de ler faz Letras (!), acabei escolhendo

o curso de Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa, por eliminação.

Cheguei à Universidade do Estado do Pará me agarrando às Letras como a ponte

para ter um curso superior. No primeiro ano, encontrei um professor que era a erudição

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em pessoa em suas concepções literárias universais1, foi a gota d’água. Até a Literatura

passou a estar num lugar distante, passei a ver a minha companheira como uma senhora

fina e cheia de caprichos, e estava cada vez mais longe da poesia.

Mas esse era só o primeiro ano, ainda estava para encontrar outros mestres, três

grandes personagens que viriam mudar minha história. A primeira, uma Eneida com olhos

de cigana. Usava saias compridas, feito sua risada. Fazia uma roda de leitura na sala de

aula e discutia os textos com uma verdade que fazia seus olhos brilharem. As cópias, que

para nós deixava, eram cheias de comentários graciosos. Essa Eneida me ensinou sobre o

valor da Literatura Infantil e me apresentou seus velhos amigos, os clássicos, que agora

sim, pareciam como os Pretos Velhos que tem muito para ensinar e estão perto da gente.

Mas ela passou por mim feito um cometa brilhante, em razão de minha turma imatura que

não soube aproveitar tudo que ela tinha para nós. Eneida que era, nem se despediu e

seguiu para outras turmas. No entanto, com sua saída pude conhecer o segundo

personagem:

“Todas as crianças crescem, menos uma” (BARRIE, 2013, p.11). Ele foi meu

Peter Pan. Um ser absolutamente jovem. Em tudo. Com seu vocabulário peculiar, fez-me

entender que podemos saber muito sem precisar saber tudo, que a Literatura é para todos.

E que os livros são tesouros que devem ser partilhados.

Por fim, o último personagem que mudou completamente minha vida e minha

relação com as letras. Um artista! Era diferente de todos os professores que tivera, sua

disciplina: Literatura Amazônica. Quando falava mexia o corpo todo. Nunca sentava-se,

a sala era um palco. Certa vez, trouxe vários poemas de escritores amazônicos, sugerindo

que começássemos por Paulo Plínio Abreu. “Alguém gostaria de compartilhar sua

leitura?” Receosa, li tateando O comedor de fogo. Ao fim, diferente da professora do

Ensino Básico, não ouvi perguntas sobre o que o poeta queria dizer, muito menos sobre

o que significavam os cães doentes no poema. Ele somente entoou: “Mais alguém?”. E

outras pessoas pediram a voz. A cada leitura, um tom diferente e a cada olhar, um novo

poema. Foi ali que a poesia renasceu para mim.

Ainda na graduação, quando comecei a fazer os estágios de prática docente,

percebi que a relação que tive com a poesia no período escolar não era uma

particularidade minha. O espaço-escola no qual atuei fazia parte da rede pública e, ao

observar os textos trabalhados, não via fruição na leitura dos alunos. Para além desta

1 Concepções Literárias Universais é uma disciplina que faz parte da grade curricular do Curso de

Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Pará.

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prática, também percebi que o material utilizado não incluía o contexto amazônico. Isto

é, o que acontecera comigo se repetia com muitos leitores. Entendi que o primeiro contato

deles com a poesia contempla, geralmente, apenas o texto escrito. Desta forma, o primeiro

equívoco que temos na escola é confundir poesia com poema — O poema, na maioria das

vezes escrito em versos, é uma composição em linguagem multívoca. Poesia, ainda que

se chame, de forma genérica, ao gênero lírico, está para além dos limites do poema, é o

efeito estético, podendo estar em muitas formas de linguagem —. O segundo é a comum

utilização do texto poético como pretexto para trabalhar conteúdos de Gramática.

Com as experiências de professora e leitora, percebi que a poesia está em um

lugar distante do leitor comum, onde apenas os “eruditos” podem chegar, como se

estivesse na morada dos deuses, o alto Olimpo. E me perguntava: se a poesia nasceu da

tradição oral, se muito antes de estar no texto escrito está na voz, como foi parar ali?

A montanha do Olimpo, cujo topo alcança quase três mil metros de altitude, é

considerada o ponto mais alto da Grécia. Escolhi essa metáfora por entender que,

conforme coloca Kury (1990) sobre a mitologia grega, o monte abriga os principais

deuses de seu panteão e é visto pelos gregos como uma mansão de cristais maciça, bela e

imponente, lugar ideal para a majestade dos imortais. A poesia para grande maioria dos

leitores encontra-se em num lugar distante como o Olimpo.

A inquietação que atravessou minha proposta era a forma como a poesia vem

sendo apresentada na escola aos leitores; a separação que há entre eles; a não-fruição. A

pesquisa, então, nasceu do desejo de tentar contornar essa ruptura e buscar no debate

teórico-conceitual uma compreensão aplicada da temática, uma resposta que possa ser

um alento ao que, para mim, sempre soou como uma injustiça ao leitor: a perda do olhar

poético que ele traz quando criança e que a instituição enquadra e limita.

Para compreender a referida temática, chego à questão-problema da pesquisa:

como a experiência de educar pelo poético pode contribuir para a formação do leitor no

contexto escolar amazônico?

Direcionada pela pergunta, bem como pela situação exposta, chego aos objetivos

da pesquisa, em que apresento como objetivo geral: oferecer condições para que a poesia,

enquanto experiência estética, possa se entrelaçar às vivências do leitor e que este a

perceba para além dos padrões estabelecidos pela escola. Como específicos, proponho:

oferecer aos leitores uma aproximação com a poesia, despertando-os para o universo

amazônico; identificar, a partir da teoria da Estética da Recepção, como a experiência

com o texto poético pode contribuir para a educação sensível.

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Os estudos de crítica literária apontam para análises mais restritas ao texto

literário, estudar a Estética da Recepção pela fruição do leitor abre espaço para novos

horizontes de expectativas previsto em Jauss (1979). Com a experiência de professora e

de leitora, notei que a pesquisa precisava desenvolver-se no espaço-escola onde,

normalmente, o leitor tem seu primeiro contato com o texto poético. Desta forma, o objeto

de pesquisa concentra-se na recepção da poesia. O corpus de análise do estudo se

constitui, pois, das teorias que fundamentam a Estética da Recepção e aqui incluímos

também como um método.

Assim, comecei a pesquisa e, como um dos primeiros passos, busquei fazer o

estado da arte. O levantamento foi realizado em bancos de dados de universidades

brasileiras, a partir dos descritores relacionados ao tema e, de forma mais minuciosa, no

repositório da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Observei que as pesquisas das

universidades que abordam a poesia no contexto escolar, geralmente, focam na análise

dos Parâmetros Curriculares Nacionais e tem, principalmente, o professor e o currículo

como objeto. Tal abordagem não contempla esta pesquisa, visto que minha perspectiva

para o estudo é a recepção que aluno terá de textos poéticos. Já as dissertações

encontradas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) tem uma

aproximação maior com o estudo, abordam as poéticas amazônicas a partir da educação

sensível e incluem os processos educativos vivenciados no cotidiano do aluno amazônico.

Cito, adiante, algumas pesquisas com as quais senti uma aproximação maior com

meu objeto e foram como portas abertas para o caminho que segui, textos que trazem o

debate da educação pelas poéticas amazônicas, dissertações apresentadas ao PPGED da

UEPA, orientadas pela Profa. Dra. Josebel Fares: O lugar dos saberes amazônicos no

ensino da disciplina literatura, Eliana Pires de Almeida (2012); Imaginário Poético em

Antônio Juraci Siqueira, por uma abordagem literária na educação da Amazônia, Ivone

Caldas Carvalho (2013); As mitopoéticas na obra de Paulo Nunes: ensaio sobre

literatura e educação na Amazônia, Nathália da Costa Cruz (2013); Cartografias poéticas

em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades, Escrituras e Saberes em diálogo,

Danieli dos Santos Pimentel (2013). Era uma vez... A Cobra Grande na voz dos pequenos

intérpretes cametaenses, Kezya Thalita Cordovil Lima (2014); Educação, Memórias e

Saberes Amazônicos: Vozes De Vaqueiros Marajoaras, Délcia Pereira Pombo (2014);

Boto em gente, gente em boto saberes, memória e educação na Amazônia, Zaline do

Carmo dos Santos Wanzeler (2014); Tessituras poéticas: educação, memória e saberes

em narrativas da ilha grande/Belém-Pará, Andréa Lima de Souza Cozzi (2015);

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Educação Sensível na voz de calados: poesia e memória em regime crepuscular, Dia

Errmína da Paixão Favacho (2017).

Ainda na UEPA encontrei projetos de pesquisa que promoveram atividades de

fruição com a literatura amazônica, entre os quais destaco: O lúdico na literatura infantil

– projeto de extensão (2007/2009), que, através de oficinas, implementou ações que

buscavam refletir os conceitos da infância a partir da história da literatura infantil e de

obras de autores infantis, inclusive os da Amazônia; Leitura e memória – projeto de

extensão (2010), atividade que partiu das ações desenvolvidas pelo CUMA, com início

em 2005, no projeto Arte no Pão, realizado no Asilo do Pão de Santo Antônio, que

promoveu uma integração entre estudantes, professores e idosos do asilo por meio da

leitura.

Também como fonte de material, utilizei projetos de iniciação científica como:

Literatura e recepção das poéticas amazônicas: uma experiência de leitura (PIBIC/

2007); Literatura: recepção, memória e imagens da escola (PIBIC/2008/09); Memória

de Cordel: recepção e ensino (PIBIC/2009/10) Lúcia, Lindanor e Eneida: memória,

recepção e leitura (PIBIC/2010/11); Símbolos culturais na literatura amazônica

(PIBIC/2010/11); Faustino, Barata e Plínio: Educação e recepção da poesia amazônica

(PIBIC/2011/12).

Além das dissertações e projetos encontrados na UEPA, outras pesquisas

realizadas dentro e fora do estado também abordam o tema das poéticas amazônicas

como: Memórias de rios e de lagos na construção romanesca: leitura de narrativas da

Amazônia paraense, Elizabete de Lemos Vidal (2008) da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte. Poéticas Amazônicas: espaços da memória, oralidade e identidade na

prosa de Maria Lúcia Medeiros, Lylian José Félix Da Silva Cabral (2013), da

Universidade Federal de Pernambuco. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e

Moronguetás: ensaios de etnopoesia Amazônica, Harald Sá Peixoto Pinheiro (2013) da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Entre partidas e chegadas: matrizes

poéticas de imigrantes de Paragominas-PA, Aida Suellen Galvão Lima (2014) da

Universidade da Amazônia.

Constituir o estado da arte foi fundamental para que não me deixar cair na

vaidade do ineditismo, pois como foi demonstrado, as pesquisas citadas são apenas um

pequeno recorte de todo arcabouço teórico que há sobre as poéticas amazônicas.

Escolher o lócus de pesquisa foi como voltar para casa, a instituição escolhida

foi onde havia realizado os estágios de prática docente da graduação (entre 2010 e 2011)

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e onde também trabalhei como voluntária do Programa Mais Educação do Governo

Federal 2(de 2013 a 2015). Durante os anos envolvida nesse projeto pude contar com o

apoio de uma professora, que em muitas ocasiões dividiu ou cedeu espaço para que

realizasse as atividades relacionadas à prática docente.

Então, minha entrada em campo foi possível graças ao espaço que essa docente

cedeu. Importante dizer que durante toda a pesquisa ela esteve comigo em sala de aula,

de forma que as atividades eram feitas nos minutos finais de sua aula e por não poder

conduzir as atividades sozinha em muitas situações a interferência da professora precisou

ser tolhida de forma polida, práticas que não puderam ficar de fora de minha narrativa. E

por essa circunstância, muitos momentos me colocaram diante das situações que critico

nesta pesquisa, e por isso optei por não divulgar o nome da instituição, o nome dos alunos

e nome da professora. Assim, escolhi um nome fictício para a Instituição: Escola Olímpia.

E à professora que me acompanhou chamei de Atena.

Localizada em perímetro urbano, Olímpia conta com uma infraestrutura básica

(vinte salas de aula, laboratórios de informática e ciências, biblioteca, auditório, quadra

de esportes, refeitório e etc.), os alunos são em sua maioria moradores dos arredores e dos

bairros próximos.

Atena abriu as portas de sua sala, assim pude contar com as turmas que ela

disponibilizou. Com carga horária completa, a professora leciona no turno vespertino

tanto para turmas do 6º ao 9º ano, como para as três séries do Ensino Médio, com as

disciplinas: Língua Portuguesa, Literatura e Redação. E no período noturno, para as

turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Por isso, as possibilidades para realizar

a pesquisa eram inúmeras e tornaram a escolha difícil. Que critérios utilizar?

Desta forma, para escolher os intérpretes, mais uma vez a memória foi guia.

Lembrei-me de minha experiência e, assim, optei pelos alunos do 6º ano do turno da

manhã e alunos da quarta totalidade da EJA no turno da noite. A escolha de crianças do

6º ano leva em consideração a fase de transição que elas passam, “na ingenuidade

primeira que devem ser consideradas as imagens fantásticas” (BACHELARD, 1990. p.

60), além do que, tem um olhar mais livre e uma perspectiva que ainda não foi tão

formatada pela escola. Em contrapartida, os intérpretes da quarta totalidade são alunos

2 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo

Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da

agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas

escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos:

acompanhamento pedagógico; Fonte: http://portal.mec.gov.br acesso em 06.03.2018.

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que, em sua maioria, já passam pelo ensino regular e ao retornar, geralmente, trazem certa

resistência à leitura. Por isso escolher a EJA, além de um contraponto dentro da pesquisa,

é uma forma de proporcionar a aos intérpretes novas experiências com a palavra poética.

Utilizo o termo “intérprete”, por entendê-lo como a expressão que mais se

aproxima ao campo das poéticas, empregado a partir do conceito proposto por Zumthor

(2010, p. 239). Para ele, “é o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o

gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo

que ele diz.” Contexto em que o intérprete possa experimentar essas possibilidades de

recepção do poema.

A escolha de períodos e intérpretes distintos visa que, a partir do caráter artístico

e dialógico do texto poético, a poesia possibilite que eles possam sentir-se leitores na

construção de sentidos para o texto e para as suas vidas, isto é, a educação sensível, que

não busque apenas a transferência de conhecimento, mas o ato de conhecer e educar.

O objeto de estudo é a recepção do texto poético, a princípio considerou-se incluir

a poesia que está em outras linguagens como as artes plásticas, a fotografia, as produções

cinematográficas, mas após as considerações decorrentes da banca de qualificação, bem

como pelo que vivenciei em campo, percebi que a poesia que está no Olimpo é poesia da

letra, que inclui tanto o texto poético em verso como em prosa. A poesia que me refiro

aqui é aquela entendida no sentido estrito de composição verbal, vazada ao gênero

poético, como Literatura.

Os autores escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa são que os compõem

a poesia amazônica, com textos que figuram a identidade a partir de elementos caros à

cultura. Escritores que, para Loureiro (1995), utilizam a função estética como base para

compreensão do imaginário e evocação mitológica desse imaginário, forma em que o

homem/artista amazônico é governado pelos sentidos e como os mitos vêm explicar a

realidade quando é inexplicável, numa miscelânea de real e irreal.

A escolha dos autores foi pela dimensão da memória, em textos que para mim

pudessem figurar em corpo, voz e gesto de uma poesia que tocasse os sentidos dos

leitores, assim recorri às leituras que fizeram parte de minha formação, ainda que tardia,

de leitora de poesia. Como, por exemplo, poetas que conheci na disciplina de Literatura

Amazônica como Paulo Plínio Abreu (2008), Thiago de Mello (2009), livros que me

levaram a lugares inesquecíveis como Aruanda de Eneida (1989) ou Itaira de Lindanor

Celina (1995). A intenção inicial era levar uma amostra significativa de autores

amazônicos. Ao fim do período em campo, ainda que muitos autores tenham ficado de

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fora, cito aqueles que foram trabalhados: Adalcinda Camarão (1995); Paes Loureiro

(2008), Juraci Siqueira (2012), Paulo Nunes (2010), Dulcinéia Paraense (2011); e da

prosa: Haroldo Maranhão (1992), Maria Lúcia Medeiros (1994). Importante dizer que

para chegarmos ao resultado desse corpus, uma longa seleção foi feita, pois de cada texto,

a média de recepções foi de 15 na EJA e 25 no 6º ano.

‘O amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria.”, diz Zumthor (1993, p.

73), que por sua veia poética foi a voz essencial desse estudo, e sua ressonância é vibrante

até as últimas páginas. A poesia enquanto alimento do vivido e força motriz desse

caminhar compõe esse corpus, também como teoria, pois há percepções que as palavras

que tinha já não serviam para dizer o que precisava, coisas que só cabem no poema, assim

para que essas experiências não de desgastassem ou se fossilizassem recorri à poesia. Para

além disso, todos os textos partilhados com os intérpretes compõem as sessões. No mais,

a estrutura textual deste trabalho se organiza em três sessões.

Na primeira sessão, intitulada Trouxeste a chave? começo por uma breve

apresentação, em que exponho como a poesia é concebida a partir da Teoria Literária por

nomes consagrados pela crítica como T.S. Elliot (1991), Alfredo Bosi (2000), Ezra Pound

(2006), usando como aporte principal Mário Faustino (1976) a partir do livro Poesia-

Experiência. No item A herança de Apolo: A poesia da letra, a partir dos escritos de A

letra e a voz de Zumthor (1993), percorro o caminho que a poesia fez da tradição oral

para a escritura. Ainda nesta sessão, no item O Caminho para o Olimpo, mostro uma

discussão em torno das racionalidades científicas e dos motivos que influenciaram o lugar

que a poesia ocupa nas instituições de ensino e a forma que é recebida pelos leitores.

No segunda sessão, Estética da Recepção: uma experiência Poética, apresento as

teorias que fundamentam a Estética da Recepção e as poéticas amazônicas, fazendo esse

percurso teórico com autores como: Hans Robert Jauss, traduzido por Luiz Costa Lima

(1979), Regina Zilberman (1989), Paes Loureiro (1995), Josebel Fares (2008), Umberto

Eco (2001), Marisa Lajolo (2001), Paul Zumthor (2014), trazendo as primeiras

experiências realizadas no lócus, com alunos de uma turma de Educação de Jovens e

Adultos.

No item Letras que contam: a formação de leitores, analiso sobre essa temática

tão discutida no âmbito da educação, trago autores bem como conto da intempérie que foi

recomeçar com turmas novas, pois por uma situação burocrática não pude continuar com

os primeiros intérpretes. O que se coloca não é propor um debate das deficiências e

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ausências da formação já conhecidas por todos, mas trazer os estudos que abordam a

resistência contra esse modelo.

O último item da sessão: Caminho de Ítaca: por uma educação sensível, anuncio

a categoria que fundamenta a Estética da Recepção como um método: a experiência. E

como primeiro passo, explico como a categoria, a partir dos escritos de Larrosa (2015),

mostra que pelo poético a educação sensível pode ser um percurso que olhe mais para o

vivido no caminho da educação do que para os seus resultados.

Na próxima sessão Uma página em branco lançada: a recepção livre, mostro

como o leitor se comporta diante da página em branco, sem que se crie sobre ele uma

expectativa de resposta dirigida. Livre para falar de seu sentir, consegue fazer uma

conexão mais íntima com o texto poético. Para me conduzir por esses escritos conto com

Paz (2012) e as iluminuras que O arco e a Lira trouxeram para mim.

Em O desenho do verbo, acompanhada de Bachelard (1986) e Manoel de Barros

(2013) trago as recepções dos intérpretes do 6º ano, a partir de seus desenhos, que foram

a maneira que eles ficaram mais à vontade para expressar como a poesia os tocou.

No último item, O fogo de Prometeu, a reunião das recepções que se mostraram

pelo verso, por intertextos de outros poemas bem como pela escritura de poemas autorais.

Quem me sopra os ouvidos para ler esses versos é aquele que acreditou na Utopia da

palavra, Antônio Severino (2002).

Importante dizer que esta escritura se configurou, em sua estrutura, como um

trabalho ensaístico e suas sessões foram construídas de forma interligadas, mas

independentes, como uma dança circular em que os autores chegam, fazem sua

performance, dão espaço para outros passos, mas continuam no círculo. Ao longo do

texto, também figura tal dança a alternância dos pronomes em primeira pessoa do singular

e do plural, devido aos momentos em que minhas escolhas dividiram protagonismo com

as de minha orientadora.

Para encerrar, entrego ao leitor as páginas que se seguirão, reflexo de minha

procura pela palavra mágica, de uma pesquisa que iniciou de uma angústia, um sonho e

muitas lacunas. Convido os olhos que miram esses escritos a conhecer o voo desta

aventura de descobrimento e sobretudo de encontro com o poético.

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1 TROUXESTE A CHAVE?

Na Grécia antiga, mítica e heroica, quando a poesia — pelas manhãs de “róseos pés”

dos poemas de Homero — começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela

entranhada na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.

(Paes Loureiro)

Há muito tempo filósofos, poetas, críticos, ensaístas, teóricos, todos tentaram

definir poesia, e seu conceito é uma porta que pode ser aberta por inúmeras chaves. Os

filósofos teorizaram-na como forma de conhecimento, os poetas dedicaram-lhe inúmeros

versos metalinguísticos, a crítica literária tentou racionalizar sua definição e o senso

comum, geralmente, confunde poesia com poema. Por isso, antes de “vir o dia quando

tudo que eu diga seja poesia” (LEMINSKI, 2013, p. 77), necessito recorrer às vozes que,

por minha formação, ainda ecoam no pensamento, pois o entendimento acerca desse

conceito também é alimento para a pesquisa, e fazer um passeio pelas contribuições de

nomes que são fundamentais para a sua compreensão é de grande relevância para este

percurso teórico.

A procura da poesia começa com a linguagem. Gianbattista Vico (2008), em sua

Ciência Nova, conta que a linguagem dos primeiros homens foi expressa por caracteres

poéticos. É o que Nunes (2009) apresenta-nos, quando alude aos primeiros autores do

mundo civil como poetas, pois “enquanto Vico considerou na história da humanidade a

importância de tal linguagem, muitos a desprezaram por não conter os elementos que a

mathesis universalis requeria para torná-la compreensível” (p. 24-26). No entender do

filósofo, essa linguagem poética foi necessária à compreensão dos homens entre si, assim

“a natureza da poesia e do mito não foi simples ornamento nos tempos poéticos, mas

resultado de uma lógica que opera transferindo significados que lhes são familiares ao

que é percebido”(p. 24-26). Desta forma, é importante compreender que a poesia

acompanha o ser humano em sua evolução.

Segundo Ragusa (2013), a poesia, diferente do que temos agora, não era

produzida para a leitura (especialmente a leitura solitária e silenciosa). A autora se refere

a um período que data da Grécia arcaica (c. 800-480 a.C.) em que a poesia denominada

Mélica, termo que figura entre as denominações mais antigas para essa poesia que, a partir

da helenística (c. 323-31 a. C.), sob a influência dos trabalhos na Biblioteca, passou a ser

chamada de ‘lírica’. As composições dessa poesia eram destinadas à performance cantada

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em coro, ou solo, acompanhadas pela lira em eventos das famílias aristocratas de

governantes ou em cerimônias públicas organizadas pelas cidades para homenagear um

deus. Portanto, a poesia

não era aquilo que o nome “poesia” identifica, mas algo mais próximo

à “canção” [...] inseria-se, assim numa cultura da canção, na qual

funcionava como veículo principal à disseminação de ideias morais,

políticas e sociais (RAGUSA, 2013, p. 12-13).

É possível aproximar os estudos da autora aos de Erza Pound (2006, p. 160),

quando diz que “jamais recuperaremos a arte de escrever poesia para ser cantada”. Aos

de Pignatari (2004, p. 9), quando comenta que “a poesia parece estar mais ao lado da

música e das artes plásticas. [...] é um corpo estranho nas artes da palavra”. Para

finalmente chegar aos de Paul Zumthor (2010, p. 8), quando para ele “o simbolismo

primordial integrado ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da

linguagem, e é aí que se enraíza toda poesia”.

Por todos os autores citados, verifica-se que a poesia, antes de estar na escrita,

esteve na voz. Desta forma, sua referência primeira vem das tradições orais, que a maioria

dos estudiosos relevam: a poesia oral. Ainda em Zumthor (2010, p.9), encontramos a

resposta a esta ocorrência:

em razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa

nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com

uma escrita, donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a

validade do que não o é. Nós, de algum modo, refinamos tanto as

técnicas dessas artes que nossa sensibilidade estética recusa

espontaneamente a aparente imediatez do aparelho vocal. As

especulações críticas dos anos 1960 e 1970 sobre a natureza e

funcionamento do “texto” deixaram de contribuir para clarear por este

lado o horizonte e ainda o embrumaram mais, recuperando, travestida

ao nosso hábito mental, a antiga tendência de sacralizar a letra.

O que o medievalista nos propõe é rever essa sacralização da ideologia letrada,

que tem na escrita seu fundamento maior e que, por praticidade, condiciona à poesia oral

a designação do termo “folclore”. Comumente empregada de forma reducionista, “a

palavra folclore se desdobrou, remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao que

vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, a diversas práticas de

recuperação dos regionalismos” (ZUMTHOR, 2010, p. 19). Outra expressão usualmente

empregada e criticada pelo autor é o adjetivo “popular”, muito utilizado com o termo

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poesia. Tal emprego acaba por diluir uma corrente de conhecimento, relegando-a à uma

cultura subalterna.

O que esses teóricos discutem diz respeito a uma mudança de perspectiva do

entendimento de poesia. A sacralização das letras (escritas) se interpôs a toda poética

oriunda da oralidade. Como exemplo, temos o poema trágico Fausto, de Goethe que,

mesmo baseado em uma lenda alemã medieval, é recebido como literatura clássica porque

é arte assinada. Zumthor (2010, p. 22) nos permite compreender porque aceitamos a obra

de Goethe como clássico literário, escrito baseado na cultura “popular”. O autor comenta

que

no interior de uma mesma classe de texto (apesar de não definido como

tal), será “folclórico” o que for objeto de tradição oral; “ popular”, de

difusão mecânica. Em outros lugares, “a literatura oral” será tomada

como uma subclasse da “popular”, enquanto que alguns se negarão a

ligar essas categorias ou atribuirão (despreocupados com essa petição

de princípio!) o título de “primitivo” a toda poesia “puramente” oral!

[...] O elemento perturbador em tais discussões decorre do recurso,

implícito ou declarado, que nelas se faz a uma oposição não pertinente

neste caso: a que separa o “literário” do não literário ou o que é

designado com algum outro termo, seja ele sociológico ou estético; e

neste caso, eu percebo o literário vibrante das conotações acumuladas

há dois séculos: referência a uma Instituição, a um sistema de valores

especializados, etnocêntricos e culturalmente imperialistas.

O que se faz compreender das passagens acima é que as artes firmadas no codex

literário chegam até nós com o status de literatura. Com isso, a poesia afastou-se do uso

original da compreensão dos homens entre si. Para Zumthor (2014, p. 49), poética é

o uso linguístico de uma comunidade humana como uma rede de

práticas tendo por finalidade a comunicação e a representação, porém,

estruturadas de tal modo que necessariamente uma entre elas,

metamimática, vise à linguagem como outros visam o mundo.

As definições acerca da poesia são ilimitadas e, para Bachelard (1990, p. 83), ela

“demanda uma adesão menos pesada, mais móvel e mais livre [...]. A poesia, pode-se

ainda dizer, desenvolve seus próprios mitos.” Cavalcanti (2012, p. 25) entende que “a

poesia não está nas coisas, ela é as coisas, ou uma maneira de as coisas se mostrarem em

intimidades que só o poeta, e apenas em certos momentos, a ela tem permissão de aceder”.

Para Ezra Pound (2006, p. 40), “a poesia é a mais condensada forma de expressão verbal”.

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Como vimos, são muitas as possibilidades. Cada autor, à sua época, tem sua

própria “arte poética”, sua chave. Para delimitar a discussão a que esta sessão se propõe,

recorro a outros nomes que também estiveram à procura da poesia.

Mário Faustino (1976), em Poesia-Experiência, no capítulo intitulado “Poética”,

aborda, entre outras questões, a partir de um diálogo entre poetas, duas perguntas

fundamentais: “Para quê Poesia? e “Quê é poesia?”. Para a primeira questão, em sua

concepção a poesia

serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as

diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso

a poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado

de espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A

poesia, aliás, é incomparável quando registra—com a capacidade

condensadora e mnemônica de que só ela é capaz—certas nuanças de

ponto de vista, de atitude, de sentimento e de pensamento, individuais

como coletivos, nuanças essas que, muitas vezes, são bem mais

expressivas de um povo e de uma época, do que os grandes

acontecimentos (FAUSTINO, 1976, p. 33).

O pensamento do poeta confere à poesia relevância social, o que direciona o

leitor para a segunda questão proposta pelo autor: a definição de poesia. Esta é muitas

vezes utilizada de maneira supérflua, como forma de adjetivar algo belo, com sentenças

como “a noite estava muito poética”, ou “que música poética!”, e que, para o autor, essa

“atitude só serve para desviar, para confundir princípios”. Ele declara não ter interesse

por essa perspectiva de poesia, propondo uma aproximação relacionada ao conceito de

arte poética, apresentando a concepção da obra literária dividida em dois polos: o poético

e o prosaico, que podem ser diferenciados apenas de maneira formal, a partir de aspectos

concretos como o verso, o ritmo e a linguagem mais concentrada. Tal distinção, para o

autor, se faz por uma questão “puramente acadêmica”, mas que, para compor o horizonte

entre esses conceitos, elucida a diferença:

quando um escritor, tirando palavras do estoque de sua memória,

procura adaptá-las ao objeto de sua criação, fazendo tais palavras

circularem em torno de seu objeto, refletindo-o, comentando-o,

contando-lhe a história, analisando-o, personalizando-o, identificando-

o, etc., queira ou não queira, está entrando no prosaico [...] quando esse

mesmo escritor, colocando-se diante do objeto de sua criação, vê

nascerem em sua mente palavras como que inteiramente novas,

insubstituíveis e essencialmente intraduzíveis que não glosam o objeto

e sim o recriam em um plano verbal, batizando-o de um modo

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inexplicavelmente novo, tirando-o do caos em que parecia encontrar-se

e colocando-o numa ordem nova — então esse escritor, queira ou não

está caindo no poético (FAUSTINO, 1976, p. 62-63).

A exposição acerca das diferenças entre a composição do escritor não tem por

objetivo dar maior ou menor valor à linguagem, ou mesmo dar um tipo de fórmula de

identificação para ela, o que lê-se são argumentos que vão personificando o poético e o

prosaico como dois lados da linguagem que, apesar de distintos, misturam-se em

confluência híbrida. Para o autor, não há exemplo de obra literária puramente poética nem

puramente prosaica.

Trago paralelo ao exposto, Ferreira Gullar (1995), em seu ensaio Uma voz entre a

natureza e a cultura, que também reflete sobre o papel da poesia e do poeta:

O poeta moderno, que desenvolveu a linguagem literária à sua condição

prosaica, realiza a poesia pela transformação da linguagem prosaica em

linguagem poética. Na concepção da nova poesia, o que há de

fundamental e permanente é a linguagem mesma – a língua – que será,

neste momento, poética e, naquele outro, prosaica. Essa alternância se

dá no âmbito mesmo do poema, já que em nenhum poema todos os

elementos da linguagem se transformam em “poesia”. Ou seja, é o

processo de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os

elementos verbais e faz com que neles aflore a intensidade da expressão

poética. O poema é portanto, o lugar onde prosa se transforma em

poesia (GULLAR, 2008, p. 1082).

Retomando Faustino (1976, p. 68-69), sobre o conceito de poesia, para o qual não

é possível responder à questão

sem cair na “literatura”— ou literatice. Um estudo semântico da palavra

“poesia”, em qualquer das línguas ocidentais, muito nos afasta tanto de

sua origem etimológica, como do conceito filosófico que lhe possa

conferir. Porque a tradição, o uso, tem chamado de poesia “a beleza”, a

“harmonia”, o “pensamento profundo”, “a imaginação”, “a linguagem

metrificada”, o “verso”, “o conjunto de poemas”, o “poema, etc.—

coisas que, está claro, não tem lá muito com a poiesis dos gregos ou

com a nomeação, a recriação do objeto em palavras

A (in)conclusão do autor demonstra que mesmo que tentemos achar definições,

para ele, o poético não tem de ser compreendido, e sim percebido. O que não significa,

por sua vez, dizer que a poesia é qualquer coisa, ou mesmo limitá-la à música e à imagem,

poesia “é também pensamento” (FAUSTINO, 1976, p. 50).

O poema dá asas à linguagem, permite que a palavra comum ganhe outras

existências. Ao situar como o poema pode causar provocações, Perrone-Moisés (2000),

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em Inútil Poesia, nos coloca diante da força do poema, das imagens por ele (re)criadas e

do ato de (re)ver a palavra sem o automatismo do cotidiano. “Como se, pela palavra, fosse

possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma”

(BOSI, 2000, p.136).

O poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das

mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar,

imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a

linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e

de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente

verdadeiro e necessário. [...] A função do poeta moderno é opor-se a

esse comércio aviltante, e propor a utopia de outras linguageiras. Seu

trabalho consiste em “dar um sentido mais puro à palavra da tribo”,

fazer com que elas, em vez funcionar apenas como valores de

representação da realidade, instaurem uma realidade de valor.

(PERRONE-MOISÉS,2000, p.32).

Como o que Pessanha (1985, p. xxix) delineia quando diz:

não há nenhuma necessidade de ter vivido os sofrimentos do poeta para

compreender o reconforto da palavra oferecida pelo poeta — reconforto

da palavra que domina o próprio drama. A sublimação, na poesia,

domina a psicologia terrestremente infeliz. É um fato: a poesia possui

uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja

levada a ilustrar.

Faustino (1976) comenta que o poeta seria aquele capaz de perceber os

fenômenos naturas e sociais de maneira especialmente sintéticos, e também preparado a

exprimir em palavras organicamente conectadas, essa visão totalizadora de um mundo e

de um período. Contudo, não há intento de colocar o poeta em um lugar especial,

diferente, mas exprimir a relevância de como ele deixa impresso na história a marca de

sua época. Pois,

mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de homem

de hoje entre homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um modo que

não é o do senso comum, fortemente ideologizado; mas de outro, que

ficou na memória infinitamente rica da linguagem. O tempo "eterno"

da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de

imagens e recorrências, os dados que lhe fornece o mundo de hoje,

egoísta e abstrato. Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do

passado e da memória o direito à existência (BOSI, 2000, p. 131).

Eco (2001, p. 34), por sua vez, entende que o mundo interior do poeta é formado

e influenciado mais pela tradição estilísticas de seus antecessores do que pelas ocasiões

históricas em que suas ideologias se inspiram. Pelas influências estilísticas, o poeta

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formaria sua maneira de ver o mundo e sua obra tanto pode ter pouca conexão com seu

momento histórico, quanto expressar uma fase posterior à sua realidade, como poderá

manifestar níveis profundo e incompreensíveis a seus contemporâneos.

Refletindo no que concerne à tarefa do poeta T. S. Eliot (1991, p. 25-37), em De

poesia e poetas, uma de suas passagens mais incisivas nos diz:

como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta

é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e

aperfeiçoá-la. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, também ele

está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está

tornando as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem, e por

conseguinte, ensinando-lhes algo mais sobre si próprias. Mas o poeta

não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também

individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas,

e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos

sentimentos que ainda não haviam experimentado.

A experiência pelo poético pode revelar aquilo que instaurado pelo comum,

passa insípido aos sentidos, a partilha do que pode ser caro ao leitor, e causar, como diria

Barthes (2013), a fruição da escrita. E nesse sentido, a poesia amazônica para o leitor em

formação que precisa aproximar a palavra e o mundo, conhecer a letra que vem do seu

lugar, pode ser uma conexão íntima com sua experiência. Por isso a necessidade da poesia

amazônica para o nosso leitor, pois “há, nas alegorias produzidas pelo imaginário na

cultura amazônica, uma permanente tentativa de compreender o homem, o amor, a vida,

a morte, o trabalho e a natureza” (LOUREIRO, 1995, p.85).

O poeta amazônico extrai da realidade circundante suas motivações artísticas e

compõe de forma ímpar textos em que o mítico, o imaginário, a forte relação com o rio e

a floresta dividem espaço com as formas culturais da mistura advinda de outros lugares.

Esses escritos representam uma identidade local que ultrapassa as fronteiras regionais,

mas, também, externam a poética carregada por uma singularidade. Assim, é revelado o

imaginário que vai além do que é perceptível aos olhos, é transcendente, é “a terceira

margem do rio”.

Loureiro (1995, p.50) também está entre os poetas que buscaram a chave para

compreender a definir a poesia, como essência que revela a beleza escondida no mundo,

em que para ele, “alarga o círculo da imaginação, alimentando o pensamento. Com sua

forma, ação, linguagem e repercussão na cultura, ela torna inclusive, uma época mais

memorável do que outra”.

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O que tentei demonstrar nestas páginas primeiras é que o conceito de poesia não

terá uma única chave. O que distingue a poesia de épocas diferentes e o que define sua

singularidade está relacionado à cultura e aos costumes de cada época, e de como ela (a

poesia) fica impressa na memória, as influências e mudanças que fazem os sentimentos

humanos serem abordados de formas distintas.

As transições que a poesia viveu e os meios que lhe deram suporte nos leva à

movência da palavra, que nasce no seio da linguagem e da voz, passa para escritura.

Transição que deu à palavra escrita o legado que sobrepôs à poesia que está na letra uma

sina, que explicamos nas linhas que seguem.

1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra

O mito de Apolo revela experiências que se relacionam com a precisão, atributo

próprio da razão. A fantasia apolínea provém da crença na supremacia da simetria, pois é

através da harmonia das formas que se configura a ilusão do belo. Apolo no mundo grego

é aquele que rege a forma à medida que origina a harmonia e a “bela aparência” das

coisas.

A letra escrita sempre foi símbolo de poder. Muito antes da invenção da imprensa

o ato de conhecer a letra, decodificar as palavras, saber o que está grafado permite ao que

lê um lugar de privilégio. Pensando na história que envolve a relação do homem com a

letra escrita, faço um retorno, uma longa volta ao passado para compreender como a

poesia, viva na voz, passou da oralidade à escrita. Quem nos acompanha nesta volta, de

“escritura e nomadismo”, é Paul Zumthor (1993), seguindo principalmente os estudos do

título A letra e a Voz: Literatura Medieval.

“A escritura não se confunde nem com a intenção nem mesmo com a aptidão de

fazer da mensagem um texto. Ela tem seu ritmo próprio de desenvolvimento; a

textualidade tem os seus, assim como as mentalidades escriturais” (ZUMTHOR, 1993, p.

96-97). Para justificar nossa escolha pela poesia que está na letra, é necessário entender

por quais processos a escritura passou e os modos de raciocínio que envolveram sua

evolução.

O medievalista comenta que até cerca do ano 1.000 a escritura esteve restrita aos

mosteiros e cortes régias, e lentamente foi se expandindo para as classes dominantes dos

Estados europeus. Sua estreita relação com a voz foi um dos fatores que favoreceu em

sua difusão a partir desse período, mas somente na virada dos séculos XIV e XV, em que

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surge na Europa a primeira pintura de cavalete, que expressa a predominância, da visão e

do espaço, próxima de se concretizar. Essa primeira pintura marca um movimento da letra

saindo de seus domínios exclusivos (clero e as cortes) e chegando aqueles que por ela

podiam pagar.

Essas linhas atravessam o campo da poesia: de maneira contrastante

complexa, atuam sobre a intenção e a composição do discurso que a

poesia comanda e (em menor medida, talvez) sobre as modalidades

psíquicas de sua recepção. Assim, o que se encontra profundamente

posto em questão é a relação tríplice estabelecida a partir e a propósito

do texto—entre este seu autor, seu intérprete e aqueles que o recebem.

Conforme os lugares, as épocas, as pessoas implicadas, o texto depende

às vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura, às vezes

(e foi sem dúvida a regra nos séculos XII e XIII) de uma escritura que

funciona em oralidade (ZUMHTHOR, 1993, p. 98).

E a escritura precisava funcionar como oralidade, uma vez que apenas um número

muito pequeno dos homens no período medieval era capaz de ler suas cartas, e esse índice

leva em consideração os profissionais da escritura, quem conseguia estruturar seu

pensamento em palavra escrita era quem tinha poder. A prática de leitura era diferente

para o homem medieval do que é para nós, não contavam com a onipresença da escrita

em seu cotidiano. E apenas no século XIII que ficam legíveis os primeiros indícios de

livros comercializados.

Como uma prática que exige técnica e competência a escritura era uma atividade

que demandava muito tempo, pois, nesse período as diversas fases que a compõe, como

a feitura da tinta, a fabricação da pena e de outros objetos que eram produzidos para sua

realização, eram confeccionados pela mesma pessoa, por isso, a escritura ficou

dependente de seu elitismo.

Para além disso, para o escriba não era suficiente dominar a técnica de grafar as

letras, aquele que desenvolvesse “uma competência textual mais preciosa, fundada no

conhecimento das fórmulas eficazes, das regras discursivas, do manejo das figuras, de

tudo o que constitui, no sentido primeiro o estilo” (ZUMTHOR, 1993, p. 102) era ainda

mais valorizado. Assim, a estilística desde os primeiros trabalhos escritos já era um

elemento que consagrava o escriba, e, há de se considerar que ainda não havia as noções

de coesão e coerência na composição dos manuscritos, muito menos o juízo de

acabamento textual. Além dos escribas havia os copistas, que recebiam, em geral, pela

voz de um leitor o texto a ser reproduzido,

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o copista “domina” sua matéria: é de fato, seu mestre; e talvez,

conforme a opinião mais comum, o seja de direito, caso se pense na

fluidez da maioria de nossas tradições manuscritas. A reprodução dos

textos autorais latinos testemunha aqui e ali, uma preocupação de

autenticidade; a anotação dos textos de poesia em língua vulgar, quase

nunca. [..] assim, a linguagem que o manuscrito fixa continua a ser,

potencialmente, a da comunicação direta. A escrita, salvo exceções,

constitui-se por contágio corporal a partir da voz: ação do copista é

“tátil” (ZUMTHOR, 1993, p. 103).

Por essa razão, a distinção entre autor, escrevente e intérprete para as pessoas

desse período não tinha relevância, o que por muito tempo fez com que o “autor” fosse o

intérprete na performance de uma poesia que, não precisava dizer sua origem. Nesse

período a leitura envolvia a voz, prática que foi valorizada por muito tempo pela tradição

monástica que considerava como uma ajuda à meditação. Segundo Zumthor (1993, p.

105), do século XII ao XIV, com o aumento da circulação do número de escritos, aumento

das fontes disponíveis e as universidades inserindo bibliotecas abertas aos estudantes foi

se desenvolvendo a leitura silenciosa. E a partir do século XV a leitura silenciosa passou

de uma maneira outra para uma imposição. É quando a relação texto-leitor passa para

uma esfera mais íntima, bem como no meio letrado o termo “escrever” passa a ter o

sentido de “compor”. Também, nesse período, passaram a reunir os escritos de um mesmo

autor e atribui-lhe autoria, isto é, a escritura começa a se organizar em livro.

A debilidade ou a aparente irregularidade do recorte do texto

manifestam de outra maneira essa oralidade natural do uso da escrita.

A página se apresenta de modo massivo, às vezes sem querer isolar

sistematicamente as palavras...um pouco à maneira de numerosas obras

literárias de hoje que, justamente, tentam assim atender uma

necessidade vocal! A escritura medieval dissimula ao olho as

articulações dos discursos (ZUMTHOR, 1993, p. 106).

A escrita acaba por estender-se a duas funções: a transmissão de um texto e sua

conservação, o que nem sempre se dava de forma concomitante. Zumthor (1993) usa

como exemplo os textos que serviram de instrução para intérpretes de jogral, que em sua

feitura não tinham a finalidade de conservação, mas que graças a ela manuscritos

importantes chegaram ao nosso conhecimento.

Para o homem medieval a escritura aparece como uma dessas instituições em que

um grupo social pode, de fato, identificar-se, mas em que não pode, no pleno sentido da

palavra, comunicar-se. A classe cavalheiresca, o baixo clero e a maioria dos nobres, por

exemplo, eram analfabetos. O tipo de saber requerido ou impostos por sua situação social

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não tinham relação com a prática da leitura. Como a letra ficava limitada aos manuscritos

necessitava da mediação de um intérprete autorizado, ausente essa mediação ela (a

escritura) “resiste, opacifica, obstrui, como uma coisa. Enquanto técnica, não depende da

ordem da poesia; a poesia não tem o que fazer com ela, a não ser deixá-la simular

utilidades” (ZUMTHOR, 1993, p. 110). Pois bem, o que o medievalista se refere é à

poesia oral: a escritura simula uma utilidade porque ela ainda não era necessária, porque

a poesia estava na voz.

O prestígio da letra escrita contribuiu para mantê-la distante da massa dos

iletrados, para eles “a letra traçada é uma coisa—significante da mesma condição que

toda coisa criada—irrefutável mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças

ou pavores mágicos” (ZUMTHOR, 1993, p. 113). Entretanto, para os príncipes do século

XV, era como um signo de poder: mandavam copiar luxuosos manuscritos musicais que

eram tidos como joias.

A passagem do vocal para o escrito não se deu como uma ruptura, mas de maneira

lenta, pois a natureza da escritura medieval não comportava a função mediadora da voz,

a escrita seguia como forma de registro de um discurso anunciado ou da preparação de

textos destinados para leitura pública. A primeira onda de poesias europeias se origina de

grandes mosteiros ou do meio real, em que os poemas eram colocados por escrito para

reunir em torno do rei a comunidade de seus fiéis destacando seu passado heroico.

Primeiro aparecimento, em nosso horizonte, de uma poesia e de relatos

comemorativos aproximadamente formulados na língua viva comum;

testemunhas imperfeitas e indiretas da presença de uma voz.

Cronologicamente, nos territórios galo-românticos e germânicos (de

longe os mais empenhados nesse projeto de aculturação) segue-se um

eclipse, aparentemente de dois ou três séculos. Deslancha então a

segunda onda de escritura poética em língua vulgar—sem ruptura até

nossos dias (ZUMTHOR, 1993, p.122).

Com essa segunda onda há o enfrentamento e a conquista da língua viva da cultura

popular, que agora figura entre os letrados que precisam fazer um esforço de invenção

para racionalizá-la, ter domínio sobre ela. “Nesse empreendimento, seu mais poderoso

instrumento é a escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coerção vocal

que ainda pesa sobre si: o verso. Donde a difusão de uma prosa narrativa” (ZUMTHOR,

1993, p. 123).

A partir dessas mudanças já não é exclusivo às tradições orais a função da

transmissão de conhecimentos dentro do grupo social, essas tradições vão enfraquecendo,

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e ficando cada vez mais relegadas à margem. “O seu espaço passa a ser ocupado por

‘ciências’ descontínuas, em número crescente, para as quais ou pelas quais o homem cria

uma linguagem, abstrata, empenhando cada vez menos a realidade do corpo”

(ZUMTHOR, 1993. p. 123). Realidade que coloca a escritura num lugar de

inacessibilidade. Longe do corpo, distante da voz, a palavra carrega a legitimidade do

discurso científico e arrasta o peso que ele traz: a forma da língua, suas movências e

permanências e com elas as estruturas gramáticas, regras sintáticas, a rigidez vocabular.

Octavio Paz (2012), em O arco e a lira, expõe que à mediada que a palavra escrita

foi substituindo a voz viva nas relações humanas (quando já intensificava suas diferenças

de hierarquia entre os interlocutores), elas foram modificadas. Para o autor, o livro impõe

ao ouvinte uma lição única sem o direito de perguntar ou questionar. Mas essa ideia leva

em consideração as novas técnicas que, comparadas à forma como a palavra poética era

socializada antes da presença da escritura, criaram um distanciamento entre o homem

comum e a poesia, pois toda palavra supõe a relação do que fala e de quem ouve, e o

universo verbal do poema não contém os vocábulos do dicionário, mas da comunidade.

O que o autor expõe é a diferença que a escritura impôs na relação dos homens

com a palavra poética, que em sua origem era algo para se dizer e ouvir, ao tornar-se algo

que se escreve e se lê, como operação particular, sua leitura vem do que vemos, para o

mexicano, a poesia passa a entrar no corpo pelos olhos e não pelos ouvidos. Contudo, é

importante ressaltar que a escritura não aprisiona o texto, ela lhe confere forma, para o

letrado, ela permite a autonomia de uma recepção livre da mediação de terceiros.

Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja

um corpo—repugna mais que o texto escrito toda percepção que o

diferencie de sua função social e do lugar que ela lhe confere na

comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou

implicitamente; das circunstâncias, enfim, nas quais se faz escutar. O

texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,

intrínseco, devido às polivalências geradas pela formalização poética;

outro, extrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos

entre o momento em que é produzida a mensagem e aquele em que esta

é recebida (ZUMTHOR,1993, p.60).

A comparação não pretende fazer juízo de valor ao texto oral ou escrito, mas sim

diferenciar os efeitos de seus registros. O texto oralizado é uma recepção da recepção,

uma vez que a voz sempre trará para quem ouve a leitura do mediador, essa forma

comporta o elemento sonoro, o sentir e as escolhas de interpretação do mediador, a

maneira que ele elege para colocar no seu corpo o texto e entregá-lo a quem ouve.

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O texto escrito é recepção íntima, é o olhar o leitor sobre a palavra em que suas

significações vão ser orientadas pela governabilidade do tempo em que ele está inserido.

Por isso, a distinção dos registros que põe em causa poesia oral de um lado, poesia escrita

do outro “implica evidentemente que suas formas respectivas não podem ser idênticas.

Nem mesmo os níveis em que elas se constituem, nem os procedimentos que as produzem

podem ser comparados a priori” (ZUMTHOR, 2010, p. 83).

O medievalista entende que a voz poética é onipresente, integrada nos discursos

comum pela performance, ela reúne um instante ímpar porque se diferencia das vozes

cotidianas, função basilar da poesia. E na escritura não acorre da mesma maneira. A

performance não cabe na escritura. Mas, não pretendemos colocá-las como opostas e sim

em perspectiva: “Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se

escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à

autoridade de uma voz” (ZUMTHOR, 1993, p. 154). Em verdade, o que se coloca são as

formas de movências da poesia, que para ele, é o que o leitor ou ouvinte recebe como tal:

não remetendo a ela apenas o texto que informa, mas percebendo a trama do tempo e do

espaço dos discursos que atravessam a matéria daquele grupo social.

Ao olhar a poesia que está na voz e chegou à letra, por perspectivas particulares,

o autor traça a imagem da mensagem poética “em cascata”, uma mensagem que é marcada

por sinais que revelam a natureza figural da poesia, que localizam a partir de modalidades

variadas, específicas de cada sociedade e de seu tempo histórico em nível discursivo e

enunciativo. Entre esses sinais destacam-se dois: o modo restritivo, textual, que se

relaciona à língua; e a sinalização modal, que opera sobre os meios corporais e físicos da

comunicação: “tudo que se refere às grafias, quando se trata de escritura; à voz quando

se trata de oralidade” (ZUMTHOR, 1993, p. 160).

Os sinais textuais e modais carregam muitas diferenças entre si, o modo textual é

limitado pelas imposições linguísticas, as marcas textuais, ele domina o registro escrito.

Enquanto o modal domina as artes da voz, que pela ação vocal age sobre as maneiras que

o corpo físico expressa o texto poético. Combinados esses modos, temos a obra. Em sua

conclusão, o autor data o surgimento do “romance”: 31160-70 na junção da oralidade e

da escritura. Um processo que é designado pela expressão mettre em roman (colocar em

romance), assim os escritos eram glosados em língua vulgar, colocados por escrito para

3 Em seus estudos, no título A letra e a Voz, o autor grafa o termo aspeado. Escolheu-se manter as aspas,

pois em se tratando de período medieval o termo romance ainda não era uma nomenclatura utilizada.

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transmiti-los apenas pela leitura. Atingindo os ouvintes, o “romance” recusa a oralidade

das tradições antigas, que se atenuarão a partir do século XV.

Nessas tradições, a presença dos contos era muito comum, não por acaso, os

contos clássicos foram colhidos da oralidade. Assim, o surgimento do romance, com sua

elevada exigência narrativa ou retórica, com a necessidade de longa duração de leituras e

de audição, era destinado ao meio cavalheiresco e nobre. “O “romance” desmarca tudo o

que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga

estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração” (ZUMTHOR,

1993, p. 267).

Fazendo um paralelo aos escritos de Benjamim (1994), no texto O Narrador, em

que conduzido pela trama da ideia das ações da experiência:

o primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa

é do surgimento do romance no início do período moderno. O que

separa o romance da narrativa epopeia no sentido estrito é que ele está

essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna

possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da

poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que

caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras

formas de prosa—contos de fada, lendas e mesmo novelas—é que ele

nem procede da tradição oral nem a alimenta. O narrador retira da

experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos

outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.

O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado,

que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais

importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los

(BENJAMIN, 1994, p.xx).

Apesar de referir-se a períodos distintos (medieval e moderno), os autores se

aproximam quando pensamos na reprodutividade da palavra e na chegada da tecnologia,

que vai afastar o homem desse convívio comunitário em que a voz é suprema. Os dois

autores marcam o início do texto produzido para o homem solitário, que não necessita de

uma comunidade narrativa para ler. O surgimento do romance coloca a voz como um

instrumento subserviente ao texto escrito que ela tem como função fazer conhecer

mediante a leitura em voz alta. A diferença consiste em

quando da performance oral propriamente dita, teatralmente

desenvolvida, os ouvintes percebem imediatamente, e em bloco, o

autor, o recitante, o narrador e o texto, formando esses quatro elementos

um todo indissociável; na leitura em voz alta, no entanto, o ouvinte só

percebem desse modo o recitante e o texto. (ZUMTHOR, 1993, p. 265).

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A voz perde seu status de palavra viva, fonte insubstituível de informação,

lembrando que estamos falando de uma passagem, o texto que sai da oralidade e vai para

a letra, torna-se cada vez mais matizado pelas cores da prosa, que lhe possibilita abstrair

e refletir sobre si mesmo, e este fim em sim mesmo ele não possuía quando somente no

regime da voz. “O escrito retira suas amarras, se assim posso dizer, aspira ir à deriva,

recusa o presente da voz, complica-se, proclama sua existência fora de nós, fora deste

lugar” (ZUMTHOR, 1993, p. 270).

Mas, ainda com todo esse avanço da escritura, não houve um desaparecimento da

vocalidade, pois em um período em que a leitura era um privilégio, os textos ainda

dependiam de sua recepção por um auditório. Ainda que a presença da escritura

constituísse uma mudança significativa para os paradigmas da época, isso não foi

suficiente para abolir a operação vocal da difusão das obras, muito menos para apagar

completamente dos textos as marcas da oralidade. É por essa razão que o escritor de

língua vulgar, “nesse fim de século XII, transita entre a voz e a escritura, entre um fora e

um dentro: ele entra, instala-se, mas conserva a lembrança mitificada de uma palavra

original, saída de um peito vivo, do sopro de uma garganta singular” (ZUMTHOR, 1993.

p. 273).

O “romance” é entre os gêneros poéticos o único que a tradição vem antes do

século XIII. A sua autotelia reivindica um estatuto que diferencia-se de todas as outras

artes desse período.

A intenção romanesca é menos gozar o mundo, a vida, a linguagem do

que não gozar para, por último, substituí-los por um universo à mercê

do homem. Por isso, só o “romance”, entre as práticas dos séculos XII,

XIII, XIV ainda e, em medida menor, do XV (forçando um pouco, mas

sem muito prejuízo) no quadro, ao mesmo tempo ideal e pragmático,

que designa nosso termo literatura (ZUMTHOR, 1993.p. 276).

Pois bem, os sinais da herança de Apolo ficam ainda mais nítidos quando

pensamos que o “romance” foi o primeiro “gênero” a tirar o texto poético da oralidade e

colocar na forma, caminho que nos leva direto para a literatura. O escritor chama atenção

para a história da palavra literatura, oriunda do latim litteratura que à época de Cícero

significava traçar letras, ou o próprio alfabeto; para os eclesiásticos, o termo se refere à

erudição em geral conferida pelo ensino pagão, tendo assim uma conotação pejorativa.

Quando a tradição medieval elimina essa conotação, utilizando a palavra litterae (séculos

XV- XVI) “os humanistas tendem a restringir a significação, consideram o único

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conhecimento o dos ‘bons’ escritores da Antiguidade, aqueles mesmos que fundam então

o cânone poético e fornecem modelos para a arte de escrever” (ZUMTHOR, 1993,p. 278).

O princípio do cânone vem de um grupo privilegiado que produz e consome os

escritos que passamos a chamar de literatura, um dos alimentos desse cânone é justamente

esta letra que não está perto de todos e que é fortemente individualizada, feita para os

poucos e solitários leitores. “O texto “literário”, pouco depois de sua primeira difusão,

inscreve-se no arquivo justamente denominado “cultura literária”, a esse título

privilegiado, confirmado, desde sua gênese, aquilo que basicamente é um academicismo”

(ZUMTHOR, 1993, p. 283-284).

Sob a herança de Apolo está uma parte da poesia, quando a letra da voz moveu-

se para a Literatura. Ao aproximar a lente para um período mais próximo, notamos que a

formalização de uma obra começa quando vai para a letra escrita, a escritura fixa o verbo,

lhe confere um formato, uma ordem. Apolo representa a revelação desta forma e desta

ordem. Dentro da cultura literária é o cânone que está posto, o texto que é colocado como

um monumento da linguagem a ser apreciado fora do corpo: a Literatura enquanto

instituição.

Assim, desde os primeiros escritos em que só os profissionais das letras tinham

acesso à escrita, até os dias correntes, essa relação distante com a letra ficou como uma

herança. E, num país em que uma porcentagem considerável da população não é

alfabetizada ou é analfabeta funcional, o legado se perpetua. A herança de Apolo é a

herança da exegese das musas, das artes, mas também é a herança do domínio das elites,

do conhecimento da paidéia da formação do homem grego, em que só o homem, filho da

oligarquia, tinha acesso a essa cultura.

No percurso desta pesquisa, tentamos possibilitar o contato do leitor, em

formação, com a poesia. O projeto inicial pretendia transbordar os limites do texto

impresso para a poesia que está na oralidade, bem como outras manifestações artísticas,

contudo dois fatores nos levaram a tomar um caminho diferente. O primeiro foi o tempo,

com um horário reduzido com os intérpretes, cada texto levava mais de um encontro para

ser apreciado, o segundo, foi a recepção dos intérpretes.

Percebemos que a poesia que está na letra, é ainda mais distante destes leitores,

assim optamos por limitar nossas análises à poesia que se materializa na escritura,

utilizando textos em verso e em prosa de autores paraenses. A palavra não deve ser o

bloqueio que separa o leitor da poética, pois é nela que produzimos sentido,

materializamos o mundo, subjetivamos a vida.

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Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que

fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem

coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamento porque não

pensamos com pensamentos mais com palavras, não pensamos a partir

de uma suposta genialidade ou inteligência, mas a partir de nossas

palavras. E pensar não é somente “raciocinar” ou “calcular” ou

“argumentar”, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é

sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o

sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com palavras

(LARROSA, 2017, p. 16-17).

Privilegiar a letra é uma tentativa de mostrar que nela também vive uma voz,

latente desejo de “verbo in delírio”, deixar o leitor perceber que a palavra está escrita em

seu corpo, que ele é palavra viva. É a materialidade inoxidável, ímpar que, como a própria

poesia, resiste aos tempos.

1.2 O caminho para o Olimpo

“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao sofrimento e o desamparo, acender uma

luz qualquer, uma luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que nasce das mãos e

do espírito dos homens”.

(Toda poesia, Ferreira Gullar)

Por que a poesia não pode ser vivida enquanto manifestação artística potencial

em sua significação para formação do leitor? Uma possível resposta à questão é o lugar

que essa situação está arraigada: o paradigma positivista, que não aceita os saberes

poéticos, renega a subjetividade. A ciência, o academicismo e, especialmente, o

Positivismo, influenciaram e influenciam o lugar da poesia nas instituições. Seria

interessante falar desse caminho de descoberta desde a racionalidade clássica até a ciência

pós-moderna, mas seria demasiado longo para o que proponho nesta sessão. Assim, na

tentativa de entender o caminho para o Olimpo, me debruçarei em dois momentos: o

ponto de partida da racionalidade clássica, para em seguida ir ao paradigma da ciência

moderna.

É na antiguidade clássica que temos o primeiro registro do afastamento da poesia

com o ser humano:

[...] Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três

pontos afastado da natureza.

– Perfeitamente, respondeu.

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– Ora, exatamente como ele encontra-se o poeta trágico, por estar, como

imitador, três graus abaixo do rei e da verdade,

o que, aliás, se dá com todos os imitadores.

[...]

– Logo, a arte de imitar está muito longe da verdade, sendo que por isso

mesmo dá a impressão de poder fazer tudo, por

só atingir parte mínima de cada coisa, simples simulacro… (597b,

598c) (PLATÃO apud NUNES, 2011, p. 11).

O diálogo apresentado por Benedito Nunes (2011) é o recorte de quando Platão

expulsa os poetas da República. O filósofo relega o poeta ao ostracismo, não podendo

este fazer parte da vida pública. Para o filósofo, o conhecimento sensível era irrelevante

e somente a partir da razão se poderia chegar ao conhecimento verdadeiro. Ainda nas

palavras do professor:

embora o poeta trágico não imite como o pintor a obra dos outros,

ambos são colocados na mesma categoria do mimetés, que imitaria tanto

a obra do rei, que é a ideia, o eîdos ou a essência, da qual está três graus

distanciado, quanto as coisas do mundo sensível e os objetos fabricados,

dos quais apenas produz o simulacro, ou seja, uma duplicada ou

triplicada imagem que é um correspondente ilusório da modelar

verdade suprassensível ou da verdade suprema (NUNES, 2011, p.11).

O conhecimento poético é empírico e emocional, assim, não poderia estar em

acordo com o conhecimento teórico e contemplativo, o verdadeiro conhecimento. Fares

(2015, p. 4), em Poéticas Orais, um caminho para educação do sensível, confirma: “o

poeta é expulso da República, porque as artes são condenáveis por se regularem pela

mimese, imitação, simulacro, o poeta representa o mundo sensível, cópia do Ideal

imutável. Por outro lado, a palavra dos poetas tinha poder de moldar as almas”.

Assim, quando a poesia é expulsa da República, o lugar que lhe resta é o Olimpo,

como fábula teogônica, como narrativa dos poderes dos deuses. A poesia, como

representação do divino, perde sua significação mais humana, passa a uma função

mistificada, quando na verdade tinha um papel basilar na educação do homem (Paideia)

e era uma arte de formação do ser humano. Por esse distanciamento, a poesia deixou de

ser parte da formação dos homens para ficar no plano do sublime. Vernant, em Mito e

pensamento entre os gregos (1973, p.76), comenta o lugar da poesia antiga:

Este cuidado de formulação exata e enumeração completa confere à

poesia antiga uma retidão quase ritual — mesmo quando ela visa de

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início o divertimento, como é caso de Homero. [...] A este ordenamento

do mundo religioso está intimamente associado o esforço do poeta para

determinar as “origens”. Em Homero, trata-se apenas de fixar as

genealogias dos homens e dos deuses, de definir a proveniência dos

povos, as famílias reais, de formular a etimologia de certos nomes

próprios e o áition de epítetos culturais. Em Hesíodo, essa pesquisa das

origens toma um sentido propriamente religioso e confere à obra do

poeta o caráter de uma mensagem sagrada.

Os escritos de Vernant (1973) corroboram com a concepção de que a poesia está

em paragens que poucos conseguem alcançar e essa ideia se mantém e ganha força

quando as instituições fizeram da poesia o lugar da erudição. Menezes (1995, p. 145),

quando enreda O poder da palavra com a memória para trazer a deusa Mnemosyne,

aquela que está destinada a sacralização da memória e a função poética, os aedos, os

poetas inspirados pela musa, resgatam pelos seus cantos fatos esquecidos; guardiães da

memória entre o rememorar e o inventar, “é uma espécie de memória viva de seu povo”.

Vernant (197, p. 73-78), também reconhece no poeta o poder da “chave do

tempo”, entregue por Mnemosyne. Com ela o poeta pode estar presente no passado, pode

trazer ao presente este passado que “acontece como uma dimensão além”.

Mnemosyne preside, como se sabe, à função poética. [...]

Possuído pelas Musas, o poeta é o intérprete de Mnemosyne,

como o profeta, inspirado pelo deus, o é de Apolo. [...] O saber

ou a sabedoria, a sophia, que Mnemosyne dispensa aos seus

eleitos é uma “onisciência” de tipo divinatório. [...] Mas, ao

contrário do adivinho que deve quase sempre responder às

preocupações referentes ao futuro, a atividade do poeta orienta-se

quase exclusivamente ao passado.

Historicamente, a maneira que sociedade pode cooptar a poesia é relegá-la aos

estudos canônicos, à Teoria Literária. Na escola, a poesia assume um caráter literário dos

pontos de vistas etnocêntricos. Tal representação marca os leitores, que mantém essa

recepção primeira. Assim, a escola está

entre as instâncias responsáveis pelo endosso do caráter literário de

obras que aspiram ao status de literatura, a escola é fundamental. A

escola é a instituição que há mais tempo e com maior frequência vem

cumprindo o papel de avalista e de fiador do que é literatura. Ela é uma

das maiores responsáveis pela sagração ou pela desqualificação de

obras e de autores. Ela desfruta de grande poder de censura estética—

exercida em nome do bom gosto—sobre a produção literária (LAJOLO,

2001, p. 19).

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A escola enquanto instituição regula as leituras, dita que textos contém

literariedade e somente esses entram no hall das obras que podem contribuir para uma

formação crítica do leitor. Formação esta que se mede de acordo com as fichas de leitura,

questionários e respostas objetivas acerca de uma suposta interpretação pessoal. Pois

nessas atividades a experiência do leitor é deixada de fora visto que há um limite para a

sua recepção textual.

Comumente, esta censura estética faz com que as poéticas fiquem às margens,

isto é, fora dos muros da escola, uma tradição amparada na educação cartesiana que

condiciona o texto poético à

obra como mensagem pedagógica, com estruturação monocêntrica e

necessária (inclusive na própria férrea constrição interna de metros e

rimas), reflete uma ciência silogística, uma lógica da necessidade, uma

consciência dedutiva pela qual o real pode manifestar-se ao poucos, sem

imprevistos e numa única direção, partindo dos princípios primeiros da

realidade(ECO, 2001, p. 55).

O real precisa ser controlado, por isso o horizonte de expectativas de uma leitura

precisa de muro, que normalmente está escrito em uma resposta em azul contida no livro

didático do professor, e aquilo que ultrapassa o ditado por essas linhas é considerado

errado ou incoerente.

Moisés (2004), ao elaborar uma análise acerca do conceito de poesia, salienta

que seu traço essencial característico está na conexão do sujeito com o mundo exterior.

A educação cartesiana elimina essa relação quando o leitor é obrigado a pensar com uma

“imaginação formal”, que não permite que ele enxergue dentro da escola o seu próprio

mundo, não enxergue a si mesmo. A linguagem poética fica formatada à competência

enciclopédica. Essa formatação do leitor inibi o que para Zumthor (2014, p. 101) é

a “imaginação”, faculdade poética, age segundo duas modalidades. Ela

parte de uma apreensão, intensamente concreta, do real particular, mas

esta apreensão se faz acompanhar (sem que os tempos nisto se

distinguam sempre) de uma colocação das coisas e de uma

recomposição dos elementos percebidos, em virtude de analogias

diversas: da sorte destaca-se, de maneira inesperada, relativamente à

exigência do instante presente, a necessidade verdadeira. Quando essa

“imagem” reveste a linguagem e a anima, esta, pronunciando-se a si

própria, diz, descobre, cria formas, de outro modo inacessíveis, latentes

no que foi um “objeto”. Sem dúvida é assim que as crianças sentem,

pensam e se exprimem, pelo tempo em que permanecem puras.

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É essa pureza, o pensar liberto, que o paradigma positivista não permite ao leitor.

A poesia na escola segue amarrada ao paradigma dominante, que não aceita que as

experiências da vida comum sejam entrelaçadas ao texto poético. Quando Santos (1997,

p. 54) diz que “todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”, o autor

rompe com a estruturas firmadas pelo modelo vigente, que a todo instante nos convida a

renegar o senso comum pelo conhecimento científico. Para chegarmos a este estágio seria

necessário abandonarmos este modelo, o positivista, e entrarmos na ciência pós-moderna

que, em acordo com a teoria do sociólogo aponta para um novo senso comum estético:

um senso comum reencantado.

Pois bem, a discussão toma um caminho que não pretende desviar do foco,

discutir o modelo atual de paradigma é essencial para entender porque a poesia dentro das

instituições mantém-se distante do leitor. Modelo este que não envolve a arte, deixando

as manifestações artísticas próprias do texto poético no espaço destinados às poucas

“atividades culturais” que o currículo necessita, quando na verdade

a arte, mais que conhecer o mundo, produz complementos do mundo,

formas autônomas que se acrescentam às existentes, exibindo leis

próprias e vida pessoal. Entretanto, toda forma artística pode

perfeitamente ser encarada, se não como substituto do conhecimento

científico, como metáfora epistemológica: isso significa que, em cada

século, o modo pelo qual as formas da arte se estruturaram reflete—à

guisa de similitude, de metaforização, resolução, justamente, do

conceito em figura — o modelo pelo qual a ciência ou, seja como for,

a cultura da época veem a realidade (ECO, 2001, p. 54-55).

De tal modo, Fares (2015, p. 6) considera:

A arte expressa as mudanças sociais de forma poética e, ao fruir uma

obra artística, apreende-se tempos, comportamentos, lugares, éticas,

com prazer e sem obrigação. Essa compreensão da arte como

representação da realidade faz que algumas ciências se apropriem de

objetos estéticos para a leitura das sociedades: a história, a sociologia,

a psicologia, têm nos textos literários, nos patrimônios edificados, nos

conjuntos escultóricos, em telas de época, fontes de pesquisa. Ainda

que, muitas vezes, não percebamos, o cotidiano é constituído de

experiências poéticas.

Os autores demonstram como o texto poético pode suprir as necessidades

inerentes à formação do leitor. Todos os benefícios por eles citados não são levados em

consideração quando, historicamente, nosso primeiro contato com a poesia parte do

estudo das escolas literárias, sempre nos sendo colocado o caminho cronológico da

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Literatura Brasileira em comparação à Literatura Portuguesa. Nossas referências são

formadas a partir do que vem de fora, e se pensarmos por uma perspectiva geográfica, de

cima, como o monte Olimpo. E se incluirmos na Literatura Nacional, que também dita o

cânone estamos no entrelugar, pois o que está abaixo de nós também regula a nossas

leituras.

A forma como o pensamento eurocêntrico foi estruturado em nossa cultura,

comprometeu todo nosso processo de educação e construção cultural. No caso da poesia,

dentro da escola, a recepção ficou condicionada à dimensão intocável dos escritos

literários e não à essência do ser humano, já que “o espírito científico deve lutar

incessantemente contra as imagens, contra as analogias, contra as metáforas”.

(BACHELARD, 1985, p. x). Ainda somos condicionados por esse pensamento, dando

valor ao que primeiramente está sendo produzido, estudado e criado dentro da

formalidade cientificista. Os saberes culturais estão à margem, quando, na verdade, a

escola deveria reconhecer que

toda relação com o saber, enquanto relação de um sujeito com seu

mundo é a relação com o mundo e com a forma de apropriação do

mundo: toda relação com o saber apresenta uma relação epistêmica,

mas qualquer relação com o saber comporta também uma relação de

identidade: aprender faz sentido por referência à história do sujeito, às

suas expectativas, às suas referências, à sua concepção de vida, à sua

relação com os outros, à imagem que tem de si e a que quer dar de si

aos outros (CHARLOT, 2000, p. 72).

Ao olhar para que o leitor sabe, os conhecimentos não escolares, muda-se a

forma de olhar para a sociedade e de compreender as relações sociais, as atividades levam

a outras práticas, caminhos que não privilegiam somente a experimentação, abordagens

metodológicas que se afastam da visão positivista e para que o texto poético torne-se ato

poético, “um ato essencial que ultrapassa em um só jorro as imagens associadas à

realidade” (BACHELARD, 1990, p. 80). Uma educação que não busque apenas a

formação do sentido etimológico da palavra: colocar na forma, que olhe por perspectiva

que entenda que

educar é criar cenários, cenas e situações que, entre elas e eles, pessoas,

comunidades aprendentes de pessoas, símbolos sociais e significados

da vida e do destino possam ser criados, recriados, negociados e

transformados. Aprender é participar de vivências culturais em que, ao

participar de tais eventos fundadores, cada um de nós se reinventa a si

mesmo (BRANDÃO, 2002, p. 26).

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A perspectiva de educar colocada pelo autor abrange a essencialidade da união

entre o espaço educacional e a cultura, “criar cenários” é deixar que as vivências do leitor

que, por sua vez, formam sua identidade, sejam integradas ao ensino por uma educação

individual, que além de respeitar suas origens também permita que estas sejam

compartilhadas, o que possibilita que todos os sujeitos em processo de aprendizado

possam contribuir para a educação cultural coletiva.

Tudo aquilo que vivemos, ouvimos ou lemos fica incorporado de

alguma forma naquilo que mais nos é caro, ou seja na nossa identidade.

Então, sem negar nossa individualidade, podemos dizer que nosso “eu”

é constituído de outros “eu”. Somos culturamente polifônicos, para

lembrar Bakhtin. Sendo assim, nossas escrituras e cada um de nossos

discursos, mesmo com nossas particularidades, contém falas, escritas e

concepções de outros, e isso tem tudo a ver com a vida (BASTOS, 2013,

p. 273-274).

Fares (2008) ao falar da cultura amazônica, também toca nas trajetórias de vidas

pessoais e coletivas, evidencia quanto o espaço faz parte do que o leitor é, assim, a cultura

não pode ser vista de forma coletiva, pois cada indivíduo, ainda que compartilhe um

mesmo lugar com outros, tem sua dinâmica, especificidades e modo de vida, quando

não existe uma cultura, uma identidade amazônica não singular, a

compreensão desse espaço é sempre concebida no plural. As diferentes

manifestações culturais trazem marcas do hibrido e da mestiçagem, e

reconhecem as presenças indígenas, africanas, libanesas, nipônicas,

entre outras tantas. São essas vozes poéticas de múltiplos sotaques e

línguas que fundam a Amazônia, mesmo sem ser necessário comprovar

quais os desenhos mais fortes e os rascunhos mais claros (FARES,

2008, p. 102).

Nesse sentido, a poesia se entrelaça com as vivências do leitor. Ligada a outras

linguagens, pode ajudar a tecer a concepção leitora a partir de uma perspectiva

integralizadora de saberes, em que a sua identidade cultural seja valorizada e dê lugar ao

afloramento da função poética. Mas, é necessário perceber que a identidade amazônica é

múltipla, cada leitor traz a sua própria Amazônia.

Paes Loureiro (1995, p.55) entende que a cultura ribeirinha e urbana, embora

tenham motivações criadoras distintas, estão entrelaçadas numa miscelânea de saberes e

contribuições que formam a identidade do homem amazônico, pois “a cultura está

mergulhada num ambiente onde predomina a relação do homem com a natureza e se

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apresenta imersa numa atmosfera em que o imaginário privilegia o sentido estético dessa

realidade cultural”

Como moradores do ambiente urbano, é comum ainda olharmos a Amazônia

com exotismo e, por vezes, acabamos reforçando a ideia de que a relação rio/floresta é

algo menor. Seduzidos pelo desejo de ser cosmopolita/universal, muitas vezes,

renegamos nossa identidade cultural diante da cultura eurocêntrica. Como resultado de

uma fusão híbrida e conflituosa de índios, europeus e negros somos uma diversidade

caleidoscópica, é preciso percebê-la e respeitá-la para que o pensamento eurocêntrico não

seja maior que nossa cultura. Loureiro (1995, p. 54) comenta em seus escritos o que ele

chama de síntese judicativa formulada por Benedito Nunes:

Somos como povo, dotados de uma cultura própria, que tem sua

fisionomia distintiva, o seu ethos peculiar, onde componentes de

extração portuguesa se fundem àqueles caracteres primitivos, indígenas

e negros, que os nossos modernistas foram os primeiros a contrastar

com o arcabouço da cultura intelectual, também denominada superior,

cultura fatalmente importada, porque de origem europeia, e que

presidiu, desde os tempos da Colônia, a formação de nossos bacharéis,

juristas, letras e eruditos.

A poesia é um caminho para olhar essa diversidade caleidoscópica, o texto

poético nos traz o sentido estético da realidade cultural, mantém a memória das vozes que

formam nossa identidade. Loureiro (1995) coloca a poesia como reveladora da beleza

escondida no mundo, como alimento do pensamento e como aumento da imaginação pela

sua ação e linguagem, através do texto literário, em que o horizonte amazônico do rio e

da floresta é representado na escrita de seus autores. “O imaginário estetizante a tudo

impregna com sua viscosidade espermática e fecunda, acentuando a passagem do banal

para o poético. Aquela é geradora do novo, do recriado” (LOUREIRO, 1995, p. 62).

Pelo poético podemos olhar a Amazônia, abrir os outros sentidos que ficam

adormecidos quando, por estar imersos nesse imaginário, deixamos de notar o quanto ele

nos constitui. Nossa relação com as águas, por exemplo, é diferente. Josebel Fares, ao

discutir essa relação em Imagens Poéticas das águas Amazônicas, expõe como as águas

são um traço identitário das amazônias.

Rios, praias, lagos e igarapés são espelhos permanentes da paisagem,

onde narcisos disputam com as belezas naturais. Os territórios, então,

espreitam-se ou alargam-se espacialmente, e as águas aprisionadas

pelas terras desenham nas esferas líquidas traçados de diferentes

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formas. A rede hidrográfica pincela o mapa, com cores ora ocres, ora

claras, das águas dos rios amazônicos (FARES, 2013, p. 20).

Nossa proximidade com os rios é indiscutível; a chuva da tarde, os mitos que

perpassam as águas, a Iara que canta nos rios e igarapés, a Cobra Grande que se esconde

embaixo da cidade e o Boto que seduz as mulheres são alguns dos elementos que

constituem esse imaginário que está em nós. Pela poesia ressignificamos essa relação. É

possível sentir a chuva de diversas formas após a leitura de Banho de Chuva (2010), do

poeta Paulo Nunes? Ou mesmo ver a cidade diferente sob o olhar de Alfredo, de Belém

do Grão Pará (2004), de Dalcídio Jurandir?

Segundo Loureiro (2001, p.371), para compreender-se a Amazônia, a

experiência humana nela acumulada deve-se, portanto, levar em conta seu imaginário

social, pois todo o verdadeiro humanismo deve também fundar-se além das conquistas da

ciência. O caminho pelo poético pode ser a possibilidade para entender esse imaginário

social, quando Barthes (2013) diz que a literatura é realista, é o ponto de vista de quem

vê nela a chave para a memória de um lugar, a chave que abre a porta para o encontro

com outras épocas: “a literatura faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles;

ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso” (p. 19)

Então, diante dessas questões, é necessário subverter as regras metodológicas do

modelo educacional vigente, a maneira que a tradição acadêmica apresenta a poesia,

relegada somente à noção de literatura, aos estudos canônicos, à teoria literária. Paul

Zumthor (2014) em Performance, Recepção e Leitura, em relação aos estudos literários

e poesia, esclarece:

Nessa tarefa de desalienação crítica, o que tenho de eliminar logo é o

preconceito literário. A noção de “literatura” é historicamente

demarcada, de pertinência limitada no espaço e no tempo: ela se refere

à civilização europeia, entre os séculos XVII ou XVIII e hoje. Eu a

distingo claramente da ideia de poesia, que é para mim a de uma arte

da linguagem humana, independente de seus modos de concretização e

fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas.

(ZUMTHOR, 2014, p. 16. Grifo do autor)

No tocante à crítica literária aqui aludida é possível traçar uma conexão com o

pensamento de Santos (2002), quando fala do conceito de autor (caráter inacabado da

racionalidade estético-expressiva) que, para ele, subjaz à organização do domínio artístico

e literário da modernidade. Igualmente, quando explora o conceito de artefactualidade

discursiva:

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Todas as obras de arte têm de ser criadas ou construídas. São produto

de uma intenção específica e de acto construtivo específico. A natureza,

a qualidade, a importância e a adequação dessa intenção e dessa

construção são estabelecidas por meio de um discurso argumentativo

dirigido a um público alvo (as pessoas e as instituições que constituem

o domínio artístico e literário). Como essa argumentação é

potencialmente interminável, os momentos de fixação (o cânone, a

tradição estética, as instituições de consagração e os prêmios) são

sempre precários porque os argumentos que os apoiam não mantém seu

poder retórico por muito tempo. Entendida nesses termos, a

racionalidade estético- expressiva une o que a racionalidade científica

separa (causa e intenção) e legitima a qualidade e a importância (em

verdade) através de uma forma de conhecimento que a ciência moderna

desprezou e tentou fazer esquecer, o conhecimento retórico (SANTOS,

2002, p. 77-8).

As palavras do sociólogo trazem uma verdade cruel: justificam o lugar da arte

na sociedade para o cânone, para a crítica e para as instituições. A poesia, nesse sentido,

enquanto arte, é idealizada, está no terreno da contemplação dos escolados. Deste ponto

de vista, não é concebida como Zumthor diz “arte da linguagem humana independente de

seus modos de concretização”. Assim, é na predominância da racionalidade estético-

expressiva que encontraremos o mais depressa possível o que nos fará avançar com a

poesia para um o lugar comum, descer do Olimpo.

A poesia não pretende explicar a realidade, mas pode dar sentido à vida, o poeta,

enquanto criador, permite que a poesia amplie a espírito humano. Por isso o texto poético

não deve ser utilizado como um instrumento dentro das aulas de Gramática. Quando, na

escola, busca-se essa finalidade, usando o texto poético para aprender as regras da língua

destrói-se a essência da poesia.

Faz-se necessário compreender que a fruição do leitor está para além da leitura

e decodificação da mensagem e dos signos presentes no texto. A fruição pressupõe o

prazer que há no texto poético, que permite que o leitor não seja passivo no ato de ler,

mas o “estudo” da poesia, subvertendo os obstáculos curriculares por uma leitura que

permita ao leitor a fruição do texto poético.

À direita, o prazer é reivindicado contra a intelectualidade, o clericato:

é o velho mito reacionário do coração contra a cabeça, da sensação

contra o raciocínio, da “vida” (quente) contra a “abstração” (fria) [...] À

esquerda, opõe-se o conhecimento, o método, o compromisso, o

combate, à “simples deleitação” (no entanto, e se o próprio

conhecimento fosse por sua vez delicioso?) (BARTHES, 2015, p. 30).

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A questão que Barthes propõe: “e se o próprio conhecimento fosse por sua vez

delicioso?” É uma possibilidade. A partir do debate epistemológico, ter outra perspectiva,

quando a poesia puder ser vista como arte feita de homem comum para o homem comum,

quando o ambiente acadêmico puder ser o meio que leva, que faz a ponte, entre poesia e

leitor comum. Por uma educação sensível que não busque amparo em teorias ausentes e

distantes da realidade do leitor, para que a poesia desça do Olimpo para o seio dos

homens.

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2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética

“Ler um poema é imprimir uma viagem ao sabor do sonho”

(Luís Heleno Castilo)

Aos que desconhecem o conceito de Estética da Recepção, a impressão primeira

pode ser de algo complexo e distante, como outra abordagem teórica que se limita apenas

à exegese da linguagem. Equivocam-se. A Estética da Recepção é a teoria em que, pela

primeira vez, o leitor pode ter autonomia. Zilberman (1989, p. 6), em Estética da

Recepção e história da Literatura, define como “uma teoria que reflete sobre o leitor, a

experiência estética, as possibilidades de interpretação e, paralelamente, suas

repercussões no ensino”, pois, na história da Literatura, o foco mudou muitas vezes e os

estudos em Estética da Recepção olham para leitor como o proprietário do texto, senhor

de seus sentidos.

Essa perspectiva de leitura data de um período recente, a Estética da Recepção

surge na década de 1960 com Hans Robert Jauss, seu fundador, que para superar os limites

que as escolas formalista e marxista deixaram, formula uma teoria que tem como foco o

leitor. A abordagem de Jauss entende que a historicidade da Literatura se encontra quando

a obra literária é experimentada pelo leitor de forma dinâmica.

Abandonando a dicotomia autor-obra, Jauss (1979) inaugura uma nova

perspectiva para os estudos literários, a nova relação em questão era obra-leitor. Por muito

tempo as atenções se voltaram para o autor, com a ideia de “o que o autor quis dizer?”,

para depois a obra ter um lugar de destaque com “o que a obra pretende dizer?”. Época

em que a crítica concentrou-se cada vez mais na relação autor-texto “abandonando o leitor

nas sombras de uma área confinada apenas à história ou à sociologia da comunicação

literária” (LIMA, 1979, p. 10). O pensamento de Jauss confere relevância ao que deveria

ser o núcleo da produção de qualquer obra, o leitor.

Sob este aspecto, a estética da recepção apresenta-se como uma teoria

em que a investigação muda de foco: do texto enquanto estrutura

imutável, ele passa para o leitor, “o terceiro Estado”, conforme Jauss o

designa, seguidamente marginalizado, porém não menos importante, já

que é a condição da vitalidade da literatura enquanto instituição social.

(ZILBERMAN, 1989, p. 10-11)

A corrente de abordagem que Jauss propõe traz uma nova lente para os estudos

literários; a Literatura enquanto sincrônica à sociedade, ao seu momento histórico e

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social, amplia a realidade. Desta forma, a recepção do leitor diz sobre a sociedade da

época, assim a estética da recepção permite:

de um lado aclarar o processo atual em que se concretizam o efeito e o

significado do texto para o leitor contemporâneo e, de outro, reconstruir

o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado

diferentemente, por leitores de tempos diversos. (LIMA, 1979, p. 46).

Desse modo, a Estética da Recepção, além convidar o leitor a uma participação

mais ativa em relação à significação da leitura, confere à obra uma importância social.

Entender a recepção do leitor está para além dos limites da obra, contempla o pensamento,

os valores da sociedade de cada época. O leitor é visto em seu papel genuíno, o sujeito a

quem a obra é destinada, a relação passa a ser vista como uma via de mão dupla. O leitor

contribui com o texto trazendo suas experiências outras, a obra assume um caráter de

abertura em que “o significado da obra depende totalmente dos sentidos que o leitor

deposita nela.” (ZILBERMAN, 1989, p. 26). Esse caráter de obra aberta possibilita ao

leitor integrar o texto as suas significâncias, quando:

a poética da obra “aberta” tende, a promover no intérprete “atos de

liberdade consciente”, pô-lo como centro ativo de uma rede de relações

inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser

determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos

definitivos de organização fruída; qualquer obra de arte, embora não se

entregue materialmente inacabada, exige uma resposta livre e inventiva,

mesmo porque não poderá ser realmente compreendida se o intérprete

não a reinventar (ECO, 2011, p.41)

Pensando nesses “atos de liberdade consciente”, o método recepcional parte de

que cada leitor traz consigo um repertório de saberes, em outras palavras, “cada fruidor

traz uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente condicionada,

uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais” (ECO, 2001, p. 40).

Considerar todos esses aspectos permite ao intérprete uma leitura mais livre, mais

confortável.

Ao possibilitar que o leitor receba a obra aberta, permite-se conhecer a amplitude

do conceito de poesia. E quando partida do contexto escolar (por um novo olhar), este

leitor também ampliará a forma de perceber seu contexto sociocultural, compreender as

relações sociais e de olhar para si mesmo. Entender a estética da recepção enquanto teoria-

método é notar que o leitor-intérprete é o elemento imprescindível na feitura desta

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pesquisa. Os caminhos tecidos, os textos escolhidos e a metodologia da pesquisa envolve

sua recepção.

O encontro com os intérpretes é sempre um momento marcante. Em 2016

iniciou-se a pesquisa na escola Olímpia. Em acordo com a professora Atena, a primeira

turma a participar da pesquisa foi a dos alunos da EJA, no turno da noite, que conta com

dois dias na semana para as aulas de Língua Portuguesa. Como a professora já estava

desenvolvendo um projeto de leitura com a turma do 6º ano, solicitou que aguardasse a

turma de 2017 para dar início à pesquisa.

O tempo disponibilizado para o contato com os intérpretes foi o último horário

da primeira aula na semana. Cada horário conta com — apenas — trinta minutos, devido

um acordo informal da escola com os alunos para que as aulas terminem mais cedo.

Assim, o tempo destinado à pesquisa foram os trinta minutos finais de uma aula que inicia

às 19:00h e termina às 20:10h. Levando em consideração que alunos só entram em sala

às 19:20h e a professora ainda precisa “dar o conteúdo”, o tempo para as atividades é

cerca de trinta minutos por semana.

Ao procurar a recepção primeira, aquela que os intérpretes trazem de suas

experiências com os textos de outrora, buscou-se saber em roda de conversa por uma

pergunta simples e direta: “O que é poesia?”.

— Poesia é aquele monte de verso rimado né, professora?

— Poesia é um texto que fala de amor.

— Poesia a gente estuda na aula Português.

— Poesia é fazer rimas com as palavras.4

(Intérpretes, EJA)

As respostas correspondem às expectativas que os estudos teóricos indicavam,

pois no domínio das letras, “as convenções, transmitidas por aparelhos como a escola,

acabam dirigindo o modo como o texto é lido e compreendido. Como as convenções são

aceitas pela comunidade, as interpretações suscitadas por elas são igualmente acatadas e

respeitadas” (ZILBERMAN, 1989, p.28).

Na tentativa de sair dessas convenções, procurei ouvir os intérpretes. Pedi que

falassem. Perguntei que tipos de textos eles gostariam que fossem lidos em sala. Neste

momento, ainda estava tateando o campo, por uma abordagem que tenta conhecer o leitor

e também fazê-lo participar da construção dos textos escolhidos para a pesquisa. Ao que

4 Os textos em itálico indicam sua procedência na voz oral.

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eles responderam de forma positiva e em acordo com a maioria o primeiro texto atende

ao pedido: “A senhora poderia trazer uma poesia do dia da consciência negra?”.

Desta forma, dentre os autores pré-selecionados, o primeiro autor a ser partilhado

foi Bruno de Menezes (2005) com o poema Batuque.

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Batuque

— "Nêga qui tu tem?

— Maribondo Sinhá!

— Nêga qui tu tem?

— Maribondo Sinhá!"

Rufa o batuque na cadência alucinante

— do jongo do samba na onda que

banza.

Desnalgamentos bamboleios sapateios

cirandeios,

cabindas cantando lundus das cubatas.

Patichouli cipó-catinga priprioca

Baunilha pau-rosa orisa jasmin.

Gaforinhas riscadas abertas ao meio,

crioulas mulatas gente pixaim...

— "Nêga qui tu tem?

— Maribondo Sinhá!

— Nêga qui tu tem?

— Maribondo Sinhá!"

Sudorancias bunduns mesclam-se

intoxicantes

no fartum dos suarentos corpos lisos

lustrosos.

Ventres empinam-se no arrojo da

umbigada,

as palmas batem o compasso da toada.

— "Eu tava na minha roça

maribondo me mordeu!..."

Ó princesa Izabel! Patrocínio! Nabuco!

Visconde do Rio Branco!

Euzébio de Queiroz!

E o batuque batendo e a cantiga cantando

lembram na noite morna a tragédia da

raça!

Mãe Preta deu sangue branco a muito

"Sinhô moço"...

— "Maribondo no meu corpo!

— Maribondo Sinhá!

Roupas de renda a lua lava no terreiro,

um cheiro forte de resinas mandingueiras

vem da floresta e entra nos corpos em

requebros.

— "Nêga qui tu tem?

— Maribondo Sinhá!

— Maribondo num dêxa

— Nêga trabalhá!..."

E rola e ronda e ginga e tomba e funga e

samba,

a onda que afunda na cadência sensual.

O batuque rebate rufando banzeiros,

as carnes retremem na dança carnal!...

— "Maribondo no meu corpo!

— Maribondo Sinhá!"

— É por cima é por baxo!

— E por todo lugá!"

(MENEZES 2005. p. 10-20)

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O texto foi entregue impresso e a leitura realizou-se em conjunto, de modo que

cada intérprete pudesse dar o tom ao poema, pois “a maneira pela qual é lido o texto

literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo tempo, como

absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a obra da consciência

do leitor” (ZUMTHOR, 2015, p. 52). A recepção foi compartilhada de forma oral, cada

intérprete comentou de sua recepção: “Parece um RAP.”, “Achei parecido com umas

batalhas de rimas dos RAPS”(Intérpretes, EJA 2016).

Desde o título do poema, já é possível fazer uma relação com as vivências dos

intérpretes, uma vez que o nome “batuque” é conhecido por todos, que foi imediatamente

relacionado ao ritmo música regional, mas principalmente à música que faz parte do

cotidiano dos alunos, em sua maioria moradoras das periferias, o RAP5.

Ao fim do primeiro encontro, os intérpretes sugeriram trazer uma caixa acústica

e reproduzir o que eles chamam de “batida”. Essa sugestão é mais que uma contribuição,

é a forma de trazer as experiências dos intérpretes para somar às atividades propostas pela

pesquisa.

O que produz a concretização de um texto dotado de uma carga poética

são, indissoluvelmente ligadas aos efeitos semânticos, as

transformações do próprio leitor, transformações percebidas em geral

como emoção pura, mas que manifestam uma vibração fisiológica.

Realizando o não dito do texto lido, o leitor empenha sua própria

palavra às energias vitais que a mantêm (ZUMTHOR, 2014, p.54).

No encontro seguinte, esperava era que eles trouxessem as músicas que

comentaram, mas para minha surpresa, a turma pediu para colocar a “batida” do RAP

para que, em conjunto, fazermos a leitura do poema Batuque ao som da caixa acústica.

Desta forma, conjugada à leitura do poema percebemos como a performance está sempre

ligada ao texto poético, conforme Zumthor (2014, p. 55):

Todo texto poético é, nesse sentido, performativo, na medida em que aí

ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz.

Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica

e as reações que eles provocam em nossos centros nervosos. Essa

5 Originalmente sigla RAP, vem do inglês Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia), é usada no Inglês britânico

desde o século XVI, e especificamente significando "say" ("dizer", ou "falar", "contar o conto") desde o

século XVIII. Fazia parte do Inglês vernáculo afro-americano nos anos de 1960, significando "conversar",

e logo depois disto, no seu uso atual, denota o estilo musical. Fonte:

https://www.dicionarioinformal.com.br/rap/. Acesso em 17.03.2018

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percepção, ela está lá. Não acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a

ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do

texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela

que, este texto, eu o reconstruo, como meu lugar de um dia. E se

nenhuma percepção me impele, se não se forma em mim o desejo dessa

(re)construção, é porque o texto não é poético; há um obstáculo que

impede o contato das presenças. Esse obstáculo pode residir em mim

ou provir de hábitos culturais (tal como chamamos o gosto) ou de uma

censura.

Confirmando essas palavras, dois intérpretes, em poucas linhas, expressam o que

para eles foi a experiência com o poema:

Sobre a aula passada foi muito legal divertido porque todo mundo se

uniu teve várias brincadeiras, batalha de rima teve poesia. A gente leu

pra caralho kkk (Odin, EJA, 2016)

Na aula passada foi legal, os meninos fizeram batalha de rima, a

professora leu junto com a batida eu gostei muito, a gente troca ideias

super legal. (Dione, EJA, 2016)

O texto poético começa a transformar a recepção dos intérpretes, o conceito de

poesia já começa a ter outra perspectiva que envolve brincadeira e diversão, a “troca de

ideias” sugere que a intérprete sente-se participante na construção dos sentidos do texto.

Zilberman (1989), ao traçar a história da Estética da Recepção, comenta ensaios

dos primeiros autores a discutir o lugar do leitor, entre eles Stanley Fish, que discorre

sobre como a escola enquanto “comunidade interpretativa” — as responsáveis pela

estabilidade das interpretações — que conduz a recepção dos leitores de forma fechada e

limitada, ou seja, condicionando a forma que o texto deve ser lido. No caso do texto

poético, que costuma ser trabalhado de forma puramente curricular por uma perspectiva

teórico e historicista, a recepção fica comprometida ao padrão do texto literário, cuja a

função, no currículo, é questionar a memorização do leitor no que concerne às suas

características formais, o que não permite a fruição leitora.

Para o leitor, esse prazer constitui o critério principal, muitas vezes

único, de poeticidade (literariedade). Com efeito, pode-se dizer que um

discurso se torna de fato realidade poética (literária) na e pela leitura

que praticada por tal indivíduo. Mais do que falar, em termos

universais, da “recepção do texto poético”, remeterá, concretamente, a

“um texto percebido (e recebido) como poético (literário) (ZUMTHOR,

2014, p. 28).

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Ao permitir que o texto poético encontre os intérpretes para além da formatação

curricular, o que temos é uma recepção que envolve prazer entre o objeto estético e o

fruidor, “porque a experiência estética não é regulada por conceitos, ela se torna mais apta

tanto a abrigar prenoções, quanto a permitir a visualização ou realização de experiências

novas” (LIMA, 1979, p. 21).

No primeiro dia de aula sobre essa música não consegui entender pois

não consegui me concentrar, mas já na segunda aula já foi muito legal,

consegui entender a música de uma forma bem legal. Nossa como é

bom a gente inovar de vez em quando! Gostei muito da ideia da

professora, pois ela trouxe uma novidade pra gente, agora acredito que

todos os alunos estão gostando. Só falta alguns deixarem a vergonha e

entrar de vez nessa música que é muito legal (Adônis, EJA 2016).

O texto poético torna-se esteticamente acessível na medida em que pode ser lido

e percebido segundo várias perspectivas, abrir o texto poético é deixar passível de

inúmeras interpretações diferentes, sem que isso interfira em sua singularidade.

Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada

fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original.[...]uma obra

dotada de certa “abertura”; o leitor do texto sabe que cada frase, cada

figura se abre para uma multiformidade de significados que ele deverá

descobrir; inclusive, conforme seu estado de ânimo, ele escolherá a

chave de leitura que julgar exemplar, e usará a obra na significação

desejada (fazendo-a reviver, de certo modo, diversa de como

possivelmente ela se lhe apresentara numa leitura anterior) (ECO, 2001,

p. 40-43).

Mas, como propor a “abertura” do poema se o texto poético comumente é tido

como o lugar das palavras de sentido vago e significado impreciso?

A abertura está na recepção primeira, quando o intérprete, ao ouvir os primeiros

versos de Batuque, imediatamente relaciona-o ao RAP. Minha atitude, enquanto

pesquisadora, é saber respeitar essa recepção e possibilitar que ele mostre os caminhos

que o permitiram fazer esta relação. Ao apresentar o poema, importa não impor uma

recepção, a priori, pois,

um sentido único se imponha de chôfre: o espaço em branco em torno

da palavra, o jogo tipográfico, a composição espacial do texto poético,

contribuem para envolver o termo num halo de indefinição, para

impregná-lo de mil sugestões diversas” (ECO, 2001, p. 46)

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A fruição da intérprete sobre o poema, foi descrita de forma pontual:

achei legal, achei igual um rap, uma aula diferente bem interessante. Eu

gostei e queria que tivéssemos mais vezes atividades assim (Nice, EJA

2016)

O fruidor deve interpretar o poema livremente. Isso porque segundo Eco (2001,

p. 46),

Com essa poética da sugestão, a obra se coloca intencionalmente aberta

à livre reação do fruidor. A obra que “sugere” realiza-se de cada vez

carregando-se das contribuições emotivas e imaginativas do intérprete.

Se em cada leitura poética temos um mundo pessoal que tenta adaptar-

se fielmente ao mundo do texto, nas obras poéticas deliberadamente

baseadas na sugestão, o texto se propõe estimular justamente o mundo

pessoal do intérprete, para que este extraia de sua interioridade uma

resposta profunda, elaborada por misteriosas consonâncias.

Quando o leitor faz do ato de leitura um encontro com a sua história, com o seu

conhecimento, o texto se concretiza em confluência com ele. Se o texto poético em

conjunto com o fruidor puder ser a manifestação do que ele vive, este texto não se

encerrará. É essa faculdade do poético que liga a obra ao leitor, que liga a poesia à cultura,

na realidade amazônica em que o “batuque alucinante” chega ao mundo físico como um

conjunto infinito de construção de sentidos, que estão para além do texto e que fazem o

intérprete fruir, é a poesia que desce de céus, que sai do Olimpo “e ginga e tomba e funga

e samba.”

2.1 Letras que contam: formação do leitor

Apagou o cigarro na areia e esgueirou-se pelo quintal para se

juntar às mulheres. Espreitei de longe. A tia tinha estendido no chão os

papéis que havia recebido do meu pai. Assim que o viu assomar, Rosi

perguntou-lhe:

— Explique como é que se faz?

— Faz quê?

— Como é que uma pessoa consegue ler? Eu queria tanto

saber...

— Isso demora a aprender, Rosi.

— Eu vi como você faz. Você passa o dedo pelas linhas e vai

mexendo os lábios. Já fiz o mesmo e não escuto nada. Explique-me qual

é o segredo. Eu aprendo rápido.

O pai revirou os olhos e passeou as mãos sobre as folhas que

jaziam na poeira.

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— Para ler esses papéis, Rosi, você precisa ficar parada.

Completamente parada, os olhos, o corpo, a alma. Fica assim um

tempo, como um caçador na emboscada.

Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso

daquilo que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela.

E iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas

dentro das letras estão as vozes. Cada página é uma caixa infinita de

vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido. E foi assim que

falou Kaitini Nsambe.

Rosi ajoelhou-se perante os papéis e permaneceu muito parada,

à espera que as letras lhe falassem (COUTO, 2015, p. 229).

Quando foi que deixamos nossos alunos ouvir as vozes dentro das letras?

Quando permitimos que percebessem a caixa infinita de vozes?

Refletir sobre a formação do leitor é crucial para nos fazer entender como a

recepção do texto poético está diretamente ligada com a ausência da leitura literária na

formação escolar. O que temos é uma cadeia que começa no desencontro do leitor com o

texto literário e que se dá, geralmente de forma obrigatória, passando pelo discurso

pedagógico da necessidade dos conteúdos até o texto poético pretexto para a

normatização da língua.

Em outras palavras, a prática de leitura segue um roteiro em que o leitor precisa

comprovar que leu o texto por meio de uma ficha de leitura ou exercício de interpretação,

além de não haver uma interação da experiência individual de cada aluno com o texto.

Tal prática ficou denominada por muitos teóricos como escolarização da leitura literária.

Distanciando-se de qualquer crítica a essa forma de ensino, faz-se importante pensar no

que Magda Soares (1999) no texto A escolarização da Literatura Infantil e Juvenil

comenta:

Não há como ter escola sem ter escolarização de conhecimentos,

saberes, artes: o surgimento da escola está indissociavelmente ligado à

constituição de “saberes escolares”, que se corporificam e se

formalizam em currículos, matérias e disciplinas, programas,

metodologias, tudo isso exigido pela invenção, responsável pela criação

da escola, de um espaço de ensino e de um tempo de aprendizagem (p.

20).

Não estamos livres da escolarização da literatura e, se a escola é o lugar em que o

aluno terá contato com a palavra poética é necessário pensar maneiras para que a

escolarização não seja um ato violento com a poesia e com o leitor. O caminho que

buscamos é reconhecer o papel da escola, bem como a escolarização, pois, negá-la é negar

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também a escola. A crítica que a autora faz é à escolarização da literatura de forma

inadequada, “que se traduz em sua deturpação, falsificação, distorção, como resultado de

uma pedagogização ou uma didatização mal compreendidas que, ao transformar o

literário em escolar, desfigura-o, desvirtua-o, falseia-o” (SOARES, 1999, p. 22).

A escolarização, muitas vezes, consente um caráter normativo ao texto literário,

aspecto que formaliza, no sentido etimológico da palavra, o pensamento do leitor, uma

vez que a leitura de qualquer texto sempre é precedida de uma avalição, pois,

sempre a leitura feita terá que ser demonstrada, comprovada, porque a

situação é escolar, e é da essência da escola avaliar (o simples fato de

se estar sempre discutindo que é preciso não avaliar explicitamente, de

se criarem estratégias as mais engenhosas para verificar se a leitura foi

feira, e bem feita, evidencia como a leitura é escolarizada) (SOARES,

1999, p.24)

Assim a prática de leitura torna-se apenas uma ferramenta para o ensino da língua,

método conhecido e criticado por todos nós, como no trecho que se seguirá do romance

A elegância do ouriço (2008), de Muriel Barbery. Nele, a autora espelha uma situação

muito comum:

Portanto, hoje de manhã, quando, além da chatice habitual de uma aula

de literatura sem literatura e de uma aula de língua sem inteligência da

língua, tive a sensação de ser uma coisa qualquer, não consegui me

segurar. A sr. Maigre explicava um ponto sobre o adjetivo qualificativo,

com a desculpa de que ele estava sempre ausente das nossas relações,

“quando vocês já deviam ser capazes de empregá-lo desde a segunda

série”. “Não é possível que hajam alunos tão incompetentes em

gramática”, acrescentou olhando especialmente para Achille Grand-

Fernet. Não gosto de Achille, mas, ali, concordei com ele quando fez a

pergunta. Acho que esta se impunha. Além do mais, que uma professora

de língua conjugue o verbo haver com o sentindo de “existir” na terceira

pessoa do plural, isso me choca. “Mas para que serve a gramática”, ele

perguntou. “Você deveria saber”, respondeu a senhora-eu-sou-paga-

para-ensinar-lhes. “Bem, não”, respondeu Achille com sinceridade,

pelo menos dessa vez, “ninguém nunca se deu ao trabalho de nos

explicar isso.” A sra. Maigre deu um longo suspiro, do tipo “será que

ainda tenho que aguentar certas perguntas estúpidas?” e respondeu:

“Serve para falar bem e escrever bem”.

Aí então, achei que ia ter um ataque cardíaco. Nunca ouvi nada tão

inepto. E com isso não quero dizer que é errado, quero dizer que é

realmente inepto. Dizer a adolescentes que já sabem falar e escrever que

a gramática serve para isso é como dizer a alguém que é preciso ler uma

história dos banheiros através dos tempos para fazer xixi e cocô. É sem

sentido! Se ela tivesse nos mostrado, com exemplos, que precisamos

conhecer um certo número de coisas sobre a língua para bem utilizá-la,

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então, por que não? Seria um início de conversa (BARBERY, 2008. p.

166-167).

A justificativa empregada pela professora no trecho acima é frequente, uma vez

que se torna confortável jogar sobre o leitor a responsabilidade da ignorância da língua.

A autora traz uma reflexão ainda mais complexa quando a narradora pensa o estudo da

língua como questão estética:

Mas acho que a gramática é uma via de acesso à beleza. Quando a gente

fala, lê ou escreve, sente se fez ou leu uma frase bonita. Somos capazes

de reconhecer uma bela construção ou um belo estilo. Mas, quando

sabemos gramática, temos acesso a outra dimensão da beleza da língua.

Saber gramática é descasca-la, olhar como ela é feita, vê-la toda nua, de

certa forma. E aí é que é maravilhoso. Porque pensamos: “Como isto é

bem-feito, como é bem elaborado!”, “Como é sólido, engenhoso, rico,

sutil” Eu, só de saber que há várias naturezas de palavras e que devemos

conhecê-las para concluir sobre seu uso e suas possíveis

compatibilidades, isso já me transporta (BARBERY, 2008. p.168).

A compreensão da língua enquanto objeto estético passa por uma prática de

leitura que precisa ser embalada pelo gosto de ler, lembrando Roland Barthes (2015) em

O prazer do texto, que teoriza sobre o texto de prazer e o texto de fruição, colocando o

primeiro como “aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não

rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (p. 15). Nesse sentido, o

texto contempla o prazer estético suscitado pela personagem e que provoca reações

agradáveis. Já o texto de fruição vai além, é a escrita que também causa espanto e dor no

leitor é

aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até

um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas

do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas

lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem

(BARTHES, 2015, p. 20-21).

A respeito da fruição, lembro o conto Era uma vez, de Maria Lúcia Medeiros

(1994), que descreve uma personagem em plena fruição leitora:

Às vezes, é claro, a irmã mais velha encontrava a menina debulhando-

se em lágrimas, grossas lágrimas, o livro aberto, o personagem

esperando a emoção passar, e a irmã esperando que ela fechasse o livro

tão incomodativo. Mas um segundo só, e quem a espiasse veria e

ouviria as gargalhadas ruidosas, sonoras, o livro ao lado, o personagem

esperando passar aquele ataque de riso, e a pessoa que espiava,

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esperando que Deus olhasse pela cabecinha daquela menina devoradora

de livros (MEDEIROS, 1994, p.37).

Amparada nessa ideia de fruição, é necessário refletir sobre a mediação que a

escola faz entre a leitura e o leitor, uma vez que, pela equivocada escolarização, a fruição

estética é usurpada dele. A atitude da professora em classe é espelho da prática de ensino

como um todo, o que ela fala sobre a gramática também funciona para a forma como a

leitura é incorporada (colocada no corpo) ao leitor: algo que você deve fazer por motivos

de falar e escrever bem. Esse discurso fundamenta a prática do ensino de ligar ao texto

atividades que visam o conteúdo pelo conteúdo, assim o leitor precisa seguir uma cartilha

de comportamento, ter de cada texto apenas a recepção que o currículo permite,

porque o discurso didático esvazia o texto literário de seu potencial,

congelando-o em definições e classificações, ou usando-o com outros

objetivos tais como transmitir conhecimentos, ensinar regras morais,

refletir sobre drogas ou aborto na adolescência e, principalmente,

ensinar regras gramaticais (WALTY, 1999. p.51).

O que a citação nos remete é a leitura institucionalizada, ou seja, as obras

escolhidas, selecionadas e fragmentadas que são apresentadas aos leitores, para Soares

(1999) este é outro aspecto que a escolarização inadequada as literatura contém: a seleção

limitada de autores e obras que não utiliza critérios apropriados para suas escolhas:

colocam-se textos clássicos de autores consagrados de forma fragmentada, textos de

representatividade insuficiente, além dos textos de autoria dos próprios autores do livro

didático, comumente utilizados de forma instrutiva e prática.

“Ao ser transferido do livro de literatura infantil para o livro escolar, o texto

literário deixa de ser um texto para emocionar, para divertir, para dar prazer, torna-se um

texto para ser estudado” (SOARES, 1999, p.43). A escolarização literária que autora

defende é aquela em que o leitor não precise decifrar mecanicamente o texto nas

atividades de interpretação feito um caça palavras, que ele possa mergulhar em suas

significâncias, navegar em suas possibilidades, voar com o deslimite da palavra e deixar

que as ações necessárias ao estudo daquilo que é textual venham com a formação do

leitor. Dessa forma, o discurso didático não se sobrepõe ao literário, o conteúdo não toma

frente o poético.

Estudiosos que teorizam sobre o papel da escola na formação do leitor, como os

já citados, ilustram que as lacunas deixadas pela didatização da literatura são resultados

de um controle para evitar que se formem leitores críticos, alimenta-se a ideia de que ser

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leitor é uma questão hábito, como se o prazer pela leitura fosse algo inato ao ser humano.

Mas, como uma criança, jovem ou adulto pode gostar de algo que não conhece? É sabido

que o hábito da leitura é um privilégio, por isso, aos invés de condenarmos a escola é

importante lembrar que

Não há por que temer as regras ou rituais, condenando-os a priori. Antes

importa conhece-los. Não há porque temer a escola e o uso que faz da

literatura, mesmo porque a própria literatura não é inocente. Por outro

lado, muitas vezes a escola é o único lugar em que a criança tem acesso

ao livro e ao texto literário. Numa sociedade empobrecida, a escola não

pode prescindir de seu papel de divulgação dos bens simbólicos que

circulam fora dela, mas para poucos. A literatura deve circular na

escola, pois urge formar um leitor sensível e crítico, que perceba o

sentido do ritual, faça parte dele sem se submeter cegamente (WALTY,

1999. p. 54).

Neste ponto devemos lembrar de nossa própria formação, somos filhos desse

sistema cartesiano, o que não nos impede de olhar para nossa formação e pensar uma

nova educação que nos conduza por outras perspectivas. Para Antônio (2002), a forma

mecanicista por que caminha a experiência com a palavra faz com que o leitor perca a

dimensão expressiva que contém os significados não acostumados da potência poética; a

linguagem enquanto expressão sensível e criadora que o leitor têm, antes de ser formatado

pelo conteúdo. Alberto Manguel (1997), em Uma história da leitura, comenta sobre os

limites que são socialmente impostos ao leitor:

Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as

convenções de nossa sociedade em relação à alfabetização—

canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder—,

como também determinam e limitam as formas pelas quais nossa

capacidade de ler é posta em uso (p. 85).

Refletir sobre os métodos que nos formaram leitores é recordar os procedimentos,

as estratégias didático-pedagógicas para que todo o conteúdo pudesse ser finalizado.

Neste ponto, chamo atenção para a leitura direcionada pelas fichas de leitura com

questões que incentivam o aluno a “tirar” do texto as respostas com questões

interpretativas que não permitem que o leitor explore sua capacidade imaginativa, quando

na leitura do texto não se busca o texto, mas a resposta da pergunta que o texto trará.

Essas práticas acabam por fazer com que o leitor acostume-se a não ler. Ítalo Calvino

(1999) em Se um viajante em uma noite de inverno, ao colocar o leitor como personagem,

tece uma crítica por um diálogo provocador:

— E ela critica os livros que você lê?

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— Eu? Eu não leio livros! — diz Inério.

— O que você lê, então?

— Nada. Acostumei-me tão bem a não ler que não leio sequer o que me

aparece diante dos olhos por acaso. Não é fácil: ensinam-nos a ler dede

criança, e pela vida afora a gente permanece escravo de toda escrita que

nos jogam diante dos olhos. Talvez eu também tenha feito certo esforço

nos primeiros tempos para apender a não ler, mas agora isso é natural

para mim. O segredo é não evitar as palavras escritas. Pelo contrário: é

preciso observá-las intensamente, até que desapareçam (CALVINO,

1999, p. 55).

Ao que parece, a didatização da leitura acaba fazendo que os leitores olhem as

palavras até que elas desapareçam, passem insípidas aos sentidos. Mas como olhar para

o texto? Como ensinar o que o leitor precisa aprender pela leitura sem esse método que

já formou tantas pessoas? A visão que Jorge Larrosa (2015) apresenta em Pedagogia

Profana nos parece uma alternativa. O autor entende leitura em sala de aula como uma

lição:

Uma lição é uma leitura e, ao mesmo tempo, uma convocação à leitura,

uma chamada à leitura. Uma lição é a leitura e o comentário público de

um texto cuja função é o abrir o texto a uma leitura comum. Por isso, o

começo da lição é o abrir o livro, num abrir que é, ao mesmo tempo,

um convocar. E o que se pede aos que abrir-se o livro, são chamados à

leitura senão a disposição de entrar no que foi aberto. O texto, já aberto,

recebe àqueles que ele convoca, oferece hospitalidade. Os leitores,

agora dispostos à leitura, acolhem o livro na medida em que esperam e

ficam atentos. Hospitalidade do livro e disponibilidade dos leitores.

Mútua entrega: condição de um duplo devir (LARROSA, 2015, p. 139).

Um primeiro estranhamento que podemos ter na proposição do autor é o

descondiconamento do termo “lição”, pois esse nos refere quase que de imediato à

expressão “lição de casa”, que por sua vez, nos sugere aos métodos e práticas por nós

aqui questionados. Larrosa (2015) ao que parece não gosta de “palavra acostumada”

(BARROS, 2013, p. 322), o mesmo autor diz que na lição a leitura aventura-se no ensinar

e no aprender e que essa relação envolve algo particular ao leitor, mas também envolve a

relação com o outro. E dentro dessas relações está o ensinar e o aprender; o professor

como aquele que dá o texto a ler, que escolhe uma lição como quem escolhe um presente.

Por isso, as escolhas de cada texto não deveriam falar algo para o leitor, mas falar

com o leitor. Estabelecendo uma relação com a palavra em que o leitor possa alcançar o

sentido comum do texto, o que está próximo da experiência e recepção comum, mas que

principalmente, que ele possa chegar ao que lhe é particular na leitura. O importante é no

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encontro com a palavra “não se busque o que o texto sabe, mas o que o texto pensa. Ou

seja, o que o texto leva a pensar” (LARROSA, 2015. p. 142).

No retorno de minha pesquisa in locu, uma grande dificuldade que tive: perdi a

turma que estava trabalhando no ano anterior. Como eram alunos da quarta totalidade da

EJA, passaram para o primeiro e ano e por isso eu não poderia mais acompanhar a turma.

O espaço que contava era o cedido pela professora Atena e, se ela não tinha mais aulas

com aqueles alunos, eu não poderia continuar as atividades com eles. O trabalho foi

interrompido pelas atividades curriculares, avaliações e recuperação, fazendo com que eu

só fosse autorizada a voltar no início no ano letivo de 2017, sem saber que com isso

perderia a turma com a qual já construíra uma relação, os alunos que transformaram

Batuque em RAP. Uma ruptura marcada pela frustração, pelo afeto e pela necessidade de

voltar aos primeiros passos de aproximação com outros alunos. Porém, uma semente

havia sido plantada, naquele momento não sabia, mas ainda veria dessa primeira turma

uma flor.

E assim retornei para uma turma nova, novamente na quarta totalidade da EJA,

outra vez a professora Atena explicou suas condições: ela não sairia de sala, o que tinha

eram os minutos finais de sua aula, foi-me colocado um acordo tácito, em que também

deveria ajudar no conteúdo do livro, como se fosse uma estagiária durante as atividades

que ela desenvolvesse, em nenhum momento me foi imposto, mas foi como uma gentileza

para quem estava me cedendo espaço. Pois bem, a primeira unidade do livro trabalhava

justamente com o gênero: poema.

Nessa unidade, os textos traziam uma proposta de trabalho interdisciplinar com:

poemas, pinturas entre outras obras. O primeiro texto era uma imagem de uma tela Segue

Seco (2010) de Gérson Guerreiro; havia também outra tela reproduzida: Os retirantes

(1982) de Gontran Guanaes Netto; além de outros poemas como é possível conferir nas

imagens a seguir, mas o texto principal que conduzia toda unidade era o poema Morte e

vida Severina de João Cabral de Melo Neto.

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Imagem 01: Libro didático I

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Imagem 02: Livro Didático II

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Imagem 03: Livro didático III

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Imagem 04: Livro didático IV

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Imagem 05: Livro didático V

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Imagem 06: Livro didático VI

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Imagem 07: Livro didático VII

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De saída, os alunos já mostraram dificuldade com o poema, percebi que o fato

dele não corresponder à realidade sócio cultural dos alunos, especialmente no que tange

ao espaço geográfico que é desconhecido por eles. Os intérpretes não conseguiam

identificar-se com o solo seco, os retirantes famintos de fome e de sede. Outra

preocupação deles era com relação às questões que estavam após o poema para serem

interpretadas, um hábito comum, pois,

ao discutir a desestruturação a que é submetida a narrativa nos livros

didáticos; cabe aqui apontar o tratamento que neles é dado à poesia,

quase sempre descaracterizada: ou se insiste apenas em seus aspectos

formais—conceito de estrofe, verso rima, ou o que é mais frequente, se

usa o poema para fins ortográficos ou gramaticais (SOARES, 1999,

p.26)

A necessidade de conduzir o conteúdo do livro foi bastante frustrante, visto que,

ele reproduzia mais uma vez a escolarização inadequada que comentamos, como por

exemplo as respostas formatadas que vem como sugestão no livro do professor onde se

lê direcionamentos como: “Espera-se que os alunos percebam que...”; “Sugestão de

resposta:”; ou seja, o poema de João Cabral não compõe o livro de forma que o leitor

possa apropriar-se do texto, tanto o texto completo quanto as telas que foram selecionadas

e descontextualizadas do repertório cultural dos leitores. Este processo faz com que o

material seja direcionado e transformado em um suporte para que os alunos entendam o

gênero poema.

Ao acompanhar a feitura das atividades do livro, percebi a dificuldade da turma,

uma vez que os alunos seguiam tentando “interpretar” o poema, visto que Atena informou

as páginas do livro e as atividades que seriam realizadas, avisando que posteriormente

seria realizada a correção das questões. Nesse ponto, observei que os alunos iam direto

para as questões, sem antes ler o texto. Então, não consegui mais acompanhar aquela aula

sem interferir, propondo à Atena realizar a leitura do poema por entender que:

o professor, quando dá a lição, começa a ler. E seu ler é um falar

escutando. O professor lê escutando o texto como algo em comum,

comunicando e compartilhando. E lê também escutando a si mesmo e

aos outros. O professor lê escutando o texto, escutando-se a si mesmo

enquanto lê, e escutando o silêncio daqueles com os quais se encontra

lendo. A qualidade de sua leitura dependerá da qualidade dessas três

escutas. Porque o professor empresta sua voz ao texto, e essa voz que

ele empresta é também sua própria voz, e essa voz, agora

definitivamente dupla, ressoa como uma voz comum nos silêncios que

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devolvem ao mesmo tempo comunica, multiplica e transformada.

(LARROSA, 2015, p. 141).

Emprestar a voz foi uma forma de aproximá-los da palavra e, por isso, li mais de

uma vez. E li de novo para que eles pudessem acompanhar, depois pedi que lêssemos em

grupo, ao que eles timidamente acompanharam a leitura. Após uma pausa, perguntei o

que lhes chamara a atenção na leitura, recebendo como resposta comentários sobre a

musicalidade do poema, suas rimas, o nome do personagem e alguns versos que gostaram.

A mudança de comportamento em relação ao poema foi notável, trazer o poema

pela voz possibilitou aos alunos fazer uma conexão com o texto, onde puderam ver que

“existe uma coisa que está ali, uma coisa feita de escrita, um objeto sólido, material, que

não pode ser mudado; e por meio dele nos defrontamos com algo que faz parte do mundo

imaterial, invisível, porque é apenas concebível, imaginável” (CALVINO, 1999, p. 78).

Ou seja, eles perceberam que por mais que eles nunca tivessem tido contato com aridez e

seca presentes nos versos de Morte e vida Severina, eles podiam imaginar. Não pretendi

influenciar na recepção do poema, mas retomando minha experiência leitora compreendo

o quanto a presença da voz pode ser um convite à leitura, pois

a defesa pela retomada de uma atitude oral cotidiana na didática da sala

de aula hoje, a nosso ver, contempla diversos desejos. O primeiro, e

decisivo, é a necessidade de reinterpretação de uma forma de

transmissão de conhecimento que o passado histórico nos

proporcionou. Dizer um texto em voz alta, de certo modo, é a

recuperação da técnica que os aedos, jograis e menestréis nos legaram.

Pergunta-se, quem não gosta de ouvir histórias? (FARES; NUNES,

1999, p.113).

O dizer do texto foi um convite para que eles mesmos também o lessem. De alguns

mais tímidos quase não ouvíamos a voz, que transparecia a insegurança de juntar as letras

e formar palavras, de uni-las em um período, demonstrando a hesitação na pronúncia de

cada verso: “Senhor dessas ses-ma-ri-as? É assim que se fala, professora?”6 (Apolo, EJA

2017). Tudo isso reunido num esforço muito bonito de quem ainda talvez não tivesse

ouvido a sua própria voz.

A leitura seguiu até que cada um, ao seu tempo, pudesse ler, fazendo as pausas

que precisava, encontrando uma palavra pela primeira vez. “O que é sina, professora?”

(Bia, EJA, 2017), ou mesmo vencendo a sua vergonha: “Professora, eu não sei não. Vou

ler tudo doido, tem problema?” (Afrodite, EJA, 2017). A cada leitura, foram percebendo

6 Os textos em itálico indicam sua procedência na voz oral.

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que nós não estávamos lendo para responder as perguntas, líamos o texto para ler, pois

antes de pedir que o aluno fale sobre o texto ou tenha uma recepção sobre ele, é necessário

saber se ele consegue ler, como nos coloca Manguel (1997):

Ler em voz alta, ler em silêncio, ser capaz de carregar na mente

bibliotecas íntimas de palavras lembradas são aptidões espantosas que

adquirimos por meios incertos. Todavia, antes que essas aptidões

possam ser adquiridas, o leitor precisa aprender a capacidade básica de

reconhecer os signos comuns pelos quais uma sociedade escolheu

comunicar-se: em outras palavras, o leitor precisa aprender a ler. (p.85)

O aprender a ler que o autor se refere está vinculado ao que o leitor traz consigo,

visto que cada leitor não é algo esvaziado pronto para ser preenchido pelos textos que

encontra na escola. O ato de leitura é uma troca entre o que está sendo lido e o que o está

sendo suscitado pelo texto, que contém muitas lacunas a serem preenchidas pelo leitor. O

texto é “um mecanismo preguiçoso e à, medida que passa da função didática para a função

estética, o texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa [...]. Todo texto quer que

alguém o ajude a funcionar” (ECO, 2012, p. 37).

A presença da voz foi a presença do poema, porque ler não é apenas verbalizar as

palavras diante dos olhos, quando lê-se para os alunos o próprio poema começa a falar

aos ouvintes. Mas apesar de minhas tentativas de deixá-los mais livres para a recepção do

poema, Atena lembrava das questões que precisavam ser respondidas. Na sequência das

atividades havia uma sessão intitulada “Para estudar o gênero”, que trazia um poema de

Mário Quintana: “poeminha do contra”. Novamente realizamos a leitura em conjunto e

individualmente, depois conversamos sobre o poema. Para evitar que os intérpretes se

prendessem às questões, sugeri que falassem um pouco sobre o poema ao que um deles

comentou: “Professora, eu entendi que ‘Eles passarão’, quer dizer que eles podem ir na

frente e ‘Eu passarinho’, quer dizer que eu vou devagarzinho porque eu não tô com

pressa.” (Páris, EJA, 2015).

Na resposta do intérprete a simplicidade da recepção livre, em que ele diz de

maneira jocosa e sem receio o que os versos lhe passam e aqui encontramos

a poesia fecunda continuamente a capacidade de criação, a capacidade

imaginativa, assim como é por ela fecundada. A confabulação poética

e a atividade imaginativa conjugam-se permanentemente. A

imaginação poética abre caminhos novos campos simbólicos que

constituem a consciência cultural (ANTÔNIO, 2002, p. 75).

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A capacidade imaginativa do intérprete gerou riso e concordância dos colegas,

mas Atena, seguindo a sugestão de resposta do livro do professor, pediu que ele lesse

outra vez para melhor compreender. Tentei explicar que a recepção do aluno era outra

possibilidade e o que se esperava era que o leitor alcançasse a contradição, o que ele fez

foi buscar os “deslimites da palavra” (BARROS, 2013, p. 281).

Por essa experiência podemos notar o tratamento que é dado ao texto poético, à

sua desestruturação e à sua descaracterização, visto que o poema de Quintana estava na

unidade como um exemplo e não tinha conexão com o Morte e Vida Severina.

Ressalto que não pretendo com essas considerações fazer uma análise do livro

didático nem julgar a maneira que professora Atena conduz sua disciplina, e sim trazer

para este texto um exemplo de escolarização da leitura. Ao observar a distorção que a

poesia sofre ao ser transferida para o livro didático, insisto na questão colocada ainda no

início da sessão: a escolarização da leitura. Retomo Magda Soares (1999) ao tratar dos

objetivos da leitura de textos nos livros didáticos quando comenta que os exercícios não

conduzem o leitor para o que seria importante no texto literário como a percepção da

literariedade, a estética e o espaço de recriação que o texto evoca no leitor.

Assim, nesses primeiros encontros com os intérpretes, percebi que o desencontro

com a poesia é ainda maior da palavra poética que vem pela letra. Diante do texto escrito

eles ficavam cegos para as palavras, não conseguiam deixar que elas lhe contassem

histórias, muito menos perceber a caixa de vozes infinitas. Assim, devido pouco tempo

disposto para a feitura desta pesquisa, concluímos que trazer a letra pela letra seria a

escolha mais acertada para propor uma nova recepção poética, deixando a presença da

voz na leitura dos textos em verso e prosa. Ou seja, quando nestes escritos nos remetermos

à oralidade não significa a ausência da palavra escrita, mas à leitura dela.

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2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível

ÍTACA

Quando, de volta, viajares para Ítaca,

roga que tua rota seja longa,

repleta de peripécias, repleta de conhecimentos.

Aos Lestrigões, aos Ciclopes,

ao colérico Posêidon, não temas:

tais prodígios jamais encontrarás em teu roteiro,

se mantiveres altivo o pensamento e seleta

a emoção que tocar teu alento e teu corpo.

Nem Lestrigões, nem Ciclopes,

nem o áspero Posêidon encontrarás,

se não os tiveres imbuído em teu espírito,

se teu espírito não os suscitar diante de ti.

Roga que tua rota seja longa,

que, múltiplas, se sucedam as manhãs de verão.

Com que euforia, com que júbilo extremo

entrarás, pela primeira vez, num porto ignoto!

Faze escala nos empórios fenícios

para arrematar mercadorias belas:

madrepérolas e corais, âmbares e ébanos

e voluptuosas essências aromáticas, várias,

tantas essências, tantos arômatas, quantos puderes achar.

Detém-te nas cidades do Egito – nas muitas cidades –

para aprenderes coisas e mais coisas com os sapientes zelosos.

Todo o tempo em teu íntimo Ítaca estará presente.

Tua sina te assina esse destino,

mas não busques apressar sua viagem.

É bom que ela tenha uma crônica longa, duradoura,

que aportes velho, finalmente, à ilha,

rico do muito que ganhaste no decurso do caminho,

sem esperares, de Ítaca, riquezas.

Ítaca te deu essa beleza de viagem.

Sem ela não a terias empreendido.

Nada mais precisa dar-te.

Se te parece pobre, Ítaca não te iludiu.

Agora tão sábio, tão plenamente vivido,

bem compreenderás o sentido das Ítacas.

(Poemas, Konstantinos Kaváfis, por Haroldo de Campos)

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A educação escolar é uma jornada para Ítaca. E nela, há muitos Ulisses, ansiosos

por chegar a seu destino final: a formação acadêmica. A história de qualquer herói

pressupõe desafios e na educação formal eles começam cedo: antes mesmo de uma

criança completar o desenvolvimento dos processos que envolvem a fala, ela já deu início

ao convívio com outras crianças num espaço que é destinado à aprendizagem. A educação

escolar é uma jornada que se estende por muitos anos de nossa vida, e se aí incluirmos a

educação profissionalizante, esse tempo se dilata ainda mais.

A maneira que se tem olhado para o caminho da educação é sempre pensando no

seu resultado. Ao fim de cada ano letivo, o objetivo é passar para o outro levando em

consideração o conteúdo que foi ensinado, a maneira que esse conhecimento chega ao

aluno não tem sido muito privilegiada. A educação que está posta é a jornada que tem

como foco apenas a chegada a Ítaca.

Como seria essa jornada se a chegada à Ítaca fosse consequência de tudo que foi

aprendido durante o caminho? Se nessa formação coubesse mais de sentir e menos e

saber?

Uma formação que olhe menos para os resultados e mais para a jornada é o que a

educação sensível busca. Educar para transformar o que sabemos e reconhecer as formas

de sensibilidade, olhar para o outro respeitando o que ele é e sabe. Outrar-se. Educar por

uma experiência sensível.

A maneira que se entenderá o sensível neste texto caminha pelo poético, uma vez

que a pesquisa propôs despertar a sensibilidade dos alunos pela palavra poética. Não se

pretende com isso ensinar como eles devem ver, ouvir ou apreciar o poético e, sim, a

intenção de permitir que eles descubram as leituras que são capazes de fazer. Resistir à

racionalidade funcionalista que se pauta por regras não sensíveis, mas tão só imediatistas

e pragmáticas.

Dessa forma, aliada às teorias que fundamentam a Estética da Recepção,

elegemos como sustentação para este caminho teórico, de pensar essa educação, aquele

apontado por Larrosa (2017), que propõe a educação a partir do par experiência/sentido.

O autor provoca pensarmos a palavra experiência em outro sentido, no qual “é preciso

reivindicar a experiência, dar-lhe certa dignidade, certa legitimidade. Porque a

experiência foi menosprezada tanto pela racionalidade moderna, tanto na filosofia quanto

na ciência” (LARROSA, 2017, p. 38).

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Pensar a educação a partir da experiência pode ressignificar sua natureza, repensar

suas práticas, entender suas demandas e impedir que o texto poético seja vulnerável aos

velhos usos que anulam a sua dimensão estética.

Larrosa (2017) destaca a importância de diferenciar a experiência da informação,

uma vez que a primeira é o que vivemos, o que nos acontece e nos toca, o que deixa em

nosso corpo uma história. A informação é ter conhecimento sobre uma coisa. Para o autor,

a experiência é quase o oposto da informação, uma vez que bem informados deixamos de

experimentar muitas coisas. O discurso contemporâneo incentiva o acúmulo de

informação, deixando a experiência cada vez mais extraordinária.

Benjamin (1994, p.197) já havia comentado esse aspecto: “é como se

estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade

de intercambiar experiências”. Nossa sociedade reflete a pobreza de experiências no

mundo abundante de informação. A ideia de que uma pessoa, para ser bem sucedida,

precisa ser bem informada se fundamenta na concepção de que o conhecimento se adquire

com informação, como se aprender fosse adquirir e acumular informações. “As ações da

experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor

desapareça de tudo.” (Idem, p. 197).

Nessa lógica que esmaece a experiência, Larrosa (2017) critica o par

informação/opinião porque, como a informação, a opinião se converteu em imperativo, o

indivíduo moderno precisa ter uma opinião própria, um julgamento preparado, ainda que

este limite-se a concordar ou discordar de algo. Tudo isso regado a uma grande

velocidade: a informação de hoje vem por um estímulo instantâneo, que é rapidamente

substituído por outro, também fugaz. Afetado por vivências instantâneas o sujeito da

informação não realiza uma conexão duradoura ou significativa.

Para as instituições educacionais, a informação e esse senso crítico devem chegar

cada vez mais cedo, embaladas pelo discurso da competitividade. É comum crianças nas

séries inicias já estarem sendo preparadas para o arcabouço de informação, no qual a

aprendizagem ganhou o peso da preparação para o mercado competitivo.

Será necessário que se coloque um olhar menos opaco para que se perceba como

a experiência, como abordagem teórica é o caminho que melhor se harmoniza à viagem

para Ítaca. Ressignificar essa palavra que tem força é entender que

a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,

requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos

tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar, para escutar,

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pensar mais devagar, olhar mais devagar, demorar-se nos detalhes,

suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e delicadeza. Abrir

os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a

lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter

paciência e dar-se tempo (LAROSSA, 2017, p. 25).

Pela experiência se faz o caminho do sensível, que permite que suas cores matizem

os sujeitos que por ele passam, que afete as significâncias e marque por sua simplicidade

e pela nitidez de suas marcas. Esse território, espaço do acontecer precisa ser percorrido

como um flâneur, no sentido de Benjamin (2015), para entregar-se verdadeiramente à

experiência e encontrar na relação entre conhecimento e vida humana seu próprio ser.

Para o entendimento de Larrosa (2017), o saber da experiência é diferente, é o que

se adquire na maneira como uma pessoa responde ao que lhe acontece no decorrer de sua

vida e o modo como dá sentido ao que lhe aconteceu. Um saber que ligado à existência

não tem fim, um saber individual, pois as pessoas ainda que enfrentem um mesmo

acontecimento vivem experiências diferentes.

Do ponto de vista da ciência moderna, a experiência foi convertida como um

método da objetividade, a partir da ideia de uma ciência experimental, convertendo a

experiência em experimento. “Se o experimento é genérico, a experiência é singular. Se

a lógica do experimento produz acordo, consenso ou homogeneidade entre os sujeitos, a

lógica da experiência produz diferença, heterogeneidade e pluralidade” (LAROSSA,

2017, p. 34).

Assim, se o experimento pode ser refeito muitas vezes para confirmar uma

hipótese comum às tentativas, a experiência sempre se dará como uma primeira vez, “a

experiência não é um caminho até um objeto previsto, até uma meta que se conhece de

antemão, mas uma abertura para o desconhecido” (LAROSSA, 2017, p 34). A experiência

é uma viagem para compreender o caminho das Ítacas.

Do ponto de vista do autor, é necessário mais que reivindicar a experiência, é

preciso dar-lhe legitimidade. Uma vez que, as racionalidades científicas clássica e

moderna a deixaram à margem. Na primeira, foi considerada como modo de

conhecimento inferior, já que o saber racionalizado precisa de purismo, produzido por

ideias claras. Na segunda, a experiência foi objetivada, homogeneizada, controlada e

calculada, como já dito, transformada em experimento.

A experiência é sempre de alguém, subjetiva, é sempre daqui e de agora,

contextual, finita, provisória, sensível, mortal, de carne e osso, como a

própria vida. A experiência tem algo da opacidade, da obscuridade e da

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confusão da vida, algo da desordem e da indecisão da via. Por isso, na

ciência também menospreza a experiência, por isso a linguagem da

ciência tampouco pode ser a linguagem da experiência (LAROSSA,

2017, p. 40).

Por seu caráter genuinamente particular, a experiência permite o caminhar pela

via do sensível, é necessário lembrar o quanto nos afastamos de nossas sensibilidades, e

que não podemos romper com o que está posto, sem reconhecer a estrutura que também

nos formou, ainda nos forma, mas que pode ser questionada. Entendemos experiência

como categoria que fundamenta esta pesquisa,

uma categoria vazia, livre, como uma espécie de oco, ou intervalo,

como uma espécie de interrupção, ou de quebra, ou de surpresa, como

uma espécie de ponto cego, como isso que nos acontece quando não

sabemos o que nos acontece e sobretudo como isso que, embora nos

empenhemos, não podemos fazer com que nos aconteça, porque não

depende de nós, nem do nosso saber, nem do nosso poder, nem de nossa

vontade (LAROSSA, 2017, p. 12).

Como é possível pensar uma categoria assim? Num primeiro olhar pode ser que

transpareça algo sem planejamento, mas não é. A elaboração conta com o delineamento

prévio, mas esse segue a movência do campo. Olhar o vivido do intérprete, cobrir e

descobrir o que ele traz por dentro: sua experiência. Por isso, a primeira recepção sobre

poesia que busco é a que ele traz consigo, por uma folha em branco e uma pergunta antiga

que remota os primeiros pensadores acerca do tema: o que é poesia?

A ideia é perceber quais experiências eles traziam dessa palavra, pois o verbo

tremula no presente e uma única palavra pode colher no jardim de memórias que tipo de

contato eles tiveram com a “poesia”. Paz (2012, p. 48) diz que a poesia “vive nas camadas

mais profundas do ser, enquanto as ideologias e tudo o que denominamos ideias e

opiniões são os estratos mais superficiais da consciência.

No primeiro momento, a despretensão da pergunta, a folha em branco, os deixava

inseguros, então a liberdade de dizer o que acham causa um certo impacto com perguntas

como: “Mas é mesmo pra eu dizer o que eu sei? Porque eu não sei isso.” (Ícaro, EJA

2017), “É pra dizer a minha opinião? O que eu acho direto sem o livro? (Cibele, EJA.

2017). Os alunos não estavam habituados a uma escritura livre, sem um direcionamento,

sem uma resposta esperada, ou então sem um texto para que eles “retirem a resposta”.

Não estavam acostumados a narrar sua experiência. Mas, ainda assim eles escreveram, e

dessa primeira recepção colhi respostas honestas, pequenas percepções:

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Poesia pra mim é arte, é ternura. Poesia traz sentimentos regados de

alegria ou tristeza, sentimentos diversos entrelaçados com dor, com

rancor, uma ternura infinita que traz mar de sentimentos. (Íris, EJA,

2017. Grifo meu)

Poesia e um sentimento de expressar uma coisa que você sentir pela

outra um gesto de carinho e amor um jeito de você dizer o que você

sente por outra pessoa. (Aristeu, EJA 2017. Grifo meu)

O que é poesia pra mim?Eu acho que são formas de escrever

coisas bonitas, românticas, são formas bonitas de se pensar. (Odin,

EJA, 2017. Grifo meu)

Os três intérpretes associam poesia com forma de sentimentos, beleza e expressão.

O primeiro cita a arte, e elege palavras que não são usuais como: ternura, regar,

entrelaçado e rancor. Uma possibilidade é de que apenas a presença da palavra poesia

tenha colhido em sua memória esses dizeres. Para a segunda, a poesia está principalmente

no sentir e o último fala em formas bonitas de pensamento. Se poesia é “a forma de fazer

nascimentos” (BARROS, 2016), para ele, ela começa no pensamento.

Durante esta partilha, após alguns alunos comentarem suas respostas, um

intérprete expressou que preferia dividir sua opinião apenas comigo, em escrito uma

resposta muito particular:

Poesia pra mim é Titanic. Foi como filme que acabou.

Eles que duvidaram. Tavam bem se divertindo. Que quando naufragou,

o navio que foi história real, muitas pessoas morreram, no que

duvidaram que nem Deus afunda esse navio, mas acabou morrendo

quase todo mundo. Sobreviveu, só a metade!!! Na minha opinião (Baco,

EJA 2017).

É possível notar que o intérprete associa a poesia com arte, em sua perspectiva a

poesia está no filme. É necessário lembrar o contexto do longa: Titanic (1997)7, dentro

da história do cinema, à época, foi um dos poucos blockbusters8 de expressão mundial

que se diferenciou dos clichês, apresentando às massas uma película de arte em linguagem

popular e com um desfecho incomum e trágico. Assim, concluo que, para o intérprete,

este foi o filme que tirou a sétima arte do Olimpo.

O intérprete, provavelmente como o público em geral, foi surpreendido ao final.

Tal lembrança demonstra o quanto essa memória foi marcante e que ele interpreta a poesia

como um sentimento ao remeter a uma fala icônica do longa, quando é dito que “nem

7 Titanic é um filme épico de romance e drama norte-americano de 1997, escrito, dirigido, co-produzido e

co-editado por James Cameron. É uma história de ficção do naufrágio real do RMS Titanic. 8 Obra cinematográfica de grande alcance popular e alto sucesso financeiro.

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Deus pode afundar esse navio”. O intérprete vê o poético na memória e no sentimento

recordado. O receio de dar a resposta errada acompanha tanto sua voz, quanto sua escrita,

sempre marcado por “na minha opinião”.

A recepção da poesia, para eles, percorre a interlocução com o que lhes é

significante. Neste primeiro momento ainda não há a presença de um texto poético pré-

definido. Por essa primeira impressão foi possível estabelecer uma conexão com eles,

saber de suas experiências. Um momento crucial para os próximos encontros por

entendermos que:

a imaginação poética não é invenção, mas descobrimento da presença.

Descobrir a imagem do mundo naquilo que emerge como fragmento e

dispersão, perceber o outro no um, será devolver à linguagem sua

virtude metafórica: dar presença aos outros. A poesia: busca dos outros,

descobrimento da “outridade” (PAZ, 2013, p. 267).

A recepção é algo que pode ser surpreendente e, quando vem de uma criança, os

escritos chegam de forma imprevisível, já que ela consegue colocar o delírio no verbo.

Com os intérpretes do 6º ano, não houve resistência para responder o que é poesia. Alguns

também a relacionaram com a expressão de sentimentos ou com a composição verbal

elaborada: : “É uma forma de expressar as emoções” (Orfeu, 6º ano. 2017). “Eu acho

poesia palavras bonitas”(Marcus, 6º ano. 2017). “Poesia é conjunto de palavras” (Nereu,

6º ano. 2017).

Um deles comentou que gosta de “ver poesia na internet” e, em sua recepção,

colocou:

Imagem 08: Poesia amor

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Para eles, falar sobre poesia é falar do que lhes toca, a pergunta se desdobrou em

experiência com a palavra poética. Outra resposta imprevisível foi da poesia que chega

pela canção, ao ser questionado sobre a recepção que segue o intérprete, justificou: “Pra

mim nessa música tem poesia. Ela me dá vontade de ser feliz”:

Imagen 09: La bamba

La bamba

Para bailar la bamba

Para bailar la bamaba

Se necesita uma poca de gracia

Uma poca de gracia y uma otra cosita

Y arriba, y arriba, y arriba, arriba

Por ti seré, por ti seré, por ti seré.

Yo no soy marinheiro, y no so marinero

Soy capitam, soy capitam, soy capitam.

Bamba, la bamba. 3x

(Jax, 6º ano, 2017. Grifo meu)

Os alunos do 6º ano não tiveram dificuldade para desapegar daquilo que se pode

dizer e aquilo que se pode pensar, determinado pela cartilha, pela resposta esperada. A

recepção que traz a música latina é uma demonstração que, no entender do intérprete,

poesia é o que o deixa feliz. Ao comparar a sua resposta com a letra original da música é

possível perceber que não são iguais, ele não copiou a letra e sim, escreveu de memória,

usando como mnemotécnica o ato de cantar, e recriando a letra no verso “uma poca de

gracia y uma outra cosita”. Outro aspecto é a estética do texto, como podemos ver na

reprodução da imagem, ele desenha as linhas e escreve a música em versos.

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Importante notar, também, neste caso, o que toca a oralidade. Essa canção não é

contemporânea ao intérprete, ‘La Bamba” é da década de 50, provavelmente ele nunca

viu essa letra, por isso ele a transcreveu do jeito que sabe, escrevendo as palavras da

maneira como entende, o que ouviu. Para além disso, justificar sua escolha por aquilo que

lhe causa “vontade de ser feliz”, nos cabe como exemplo para explicar como entendemos

essa categoria na pesquisa:

fazer soar a palavra experiência perto da palavra vida, ou melhor, de um

modo mais preciso, perto da palavra existência. A experiência seria o

modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem

outro ser, outra essência, além de sua própria existência corporal, finita,

encadernada, no tempo e no espaço, com os outros. E a experiência,

como a vida, não pode ser conceitualizada porque sempre escapa a

qualquer determinação, porque é, nela mesma, um excesso, um

transbordamento, porque é nela mesma possibilidade, criação,

invenção, acontecimento (LARROSA, 2017. p. 43).

Transbordamento, criação e invenção. Tudo isso cabe na recepção que vê na

poesia uma vontade, a experiência aqui se coloca como uma alternativa, como um meio

de acolhida ao que o intérprete já conhece. Porque a sua formação enquanto leitor de

poesia não começa como uma tábua vazia, mas sob a perspectiva de algo que lhe é

singular e que somente ele pode descortinar. Assim, está posto em evidência outro par:

experiência/formação, em que:

a experiência é o que me acontece e o que, ao me acontecer, me forma

ou me transforma, me constitui, me faz como sou, marca minha maneira

de ser, configura minha pessoa e minha personalidade. Por isso, o

sujeito da formação não é o sujeito da educação ou da aprendizagem e

sim o sujeito da experiência: a experiência é que é a forma, a que nos

faz como somos, a que transforma o que somos e o que converte em

outra coisa (LAROSSA, 2017. p.48).

Esse par projeta que os intérpretes permitam-se viver na escola a sua experiência

de mundo e, a partir dela, perceber os sentidos e elaborar outros com os outros:

professores, amigos e todos que o envolvem. A escola como um espaço à parte, como

instituição ligada apenas à linguagem técnica, contempla somente aqueles que conseguem

se enquadrar a seu tempo de formação. A educação sensível procura abrir um espaço

diferente, ainda que uma pequena fresta

para e experiência de ser professor ou de ser aluno, para a experiência

de habitar um espaço escolar, um espaço pedagógico, se seria possível

dar a ele certo sentido de que a experiência da escola é uma experiência

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na qual não vivemos nossa vida, na qual o que vivemos não tem a ver

conosco, é estranho a nós, se da escola, tanto se somos professores

quanto se somos alunos, voltamos exaustos e mudos, sem dizer, e a

escola faz parte desse dispositivos que destroem experiência ou o que

a única coisa que fazem é nos desembaraçar da experiência.

(LAROSSA, 2017, p.56).

A experiência com a poesia é um grande exemplo de como a didatização do texto

poético pode marcar um intérprete, um vestígio de recusa que fica no leitor, seu corpo se

fecha e as vozes que moram nas palavras não conseguem chegar até eles. A recepção de

alguns alunos da EJA demonstra esse ressentimento:

O que é poesia não sei. Ainda não tive muito contado.

(Cecília, EJA, 2017.)

Poesia? O que é? Nunca ouvir falar.

Não sei se tive contato.

(Lua, EJA, 2017)

O que é poesia eu não sei.

Nunca tive contato com a poesia.

(Selene, EJA, 2017)

O que eu acho sobre poesia é um pouco complicado porque tem

palavras que não sei entender. (Atlas, EJA, 2017. Grifos nossos)

O advérbio “nunca” carrega nessas falas o eco das palavras ocas, que nem versam

e nem prosam para esses intérpretes, da poesia que passa por eles e não faz morada, ou

ainda da poesia que tem nas suas palavras aquilo que não se entende. O discurso nessa

frase é do leitor que culpa a si mesmo por não entender o que lê, para ele, o complicado

descolore os encantos do verbo. Essa dificuldade ao acesso à linguagem poética é comum,

entendida por Paz (2012):

no que diz respeito à obscuridade das obras, deve ser dito que, no início,

todo poema oferece dificuldades. A criação poética sempre enfrenta a

resistência do inerte do horizontal [...]Tiradas de suas funções habituais

e reunidas numa ordem que não é a da conversa nem a do discurso, as

palavras oferecem uma resistência irritante. (p. 51)

A dificuldade do intérprete em entender a poesia reside no que o autor diz: quando

as palavras são tiradas de suas funções habituais para reunir-se em ordem incomum, no

entanto, o leitor que encontra a poesia subserviente à gramatica, o texto poético como

atividade de caça às classes de palavras, ela perde a cor, muda a relação do texto com

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leitor que passa de uma relação horizontal para uma medida na vertical, o leitor sente-se

menor que o texto: “palavras que não sei entender”.

A palavra poética não deveria ser um gatilho de baixa estima ao leitor, aquilo o

faz sentir-se incapaz, e aqui não se trata da diferença entre o saber ler e o entender o que

leu, mas em como o verbo adere ao vivido do leitor, como a herança de Apolo se coloca

ao que guarda da poesia a memória daquilo que não lhe é de direito.

Comparado a esse, um paradoxo que preciso enunciar: a recepção que vê na poesia

a palavra perfeita, o trabalho do artífice:

Poesia pra mim são frases com união de palavras unidas com

perfeição, com detalhes que emocionam. As melhores poesias são as

que falam de amor, que entram fundo na alma. (Ártemis, EJA,

2017.Grifo meu)

É necessário não separar essas recepções: as palavras unidas com perfeição não

seriam palavras complicadas? E aqui elas tocam o fundo da alma, por isso a experiência

é sempre no singular. Ela nos singulariza.

Há um olhar, uma recepção (é necessário que guardemos este intérprete, muito se

falará de sua percepção nestes escritos) que une o que não se entende e o que é belo:

“Poesia é um conjunto de palavras meio sem nada a ver, às vezes bonitas” (Heleno, EJA,

2017). Na voz que acha a poesia “nada a ver” está, para lembrar Nunes (2017), o traço-

oco do poema, oco porque pelo leitor deve ser preenchido, o poeta dá a casca, mas o sumo

quem coloca é ele e, se acha complicado, se não entende, a palavra segue esvaziada.

Mas ainda que não saiba disso, este intérprete alcança o sentido da poesia, porque

a poesia não tem uma função lógica, estabelecida, enquadrada. Quando a poesia “não tem

nada a ver” não houve um intercâmbio de experiências, mas sim experiência, porque a

recepção também passa por aquilo que não gostamos, que não faz sentido ao que trazemos

conosco. E se para ele a poesia ser “às vezes bonita”, entende-se que em algum instante

a poesia lhe encontra. A dificuldade de encontrar essa beleza reside em nosso pouco

acesso à palavra desacostumada, é pelo texto poético que a linguagem recupera sua

originalidade, porque o uso cotidiano lhe impõe uma limitação aos sentidos,

a reconquista de sua natureza é total e afeta os valores sonoros e

plásticos tanto quanto os de significado. A palavra finalmente em

liberdade, mostra todas as suas vísceras, todos os seus sentidos e

alusões, como um fruto amadurecido ou como os fogos de artifício no

momento em que explodem no céu (PAZ, 2012, p. 30).

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A palavra poética é feita para o mundo, sua presença está suspensa pela ordem do

discurso pedagógico, ordem que ensina a como entender o poético por formatos que,

muitas vezes, não podemos nos reconhecer. “As vozes cotidianas dispersam as palavras

no leito do tempo, ali esmigalham o real; a voz poética os reúne num instante único”

(ZUMTHOR, 1993, p. 139).

No instante mora a experiência e se, de um lado, a poesia nutre num mesmo

intérprete uma dualidade de recepção, do outro, ela também pode mostrar-se presença

una:

Bom na minha opinião são frases muito bonitas, românticas e fica legal

e bonito em qualquer coisa que a gente escreva ou fale, eu gosto mas

só escrevo quando estou inspirada, mais gosto de ouvir, fica legal

até em gracinhas, quando brigo com o meu noivo, ele vem com poesia

fazendo graça mas fica legal porque no final sempre rima.

Eu esqueci algumas poesias que ele faz, mais deixo tudo guardado na

mente e no coração. (Afrodite, EJA, 2017. Grifo meu)

Certamente é preciso levar em conta algumas categorias fundantes nesta fala.

Novamente a percepção estética, a escritura que vem da inspiração, a presença da voz, a

memória e, principalmente o trabalho em performance com a palavra rimada que

transforma um sentimento. Pois bem, o fator estético, na percepção da intérprete, a poesia

enquanto “frases bonitas”, tem a capacidade de transformar as coisas e deixá-las belas, é

possível aproximar essa percepção ao que Paz (2012, p. 58) entende sobre o poema:

O poema possui o mesmo caráter complexo e indivisível da linguagem

e da sua célula: a frase. Todo poema é uma totalidade fechada em si

mesma: é uma frase ou um conjunto de frases que formam um todo. Tal

como o resto dos homens, o poeta não se expressa em vocábulos soltos,

mas em unidades compactas e inseparáveis. A célula do poema, seu

núcleo mais simples, é a frase poética. Mas, ao contrário do que

acontece com a prosa, a unidade da frase, o que a constitui como tal e a

faz linguagem, não é o sentido ou direção significativa, mas o ritmo.

Ao eleger a unidade da frase como representação da poesia, a intérprete está

priorizando o ritmo e nele ainda acrescento o desejo da voz: “eu gosto de ouvir, fica legal

até em gracinhas”. Ela aprecia a performance do noivo, para ela, há poesia em “suas

gracinhas” na maneira como eles se comunicam, quando

ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja

um corpo—repugna mais que ao texto escrito toda percepção que o

diferencie de sua função social e o do lugar que ela lhe confere na

comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou

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implicitamente; das circunstâncias, enfim nas quais se faz escutar

(ZUMTHOR, 1993, p. 160)

A performance do noivo, a rima que vem pela voz e as gracinhas são o texto

oralizado que pelo versejo consegue desfazer a briga. E ela além de apreciar essa poesia

também escreve, quando inspirada. A inspiração é um mote que retoma Platão, do poeta

inspirado pelas musas, para lembrar Mário de Andrade (1986): “a inspiração é fugaz e

violenta. Qualquer empecilho a perturba e emudece” (p.16).

Por fim, a última frase da intérprete que a primeira impressão pode parecer um

paradoxo: “esqueci algumas poesias que ele faz, mais deixo tudo guardado na mente e

no coração”, mas essa aparente oposição de esquecer e guardar se dissipa se retomarmos

o par memória/esquecimento proposto por Vernant (1973), que não são opostos e sim

complementares, uma vez que, a partir do esquecimento a memória cria. A intérprete

esquece as rimas, as palavras exatas da performance, mas o sentimento, a sensação que

aquelas gracinhas deixam nela ficam guardados na “mente e no coração”, a poesia está

nessa experiência singular. Sensível e íntima, uma recepção que alcança “tudo que nos

afasta da causa e da recompensa, tudo que nega a história íntima e o próprio desejo, tudo

que desvaloriza ao mesmo tempo o passado e o futuro encontra-se no instante poético.”

(BACHELARD, 1986, p.187).

Com efeito, a pergunta que embalou as primeiras impressões desses intérpretes

foi fundamental para esse corpus, e antes de seguirmos para a recepção dos textos

escolhidos, faz-se importante contar como olhar para a experiência deles e deixá-los livres

para escolher estar presente, ou não, em cada texto é algo que marcou definitivamente os

caminhos dessa pesquisa. Pois, em cada recepção está presente o singular de cada

intérprete, são eles no que leram, no que dizem e no que escrevem. E, no entanto, esses

dizeres incorporaram o que o texto poético acrescentou a cada um.

A intenção foi sair daquilo que Larrosa (2017, p.105). entende como experiência

do educativo dentro de uma jaula, aquela que é “medida, enquadrada, ou enjaulada pelas

operações de categorização, destematização, de ordenação, que constituem as lógicas de

nossos saberes e de nossas práticas”. No texto poético, a jaula é a sua escolarização

inadequada.

Assim como a experiência é singular, a maneira que eles elegem para expressá-la

também é, por essa razão, a terceira e última sessão que compõe esta pesquisa, agrupam

as recepções por todos os elementos constitutivos e pertinentes em que se mostram suas

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semelhanças, esta apresentação permite penetrar melhor nos sentidos por eles

desenhados.

Tal escolha acaba por excluir algo muito caro à escritura de uma pesquisa que tem

como estudo principal a matéria colhido em campo: a organização cronológica dos textos

e das recepções. Ademais, apresentá-los em uma ordem, como uma linha reta, exata com

um final, seria como caminhar para Ítaca olhando apenas para a chegada. Não. O que se

fez nesse curso foi aproveitar a viagem. Cada trilha que me levou para um passeio por

algo que não esperava, passagens escondidas, entradas surpresa.

Ademais, não somos nós que tratamos de resistir ao enquadramento? Assim, a

última sessão traz aquilo que apenas a poesia pode mostrar, não se trata somente de

compreensão ou respostas sobre o texto poético, mas sim, de como o texto poético pode

mexer os sentidos, a maneira como a potência da palavra pode ser transformadora.

A recepção pela experiência com o poético traz para o intérprete o ato de ler,

escrever e pensar como ações que não podem ser realizadas separadamente, a recepção

poética não impõe regras de pensamento: “lê-se escrevendo, com um lápis na mão.

Escreve-se lendo [...] E entre ler e escrever, às vezes, acontece algo, acontece algo

conosco. Talvez isso que chamamos de “pensar” seja a experiência desse “entre”.

(LAROSSA, 2017, p. 139)

É no “entre” que pousa o nosso olhar, a poesia não está subserviente a um saber

tampouco é pretexto para um conteúdo. A poesia que chega aos intérpretes é uma

experiência, um viver algo que transcende o tempo presente, misturado ao vivido chega

às memórias que eles guardam, assim como ultrapassa as paredes da sala, chegando aos

espaços que só eles conhecem e que em sua expressão coloca no texto um eu. Nossa

prática não busca negar as formas consagradas pela escola, mas sim colocar em

perspectivas outras possibilidades, partir de outros critérios que incluam formas mais

livres, o caminhar para as Ítacas não prioriza resultados e sim experiências. Foi dado aos

intérpretes a poesia-presente e foram eles que decidiram o que fazer com ela.

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3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre

A perda da auréola

Olá! O senhor por aqui, meu caro? O senhor nestes maus lugares! O

senhor bebedor de quintessências e comedor de ambrosia! Na verdade,

tenho razão para me surpreender!”‘Meu caro, você conhece meu

terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo, quando atravessava a

avenida, muito apressado, saltando pelas poças de lama, no meio desse

caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo

tempo, minha auréola, em um brusco movimento, escorregou de minha

cabeça e caiu na lama do macadame. Não tive coragem de apanhá-la.

Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me

arriscar a quebrar uns ossos. E depois, disse para mim mesmo, há

males que vêm para o bem. Posso, agora. passear incógnito, cometer

ações reprováveis e abandonar-me à crapulagem como um simples

mortal, E eis-me aqui, igual a você, como você vê.”

“O senhor deveria, ao menos, colocar um anúncio dessa auréola ou

reclamá-la na delegacia caso alguém a achasse.”

“Não! Não quero! Sinto-me bem assim. Você, só você me reconheceu.

Além disso a dignidade me entedia. E penso com alegria que algum

mau poeta a apanhara e a meterá na cabeça descaradamente. Fazer

alguém feliz, que alegria! e sobretudo uma pessoa feliz que me fará rir.

Pense em X ou em Z. Hein? Como será engraçado.

(Pequenos Poemas em prosa, Baudelaire, 1980)

Um dispositivo clássico das atividades escolares envolvendo poesia é um texto

seguido de perguntas em um espaço delimitado para as respostas. Por isso, afim de

permitir-lhes uma experiência diferente, em nossos encontros, tanto para turma da EJA

quanto para o 6º ano, para cada intérprete foi entregue uma folha em branco. E nessa folha

ele era convidado a expressar a sua recepção do texto daquele dia.

À primeira vista um desconforto regado a muitos e muitos “Eu ainda não entendi

o que é pra fazer, professora.” Orientei que podiam, naquele espaço da página em branco,

dizer como se sentiam em relação ao texto, desenhar, escrever uma lembrança. Mas a

liberdade traz um receio. Acostumados a ter uma resposta pré-estabelecida e habituados

a ter um número de linhas a preencher, eles ficaram perdidos. Alguns até munidos de uma

régua colocaram as linhas no papel “professora, fiz umas linhas aqui. Tá bom esse tanto?

A resposta que a senhora quer é de quantas linhas?”

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E foi assim a primeira experiência com um texto levado por mim, o poema Os

Estatutos do Homem do amazonense Thiago de Mello. Mas, voltemos um pouco. Antes

de mais nada o primeiro movimento foi trazer o texto pela voz, realizei a leitura do poema

e naquele silêncio ouvia a minha voz e sentia sobre mim aqueles olhos. Trazer o texto

também pela voz foi por entendermos que

é no ato de percepção de um texto, mais claramente do que em seu

modo de constituição, que se manifestam as oposições definidoras da

vocalidade. É certo (às vezes consideravelmente) que na economia

interna e na gramática de um texto não importa que ele tenha ou não

sido composto por escrito. No entanto, o fato de ele ser recebido pela

leitura individual direta ou pela audição e espetáculo modifica

profundamente seu efeito sobre o receptor e, portanto sobre sua

significância. (ZUMTHOR, 1993, p. 23-24)

Modificar a significância do texto é o que leva a trazer o texto primeiramente na

voz, porque mesmo com o texto em mãos, os intérpretes só o leem quando iniciamos a

leitura, e como nas primeiras recepções uma amostra significante expressou

distanciamento com o texto poético, a intenção foi realizar este encontro com letra

mediada pela voz. Eis o poema:

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Os Estatutos do Homem

(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I. Fica decretado que agora vale a verdade.

agora vale a vida,

e de mãos dadas,

marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II. Fica decretado que todos os dias da

semana,

inclusive as terças-feiras mais cinzentas,

têm direito a converter-se em manhãs de

[domingo.

Artigo III. Fica decretado que, a partir deste instante,

haverá girassóis em todas as janelas,

que os girassóis terão direito

a abrir-se dentro da sombra;

e que as janelas devem permanecer, o

dia

[inteiro,

abertas para o verde onde cresce a

esperança.

Artigo IV. Fica decretado que o homem

não precisará nunca mais

duvidar do homem.

Que o homem confiará no homem

como a palmeira confia no vento,

como o vento confia no ar,

como o ar confia no campo azul do

céu.

Parágrafo único: O homem, confiará no homem

como um menino confia em

outro

[menino.

Artigo V. Fica decretado que os homens

estão livres do jugo da mentira.

Nunca mais será preciso usar

a couraça do silêncio

nem a armadura de palavras.

O homem se sentará à mesa

com seu olhar limpo

porque a verdade passará a ser servida

antes da sobremesa.

Artigo VI. Fica estabelecida, durante dez séculos,

a prática sonhada pelo profeta Isaías,

e o lobo e o cordeiro pastarão juntos

e a comida de ambos terá o mesmo

[gosto de aurora.

Artigo VII. Por decreto irrevogável fica estabelecido

o reinado permanente da justiça e da

[claridade,

e a alegria será uma bandeira generosa

para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII. Fica decretado que a maior dor

sempre foi e será sempre

não poder dar-se amor a quem se ama

e saber que é a água

que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX. Fica permitido que o pão de cada dia

tenha no homem o sinal de seu suor.

Mas que sobretudo tenha

sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X. Fica permitido a qualquer pessoa,

qualquer hora da vida,

uso do traje branco.

Artigo XI. Fica decretado, por definição,

que o homem é um animal que ama

e que por isso é belo,

muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII. Decreta-se que nada será obrigado nem

[proibido,

tudo será permitido,

inclusive brincar com os rinocerontes

e caminhar pelas tardes

com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:

amar sem amor.

Artigo XIII. Fica decretado que o dinheiro

não poderá nunca mais comprar

o sol das manhãs vindouras.

Expulso do grande baú do medo,

o dinheiro se transformará em uma

[espada fraternal

para defender o direito de cantar

e a festa do dia que chegou.

Artigo Final. Fica proibido o uso da palavra

liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e

transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Santiago do Chile,

abril de 1964

(MELLO, 2009, p. 165-168)

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A ideia prévia de uma atividade lógica e disciplinar é algo tão incorporado aos

alunos que mesmo após algumas leituras e comentários sobre o formato do poema, eles

ainda seguiam sem saber muito bem o que escrever. A página em branco, a liberdade de

dizer como se recebe o texto ainda os melindrava, mas aos poucos foram descobrindo

possibilidades: “Professora, gostei desse artigo aqui, posso dizer qual eu não gostei

também?” (Odin, EJA, 2017) E a partir de uma resposta positiva, todos entenderam que

deviam dizer o que gostaram e o que não gostaram.

O parágrafo final diz que a liberdade é proibida mas o hoje em dia

liberdade quase a gente não tem porque tá muito violento.

(Hades, EJA, 2017)

O artigo que mais me chamou atenção foi o I porque lá fala verdades, e

hoje em dia vivemos um mundo de mentiras falta de respeito com as

pessoas, muitos assassinatos, brigas ninguém mais se respeita. As

pessoas deveriam reagir como no texto. Todos unidos para lutar contra

tudo o que está acontecendo, com esses políticos que estão fazendo de

tudo para tirar o pouco que as pessoas ganham hoje. (Nereida, EJA

2017.)

Gostei do texto, um texto falando bastante do que o mundo precisa. Eu

gostei bastante do parágrafo único que fala sobre a confiança, que as

pessoas não tem mais ao próximo a confiança e também o artigo XIII

que fala sobre o dinheiro, hoje em dia o dinheiro está comprando as

pessoas e isso não deveria acontecer, infelizmente é a realidade do

mundo que vivemos. (Odin, EJA 2017)

Eles gostaram do poema, porque viram na utopia dele os seus próprios desejos e,

uma vez livres das regras que estabelecem a resposta certa, escreveram seus receios, entre

tantos escritos escolhemos os três acima por se encontrarem no que trata da liberdade e

da confiança. A liberdade do primeiro é ver-se livre da violência, a segunda fala dessa

violência e vê no poema espelho para uma sociedade que está inerte a suas mazelas, o

terceiro reconhece a realidade e lamenta. Cada uma a sua maneira encontram a sua

necessidade, quando “a experiência do poema—sua recriação por meio da leitura ou da

recitação—também contém uma desconcertante pluralidade e heterogeneidade. Quase

sempre a leitura se apresenta como revelação de algo alheio à poesia propriamente dita”

(PAZ, 2012, p. 32)

Para o mesmo texto com as crianças do 6º ano também iniciamos com voz e a

recepção delas encontrou um olhar mais leve, claro. A criança parece carregar contida no

substantivo que lhe nomeia o verbo criação, em algumas situações as suas recepções

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precisaram vir acompanhadas de uma explicação, porque o que, para elas, é tão obvio

para mim precisava de um pequeno complemento, assim mostra-se sempre em itálico os

comentários que pela voz acompanharam o texto.

Entre as recepções entregues, três nos chamara atenção pela maneira que leram a

palavra “liberdade”:

Eu gostei também do artigo final:” fica proibido o uso da palavra

liberdade a qual será suprimida no dicionários.” Porque usa a liberdade,

é como se livrar da sua mãe, da sua família, ir embora para outra cidade

(Reno, 6º ano, 2017).

7 eu gosto dele porque ele tem a liberdade.

1 porque eu só andava de mão dada (Pereu, 6ºano 2017).

O que chama atenção é a maneira que o primeiro intérprete entende a liberdade de

forma prática, para ele a liberdade é estar longe da família. O segundo, escolhe também

o verso que fala de um hábito que ele traz: andar de mãos dadas, e quando perguntado

com quem, respondeu: “Com a minha mãe, professora”. Dentro de sua resposta cabe a

certeza de que a frase está completa, que não precisa de nenhum complemento. E nesse

momento a professora Atena pediu que ele “completasse a resposta”. Nesta e em outras

situações semelhantes, orientei-lhes não modificar seu texto e um desconforto pairava na

sala, pois os alunos ficavam confusos sobre o que fazer: obedecer Atena ou ouvir a mim.

A opção foi respeitar a resposta, fazendo com que pela voz ele comentasse alguma

lacuna que ficasse para mim, porque a criança se diz com simplicidade e nela há

completude. Nessas recepções ambos trouxeram o poema para a referência que lhes é

mais próxima: a família, o sentido do poema para sua própria experiência. Já o interprete

abaixo, utilizou palavras do poema para expressar os motivos que que agradam:

Eu gostei do artigo final. Eu gostei porque: fala sobre liberdade algo

vivo e transparente. (Hermes, 6ºano, 2017)

Analisamos essa escolha por duas perspectivas: primeira leva em consideração

que o aluno está acostumado a tirar do texto a resposta, como uma caça palavras, assim o

intérprete escolhe dentro do poema o verso que justifique sua resposta. A segunda

considera a que o leitor tenha se apropriado dos versos. Não podemos olhar apenas para

os que escolheu, mas também para todos que excluiu de sua recepção, por isso ao

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reescrever o verso “a liberdade será algo vivo e transparente”, eliminando apenas o verbo,

o intérprete mostra a sua recepção.

As próximas três recepções se aproximam por perceberem o verso “muito mais

belo que a estrela da manhã”.

Eu gostei do (artigo) nº XII, porque eu lembrei muito da minha mãe na

parte estrela. (Santos, 6ºano, 2017)

Do artigo XI, porque é muito lindo e essa estrela da manhã é a minha

mãe. (Micenas, 6ºano, 2017)

A primeira relaciona a estrela da manhã à figura de sua mãe e para a segunda a

estrela é a mãe. Importante lembrar como o simbólico está presente, a estrela da manhã,

encontra-se na figura de Vênus a criadora, neste caso relacionada à figura criadora para

eles: a mãe. Outra intérprete também viu nessas palavras algo especial, mas para o ela, a

referência é a estética:

Eu gostei do verso XI porque ele fala sobre a estrela da manhã e essa

palavra pra mim é bonita. Eu gostei do VI porque fala de personagem

bíblico. Não gostei da VIII porque a gente aprende a amar! (Métis, 6º

ano, 2017)

Para além da apreciação estética de perceber a beleza na palavra, a fruição da

leitura mostra discordância com o poema dos versos: “Fica decretado que a maior dor/

sempre foi e será sempre/ não poder dar-se amor a quem se ama”, e aqui não cabe dizer,

como a professora Atena disse para a leitora, que ela não entendeu o poema. A sua

afinidade com o artigo que comenta o personagem bíblico sugere o que foi confirmado

por ela depois: uma formação religiosa que elucida a maneira que ela recebe o verso que

fala de amor e o seu entender de aprender a forma de amar.

Ainda sobre este texto, encontramos a fruição que trazem as cores da infância:

Eu gostei do 12 porque eu brinco todo dia.

Eu gostei do 1 porque a verdade é tudo.

(Reno, 6ºano, 2017)

Eu gostei do artigo 12 por que eu brinco todo dia e toda tarde eu

caminho todas as tardes.

Eu não gostei do primeiro porque eu não entendi.

Eu gostei do nove porque antes de eu vim pra escola eu tomo café com

pão (Ceos, 6ºano, 2017.)

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Para esses meninos, os versos trazem o instante do brincar, o olhar da criança

quando vê-se participante do verso em sua brincadeira diária, o primeiro, quando vê na

verdade a totalidade mostra de sua formação. A fruição de Victor é honesta: “eu não

entendi”, como gostar do que não se entende?

Voltando à fruição dele, na sua afirmativa: “Eu gostei do nove porque antes de eu

vim pra escola eu tomo café com pão”, que se refere ao verso: “Fica permitido que o pão

de cada dia/ tenha no homem o sinal de seu suor”. Fica evidente que ele não percebe a

metáfora, e nem precisa, pois ele encontra nestes versos a sua própria experiência e por

isso gosta dele. Pois, se “o poema é uma tentativa de transcender o idioma; as expressões

poéticas, por sua vez, vivem no mesmo nível da fala e são o resultado do vaivém das

palavras na boca dos homens” (PAZ, 2012, p.43). O leitor não encontra a metáfora e

entende o pão em seu nível de fala usual mas, aí está a poesia, onde ele encontra algo que

tem sentido em seu universo.

As últimas recepções que selecionamos do poema de Thiago de Mello são as que

olharam para o poema como um todo e sentiram a palavra tecida em sua permanência

poética:

Eu gostei porque eu achei o artigo bonito e profundo, fala num futuro

em que queremos chegar. Eu gostei porque fala que nenhum dia será

triste e cinzento todo mundo será feliz.

(Posídon, 6º ano, 2017)

Eu gostei do texto porque ele me inspira e ensina. (Orfeu, 6º ano, 2017)

Olhar por cima, por baixo e em todas as direções para além do que nos está posto,

o que eles fazem ao perceber a totalidade do poema é “trazer à plena luz a tomada de

consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas” (BACHELARD, 1988,

p.1). Quando cita beleza e profundidade do poema, o aluno coloca em perspectiva um

futuro desejado e não pensa de forma individual, e sim coletiva, podemos dizer que esse

tipo de sentir demonstra como “o poema se alimenta da linguagem viva de uma

comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, ou seja, se suas tendências mais

secretas e poderosas” (BACHELARD, 1988, p. 48). Ao dizer que o poema inspira e

ensina, o leitor atinge a dimensão maior da poesia aquela que mexe nos sentidos e deixa

algo no leitor, toca suas expectativas e faz uma mediação com suas experiências.

Após esse encontro da poesia que se apresenta em versos, levamos para os

intérpretes um texto poético pela prosa:

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LIÇÃO DE BORBOLETA

Sabe? borboleta é urna flor que sai voando. Não a persiga nem tente capturá-la,

que seu vôo é tonto e breve, ela logo se cansa e volta ao caule de onde saiu, repõe-se no

seu lugar e deixa ficar-se no que é, no seu estado de flor. Talvez suponha você que a

borboleta apenas pousou no galho; não, borboleta não é mais. Pode tocá-la, pode, de leve

naturalmente, como todo o mundo deve tocar as flores. Não se mexe, vê? Não é mais

borboleta: é flor de novo.

Acontece é que sempre torna a evadir-se, sem nenhuma coordenação motora, no

vacilante trajeto dos bêbados, descaindo, levantando-se, contundindo-se nos muros. Flor

não sabe voar como os pássaros sabem. Por isso são desajeitadas as borboletas, o voo em

ziguezague, os zigues às vezes mais compridos do que os zagues e às vezes os zagues

mais compridos do que os zigues. Se não, não tinha graça. Borboleta voando, reta, certa,

como os pássaros. Para mim não teria a menor beleza. A beleza está no aprendizado

impossível: de chegarem a voar como os passarinhos. Veja: eu teria até medo se as

crianças também, ao invés de aprenderem a andar, saíssem andando firmemente como as

pessoas grandes quando não são muito velhinhas ou não tomam vinhos. O menino

levantando-se do berço e sem vacilar andando em linha firme na direção do banheiro para

fazer seu pipi. Não, o bom é o cair, é o levantar, é o aprender por si mesmo. Olha, olha

aquela borboleta azul, a flor movendo-se no ar que começa a encher-se de sol. Será uma

begônia, uma petúnia, um crisântemo? Se você prestar atenção, verá que em suas asas,

ou em suas pétalas, ainda persiste o orvalho de ainda há pouco.

(MARANHÃO, 1978, p. 35-6)

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Os intérpretes sentiram-se muito à vontade com esse texto a maioria deles

comparou a metamorfose da borboleta às dificuldades da vida. Poderíamos dizer que,

pelo seu uso em demasia, trata-se de uma metáfora gasta? Talvez. Mas insisto em dizer

que a experiência poética é singular:

Bom eu me identifico muito com a borboleta pelo fato dela ser sensível,

e por que ela só quer ser livre pra voar, ela se cansa e quer repousa,

assim sou eu desajeitada, confusa alegre e triste ao mesmo tempo, mas

sempre a procura da liberdade do prazer de viver intensamente...

Como as Borboletas tenho meus dias e horas de beleza, vontade de ficar

sozinha em meu casulo.

Assim sou eu como as borboletas (Ártemis, EJA, 2017.),

Essa borboleta parece eu do uma rápida volta ali no canto e volto, e

quando fico bêbado também ando torto e não gosto que me toque e claro

se eu ver uma árvore eu deito perto dela se eu acordo porre e liso pois

os ladrões me roubarão ninguém fica totalmente sozinho por muito

tempo sempre tem um zé mané para mexer com a borboleta e a gente

enfim é isso (Heleno, EJA, 2017).

Nas duas recepções há uma identificação com a borboleta, quando o leitor

completa o sentido do texto pela sua própria vida, recupera na palavra algo que para eles

dá significância à maneira como se sentem. Para Ártemis, o seu momento de cuidar de si

mesma é como o instante que a borboleta está em seu casulo, e aqui chamo atenção para

o fato de que no texto o autor não faz uma referência direta ao momento de metamorfose

da borboleta. Essa informação é completada pela intérprete, é algo que ela sabe. Já Heleno

traz a imagem pintada pelo autor da borboleta em voo para o seu próprio vagar e, como a

borboleta, para ao ver uma árvore. O que o texto suscita em ambos a imagem, “o leitor se

inclina e se precipita. E ao cair—ou ao ascender, ao penetrar nos aposentos da imagem e

entregar-se ao fluir do poema—se desprende de si mesmo para entregar-se em “outro si

mesmo” (PAZ, 2012, p. 175).

Ainda no que tocou o trabalho com esse texto, há uma recepção que revelou como

pela escritura os intérpretes podem dizer-se mais. Há situações que só saem de nosso

corpo escrevendo, dores, angústias e receios que a voz não é capaz de revelar, mas que a

letra é capaz de expurgar. Dentre os textos produzidos pelos intérpretes da EJA, muitos

vinham acompanhados da interrogativa: “Mas a senhora vai ler pra alguém?” ou então

do pedido: “Mas é só pra senhora ler, professora!”. Percebi que naqueles escritos havia

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para além da recepção do texto poético, segredos, desejos, bem como relatos de suas

vidas. Como na recepção que segue:

Eu saio de manhã para trabalhar, como a borboleta sai pra voar em

zigues zagues, eu trabalho das 8h da manhã até meio dia eu paro para o

almoço e depois volto e fico até 17:30 no meu trabalho todo dia sinto o

cheiro de óleo diesel e fico tonto as vezes, mas é muito bom trabalhar

sentir o teu dinheiro livre, de um trabalho honesto.

E eu não sou mais o antigo Ícaro. que pegava os bens das pessoas, hoje

eu sou um novo Ícaro. livre alegre e sorridente como a vida que eu levo

voando como uma borboleta (Ícaro, EJA, 2017).

“Cada leitor procura alguma coisa no poema. E não é nada estranho que a

encontre: já a tinha dentro de si” (PAZ, 2012, p.32). Somente após ler a recepção de Ícaro

percebi o quanto o seu pedido e a sua preocupação em manter sua escrita longe de olhos

curiosos, inclusive da professora Atena, era pertinente. A recepção se constitui em um

relato íntimo de um rapaz que aponta a dureza suas condições de trabalho, que para ele,

são apaziguadas por trazer-lhe um ganho de vida honesto, sua fruição encontra na leveza

da borboleta sua própria metamorfose.

Com as crianças do 6º ano, “Lição de Borboleta” selecionei três maneiras de

receber o texto: uma criação de história, uma definição e uma cantiga, em que lemos

respectivamente:

Era uma vez, um belo casulo de borboleta tão lindo que eu observava

todo dia de manhã, só que um dia, o casulo não estava mais lá porque

uma linda borboleta nasceu. Ela era roxa e rosa, tão linda que até me

impressionava quando ela voava (Hera, 6º ano, 2017).

A marca “era uma vez” acompanha grande parte das histórias que as crianças

conhecem, a narradora traz para sua história a palavra que acompanha o nome borboleta

quase como um par: casulo. Em poucas linhas a intérprete consegue estruturar uma

pequena narrativa com princípio, nó e desenlace. A recepção que aparece a partir de um

conceito e se completa pelo desenho:

Borboleta é um inseto que faz as crianças e adolescentes se alegrarem,

ela é uma lesma que vira borboleta tem várias cores. Tipo amarela, azul,

e marrom e quando ela pousa numa flor amarela ela fica invisível. FIM

(Páris, 6º ano, 2017.)

A experiência que Páris recordou com o texto foi sua visita a um borboletário, a

escolha de pintar uma borboleta em amarelo especifica a espécie que ele viu, bem como

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remete às cores das flores que fazem parte da paisagem que ele vive, que no desenho

explica-se por si mesmo:

Imagem 10: Borboletário

Há a recepção desenhou-se no exato momento em que concluímos a leitura do

texto, Aquiles começou a cantarolar uma cantiga, “Borboletinha/ tá na cozinha/ fazendo

chocolate para a madrinha/ Peti peti/ perna de pau...” Nesse momento já comecei a

tecer as relações que envolvem a tradição oral, a movência e na forma que esta cantiga,

que também tinha feito parte de minha vivencia infantil, chegar até aquele aluno, que após

sua performance perguntou: “Professora, eu posso escrever essa música na minha folha?

É que lá em casa eu escuto todo dia no DVD da Galinha Pintadinha, por causa da minha

irmãzinha”. E na sua folha encontrei a recepção em desenho do texto:

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Imagem 11: Mônica e borboleta

Borboletinha tá na

cozinha Peti Peti,

Perna de Pau

olho de vidro nariz

de Pica Pau

Pau Pau Pau

Pau Pau.

(Aquiles, 6º ano, 2017)

Na fala do intérprete encontro uma cantiga popular tradicional que na atualidade

se move por um suporte digital. É possível relacionar a maneira que o leitor trouxe a

lembrança da canção à ideia que Bergson (2006) teoriza sobre os graus de duração da

memória. Como Aquiles escuta com uma certa frequência a cantiga, o que se fixa do texto

em sua recepção é a figura da borboleta, porém os outros elementos presentes no texto

aparecem em seu desenho: a borboleta em voo e em pouso e as flores, a relação se dá

porque o intérprete não desenha a mensagem da cantiga, ela é a sua referência mais

próxima em relação ao elemento principal: a borboleta.

Outro elemento importante trazido no desenho é a personagem Mônica, dos

quadrinhos de Maurício de Souza, figura que o intérprete reproduz também pela memória

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recente, visto que ele não fez uma cópia de nenhuma imagem que tivesse às mãos, mas a

partir da sua lembrança de como é o desenho. Com a polifonia presente em sua recepção,

o leitor exige que “ativemos a participação da imaginação criante” (BACHELARD,

1988), que vejamos Mônica embalada pela cantiga tocando a borboleta em voo.

A memória sempre foi fio condutor das recepções de muitos textos, mas houve

um texto em que os intérpretes antes mesmo de terminarmos a leitura já faziam

comentários, lembravam suas histórias de infância, falavam das tradições. O encontro foi

na véspera de São João e Banho de Cheiro de Eneida (1989) trouxe muitos e muitos arrais

para nossa leitura em roda.

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Banho de cheiro

De Santo Antônio não sou íntima, tampouco de São Pedro. Remexendo

lembranças, acendendo o passado, não os encontro impressos ou esboçados em nenhuma

fase de minha vida.

De Santo Antônio sempre ouvi falar maravilhas em matéria de amor: fêz

casamentos que pareciam irrealizáveis, uniu lares desfeitos, alimentou sonhos,

esperanças, desejos, ambições sentimentais. Emprego os verbos no passado, se bem que

saiba que o santo português—que é tenente-corporal do Exército brasileiro—continua,

hoje como ontem, em sua bela faina de proteger amôres, e mais do que protege-los,

resolvê-los satisfatoriamente. A Santo Antônio nunca solicitei favores; nunca sei pedir

nada para mim mesma a ninguém, nem mesmo a meus melhores amigos. Consegui, nos

momentos precisos, resolver sozinha meus romances. Hoje dele nada mais espero, desejo

ou quero.

De São Pedro quase nada sei, a não ser que guarda as chaves do céu, lugar que

com certeza jamais conhecerei.

Mas com São João o caso muda inteiramente de figura; São João é personagem

de minha infância; de São João sou velha e dedicada amiga.

Aprendi a amá-la muito cedo. Creio mesmo que êle deve ter sido um dos primeiros

amôres de minha vida, e ora contarei por que São João e eu somos tão íntimos: em minha

terra, na longínqua e amada cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, há uma prática

extremamente bela e perfumada, que se chama banho de cheiro ou banho de felicidade.

Quereis aprender a fazê-lo? A receita é simples, e transmitindo-a, cumpro um dever, pois

de coração vos desejo, a todos, muitas felicidades.

Tomai de uma lata de banha bem limpa. Dentro dela, com bastante água jogai

folhas, raízes, madeiras cheirosas da Amazônia que, raladas, esmagadas—verdes pela

juventude ou amareladas pela velhice—darão, depois de fervidas, um líquido esverdeado,

com estranho perfume de mata virgem.

Perdoai se os nomes dessas ervas parecem selvagens aos vossos ouvidos

habituados aos caros, raros e belos perfumes franceses, cujos rótulos lembram romances

e poemas. Nossos aromas, primitivos, agrestes, são frutos da floresta e, com eles,

naturalmente nossos avós índios também se perfumavam; se não recendiam aquêle odor.

É porque—sabeis—os índios têm cheiro de terra.

Eis as platas necessárias ao banho da felicidade: catinga de mulata, manjerona,

bergamota, pataqueira, priprioca, cipó catinga, arruda, cipoíra, baunilha (só uma fava) e

corrente. Deixai ferver e ferver muito. Depois—ah depois...—deixai esfriar e está pronto

o vosso banho de São João, que deve ser tomado à meia-noite de 23 de junho para abrir

as portas de todas as venturas. São João ajudará.

Manhã cedo, no meu atempo de menina—perdoai se gosto tanto de ressuscitar

meu passado—nas vésperas de São João, a cidade amanhecia festiva, com a correria de

homens carregando à cabeça tabuleiros cheios das ervas da felicidade. Seus pregões

embalavam as mangueiras que arborizavam as praças e a ruas da Belém de meu tempo.

—Cheiro cheiroso ! ( a pronúncia local: chêro chêroso.)

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Eram muitos, muitos; janelas e portas se abriam em todas as casas. Quem deixava

de comprar seu banho para aquela noite? Nos fogões e nas fogueiras—as mesmas que

iriam iluminar a noite do santo, —a grande lata fervendo. São João ia chegar encontrando

nossos corpos perfumados, prontos nossos corações para a felicidade. No cabelo das

curibocas, jasmins e maços de patchuli recendiam.

Na casa de meu pai, meninos brincávamos com balões, soltávamos estrelinhas em

pontas de varas para não queimarmos as roupas, lançávamos para o ar as pistolas. Naquele

tempo não havia, como hoje, bombas e morteiros trágicos, violentos, barulhentos, que

tornam nesta cidade chamada Distrito Federal—e tão minha amada—o mês de junho um

mês de guerras. No meu tempo de menina em conjunto chamávamos foguetinhos.

Os foguetinhos: as estrelinhas saindo daquele bastonete, tão bonitas, tão claras

enquanto gritávamos: “Minhas estrêlas são as mais bonitas! Tenho mais estrelas do que

tu!” cada bola de cor que nascia de uma pistola era um grito de alegria. Naquele momento

não compreendíamos porque havia pistolas se negando a soltar bolas de côr; não sabíamos

ainda da existência de pessoas e foguetinhos que jamais realizam seus destinos.

Alto, muito alto, subia a língua vermelha das fogueiras. Tínhamos o direito de,

naquela noite—rara noite—dormir mais tarde, porque no dia de São João nascera meu

pai e , à meia-noite, mesmo que ela estivesse coberta de cristais, no quintal corria, em

cuias pretas, o munguzá.

Armavam-se ou aproveitavam-se as fogueiras que haviam servido para ferver o

banho da felicidade. Saltávamos gritando: “São João disse, São Pedro confirmou que

havemos de ser compadres que Jesus Cristo mandou.” Podíamos ser compadres e

comadres, primos, noivos, tudo que escolhêssemos em parentesco, porque o dom das

fogueiras juninas é criar a ampliar novas famílias, formar laços até então inexistentes.

Somos muito amigos, por tudo isso, São João e eu. Nunca houve na minha infância

o raiar de um 24 de junho sem que minha família tivesse sido aumentada: à sombra da

fogueira onde corria o munguzá muitas vezes madrinha fui; meus primos se tornaram

multidão.

-— Irmã, não. De irmã não pulo com ninguém. Irmã só mesmo de meus irmãos!

(Tolices de menina, perdoai. Só depois aprendi, com orgulho e alegria, a grande

quantidade de irmãos que tenho espalhados pelo mundo.)

Havia muito mais, e isto dizendo, estou a vê-la agora mesmo sentada num trecho

do Mercado, sobre um banquinho, tão cheirosa na sua roupa cerzida, muito limpa. O

cabelo em coque, e dentro dele um ramo de jasmins bogaris. Ah, os jasmins bogaris de

minha terra, tão escandalosamente perfumados que, se muito usados, podem até provocar

vertigens; foi o que me contou, aconselhando cuidado, a preta Marcolina.

Mas quero falar é da outra, a do banquinho, e seus pés um mundo de plantas,

raízes, favas, ervas de vários fetios, cheiros, formas. Chamava-se Sabá e foi uma das

pessoas mais estimadas de minha mocidade. Contava-me estórias maravilhosas do mundo

vegetal, estórias que depois dela não mais encontrei em nenhum livro, em nenhum pedaço

de vida.

Sabá era, como já disse, uma cabocla paraense que vendia banhos de felicidade

no mercado de Belém. Eu perguntava, segurando uma batata:

—Que isto? Para que serve?

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—Isso é batata de vai-volta. Se você tiver um namorado, se êle lhe deixar, tome

um banho com essa batata que êle volta correndo.

Narrava casos excepcionais: sua prima um dia fora largada pelo marido. Coitada,

cheia de filhos. Sabá preparara um banho com a batata de vai-volta. Terminaram assim:

—Foi dito e feito. Estão aí felizes muito juntos.

Sabia com dignidade e eficiência a ação de todas aquelas plantas. Mulher precisa

agarrar marido, namorado ou outro qualquer amor que começa a ser infiel? É só tomar

banho com carrapato.

—Esfrega-se no corpo dizendo três vezes seguidas: carrapato, assim como tu te

prendes nas árvores faz com que fulano se agarre em mim.

— E agarra mesmo?

Sim, eu gostava de acreditar. E Sabá afirmava com tanta convicção a eficiência da

trepadeira, ilustrando-a com novelas vividas. Muitas plantas para vários efeitos: para se

arranjar namorado, para se ter sempre dinheiro, para que a inveja e o mau-olhado não

perturbem nossa vida.

—E isto para que serve?

—É cachorrinho, meu bem; é a melhor coisa do mundo para amansar gente de

mau gênio.

Sabá vendendo banhos miraculosos no ando com ervas os amôres, fortalecendo

com plantas lares quase arruinados. Sabá amansando, colaborando, construindo. Homens

com tabuleiros gritando “Chêro chêroso”, balões subindo aos céus sem construírem

perigo, fogueiras crepidando, banho de cheiro fervendo, castanhas pulando quentes do

meio do fogo, munguzá em cuias, famílias crescendo, as festas caipiras, os ramos de

jasmins e os Boi-Bumbá vindo para a porta entrar: Quantas bandeirinhas de papel de côr!

Que mundo de lanternas japonesas!.

São João e eu somos velhos amigos; distanciados agora porque moradora de

grande cidade, no meu bairro, São João é uma guerra. Longa, interminável guerra que

começa antes do dia nascer e entra pela noite sem modificações. Não há poesia no São

João carioca, mas foi justamente o barulho ensurdecedor das “ cabeças-de-negro” e dos

“busca-pés” ( não serão bombas atômicas?) que me levaram a evocar São João de minha

infância.

Não posso assegurar que o mesmo quadro do passado se reproduza hoje na cidade

onde nasci. Ela mudou muito; é agora uma triste e envelhecida cidade, arrasada pela

miséria e os maus governos.

A primeira vez que voltei a Belém, depois de quinze anos de ausência, procurei

Sabá. Morrera havia muito—disseram—e infelizmente não deixara receita de nenhuma

erva que dê à gente de minha terra um pouco de dinheiro.

O banho de cheiro ainda existe até hoje e é cultivado por muitas gente (inclusive

por mim, mesmo à distância); pode ser comprado já pronto no mercado ou em casas que

se dedicam aos perfumes da Amazônia. Não resolve nenhum problema, nem sequer traz

esperança, mas continua perfumando os corpos, neles deixando o cheiro de mata virgem.

Presumo qual a pergunta que nasce neste momento em vossos corações. E assim

respondo:

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—Sim, continuo como no passado, tomando o meu banho de cheiro, não mais à

meia-noite, mas sempre nas vésperas de São João. Se sou feliz? Plenamente. Nunca

acreditei que o banho de cheiro desse felicidade, mas asseguro que possuo construída com

minhas mãos, minhas ações, minha cabeça. Minhas mãos e minha cabeça, é verdade,

encharcadas de banho de cheiro.

São João abandonou minha cidade e sua gente. Por quê?

(MORAES, 1989, p. 68- 77)

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No primeiro momento quando viram o tamanho do texto ouvi muitos comentários

como “Má su peste, tudo isso!”, ou “Égua, fessora, a senhora vai castigar a gente hoje

é?” (Intérpretes, EJA, 2017). Não dei atenção para as reclamações, comecei a leitura e

antes mesmo de virar a primeira página já estavam todos envolvidos. As lembranças

embalaram nosso encontro com intensidade, todos queriam falar, sem exceção, e todos

escreveram e até desenharam fogueiras e bandeirinhas. Em meu recorte trago três vozes:

A minha relação com o são João é desde infância quando já dançava na

escola, e minha mãe antes já dançava em quadrilhas de disputa, e o

sonho dela era me ver dançar, e esse ano finalmente eu iria realizar o

sonho dela, e meu, de sair em quadrilha de disputa. Porém não deu certo

pois fiquei doente com depressão, e tive que sair da quadrilha em

março. Eu adoro São João, amo as comidas e as canções e como todos

sabem adoro dançar rsrs. Mas se deus quiser ano que vem eu saio, e vou

arrasar no palco da Funbel (Dionísio, EJA, 2017).

Um dos meus meses favoritos e época de São João não só pelas danças

juninas, mas também pelas comidas, a minha favorita e a canjica. Me

recordo das festas juninas que os moradores organizavam, das

bandeirinhas nas ruas e dos fogueiros. Minha mãe fazia questão que

todos os anos no mês de junho eu e minhas irmãs saíssemos com

vestidos de quadrilha e meu pai comprava os melhores estalinhos e

foguetinhos. Esse dia era um dos melhores da minha vida, por que não

somente brincava e comia os melhores e mais gostosas comidas, mas

também estava na companhia da minha família (Pandora, EJA, 2017).

Bom, meu nome é Anis tive bastantes experiências. Quando criança

lembro que dançava quadrilha no colégio que estudei, era colégio de

freiras e como era colégio só para meninas nós tínhamos que nos vestir

de meninos esse foi meu primeiro ano. No segundo ano me vestir de

menina. Ah! Me lembro que quando tinha dança na minha rua e sempre

vinha aquele boi eu morria de medo eu sempre saia correndo do boi.

Porém, não faço mais parte dessas coisas, pois sou evangélica e não

participo mais. Dessas festa e comemorações (Anis, EJA, 2017).

A fim de encerrar esta sessão, concluímos pela amostra da recepção dos poemas

do livro Banho de chuva de Paulo Nunes (2010), utilizados com as turmas da EJA, três

poemas que falam de três personagens da cidade de Belém: Pupunheiro, Garrafeiro e

Guarda-noturno. A escolha levou em consideração a ligação desses personagens com o

cotidiano do leitor amazônico, a partir do horizonte de expectativas que a Estética da

Recepção propõe, trazer pela poesia de Nunes (2010) o cotidiano recriado para

experiência dos alunos da EJA.

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Pupunheiro

O sol fala roto de rendilhado

E o pupunheiro

—de tabuleiro na mão—

vende pupunha fresquinha

por menos de um tostão:

—pupunhê cozidêêê!

Vermelha verde ou amarela

o pupunheiro

casca descasca casca

e impressiona de prosa

a venta da acessa freguesa:

—Freguesa, freguesa,

beleza se põe na mesa!

Um lote por um real

Bom, barato e sem sal...

(na dúvida da freguesa

o venderim enfeita o pavão)

—Pupunhê cozidê,

um maço por um tostão!

Nos cantos da minha cidade

meses de abril, maio e junho

haja fome

haja perfume

para comer tanta pupunha.

Faça chuva, faça sol

Nas ruelas becos e praças

Ouvidos deitam falação:

—Pupunhê cozidê,

O lote por um tostão”

(NUNES, 2010, p. 26-7)

Garrafeiro

Seu Antônio empurra

um carro e vende sonho.

—Quer vender garrafa,

madame?

O rosto de seu Antônio

Forma estradas de ruga e

mágoa.

Todo magrinho

Seu Antônio

assovia feito passarinho.

—Quer vender garrafa,

doutor?

Seu Antônio conta histórias

De bruxas e fadas e o

Molecada escuta boquiaberta.

Certa vez, seu Antônio,

ao comprar uma garrafa,

descobriu um gênio dentro

dela.

Seu Antônio fez três

pedidos...

E quando demos por nós

O velhinho tinha virado anjo.

(NUNES, 2010, p.23)

O guarda-noturno

O guarda-noturno,

olhando a lua,

guarda nos ombros a solidão

da rua.

O guarda, franzino,

com seu bonezinho,

enfeita o olhar do menino.

Calçado em sua bota preta

O guarda faz par com o vira-

lata Chapuleta.

O apito do guarda-noturno

avisa pra gente

que o sono assina e assanha

o sonho.

As casa batem pestana,

as janelas bocejam

e o guarda-noturno espeta o

silencio:

pri piiii

pri piiii

Quem disse que anjo

não anda na Terra?

Quem duvida, perde a vida

come cascão de...

Bem, quem duvidar é só

passar

À noite na rua Ladeira,

que um homem magrinho, de

imensas

botas pretas

caminha guardando

sombras nas gavetas...

O Guarda-noturno

Guarda o quê?

As flores do sono

virando buquê

(NUNES, 2010, p. 18-19)

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Logo em sua primeira leitura, o poema causou um muxoxo pelo verso “Pupunhê

cozidê” que todos os alunos disseram “Nunca ouvi pupunheiro gritando isso, professora”

e pediram para que durante a leitura trocássemos verso por “Olha a pupunhaaaa”. O

pedido nos remete aos escritos de Paz (2012) quando fala da recriação de um poema:

O poeta sempre consagra uma experiência histórica, que pode ser

pessoal, social ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas, ao falar-nos

de todos de todos esses fatos, sentimentos, experiências pessoas, o poeta

nos fala de outra coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante

de nós e em nós. Ele nos fala do próprio poema, do ato de criar e

nomear. E mais: também nos leva a repetir, recriar seu poema, nomear

aquilo que nomeia; e ao fazê-lo, nos revela o que somos (p. 197).

Ao propor essa troca de versos pelo o que conhecem eles recriam o poema, trazem

para a sua experiência, fato que também se mostrou em uma recepção:

Olha a punpunha!!!

Kkkkkk......

Punpunha é bom...

Com café, com doce de leite, com feijão.

Farofa de punpunha quem não gosta de punpunha não sabe o que tá

perdendo ou seja de outro mundo... rs rs rs... (Jocasta, EJA, 2017)

Um intérprete relembrou a sua vivência como vendedor de rua:

Passei um ano vendendo caranguejo na rua no sábado e no domingo de

manhã eu sei como é a venda nas ruas eu vivi essa experiência as

pessoas vendo um jovem na rua se sacrificando no sol trabalhando não

roubando as pessoas me elogiando é muito bom trabalha.

De certeza esse pupunheiro teve oportunidade igual eu na vida de estuda

para se sacrifica na rua. Se a gente trabalha de dia e estuda de noite

cresce na vida porquê? Eu não me contentava vender na rua eu procurei

uma melhora hoje em dia eu tenho uma profissão graças a DEUS.

Amém (Ícaro, EJA, 2017).

A intérprete da recepção abaixo, num primeiro momento, mostrou resistência em

escrever sobre o poema, justificando não saber o que escrever. Expliquei se não tivesse

nada para escrever ou dizer sobre o poema naquele momento, poderia fazer depois ou não

fazer, ao que ela explicou: “Ter, eu tenho, professora. O meu pai trabalha com pupunha

Mas a senhora vai ler pra turma?”. Mais uma vez, no pedido de segredo, havia matéria

de vida que se revela no mundo real absorvido pela poesia:

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Vida de quem planta pé de pupunha cuida até crescer e ter o fruto.

Meu pai planta, colhe e vende eu acompanhava toda a rotina dele de

cuidar, pegar os pés das pupunheiras e um trabalho cansativo mais é um

trabalho bom pra quem gosta pois é muito trabalho valido a pena porque

vendemos também (Dafne, EJA, 2017).

Para encerrar as recepções desse poema, aquelas que buscaram na memória

familiar:

Pupunheiro, me lembra cafezinho da tarde, com bastante pupunha e

lembro que eu e minha irmã ficávamos na janela de casa as 15:30

esperando o pupunheiro passar pra chamar a nossa mãe pra comprar,

dois copos de pupunha um copo pra mim e outro pra minha irmã e era

bem legal, agente sentava ao redor da mesa e ficava conversando

tomando café com pupunha. (Pandora, 441, 2017)

E numa tarde bonita com os pássaros a cantar e o arco-íris a brilhar e a

família a festejar a mãe perguntava:

-Quem vai querer pupunha com café?

E todos já estavam na mesa antes dela colocar as pupunhas brilhando.

E todos os dias quando o pupunheiro passava gritando:

--Olha a pupunha tem de 1 tem de 2 e tem de 3.

Eu sabia que ia me reunir com aminha família amada. E saborear esse

sabor do meu Pará. (Vênus, EJA, 2017)

Os escritos das duas intérpretes caminham pelo terreno do devaneio, em ambas o

tom saudoso, para lembrar Drummond em que “as coisas findas muito mais que lindas,

ficarão”. Conforme Paz (1992, p.198):

o poema é uma obra sempre inacabada, sempre disposta a ser

completada e vivida por um novo leitor. A novidade dos grandes poetas

da Antiguidade consiste na sua capacidade de ser outros sem deixar de

ser eles mesmos. Assim, aquilo que o poeta fala se transforma, para o

leitor, naquilo que está implícito em todo o dizer poético e que é o

núcleo da palavra poética: a revelação da nossa e sua condição consigo

mesma. [...] A experiência poética—original ou derivada da leitura—

não nos ensina nem nos diz nada sobre a liberdade: é a própria liberdade

se expandindo para tocar em algo e assim realizar por um instante, o

homem.

Tal incompletude do poema mostrou-se genuína nas recepções de Garrafeiro:

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Brincava na rua e bem lá na esquina já avistava, seu garrafeiro, corria

depressa e perguntava pro papai

-Pai, pai o senhor tem garrafa, lá vem o tio do doce..

--Pega as garrafas e traz pra suas irmãs também

Chega meus olhos brilhavam de tanta alegria.

E todos os dias eram assim cercado de ansiedade, a espera de um

senhorzinho. Que não somente trazia o algodão doce mas também o seu

sorriso e generosidade. Dava pra ver em seus olhos a felicidade que

tinha em fazer as crianças felizes.

Com certeza o seu Antônio da minha infância era meu anjo (Vênus,

EJA, 2017).

Lembro muito bem desse homem e bom compartilhar essa emoção

correndo na rua vendo o garrafeiro passa dando sorvete em troca de

garrafa ou algodão doce. Vamos ser sinceros eu adorava quando esse

homem passava procurando garrafa rápido todo mundo, magrinho seu

Antônio assoviava feito passarinho (Ícaro, EJA, 2017. Grifo meu).

A recepção busca no passado a memória desse personagem. Em ambas as

respostas vemos o nome Antônio, que já não é garrafeiro somente do poema, é o

garrafeiro de sorriso gentil de Vênus e o que emociona Ícaro correndo na sua rua. Se

observamos bem o intérprete reescreve o verso ‘assovia feito passarinho” no passado:

assoviava. Marca que fala de algo que ele viu em suas lembranças suscitadas pelo poema.

Essas intervenções dos intérpretes são possíveis porque

O poema é criação original e única, mas também é leitura e recitação:

participação. O Poeta o cria; o povo, ao recitá-lo, recria, Poeta e leitor

são dois momentos de uma mesma realidade. Alternando-se de uma

forma que não é incorreto chamar de cíclica, sua rotação engendra a

faísca: a poesia (PAZ, 2012, p.46).

Já na recepção que segue a intérprete ainda encontra esse personagem no presente:

Na rua da minha casa tem um senhor que troca garrafa por sorvete, e se

der uma retornável ele dá 3 sorvetes, ele parece uma pessoa muito triste

Eu até entendo ele. Quem gosta de ficar no sol das 13:00 hrs da tarde.

Uma vez eu dei um prato de comida pra ele pois percebi que ele estava

com fome, ele me agradeceu com 5 sorvetes (Artémis, EJA, 2017).

Com o poema o guarda-noturno, os comentários não tiveram o tom nostálgico das

recepções anteriores, visto que no contexto dos intérpretes o guarda noturno é uma figura

comum, o caráter construtivo da recepção do poema mostra como cada um volta-se para

si mesmo, para o personagem de sua experiência. Após a leitura do poema muitos

comentaram que o guarda noturno era como um som, inclusive um intérprete brincou

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dizendo: “Professora, tem guarda noturno na minha rua, mas ele é tipo o Lombardi9

porque eu nunca vi só escuto o apito dele” (Jair, EJA, 2017). Essa brincadeira causou

riso e muitos comentários na turma como: “Maisolha essa nova!”; “Sá piada pôco

velha” (Intérpretes, EJA, 2017). Para além dos muitos comentários e histórias que os

intérpretes fizeram sobre esse personagem da cidade em suas recepções lemos:

O guarda-noturno da minha rua é um cara de pau rsrs..

Ele só aparece nos dias de pagamento, nos dias 3,4,5,6,7,8. depois disso

ele some deixando os seus clientes sem proteção sem a vigília. Nos dias

que ele aparece, ele passa a maior parte do tempo dormindo e quando

amanhece ele vai embora como se nada tivesse acontecido. Tipo eu

acho que se ele tá ali pra vigiar o certo e ele passar a noite toda vigiando.

Mas enfim, essa é minha história. (Ártemis, EJA, 2017)

O guarda noturno não é somente o homem que protege a nossa rua e

sim aquele que protege o nosso sono, nossa casa. A lembrança dele é o

apito as 00:00 hs em ponto Que quando criança, a minha mãe sempre

me falava ‘Olha está escutando o guarda, ele tá avisando que tá na hora

de dormir.’ Criança olhava pela janela e sabia que podia dormir em paz,

por que tinha aquele homem todo de preto na esquina da minha casa

com a sua cadeira e seu apito. O guarda é o herói dos moradores. Saber

que tem um homem na esquina, velando pelo sono e da minha família

é um sentimento de gratidão (Vênus, EJA, 2017).

Duas visões diferentes: a primeira intérprete escreve o que já tinha comentado

oralmente, para ela o guarda noturno presta um serviço, assim o tom de melancolia do

poema não lhe alcança, diferente de Vênus que traz um certo compadecimento do

personagem, por sua recepção atravessam dois tempos: o passado de sua lembrança de

criança e o presente em que ela diz ter um guarda noturno.

Guarda noturno via as casas na madrugada vira a noite fazendo favor

para os donos da casa faz companhia para a cachorrada da rua e para

lua lá vem ele na sua bike pri pri pri

Chegou o sol lá vai ele sossegado para sua casa (Eros, EJA, 2017).

Já para esse leitor o guarda faz um favor, observamos que em sua escrita há muitos

elementos do poema: os cães, a lua e a onomatopeia. Mas o intérprete acrescenta a sua

experiência pela presença da bicicleta, singularidade contemporânea.

9 Luís Lombardi Neto foi um locutor brasileiro de rádio e televisão, famoso por anunciar produtos

e quadros em um programa da televisão brasileira. Sua imagem era praticamente desconhecida

do grande público até o fim dos anos 2000.

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Por fim, os escritos da intérprete que traz a experiência por um viés mais próximo

ao personagem do poema:

Achei muito legal o texto, pois o meu pai é guarda-noturno e esse texto

acaba nos mostrando como o guarda-noturno se sente. E uma

profissão bem perigosa, pois quem vai querer ficar na rua, quando

poderia estar dormindo na sua casa dormindo, gostei mesmo do texto

pois eu convivo com esse tipo de profissão. E peço que Deus guarde

todos os guarda- noturno que protegem nossos sonos! (Pandora, EJA,

2017. Grifo meu)

A intérprete encontra no poema significados que evoluem para a maneira que

entende que seu pai, como guarda noturno, se sente. As palavras tocam sua relação

afetiva, confirmadas pela maneira assertiva em como afirma seu apreço pelo poema.

Como vimos nesse percurso, em cada recepção uma construção passível de

variação, livre das respostas engessadas a cada texto:

o leitor repete a experiência descrita nos capítulos anteriores. Essa

repetição não é idêntica, claro. E, justamente por idêntica, é válida [...]

E se o leitor penetra de fato em seu ambiente elétrico, produz-se uma

recriação. Como toda re-criação, o poema do leitor não é uma réplica

exata do poema escrito pelo poeta. Mas, se não é idêntico em relação a

isto ou aquilo, ele o é quanto ao ato de criação: o leitor recria o instante

e cria a si mesmo. (PAZ, 2012.p.198)

A recriação do leitor por sua experiência que enche a página em branco de

palavras que vem ao seu pensar livremente. É oportuno ressaltar que esse movimento se

faz pelas bibliografias não oficias, pelas leituras às margens, porque estão fora da escola,

mas que os encontra no caminho pelas amazônias poéticas, e neste andar optamos a

experiência pela encruzilhada em que se encontra o perto, a presença, a poesia pulsando,

pulsante. Movidos e (re)unidos pela mesma poesia sem aura.

3.1 O desenho do verbo

No descomeço era o verbo

Só depois veio delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá onde a

criança diz: “Eu escuto a cor dos passarinhos.”

A criança não sabe que o verbo escutar não funciona

para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um verbo, ele

Delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer

nascimentos—

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O verbo tem que pegar delírio.

(O livro das Ignorãças, Manoel de Barros)

A Literatura é uma das melhores maneiras de entendermos algumas mudanças no

curso de nossa vida. Há pesquisadores que no curso da pesquisa abandonam

completamente as leituras que não sejam de seu campo teórico; como leitora, esse nunca

foi um caminho para mim, e assim muitas Leituras Literárias vieram fazer parte deste

corpus, porque a Literatura não pode esperar a pesquisa acabar, e assim como a poesia

ela é alimento desta escritura. Por isso, para começar essa sessão trago o trecho de uma

dessas leituras, nele há as considerações de pai sobre um desenho de sua filha, aqui muito

pertinente para as recepções que teremos a seguir:

Cuido do cozimento dos ovos quentes enquanto Lison desenha em

silêncio, a mão fechada sobre a ponta do lápis. Finalmente o desenho,

ela vem me mostrar, e eu exclamo oh, que desenho bonito, sem tirar os

olhos do ponteiro de segundos do meu relógio. É um homem gritando

dentro da cabeça dele, explica a artista. Isso mesmo: da cabeça de um

homem preocupado sai outra cabeça gritando em dois balões e alguns

traços que dizem tudo. Os desenhos das crianças são como os ovos

quentes, obras-primas únicas mas ao mesmo tempo tão numerosas,

neste mundo, que nem o olho nem as papilas gustativas lhes prestam

devida atenção. Se os isolamos, porém esse ovo dominical ou esse

homem que grita dentro da sua cabeça, se nos concentramos

integralmente no sabor do ovo e no sentido do desenho, tanto um quanto

o outro acabarão por se impor como maravilhas fundadoras. Se todas

desaparecessem e sobrasse apenas uma galinha, as nações lutariam pela

posse do último ovo, pois não existe nada melhor do que um ovo quente

e, se restasse apenas um desenho de criança, leríamos tudo neste único

desenho!

Lison está naquela idade em que toda criança usa o corpo inteiro para

desenhar. É o braço todo o que desenha: ombro, cotovelo e punho. Toda

a superfície da página é requisitada. O homem gritando dentro da

cabeça dele se espalha por uma folha dupla arrancada de um caderno.

A cabeça que grita e que sai da cabeça preocupada (preocupada ou

cética?) ocupa todo o espaço disponível. Um desenho em expansão.

Daqui a um ano, a aprendizagem da escrita vai se impor a essa

amplitude toda. A linha ditará a sua lei. Ombro e cotovelo colados ao

tronco, punho imóvel, o gesto se reduzirá à oscilação do polegar e do

indicador exigida pelos minuciosos contornos das letras. Os desenhos

de Lison serão vítimas dessa submissão à qual devo a minha caligrafia

tão absolutamente legível. Depois de aprender a escrever, Lison passará

a desenhar coisas menores que flutuarão na página, desenhos atrofiados

como eram antigamente os pés das princesas chinesas. (PENANC,

2017, p.146-147)

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Cada leitor encontra um modo que se sente mais à vontade de expressar sua

recepção e, no decorrer desta pesquisa, alguns deles encontraram no desenho a sua melhor

maneira de dizer aquilo que não coube no texto escrito. Essa situação se deu de forma

quase exclusiva com os alunos do 6º ano, em pouquíssimo tempo a cada chegada em sala

de aula era recebida com a pergunta: “Professora, a gente vai poder desenhar hoje?”

(Valdo, 6º ano, 2017). E assim, para além de escrever, eles encontraram principalmente

em seus desenhos a liberdade de preencher a página em branco.

A criança ainda traz uma ligação muito forte com o universo colorido dos

desenhos, traz a experiência que envolve as primeiras aproximações com os lápis, com a

folha em branco que outrora ela podia preencher com as figuras que moram em sua

imaginação. Carrega a memória recente de tudo o que o corpo aprendeu na primeira

infância. A maioria ainda traz de casa aquele estojo com motivos infantis que guarda

desde o lápis de cor até a primeira caneta esferográfica, que elas vão estrear nesta série.

Quem de nós professores nunca ouviu a pergunta “É para escrever de caneta ou e lápis,

professora?”.Pois se como no delírio do verso manolês a criança muda a função do verbo,

nas recepções que seguirão a criança desenha o verbo.

“No francês antigo, o verbo escrire significa tanto “desenhar” ou “pintar” quanto

traçar letras: a escritura é uma figuração” (ZUMTHOR, 1993, p. 125). Nossa intenção

foi dar-lhes o direito de escolher outra maneira de expressar seu sentir sobre os textos

partilhados, permitir que escritura, enquanto figuração, fosse restituída ao seu convívio

em sala de aula, para que a linha do papel não dite sua lei sobre a imaginação destes

intérpretes.

Mas como ler esses desenhos? Quem nos auxilia neste olhar é Bachelard (1988),

a partir de seus “Devaneios voltados para a infância”, da obra “A poética do devaneio”.

O filósofo fala sobre a imagem da infância, as imagens que uma criança pode fazer são

manifestações da infância permanente. A percepção de que os intérpretes do 6º ano

estavam mais à vontade com o desenho ocorreu já no primeiro encontro quando, ao

responderem “O que é poesia?”, alguns expressaram seu entendimento sobre poesia

através desenhos:

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Imagem 12: Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura10

Um autorretrato encharcado de poesia. É preciso ressaltar que a criança só precisa

de um lugar para mostrar sua infância que está nela.

Nos lábios de crianças, loucos, sábios, cretinos, apaixonados ou

solitários brotam imagens, jogos de palavras, expressões surgidas do

nada. Por um instante, brilham ou relampejam. Depois se apagam.

Feitas de matéria inflamável as palavras ardem no instante em que são

tocadas pela imaginação e pela fantasia. Mas são incapazes de guardar

seu fogo. A fala é a substância ou alimento do poema, mas não é o

poema. (PAZ, 2012, p.43)

O desenho contém a pureza da resposta inesperada, a palavra aumenta dentro de

sua significância “poesia é voar”, dentro dela cabe um menino suspenso, criador de seu

universo, cabem as “ingnorãças” de quem também viu voo na poesia: “poesia é voar fora

da asa” (BARROS, 2016, p.19). “É flutuar na Leitura”, a palavra foi tocada pela

imaginação e pela fantasia que explica o que eu não posso entender e por isso pergunto:

“E o que são eles quadrados no corpo do menino?”, que a criança com aquele olhar de

quem responde o óbvio: “É pra mostrar como é por dentro, professora” (Hermes, 6ºano,

2017). Mas, naquele momento, ainda ao primeiro encontro, eu não tinha as lentes que

10 (Hermes, 6º ano, 2017)

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fazem olhar por dentro. Foi nos escritos de Zumthor (1993) que encontrei a chave para

essa resposta:

A “mensagem poética” é, assim, sempre uma linguagem em cascata: o

sinal marca um deslocamento, atrai o olhar sobre um deslizar que se

desenha entre espelhos, que o prolongam ao infinito, na penumbra. Esse

deslizar é a ficção; ou ainda mais, a ficção é um estado de linguagem,

esse modo flutuante da existência (ZUMTHOR. 1993, p. 159).

No detalhe do desenho, na resposta da criança que deseja mostrar o avesso está a

cascata de sua recepção poética. E, para além do desenho centrado ao redor do menino

flu-tu-an-te, elementos que constituem sua experiência: à direita aquela árvore, de maçãs

ou laranjas, que todos nós aprendemos a desenhar em algum momento, mesmo que em

nossa vivência não tivéssemos pelas ruas macieiras ou laranjeiras. Mas nos livros e

matérias, produzidos em outras regiões do país com as suas características que

consumimos e nos formaram, essa árvore estava lá. Apesar disso, à esquerda há a marca

do nosso lugar: um açaizeiro. O universo amazônico também se faz presente.

Também sobre tal universo, há recepção que se encontra na poesia “Um lugar

lindo de viver” (Páris, 6º ano, 2017).

Imagem 13: Poesia é um lugar lindo de se viver.11

11 (Páris, 6ºano, 2017)

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Nesta recepção a poesia como “lugar lindo de se viver” há o rio e a floresta que se

confundem em unidade, o sol que vê-se inteiro entre nuvens e o detalhe que dá ao desenho

a subjetividade coletiva, incorporada no homem amazônico: a cobra. E numa observação

atenta do desenho nota-se que

nossas lembranças nos devolvem um rio singelo que reflete um céu [...]

a enseada do rio se alarga. O pequeno faz-se grande, maior que o mundo

oferecido ao devaneio de hoje. Do devaneio poético diante de um

grande espetáculo do mundo ao devaneio da infância há um comércio

de grandeza (BACHELARD, 1988, p. 96).

“As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças” (BARROS,

2016. p. 16). No próximo desenho, a recepção sobre o que é poesia é algo que não pode

ser nomeado:

Imagem 14: Poesia é isso aqui pra mim12

O desenho diz mais pelo intérprete, pela maneira que organiza sua escrita, a forma

que une as palavras, para ele, é mais prazeroso expressar sua recepção pelo desenho. Paz

(2013) comenta essa tendência:

As crianças não têm consciência das palavras; têm consciência, e muito

viva, das frases: elas pensam, falam e escrevem blocos significativos e

têm dificuldade para entender que uma frase é feita de palavras. Todos

aqueles que não sabem escrever bem apresentam a mesma tendência.

12 (Adônis. 6º ano, 2017)

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Quando escrevem, separam ou juntam os vocábulos ao acaso: não

sabem com muita certeza onde eles acabam e onde começam ( p.57).

Mas, apesar de não ter essa certeza, e de não seguir a gramática padrão, a frase

que ele cria não interfere no entendimento de sua recepção, constitui parte do desenho

quando a linha traçada pelas palavras acompanha como um traço em art nouveau as linhas

de seu desenho. E nessa única linha escrita de uma frase que quer demonstrar algo que

para ele ainda não tem nome. Um horizonte? Uma enseada? Um pôr do sol no vale? Com

a sua frase a única certeza que o intérprete nos permite é de que precisamos

voltar para onde os nomes não fazem falta, para o silêncio, reino das

evidências. Ou para o lugar onde nomes e coisas se fundem e são o

mesmo: a poesia, reino onde nomear é ser. A imagem diz o indizível:

as penas leves são pedras pesadas. É preciso voltar à linguagem para

ver como a imagem pode dizer o que a linguagem, por natureza, parece

incapaz (PAZ, 2012, p. 112)

O desenho que explica o significado de poesia e não foi empobrecido por uma

palavra, como explica Barros (2016, p. 20) no poema XIX da didática da invenção:

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a

Imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás

de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta que o

Rio faz por trás de sua casa se chama enseada.

Não era mais uma imagem de uma cobra de vidro que

Fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.

Acho que o nome empobreceu a imagem.

Dessas primeiras expressões em desenho ainda há aquele que vê na poesia uma

palavra como uma meta ou um sonho: “Professora, fiz esse desenho porque a poesia é

tipo o que quero ser” (Édipo, 6º ano, 2017). A recepção não se esgota na mensagem que

explica o desenho, ela ressoa para outra coisa, para além do que é dito: como o leitor

deseja ser.

Neste momento, mais uma vez a dificuldade que envolveu todo meu caminho em

campo, foi a presença da professora titular da disciplina, que apesar de fazê-lo com boa

vontade e na melhor das intenções sempre tentava interferir nas recepções com instruções

como: “Mas tu ainda não terminaste de pintar o desenho. Tem que ser mais colorido.

Escreve no desenho isso: que queres ser astronauta”. A professora não entendia que o

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desenho estava completo, que pintar apenas uma parte do desenho, escolhendo as cores

verde e azul, é uma escolha estética que a criança tem.

No desenho que segue há um astronauta que sinaliza tocar a lua.

Um excesso de infância é um germe de poema. Zombaríamos de um pai

que por amor ao filho fosse “ apanhar a lua”. Mas o poeta não recusa

diante desse gesto cósmico. Ele sabe, em sua ardente memória, que esse

é um gesto de infância. A criança sabe que a lua, esse grande pássaro

louro, tem seu ninho nalguma parte da floresta (BACHELARD, 1988.

p.95).

Imagem 15: Lua13

13 (Édipo, 6º ano, 2017)

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Foram esses desenhos que me fizeram intuir que, com os intérpretes do 6º ano, a

recepção se mostraria mais livre pelo desenho e por entender que a poesia “transforma a

pedra, a cor, a palavra e o som em imagens”. E essa segunda característica, ser imagens

e o estranho poder que elas têm de suscitar no ouvinte ou no espectador constelações de

imagens, fazem de todas as obras de arte poemas. (PAZ 2013, p. 30-31), assim

colocaremos o que se encontrará destes pequenos leitores: a recepção desenhada, tradução

da fruição.

Os primeiros poemas que levei para o 6º ano foram: Boto, de Juraci Siqueira do

livro Paca tau; cuita não! e Boto de Paulo Nunes do livro Gitos, meus minicontos

amazônicos. Apesar de saber o quanto a ilustração dessas obras faz parte dos poemas,

pela impossibilidade de ter um título para cada intérprete, precisei levar os textos

digitados, e afim de diminuir essa lacuna, ambos os livros circularam pela turma durante

toda a aula.

Partilhar poemas de mesmo tema, mas com uma estética muito diferente entre si,

permitiu que os intérpretes percebessem em poesia a mesma palavra que conta uma

história em muitos versos rimados, pode condensar-se em poucas linhas. E assim a partir

da sua recepção e da sua experiência eles foram convidados a utilizar os materiais

disponíveis (papel A4, papel cartão colorido, cola, tesoura, lápis de cor, giz de cera...),

para em grupo fazer a sua própria versão da história que receberam pelos poemas, mito

que todos eles, sem exceção, afirmaram conhecer. Abaixo os poemas e suas recepções

em desenho.

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Boto

Sonso, maroto,

maledicente,

lá vem o boto

virado em gente.

Em noite clara,

à luz do luar,

o sem-vergonha

vem namorar.

De um jacaré

tinga ou coroa,

fez, o malandro

sua canoa.

Num terno branco

sempre vestido,

vem todo prosa,

todo metido...

Pra conquistar

Rabo de saia,

Usa chapéu

Feito arraia.

Pra que ninguém

o reconheça

o tal chapéu

cobre o buraco

de sua cabeça.

O seu sapato

é um acari

que ele roubou

de um cacuri.

Criatividade

é o que lhe sobra:

seu cinturão

fez de uma cobra.

Pra completar

o seu gracejo,

fez um relógio

de caranguejo.

Em toda festa

marca presença

sem nem ao menos

pedir licença.

Mundia as moças

com seu olhar

depois as tira

pra dançar.

Não satisfeito,

O malfeitor,

Induz a jovem

a fazer amor.

Depois se manda

sem dizer nada

deixando a moça

desconsolada.

Meses mais tarde,

Num tapari,

Nasce outro filho

Do tuccuxi.

Como é ladino

esse garoto!

esse menino

filho de boto.

(SIQUEIRA, 2012, p. 16-23)

I

Boto

Boliu com a moça!

Tchibuumm...

Um chapéu branco

boiava no trapiche

pega!

(NUNES, 2014.p.9)

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Imagem 16: A história do Boto cor de rosa

Imagem 17: Boto cor de rosa 1

Imagem 18: Boro cor de rosa 2

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Imagem 19: Boro cor de rosa 3

Imagem 20: Boro cor de rosa 4

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Imagem 21: Boro cor de rosa 5

Imagem 22: Boro cor de rosa fim

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Esse resultado de recepção que aqui se apresenta é uma representação daquilo que

me foi entregue em mãos: um pequeno caderno verde. As crianças utilizaram o papel

cartão e nele colaram os desenhos que ilustram a maneira que, em grupo, montaram a

narrativa e escolheram que momento dela cada um desenhou.

Dito isto, como podemos olhar para esse desenho? De que forma a memória

individual, a experiência singular da forma que cada um recebe os poemas e adere ao mito

que já conhecem, entrelaça-se com o imaginário deles enquanto grupo? Assim, pela

maneira que eles constituíram a sequência dos desenhos, percebemos o imaginário

estetizante, proposto por Loureiro (1995, p.65),

que a tudo impregna com sua viscosidade espermática e fecunda,

acentuando a passagem do banal para o poético. Aquela é geradora do

novo, do recriado. Valoriza a dimensão auto-expressiva da aparência e

sua ambiguidade significativa, nas quais o interesse passa a se

concentrar.

“Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a

manifestar-se como uma construção aberta e linear” (PAZ, 2013, p.75). A poesia que está

na prosa veio primeiramente pelo formato de conto, estando dentre os trabalhados:

Sounds de Maria Lúcia Medeiros foi o que considerei de uma recepção particular desde

a sua partilha na voz. Eis o texto:

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SOUNDS

Ouvido colado ao tronco da árvore, ele buscava o som. Mas o som, qual som, de

quem o som? Da árvore, ora.

A seiva entrando, subindo pelo tronco devia provocar ruídos, barulhinhos... Ele

queria ouvir, podia.

Volteando o dedo na taça de cristal, não vinha o som? E então, por que não ouvir

a seiva feito rio descendo e subindo, correndo para as folhas, para as flores, para os frutos?

Não colavam ao chão, os índios, habitantes primitivos do Brasil, ouvidos atentos

e ouviam o peito da terra? Por que então só ele não podia ouvir assim, o que quisesse ou

inventasse, ou decidisse?

Cachorro não cheirava comida? Ele não podia ouvir o que ninguém ouvia ou

precisava, sei lá...

Ele precisava. Por isso ficava horas perdidas ouvindo o inaudível, mas que para

ele era audível, uma questão de ouvir.

Gostava de ouvir o vento, quando deixava uma fresta na janela do quarto, ouvia e

dormia. E o coração da mãe, do pai, não ouvia? Ouvia e dormia, quantas noites?

Levado ao circo certa noite, aborreceu-se. Era barulho demais, amontoados,

produzidos. Desses ele não gostava porque esses todo mundo ouvia, era barulho feito para

todo mundo.

A água escorrendo, a torneira aberta, era bem melhor, mais gostoso.

— Desperdiçando água, menino!

E ele viajava pelo mundo, menino ouvinte.

Até o dia em que ganhou um toca-discos. Mas quando terminava a música a agulha

corria fazendo um barulhinho que ninguém queria ouvir, esse ele queria e gostava mais.

— Estragando agulha, menino!

Som de flauta era bonito, assim limpinho, som de tecla de piano, assim sem ser

tocado, também. Levantar a tampa do piano com cuidado e bater na tecla, uma nota só

para vê-la fugir dali, ressoar na sala, isso ele gostava.

— Olha o piano, menino!

Olha o piano, menino!

Rasgar o papel em dois, em quatro, em seis, rasgar um monte de papel e ouvir o

barulhinho.

Os outros ficavam irritados, ele gostava.

Rasgava jornal velho, papelão, mãos avermelhadas, fazendo muita força. Rasgar

revista, livro de páginas secas...

—Não rasga o livro da escola, menino!

Ah, mundo esse, sem gente de ouvidos atentos, especiais, gente sem ouvido que

podia viver sem som...!

Ah, mundo de silêncios acumulados, desperdiçados, não recolhidos!

—Está pensando o quê, menino?

Atrás das portas, debaixo das camas, era bom, ouvia melhor. O som dos passos da

mãe indo e vindo. As chaves do pai, assim sem precisar vê-lo, chegando...

— Onde se meteu esse menino?

E ele retornava emburrado para um tempo que passava longe dos ouvidos das

pessoas. Não jantava, ia logo pra cama de castigo. E então era até melhor porque dali

ouvia os sons da casa inteira, olhos fechados, como quem está escondido, só ouvindo.

Às vezes tirava o radinho de pilha de debaixo do travesseiro e ouvia:

— “Caros ouvintes, ouçam agora...”

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Achava engraçado. Era um chamado, um grande chamado para que todos

ouvissem o que podiam ouvir.

Imaginava diferente:

— “Caros não-ouvintes, façam uma forcinha e procurem não ouvir o que acabam

de ouvir...”

Assim podia ser que as pessoas fossem despertadas e, pela curiosidade, ouvissem

sons mais especiais.

Imaginava-se dono de uma imensa torre. Bateria o sino bem forte, chamaria a

cidade inteira.

E quando todos estivessem de cara voltada para cima...

“Quem mora mais longe?”

O que mais longe morasse, aquele portanto que possuísse ouvido mais atento,

quase especial, subiria à torre e, quem sabe, ele arranjaria um parceiro com igual cuidado,

ouvinte como ele?

Imaginava coisas, pensava outras, o menino que só queria ouvir sons mais

escondidos, roçar de asas de passarinho, ronronar de gatos, cigarras no quintal,

anoitecendo...

Chegar perto de uma estrela, voar pro céu estrelado, que som ele ouviria?

Mergulhar no mar profundo, que som ele traria?

O tec da peteca, o toc do formão, o tuc do coração, sons, sons...

Uma vez sonhou. O lugar era enorme, amontoado de nuvens e velhos de barbas

brancas, longas, roupas brancas. Ninguém falava. Mas ele sabia que estavam ali para

ouvi-lo. Porque era o maior ouvinte do mundo e havia sido convidado por isso para

ensinar como ter ouvido atento e falar do prazer de ouvir o que ninguém ouvia, só uns

poucos.

Era como se fosse uma sociedade de bons ouvintes, de ouvidos apurados. Falava,

sentado num imenso trono, colchão de nuvens, silêncio precioso.

Ensinava sem livros, sem quadro negro, sem giz no quadro.

— Menino, olha a hora da escola!

(MEDEIROS. 1994. p. 31-35)

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A leitura de Sounds provocou sensações nas crianças. Nossos encontros eram

marcados também pela mudança na organização da sala, nos sentávamos em círculo,

como uma grande mandala. E nesse sentido, Atena mostrou-se aberta a essa modificação.

Minha percepção de que isso acontecia somente em nossos encontros só ocorreu quando,

ao chegar na porta da sala uma manhã, um dos alunos correu até mim com um sorriso e

disse: “A gente já pode desarrumar as cadeiras, professora?”. Esse verbo coloriu o meu

olhar, para aquele aluno em nossas aulas desarrumávamos a ordem comum da sala e essa

fagulha foi como um presságio para a recepção que viria neste dia.

O primeiro momento deles com o texto foi para uma leitura silenciosa, que a

maioria não fez, e mais uma vez fazer uma leitura em voz alta para eles funcionou como

um chamado: a cada parágrafo eles iam ficando mais calados, a curiosidade sobre

personagem do conto foi maior que os burburinhos que antes os distraíam. Naquele

instante a minha contribuição sensorial era a minha própria voz. A escolha da leitura para

as crianças é por reconhecer que

O intérprete (mesmo que simples leitor público) é uma presença. É, em

face de um auditório concreto, o “elocutor concreto” de que falam os

pragmatistas de hoje; é o “autor empírico” de um texto cujo autor

implícito, no instante presente, pouco importa, visto que a letra desse

texto não é mais letra apenas, é um jogo indivíduo particular,

incomparável (ZUMTHOR, 1993, p. 71).

E eles também foram convidados a ler, apenas os que quisessem, os que sentissem

vontade. E essa liberdade de escolher fez com que poucos manifestassem interesse em ler

para turma, mas também fez que os mais tímidos pedissem algo íntimo para mim, um

sinal de confiança: “Professora, eu posso ler só pra senhora?” (Édipo, 6ºano, 2017). E

recebi essas leituras em voz baixa, entre palavras vacilantes e frases entrecortadas.

Nos comentários sobre o conto, as crianças falaram muito sobre os sons que

gostavam de ouvir, os que não gostavam e todos os seus porquês:

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Imagem 23: Som de chuva

Gosto do som de quando o vento sopra quando chove e gosto também

do som da chuva da tarde (Heitor, 6º ano, 2017).

Os sons do vento e da chuva colorem os desenhos de Heitor, que ao falar da chuva

da tarde marca seu pertencimento. “Chuva da tarde” é expressão local, e em seu pintar,

pequenos riscos que pretendem ser gotas alcançam o chão do papel, tocando quase todo

desenho, com a exceção do pequeno menino autor de si mesmo que se protege por um

guarda-chuva cor de chuva. É preciso olhar para esse som que encontra uma lembrança

coletiva, quem não conhece o som da chuva paraense? Que não avisa, apenas cai, grande

e forte. O desenho do intérprete é um convite e uma lembrança de que:

todos a fazer e reconhecer a permanência, na alma humana, de um

núcleo de infância, uma infância imóvel mas sempre viva, fora da

história, oculta para os outros, disfarçada me memória quando a

cantamos, mas que só tem um ser real em seus instantes de

iluminação—ou seja nos instantes de sua existência poética.

(BACHELARD, 1988, p. 94)

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Imagem 24: Chuva de pipoca

Logo quando li o texto lembrei rapidamente, dos barulhinhos que

fazem no teto de casa, logo quando todos dormem portanto só eu ouço.

Por um lado o barulho incomoda muito por me impedir de dormir, mais

por várias noites que o barulho não aparece, e consigo dormir. Mais

quando ele aparece é bem ruim de conseguir dormir.

Eu gosto dos barulhinhos de chuva que fazem no teto de casa, por que

parece barulho de pipoca estourando. Minha irmã sempre diz que não

posso ouvir barulho de nada que já penso em comida kkk (Métis, 6º

ano, 2017, Grifo meu)

Na imaginação da criança há um barulho no teto que somente Métis pode ouvir,

um barulho que às vezes vem outras não, A subjetividade desse som foi suscitada pelo

texto, já que o personagem fala de sons que apenas ele presta atenção, assim a intérprete

se coloca nessa mesma perspectiva. E em seu desenho, o som da chuva ultrapassa a

imagem comum para assemelhar-se ao som de que inclui um desejo de sabor, a

imaginação da intérprete ultrapassa o som real da chuva e chega no som do devaneio

provocado por ela.

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Imagem 25: O som das cigarras.

O som das cigarras é o som que eu acho estranho, mas presto muita

atenção, pois ele vem ao amanhecer, algumas pessoas ouvem mas não

apreciam o som, eu acho estranho porém legal e bom de ouvir

(Agamenon, 6º ano, 2017).

O estranhamento não impede o leitor dar atenção ao som das cigarras e, em seu

escrito, ele chama atenção para os que ouvem mas não apreciam o som dessa pequena

percepção cotidiana: “escutemos o violino das cigarras. Vento cantando” (LOUREIRO.

2017, p. 55) entre as árvores de seu desenho.

Imagem 26: uma árvore de sons

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Eu uso qualquer som na minha casa. No terceiro andar da minha casa

dá pra ouvir as pessoas subindo mas, quando a minha mãe, meu pai,

meus irmãos, estão lá no 3º andar da casa eles não escutam eu subindo

porque eu vou para lá na ponta do pé e eles não escutam e eu tenho o

meu sexto sentido que eu vou explicar por porcentagem %. Na audição

eu tenho 55%, no olfato tenho 15%, na visão tenho 15%, no tato tenho

10% e no paladar 5%. Mas mesmo assim minha mente é uma árvore de

sons que brota toda hora. (Hera, 6º ano, 2017)

Em sua recepção, Hera convida o leitor para “exercícios de ser criança”, como

podemos perceber esses escritos matéria de poesia? Somente pela voz do poeta:

Será que os absurdos não são as maiores virtudes

da poesia?

Será que os despropósitos não são mais carregados

De poesia que o bom senso?

Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com

As crianças. (BARROS, 2013, p.453)

Imagem 27: O som da peteca.

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Desenhador: M.

O som da peteca é: tec, tec, tec

Eu não gosto do som da peteca porque é um som que dói no ouvido é

um som enjoativo então eu não gosto desse barulho da peteca (Páris, 6º

ano, 2017).

O desenhador dessa recepção não deixa dúvidas: som de peteca é barulho que

dói, é barulho enjoado. Em seu desenho ele coloca uma espécie de lente de aumento

fazendo com que a peteca pareça muito maior, em perspectiva com o sol ela torna-se

imensa como o incomodo que para ele causa. As duas esferas lembram dois cometas se

chocando. O desenhador faz que leitor abra os seus sentidos para a imaginação da matéria,

para som do choque. A sua percepção das petecas ultrapassa o real, como revela

Bachelard (1986, p.16)

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar

imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que

ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de

sobre-humanidade.

Na última recepção de Soudns, temos:

Imagem 28: O som da pia.14

14 (Aquiles, 6º ano, 2017)

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Do decorrer dos encontros os intérpretes foram aprimorando seus desenhos, neste

vemos claramente a estética dos quadrinhos. Nos dois primeiros quadros, ele expõe o

som que não gosta. Nos dois últimos quadros, o comentário do intérprete pela voz “Quem

não gosta de Rock-rol e vídeo game, professora?” (Aquiles, 6ºano, 2017).

Entre os textos em prosa, Lindanor Celina (1995) foi uma escolha certeira. O

universo ficcional de Menina que vem de Itaira, a infância de Irene falou de forma

especial para os alunos, e pensando nisso considerei importante levar por dois suportes:

o texto pelos quadrinhos “Menina que vem de Itaiara: adaptações em quadrinhos do

romance de Lindanor Celina/ organizado por Volney Nazareno. Belém: Fundação

Cultural do Estado do Pará. 2017” e o texto do livro, com o objetivo de possibilitar mais

de uma leitura para as crianças.

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Era de tardezinha. De baladeira em punho, em frente a casa, atirávamos pedras nos frutos

da mangueira de seu Zé, que se debruçava sobre a rua. Uma pedra bateu-lhe no ombro. Virou-se:

“Menina não brinque de bodoque, isso é pra moleque”. E prosseguiu, muito digno, no seu

caminho, no rumo da lagoa, ia tomar o seu banho de todas as seis horas, no igarapé das Ora-Veja.

Reposta minha foi catar outra pedra do chão e enviar-lhe, certinha, no traseiro. Ele não perdeu a

calma, voltou-se novamente e falou apenas, sem mesmo erguer a voz, só sacudindo um pouco a

cabeça: “vou contar à sua mãe”. Eu gritei: “Vai” (e disse o resto). Nicanor estacou, ainda mais

branco, batendo as pestanas tesas, até que o olho de gata apareceu, enorme, esgazeado no espanto:

“Espera...tu sabes esse nome?!” Eu, nem nada, continuei escolhendo pedras e mandando-as bem

alto, nas mangas amarelinhas.

Não demorou, voz de mamãe: “Dona Irene, largue essas pedras, e já pra dentro!”

Estranhei o tom, mas não muito, ela falava sempre rosado, nem me lembrei de Nicanor. Mal fui

entrando, estalou-me um bofetão bem na boca: “Vai, vai chamar nome feio, demônio!” Um gosto

de sangue, que dor nos dentes da frente, e o lábio partido, pulando de repente, como que caba

ferrou. Levou-me pro quarto, sentou-se na cama, eu de pé diante dela. Tremia de raiva: “Não

minta, quem lhe ensinou aquele nome, quem foi?” Eu chorava, não sabia, não lembrava de quem

o ouvira. Mamãe, a voz entrecortada, sem fôlego de tanta ira: “Foi bem o ordinário do Xonda, é

só o que ele aprende”. Contendo a fúria, noutro tom: “Me diga, você sabe o que é essa palavra?”

Claro que eu desconfiava, mas neguei, neguei, com o choro, com a cabeça, veemente. Ela falou:

“Olha aqui, isso é coisa muito feia, ouviu, é imoralidade, não deve andar nem em boca de

carroceiro, que dirá de menina. Me jure que você não repete mais isso, que prefere perder a língua

a chamar esse nome”. Prometi, jurei, soluçando, o beiço por acolá, intocável.

Nunca mais, que me lembre, chamei nome. Embora ouvisse muitos, a infância inteira.

Passei o resto da noite odiando Nicanor, rogando-lhe pragas, desejando-lhe a morte.

Imagina o dia amanhecendo, João agoniado vindo bater na porta: “Padrin Geraldo madrinha

Adélia, uma desgraça, Nicanor morreu esta noite, de repente”. Via João chorando, o desespero de

dona Zefinha, me dava uma pena deles. Não, morte não servia, tinha que ser um coisa ruim que

atingisse a ele, a ele só. Levei bem três dias sem ir lá. Distraía-me, vontade tinha, o hábito fazia-

me quase atravessar a rua, sentia o beiço pulado, dolorido, voltava, Mas quando sarou, ficou

normal, a raiva, também essa, desinchara.

(CELINA, 1995, p.26-27)

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Imagem 29: Quadrinho Menina que vem Itaiara 1

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Imagem 30: Quadrinho Menina que vem Itaiara 2

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Imagem 31: Quadrinho Menina que vem Itaiara 3

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No primeiro momento vendo os quadrinhos alguns perguntaram: “É pra gente

pintar esse desenho, professora?, ao que expliquei que também poderiam pintar, mas que

poderiam criar as suas próprias versões daquele trecho com suas experiências. Curioso

que como no texto a personagem apanha da mãe, a maioria das histórias girou em torno

de uma experiência assim:

A Sandália Bumerang

Um dia eu tava brincando de bola dentro de casa e então eu quebrei 2

copos da mamãe e então eu ouvi ela gritando “MENINO!!” eu só vi a

sandália, e eu saí correndo mas não adiantou. Eu só ouvi um barulho, e

antes que eu visse a sandália já tava na minha costa, mas eu levantei e

saí correndo de novo, e eu me desviava de tudo, então eu me tranquei

no banheiro eu fiquei lá por 2 horas. Quando eu saí a mamãe estava

escondida só me esperando e levei outra sandalhada... Fim. (Adônis, 6º

ano, 2017)

Essa recepção não veio acompanhada de desenho, pois o aluno não estava presente

no segundo encontro. O texto dele tem humor, e provavelmente um pouco de exagero,

mas a intenção de criar uma história com um tom cômico fala de sua maneira leve de

receber o texto de Lindanor. Júnior constrói uma narrativa curta e bem cadenciada.

Menina que vem de Itaira foi escrita em uma época em que a infância era outra e, ao

contar sua experiência a partir do lido, o intérprete demonstra como possibilidade de a

obra se atualizar como “resultado da leitura é o sintoma de que está viva; porém, como as

leituras diferem a cada época, a obra mostra-se mutável, contrária à sua fixação numa

essência sempre igual e alheia ao tempo (ZILBERMAN. 1989 p.33).

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Imagem 32: Pulf

Uma vez eu estava brincando lá na vila que eu moro, um minuto depois

passou uma senhorita e eu chutei a bola e acertou nela, ela falou presta

atenção eu falei vai pra casa do ca... Minha mãe me deu uma bofetada

na boca e uma sandalhada no bumbum e me botou de castigo por uma

semana (Páris, 6º ano, 2017).

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Imagem 33: Uma flor

Era uma vez tava brincando na rua de lá de casa. E a minha mãe gritou:

“Filho, entra pra dentro de casa, já! Tá escurecendo”. E eu respondi: “Já

vai”. Quando eu entrei ela disse: “Toma teu banho e te arruma pra você

vim jantar” e eu tomei meu banho e me arrumei. Quando eu puxei o

prato pra comer e sem querer eu derrubei todos os pratos e quebraram

e a minha mãe entrou dentro do quarto e ela voltou com um cinto. E eu

apanhei e fiquei 1 ano de castigo sem jogar vídeo game. Depois disso

tudo voltou ao normal... (Aquiles, 6º ano, 2017).

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Nas duas recepções, a leitura do trecho de Celina (1995) apresenta-se por texto e

desenho, onde os intérpretes apropriam-se da estética dos quadrinhos para contar suas

experiências. A poesia em livre pensamento transforma-se em desenho que guarda as

significâncias de algo só por eles experimentado e, ainda que as situações sejam

parecidas, a estética que envolve seus trações e cores, suas percepções de espaço e tempo

recriam seu universo por elementos particulares: no primeiro desenho a cor também é

uma expressão da criação, especialmente no autorretrato em que o vermelho da bofetada

foi feito por um batom emprestado de uma colega. Já o segundo desenho, em preto e

branco, o intérprete utiliza a própria caneta para dar os contornos e preenchimentos nas

figuras, traços que reforçam o dinamismo quadro a quadro.

Ainda trabalhamos com outro trecho do romance de Celina, que nos quadrinhos

ganhou o título de Procissão do Senhor Morto:

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Morávamos em Buritizal quando meu pai, num dos seus arrancos da mocidade, se

mudou para Itaiara. Mamãe nunca lhe perdoou essa presepada que considerou funesta em

nossa vida. Falava constante daquela viagem em noite de breu, deixando assim tão brusco,

o nosso bom Buritizal para um incerto lugar.

Não me dei conta da mudança.

Quando abri os olhos para o mundo, me vi naquela casa de porta e janela, na rua

das Pedras. A mais remota lembrança, minha, foi mesmo daquele dia de procissão.

Procissão do Senhor Morto. Eu teria, deixa ver, meus quatro anos, não mais. Papai vivia

de andanças na estrada de ferro, negociando com peixe seco e camarão. Mamãe nunca

saía de casa. Boa católica, nesses tempos, morria de vontade de ir à missa, uma novena,

uma procissão. Éramos novatos na cidade, ela não conhecia ninguém a quem me confiar.

Mas naquela sexta-feira santa, as matracas estralando pelas ruas, chamando

insistentemente ao enterro de Jesus, todo mundo passando para a igreja, minha mãe não

resistiu e resolveu levar-me. Pôs-me o melhor e mais recente vestidinho, laço de fita no

cabelo, meias de seda, cordão de ouro, saí de casa muito bem encadernada.

Mal entro na igreja, dei com aquele homem ensanguentado no caixão coberto de

flores, à luz das velas, as moscas esvoaçando por cima do véu, e saltei para o colo de

mamãe num alarido que ela, coitadinha, nem chegou a fazer o pelo-sinal.

Confusa, humilhada ante os “também, trazer criança em igreja com tanto povo”,

“onde já se viu carregar menino pequeno num mundéu de gente desse”—abalou dali, às

carreiras, renunciando de vez à procissão de vergonha, logo de aflição, temor de que

tivesse alguma coisa. Contava que meu pavor foi tal que me pus branquinha e tremi e

gritei desadorada, durante a volta. Ao chegar em casa, um custo para me aclamarem. A

grados, água com açúcar, chá de carmelitana. De noite, olha o febrão, e pelas tantas,

acordei aos berros, assombrado com o Senhor Morto. Pensei que era defunto mesmo.

(CELINA, 1995. p.9 -10)

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Imagem 34: quadrinho procissão do senhor morto 1

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Imagem 35: quadrinho procissão do senhor morto 2

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Imagem 36: quadrinho procissão do senhor morto 3

A recepção dos intérpretes novamente por uma pequena narrativa e sua

representação em desenho:

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Imagem 37: Dois dias depois

Sexta-feira santa é o dia que Jesus Cristo Morreu

Minha mãe disse: Filho todos tem que respeitar esse dia. O filho falou:

Porque mãe? Meu filho é o dia que Jesus cristo morreu.

Dois dias depois: “Mãe, eu tive um sonho.” Meu filho como foi esse

sonho? “Eu sonhei com Jesus Cristo morto em um caixão cheio de

flores em cima e ao redor luz de velas. Eu pensei que era vida real, mais

era penas um sonho. Mãe: É a vida é assim meu filho. FIM. (Páris 6º

ano, 2017),

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Imagem 38 : Fim

Era uma vez: Eu fui com os meus pais pra uma cidade pequena.Era uma

cidade pequena com muitos habitantes, e lá tinha muitas igrejas

católicas. Minha mãe mandou eu me arrumar mais certas igrejas tem

seu modo de ser, me vesti então eu me arrumei com uma calça e uma

camisa social porque as igrejas são lugar santo e dedicado a todas as

pessoas religiosas que nela habitam. (Aquiles, 6º ano, 2017)

A maneira que os intérpretes criam as suas narrativas, a partir do texto, nos remete

às premissas de Jauss retomadas por Zilberman (1989, p.34) quando indica que:

Examinando a experiência literária do leitor, Jauss adverte que, para

descrevê-la, não é necessário recorrer à psicologia. Sua análise volta-se

à recepção e o efeito de uma obra no sistema objetivo de expectativas

que, para cada obra, no momento histórico de seu aparecimento, decorre

da compreensão prévia do gênero, da forma da temática de obras

anteriormente conhecidas e da oposição entre linguagem poética e

linguagem prática.

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Dessa forma, vê-se que ambos contam experiências relacionadas com à

religiosidade, colocam elementos da narrativa como a chegada em um lugar novo, ou a

visão de um Cristo morto, como no texto que lhes foi apresentado, ou seja situações que

condizem com o horizonte de expectativas, a recepção representa o envolvimento dos

intérpretes e a maneira como eles sentiram o texto.

Durante o caminho em campo há um autor que criei grande expectativa em

partilhar com os alunos, talvez por ter sido o poema que mudou a minha percepção de

poesia e da maneira como ela chega ao nosso corpo, e assim como o toque final os últimos

textos trabalhados com o 6º ano foram do poeta Paulo Plínio Abreu:

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O comedor de fogo

Veio do comedor de fogo e de seus milagres a esperança

impossível.

Do comedor de fogo e de seus milagres à porta de sua tenda

Onde dormiam os cães numa nuvem de moscas.

Veio do comedor de fogo a esperança dos mundos

impossíveis.

Veio dessa lembrança hoje apagada pelo tempo o sombrio desejo de evasão.

Veio do comedor de fogo a visão da vida aberta como um

grande circo

E o convite irreal para a distância onde se esconde a morte.

Até o amor se perdeu nessa lembrança de um estranho

comedor de fogo

E toda a infância confundiu-se com os milagres desse

saltimbanco

E de seus cães doentes à porta de sua tenda.

(ABREU, 2008, p. 42)

Lembranças de um espantalho

Lembro-me que era um espantalho

e que balançava no ar

no caruncho da tarde o seu frágil corpo de pano

tanto mais terrível quanto mais humano

pois algo havia de humano

no ar da tarde ou no espantalho

que me lembro ter visto.

Era só um espantalho

agitado no ar pelo vento da tarde.

A chuva caía-lhe na cabeça grotesca.

Um verme subia no seu corpo

para roer-lhe a madeira.

E eu quis pousar no seu ombro

o meu cansaço de ave.

Mas algo havia no seu ser

que me aterrou.

(ABREU, 2008, p.53)

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Desses poemas veremos a seguir o olhar de dois intérpretes. O primeiro organiza

sua recepção dos dois poemas e apresenta dois desenhos em tirinhas:

Imagem 39: Era um comedor de fogo.

Era um comedor de fogo que eu vi no sinal. Eu achei o comedor de fogo

legal. Mas eu já ouvi falar que no circo as pessoas que trabalham lá

dentro, batem nos cães. E eu imagino os cães cheios de moscas, como

diz no texto, doente, isso é muito triste, mas o comedor de fogo é legal

(Adônis 6º ano, 2017)

Imagem 40: Lembrança de um espantalho.

Um dia, eu vi um espantalho balançando no ar ele me dava medo. Na

casa da minha vó tinha um espantalho, lá na fazenda, eu brincava com

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ele, era legal. Parecia que ele estava vivo, e era também um pouco

assustador mas o espantalho era legal. (Adônis, 6º ano, 2017)

A melancolia comprida que atravessa os versos de Abreu (2008) ao olhar do leitor

transita entra uma experiência vivida, o comedor de fogo dos sinais da cidade, e um

devaneio poético no qual ele imagina os cães cheios de mosca e doentes e se entristece.

Em seu desenho o cão chora, seja pela imagem poética, seja pela informação de maus

tratos que ele rememora a partir dela. Bachelard (1989) explica esse devaneio poético:

O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é

o devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo; para mundos

belos. Dá ao eu um não-eu que é bem do eu: o não-eu meu. É esse não-

eu meu que encanta o eu do sonhador e que os poetas sabem fazer-nos

partilhar. Para o meu sonhador, é esse não-eu meu que permite viver a

minha confiança de estar no mundo. Em face ao mundo real, pode-se

descobrir em si mesmo o ser da inquietação. Somos então jogados no

mundo, entregue às inumanidades do mundo, à negatividade do mundo,

o mundo então é o nada humano. As exigências de nossa Junção do real

abrigam-nos a adaptar-nos à realidade, e constituirmo-nos como

realidade, a fabricar obras que são realidades. Mas o devaneio, em sua

própria essência, não nos liberta da função do real? Se o considerámos

em sua simplicidade, veremos que ele é testemunho de uma função

irreal, função útil, que protege o psiquismo humano, à margem de

todas as brutalidades de um não-eu hostil, de um não-eu estranho. (p.

13)

Para o próximo intérprete, em sua recepção, esse devaneio é chamando de ilusão:

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Imagem 41: The-end

“Era uma vez”

Eu fui de ônibus pra casa da minha avó! De repente eu fiquei assustado

com um espantalho de uma fazenda de arroz era de tarde nos fomos e a

volta foi de madrugada de repente eu tive uma ilusão pulei rapidamente

pro colo da minha mãe depois eu vi que era uma folha de palmeira.

(Aquiles, 6º ano, 2017)

A criação de Aquiles é marcada pelo título de seu texto “Era uma vez”, em que

ele se utiliza de elementos comuns aos contos de fadas como o deslocamento do

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personagem, um elemento que à luz do dia é curioso, mas que à noite torna-se assustador,

a mãe enquanto figura de proteção e, por fim, a revelação do elemento de perigo como

algo inofensivo: a palmeira.

Além de todas as recepções mostradas nessa sessão há muitas que pela

necessidade de um limite nas análises, não puderam compor o corpus, assim os desenhos

escolhidos representam um movimento diferente nessa pesquisa, um caminho que de

desvelou surpreendente mostrando os contornos da verbo que vibra na infância, infância

que “é o sempre da humanidade quando nos restituímos do que verdadeiramente somos,

isto é, palavra errante, linguagem fundante de todos os verbos, inclusive dos que ainda

não existem (PESSANHA, 2014. p. 213).

As crianças estavam com os sentidos abertos para receber a poesia, do primeiro

ao último texto suas experiências embalaram seus escritos e a recepção delas me obrigava

abrir também os meus sentidos, olhar o verbo, sentir sua vibração, perceber os sons que

as palavras guardavam, os significados muitas vezes trazidos na voz e o entendimento de

que

um pequeno acontecimento na vida de uma criança não é um evento de

seu mundo, portanto, um acontecimento do mundo. Em sua unicidade

uma tal lembrança é um cosmodrama natural. Quando uma lembrança

pode, desse modo, montar um cosmodrama, não se sabe bem se é um

ponto de história ou o ponto de partida de uma lenda (BACHELARD,

199, 0p. 55)

Em todo esse convívio guardei muito mais que o desenho do verbo, que pretendia

ser o fechamento desse texto, mas a palavra, “ai palavras! que estranha potência vossa”,

guarda surpresas e o texto em sua governabilidade se mostrou ainda mais, na sessão que

segue, pelo fogo de Prometeu.

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3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos!

— Ele escreve versos!

Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico

levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em

topo de montanha.

— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?

O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não.

O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino,

nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias [...]

Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola

do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa,

papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a

autoria do feito.

— São meus versos, sim.

O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era

coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o

rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se

acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se

passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias

dessas que a vida do homem se queda em ponto morto? [...]

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendidos. O médico,

sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O

menino não entendeu.

— Não continuas a escrever?

— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este

pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a

meio.

(O fio das miçangas, Mia Couto)

Conta o mito grego que Prometeu criou o primeiro homem usando o barro e foi

grande benfeitor da raça humana. Segundo Kury (1990) o nome desse titã traz em seu

significado “aquele que pensa antes”. Prometeu enfrentou o deus supremo do monte

Olimpo, Zeus, roubando o fogo para entregá-lo à humanidade e por essa desobediência

foi duramente castigado por Zeus, sendo acorrentado a um rochedo onde uma águia vinha

devorar-lhe o fígado que por sua imortalidade se reconstituía, fazendo com que sofresse

uma punição eterna.

No decorrer de minha viagem para Ítaca, alguns intérpretes mostraram em sua

recepção duas formas diferentes, que considerei como um ponto fora da curva. Primeiro

a intertextualidade, a partir de uma fruição que traz para a recepção dos textos

trabalhados, poemas de outros autores. Responder um poema com outro poema nos

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coloca como na dimensão de uma dança, como se o texto que chega pare eles fosse um

convite à correspondência poética.

A segunda forma que se apresentou de maneira singular foi quando eles

perceberam a estética do texto poético e mais do que comentar sobre seu sentir,

representaram sua fruição em versos. A experiência com a palavra poética passou pelo

corpo deles a ponto de lançarem à página em branco os seus próprios versos. Tais atitudes

nos mostram como:

a poesia é uma experiência holística. Junta o que o pensamento

mecanicista separa. A poesia religa sujeito e objeto, diferentes e

inseparáveis, na práxis e na poiesis do conhecimento. Religa a

dimensão intelectual e a dimensão sensível. Educa afetivamente,

porque leva a viver os afetos, compartilhados pela humanidade inteira.

Educa a sensibilidade, no sentido de educar a percepção e no sentido de

educar os sentimentos. Educa também a racionalidade, que se abre ao

diálogo com outras vozes que interpretam e expressam o humano

cósmico. (ANTÔNIO, 2002. p. 16)

A experiência com a poesia entrega ao leitor o fogo, o desejo da escritura assim

como

Prometeu, a mais alta figura que a imaginação ocidental criou. Nem

mago, nem filósofo, nem sábio: herói, ladrão do fogo, filantropo. A

rebelião prometeica encarna a rebelião da espécie. Na solidão do herói

encadeado pulsa, implícita, a volta ao mundo dos homens (PAZ, 2013,

p. 62).

O intérprete expressou do texto lição de borboleta criando um poema:

Pequeno poema: (autoral)

Eu queria ser como as borboletas que em todas as flores podem pousar,

e em todos os bosques podem estar eu queria ser como a agua, que em

todos os rios vai navegar, e de alguma goteira vai pingar e durante as

chuvas alguém molhar, eu queria morar nas nuvens, pra que de lá do

alto as pessoas eu possa contemplar e de lá mesmo irei sonhar e talvez

um dia enfim acordar!( Dionísio, EJA, 2017).

Nesse pequeno poema autoral, para além da clara marcação do infinitivo para

construir sonoridade, o intérprete vê na borboleta a liberdade simples de estar em todos

os lugares. Em seu escrito, o sonho e o devaneio tocam “a página, que não é outra coisa

senão representação do espaço real onde a palavra se desdobra, torna-se uma extensão

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animada, em perpétua comunicação com o ritmo do poema” (PAZ, 2012. p.287). A

expressão pelo poético não precisa ser explicada, mas neste caso, é válido incluir o

comentário que acompanhou esses escritos: “Professora, eu escrevi um poema porque eu

queria morar nele, porque como eu assim (falou apontando para o corpo todo) as pessoas

iam me aceitar”.

Importante dizer que ao fazer esse gesto na entrega do poema, ele demonstrou sua

orientação sexual para a homossexualidade, abrindo o poema para uma nova leitura: a de

um jovem que se sente oprimido e que demonstrou ser isolado ou não aceito pelos

colegas. A expressão “queria morar nele” é comum nas redes sociais quando se refere a

algo agradável e utilizar-se dela aponta para a aproximação do intérprete nessas mídias,

e ao universo virtual, que costumam mostrar apenas o lado positivo da realidade das

pessoas. Então, a recepção dele permite perceber que

a imaginação precisa de espaços livres para se mover. Espaços livres

para dançar. Não saturados pelos estereótipos. Para que o novo possa

se desenvolver. A prática da poesia, a convivência com poesia pode

participar dessa criação de espaços de liberdade, que representam a

respiração da atividade imaginativa, assim como pode participar da

resistência do real à manipulação interminável das imagens. De um

lado, participa pela ruptura dos modelos impostos. De outro, pelo

desenvolvimento do novo. Poesia. Imaginação. Liberdade. A atividade

da imaginação é uma experiência de liberdade. É preciso pensar o

possível –e até o impossível- para se fundar o aqui que tem se revelado,

muitas vezes sem perspectivas, sem esperanças (ANTÔNIO, 2002. p.

78).

Quando por Lição de Borboleta o aluno encontra na palavra o devaneio de um

desejo: “queria ser” e nele, algo que inspira esperança quando “tudo aquilo que a nossa

civilização rejeita, pisa e mija em cima, serve para poesia.” (BARROS, 2013. p. 136), a

chama de Prometeu está acesa.

Nos textos das poetas Adalcinda Carmarão (1995) e Dulcinéia Paraense (2011) as

recepções figuram pelas duas formas apontadas: dois intérpretes responderam por outros

poemas, recolhidos na internet e outro criou seu próprio poema. No encontro dessa

partilha, os poemas das autoras foram levados em conjunto para que os leitores

percebessem dois olhares sobre a nossa cidade. Importa ainda observar que, ao receberem

os poemas impressos, alguns alunos liam o texto em voz baixa, essa atitude encaixa ao

que Zumthor (1993, p.160) cometa sobre o texto oralizado:

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Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja

um corpo—repugna mais que ao texto escrito toda percepção que o

diferencie de sua função social e o do lugar que ela lhe confere na

comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou

implicitamente; das circunstâncias, enfim nas quais se faz escutar. O

texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,

intrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos entre o

momento em que é produzido a mensagem e aquele em que esta é

recebida.

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Paisagem típica

À memória de meu grande

Amigo

Georgenor Franco

Fim de tarde. Belém fecha as pálpebras mansas

E finge que adormece, em traje de noviça.

Rezam sinos de Deus. Abençoando crianças

Desce a lua pra ouvir da noite branca missa.

O caboclo delira. A morena enfeitiça

cheirosa dos jasmins que prendem suas tranças.

Se a cidade convida, o luar tem preguiça

E prefere sonhar com as suas nuanças.

Da outra banda, por trás da triste ilha das Onças,

têm-se a impressão que o sol afundou-se lascivo

e as nuvens, sem pudor, foram ficando sonsas.

E entre as velas azuis e brancas, do desprezo

dos barcos, onde as violas buscam lenitivo,

a alma de Belém chora no Ver-o-peso!

Belém, 1983

(CAMARÂO, 1995, p. 308)

Belém, Belém...

Ai, Belém,

ai, Belém

de papoulas vermelhas

que ardem na saudade, como brasa!

Tua cidade velha, colonial,

com seus requintes já tão desprezados,

é uma fotografia desbotada, encardida

pelo tempo de uso da memória.

Ai, Belém,

Ai, Belém!

Lembro teu Ver-o-Peso

formigando de gente;

lambuzado de sol,

cheirando a frutas tropicais, a ervas e raízes;

gritando cor

na “natureza morta” dos paneiros de plantas e de

flores;

cortando o ar com as lâminas de prata dos peixes

escamoso

que saltam das mãos rudes dos barqueiros;

balançando nas águas as canoas de velas

recolhidas,

de onde, nas noites mornas, sonolentas,

as modinhas revoam como pássaros cegos,

sem destino ou pousada,

no canto sereneiro dos donos dos amores e

saudades.

Ai, Belém,

ai, Belém!

Em teu Porto-do-Sal,

de embarcadouro projetado sobre as águas,

os ocasos se tingem

com a violência de cores jamais vistas

em qualquer outro céu de outras paragens.

Ai, Belém,

Ai, Belém!

De lugares filtrados através das folhagens,

lançando nas cortinas das janelas

a festiva emoção das sombras bailarinas!

Sempre que os sons de bronze dos teus sinos

despertam o ardor do sol, nas manhãs

domingueiras,

vejo flutuar, no palco dos meus sonhos,

a saudade da infância.

E, na febre octã sem causa e pena,

te recordo aclarado, feliz, passarinheira,

e a lembrança me queima o pensamento.

(PARAENSE, 2011p.134-135)

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Essa mudança de comportamento é um pequeno resultado da maneira que os

encontros foram se constituindo pela presença da voz. Como recepção desses textos

nasceram poemas exaltando Belém, os quais percebi terem sido copiados da internet

durante a aula.

Lá vem Belém,

moreninha brasileira,

com perfume de mangueira,

vestidinha de folhagem.

E vem que vem,

ligeirinha, bem faceira,

como chuva passageira

refrescando a paisagem.

Lá vem Belém,

com suas lendas, seus encantos,

seus feitiços, seus quebrantos,

seus casos de assombração.

E vem que vem,

com seu cheirinho de mato,

com botos, cobra Norato,

com rezas, defumação.

Lá vem Belém,

recendente, feiticeira,

no seu traje de roceira,

na noite de São João.

E vem que vem,

com seus banhos de panela,

alecrim, jasmim, canela,

hortelã, manjericão.

(Lilith, EJA, 2017)

Lilith colocou o poema de Sylvia Helena Tocantins: “Belém dos meus Encantos”,

que foi musicado pelo compositor paraense Edyr Proença. Apresentar a recepção de

poema por outro poema mostra que a sua leitura dança com outros textos.

Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvolve-se outro, que o

engloba e no bojo do qual ele gravita com outros textos e outros

espaços-tempos; movimento perpétuo feito de colisões, de

interferências, de transformações, de trocas e de rupturas (ZUMTHOR.

1993, p. 150).

Já a recepção a seguir é um recorte de um poema maior:

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Belém te conheço desde menino

Belém da baia do Guajará e de Belas praças

De bairros populosos e de gente hospedeira

Dos monumentos históricos da cidade velha

Da feira do Ver-o-peso

Do círio de Nazaré

Das mangueiras frutíferas

Do açaí e do tacacá

És a linda Belém

De Requintado sabor marajoara

De Riqueza Cultural

Do Bar do Parque e do teatro da paz

Do Forte do Castelo

De maturidade influente

És bonita e formosa

Belém terra da gente.

(Odin, EJA, 2017)

A recepção de Odin são recortes de um poema postado em um blog, abaixo o

poema original com os versos escolhidos pelo intérprete marcados em negrito:

Belém do Pará e da Amazônia

És a bela cidade das mangueiras

Terra de imortal destino

Te conheço desde menino

Belém da baia do Guajará e de belas praças

Grande metrópole e porta de entrada da Amazônia

De bairros populosos e gente hospitaleira

Plantada no relevo guajarino

De paraenses da gema

De tradição bem brasileira

És a linda Belém

Que Francisco Caldeira fundou

Dos monumentos históricos na Cidade Velha

Dos encantos dos poetas

Dos galanteios dos compositores

Belém de vários amores

Da feira do Ver-o-Peso

De belenenses e parauaras

Do Círio de Nazaré

Das mangueiras frutíferas

Do açaí e do tacacá

Povo de muita fé

Belém da guerra da Cabanagem

Dos versos de Waldemar

Belém que eu te quero bem

Do Coqueiro ao Guamá

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Belém da chuva da tarde

Das tribos de índios guerreiros

Da Santa Mãezinha de Deus

Aplaudida por um mar de gente

Nas ruas a devoção

Cantos, preces e louvores

Do Telégrafo à Cremação

Do clássico Remo e Paysandu

Aos domingos no Mangueirão

Belém do Caboclo Plácido

Belém de Nilson e Fafá

Do cheiro forte do patchouli

Do Jurunas ao Entroncamento

De Outeiro a Icoaraci

Da estação ferroviária

De onde partia o trem

Rasgando as matas e montanhas

Buscando progresso e esperança

Na viagem até Bragança

De Tito Franco e Magalhães Barata

Das noites de serenata

És a Belém do Grão-Pará

Minha querida Belém

Capital imponente

De requintado sabor Marajoara

De riqueza cultural

Do Bar do Parque e do Teatro da Paz

Do Forte do Castelo

De naturalidade influente

És bonita e formosa

Belém terra da gente. 15

Ainda que pareça mera cópia, é importante que se diga que a recepção está tanto

nos versos que ele escolhe, quanto naqueles que exclui. Pois, provavelmente elege os

versos com quais tem mais identificação, a começar pelo primeiro: “te conheço desde

menino”. O suporte do qual ele retira o poema, um blog na internet, fala como a sua

geração pode ter acesso à poesia que está na letra.

Os poemas contagiam. Suas vozes despertam ressonâncias. Evocam

linguagens e energias latentes. Levam a criar. Mas os poemas não

nascem apenas de leitura de livros. Esse é um dos modos do nascimento

da poesia. A poesia sopra onde quer (ANTÔNIO, 2002. p. 94).

Mas houve o intérprete que criou um poema:

Meu texto, minha vida!

Minha cidade é minha vida,

E minha vida é nessa cidade

15 (fonte: http://paulovasconcellospv.blogspot.com.br/2014/01/minha-poesia-para-belem-do-para.html)

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cidade muito Bonita!, Bonita é

essa cidade.

Na minha cidade eu falo, “tu, eu falo égua”

E até mesmo falo “pai, D’Égua”.

Na minha cidade eu tomo açaí,

dentro de uma cuia, na minha cidade

tem o mercado e tem também,

o famoso ver-o-peso, “lugar Bonito”

e cheio de Beleza, e lá tem de

tudo!

Minha cidade é dividida!

entre as chuvas e o calor!

tem dia que chove!!!

e tem dia que faz calor.

Belém é minha cidade,

é cidade Bonita, Belém é

minha cidade e essa cidade

é minha vida!

(Dionísio, EJA, 2017).

A recepção do leitor marca o seu sentimento de pertencimento, a sua experiência

foi tocada pelos textos lidos abrindo as possibilidades da palavra que só se anima em

contato com o leitor, os poemas foram uma mediação para que o intérprete por sua

recepção criasse suas próprias imagens da cidade.

Também poemas Pupunheiro e Garrafeiro de Nunes (2010), já comentados em

outras sessões, inspiraram recepções em versos:

Plantado, no meu terreiro

Com seus espinhos, e

Lindos cachos com frutos

Vermelhos, da água na boca só de sentir o cheiro.

(Juno, EJA, 2017).

No fim da, tarde ele vem

Cheio de sonhos doces

Para crianças do bairro

Inteiro. E só vi o assovio

Para as crianças suas garrafas trocar

pelo um sonhar para sua

boca adocicar.

(Juno, EJA, 2017)

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No primeiro poema, a intérprete nos desperta para os sentidos que ela traz na

memória, construindo em poucos versos, graças às imagens que se produzem, algo

pitoresco em que ela não descreve os cachos de pupunhas, e sim, os coloca em nossa

frente. No mais há métrica, e ainda que tenha alguma inspiração em alguma referência

por nós ignorada, a construção remete a algo popular. No segundo poema, assim como

nos versos de Garrafeiro, reconstrói uma experiência coletiva da passagem desse

personagem das ruas por uma emoção poética que descreve uma lembrança doce.

Pelas recepções mostradas até aqui, nota-se que o texto poético, quando partilhado

sem uma finalidade prática, permite que a fruição não seja limitada por uma ordem

fechada. Dessa maneira,

temos escrito que poesia é corte, emergência do radicalmente novo—o

frescor das coisas recém-criadas—e, ao mesmo tempo, é um trabalho

de descoberta e de revelações, e de invenção e de arquitetura, um

trabalho criador que amplia os horizontes significativos das palavras,

expandindo os limites da expressão possível da linguagem. Como

prática de símbolos intensamente significativos—dança de sons de

imagens, de sentidos—a poesia luta contra a miséria sensorial, contra a

neutralização da sensibilidade e do imaginário, contra o

amesquinhamento da razão. Esta tem sido nossa fala: a poesia—

enquanto poesia—educa os sentidos, educa os sentimentos, educa a

imaginação, educa a racionalidade. (ANTONIO, 2002. p.95)

Em nossos últimos encontros, pelo poema de Loureiro (2008), uma recepção de

um intérprete que se mostrava bastante resistente às leituras, chamou minha atenção por

assumir um tom de desabafo, antes da recepção o poema que a motivou:

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Pensando bem

Pensando bem, era simples ser feliz.

Bastava o amanhecer.

Uma pelada de rua bastava.

Bastava a mesa reunindo irmãos e amigos

em torno ao paladar do peixe assado

e a cuia de açaí.

Bastava ver meu pai iluminado

bem perto,

pelo candeeiro,

o rosto de minha mãe

com mais um filho acabado de nascer.

Um banho de rio bastava.

Batava um copo de garapa com pastéis de camarão.

O riso que em mim cravava o ferrão de um desejo

bastava.

Bastava ter a infância,

aprender a cantar com os sabiás,

Deitar na grama para olhar o céu e ouvir estrelas,

Escutar as histórias de botos e boiúnas,

Espreitar os acasos em uma esquina,

pular fogueiras de junho entre os Bumbás

e só no Pássaro Junino ver amor-e-morte.

Pensando bem

tudo era ser e não apenas estar.

feito fruta nascendo na semente.

a felicidade parecia contida dentro de cada um de nós.

Mas como poderia, minha alma inquieta,

acostumar-se

a essa vida de felicidade repetida?

(LOUREIRO, 2008, p.159)

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A recepção deste poema foi uma grata surpresa, pois trata-se dos escritos de um

intérprete que nos primeiros encontros disse: “Poesia é um conjunto de palavras meio sem

nada haver, às vezes bonitas”. Ele, que nos primeiros encontros mostrou-se indiferente,

aos poucos foi deixando-se envolver pelas leituras e devagar colocando sua recepção em

linhas. E nesta, verso após verso a poesia vem como um relâmpago:

BASTAVA o nosso salário mínimo ser leal ao trabalhador

BASTAVA as pessoas pensar no outro como a si mesmo

BASTAVA o povo não ser burro

BASTAVA prender o Temer? Lula?

BASTAVA polícia ser polícia

BASTAVA tanta religião se só existe um “DEUS”?

BASTAVA amanhecer e anoitecer?

BASTAVA eu vim de Caxias para Belém?

BASTAVA para a guerra na Síria para parar a dor do homem?

BASTAVA um marido ser fiel a sua esposa?

BASTAVA o filho ser obediente a um pai?

BASTAVA ter amor próprio?

BASTAVA jogar Baleia Azul para se matar?

BASTAVA construir mais escolas?

BASTAVA ser padre para ser exemplo?

BASTAVA ir a igreja para ser um Deus?

BASTAVA usar droga?

BASTAVA o bastardo ser o excluído da família?

BASTAVA o inglês para o português?

BASTAVA o Fernando Collor para sua Dilma?

BASTAVA discutir por causa de time?

BASTAVA o seu Neymar para a sua Marquezine?

BASTAVA o demônio para seu anjo?

BASTAVA o suicídio para sua vida?

BASTAVA o seu orgulho para a sua sabedoria?

BASTAVA a sua mega-sena para dar uma virada?

BASTAVA ser branco ou preto para ser negro?

BASTAVA ser feliz para não ser triste?

BASTAVA trabalhar a madrugada para o almoço e a tarde pela janta?

BASTAVA a sociedade ser sociedade?

BASTAVA eu escrever isso?

(Heleno, EJA, 2017)

Bastava.

Ao fim de minhas atividades com os alunos, como despedida um presente: o

reencontro com os alunos da turma da EJA que trabalhei no ano anterior, aqueles que

uniram ao poema do Brunos de Menezes a batida do rap. Nesta noite, numa pequena

apresentação no auditório da escola, eles realizaram uma performance com um rap de

autoria própria:

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É o Rap do Mufarrej

É o Rap do Mufarrej

O aluno estuda e se diverte

É o Rap do Mufarrej

É o Rap do Mufarrej

O aluno estuda e se diverte

Mc1

No Mufarrej o rap acontece

Se prepare para o teste

Se não estudou

não precisa fazer prece

Meu no mome é Ruan

Sou o Mc das mina

Se elas derem mole

Caiu monto em cima

Tô na linha de estudo

Trabalho todo dia

Atrás de qualquer um

Pra ser alguém na vida

Não vou desistir

Eu vou continuar

Quem sabe um dia

Eu possa me formar

Mc 2

E aí rapa

Tu tá esperto

Eu sou Marcelo Henrique

Vou te dar o papo certo

No dialeto do som

Das altas central

Aqui é Mufarrej

Fazendo rap de qualidade

Vontade eu tenho

Estudando e aprendendo

Com o meu desempenho

Até pareço um gênio

Com o talento que tenho

Eu vou mostrar pra ti

Que o Mufarrej

É uma fábrica de Mc

Desistir eu não vou

Eu vou até o fim

No futuro, Senhor

eu quero o melhor pra mim

Aí meu irmão

Se tu não te ligou

O sonho do meu coração

É se formar doutor.

É o Rap do Mufarrej

É o Rap do Mufarrej

O aluno estuda e se diverte

Mc3

É o Rap do Mufarrej

É o Rap do Mufarrej

O sistema quando ouve se

enlouquece

Se enlouquece se aborrece

Mas não se desespere

Aqui é mufarrej

Não tem papo de nerd

São alunas e alunos

pulando seus segundos

Lendo e aprendendo

Em mandando nos assuntos

Com o raciocínio

Querendo te dizer

É duro ver o menino

sem ter o que comer

Aí SEDUC

me responda por favor

cadê nosso dinheiro?

Onde foi que tu guardou?

(roubou!)

Não sei

Mas dá um jeito

aproveita essa verba

E conserta o nosso banheiro

E eu também quero lanche

Escola de qualidade

Tô cansado de comer

Lanche fora da validade

Tô cansado desse sistema

opressor

Desvaloriza o professor

Vem causando muita dor

São heróis

Que trabalham por amor

Se existe profissão foi o

mestre que ensinou

Na história antiga

Forma erudita

Na filosofia

Mente primitiva

Na educação física

As mina apertadinha

Na quimíca

com sua tabelinha

Eu também sei na prática

O estudo da gramática

Mais complicado que a sua

matemática

que ensina a tática da fórmula

de Bhaskara

Estudo ciências humanas,

naturais e exatas

Na arte a minha parte é rimar

Na geografia

Qual é o meu lugar?

Na física eu sei que tudo que

sobe vai cair

No inglês apendi o verbo to

be

Na biologia o ensino das

células

Na sociologia com todas

nossas mazelas

Tchau!

Abraço!

Adeus e não se esquece

Aqui não tem moleque

Só vim dá bronca pra aqui no

Mufarrej

(Mc1, Mc2, Mc3, EJA 2017.)

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No rap, denúncia, desabafo, grito de alunos que pelo som e sentido dizem o que

não cabe no que está instituído e rompem com as normas.

O reaparecimento da palavra falada não implica uma volta ao passado:

o espaço é outro, mais vasto e, sobretudo, em dispersão. A um espaço

em movimento corresponde uma palavra em rotação; a um espaço

plural, uma nova frase que seja como um delta verbal, como um mundo

que explode em pleno céu. Palavra à intempérie, pelos espaços

exteriores e interiores: nebulosa contida em uma pulsação, pestanejar

de um sol (PAZ, 2012 p.286).

O reencontro com esses intérpretes do ano anterior foi uma notícia, as atividades

com eles foram poucas, mas uma semente foi plantada e essa performance foi a flor que

nasceu: a de que eles podiam levar o rap para dentro da escola. E assim o fizeram. Não

pude acompanhar a movência de como saíram da sala para outros espaços, mas eles

estavam lá.

No mais, todos os versos contidos nessa sessão são a face do leitor que se lança a

uma estética nova, da presença da poesia da letra que pelos sentidos pode ser recebida

para torna-se novamente letra, verso, canto. Dos textos poéticos eles pegaram a chama e

criaram seu próprio fogo, e nas letras que figuram seus versos um esforço singular. E para

mim um alento à minha angústia: a poesia é deles por direito e por justiça.

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CHAMA POÉTICA

Bachelard (1986) contou-me que para o pesquisador as últimas páginas são as

mais difíceis, porque elas trazem as respostas, a pesquisa está terminada não há como

recomeçar. É preciso recordar o vivido em poucas páginas e traçar o longo percurso que

fizemos. Assim, o que faço aqui é convergir as discussões e as experiências desta

pesquisa, que procurou trazer a poesia para os sentidos (e pelo sentir) dos intérpretes que

aqui se mostram.

Comecei perguntando sobre a chave da poesia, autoquestionamento de partida

para descobrir em conversa com tantos autores que não há uma chave mestra, “cada

criação poética é uma unidade autossuficiente. A parte é o todo” (PAZ, 2012, p. 23). E o

que determina a maneira que a poesia vai ser entendida é a forma que a palavra poética

chega ao seu leitor. Descortinei a herança e Apolo, voltando às primeiras palavras

grafadas e os primeiros leitores para mostrar como o acesso à escritura e seu entendimento

sempre foi uma questão de poder. Também apresentei o caminho para o Olimpo,

problematizando a racionalidade científica em que somos formados e o pensamento

científico que não comporta o poético. Essas questões foram fundamentais para entender

no terreno movediço que é o estudo da poesia, o que se move e o que permanece.

Adiante, precisei levar a Estética da Recepção como uma experiência poética,

ouvir o que as letras contam para os intérpretes e falar sobre a formação de leitores,

quando vi de perto os mecanismos de escolarização da palavra poética e precisei subverte-

los para seguir o caminho de Ítaca que julgo mais sensível. E nesta sessão antes de seguir

com os textos poéticos escolhidos para o trabalho na sala, a partir da pergunta “O que é

poesia?”, pude analisar quais experiências os intérpretes traziam, as marcas deixadas pela

escolarização e a singularidade da vivência de cada leitor. Sempre apoiada na Estética da

Recepção em que encontrei mais que uma teoria, descobri um método que, pela

experiência, constituiu a maneira de partilhar os textos poéticos e colher a sua recepção.

Na terceira e última sessão, pude ver o leitor receber a página em branco e fazer

dela seu meio de dizer-se em memórias, segredos, desejos, num movimento encruzilhante

das recepções da EJA e do 6º ano, que trouxe a poesia pulsante e sem aura. Também vivi

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um encontro diário com a infância, quando pelas recepções dos intérpretes do 6º ano,

assisti o verbo pegar delírio em cores. E vibrei com o fogo de Prometeu crescendo a cada

encontro.

Há de se dizer que diante da atual situação política, este estudo é uma forma de

resistência, quando

O que fazer da poesia?

Qual poesia possível

numa época impossível de poesia?

A poesia é necessária.

Eu sei completamente o quanto é necessária,

Pois o poema que faço é que me faz poeta

E ao me fazer poeta, ele se faz.

Quando o poema está pronto

e me olha das palavras,

eu me sinto existir nesse poema

e o poema me diz: eu sou porque tu és...

A cada minuto que passa cavalgando o tempo,

Sinto que a poesia é necessária.

Seja na forma etérea do poema

Ou seja em seu avesso, o antipoema.

Antipoema é mergulhar a mão em lodo e lama

Para no fundo colher

uma última flor de Lácio oculta e bela.

Antipoema.

Poesia avessa, contra, suja por seu tema

mas, ainda assim, poesia de cada dia.

notícia de jornal,

menor abandonada em suas estrofes,

adolescência em cárcere privado nas metáforas,

menina de rua nos versos descarnados,

sílabas de crack,

poluição de métricas no ar,

ozônio perfumado por fonemas,

camadas de ternura sobre a lama,

rimas sem ar.

Antipoema.

Sinto que a poesia é necessária.

Poesia que nem sempre o mundo faz brotar

na palma da mão do poeta.

Mas ainda que se negue se firmando,

ainda na forma de antipoema,

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a poesia é necessária.

A poesia é necessária.

A poesia é necessária.

(LOUREIRO.,2017, p. 186)

Tirar a poesia do Olimpo é uma necessidade. Dever de todos nós que temos acesso

à palavra. A linguagem poética é uma porta estreita e como bem disse a professora

Renilda Bastos em suas considerações na qualificação, essa pesquisa presta conta com a

própria autora. Porque, sim, precisei procurar pela poesia para alargar essa porta para mim

e para os que passam comigo. E nessa passagem me dar conta de que a poesia também

está na partilha, no entregar a chama ao outro, aos que estão no caminho. E assim, a cada

leitor tocado, a chama dividida aumenta e sobrepuja as (nossas) pedras no meio do

caminho.

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO PARÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

TRAVESSA DJALMA DUTRA, S/N – TELÉGRAFO

66113-200 BELÉM-PA

WWW.UEPA.BR/MESTRADOEDUCACA