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Tradução Raquel Neimann e Mila Regina Cidades antigas e construção nova Roberto Pane Este breve escrito foi apresentado por mim no congresso nacional de urbanística realizado em Turim em outubro de 1956. Era meu propósito reunir, em uma rápida síntese, os assuntos mais recorrentes na atual problemática dos centros antigos para estabelecer alguma premissa útil aos debates que ainda estão se desenvolvendo. A imagem do mundo que se reflete na construção é digna de conduzir os arquitetos e os escritores de cada país a participar das questões que se referem à sobrevivência dos antigos centros e, em particular, daqueles italianos; não apenas porque o nosso é um precioso patrimônio comum, mas porque, nas formas da nova construção e na possibilidade de uma sua convivência com as do passado, se configura, no seu advir e de maneira exemplar, a marca do nosso próprio destino. 1

Roberto Pane - Cidade Antiga

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Este breve escrito foi apresentado por mim no congresso nacional de urbanística realizado em Turim em outubro de 1956

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Traduo Raquel Neimann e Mila Regina

Cidades antigas e construo novaRoberto PaneEste breve escrito foi apresentado por mim no congresso nacional de urbanstica realizado em Turim em outubro de 1956. Era meu propsito reunir, em uma rpida sntese, os assuntos mais recorrentes na atual problemtica dos centros antigos para estabelecer alguma premissa til aos debates que ainda esto se desenvolvendo.A imagem do mundo que se reflete na construo digna de conduzir os arquitetos e os escritores de cada pas a participar das questes que se referem sobrevivncia dos antigos centros e, em particular, daqueles italianos; no apenas porque o nosso um precioso patrimnio comum, mas porque, nas formas da nova construo e na possibilidade de uma sua convivncia com as do passado, se configura, no seu advir e de maneira exemplar, a marca do nosso prprio destino.

Quando pensamos em uma aproximao entre a construo moderna e a antiga, sentimos de imediato um despertar em ns de muitos problemas e questionamentos; e isso especialmente na Itlia, onde mais do que em qualquer outro pas no mundo tal aproximao denuncia o contraste entre dois modos de vida: aquele que se manifesta na riqussima estratificao do nosso passado e a imagem nova e brutal que primeira vai se agregando, sem determinar uma nova unidade, mas dando em toda parte o sentido de uma penosa intolervel fratura. A cidade que se aproxima e se sobrepe antiga nos aparece como a expresso de um impulso econmico extremamente forte, para assim conseguir alterar e ordenar os movimentos. A catica expanso obedece s solicitaes de um imediato e cego interesse privado, e quase nunca encontram acolhimento os reclames por uma ordenada predisposio urbanstica que faa jus aos interesses da comunidade. Alis, a tal propsito, sinalize-se o sistemtico silncio que acolhe a crtica mais viva no nosso pas; tanto verdade que os poucos combatentes so sempre exortados a desistir da luta, visto que da outra parte no tem nunca resposta. Vale para todos, como exemplo, a devastao da paisagem italiana que se vai perpetrando como obra de um ente estatal sobre responsabilidade do ministrio do LL.PP. NT1 apesar de um grande clamor em protesto continuar a surgir na Itlia e no exterior. Mas esta uma vergonha to exemplar que merece um discurso parte!Este aludido confronto nos induz a colocar o seguinte dilema: se verdade que existe uma incompatibilidade insupervel entre as velhas construes e as novas, como vo recentemente afirmando alguns escritores e estudiosos[footnoteRef:1], os quais reclamam, em consequncia, por uma ntida separao entre a cidade de ontem e aquela de hoje; ou se se trata, ao invs, apenas de uma negativa condio de esprito, uma espcie de resignao, de difusa ausncia de entusiasmo moral pelo qual renunciamos em nos fazer donos dos instrumentos que ns mesmos criamos. [1: Aludo em particular aos escritos de A. Cerdena, publicados no jornal Il Mondo e a um artigo de C. Brandi do qual falarei mais adiante.NT1 LL. PP. Refere-se a Ministrio do Trabalho Pblico (Lavori Pubblici).]

Que seja conveniente fazer surgir os novos organismos fora dos centros antigos, como novos agregados autossuficientes e dotados de um certo grau de elasticidade expansiva, coisa bvia para cada urbanista moderno. Mas aqui se quer considerar a existncia do centro antigo como um fato em si consolidado, e isso no como uma tutela passiva que o Estado teria o dever de assumir em nome da arte e da histria (e que em realidade no assume), mas como vital sobrevivncia em relao a uma efetiva realidade prtica. Parece-me que neste sentido a evocada intangibilidade representa um perfeito absurdo; alis, que como demonstrao absurda que , fornea um perigoso argumento contra a tese oposta, que seria o seguinte: no momento em que no possvel conservar imutvel o ambiente antigo por que o Estado no pode assegurar a conservao de todos os edifcios que possuam valor artstico e histrico, seria vlido demolir tudo aquilo que apresente apenas um carter de ambientao e reconstruir modernamente sobre o mesmo solo, limitando a conservao aos edifcios de importncia excepcional. Este discurso no apenas a resposta que esto prontos a dar todos os especuladores das reas pblicas e privadas, os chefes dos institutos estatais e paraestatais e tambm (permitam-me incluir) quase a totalidade dos arquitetos e dos engenheiros. Isso reflete tambm a situao real, ou seja, quanto se est rapidamente implementando, apesar dos indignados protestos e com gravssimo irreparvel dano de um bem precioso: o valor complexo da estratificao histrica, o insubstituvel fascnio das ruas e das praas dos nossos centros antigos. Visto que, aquilo que se vai destruindo, exatamente o patrimnio que a mais moderna experincia de histria e de arte contribuiu a por em justa evidncia, e nisso o ritmo determinado nos espaos externos, mediante essas formas que transmitem coerentemente o nome de uma particular tradio de cultura e no aquele de tal ou tal outro arquiteto de exceo. Neste sentido, o sentimento que nos inspiram as velhas muralhas no simplesmente uma veleidade romntica, o sonhar uma condio de vida que no pode mais ser reproduzida; pelo contrrio, isso nasce do sentir presente uma coerncia entre vida, arte e artesanato, que parece estar hoje irreparavelmente perdida. Assim percebemos a sugesto deste diferente mundo como um atributo ambiental que est nos aspectos mais diversos e no apenas em algumas obras singulares; onde a justa considerao de que a maior beleza de uma cidade consista no seu valor de organismo muito mais do que nos seus monumentos excepcionais e que as obras insignes sejam inseparveis dos seus entornos como do seu respirar. A importncia de tal considerao est no seu reconhecer implicitamente, muito melhor do que quando no se fizia em um recente passado, o ligame entre a vida e a arte; a arte como uma condio da prpria vida e no como uma solitria realizao que atua em oposio feiura do mundo circundante. Infelizmente, o que conduz ao erro muitos de ns, arquitetos ou crticos e historiadores da arte na Itlia, est especificamente no nosso desumano e orgulhoso refugiar-se nos fatos estticos, negligenciando de participar na elucidao e na discusso destes problemas da cidade antiga e nova, que esto, em substncia, entre aqueles fundamentais do nosso destino de italianos, pois, de uma parte, esto empenhados em esclarecer os nossos ligames com o passado e, de outra parte, em definir aquilo que ainda hoje parece muito vago e obscuro, ou seja, em que sentido e direo permitiriam compreender a nossa participao em uma comum civilizao do mundo moderno.O maior fascnio dos nossos velhos centros est no testemunho de um modo de vida sbio e ingnuo ao mesmo tempo; de uma economia produtiva que no exclua nenhuma possibilidade de lazer, de conversa e de intimidade[footnoteRef:2]. Era uma pobre vida, dotada de pouco conforto, mas conservava um alto valor humano e no injusto compar-la, com ressalvas, obsessiva megalpole, que colocou tantos meios a nossa disposio, mas na qual nos deixamos degradar enquanto homens e que ansiamos abandonar assim que a trgua do trabalho torne possvel. Tudo isso ( quase intil diz-lo) no significa a condenao da tcnica moderna, que por si s uma grande conquista; quer apenas dizer que isso no basta para nos satisfazer e que o nosso supremo propsito consiste em nos refazer senhores daqueles meios que a tcnica pe nossa disposio de maneira que satisfaam e obedeam s nossas exigncias humanas, nos limites e nos lugares determinados por ns mesmos e no por foras ocultas que fogem ao nosso controle. E a tal propsito gostaria de recordar aqui o modesto e significativo testemunho de um grande pioneiro da arquitetura moderna, Walter Gropius, o qual, em um artigo publicado h trs anos escrevia: Quando, por exemplo, acusamos a tecnologia e a cincia de terem obscurecido os nossos conceitos de beleza e do bem viver, deveramos recordar que no a desconcertante profuso do maquinrio tcnico para produo em srie que determina o curso dos eventos, mas a vigilncia ou a inrcia do nosso crebro que d ou deixa de dar um caminho a esta evoluo [footnoteRef:3]. [2: Rosrio Assunto, no seu recente livro Job e Hobby (Civilit delle macchine, I, 1956) desenvolve nteressantes consideraes e testemunhos sobre a relao entre lazer e trabalho e sobre a auspiciosa possibilidade que o mundo moderno supere o carter passivo e constrito que uma falsa tradio moralista at agora atribuiu ao conceito de trabalho.] [3: W. Gropius, Un nuovo capitolo della mia vita, rev. Casabella, dez.-janeiro 1953-54.]

A tese da incompatibilidade entre construes novas e antigas se fundamenta, em substncia, sobre uma fatalista aceitao do fato concludo, generalizando-o como um dado inevitvel e definitivo para as experimentaes que devero ser cumpridas no amanh. Assim as dimenses das modernas construes e o uso do cimento e do ferro, na atroz banalidade das suas formas em uso seriam, e no poderiam deixar de s-lo, a imagem da afirmada incompatibilidade. Aqui se encontra o erro ao esquecer numerosas experincias positivas de aproximao do novo em relao ao antigo; experincias italianas[footnoteRef:4] e estrangeiras realizadas sem qualquer renncia modernidade dos materiais e sem recorrer quele descuido estilstico que ainda largamente impera entre ns e que a tese da incompatibilidade no faz, em substncia, vlida. Lembro os casos positivos de Amsterdam, Frankfurt, Varsvia; mas aquilo que mais vale a pena considerar so as consequncias extremas s quais se agrupam, se se deseja mant-las coerentemente inconciliveis: se o novo e o antigo no podem coexistir significa dizer simplesmente que entre ns e o passado foi produzido uma intransponvel fratura; ou seja, que histria e tradio de cultura so palavras privadas de sentido e que o passado pode apenas nos fornecer motivos de curiosidade arqueolgica a partir do momento que isso no sirva mais para iluminar o nosso presente. Cabe ento aos inconciliveis responder a esta legtima objeo: se os velhos muros e os novos muros no podem coexistir, no podero nem ao menos ser aqueles que encontram em si uma prpria imagem inevitavelmente coerente. [4: Uma tima experincia italiana, aquela realizada por G. Michelucci com a Borsa merci de Pistoia [projeto de um banco na cidade de Pistoia na regio da Toscana, IT] foi muito lembrada porque constitui um caso , infelizmente, to raro quanto exemplar.]

Como esclarecimento do que aludi, pode ser til a lembrana da polmica desenvolvida a propsito do projeto Wright para o Grande Canal. No vou recordar aqui todos os episdios, mas me limitarei aos dados estremos. A quase universal e generosa indignao, suscitada pelo anncio que uma construo de carter moderno seria levantada sobre o Canal, sobre esta obra-prima urbanstica do passado, nascia na mais plena boa f, nos usuais lugares comuns, da costumeira ausncia de uma sria opinio crtica sobre a questo. De fato, enquanto se gritava contra uma significativa expresso moderna, omitiam-se os horrores do falso gtico dos quais o Canal largamente acometido e, similarmente, do falso barroco veneziano de uma casa que estava para ser concluda no pontile S. Angelo, justamente em pleno agravamento da polmica. A partir desta considerao, parece evidente que a postura da defesa a todo custo, to sedutora pelo seu sabor de romnica intransigncia (mesmo se praticamente insustentvel), termina por se tornar reacionria no seu fechar os olhos para falsos monstruosos e ento no seu reconhecer implicitamente que estes no perturbam [footnoteRef:5]. Mas isso no perturba queles que no veem diferenas entre o gtico autentico e o gtico do vigsimo sculo enquanto, para os estudiosos, a discrepncia tal que extrapola o limite do tormento; levando quela sensao de desesperada amargura que nasce do constatar a prpria impotncia na presena de um mundo dominado pela burocracia oficializada, distribuidora onipresente de falsificaes e substituies estticas e morais. [5: Retomo aqui o conceito fundamental por mim desenvolvido na polmica que teve lugar, a propsito do projeto Wright, na coluna do jornal Il Mondo.]

Inclui-se ainda que o projeto Wright era limitado s modestas dimenses da casa a qual a nova construo deveria ter substitudo. Com isto, o arquiteto reconhecia como algo a ser respeitado[footnoteRef:6] a relao dimensional do entorno e em particular aquele entre a casa e a vizinhana ao palcio Balbi; em outros termos aquela relao volumtrica que representa a condio essencial e, ao mesmo tempo, a nica possvel para a conservao de um ambiente antigo. Portanto evidente que, excetuando os pases nos quais um clima particularmente favorvel consente preservar mais ou menos ntegros os originais valores de claro e escuro NT2 e cromticos, por outro lado ocorre que a substituio das pedras externas, em funo do seu progressivo desgaste, faz-se de modo que da antiga obra seja conservada apenas um simulacro mais ou menos fiel; vale para todos o exemplo da Abadia de Westminster, do qual nem uma nica pedra externa ainda aquela da primitiva obra gtica; e de resto tal a sorte da arquitetura, a arte que no tem museu, ou melhor no qual o museu no pode no ser o prprio ambiente para o qual ele foi criado[footnoteRef:7]. [6: Aqui curioso observar que, no lado oposto ao Palcio Balbi, foi recentemente acrescentado, s escondidas, um outro pavimento atrs do sto, sem que se provocasse nenhum protesto.NT2 Tcnica da pintura e do desenho com a qual se d relevo a uma imagem com jogo de luz e sombra (IL Dizionario Mini Garzanti di Italiano. Lavis, Garzanti Lingustica: 2007. p. 107).] [7: Verdadeiro que insignes fragmentos de arquitetura foram transportados dos museus europeus, principalmente durante o sculo passado. Pense-se, entre tantos, na estrada babilnica das procisses e na Porta de Mileto, tambm no museu de Berlim; ou ainda nas portas renascentistas de Cesena e nos tantos fragmentos medievais no museu londrino de Vitria e Albert; nos claustros espanhis e franceses reconstrudos no museu de Fort Tryon em Nova Iorque; coisas muito melanclicas, embora no haja o que dizer queles que, para justificar tais formas de genocdio artstico, dizem que quase todas estas relquias estariam definitivamente desaparecidas, ou reduzidas a runas amorfas, se algum no tivesse garantido a sua remoo.]

Mas o que, na tese da intransigncia, parece verdadeiramente absurda a vontade, como sinalizei, de ignorar a evidente realidade histrica da estratificao que se construiu no passado, configurando, com os seus contrastes, o ambiente que desejamos salvar, e o negar que esta possa e deva existir tambm no presente. A insero de formas novas na cidade antiga no poderia no ter lugar inclusive ser as normas de tutela e o mais rigoroso respeito fossem observados. Mas para que isto acontea da melhor maneira necessrio que o ambiente seja percebido como uma obra coletiva a ser preservada enquanto tal; e assim no como integral conservao de uma soma de particularidades, de acordo com o que se entende na conservao de uma edificao isolada, mas como relao de massas e de espaos que autorizem a substituio de um edifcio antigo por um novo desde que este esteja subordinado relao supracitada.Por outro lado, a uniformidade da vida como consequncia da moderna civilizao mecnica responde a uma viso resignada e pessimista do nosso destino que no encontra justificativas nas atuais extraordinrias realizaes do engenho humano, mas apenas em uma reduo de aspecto moral; quase como se os materiais conquistados tivessem diminudo, na nossa conscincia, o prprio valor da liberdade; e a tal propsito me vem mente uma imagem que foi tantas vezes retratado: aquela das esgotadas teorias do operariado que se desloca, todos iguais, em direo ao trabalho; uma imagem de ontem, e tambm a tcnica de hoje j a fez grotesca e absurda, como, de resto, no poucas profecias do marxismo. Ento no h razo para crer que uma civilizao mais desenvolvidaNT3 no deva enriquecer, no melhor sentido, e assim consentir uma maior diferenciao de modo de vida e de costume, tornando ento, no apenas possvel mas desejvel, que a cidade nova no destrua aquela antiga por meio de falsos compromissos e, antes, se justaponha a essa, perpetuando as suas qualidades NT4. Porm a este ponto, parece-me oportuno inserir, como exemplo de afirmada incompatibilidade, o testemunho de um recente artigo de C. Brandi, Processo allarchitettura moderna[footnoteRef:8]. O autor fala da espacialidade perspectivada renascentista, da inteno da perspectiva barroca e do oitocentos exausto e fiel; ele traa o caminho de uma ideal e abstrata urbanstica, exemplificada com uma srie de obras primas ambientais e singulares e conclui na afirmao que o espao da arquitetura moderna o mesmo espao vivido no nosso cotidiano, sobretudo sem horizontes que no sejam barrados por construes, e sem cu que no seja aquele onde voam os avies. Alm disso, podendo-se afirmar, graas s obras de alguns notveis artistas, que exista uma arquitetura moderna, essa no pode ser inserida em um antigo complexo urbano sem destru-lo e sem autodestruir-se. Parece-me que o erro desta interpretao estaria em restringir-se a uma viso esttica (para no dizer estetizante) muito prxima a um esquema, e no histria, no sentido que fala de arquitetura enquanto arte, omitindo que a cidade, no seu tecido, feita essencialmente de literatura construda e no de poesia arquitetnica; sendo assim convido o leitor a outras consideraes por mim desenvolvidas e negligenciada realidade de fato. Acrescento que, em resposta ao texto de Brandi, Bruno Zevi ps em evidncia que aqui no se trata de linguagem arquitetnica, mas de programa construtivo: o rompimento, a destruio operada na elaborao do programa construtivo e no tem nada a ver com a natureza da linguagem arquitetnica. Mas, a este ponto, justamente o renovado equvoco entre arquitetura e construo que me induz a recordar um texto meu[footnoteRef:9] como algo que talvez possa ainda ajudar a fornecer um esclarecimento. [8: Publicado na revista LArchitettura, set. 1956, pp 356-360.] [9: Architettura e Letteratura, no volume Architettura e arti figurative, Veneza, 1948, pp 63-71.]

Recordarei em primeiro lugar que o equvoco mais comum produto do uso da palavra arquitetura; palavra que para ns, pela autoridade exercida por uma antiga tradio, continua a significar arte, enquanto nos pases anglo-saxnicos sinnimo de construo; da a proposta, j um tanto ultrapassada, de substituir, na linguagem corrente, a segunda palavra primeira. Alm disso, paralelamente distino operada por Croce na sua ltima esttica na qual literatura reconhecido um valor autnomo em relao poesia, distinguindo a faculdade potica daquela literria ou prtica[footnoteRef:10], eu propus uma distino entre o conceito de arquitetura e aquele de construo. Similarmente, de fato, de se salientar na primeira a faculdade potica no seu abandono ao universal, muito alm de cada limite prtico; na segunda, a faculdade literria no propsito que lhe prprio de no perder nunca de vista a razo que guia e sustentao ao prtico construir NT5. [10: Esses conceitos podem ser pesquisados, como teoria e exemplificao, no volume de Croce, La poesia.NT3 A palavra progredita foi entendida aqui como desenvolvida, para explicitar um desenvolvimento tecnolgico da cidades novas em relao as cidades antigas.NT4 Do original: ...perpetuandone il godimento. Tal expresso foi interpretada como uma valorizao, disfrute e apreciao, como um gozo, das qualidades estticas e morfolgicas das cidades antigas. ]

A arquitetura arte quando o , e o muito raramente. Ao imenso trabalho que se realiza no mundo, edificando e escrevendo, no normalmente reconhecido um valor diferente daquele que solicitado e ditado pelas razes prticas. Com isso no de se reconhecer, como muito se fez, um insupervel obstculo fantasia na complexidade e urgncia das necessidades prticas, mas um carter distintivo daquelas mesmas necessidades e quer ser definitivo; que no quer se esconder mas se configurar em uma forma que no pode ser a pura e simples expresso da racionalidade.A distino entre poesia e literatura arquitetnica encontra a sua melhor conformao na constatao, j supracitada, que no so os poucos monumentos de exceo que criam o ambiente das nossas antigas cidades, mas as tantas obras que tendem a exprimir um particular valor consubstancialNT6 e fornecer, ento, as marcas peculiares de uma civilizao.Este conceito da literatura arquitetnica foi h muito acolhido favoravelmente; mas seria benfico desenvolver mais esclarecimentos e exemplos. Aqui me limitarei, no podendo reporta-lo por inteiro, a acrescentar apenas a concluso do meu texto: A interpretao da arquitetura, no mbito da expresso literria, enquanto, de uma parte, ajudar a fazer entender historicamente o equvoco do velho formalismo de imitao, satisfar, da outra, a atual difusa exigncia de um esclarecimento acerca do carter esttico da arquitetura: no mais rara exceo respeito ao qual todo aquele resto apenas vaga aproximao, mas expresso de civilizao e de cultura no qual as prticas exigncias assumem caracterstica de uma dignidade humana, calorosa, de acolhedora simpatia. A exceo da poesia arquitetnica continuar a ser possvel no seu transcender cada interesse prtico. Aos espritos incapazes de juzo esttico parecer absurda assim como aos mesmos parece hoje absurda a arquitetura de Michelangelo ou de Palladio. Como no passado, no obedecer a alguma racionalidade ou unidade de medida e por isso no ser possvel predispor a criao nem dizer como melhor convenha que seja. Portanto, ir exprimir, na nica e superior coerncia da sua forma, uma sua prpria racionalidade e uma sua prpria medida.Assim, querendo citar algum exemplo contemporneo de poesia arquitetnica, pode-se recordar a casa da Cascata ou a Capela de Ronchamp; e ser interessante, e ouso acrescentar tambm cmico, observar que a segunda provocou o desbotamento de todos aqueles que, em permanecendo fiis aos esquemas[footnoteRef:11], no puderam acolh-la como uma nova expresso de liberdade criativa, realizada, com feliz incoerncia, justamente por aquele genial arquiteto que mais que qualquer outro contribuiu na difuso dos esquemas racionalistas. [11: NT5 Do original al pratico operare.NT6 Do original corale. de se referir aqui ao caso de um tpico produtor de ismos, o histrico Pevsner, o qual, como nos informa Zevi, declarou a sua incapacidade em entender esta obra que lhe parece uma espcie de neo-art nouveau. Zevi admirou a coragem demonstrada pelo historiador ao reconhecer esta sua incapacidade; mas no mais provvel acreditar que se trate de um modo (espirituoso, segundo Pevsner) de afirmar que a Capela uma obra falha?]

Retornando ento, depois dessas divagaes e premissas, ao problema da tutela dos centros antigos, parece-me oportuno avanar para uma proposta de carter geral que poderia resultar em uma norma a ser adotada a nvel nacional, desde que e apenas se, obviamente, seja primeiro elaborada a Lei da qual, na Itlia, se tem extrema necessidade: uma Lei que consiga impor o respeito pelas Leis.Reassumo a proposta com algumas informaes que, naturalmente, no se pretendem estarem formuladas de maneira definitiva, mas apenas exprimindo uma precisa exigncia:I. Definir os limites do centro histrico-artstico;II. Estabelecer, sem permitir nenhuma exceo, que dentro dos limites supracitados no seja consentido, nem aos entes pblicos nem aos privados, construir edifcios cujo gabarito supere a mdia dos outros edifcios circundantes. claro que a catica especulao no teria tido razo de considerar o centro antigo como uma mina de ouro se, no lugar de um velho edifcio, no pudesse construir um outro com pelo menos o dobro de sua altura.III. Expropriar, a ttulo de utilidade pblica, as zonas verdes privadas compreendidas no centro supracitado, impedindo que venham a ser exploradas como solo edificante.Esta ltima norma sugerida pela necessidade de evitar que continuem a surgir casas no interior dos antigos insulaeNT7, sendo l onde a presena secular das hortas e jardins compensava a estreiteza das ruas, fornecendo s aberturas internas, um precioso respiro[footnoteRef:12]. [12: O dano produzido pelo aproveitamento daqueles pequenos pulmes verdes muito grande, apesar de no resultar muito visvel. Sorrento [cidade da regio de Campnia, IT] apenas para recordar um caso tpico, uma pequena cidade que conserva quase intacto o traado Greco-romano; enquanto se est por completar o planejamento regulador urbano, a especulao imobiliria se apressa por disfrutar aquelas poucas zonas verdes que restam dentro do permetro das estreitas vielas.NT7 Insulae: residncia multifamiliar na Roma antiga. ]

Procuremos considerar quais objees poderiam se feitas a essas propostas. Por exemplo, poder-se-ia dizer que as normas relativas ao dimensionamento das novas construes no centro antigo j esto presentes nos cdigos de obra municipais. Ento se responda que essas, se de fato existem, no so quase nunca inspiradas em uma tutela verdadeira e adequada; isso demonstrado pelo fato que foram concedidas demasiadas excees e isenes; da a necessidade de condicionar todos os centros histrico-artsticos a uma nica norma que responda ao interesse nacional e tambm quele de todo o mundo civil, visto que o interesse comunitrio demonstrou no saber oferecer uma garantia suficiente.Por outro lado, uma fcil objeo pode ser levantada pelo arquiteto que tiver uma preocupao maior com a realizao do seu pequeno arranha-cu ao invs da conservao do ambiente. Ele pode dizer: nenhuma esttica capaz de demonstrar que o acrscimo de um volume dominante constituiria inevitavelmente um dano e no uma contribuio a determinar um novo e harmnico relacionamento ente s partes. Com isso ele vem a negar implicitamente o prprio fundamento da evocada tutela; mas no bastar record-lo que a conservao das primitivas relaes propiciada pelas melhores e mais qualificadas culturas; precisar, ao invs, diz-lo que o seu arranha-cu no seria o nico, mas ganharia imediatamente numerosos e desordenados companheiros; assim, definitivamente, no lhe restar se no evocar para si mesmo, com presunosa inconscincia, o direito exceo, e que seja reconhecida definitiva e inaltervel a relao entre a sua obra individual e o entorno. Dizia Celline: um homem como Benvenuto, nico na sua arte, no pode ser obrigado Lei...Esta ltima eventualidade me parece ser muito mais que hipottica ou rara; e de resto , justamente no sentido aludido, ou seja, pela ausncia de uma responsabilidade, muito recorrentemente ignorada inclusive pelos arquitetos, que impe a questo maior autoridade do poder executivo. E no se repita que tal recurso dura muito tempo e que um patrimnio de arte e de cultura se salva somente se todos, especialmente construtores e projetistas, assumem-no e se empenham com paixo na sua defesa. Esta uma objeo exageradamente bvia e assim seria passvel de resignao que cada entorno fosse danificado e destrudo se assim atendesse formao de uma consciente responsabilidade pblica.No se pode, ento, no abordar os organismos superiores de proteo e assim o ministrio da P.I. NT8 e aquele do LL. PP. A tal propsito, o citado artigo de Brandi conclui com a frase que lcito definir como amena; ele declara que no faz sentido acusar os rgos de proteo artstica (e assim o quanto determina a diretriz geral de antiguidade e de belas artes ao qual o bem pertence) do momento em que a responsabilidade do dano afligido recai sobre todos ns. Ns, ao invs disso, temos razo em deplorar que os rgos supracitados no se demonstrem de fato dispostos a investigar a colaborao que o mundo da cultura poderia lhes oferecer e assim se limitam em se reconhecer insuficientes aos seus afazeres, justificando-se com a falta de gesto da classe poltica e pela escassez dos meios disponveis. Em realidade no um incremento dos meios e de autoridade que melhorariam substancialmente a situao, mas apenas um novo esprito informativo de proteo e ento um novo ordenamento. Definindo-a rapidamente, uma difcil questo de urbanstica ou de restauro no pode encontrar a sua melhor soluo na evaso de uma prtica de escritrio, mas na viva participao[footnoteRef:13] daqueles capacitados que na maioria das vezes esto fora dos escritrios. A ausncia de tal participao acontece de modo que os tcnicos das superintendncias tenham apenas caracterizao negativa e processual e servem apenas para retardar (se realmente conseguem) a concluso dos piores abusos e arbitrariedades. Cada um entende, por exemplo, que um edifcio antigo pode ser objeto de uma demolio noturna e que a investigao dos responsveis no dar nenhum resultado, por que os documentos demonstraro que, apesar da destruio, de nenhuma forma a proteo diminuda: o edifcio desapareceu, mas a prtica lhe conservar a memria. [13: A instituio, por mim proposta (Cfr. Bolletino del consiglio nazionale degli architetti, junho 1956) de um colgio de arquitetos selecionados por concurso, poderia fornecer tanto administrao [pblica] tanto iniciativa privada, um instrumento de vlida ajuda nas tantas questes que demandam especial cultura e atitude profissional e no apenas experincia administrativa. NT8 P.I. Acredita-se que se refira ao Ministrio de instruo Pblica. ]

No sem menos importncia, por outro lado, a responsabilidade dos rgos do ministrio do LL. PP., embora essa aparea menos diretamente empenhada. notrio que os escritrios dos Genio Civile so dotados de meios muito superiores queles das superintendncias, e que no raramente intervm em matria de restauro e de urbanstica histrica sem se sentirem minimamente empenhados em uma colaborao com os organismos aos quais cabe um trabalho especfico nesse campo. Pode-se assim dizer que a relao existente entre esses organismos, embora todos igualmente engajados a servio da coisa pblica, no so muito diferentes daquelas existentes entre os estados dotados de supremacia nacional. Ainda, apesar da experincia negativa j relatada, a nossa atual ao prtica no poder no consistir no renovar um importante apelo aos poderes centrais. Por consequncia, convido o Instituto Nacional de Urbanstica a examinar as propostas supracitadas acerca da defesa dos centros antigos e se, como espero, considerando-as vlidas, peam aos ministrios interessados que sejam imediatamente postas em prtica.Chamo tambm ateno do Instituto sobre a j acenada e mortal ofensa que se continua a fazer ao decoro pblico por meio da publicidade estatal. Aqui finalmente no se trata de um grande problema metodolgico, mas apenas de um grande desconhecimento.Recentemente alguns peridicos deram notcia da deciso tomada pelo ANAS NT9 de uniformizar a publicidade por meio de cartazes com as dimenses de dois metros por trs e colocados a guisa di pietra miliareNT10 a cem metros um do outro. Tal novidade ser rapidamente aplicada no Norte com a justificativa de poupar os motoristas do cansao produzido pelo excessivo, variado e repetido estmulo visual. Atente-se que em toda essa ofensa paisagem, posta pelos prometidos cartazes de seis metros quadrados, no nem ao menos levada em considerao; nem, que eu saiba, este rgo de cuja autonomia frente ao decoro do pas pode ser dita verdadeiramente exemplar, sentiu at agora a necessidade de responder s acusaes que lhe so colocadas de cada parte, na Itlia e no exterior. Agora, como se pode esperar reunir algum resultado nas mais rduas e problemticas questes de planejamento intermunicipal e regional quando no se consegue, no digo trazer a tona, mas nem ao menos ter uma resposta em uma tarefa que, alm de tudo, perde o valor aos olhos do mundo? Pense-se que na Inglaterra se desenvolveu no ano passado uma violenta campanha por iniciativa da Architectural Review por algo muito mais modesto e que, ainda, nenhum de ns, com os tempos que correm, ousaria julgar intolervel, ou seja, as sinalizaes nas estradas rurais, os semforos, a escrita keep left, os postes, os fios de eletricidade etc. Resumindo, tudo aquilo que tende a uniformizar a inteira rea rural inglesa ao subrbio como escreve Ian Nairn, autor do timo volume[footnoteRef:14] que tem como ttulo Outrage (Ultraje). A iniciativa inglesa teve o consenso e o encorajamento de toda a imprensa, da Times a Daily Mirror. Mas, na verdade, at para ns a participao da imprensa foi unnime e no por isso o ministro do LL. PP. se sentiu no dever de intervir ordenadamente no ANAS na suspenso dos contratos de publicidade e na remoo das relativas feiuras NT11; ou talvez no o fez porque o rgo a tal ponto autnomo que se poderia dizer dotado de poderes soberanos? No poderia o Instituto Nacional de Urbanstica intervir com sua autoridade para que fosse oferecida pelo menos uma explicao? [14: Publicado, como nmero especial da revista, em junho 1955 e depois reimpresso em volume parte. Neste propsito gostaria de recordar o episdio de um hspede ingls da Costa Amalfitana, o qual algum tempo atrs costumava sair noite para incendiar os cartazes publicitrios que prejudicavam a paisagem da esplndida estrada paralela ao mar. Ele j tinha conseguido destruir um certo nmero quando foi, infelizmente, identificado e condenado a pagar pelo prejuzo. NT9 ANAS o gestor da rete stradale ed autostradale italiana di interesse nazionale. Disponvel em http://www.stradeanas.it/index.php?/dati/profilo_e_missione/index. Acesso em: 15 de maio de 2014.NT10 a guisa di pietra miliare (As aspas so do autor): a ttulo de pietra miliare, que eram placas indicativas, normalmente cilndricas, colocadas ao longo das estradas, a cada mil passos de distncia uma da outra, a partir do frum de Roma. Disponvel em: http://www.romanoimpero.com/2010/03/unita-di-misura.html. Acesso em: 22/05/2014.NT11 Do italiano Brutture: relativo ao que feio. ]

Parece-me que o referido esclarecimento acerca do conceito de literatura arquitetnica poderia evoluir especialmente na Itlia onde, ao invs de perseguir o mais modesto caminho da probidade, obstina-se frequentemente a enveredar pela fantasia.A fonte dos maiores problemas na nossa moderna construo de fato aquele que se poderia definir o equvoco artstico. Equvoco do recente passado que sobrevive imutvel no nosso presente por no ter sido completada aquela evoluo de cultura, que poderia consentir em evitar a subsistncia da antiga academia, apesar da revoluo dos meios materiais colocados a nossa disposio. Em outras palavras no suficiente, nem poderia bastar, a disponibilidade de instrumentos novos para que as nossas disposies criativas se renovassem interna e externamente[footnoteRef:15]. [15: Para isso teria sido necessrio que tivssemos levado em conta as trgicas experincias de nossa recente histria ao invs de retroceder em uma involuo na qual, sob o esplio de uma democracia de prefeitura, sobrevive imperturbvel a velha e deplorada retrica.NT12 Do original Bleu.]

A geral tendncia nfase demonstrativa, o propsito de reunir maior visibilidade possvel; em resumo, a ausncia de discrio e de modstia so as caractersticas mais difundidas e imediatamente reconhecveis das nossas construes; e so, repito, apesar das aparncias, caractersticas imutveis. Ento, a exemplo da maldio dos achados plsticos e cromticos com os quais, exatamente como noutra poca, fazemos todos os esforos para que se perceba a nossa presena como inventores de uma nova arquitetura (que esperemos chamar de nuclear); e muito frequentemente suficiente apenas um elemento para arruinar toda uma estrada que inicialmente possua uma sua orgnica estratificao e uma sua beleza. Um annimo pintou de azul NT12 ou de vermelho os detalhes de todas as varandas de uma casa de muitos pavimentos; Ele certo de ter feito algo original no momento em que nunca se tinha visto aquilo antes. Na realidade a sua casa produz em ns o mesmo efeito da rdio do nosso vizinho quando funciona a pleno volume enquanto desejaramos poder nos recolher ou dormir em paz.Similarmente, um conjunto de casas modernas que poderia esconder-se na periferia de qualquer cidade nossa pode ser comparada a nossa discusso pblica. De fato, nem nos ambientes mais qualificados se realiza em ns aquela recproca subordinao que deveria consentir a cada um manifestar o prprio ponto de vista. Existiro sempre alguns que tentaro se impor com a prpria eloquncia, com maior volume da prpria voz, e por outro lado, alguns outros recolhidos ao silncio por timidez, excessivo escrpulo ou insuficincia de prestgio, em havendo, esperemos, muitas e mais coisas teis a serem ditas.Bastariam estas poucas consideraes e confrontos para entender como, as maiores dificuldades que se opem na Itlia a uma sria urbanstica, no seriam de natureza tcnica; ou melhor, que antes de o serem, so de natureza moral e psicolgica.Hoje o cimento e o ao consentem a fcil realizao da massa construtiva fortemente concentrada, de viabilizar condies de convvio que nem mesmo o esprito mais otimista pode considerar favorveis a um harmnico desenvolvimento das novas geraes. Os pretextos da extrema urgncia e da mais rgida economia, em um pas de alto crescimento demogrfico (o nosso maior e mais tcito desastre) determinaram, nesse ps-guerra, a frustao de cada saudvel propsito urbanstico mediante o disfrute acidental e catico das reas edificveis; neste caso os entes estatais e paraestatais se demonstraram, no raramente, mais cegos e vidos que os especuladores privados.Mas tudo isso, dir-se-, tem ainda sabor de vaga e genrica recriminao. Isso pode ser verdade, mas o discurso se far mais preciso (e, ousarei acrescentar, incomum) se como arquitetos nos colocarmos de frente nossa bem determinada responsabilidade. Somos, por exemplo, absolutamente convencidos que as dimenses assinaladas aos casos que projetamos so aquelas justas? No talvez verdade que o exerccio que nos imposto pela nossa sociedade aquele de ser um dos especialistas da densidade e de conferir organizada aglomerao uma veste esttica? Ocorre-nos uma forte dose de presuno e de cinismo em acreditar que esta casa de oito, dez ou doze pavimentos, por ns desenhada e colocada a destruir um entorno j orgnico, na sua relao entre construo e natureza, seria uma positiva expresso de literatura construda (se no verdadeiramente de poesia) e no mais algo ao qual ns acabamos de conferir uma impresso ilusria, ao tempo que a sua realidade, no significado econmico e social que realmente importa, era j preestabelecida por outros? Quem pode seriamente acreditar que aquele particular desenho de varanda, aquele tal detalhe tenha uma importncia tamanha de transcender a prescrio da moda, e no seja, ao invs, destinado a ser causa de ntima mortificao e cansao pelo seu autor quando, aps apensa poucos anos, a moda ter sugerido, como a feiticeira Circe, novos comportamentos no menos extrnsecos e falsamente persuasivos?Por outro lado, as exorbitantes dimenses que produzem uma to grave densidade humana no constituem uma inevitvel consequncia do progresso tcnico mais apenas um caso limite de investimento econmico; por que evidente que os meios de comunicao j nossa disposio e as grandes conquistas que vo delineando uma verdadeira e prpria revoluo na nossa vida comum, como as novas fontes de energia e automatizao, permitem uma descentralizao que j faz sentir absurda e anacrnica a concentrao da nossa megalpole. Frente rapidez das mutaes que a moderna tcnica sugere, ocorreriam muito frequentemente organismos de fcil adaptabilidade e transformaes que no os gigantescos falanstrios NT13 em cimento e ao[footnoteRef:16]. [16: Como mxima documentao crtica do moderno drama urbanstico, atravs de uma viso no estreitamente tecnicista, mas histrica e humana, e para se refletir o volume de Lewis Mumford, The culture os the cities Londres, 1938, e especialmente, no sentido acima mencionado, o captulo intitulado La insensata citt industriale. NT13 Falanstrios eram grandes construes urbano-rurais autossuficientes que abrigavam um tipo de organizao social baseada nas ideias de Fourier. CONORATH. G. D. anlise scio-espacial atravs de mapa temtico, evoluo econmica e populacional de so Francisco do sul. Disponvel em: http://www.uniedu.sed.sc.gov.br/wp-content/uploads/2013/10/Gabriel-Daniel-Conorath.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2014.NT14 Do original: diradamento, traduzido para o portugus como desbaste. No dicionrio Ruth Rocha encontramos o verbete desbastar que quer dizer: v. Tornar menos espesso, mais delgado. Aperfeioar. Este ltimo pareceu-nos o mais adequado traduo. ROCHA, Ruth. Minidicionrio da lngua portuguesa. So Paulo: Scipione, 2005. P. 229.NT15 Do original: Parossistico, traduzido para o portugus como Paroxstico. No dicionrio Ruth Rocha encontramos o verbete Paroxismo que quer dizer: (sm) (med) O mais alto grau de uma doena; (P. ext) O auge de um sentimento, movimento; no texto, a nfase dada pelo autor gravidade do problema na cidade de Npoles, levou-nos a traduzir o termo como terminal por considerar o ltimo grau de uma mazela. OP CIT P.522.]

Mas isso talvez um tom j muito mais elevado para comentar aquilo que est acontecendo na Itlia, onde o aumento da densidade de habitao no centro antigo muito mais um ato de verdadeira e efetiva criminalidade em dano do interesse pblico do que uma questo de natureza tcnica. Assim em Npoles esto construindo arranha-cus sem qualquer obra prvia de aperfeioamentoNT14, mas s aumentando, para uma maior riqueza de algum abjeto especulador, o j terminal NT15 trfego e a infeliz convivncia.O arquiteto deve conquistar a possibilidade de determinar, sem forar obedientes e desumanos constrangimentos, a relao entre o novo e o antigo e a criao, orgnica e no adicionadora de um novo entorno. Os nossos quarteires de habitao, escreve ainda Gropius, tem frequentemente apenas um certo nmero de casas e de ruas, reunidas com certo critrio adicionador e privado daqueles elementos comuns que poderiam transformar um aglomerado de habitaes em um organismo vivo, racionalmente limitado e de justas propores. No dispem em absoluto daquele fermento expressivo dos valores intangveis de uma projetao criativa e de uma concepo orgnica, que do vida o seu sentido mais profundo e pelos quais o passado nos deu to esplndidos exemplos de unidade. Mas isso tambm, se objetar, no certamente novo. No h apelo funcionalidade, ao fraco organismo, viva sociabilidade que na Itlia j no tenha sido lanada mil vezes. Isso no evita, porm, que a nossa verdade continue a estar sempre presente em algum outro lugar, e que se espelhe em construes falsamente estatizantes e renunciantes, imagem do nosso hbito social e poltico, testemunho de um saber fazer temperado por sorrisos cticos e de piadas, assim como surge na atividade de qualquer campo profissional. Bastar pensar no quadro que Roma hoje oferece ao mundo (para citar apenas o exemplo mais gritante) para que no seja necessrio acrescentar outro.Cada um de ns na Itlia sentiu recentemente admirao por alguns complexos construdos, recentemente realizados nos pases escandinavos, na Holanda ou outro lugar, como coisas que no revelavam propriamente um desenho rico de fantasia, mas eram, no entanto, plenamente aceitveis s suas estudas e felizes execues e dentro da pesquisa de uma ambientao natural. Algo de similar, melhor, de mais significativo, verificado nesses ltimos tempos no confronto direto entre a nossa produo nas Triennali NT16 de Milo e aquela de alguns pases do Norte. A nossa, apesar da espordica qualidade inventiva, improvisada e dispersiva; aquela estrangeira, ao invs, meditada e discreta. Na nossa, as experincias passadas parecem no ter ensinado nada porque sempre se recomea do incio, enquanto no exterior o discurso aparece ligado a um outro precedente de cujo ensinamento se procura fazer precioso.Para oferecer, em sntese, a imagem das nossas construes, pode- se dar uma olhada nos seus aspectos extremos e assim, por um lado, ao ostentado luxo das casas de dois ou trs milhes por vo e, por outro, vergonhosa insuficincia das construes que poderamos chamar proletrias. No meio disso tudo, o espetculo mais miservel aquele oferecido pela perspectiva de casas populares, nas quais o projetista, no rastro do anunciado equvoco esttico, procurou fazer da arquitetura inspirada em Mondrian (ou quem quer que seja) justapondo impossveis planos geomtricos e forando uma rida composio abstratizante elementar necessidade dos cheios e dos vazios. A irnica representao do quadro pode ser completada inserindo-lhe uma observao: o sombrio habitante que se move, estrangeiro e annimo entre estas formas, percebendo apenas a precoce decadncia e no a metfora mecanicista; metfora que, mais ou menos mal digerida, fornece hoje uma provisria e irnica afinidade entre os mais remotos pases. Por isso, entre os requisitos surpreendentes do nosso presente, de se registrar a extrema rapidez e facilidade com as quais uma nova ideia figurativa cumpre a volta ao mundo e produz, em qualquer lugar, imitadores e proslitos. J muito anos atrs, de fato, Le Corbusier censurava aos muitos imitadores da nova arquitetura, que arriscavam arruinar um renascimento nas suas origens, une Renaissance ses dbuts [footnoteRef:17]. [17: Cfr., sobre teoras de Le Corbusier, o meu texto Le Corbusier e le tendenze mecchanicistiche dellarchitettura moderna, em Architettura e arti figurative , Veneza 1948.NT16 Triennali di Milano: um famoso instituto de design, arquitetura e artes visuais em Milo, IT.]

velha retrica estilstica ns substitumos uma outra ainda mais funesta, ou seja a retrica do mecanicismo; e aqui no podemos no associar a um construtor e arquiteto dotado de autntica fantasia como Luigi Nervi quando escreve: oportuno denunciar o perigo de um academicismo construtivo, assim como o ainda mais danoso do superado academicismo decorativo[footnoteRef:18]. [18: Architettura doggi, coleo do Viesseux, II, p. 13. Apesar das reservas e objees de natureza crtica que foram colocados a Nervi, eu considero o seu volume Costruire correttamente como a mais viva contribuio que tenha sido dada nestes anos aos problemas relativos preparao cultural das faculdades de arquitetura na Itlia. ]

Talvez no se tenha entendido suficientemente que uma verdadeiro e adequado renovamento das nossas construes no poderia consistir em um requisito de carter tcnico ou em um diferente caminho formal entendido em si mesmo como possuindo um seu autnomo destino. As nossas construes se renovaro se ns, arquitetos, combatermos enquanto partcipes e responsveis por um mundo comum, onde contribuir na mutao daquelas condies de vida social, poltica e administrativa das quais unicamente depende o nosso operar e que sabemos ser hoje desfavorveis a um promissor desenvolvimento do nosso ambiente. Em outras palavras, necessrio comprometer-se tambm a risco de desagradar aos organismos do poder executivo, aos entes do Estado onipotentes, criticando-os onde ocorra (e Deus sabe se ocorre) os equivocados ordenamentos e procedimentos e sugerindo novas possibilidade e novos caminhos. necessrio perceber que o maior perigo da sociedade moderna, esteja essa dominada pela direita ou pela esquerda, est no culto ao Estado, no poder cego e indiferente das macias organizaes contra as quais muitos homens iluminados pregam hoje pela atuao de limitada comunidade autnoma, na qual o poder se subdivida ao invs de estar incumbido distncia e do alto. Como justamente escreve Simone Weil, o perigo atual que s antigas formas de ditadura se v mo a mo substituindo, colossal e annima, a opresso da funo.Ora, aqueles que creem serem estes discursos estrangeiros urbanstica so na verdade estrangeiros a uma concreta realidade e cultura; e de resto, em nome de que coisa se no daquela de uma real capacidade de sntese, e ento de uma mais vasta e aberta reponsabilidade, o arquiteto moderno poderia aspirar a chamar-se urbanista se a sua interveno, a concluso de outras complexas investigaes e demandas, no se dever limitar a um aparato esttico que respeite o bom gosto, mas dever, em lugar, interpretar e resolver as exigncias de uma melhor convivncia? necessrio ento que ele sinta, ainda mais que os outros, o dever de uma plena participao na vida social e poltica. A quem afirma ser a nossa funo de arquitetos limitada soluo tcnica dos problemas que nos so postos pelos outros, gostaria de dedicar, para que seja refletida, a seguinte pgina de C. G. Jung: quanto maiores as organizaes, to mais inevitveis so as imoralidades e a cega estupidez. Se agora a sociedade, nos seus nicos representantes, afirma j automaticamente as qualidades coletivas, a mesma premia de tal modo cada mediocridade todos queles que se dispem a vegetar de maneira cmoda e irresponsvel: inevitvel que o elemento individual seja colocado parte. Este processo comea na escola, continua na universidade e domina onde quer que os Estado meta a sua mo. Quanto menor o corpo social mais garantida a individualidade dos seus membros, maior a sua relativa liberdade e ento a possibilidade de uma responsabilidade consciente. Sem liberdade no pode existir moralidade. A nossa admirao pelas grandes organizaes desaparece se percebemos o outro aspecto do milagre, isto , o monstruoso acmulo de todas as caractersticas primitivas do homem e o inevitvel alienamento da sua individualidade em favor daquele monstro que cada grande organizao. Um homem de hoje, que corresponda mais ou menos ao ideal moral coletivo, fez do seu corao um covil de assassinos, como no difcil demonstrar mediante a anlise do seu inconsciente, mesmo que ele no seja absolutamente perturbado. Se est normalmente inserido no seu ambiente, no o perturbaro nem mesmo as piores atrocidades da sua sociedade, pois a maioria dos seus concidados acredita na alta moralidade das suas organizaes sociais[footnoteRef:19]. [19: C. G. Jung, Lio e linconscio, Turim 1948, p.49.]

Essas palavras de Jung poderiam ser invocadas pelo Movimento italiano de Comunidade como um enrgico testemunho a favor dos limitados organismos de vida associada que por ele eficazmente defendido. A tal propsito, convido o leitor a um texto de U. Serafini no qual se encontram felizes observaes a serem consideradas naquela problemtica do planejamento intermunicipal e regional que espera ainda ser devidamente enunciada. Recomendo, por exemplo, esse passo: na sua traduo industrial, como observa Petit, o planejamento do territrio consiste em colocar as fbricas onde so teis aos homens ao invs de coloc-las onde levariam aos seus proprietrios os maiores e imediatos lucros [footnoteRef:20]. E aqui vem a vontade de questionar: onde se colocariam as fbricas dos planos regionais italianos? possvel que estas estejam l onde convm utilizao pelos homens[footnoteRef:21], em um pas como o nosso no qual so ainda monoplio privado as lojas de departamento, a energia eltrica e as de telefonia? [20: U. Serafini, La via comunitaria al socialismo, Roma 1956, p.17.] [21: Aqui se deve recordar o caso, verdadeiramente digno de infmia, de uma refinaria de petrleo que est sendo construda sobre a esplndida costa entre Gaeta e Frmias [cidades costeiras da regio do Lcio, IT] apesar da bastante violenta e tenaz oposio por parte da populao local e da administrao municipal. Tal oposio foi muito mais motivada por interesses tursticos, j largamente consolidado no local e que com a refinaria no poderia deixar de sofrer gravssimos danos.]

Concluindo, parece-me que ns arquitetos deveramos possuir uma mais precisa conscincia da histria contempornea do nosso pas, de maneira que essa se torne condio concreta, e no irreal e abstrata, do nosso construir. No existe outro caminho para nos libertarmos daquele provincialismo que continua a nos afligir apesar da nossa vitalidade e das nossas qualidades brilhantes. As obras alheias, aquelas amadurecidas sob um diferente clima e por uma diferente sociedade, no so coisas a serem imitadas, mas apenas compreendidas como testemunho da mltipla variedade na qual se configura a liberdade criativa.Isso que falta em ns no a possibilidade de indicar alguns exemplos felizes, mas uma mdia produo que seja aceitvel e digna; por isso, repito, uma especfica civilizao no poder ser demonstrada por algumas obras de poesia, mas por uma difusa literatura arquitetnica que encontre lugar prximo quela do passado.16