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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO HAIKAI DO MUNDO HAIKAI DE MIM: O NADA NA POESIA DE PAULO LEMINSKI São Cristóvão 2014

RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO - ri.ufs.br · (Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa). [...] Mas se o nada desaparecer a poesia acaba. (Manoel de Barros) RESUMO ... Zen-budismo,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO

HAIKAI DO MUNDO HAIKAI DE MIM:

O NADA NA POESIA DE PAULO LEMINSKI

São Cristóvão 2014

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RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO

HAIKAI DO MUNDO HAIKAI DE MIM:

O NADA NA POESIA DE PAULO LEMINSKI

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Literatura e Cultura. Orientador: Prof. Dr. Cicero Cunha Bezerra.

São Cristóvão

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

A663h

Araujo, Rodrigo Michell dos Santos

Haikai do mundo haikai de mim : o nada na poesia de Paulo Leminski / Rodrigo Michell dos Santos Araujo ; orientador Cicero Cunha Bezerra. – São Cristóvão, 2014.

119 f. : il.

Dissertação (mestrado em Letras) – Universidade Federal de Sergipe, 2014.

1. Poesia brasileira. 2. Haicai. 3. Zen-budismo. I. Leminski, Paulo, 1944-1989. II. Bezerra, Cícero Cunha, orient. II. Título.

CDU 821.134.3(81)-1.09

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RODRIGO MICHELL DOS SANTOS ARAUJO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Sergipe como requisito para a obtenção do título de Mestre em Letras: Estudos Literários.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________

Prof. Dr. Cicero Cunha Bezerra – Orientador (UFS)

___________________________________________________

Profª. Drª. Josalba Fabiana dos Santos (UFS)

___________________________________________________

Profª. Drª. Maria Celeste Natário (Universidade do Porto)

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AGRADECIMENTOS

A minha mãe, pela presença sempre poética.

Ao Prof. Cicero Cunha, um verdadeiro mestre que orientou esta pesquisa e gentilmente compartilhou sua biblioteca.

Ao Prof. Romero Venâncio, pelas aulas que fizeram parte de minha formação acadêmica.

Ao Prof. Anderson Frasão, pelas correspondências luzidias, pela amizade, pelo carinho e pelo apoio nas travessias, em dias de sol e aço.

À Profa. Antonia Maria Nunes, que me apresentou Leminski em um dia de chuva.

À amiga Ive, pela amizade noturna, pela confiança e pela ajuda em algumas traduções e revisões.

À amiga Fernanda Aragão, minha querida interlocutora desde a graduação, pelo diálogo sincero, horizontal e proveitoso. Uma parceria inesgotável.

À amiga Jamilly Vilela, que acreditou em meus projetos e na realização desta jornada acadêmica, que me ouviu, me leu, e por muitas vezes me entendeu. Uma amizade virtuosa.

Aos amigos de São Paulo, em especial a Thiago Almeida pela habitação, e a Marcelo Franceschi pelas discussões em torno da teoria literária, que só enriqueceram esta pesquisa.

Aos colegas do Mestrado, pelos diálogos e debates ao longo do curso.

À FAPITEC/SE, cujo auxílio financeiro ao longo dos dois anos de curso tornou possível a realização desta pesquisa.

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À Andrei Tarkovsky.

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Sou um guardador de rebanhos O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto.

E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz.

(Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa).

[...] Mas se o nada desaparecer a poesia acaba.

(Manoel de Barros)

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RESUMO

Esta dissertação investiga a produção de haikais do poeta curitibano Paulo Leminski, tomando como corpus de análise sua produção das décadas de 1970 e 1980, período de maior intensidade artística, a partir das obras Caprichos e Relaxos (1983) e La vie en close (1994). A investigação será possível mediante a constituição – pelo caminho das críticas literárias brasileira e francesa, de Benedito Nunes a Maurice Blanchot – de um espaço interseccional em que (i) a obra literária possa se abrir para o mundo, reatando os liames com o real; (ii) a literatura e a filosofia possam dialogar, sem nenhuma relação antipodal; (iii) a poesia se encontre com o pensamento oriental e com o Zen-budismo. Deste modo, defendemos a tese de que o haikai, pela sua estética do ver, do sentir e do experienciar o mundo, é a fina flor da poesia, e que os haikais de Leminski, em diálogo com a tradição nipônica e com a filosofia Zen, são carregados de experiência mística e contemplativa, um caminho em direção ao Nada.

Palavras-chave: poesia, haikai, Zen-budismo, Nada, Leminski.

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ABSTRACT

This dissertation investigates the production of the haikais of the poet Paulo Leminski from Curitiba, taking as the corpus of analysis its production during the 1970s and 1980s, period of the greatest artistic intensity from the works Caprichos e Relaxos (1983) and La vie en close (1994). The investigation will be possible due to the constitution – in the way of the Brazilian and French literary criticism, Benedito Nunes to Maurice Blanchot – an intersectional space in which (i) the literary work can open up to the world, resuming the bonds with the real; (ii) literature and philosophy can dialogue without any supression relationship; (iii) poetry meets oriental philosophy and Zen-Buddhism. Thus, we defend the thesis that the haikais, for its aesthetic of seeing, feeling and experiencing the world, it is the finest flower of poetry, and that Leminski’s haikais in dialogue with ethnic Japanese tradition and philosophy Zen are laden with mystical and contemplative experience, a path toward the Nothing. Key-words: poetry, haikai, Zen-Buddhism, Nothing, Leminski.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 10

1 ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA, OU UM DESEJO DE ENC ONTRO ........... 15

1.1 Questões de crítica: fundamentação e diálogo ........................................................ 17

1.2 A contribuição da crítica de Benedito Nunes ...........................................................21

1.3 O local do meio ........................................................................................................ 26

2 LEMINSKI: ENTRE ORIENTE E OCIDENTE ......................................................... 33

2.1 Movimento 1 – Haikai: fundamento e tradição ....................................................... 35

2.2 Movimento 2 – Neoplatonismo e poesia ..................................................................47

2.3 Movimento 3 – O caminho do meio ........................................................................ 58

3 UMA VIDA DE CAPRICHOS E RELAXOS ...............................................................69

3.1 Ângulo 1 – Leminski noturnal ..................................................................................70

3.2 Ângulo 2 – Haikoans ................................................................................................75

3.3 Ângulo 3 – Vazio ......................................................................................................80

3.4 O close: grande plano ...............................................................................................84

3.4.1 Zona de encontros......................................................................................85

3.4.2 Zona do nada .............................................................................................89

ZONA DE AJUDES, ZONA DO FIM CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................93 REFEFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................96

ANEXOS ...............................................................................................................................107

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INTRODUÇÃO

Bashô disse: não siga as pegadas dos antigos. Procure o que eles procuravam.

(Paulo Leminski, Envie meu dicionário, 1999, p. 111).

Partir para o campo da poesia é sempre entrar em um labirinto. Perder-se. Mil direções.

O leitor, o grou: “o labirinto convida à exegese, e o entrelaçamento de encruzilhadas e de

corredores ramificados atrai irresistivelmente o intérprete a mil e um percursos” (DETIENNE,

1991, p. 13). Como um Ivan, de Tarkovsky (1962), que atravessou os labirintos da infância a

duros passos, perguntamos: como abordar e atravessar uma obra tão múltipla e intensa como a

de Paulo Leminski? Que caminhos trilhar no labirinto leminskiano? Do grou, o voo. O

múltiplo, o intenso, o cachorro louco de Curitiba que latia por ser sua condição, e assim latia

em vários idiomas. De Paulo Leminski à p. leminski, como passou a assinar em alguns textos.

O mestiço, meio polonês, meio negro. Nascido em 1944, nas proximidades do fim de uma

grande guerra mundial que daria outra coloração ao mundo. O tímido frenético, de carona no

concretismo, antropofágico nas esquinas. Seus disfarces, muitos: jornalista, profissão que

mais admirou e se prestou até quase o final da vida, publicitário, músico, professor, escritor,

ensaísta, contista, tradutor. Sua vida, um fluxo. Fluxo contínuo. Um arrebatador jorrar de

águas. Homem vário. Uma linha louca em puro frenesi e que não sabia onde começava, nem

onde terminava. Linha ébria. Tão ébria que perdeu o rumo, a rota. Mas, para quê rota?

Rotina? Não, a linha leminskiana era psicodélica, andava em círculos, girando e pondo tudo a

girar. Assim também era a escritura leminskiana, ex-estranha, uma escritura desejante,

pulsante, bombardeando potencialidades para todos os lados, escritura apressada, que corria,

como se atrasada para chegar ao ponto de chegada.

Verdadeiro escriba, anarquista com altas ideias pintando à mente, espírito ambulante e

delirante da contracultura, como se, hippie, irisasse o Woodstock. Homem a serviço da

linguagem, mas também dos vícios. A “linha Paulo Leminski” foi sinuosa, ondeada, de altos e

baixos. Uma linha na franja da encosta. Basta situarmo-nos nos decisivos anos 1970 para o

poeta, anos de onda lisérgica que espalhava por Curitiba, principalmente na segunda década

de 1970, anos de grandes parcerias com grandes músicos, anos dos sprays e da “poesia

espontânea”, mas também anos de perda, com a morte dos pais, e de presença excessiva do

álcool. Entre a máquina de escrever e a vodca. Anos difíceis e traumáticos, principalmente no

final da década, já com a morte do filho mais novo, e o que viria na década de 1980, não fosse

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isso, seriam anos de grande desequilíbrio, com o suicídio do irmão, mas também, como vinha

acontecendo na década anterior, período de grande expoente na poesia.

Poeta apressado, de anseios, sintonia entre pressa e presságio. Que o ponto de partida

desta dissertação seja a brevidade, que é, deveras, o essencial de sua poética. O seu charme,

até. Não há como problematizar a brevidade como um fator isolado, e é então que ela baliza

outras questões. Primeiro, é uma brevidade muito ligada ao fator da liberdade, com sua

herança em toda a literatura do movimento beat, poesia nas ruas, ou a palavra em viagem, o

tão caro elo “literatura e vida”, debate dos bancos da teoria e crítica literárias. É um

movimento que reflete no nosso movimento contracultural, alternativo, na poesia despojada,

leve e humorada – de certo modo, a brevidade pelas vias deste fator liberdade já fora

experienciado por algumas poesias-minuto do nosso modernismo. Nesta circularidade de

movimentos, a segunda questão desencadeada é a da tomada da liberdade no próprio jogo de

linguagem. Aqui é o ponto chave para pensar Paulo Leminski. O seu caminho é por uma

poesia a serviço da vida e por uma poesia que chegue ao leitor/consumidor

Se Leminski fez “da realidade uma das linhas de força de sua poética”, como afirma

Maria Esther Maciel (2004, p. 171), é a partir deste fio condutor que a nossa dissertação se

dedicará a investigar os haikais – poema de três linhas que tem o Oriente em sua gênese – na

obra de Paulo Leminski, um autor de vanguarda depois das vanguardas, segundo a ótica de

Cláudio Sousa (2011, p. 36). Com efeito, nossa investigação só será possível a partir da

construção de um espaço interseccional, o meio, o entremeio, entre filosofia e literatura; via

de mão dupla, um ponto de encontro harmônico para a estruturação da análise, que também

traz em si problematizações de limites e fronteiras dos campos. A nossa justificativa parte de

uma constatação inicial de que toda a obra poética de Paulo Leminski contém haikais e é o

próprio haikai, enquanto forma poemática, que carrega o traço da brevidade como essencial.

Lançar olhar sobre esta constatação já é, em si, pôr-se entre limites, por ser o próprio haikai

genuinamente oriental e ter influenciado várias literaturas ocidentais.

E ainda: se o espaço interseccional acolhe as investidas e põe em xeque as tensões

limítrofes, ele será uma abertura fundamental e privilegiada para se tomar o próprio haikai

como um gênero entre fronteiras. Como Leminski, no lugar do ocidental, toma o haikai? E

qual a relação do poeta com este Oriente que nos parece tão distante? O local do meio permite

justamente abrigar os distantes num próximo. É no campo da crítica que buscamos formar

este espaço. Primeiro, partindo da crítica para abrir a própria obra literária aos diálogos

inter/transdisciplinares, seguindo o caminho crítico de Eneida Maria de Souza (2011; 2012) e

Evando Nascimento (2004). Segundo, abrir a obra para o mundo, reatar o liame com o real a

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partir de Todorov (2009), Compagnon (2010) e Antonio Candido (2000; 2004a; 2004b;

2011). Só então o campo estará formado para a obra literária abrir-se para o filosófico, ou

quando a filosofia e a literatura se doam, como é o caso do caminho crítico de Benedito

Nunes. A abertura que este espaço propicia é pôr em xeque as fronteiras. Neste caso,

Leminski entre Ocidente e Oriente. A tese que defenderemos e seguiremos nesta dissertação é

de que os haikais de Leminski, a partir do corpus selecionado, dialogam com a tradição

nipônica e por isso mesmo estabelecem uma densa carga imagética e contemplativa da

natureza. O nosso argumento é de que o haikai faz-se uma experiência mística e

contemplativa, uma experiência carregada de pensamentos do zen-budismo, uma palavra

búdica. É então nestes espaços-entre que buscamos investigar a poesia haikai de Paulo

Leminski como um caminho para o Nada, possível apenas se questionarmos que Nada é este

que se fala: um nada, sinônimo de ausência como pensa de forma contumaz o Ocidente? É a

investigação do Nada que nos permitirá um diálogo com a filosofia, principalmente com o

filósofo alemão Martin Heidegger, e com o pensamento oriental da Escola de Kyoto.

A investigação da poesia entre o filosófico e o pensamento oriental Zen-budista

permite-nos não apenas pensar novas teorias para o próprio haikai, como também visualizá-lo

dentro de uma cultura. A investida analítica é a de tomar noções de união e liberdade como

pontos de encontro. Não é a liberdade, tão nítida nas bases do Zen-budismo, que influenciou

uma geração de beatniks e de marginais? Não é a experiência de união que impulsionou o

“boom da poesia fácil”, como diz o próprio Leminski (2011, p. 64), em toda uma geração

alternativa?

Na fortuna crítica de Leminski, uma investigação centrada em seus haikais ainda

permanece às escuras. Em consulta ao Banco de Teses da CAPES, pode-se ver apenas uma

dissertação sobre o haikai em Paulo Leminski e outras três, apenas, de forma tangenciada1.

Em Manoel Ricardo de Lima pode-se consultar um ensaio (2004, p. 97) em que traça um

itinerário guiado pela intertextualidade, considerando algumas notas acerca do haikai, “a

postura idiossincrática de Leminski frente ao postulado da filosofia oriental do zen

determinou e relativizou sua maneira ocidentalizada de relacionar-se com a produção de

poesia”, além de um livro, Entre percurso e vanguarda (2002), que também é guiado pela

intertextualidade, dando ênfase nas grandes influências de Leminski, no caso da oriental na

figura de Matsuó Bashô – que também figura em um dos capítulos da obra de Fábio Vieira,

1 Consulta realizada ao Banco de Teses e Dissertações da Capes, disponível em: http://capesdw.capes.gov.br/capesdw/. Acesso em agosto de 2013. Para a pesquisa foram utilizadas as palavras-chave: “haikai”; “Paulo Leminski”. Constatou-se apenas a dissertação de Carlos Augusto de Novaes, O rigor da vida e o rigor do verso: o haicai na poética de Paulo Leminski (1996), focada em sua poética haikai.

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Oriente ocidente através (2010). Tanto nessas obras como em antologias críticas de fôlego,

como A linha que nunca termina (2004), a investigação do haikai e da influência do

pensamento oriental se dá apenas de forma tangenciada, com tímidas ilustrações ou como

capítulos – como é o caso da tese de Elizabeth Rocha Leite, A experiência dos limites (2008,

p. 91-116), dedicando o capítulo final ao Zen-budismo e ao haikai pela esteira da síntese

disjuntiva em Gilles Deleuze. Deste modo, centralizar-se no haikai é não apenas recobrir

lacunas, mas abrir novas problematizações.

Selecionamos como corpus para análise sua produção da década de 1970 e 1980 por se

constituírem as décadas de maior produção do poeta. Investigaremos as obras Caprichos e

relaxos (1983) e La vie en close (1994), ambas primordiais na representação do corte

epistemológico. Caprichos e relaxos é uma reunião de obras independentes publicadas pelo

autor na década de 1970, que não tiveram ampla circulação. Suas seções-livros inscrevem a

melhor produção poética da poesia alternativa, despojada e experimental do poeta curitibano.

Todo o livro é composto de haikais, exceto a seção “Polonaises”. É por ser um exímio

registro de produção de uma década que a tomamos para análise. O movimento que começa

em Caprichos e relaxos tem como ponto de chegada a obra La vie en close, de publicação

póstuma e contendo produções da década de 1980 até próximas do fim da vida de Leminski,

que morre em 1989 de cirrose hepática. As produções desta década têm uma coloração mais

existencial – podem ser consultadas algumas perdas familiares pela biografia de Toninho Vaz

(2001, p. 217ss). Neste ponto de chegada, selecionaremos haikais em que há uma homenagem

aos seus ídolos do Oriente, e que trazem uma grande presença intertextual do mundo

nipônico, além de trazer o tema do nada. Com o nada, e com a experiência do nada que

Leminski busca do Oriente, nossa tese é que a palavra poética de Leminski funda-se no nada.

Poesia em direção ao nada. Diluição, dilatação, dissipação (palavras que Leminski bem usou

em seus poemas), ou quando a poesia, pelo nada, chega ao Ser. Somadas, as obras Caprichos

e relaxos e La vie en close nos mostram poesias cheias de vida, de satori, de contemplação, de

vacuidade, de nadidade.

Pensar Paulo Leminski, ou pensar (com) Paulo Leminski, na atividade dúplice dos

parêntesis, é imbuir na plasticidade de uma escritura fluida. Uma “usina de ideias” (LOPES,

2004, p. 53), que quis deixar não apenas um testemunho de sua passagem: “queria deixar meu

processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento,

meu pensar transformado em máquina objetiva” (LEMINSKI, 2004, p. 136). Seu ofício na

linguagem e na poesia: ser texto, ser mundo. Uma “escrita-em-teia, qual um tear com fios de

letras” (REBUZZI, 2004, p. 351). Mas se o próprio Leminski fez de sua vida arte, diluindo-se

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nas palavras, tal como um samurai que crava a espada no abdômen em um seppuko, faz para

resistir. Resistência-rebelião “contra a vida prefixada” (RISÉRIO, 2004, p. 374), contra a sua

formalização, provocando a racionalidade: Descartes deslocado na nau de um Catatau. Uma

frase dita pelo nosso poeta acerca de uma conversa com o poeta Augusto de Campos, em uma

carta a Régis Bonvicino, talvez melhor defina a maquinaria Paulo Leminski: “arquipélagos de

ideias-constelação” (LEMINSKI, 1999, p. 167).

O pacto de Leminski: com a literatura alternativa. Poesia viva. Criativa. Perceptiva.

Literatura que, se tenta chegar ao leitor, entra: na vida, nos lares, nos parques de diversões.

Poesia barulhenta, à direita. Mas que pede silêncios e quietudes, à esquerda. Para que direção

vai a palavra? Todas, ou nenhuma. Decibéis de fuga. Decíduas na gestação. Um rio dúctil.

Guerreiro zen nas duras cordas da vida, como diz o próprio Leminski em outra carta-poema

ao poeta Régis Bonvicino (LEMINSKI, 1999, p. 95): “eu sou um guerreiro / um dia serei um

mestre / mas agora estou em idade guerreira / afoito”.

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Capítulo I

ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA, OU UM DESEJO DE ENCON TRO

O filósofo quer possuir a palavra, converter-se no seu dono. O poeta é um escravo; consagra-se e consome-se nela inteiramente. Fora da palavra, ele não existe, nem quer existir.

(María Zambrano, A metáfora do coração, 2000, p. 83).

Nada é imóvel, tudo está em movimento. Por onde, então, começar? Da filosofia indo à

poesia ou da poesia indo à filosofia? Correríamos o risco de, ao lançar-nos ao movimento do

ir e vir na via de mão dupla, privilegiar algumas destas atividades humanas? Perigo à frente.

Dois campos disciplinares que querem conversar, que querem se aproximar, que querem se

entrecruzar entre portas, paredes, teto. Sem dúvida, há janelas, e por isso mesmo se olham

entre os vidros: janela propositalmente entreaberta2. De um lado, a poesia, com suas

particularidades, sua própria identidade, seus anseios, seu olhar “nas nuvens”. De outro, a

filosofia, com suas vontades de busca, seu olhar horizontal, e também com sua própria

identidade. Mas, mesmo com as portas, paredes, teto e janelas, ao redor de ambas, o mundo.

O que pode, então, um encontro entre filosofia e literatura? E mais: um encontro entre a

poesia e o texto filosófico? Como se dá o diálogo entre essas atividades humanas que mantêm

suas diferenças, mas sem correr o risco de hierarquizá-las? É possível respeitar as diferenças

de seus lugares de produção na aproximação? De filósofos e de poetas falemos, portanto. A

experiência poética. A busca filosófica. O poema com fundo filosófico ou o texto filosófico

com teor poético? O que há entre o valor poético e o valor filosófico? Estaríamos falando de

uma filosofia da literatura ou uma literatura filosófica? Se todos estes questionamentos forem

possíveis, é no banco de areia do discurso, poético e filosófico, que arriscaremos o trânsito

sem que um se reduza ou se subordine ao outro.

No rol da história, vários foram os poetas que trouxeram teses e doutrinas filosóficas

para suas obras, diluindo-as em sua criação literária, bem como filósofos valeram-se do

discurso literário para a construção de seu pensamento filosófico. Alguns temas, por exemplo,

são comuns tanto a poetas quanto a filósofos, como a existência, o mundo, a finitude e o

tempo. Por vias distintas, muito se filosofou e muito se poetizou sobre a condição humana e o

mundo que o cerca. O que argumentamos neste capítulo é que a confluência entre filosofia e

literatura é possível mediante a construção de um espaço interseccional, em que não haja, no

2 Podemos dizer que é uma imagem estritamente semelhante às imagens oníricas do cineasta russo Aleksandr Sokurov, que põem corpos para falarem entre obstáculos: tão próximos, mas tão distantes; uma conversa beirando o poético, como pode-se observar no singular Pai e Filho (2004).

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entremeio, nenhuma relação antipodal. Ir de uma à outra num terreno que é, por assim dizer,

fronteiriço.

A articulação dos campos disciplinares nem sempre foi possível de forma harmoniosa,

historicamente falando. O primeiro campo de tensões é antigo e diz respeito à gênese das duas

atividades. Uma antiga querela que corresponde com a antiguidade grega, em um cenário de

transição da oralidade para a escrita. Se poesia e filosofia pareciam já manter seus laços de

vizinhança neste cenário da antiguidade – podemos lembrar-nos dos textos pré-socráticos em

verso – era apenas o início de formação de um terreno árduo e ardoroso. Fazer ver esta

querela exige a pontuação de duas questões: a primeira é que nos voltamos a uma antiguidade

de grande tradição oral. Um período oral de trocas verbais, a língua operando como meio de

comunicação, a linguagem como atividade coletiva. Falar, que é também fazer da linguagem

um “local de armazenamento”, um lugar de memória. Falar, ou melhor, cantar: “palavra

cantada”, como bem coloca Marcel Detienne (1988, p. 16). A oralidade grega, que terá seu

lugar na reflexão de Eric Havelock, faz aparecer a Musa, “a musa da oralidade, cantora,

declamadora, memorizadora” (HAVELOCK, 1996, p. 34). Em A musa aprende a escrever

(1996), a partir de uma teoria geral da oralidade, Havelock quer tomar a comunicação oral não

como algo privado, mas como um fenômeno social, algo partilhado, e a musa como guardiã

“da memória social, e uma vez que seu comportamento, tal como é descrito, é totalmente

oral” (Ibid., p. 98). A grande problemática é: será que essa tradição será ameaçada, ou

abalada, com o surgimento da escrita? E como ficaria a Musa? Agora, falar e ver, na transição

da oralidade para a escrita. Certo é que esta transição para o texto não se deu imediatamente,

mas sim de forma lenta e gradual, visto que, a princípio, poucos detinham o alfabeto. Sendo a

oralidade o lugar do armazenamento, a escrita parecia ser uma espécie de “continuação” das

práticas orais, ou extensão, da prática oral, registro, artefato de documentação, prosa

documentada, prosa filosófica. A resistência deu-se justamente em transcrever o oral – o que

Havelock analisa a partir da chamada “equação oralidade-literacia”. Logo, “a musa aprendeu

a pôr o seu canto por escrito” (Ibid., p. 128), a pô-lo no campo da visualização, pois “tinha

aprendido verdadeiramente a escrever, a escrever em prosa filosófica” (Ibid., p. 136).

A palavra poética, a palavra cantada, a musa da oralidade, que também é filha da

Memória (Mnemosýne). O poeta, que “está sempre inspirado pelas Musas” (DETIENNE,

1988, p. 21). A poesia que, “tratada como um repositório de informação cultural”

(HAVELOCK, 1996, p. 140), parece ter sofrido forte mudança no seu estatuto, sendo

“virtualmente transformada em prosa” (HAVELOCK, 1996, p. 140). Todos estes nos levam à

exigência da segunda pontuação: a questão do mito. E aqui partimos da colocação de Jean-

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Pierre Vernant de que a “divergência funcional entre palavra falada e escrita interessa

diretamente ao estatuto do mito” (VERNANT, 1999, p. 174). Partindo-se da compreensão de

mito como narrativa, como instrutivo, pedagógico, “ao modo do fictício e do fantástico, [mas

que] falam de coisas absolutamente essenciais” (Ibid., p. 185), além de capazes de “encantar”

aquele que lê, Vernant toca na questão essencial: “o mito [...] é uma tela sobre a qual estão

bordadas a narração oral e a literatura escrita” (Ibid., p. 189). Aqui, o mito encontra-se entre o

oral e o escrito, ou melhor, o mito torna-se esse espaço onde passam os gêneros literário e

filosófico.

Se o mito, lugar da ficção e do fantasioso, por vezes do “absurdo”, fora deveras expulso

do universo filosófico racional, o encontro com o discurso racional se fará pela questão da

Verdade (Alétheia). Vernant mostra que era atribuída ao mito uma “função de verdade, mas

de uma verdade que não seria formulada diretamente” (Ibid., p. 186), uma verdade escondida,

sem fundo, digamos. Já Marcel Detienne, em Os gregos e nós (2008), nos direciona para a

Alétheia, próxima da Justiça (Diké), que “faz par com a Palavra Cantada” (DETIENNE, 2008,

p. 77), isto é, a Musa. Enquanto há uma oposição entre Verdade e Esquecimento (Alétheia

pode ser lida como negação do esquecimento), a Musa e a Verdade aproximam-se, fazendo do

poeta, como diz Detienne, um “mestre da Verdade” (DETIENNE, 1988, p. 21). Deste modo,

podemos dizer que o mito, este que, para Georges Gusdorf (1960), confere sentido ao mundo,

nunca podendo estar dele dissociado, mas sim se instalando nele, sendo “presença em si e

presença no mundo” (GUSDORF, 1960, p. 25)3, passou a problematizar o espaço poético e o

espaço filosófico, daí já mostrando que as fronteiras entre esses campos são em si tênues.

1.1 Questões de crítica: fundamentação e diálogo

O segundo campo de tensões é o da crítica e vai diretamente de encontro à obra literária

e às “correntes críticas”. No terreno da teoria e crítica literárias, por muito tempo a obra

literária permaneceu estanque em um isolamento que fez dela própria um objeto de linguagem

fechado4. Falar aqui de diálogo (no mínimo, em três acepções: diálogo entre campos

3 “Presencia en sí y presencia en el mundo”. Tradução nossa. Para todas as citações em língua estrangeira nesta dissertação serão feitas traduções nossa, isto é, tradução literal e não artística. Manteremos no rodapé a citação no original. 4 É salutar recordar que já no corte saussuriano não havia espaço, na língua, para o sujeito, para o mundo. Vale, neste ponto, visitar a obra de Eduardo Guimarães (2002), onde é feito um panorama de Michel Bréal a Orlandi na tentativa de resgatar o elo entre a língua e o exterior (a partir dos hipogramas de Saussure, o que estaria por trás do verso não seria o sujeito, mas sim a palavra indutora, cf. STAROBINSKI, 1975). No que concerne à obra literária – longe de um intuito em adentrar nas camadas do estruturalismo, na correlação significante-significado que o edificou (as principais tendências do estruturalismo e neo-estruturalismo, cf. especialmente BALACHÓV, 1980), muito menos nos desdobramentos com relação à história, como vemos nos fortes ataques à corrente New Criticism no século XX por negligenciar e negar a história na abordagem literária (cf. COHEN, 1975) –

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disciplinares, entre obras e entre obra e contexto) é assumir a tarefa de desatar nós formalistas.

A primeira disposição do diálogo é a interdisciplinaridade. A abordagem da crítica pôde

deixar de ser unilateral para poder ser plural, com vários enfoques – o que possibilitou o

desdobramento da própria crítica em crítica comparada, crítica biográfica, crítica genética etc.

Por sinal, este é o trabalho a que vem se dedicando a pesquisadora Eneida Maria de Souza, ao

abordar a expansão da crítica literária. Em um trabalho sobre crítica biográfica, é-nos

esclarecedora sua colocação salutar dos rumos da crítica que, ao “se expandir em várias

vertentes [...], torna-se às vezes difícil impor limites de sua prática. Diante do aspecto

abrangente das disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se inoperante e retrógrada

a separação entre domínios específicos” (SOUZA, 2011, p. 20). A sagacidade da palavra de

Eneida Souza nos revela a incapacidade de fechar o diálogo interdisciplinar e a necessidade

de uma operação transdisciplinar, como dirá a autora em um ensaio-provocação: a “rigidez

disciplinar nos discursos críticos contemporâneos é uma aventura destinada ao fracasso, uma

vez que a particularidade desses discursos reside justamente no rompimento de princípios

reguladores da racionalidade moderna” (SOUZA, 2012, p. 40). Fracasso que parece sucumbir

no próprio bojo da abordagem formalista.

Será que a abertura inter/transdisciplinar quer “desconstruir, na teoria e na prática

discursiva, o legado autoritário das disposições disciplinares” (NASCIMENTO, 2004, p. 43)?

Para o nosso diálogo literatura e filosofia, não se intenta pôr por terra as disciplinas, mas que a

força da “desconstrução” exerça-se de tal modo que seja possível “resolver os impasses

institucionais” (Ibid., p. 62) entre os campos, a ponto de que seja possível, digamos, “borrar”

filosofia e literatura. E neste ponto, a saída que Evando Nascimento vê para o “impasse” é a

de não pensar na existência de uma literatura “filosófica”, mas sim uma “literatura dita

pensante” (Ibid., p. 55)5. Como quer Evando, somos conduzidos, de forma clariceana, a

paragens do impensável6.

importante destacar a obra como “objeto de linguagem fechado” (um caminho formalista e, digamos, niilista de negar a vida; cf. TODOROV, 2009). À luz do sistema “fechado”, Roland Barthes, fortemente influenciado por Kristeva, mostrará, a partir do realismo de Flaubert, que a obra literária não denota o real, mas “efeitos de real” (a resistência do real à estrutura no discurso narrativo fictício, cf. BARTHES, 1972). 5 Em um recente trabalho sobre a “literatura pensante” de Clarice Lispector, Evando diz que “nenhum saber regional, seja ele o mais filosofante, pode dar conta daquilo que não se reduz a uma região, ou seja, o pensamento” (NASCIMENTO, 2012, p. 104); conclui ainda que “o pensamento, se há, vai além de qualquer saber local, específico, datado” (Ibid., p. 106). 6 Na contramão da problematização de Evando Nascimento, o poeta e filósofo Antonio Cicero, em um recente trabalho, Poesia e Filosofia (2012), estrutura seu pensamento nas diferenças e nos opostos caminhos que poesia e filosofia tomam, traçando um percurso do trabalho poético e da atividade filosófica para chegar às teses de que o valor da obra filosofia enquanto filosofia (que se mede na originalidade das teses) difere do valor da poesia enquanto poesia (que não depende da originalidade das teses filosóficas ali encontradas) e de que “pensar sobre o mundo é filosofar” (CICERO, 2012, p. 21), diferente da poesia que “pensa o mundo” (CICERO, 2012, p. 21).

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Como falamos de obras literárias que são, em si, ricas de pluralidade, a provocação de

Eneida Maria de Souza e a “desconstrução” do legado disciplinar feita por Evando

Nascimento constituem-se uma abertura para a cadeia de relações que as obras mantêm – o

que nos insere no campo da literatura comparada. Falar de literatura comparada é

primeiramente falar da intertextualidade como conceito operatório no universo do texto. É

partir da literatura que “nasce da literatura” (PERRONE-MOISÉS, 1988, p. 94), que a toma

como modelo, que “se faz juiz dela mesma” (SAMOYAULT, 2008, p. 126), continuação e re-

escritura em um movimento circular. Textos que dialogam com outros textos do passado,

absorvendo-os, transformando-os, ou, para tomarmos as considerações propostas por Julia

Kristeva, um mosaico de citações, um “espaço textual múltiplo” (KRISTEVA, 1981, p. 67).

Textos frente a sua própria unidade de significação – se “a palavra (o texto) é um cruzamento

de palavras (textos) onde se lê, pelo menos, uma outra palavra (texto)” (NITRINI, 2010, p.

161), e se o texto é uma “escritura-réplica de um outro (outros textos)” (Ibid., p. 162),

podemos dizer que a segunda obra tanto re-escreve e se reconhece na primeira, quanto

apresenta à primeira novas respostas, novas possibilidades. E, para além: textos frente ao

mundo. Relação esta, portanto, que abre o texto para a sua “referencialidade” (référencialité)

com outros textos, com a cultura, com o mundo.

Ora, é inegável a importância da crítica comparativista aos estudos literários, o que

culminou na institucionalização do campo nos bancos universitários a partir da década de

19607. Seus percursos históricos e teóricos são muito bem revisitados por Sandra Nitrini

(2010) ao destacar os conceitos-chave da literatura comparada como contato, interferência,

empréstimos, transferências, cruzamentos8. Principalmente por direcionar a literatura

comparada ao ponto de vista internacional, ultrapassando as fronteiras nacionais. O grande

mote da literatura comparada, e que interessa a nossa proposta de abordagem interdisciplinar,

Para ele, portanto, “nenhum pensamento (nenhum metadiscurso) jamais é capaz de dar conta da escritura (do discurso-objeto) que é o poema” (CICERO, 2004, p. 27), tanto quanto “nenhuma escritura (nenhum discurso-objeto) é capaz de dar conta do pensamento (metadiscurso) que é a filosofia” (CICERO, 2004, p. 27). 7 Como mostra a autora, é em 1962 que o crítico Antonio Candido, “um comparatista dialético”, introduz a disciplina na Universidade de São Paulo (USP), tendo o próprio campo se desdobrado a partir da década de 1980. Cf. Nitrini (2010, p. 194). 8 Não por menos as clássicas noções de interferências e cruzamentos da literatura comparada foram alvo de investigação do filósofo Gilles Deleuze que, ao tomar da física um exemplo intitulado “a transformação do padeiro”, que estica um quadrado em retângulo para em seguida dobrar-lhe e reesticar-lhe de modo que as extremidades encontrem-se distantes e não mais próximas, pensou nas relações entre filosofia, arte e ciência como o quadrado sofrendo transformações. Curioso, pois, para o filósofo, além de filosofia e arte serem “criação” – e por isso serem ambas “espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si” (DELEUZE, 1992, p. 156), isto é, filosofia e arte como linhas paralelas em suas atividades disciplinares, mas que se encontram na acepção da “criação”, ambas criando: uma, conceitos; a outra, agregados sensíveis – ambas “entram em relações de ressonância mútua e em relações de troca [...] [e que] as interferências também são trocas: tudo acontece por dom ou captura” (DELEUZE, 1992, p. 156); e aí Deleuze pode inteiramente contribuir para a literatura comparada e sua noção de diálogo.

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é, de fato, problematizar os limites e as fronteiras do campo literário, problematizar os

centros e as margens, o local e o global. A literatura comparada toma, então, a obra literária

não apenas como um texto, mas como um “trans-texto” (D’ANGELO, 2013, p. 34), isto é, um

lugar de encontros (como também de confrontos e tensões), ou na perspectiva comparatista,

um lugar de relações em que as fronteiras entre campos são tênues. Sem dúvidas, a

contribuição da crítica comparativista para os estudos inter/transdisciplinares, sejam eles entre

textos de uma mesma literatura, entre literatura e outros campos discursivos ou entre textos

literários de diferentes nações, é o fazer ver da escritura como algo deslizante e movente,

deambulando entre as fronteiras e pondo em xeque seus limites.

Vê-se, portanto, que a obra literária é um organismo vivo e passível de todo tipo de

interação. É um momento de resgate. Resgatar o liame entre a obra e a realidade9. É fazer do

pensamento crítico literário algo tão vivaz quanto a obra pode ser, isto é, “é a necessidade de

um pensamento poético-crítico-teórico a partir da literatura não ser e nem se querer cinzento,

mas tão verdejante e áureo, tão colorido, quanto a obra que ele aborda”, como diz Alberto

Pucheu (2012, p. 114) em um ensaio de releitura da crítica. Um ensaio que, digamos, chama e

convida para a crítica levantada e seguida por Antonio Candido, crítico da “conversação

glosada” (ARRIGUCCI JR, 1999, p. 238). Candido, que toma a literatura como manifestação

universal, objeto construído que é instrutor e “de papel formador de personalidade”

(CANDIDO, 2004a, p. 175-6), já nos mostra em um artigo de 1988, “O direito à literatura”

(2004a), o papel que tem a literatura de tangenciar a realidade. Já em um artigo de 1957, para

o “Suplemento Literário” do jornal Estado de São Paulo, Antonio Candido introduz a

discussão que levará à máxima nos textos seguintes: a introjeção do mundo na obra literária,

obras que “manifestam simultaneamente os dois aspectos da realidade – interior e exterior”

(CANDIDO, 2004b, p. 33). Tal manifestação terá ênfase na crítica de Candido no ensaio de

1961, “Crítica e Sociologia”, onde a integridade da obra pode ser apreendida no entrelace do

texto e do contexto. Externo e interno. Pois o externo (social) “importa, não como causa, nem

como significado, mas como elemento que desempenha certo papel na constituição da

estrutura, tornando-se, portanto, interno” (CANDIDO, 2000, p. 6, grifo do autor). O caminho

que Candido persegue não é o de uma crítica sociológica, nem mera sociologia da literatura

(no sentido unilateral), mas uma crítica em que o elemento social influencia a obra, que

“ajuda a compreender a formação e o destino das obras” (Ibid., p. 34, grifo nosso), onde um

9 Podem ser consultadas as obras Literatura em Perigo (2009), de Tzvetan Todorov, que aponta para o caminho de reatar o elo da literatura com o mundo, bem como O demônio da teoria (2010), de Antoine Compagnon, que nos mostra como a narrativa é nossa forma de viver neste mundo e como a literatura tem o poder de nos conduzir à querer mudá-lo, o poder de nos libertar das nossas maneiras convencionais de pensar o real.

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(externo) está no outro (interno), ou um se torna outro. O que nos interessa concluir na crítica

de Candido está em um trecho de entrevista de 1974, onde o crítico fala da obra literária

enquanto múltiplos sistemas, e que uma leitura puramente formal da obra é sempre fecunda,

pois quando “nos colocamos no plano da correlação dos signos, dos sinais do texto, com os

sinais de outros sistemas, a leitura formalista se torna insatisfatória” (CANDIDO, 2011, p. 9).

Se com Candido podemos tomar a obra literária como um organismo vivo – e

lembrando que é o próprio Candido que diz que a “literatura é um sistema vivo de obras”

(CANDIDO, 2000, p. 74, grifo nosso) –, seguir com seu método de resgate do liame da obra

com o externo10 possibilita uma abertura no horizonte da crítica literária: formar um espaço de

entrecruzamentos em que frenéticas linhas voam, se encontram e pousam. Alçamos voo: voar,

como se com Haroldo de Campos, no horizonte do provável, voar por galáxias. Este é o

percurso seguro para a formação da intersecção entre filosofia e literatura. Outras novas

tensões deixarão seus rastros e nuances, e por isso a necessidade de problematizações. É

nosso objetivo dar conta das problematizações seguindo no horizonte da crítica; nosso

movimento é justamente ir à contramão do costumeiro movimento de sempre partir do campo

filosófico em direção à literatura, onde os resultados desse movimento quase nunca são

confiáveis. Seguir no horizonte da crítica permite-nos esburgar os campos até chegarmos ao

local do meio de forma harmoniosa.

1.2 A contribuição da crítica de Benedito Nunes

Do encontro interdisciplinar à transa. Da aproximação compreensiva à aproximação

na distância. Da iluminação à conexão recíproca. A proposta de confluência entre a filosofia

e a literatura que tenta resolver a disfonia querelante entre os dois discursos encontra solo

fértil na pena do crítico literário e filósofo paraense Benedito Nunes – talvez o crítico mais

“híbrido” por ele próprio transitar entre as atividades filosófica e literária, um “mestiço das

duas espécies” (NUNES, 2009, p. 24), como se autodenominava – a partir de um corte

epistemológico de mais de uma década de seu trabalho intelectual, de 1992 a 2005. Tentar

mapear em sua crítica as contribuições para a relação filosofia e literatura é se deparar com

obras que revelam um misto de rigor filosófico e sabor literário: um labor filosófico, como

Passagem Para o Poético (1992), No Tempo do Niilismo e Outros Ensaios (1993) e

Hermenêutica e Poesia (1999); e um intenso exercício crítico como A Clave do Poético

10 Podemos incluir também, posteriormente, certa crítica de João Alexandre Barbosa (1974, p. 12) que aponta para a realidade do texto, uma realidade cristalizada no texto: “cristalizando-se no texto, em Literatura, a realidade é uma categoria linguística para a qual, no movimento de decifração, de leitura, importa conhecer o modo de elaboração [...]. Lê-se então a realidade pelo texto ou, melhor ainda, no texto”.

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(2009). A chave da crítica nunesiana é a vizinhança entre os dois campos, respeitando suas

particularidades.

O encontro entre a poesia e a filosofia se dá mediante o que Benedito Nunes chamará de

relação transacional, onde a poesia transa com a filosofia, “sem que cada qual esteja acima

ou abaixo de sua parceira, numa posição de superioridade ou inferioridade do ponto de vista

do conhecimento alcançado” (NUNES, 2010, p. 13). Benedito Nunes, em “Poesia e Filosofia:

uma transa” – ensaio escrito originalmente em 1995 –, ao definir os três tipos de relações

entre poesia e filosofia, a disciplinar, supradisciplinar, e a transacional, percorre os caminhos

da “tradição clássica”11 à Estética de Hegel: a relação disciplinar que é sempre uma

subordinação hierárquica, passando pelos românticos alemães; relação supradisciplinar, que

legitimaram a relação como produtos híbridos; e a relação transacional que é, para o crítico, o

caminho mais salutar para pensar a relação filosofia e literatura.

Toda transa requer o rompimento da distância, pedindo aproximação. Corpos

entrelaçando-se, doando-se, entregando-se, mesmo quando se ferem, se raspam e se colidem.

Como se num cruzamento oniricamente bachelardiano, corpos distintos como o da filosofia e

da literatura teriam de aproximar-se na distância. E o elo da transa é a linguagem: “é ela, em

que cabem a verdade, a mentira, o fingimento, o meio transacional do relacionamento entre o

filosófico e o poético” (Ibid., p. 15). Transa da linguagem e outras transas, portanto.

É na base da linguagem que tudo se encontra. O encontro entre o filosófico e o poético

na residência da linguagem é também o encontro entre poesia e pensamento, ou a “passagem

da arte da palavra ao pensamento racional” (NUNES, 1992, p. 260, grifo do autor). Nesta

travessia o caminho do poeta “não vai além das palavras; ele caminha entre elas, de uma a

outra, escutando-as e fazendo-as falar” (Ibid., p. 267). Um longo caminho coberto de névoa12.

O poeta, como Orfeu, desce às profundezas em busca da palavra, que está à espera – espera

drummondiana. O que aproxima Benedito Nunes de Paul Valéry (2011), quando ambos põem

em suas críticas a elisão da distância poesia e pensamento, é ver que o pensar “abre caminho

entre palavras e faz das palavras o seu próprio caminho” (NUNES, 1992, p. 286), isto porque

é o “jogo da linguagem que cria a proximidade das coisas” (Ibid., p. 275), pois é nela que tudo

começa e termina. O poeta fala. O filósofo fala. A linguagem fala. Drama da linguagem.

11 Convém notar, neste ponto, que o que Benedito Nunes está entendendo por “tradição clássica” vem, em parte, da concepção de “tradição” da filosofia de Martin Heidegger (cf. NUNES, 1999, p. 21-29). 12 Semelhante é o caminho que percorre o poeta Gorchakov no visceral e complexo filme Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky, entre névoas e vazios, transitando por caminhos sem rumos, insistindo e resistindo com(o) a chama da vela que, em suas mãos, teima em se apagar.

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O caráter da transa, na ótica de Benedito Nunes (1993, p. 82), é o de uma “aproximação

compreensiva”. Só pela aproximação compreensiva é possível posicionar-se na contramão de

qualquer possibilidade de subordinação. O próprio Benedito chama atenção para não correr o

risco de se instrumentalizar a filosofia e aplicá-la ao texto literário, fazendo da filosofia

apenas ilustrativa. Sua tese é a de que a hermenêutica, nos limites da dialogação, “se move e

quer manter-se no puro elemento da linguagem” (Ibid., p. 94). Da hermenêutica, interpretar,

mas também compreender. Uma hermenêutica que deva “interpretar a poesia falando-a,

desdobrando-a em figuras, em topoi dela mesma, sem traduzi-la em conceitos” (Ibid., p. 95), e

que seja poética em sua raiz. Deste modo, fica claro que o crítico paraense joga para a

Filosofia Hermenêutica, principalmente por ela própria operar com a noção de texto, a base da

“dialogação”, que é, por assim dizer, “uma aventura do pensamento diante da Literatura”

(Ibid., p. 199).

Mas filósofos e poetas podem aprender uns com os outros. Na rede da linguagem em

que ambas se encontram, Benedito Nunes atinge um ponto fundamental da relação filosofia e

literatura em Hermenêutica e Poesia ao lançar luz, em tom quase pedagógico, àquilo que, no

literário, interessa ao filósofo e àquilo que, no filosófico, interessa ao poeta. Este é o ponto em

que o crítico literário exemplifica de forma mais clara o que entende por aproximação

compreensiva: os em comuns do poeta e do filósofo, o momento em que os corpos podem

livremente trocar carícias. Veja-se a longa, porém necessária pontuação do crítico:

Os grandes poetas são metafísicos fracassados: os grandes filósofos são poetas que crêem na realidade de seus poemas. O ceticismo dos poetas pode servir de estímulo aos filósofos, mas os poetas, em troca, podem aprender dos filósofos (vejam a ironia e o humor que há nisto) a arte das grandes metáforas. Dessas imagens úteis pelo seu valor didático e imortais por seu valor poético são exemplos: o rio de Heráclito, a esfera de Parmênides, a linha de Pitágoras, a caverna de Platão, a pomba de Kant etc. Também os filósofos podem aprender com os poetas a conhecer os becos sem saída do pensamento, a sair pelo telhado desses mesmos becos sem saída... Isto é, sair com a relativa claridade, vendo a natural aporética da sua razão, sua profunda irracionalidade e a tornarem-se tolerantes e respeitosos para com quem a usa pelo avesso (NUNES, 1999, p. 15).

Pelo aprendizado de ambas as atividades, a crítica de Benedito Nunes se distancia de

alguns caminhos, a saber: primeiro, da querela entre filosofia e literatura emergida na tradição

clássica; segundo, da ideia do híbrido, o poeta-filósofo ironizado por Paul Valéry, em Tel

Quel (1996); terceiro, do perigoso caminho de hierarquizações discursivas. Poetas e filósofos

têm diante de si o recurso da metáfora, e eis a ironia da citação nunesiana, já que a metáfora é

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o recurso estilístico tão caro ao literário, se lembrarmos da Poética de Aristóteles13: o poeta

aprendendo com os filósofos outras novas metáforas. E o filósofo pode aprender com os

poetas a construir becos sem saída pelas vias da imaginação. Dá-se aqui uma espécie de

acontecer na crítica nunesiana, em que “no poeta desponta o filósofo e no filósofo desponta o

poeta” (Ibid., p. 17). Uma transação que não significa que a filosofia venha a tornar-se poesia,

nem que o literário venha a tornar-se filosofia. Neste último, há sempre uma linha tênue,

principalmente na abordagem crítica, que por vezes resvala em uma “filosofia da literatura”,

tão abstrata e especulativa que chega a ser erroneamente confundida com teoria da literatura14.

A abordagem crítica de Benedito Nunes se desvia dessa linha tênue ao atuar com serenidade

no jogo da linguagem.

Em seu trabalho intelectual, Benedito Nunes tem percorrido três consequências acerca

do diálogo filosofia e literatura: primeira, a conversação entre os campos, mas onde cada qual

mantém sua própria identidade; segunda, ao passo que a “tradição” legitima as duas

atividades humanas como distintas e fixas, a poesia e a filosofia podem ser móveis e

relacionarem-se; terceira, o movimento de a filosofia tomar a obra literária como ponto de

chegada, e a obra literária que se faz reveladora de teses ou indagações filosóficas. Uma

quarta consequência é encontrada em um de seus últimos escritos, um ensaio-reflexão de seu

caminho na crítica: o de tanto a filosofia quanto a literatura poderem “iluminar de certa

maneira a obra estudada” (NUNES, 2009, p. 29). Neste texto, antes do crítico literário, vemos

falar o Benedito Nunes leitor, principalmente na mirada heideggeriana. Aqui, seu olhar

direciona-se para a iluminação que cada campo discursivo pode servir ao outro como uma

“conexão recíproca” (Ibid., p. 29). É através de “poetas reflexivos” e de poesias que criam

imagens preparadoras de conceitos que chegamos às “relações transversais” (Ibid., p. 33)

entre os campos. Neste ponto reside a clave: “com a Literatura, sob a clave do poético, a

Filosofia aprende o segredo da escrita” (Ibid., p. 38). Por um lado, mais uma vez no terreno

do aprendizado, o diálogo-limite entre filosofia e literatura centrado no texto, texto-mundo, ou

mundo-texto. Por outro lado, podemos seguir na afirmação de que “não há crítica sem

perspectiva filosófica” (Ibid., p. 54), como diz Nunes em um ensaio em que faz um exame da

crítica literária brasileira.

O trabalho crítico de Benedito Nunes contribui para uma abertura à relação poesia e

pensamento. Se lembrarmos da célebre colocação de Adauto Novaes (2005, p. 9): “poesia e

13 Cf. Aristóteles, Poética (2011), Trad. Edson Bini. 14 Cf. Antoine Compagnon, O demônio da teoria (2010, p. 19).

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pensamento são formas de interrogar o mundo”15. E filosofia e literatura perguntam.

Questionam. Interrogam. Inquirem o mundo a sua volta, embora o mundo entre na poesia de

forma mais decantada, muito próximo daquilo que Wisnik (2005, p. 27, grifo do autor) coloca

como “exclusão includente”, em que o mundo só entra quando o poeta nega e quando

mergulha no reino das palavras, e de forma mais direta na filosofia, já que o filósofo “busca,

de alguma maneira, a resposta” (BORNHEIM, 2001, p. 164.). Se poesia e pensamento (ou

literatura e filosofia) vivem da pergunta – embora a poesia pareça estar pouco interessada em

respostas, argumentaria o filósofo – ambas dão diferentes respostas: o filósofo com sua

resposta ao possível e ao conhecido; e o poeta respondendo ao impossível e ao desconhecido.

Mas só há questionamento mediante a experiência, se experiência for “o modo como o

homem sabe o mundo” (BORNHEIM, 2001, p. 161). Saber o mundo, e não “saber sobre o

mundo”, é, então, apreendê-lo enquanto pensamento e não como a coisa pensada. Só assim

que, onde se apreende e se interpreta o mundo, as diferenças entre filosofia e literatura não

correm o risco de se colidirem, pois que ambas podem “ser respeitadas naquilo que

verdadeiramente são” (BORNHEIM, 2001, p. 164). Uma pode conviver com a outra,

admirando-se mutuamente. A poesia pode, do primeiro ao último suspiro, com seus sabores e

dissabores, fecundar na filosofia. Uma podendo figurar na outra. Um dar-se, lançar-se,

entregar-se. Que se olhem, quase que intimamente, quase que inteiramente. No jogo de

perguntas e respostas, nas cordas da experiência, a poesia transforma o real, o diz, mas não

explica: aí começa a filosofia.

O caminho com Benedito Nunes nos permitirá, portanto, a construção de um espaço

interseccional em que se assume a posição de meio entre a filosofia e a literatura. Para isso, é

necessário que se deixe claro o ponto de partida, o texto-base para a construção da

intersecção. É salutar atenuar o lugar de onde se parte para, nesta ânsia de diálogo, não

privilegiar outros discursos e fugir daquilo que se toma como base. O perigo frequentemente

visto na interdisciplinaridade é justamente cair em esquemas de aplicabilidade que acabam

obscurecendo o texto-base. Aplicações tão ingênuas que acabam se constituindo um grosso

invólucro de camadas onde o resultado é quase sempre distorcido, tanto em relação a si

quanto em relação ao ponto de partida. No nosso caso, o ponto de partida é a literatura,

especificamente a poesia, onde nos guiamos pelo método (transacional) do crítico paraense,

na contramão de métodos de conexões disciplinares que põem um objeto em estado de

subordinação, visando sempre uma fusão harmoniosa.

15 Sobre poesia e pensamento, podem ser consultadas as considerações de Paul Valéry em seu ensaio “Poesia e pensamento abstrato” (2011).

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1.3 O local do meio

Delimitada a abordagem, chegamos à intersecção. Ao meio. Argumentamos que esta

confluência filosofia e literatura pela relação transacional só seja possível a partir da

construção de um espaço próprio para o encontro, para a harmonia da correspondência. Um

espaço que podemos chamar de “atmosfera fusional”. Local da potência do encontro, onde

filosofia e literatura possam ser linhas paralelas, se lembrarmos de suas querelas, que aqui se

encontram. Linhas que nunca terminam. Mas o que pode este meio? É no meio que se revela o

esbate, a aproximação na distância, a semelhança na diferença, é aonde se jorra luz, onde tudo

se esfuma: um momento de raio. Um meio onde o fundo está na superfície – para lembrarmo-

nos de um poema de Leminski16. O elo no duelo. No meio tudo se desencontra para daí

mesmo poder nascer o encontro: aparição. Neste ponto que nasce e reina o “fascínio”, palavra

cara ao pensamento do crítico literário francês Maurice Blanchot17. Fascínio de um ponto

onde o infinito e o lugar nenhum se borram. Meio que desvela intimidade. E se ainda

quisermos pensar com Maurice Blanchot, podemos dizer que o meio da intersecção é. E nada

mais. É neste meio, na atmosfera fusional, que podemos dar sentido à hipótese de que pôr,

aqui, filosofia e literatura em movimento e confluência a partir de temas comuns a ambos os

discursos é um “risco essencial” para poder-se tocar na essência da obra e na intimidade que

dela nasce, o que possibilita construir uma unidade onde os opostos (e distantes) se encontram

muito próximos. Possibilidade: operação estritamente possível com e pela linguagem.

No movimento circular da filosofia e da literatura em polarização, podemos olhar para o

dentro, para o centro, para a intersecção, e ver bailar a “experiência-limite” blanchotiana:

podemos ainda chamar de “polarização atracional” esse centro de encontro. É lícito dizer que

outra denominação para a intersecção é “entre-dois”, conceito recorrente em Blanchot, “um

intervalo que se cava e cavando-se preenche” (BLANCHOT, 2001, p. 35), mas também é o

“lugar mesmo do meio, a misteriosa coisa mediana” (BLANCHOT, 2007, p. 26), o intervalo

(écart)18 entre, onde ocorre a “proximidade do distante” (Ibid., p. 194) – ressoando, aí, a voz

de Benedito Nunes.

16 Cf. Leminski (2001, p. 61). 17 O pensamento de Maurice Blanchot, tanto em O Espaço Literário (2011) quanto em A Conversa Infinita (2001; 2007), para citar suas obras de maior expoente, joga com imagens paradoxais, retirando as coisas de seus cursos no mundo, um jogo de contrários onde tudo se embaralha para depois se encontrarem. 18 A nossa preferência pela utilização da noção de intervalo (écart) está muito próxima daquilo que Evando Nascimento, ao ler Derrida, pontuou como questão de método, écart que “dispõe a força paradoxal do que une e separa” (NASCIMENTO, 1999, p. 44), chamando tal movimento de cruzamento quiasmático.

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Parece-nos claro que, a partir das possibilidades de intersecção na obra literária, a

literatura pode ser tomada como um local de morada19: uma casa aberta ao outro, um abrigo

aberto à hospitalidade. O que pode esta morada? Tudo pode, pois nela tudo pode tornar-se.

Uma morada que está em silêncio. Silêncio como organismo, silêncio como voz: voz da obra.

É nesse espaço silencioso que a morada sonha, deseja. Ainda, um aconchego acolhedor, e por

assim ser, protege a quem ali se refugia. Morada tão profunda e tão protetora que se

assemelha a um aconchegante ninho, local de pura tranquilidade. Uma morada-ninho. Uma

morada mantenedora. Assim, a literatura é essa experiência da morada, espaço acolhedor e de

alto grau de intimidade, cheio de cantos que eclodem seus diferentes valores íntimos: “espaço

de intimidade”, espaço literário que carrega discursos e os põem em movimento. Uma morada

de sótão e porão – Bachelard, ao pensar a morada, dá uma definição salutar de literatura como

espaço de morada: “subir a escada da palavra é, de degrau em degrau, abstrair. Descer ao

porão é sonhar, é perder-se nos distantes corredores de uma etimologia incerta, é procurar nas

palavras tesouros inatingíveis. Subir e descer, nas próprias palavras, é a vida do poeta”

(BACHELARD, 1978, p. 293). A literatura é essa possibilidade de aproximar sótão e porão,

aéreo e terrestre. Aproximar os distantes – ora, nada mais propício que o espaço literário para

a aproximação entre sótão e porão, visto que é a própria literatura “linguagem carregada de

significados” (POUND, 1990, p. 32).

Se o poeta é aquele que pode ir do sótão ao porão, aquele que pode ligar o aéreo ao

terrestre, por que o filósofo, nesta morada, é o único a ser condenado “por seus semelhantes a

viver sempre no rés-do-chão?” (BACHELARD, 1978, p. 293). Pode o filósofo na casa

movimentar-se? Com o pensamento de Bachelard é possível lançar o convite para que a

filosofia movimente-se pela morada, que seja participante. Na literatura-morada a filosofia

poderá viver a casa, os cantos, os abrigos, presentificando-se. Poderá ser o hóspede, o

refugiado, o pássaro buscando o ninho. Como a casa está em constante abrir-se, a filosofia

entra intimamente.

Da morada, a habitação. Podemos, então, dizer que também a filosofia habita20 a casa.

Casa aberta para a filosofia permear. No momento em que a filosofia habita a morada, passa

assim a integrá-la. Torna-se a claridade que penetra no espaço aberto. O anjo-desconhecido a

19 Aqui, tomamos a ideia de “morada” do pensamento de Gaston Bachelard, em A poética do espaço (1978). Embora respeitando particularidades de seu pensamento acerca do morar e do habitar, partimos da metáfora da morada para constituirmos o argumento de poder a literatura ser esse espaço de habitação. 20 A partir deste ponto, incorporamos ao nosso discurso a acepção heideggeriana de habitar; especialmente partimos do ensaio de Heidegger “Construir, habitar, pensar”, presente na obra Ensaios e Conferências (2010).

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invadir residências, a propósito de um filme de Kim Ki-duk21. Isso quer dizer que a morada,

enquanto está sonhando e em silêncio, está à espera. A literatura, morada e enquanto espera,

assim mantém-se em estado de quietude e de silêncio para daí tornar-se, fazer-se: “fazer com

que a literatura se torne a revelação desse dentro vazio” (BLANCHOT, 1997, p. 292), para da

profundeza, do fundo do abismo, poder começar.

A título de exemplificação, um dos que bem percebeu a literatura como local de morada

e fez dela própria habitação de uma pluralidade de discursos foi o escritor mineiro João

Guimarães Rosa que – junto a outros autores como um Cabral ou uma Clarice, duplo consorte

– levou às últimas consequências a experimentação da linguagem. Ora, parece notório o

direcionamento da escritura rosiana para a nossa fundamentação de literatura como morada se

possível for lembrar-se de um conto de Tutaméia (1968), “Barra da Vaca”: um viajante,

transeunte, que é acolhido por caridosos moradores da aldeia homônima, um local sobre o

largo rio Urucúia, “entre a cruz e a cantação” (ROSA, 1968, p. 29). Afora o duplo abandono

do viajante, o que nos interessa é ver como, alegoricamente, a literatura é uma espécie de

aldeia Barra da Vaca: local acolhedor ao outro que ali chega e penetra, instalando-se e

requerendo abrigo. Assim como a aldeia do texto rosiano é aconchego e proteção ao outro, a

literatura assim o é ao hóspede.

No entanto, em autores como Rosa, o que está em jogo são os limites da linguagem,

limites, de certo modo, numa acepção heideggeriana22. O filósofo alemão Heidegger, neste

ponto, é decisivo ao nos fornecer contribuições não só pela noção de habitação – respeitando

as diferenças entre a noção de habitação de Heidegger, mais centrada ontologicamente, e a

noção de morada de Bachelard, mais ligada ao onírico, ao sonho e ao devaneio – como

também pela imagem da ponte que permite uma reunião integradora: uma ponte que não

apenas liga margens existentes, mas que revela as margens pela travessia, uma ponte que liga

a terra e o céu, divinos e mortais e que possa servir aos mortais na tentativa de “ultrapassar o

que lhes é habitual e desafortunado” (HEIDEGGER, 2010, p. 132). Podemos tomar a imagem

heideggeriana da ponte para pensar a relação filosofia e literatura, pois a própria proposta do

diálogo é a de construir pontes integradoras. Podemos ainda ir mais longe: não é a própria

literatura comparada, no campo da teoria, a que sempre intentou construir pontes integradoras

e pontes de afinidades entre os textos e os autores? Na seara dos que constroem sempre novas

21 Tomamos como exemplo de habitação o visceral filme do cineasta sul-coreano Kim Ki-duk, Casa Vazia (2004), que põe um desconhecido para invadir e habitar casas e lá desvelar vários níveis de intimidade. Um filme, sem dúvidas, grandioso por transar, pelo lirismo, o plano onírico com o plano literário. 22 Heidegger, nos Ensaios e Conferências, tem uma excelente definição para limite, não algo onde uma coisa termina, mas “onde alguma coisa dá início à sua essência” (HEIDEGGER, 2010, p. 134, grifo do autor).

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e necessárias pontes, o espaço (literário) é e será sempre aberto e livre. Livre para os trânsitos.

E que o habitar possa se dar de modo essencial e decisivo. Uma experiência em habitando.

Uma exigência de morada.

Muito embora a própria obra literária sugira (e permita) novas formas de integração e

diálogo, o local do meio, espaço-entre do diálogo filosofia e literatura, só se efetivará com a

presença de uma figura por muito rejeitada e excluída do sistema literário: o leitor. Como se

vê na história da literatura, só após uma mudança paradigmática, possível com uma corrente

oriunda da Alemanha chamada “estética da recepção”, a obra deixou de ser vista como algo

isolado para que o leitor pudesse timidamente fazer parte de um grande sistema articulado:

autor/obra/público. Diante da obra e de sua multiplicidade de aspectos, o leitor é aquele que se

emaranha nos labirintos da ficção e que, como se seguindo o “fio de Dédalo”, percorre seus

labirintos. E como age o leitor diante da possibilidade de intersecções? Como o leitor tece e

constitui os diálogos?

Para a teoria iseriana, a obra é um campo de jogo em que o autor joga com o leitor,

fazendo da própria obra uma espécie de “campo de vazios”, cheia de buracos em que é o

leitor que os preenche, recobrindo os vazios; esta é a intenção de Iser (2001, p. 131), que

“possibilita a participação do leitor na realização do texto”, um vazio que provoca e convida o

leitor para o que Iser chama de relações de interação. O ponto alto do debate da estética da

recepção é tomar a obra ficcional como assimétrica e polifônica, que instiga e estimula o

leitor a somar os pontos de indeterminação da obra para construir o sentido – no máximo,

seria a obra literária aquilo que Jacques Fux (2010, p. 294) chamou de “puzzle literário”, ao

debruçar-se sobre um seleto grupo francês da década de 1960 denominado OuLiPo (Ouvroir

de Littérature Potentielle).

Neste emaranhado de quebra-cabeças, o leitor-jogador é aquele que monta as peças a

partir de suas próprias experiências. Se para Stierle (2001, p. 155) “a ficção apresenta

conceitos, problematiza conceitos e representa condensações pré-conceituais da experiência”,

o contato do leitor com a obra mediante usos pragmáticos de leitura força-o não apenas a

preencher os vazios, como também a procurar soluções, já que esses vazios “provocam o

leitor a produzir a própria vivacidade da estória narrada” (ISER, 2001, p. 117). A tônica da

vivacidade na ótica de Iser muito se aproxima daquela solidão da obra segundo Maurice

Blanchot, que faz da própria obra uma unidade dilacerada, não querendo dizer que seja ela

incomunicável ou (in) acabada pela sua condição de solidão, mas uma obra que apenas se

torna obra quando “é a intimidade de alguém que a escreve e de alguém que a lê”

(BLANCHOT, 2011, p. 13). O leitor de Iser e da estética da recepção também parece

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aproximar-se do leitor de Blanchot, de um leitor errante no espaço infinito da obra, já que é

próprio da linguagem literária (inquieta e interessada nas ausências) transformar o finito em

infinito, e ser a obra um livro por vir23. Do que está por vir, a primeira conclusão de Blanchot

seria a que a literatura nada mais é que um “perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela

infinita multiplicidade do imaginário” (BLANCHOT, 2005, p. 140); segundo, que a literatura

é “um meio em que tudo se transforma – e se embeleza” (Ibid., p. 303), e nela residem um

conjunto de potências que tudo alteram – o que convergiria a obra em uma neutralidade que

busca todo escritor, “o grau zero” barthesiano.

Expliquemos: não intentamos, por vias do leitor, chegar a uma teoria da leitura, como

tentou o próprio Barthes (2004, p. 170-173), embora pela via da interdisciplinaridade e, de

certo modo, se alinhando a certas proposições da própria literatura comparada. O que nos

interessa é ver em que Iser e Blanchot têm a nos contribuir. E ponderamos: ambos nos

conduzem a uma “dupla palpitação”: a palpitação do leitor, “leitor desejante” que se

presentifica e se vivifica na obra, mas também que tece caminhos e que é responsável por

construir infinidades de intersecções, de interações, de entrecruzamentos, além de dar sentido

à interdisciplinaridade; e a palpitação da obra, que precisa deste leitor para edificar-se, que só

torna-se presente na medida em que o autor nela torna-se presente, e nela constrói infinidades

de pontos de encontro. Segundo, o que Blanchot coloca como o espaço infinito da obra

literária em que tudo se transforma e se movimenta está muito próximo da nossa própria

proposta de espaço interseccional entre filosofia e literatura: um espaço que “se espaça” e se

dissemina, que se “dissipa e repousa segundo as diversas formas da mobilidade do escrito”

(BLANCHOT, 2005, p. 353) – o próprio ponto de vista da crítica também pode valer-se desta

assertiva blanchotiana, isto é, fazer-se tarefa de explorar esses espaços em profundidade onde

a escritura se mobiliza. Afinal, para ambos os críticos, o leitor funciona como um “operador”

que não só materializa sua essencial operação (leitura), como também, lejeunianamente

falando24, estabelece pactos com o espaço literário. É justamente aí perfeitamente possível

concluir, na trilha de Iser e Blanchot, que a intersecção entre filosofia e literatura (toda

proposta interdisciplinar, grosso modo) efetiva seu sentido mediante a “operação” do leitor e

do pacto com a obra.

Tendo firme firmado o terreno de confluência, expostas as nuances de encontros, cabe-

nos agora indagar: como construir esta intersecção na obra de nosso corpus de investigação?

Como estabelecer a confluência filosofia e literatura na obra de Paulo Leminski? Como se

23 Cf. Blanchot, em O livro por vir (2005, p. 136-140) em capítulo que se dedica ao “infinito literário”. 24 Cf. Philippe Lejeune, O pacto autobiográfico (2008).

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dará esta relação? Será, então, possível consolidarmos neste ponto de convergência um

encontro dos discursos de forma harmoniosa e sem antípodas? No plano da escritura

leminskiana, é da poesia que nos ocuparemos para lá estabelecermos a atmosfera fusional.

O poeta, sim. Sua profissão mais nobre. Ofício, foco. Impregnação incessante. Ou, por

que não, oblativa, obliteração. Leminski-poeta e a tarefa da linguagem: tudo virar poesia –

afirmação que confirma a imagem do “guerreiro da linguagem”, tese de Rebuzzi (2003), e

que, de certo modo, converge em uma citação ao filósofo alemão Heidegger em um poema-

homenagem: “fundação do ser mediante a palavra” (LEMINSKI, 1994, p. 10). Para Leminski

(2012, p. 363), o próprio ato de “criação é poesia”, como se vê em um recém-publicado

manifesto em verso25. Aliás, e neste caso, poesia que penetra pelas frestas26. Faz-se então a

justificativa de que a proposta de intersecção em Leminski deva ser horizontal, como é a sua

própria poesia alternativa, de comunicação27. E se por intersecção for de fato um trabalho

entre fronteiras, o próprio poeta lança o convite à relação interseccional em sua obra, em um

ensaio de 1979: “o negócio da poesia é ficar brincando nas fronteiras” (LEMINSKI, 1999, p.

195)28.

Por que, então, filosofia e literatura? A pergunta se faz urgente não apenas pelo convite

do poeta em “transar bem todas as ondas” (LEMINSKI, 1995, p. 24), mas parte do projeto de

Leminski fazer uma poesia a serviço da vida. Poesia e vida. Várias são as cartas a Régis

Bonvicino em que Leminski trata desta questão, a exemplo da “Carta 10”: “é a linguagem que

está a serviço da vida / não a vida a serviço da linguagem” (LEMINSKI, 1999, p. 53)29. É por

uma poesia que se ocupa da vida que Leminski torna-se herdeiro de uma geração que mais

aproximou a poesia da vida, como a geração beat, que intensamente mesclou as esferas da

“produção simbólica, da vida e dos acontecimentos históricos e sociais” (WILLER, 2009, p.

26). Entre a escritura e o mundo, uma literatura de estrada, viajante, pulsante, vivaz, veloz, e

que certamente deságua na poesia-vida leminskiana e na poesia despojada do momento

contracultural no qual Leminski estava inserido – outros nomes, sem dúvida, mergulham

25 Referimo-nos ao ensaio em verso intitulado “A recuperação da informação”, que consta na segunda edição de Ensaios e anseios crípticos (2012) com originais da edição de 1997 e que não entraram na primeira edição de 2011 organizada pela Editora da Unicamp. 26 É salutar corroborar o lugar da poesia em uma obra tão múltipla como a de Leminski, visto que na própria obra de crítica, Ensaios e anseios crípticos, o autor escreve ensaios em verso, e abre a obra com poesias. 27 Em dois momentos Leminski fala da poesia horizontal dos anos 1970 (e da sua, grosso modo): no ensaio “O boom da poesia fácil” (2011, p. 64) e em um ensaio-manifesto em forma de poesia, intitulado “Poesia de comunicação” (2012, p. 357). 28 Leminski menciona o ensaio em uma carta de 1978 a Regis Bonvicino, e só será publicado um ano seguinte pela revista Escrita. O ensaio encontra-se em anexo na obra Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica (1999). 29 Na “Carta 30”, diz Leminski (1999, p. 83): “[...] são as palavras que estão na vida / não é a vida que está nas palavras”. Já na “Carta 42”, temos: “é a poesia q [sic] está dentro da vida, não o contrário...” (Ibid., p. 113).

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neste rio-beat em direção à Leminski, como Drummond, Pessoa via Caeiro – um Caeiro Zen,

como diz Leyla Perrone-Moisés (2001, p. 149), “um refúgio e uma libertação” – e Oswald,

todos estes que também levaram a poesia para a vida. Do beat à Leminski a poesia pôde

“converter-se em realidade” (Ibid., p. 102).

Pela fímbria do horizonte beat e sua atmosfera impregnada de agitação podemos

seguramente chegar ao essencial da poesia de nosso poeta: a brevidade. Breve e veloz, o

próprio Leminski diz que “a brevidade pertence à essência mesma da poesia” (LEMINSKI,

1999, p. 194). É justamente pela brevidade essencial que há na obra de Leminski o

cruzamento literatura e vida, como os beats faziam das viagens o fermento para a criação

literária, jogando no mesmo cruzamento. E é nesta brevidade e gozo de liberdade, noções

próprias de uma linha que vai do beat ao alternativo em Leminski, que assentamos o substrato

filosófico, ao tomarmos como corpus de análise as obras Caprichos e relaxos e La vie en

close, na investigação daquilo que é próprio à brevidade de sua poesia: as relações do olhar

para o mundo – para as totalidades do real, ou como lembra Alfredo Bosi (1977, p. 112), para

o mundo-da-vida. Nisto a produção de Leminski da transição dos anos 1970 para 1980 pode

nos fornecer rico material para a investigação, devido à intensidade de criação desta brevidade

essencial e que reflete nas duas obras aqui analisadas, que contêm seu melhor fôlego poético.

Mas, com isso, não se intenta aqui centralizar a investigação naquilo que Bosi chamou de

“poesia resistência” (Ibid., p. 137), metendo-se em redoma – embora podendo contorná-la, se

lhe forem próprias figurações de tensões internas; quando se fala de uma tensão entre

literatura/mundo (lembremos-nos dos beats) é inevitável não circundar o campo da poesia

resistente, o que fez Bosi (1996, p. 22-27) atribuir a resistência como imanente à escrita. O

que nos interessará na poesia de Leminski, no âmbito do diálogo filosofia e literatura, é partir

das tensões escrita/mundo de modo que haja uma abertura para que sua poesia, em constante

abrir-se (abrir-se à visão), reen(con)tre o real. Enfim, que o tangenciamento entre filosofia e

literatura proposto neste recorte, entre o “relaxo e o rigor” (VAZ, 2001, p. 83), além de

espacejante na horizontalidade, seja um soçobrar em um rio de palavras que tudo dispersam

para daí nascer o encontro, momento do gozo fabuloso.

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CAPÍTULO II

LEMINSKI: ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

CURVA PSICODÉLICA A mente salta dos trilhos

LÓGICA ARISTOTÉLICA Não legarei a meus filhos

(Paulo Leminski, Caprichos & Relaxos, 1983b, p. 71).

Qual a relação do nosso poeta Paulo Leminski com o Oriente? Por que investigar o

haikai em sua obra poética? É Leminski um continuador da tradição do haikai ou há uma

ruptura? Leminski desde cedo foi amante da cultura oriental. O seu biógrafo Toninho Vaz nos

mostra na biografia O bandido que sabia latim (2001, p. 41, grifo do autor) o primeiro

encontro com o Oriente na biblioteca do colégio, “os primeiros contatos com os fundamentos

filosóficos de outras religiões, notadamente o budismo e o zen-budismo [...], o outro lado da

religião, as chamadas filosofias orientais”. Em matéria de Oriente, dois nomes marcarão a

vida e a obra de Leminski: o haikaísta Matsuó Bashô e o escritor Yukio Mishima. Mais que

um equilíbrio entre prosa e poesia. Bashô e Mishima contribuem para a formação de uma

escritura libertária, empenhada, e acima de tudo ligada à realidade. Com Bashô Leminski

aprende a treinar o olhar, a despertar o “outro” olhar, como nos diz o zen-budismo; com

Mishima Leminski aprende a escrever com a espada, escritor-samurai.

O elo com o Oriente, no plano cultural e literário, é tão intenso em sua veia poética

que Leminski será o grande popularizador do gênero haikai no Brasil, na segunda metade do

século XX. É possível notar, inclusive, que em todos os seus livros de poesia figuram

haikais30. Além de difusor desta forma poética, Leminski também foi crítico do gênero, além

de muito escrever sobre o Oriente. Leminski, em 1983, publica uma obra sobre o poeta

Matsuó Bashô, de mesmo título. Dividida em cinco estações do ano, Leminski percorre a vida

errante do poeta-monge-samurai e de seus haikais, um misto de teatro Nô, teatro semiótico, e

pintura: “todos os rios de signos do Oriente concorrem para fazer das parcas sílabas do haikai

de Bashô, sempre, uma obra-prima de humor, poesia, vida e significado” (LEMINSKI, 1983a,

p. 29). Por um lado, Leminski lança, na obra, um olhar semiótico para o gênero; por outro, dá

um enfoque Zen na poesia de Bashô: “a profundidade da poesia de Bashô radica na contínua e

intensa concentração, à luz do Zen, dos significados da vida humana. Sua inanidade. Sua

fraqueza. Seus esplendores” (Ibid., p. 67). A crítica revela não só o arguto leitor que Leminski

30 Leminski, em uma crônica chamada “Aids Cultural”, publicada na Folha de São Paulo em 1985, diz que passou a condensar tudo em um só terceto, já indicando o seu forte interesse pelo haikai. Cf. Anexo 1.

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foi, mas revela também a influência do poeta nipônico em sua obra, que se mantém fiel à

tradição do haikai, no olhar para o essencial da vida.

Ainda no campo ensaístico, em sua obra Ensaios e anseios crípticos (2011), Leminski

dedica quatro ensaios ao pensamento oriental. O primeiro, “Click: Zen e a arte da fotografia”,

em que o poeta investiga o parentesco entre o haikai e a fotografia, sendo que o verdadeiro

haikai é aquele “que desponta de súbito, inteiro, íntegro, sólido objeto do mundo, num

momento decisivo que não depende da vontade, do arbítrio do poeta. Como o ato de bater uma

fotografia” (LEMINSKI, 2011, p. 142, grifo do autor); o segundo, “Comunicando o

inaudível”, em que considera algumas notas sobre o zazen, a prática Zen de meditação, e sua

relação com o silêncio e com o nada, erigindo uma belíssima observação da prática Zen:

“Instaurar o nada dentro do rio do pensar” (Ibid., p. 184); já na segunda seção dos Ensaios,

Leminski dedica um ensaio à Yukio Mishima, “Tayo To Tetsu”, excelente introdução à

escritura do enigmático nipônico; por fim, o ensaio “Bonsai”, em que traça um panorama do

haikai no Brasil, dos modernistas aos seus contemporâneos – incluindo a poeta e então esposa

Alice Ruiz – e deixa o testemunho de sua paixão pela poesia japonesa: “haicai é nosso tempo,

baby. Um tempo compacto, um tempo ‘clip’, um tempo ‘bip’, um tempo ‘chips’” (Ibid., p.

328). Preciosidade como a pequena árvore japonesa bonsai, que leva o título do ensaio.

Neste panorama podemos observar que a paixão pelo Oriente preenche a vida e a obra

do poeta31 (Leminski praticou até o fim da vida as artes marciais). E sua própria vida foi tão

veloz como um haikai. Como diz o próprio Leminski (1983a, p. 98): “certas coisas são fatais.

Viver exige muitos haikais”.

O tecer de nossa investigação interseccional será guiada doravante a partir de três

movimentos, a saber: (i) um movimento que chamamos de movimento abeirante, que faz uso

de uma disposição tangencial para abordar os fundamentos do haikai e se justapõe ao estético

e ao cultural; (ii) a passagem do primeiro para o segundo movimento permite-nos abalçar no

pensamento filosófico e no pensamento oriental, o que chamamos de movimento de

intermédio. Com este movimento fazemos uma travessia nas bases do pensamento budista, a

fim de buscar afinidades, ou um “aprendizado”, entre poesia e experiência, quer dizer, se o

encontro poesia e budismo é, no fundo, um encontro poesia e mundo; (iii) após a zona de

tangenciamentos, o que chamamos de movimento circunfuso é o momento da chegada, não no

fim, mas no meio, e é neste meio Ocidente/Oriente, em que as estruturações já sedimentadas

podem movimentar-se, que ganhará força a nossa tese de ser o haikai uma possibilidade de

31 Cf. Anexo 2.

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contemplação e uma experiência mística32. É neste meio do círculo que podemos argumentar

que o haikai pode estar imbuído de ação contemplativa, assim como a escritura carrega o

silêncio inerente à contemplação.

2.1 Movimento 1 – Haikai: fundamento e tradição

Uma página em branco. Uma página-silêncio. Estática, mas à espera de algo que vem

de não se sabe onde, algo que a preencha, que a invada, que se derrame sobre a absoluta

imensidão de seu horizonte. Profundidade tão abismal a ponto de fazer aquele diante da

página, o leitor, perder-se, fugir e também pôr tudo a fugir. Mas o leitor está diante de um

silêncio que fala. Um silêncio que quer ser ouvido, que chama, que se movimenta. E com isso

se põe a meditar. Página-meditação. Nesse palco-página que a escritura perfura e se dispersa

até às últimas camadas, como um córrego desenfreado a tudo preencher, as palavras dançam

pelas frestas. Veloz como um lance mallarmaico, é na totalidade página à espera que os versos

correm soltos e loucos, em frenéticas idas e vindas.

Em nossa investigação entre campos disciplinares, é pertinente que se preambule o

escopo de nossa análise, a singela forma poética das composições literárias, o haikai. Mas

como falar de uma composição poética originalmente japonesa? E mais: como tratar de um

Oriente distante de nós, ocidentais? Qual o olhar que nós, ocidentais, lançamos a um Oriente

diverso da nossa lógica ocidental? Não é tarefa fácil falar de um horizonte tão particular – a

ponto de, aos olhos do homem ocidental, erguer-se o chavão “país fechado”. Para chegarmos

ao haikai, interessa-nos antes desfolhar as camadas culturais e encontrar os ricos elementos

tradicionais da cultura nipônica: o gestual e o visual. Como se adentrássemos em um palco de

teatro Nô e lá vislumbrássemos seu austero trabalho imagético, uma estética do

32 Falar de mística é sempre complicado e requer uma observação: não se trata, aqui, de filiar o pensamento de Leminski a alguma experiência espiritual ou esotérica, comumente associadas ao termo “mística”, mas buscamos somente aproximá-lo de um modo de “ver” o real que traz à tona o paradoxo do ver o que está encoberto, falar do que está silenciado. Não se intenta aqui fazer uma história da mística, investigar um antes e um depois da utilização do termo “mystique” na França do século XVII. Para isso, pode-se consultar o primeiro tomo de Fundações da mística (2012), de Bernard McGinn, onde o autor agrupa considerável literatura da mística, centrando a obra a partir de três questões delineadoras: a mística como parte da religião; mística como modo de vida; mística como tentativa de expressar uma consciência direta da presença de Deus. O que nos interessa no debate em torno da mística é partir da ideia de experiência e de vivência (a partir desta última McGinn abre o debate da natureza da mística com Teresa de Ávila), de uma mística que é sobretudo um modo de pensar a realidade, “um modo de falar” (BEZERRA, 2012b, p. 256), ou ainda nas palavras de Cicero Bezerra, “uma narrativa literária do Real ou mais precisamente, para uma experiência do Real” (Ibid., p. 262). Deste modo, podemos afirmar que o haikai possui um caráter místico, beira a experiência mística em seu movimento de olhar para o presente e assim instaurar uma harmonia com aquilo que em si é transcendente – o silêncio e o nada. É no momento em que o poeta haikaísta se posiciona frente à realidade e tenta transmitir o essencial da natureza (o dentro das coisas, na linguagem do Zen) que ele se aproxima do místico.

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ouvir/ver/sentir com todo o corpo, “um teatro essencialmente ritualístico” (KUSANO, 1984,

p. 39).

Terra do poente, de samurais, clãs, imperadores. Terra de grandes templos e de gueixas

que tanto dedilharam o imaginário ocidental pela beleza cintilante. Falar da cultura japonesa é

falar de uma cultura imageticamente rica, profusa visual e gestualmente, o que ratifica o nosso

imaginário de país das exuberâncias e do fascínio. Muito se buscou traduzir a essência da

alma japonesa, se isto for possível. Esse é o ponto de partida das investigações do antropólogo

Claude Lévi-Strauss acerca do Japão. Sempre deixando claro em seus escritos sobre a cultura

japonesa a sua dificuldade de tratar de um país em que não nascera e do qual muito menos

domina o idioma, Lévi-Strauss atenta para o fato de que conviver em um país e dominar o

idioma não garantem atingir o mais íntimo de uma cultura, “pois as culturas são por natureza

incomensuráveis” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 12). Lévi-Strauss interessou-se pela música, e

seus tons particulares, e pela mitologia, constatando que diversos elementos mitológicos do

mundo ali desaguaram, tornando a cultura nipônica um lugar de encontros, mas atuando como

uma espécie de filtro, “destilando uma essência mais rara e mais sutil que as substâncias

carregadas pelas correntes da história que ali foram se combinar” (Ibid., p. 22). O que

podemos concluir com Lévi-Strauss é que, diante deste “outro”, o nosso exame crítico tende a

ser uma “compreensão aproximada” do elemento cultural – aproximação é o termo mais

adequado para a antropologia –, isto se levarmos em conta a imbricada relação entre literatura

e cultura.

Uma dessas compreensões aproximadas e que merece ser mencionada é o trabalho do

historiador e diplomata pernambucano Oliveira Lima, No Japão: impressões da terra e da

gente (1997). Aplaudida por amigos como Gilberto Freyre, a obra de Oliveira Lima é um

preciso testemunho das riquezas da história e da cultura nipônica. Embora seja uma

“impressão” de um diplomata que documenta não só o cultural, mas também as

transformações políticas e sociais, sublinhamos um longo e necessário trecho acerca da

natureza e que perfeitamente condiz com o que falava Lévi-Strauss:

[...] a encantadora natureza nipônica, misto de grandiosidade e graciosidade, combinações de alterosas montanhas vulcânicas, vales sombrios ou sorridentes, cursos d’água que são torrentes ruidosas mais do que rios serenos, e lagos plácidos refletindo na sua superfície espelhenta crateras em ebulição; natureza cuja diversidade impressiona, estonteia e fascina, e cuja única nota uniforme é o esplendor da vegetação, um esplendor inexcedido em terras tropicais. O Japão político e social mudou muito seu aspecto, mas essa natureza, cuja pompa é avivada pela elegância das formas, é a mesma [...] (LIMA, 1997, p. 99).

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O registro do historiador atenta para as transformações do país (Restauração Meiji),

momento em que o Japão se situa em um embate entre tradição e modernidade – e em defesa

da tradição que o mundialmente conhecido escritor, Yukio Mishima, lutou entre sol e aço.

Mas, de acordo com o historiador, a natureza é algo que não muda. Embora seja um exímio

registro e uma aproximação da cultura, Lima soube captar o sutil daquela natureza, que

fornece ao japonês o “deleite subjetivo da sua contemplação extática” (Ibid., p. 115-116).

Agora é cabível a travessia para o poético. A tradicional poesia japonesa sempre versou

em uma composição de cinco e sete sílabas, e um grande pilar característico de sua formação

foi a noção de brevidade. Duas principais formas poéticas destacam-se: o tanka, poema

composto de cinco versos em duas estrofes e contemplando trinta e uma sílabas, difundido a

partir do século VII, no Período Nara; (710 d.C. – 794 d.C.); e o renga, engenhosa

composição coletiva bastante praticada entre os séculos XII e XVI (isto é, vai do Período

Heian ao Período Muromachi), compreendendo duas estrofes em que a primeira estrofe

(hokku) figurava um esquema de “cinco-sete-cinco” sílabas, e a segunda com sete sílabas,

assim sucessivamente, formando um longo poema. Dois gêneros basilares para a evolução

literária japonesa por trazerem para a criação literária, cada um com seus usos particulares de

linguagem, a realidade. É no momento de passagem para o século XVII que reside a gênese

do haikai: no despojamento do renga, quando a estrofe hokku ganha autonomia e passa a ser

simplesmente haikai33, isto é, uma composição de três versos distribuídos em um esquema de

“cinco-sete-cinco” sílabas poéticas.

Embora o haikai seja um gênero curioso pela sua síntese na estrutura, tendo marcado

não só a literatura japonesa, como tendo despertado interesse de uma legião de poetas no

Ocidente, aos olhos da teoria literária fica reservado à penumbra. Nos manuais de teoria

literária, quase nada se fala de haikai em matéria de formas poéticas. Encontramos em Hênio

Tavares, no seu compêndio Teoria Literária (1981), a classificação de haikai na seção de

gênero lírico, e assim nos diz: “espécie literária japonesa, de forma fixa, em estrofes de três

versos. A estrofe deve conter dezessete sílabas métricas” (TAVARES, 1981, p. 285). Em

Massaud Moisés, notório estudioso de literatura portuguesa e criação literária, também pouco

se vê a despeito do haikai, apenas uma breve passagem, em Literatura: mundo e forma (1982,

p. 308-309) ao abordar o limite ótico das formas em consonância com a realidade. Mas é em

seu Dicionário de termos literários (2004) que encontramos uma justa definição e aqui

citamos o verbete:

33 Haikai é frequentemente sinônimo tanto de haiku quanto de hokku. Manteremos o termo haikai para a definição.

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Semelhante pela forma ao epigrama, o haicai deve concentrar em reduzido espaço um pensamento poético e/ou filosófico, geralmente inspirado nas mudanças que o ciclo das estações provoca no mundo concreto. Destituído de rima no original, o haicai pressupõe a leitura silenciosa, visual e mental a um só tempo, e encerra força onomatopaica ou imitativa, de modo que se fundam a carga semântica e a massa sonora, a percepção e o significado. Busca alcançar o reino da Sensação, das melodias jamais ouvidas, das peregrinas emoções desencadeadas pela comunhão, instantânea e fugaz, com a eternidade e a imortalidade; expressar uma sensação nova, um imprevisto significado de súbito apreendido no espetáculo da vida e da Natureza, pela associação, espontânea e alógica, de aspectos até então distantes ou separados (MOISÉS, 2004, p. 217).

O conciso verbete de Massaud Moisés elenca as duas grandes características presentes

em toda a antiga poesia japonesa e que o haikai herdará: a brevidade e a inscrição das

estações do ano. Veloz em sua estrutura, como se querendo chegar mais rápido ao leitor, sua

busca pelo “reino da sensação” percorre uma natureza sem fim e faz do próprio haikai uma

poesia das sensações.

No campo da crítica, em línguas neolatinas, a abordagem do gênero nipônico é esparsa e

ainda tímida. Uma obra que certamente contribui para a discussão é Haiku Japonés: historia y

traducción (2010), do escritor e poeta espanhol Fernando Rodríguez-Izquierdo. A primeira

parte da obra se detém sobre a origem e sentido do haikai e nos ajudará a fomentar uma

grande propriedade do haikai: o seu contato íntimo com a natureza, quase onírico, uma janela

aberta para a realidade, pois que “se ocupa só da vida. É como a flor da existência, e

despreocupa-se do transcendente, mas desvela nas coisas uma natureza divina imanente a

elas” (RODRÍGUEZ-IZQUIERDO, 2010, p. 30, grifo nosso)34. Traço fundamental para

compreender que o poeta haikaísta renuncia à subjetividade, a um mergulho intimista próprio

do gênero lírico, em favor de uma visada objetiva, ou seja, “tende a anular sua personalidade”

(Ibid., p. 32)35 para elidir sujeito e objeto, abre mão da subjetividade para criar uma lente

capaz de expressar os sentidos da natureza e penetrar no íntimo das coisas. A fórmula do

haikai, portanto, é condensar o máximo no mínimo.

Como a matéria do haikai é a realidade, as estações do ano, a natureza, estes os seus

temas maiores, convém vir à baila uma lacônica argumentação de R-Izquierdo acerca da

significação do haikai: “todo o mundo captado em seu imediatismo [...]”36. O haikai capta a

realidade como se a fotografasse. Um recorte. Um fragmento. Um documento. Ora, fotografar

34 “El haiku se ocupa sólo de la vida. Es como la flor de la existencia, y se despreocupa del más allá, pero desvela en las cosas una naturaleza divina inmanente a ellas”. 35 “Tiende a anular la personalidad de éste”. 36 “Todo lo natural captado en su inmediatez [...]”.

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o real é produzir novas imagens desse real em pose para a câmera. Direcionada, a câmera-

haikai opera objetivamente, mas sem abandonar as cordas da subjetividade e sensibilidade do

olhar. Opera em um mundo de infinitas aberturas, superexposto. Superexposição, para

tomarmos a acepção de Paul Virilio (1993, p. 14) de “um mundo sem antípodas, sem faces

ocultas”. Poesia e fotografia unidas no trabalho de decodificação. O que pode este encontro?

Não é a fotografia uma atividade que possibilita uma abertura a muitos horizontes? E essa

abertura também não é familiar à própria poesia?

Para defender e seguir o encontro é preciso fazer nota da gênese do próprio estatuto

fotográfico na reprodução mecânica daquilo que não se repetirá, a tradição barthesiana de

congelamento do real37. Se for possível radicalizar o estatuto da fotografia de documento

tautológico (barthesiano) do real, estaremos repensando o papel da imagem fotográfica na

seara do fragmento estático e falando de imagens que transformam e atualizam o mundo que

fotografam, produzindo não apenas uma imagem fixa, mas outras novas imagens. Se assim

falamos de imagens imaginárias, “o que ela documentaria, então? Quem nos garante que a

fotografia formalmente similar e precisa, e aparentemente objetiva, [...] é documento

verdadeiro do que as pessoas veem e, sobretudo, sentem, pensam, fazem e são?” (MARTINS,

2009, p. 158). A indagação do sociólogo José de Souza Martins é perspicaz para o estatuto do

caráter “ficcional da natureza polissêmica da fotografia” (MARTINS, 2009, p. 37). Imagens-

mundo que são ficcionais, narrativas, contam histórias, descongelam uma natureza fluida. Aí

poesia haikai e fotografia podem se encontrar, diante de um mundo bombardeado por

imagens, mundo povoado por signos, semioticamente falando38.

Natureza fluida. Império de imagens. Um território tão fugidio quanto palpável, tão belo

quanto aterrorizante. É somente e, sobretudo, a materialidade da imagem que é capaz de

tornar a natureza presente. Só mesmo a imagem estaria apta a inscrever todas as

peculiaridades e segredos da mais recôndita vida selvagem por todos os cantos do planeta.

Como não pode falar, a natureza é posta no confessionário da imagem, levada a mostrar-se em

todas as suas formas. A natureza é “naturalmente” imagética, é esta familiaridade que impõe

uma garantia de verdade às fotografias. A natureza é para aqueles que andam por ela, que a

apalpam, viajam pelos caminhos que ela própria se incumbiu de traçar, aqueles que

compreendem suas peculiaridades, “sua modernidade”. 37 O eidos da fotografia no discurso de Roland Barthes, ou o grau zero da fotografia, em A Câmara Clara (1984), toma a imagem fotográfica como um recorte estático de um tempo móvel (algo de tautológica); imagens sem intenções alimentando-se do real, mas sem duplicá-lo. 38 O intercâmbio entre poesia e fotografia via semiótica, puro processo de signagem, é um campo fértil para novas outras teorizações. Podem ser consultados os autores no campo semiótico, como Peirce (2008); Santaella e Nöth (2008); Dubois (1993).

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A imagem da natureza torna-se o próprio Império, sua própria imagem e semelhança:

imprevisível, móvel, fluida, flexível, dinâmica, criativa, surpreendente, poderosa. E se as

imagens pensam, elas pensam, acima de tudo, que nós somos alguma coisa. As imagens

querem, desejam, sonham não só com mundos e os projetam, mas também com sujeitos que o

povoem e criam demandas subjetivas sobre aquilo que nós somos. E nós, leitores,

embarcamos nos fluxos vertiginosos de informações e imagens da natureza, percorremos

caminhos sem direções, que não se sabe para onde e para que lado vão. Sobretudo, vivemos a

imagem da natureza em todos os seus limites. Um aquém-mundo?

Na trilha da imagem fotográfica, a imagem que o haikai suscita – o “registro ou o

despertar de uma percepção muito mais ampla ou intensa nascida de uma sensação”, como diz

o poeta e professor Paulo Franchetti (2007, p. 9) em uma introdução a seu livro de haikais,

Oeste, ideia muito próxima daquilo que Alfredo Bosi, em O ser e o tempo da poesia (2000, p.

29), chamou de “imagem-no-poema” – nos joga para a sua própria estrutura ideogramática. E

entre haikai e ideograma, é sempre salutar lembrar o trabalho de Ernest Fenollosa sobre a

escrita ideogramática chinesa. Um trabalho que, segundo o poeta e crítico literário Ezra

Pound, em seu Abc da Literatura (1990, p. 25), versava “explicar o ideograma chinês como

um meio de transmissão e registro do pensamento”. A releitura de Fenollosa feita por Haroldo

de Campos, em Ideograma: lógica, poesia e linguagem (2000), traz à tona o “caráter icônico”

e os “traços simbolóides” – acepções tricotômicas da semiótica peirceana – do caractere

chinês. Uma rosácea de convergências em que, pela ótica de Fenollosa, a “natureza é uma

trama de múltiples tensões. O ideograma – e a poesia como expansão deste – é, para

Fenollosa, o homólogo escritural dessas tensões no mundo abreviado do texto” (CAMPOS,

2000, p. 52-53, grifo nosso). Palavra e imagem: “teia intersticial” (SANTAELLA; NÖTH,

2008, p. 70). Afora a releitura das teses fenollosianas, o ponto alto do livro organizado por

Campos é um ensaio do cineasta russo Serguei Eisenstein que se centra na investigação da

montagem cinematográfica na cultura japonesa39.

Longe de adentrar nas críticas que Eisenstein faz no ensaio ao cine-olho de Vertov

(eliminação, em seu cinema, dos intervalos de movimentos, respaldada na gesta de tempo

lento que é característico do teatro japonês Kabuki), interessa-nos sublinhar o caráter

ideográfico e hieroglífico da escritura japonesa que Eisenstein aborda. Segundo o cineasta, o 39 Quando se fala em montagem cinematográfica é sempre necessária a situação do debate em torno da montagem no cinema soviético e seus nomes expoentes (Serguei Eisentein e Dziga Vertov), “montagem dialética”, como diz o filósofo Gilles Deleuze, em Cinema 1, a imagem-movimento (1985), embora Eisenstein e Vertov mantenham suas particularidades na acepção de montagem. A título de consulta pode-se conferir em Deleuze o capítulo sobre a imagem-percepção (1985, p. 95-113) em que se valem os argumentos acerca da dialética e da montagem nos cinema soviético.

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haikai é a forma mais lacônica da poesia (numa acepção mais abrangente): “hieróglifos

transformados em frases” (EISENSTEIN, 2000, p. 152).

Não é fortuito pontuar que o debate acerca da palavra e da imagem deságua no campo

semiótico. E desde já, outro alerta: menos intentamos percorrer a teoria geral dos signos do

filósofo-matemático Charles S. Peirce e sumariar o exame. O que é proveitoso na tão

complexa e profunda Teoria Semiótica de Peirce e que nos ajuda a compreender a própria

colocação de Fenollosa, “frases hieroglíficas”, é o valor icônico que carregam as palavras

(isto é, signos). Por signos podemos entender, na voz do próprio Peirce em uma eloquente

definição dentre vastas definições de signo, “aquilo que, sob certo aspecto ou modo,

representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um

signo” (PEIRCE, 2008, p. 46). Logo, o signo representa algo (o objeto, que determina o signo,

é diverso do signo e é o próprio objeto um signo), está no lugar de algo (mas nunca o

substituindo) e o “efeito” que o signo causa na mente da “pessoa”, como nos diz Peirce, é

denominado interpretante (e não intérprete) do signo.

Dentre uma vasta classificação do signo40 – para a tricotomia signo-objeto-interpretante

Peirce apresenta dez classificações e cada uma com suas complexas partições –, convém notar

que é só na relação com o interpretante que o signo é. De qual interpretante se fala? É

oportuno frisar o que Peirce chama de interpretante dinâmico, no parágrafo trezentos e

quatorze (2008, p. 168) é o efeito particular de cada intérprete, como por exemplo, cada

pessoa ao ler um poema sente um efeito e cria suas próprias imagens. Com isso, podemos

dizer que um encontro entre semiótica e literatura é tão possível que foi laboriosamente

investigado por Décio Pignatari (2004), afirmando que “toda poesia é intersígnica, embora

sob disfarce verbal” (PIGNATARI, 2004, p. 115).

Se por um lado a poesia no Ocidente nasce com a música e junto à oralidade, sendo que

só com os avanços da revolução industrial passou a “entrar pelos olhos”, como coloca Octavio

Paz, na célebre obra Signos em rotação (2009, p. 117), por outro lado a poesia no Oriente –

resguardando sempre as particularidades entre ambas no tocante às suas formas opostas de

escritas – inscreve-se, como notam Santaella e Nöth em um ensaio sobre hibridações na

poesia, “na plasticidade da ideografia [...], nos ritmos visíveis de suas cadeias quase fílmicas”

(SANTAELLA; NÖTH, 2011, p. 11). Contudo, é na dimensão plástica da escrita que

Santaella vê a “via mais evidente do cruzamento da poesia ocidental com a oriental”

40 O leitor de língua portuguesa pode dispor de uma riquíssima literatura semiótica em Lucia Santaella, especialmente em Teoria geral dos signos (2000), Semiótica Aplicada (2004), Matrizes da linguagem e pensamento (2005) e Imagem (2008).

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(SANTAELLA; NÖTH, 2011, p. 11), e seguramente a acompanhamos. Esse cruzamento, pelo

crivo semiótico da autora, diz respeito, pura e simplesmente, ao conceito de “imagem verbal”

tão próprio ao campo literário, pois que “é na poesia que os interstícios da palavra e imagem

visual e sonora sempre foram levados a níveis de engenhosidade surpreendente”

(SANTAELLA, 1993, p. 49).

Com a contribuição semiótica, é possível uma tentativa de tornar clara a colocação de

Fenollosa de que o haikai constitui-se de frases hieroglíficas, já que a imagem, de acordo com

a semiótica, está introjetada na palavra poética. Se “a imagem diz o indizível” (PAZ, 2009, p.

44), a imagem infiltrada no haikai, além de levar o leitor a outros mundos possíveis, é um

“algo mais” da poesia que a linguagem não alcança, embora só se possa alcançar esse algo

mais pela linguagem. Ora, se o traço da imagem contido no haikai permite ao leitor construir

outras novas imagens de outros mundos possíveis, falamos de um leitor que sonha pelo

haikai. Não percebeu Roland Barthes essa abertura ao sonho quando afirma que “nem o

Haiku nem a Foto fazem ‘sonhar’” (BARTHES, 1984, p. 78)? Deste modo, eis o haikai: uma

passagem para o imagético.

Falar de haikai é também falar de seu grande difusor, pelos idos do século XVII – Era

Genroku (1668 – 1703), ou Período literário Kinsei41 –, o poeta Matsuó Bashô, que

popularizou o gênero em maior grau que o renga. Educado desde cedo a ser samurai, Bashô

teve uma vida errante e em seu nomadismo “se lançou a uma vida de pobreza e peregrinação

para adquirir conhecimento diretamente da natureza” (RODRÍGUEZ-IZQUIERDO, 2010, p.

68)42. Para Bashô, a poesia só era possível com o contato do poeta com a natureza – por isso o

haikai tem fortemente um tom rural e bucólico, fruto de tais experiências. Quanto à forma,

vale destacar que Bashô não se opõe à tradição nem é precursor de novos modelos, mas a sua

importância e sua originalidade estão em revigorar a difusão do gênero poético através de

uma “excessiva simplicidade, prosaísmo, jogos verbais” (Ibid., p. 65)43 que aproxima cada

vez mais a poesia do seu público leitor, desatando os nós com uma poesia erudita em que

preponderava certo hermetismo da antiga forma tanka.

A lição que deixa Bashô, para o haikai e para os poetas futuros, é que a poesia é fruto de

uma intensa observação direta e imediata do mundo, é “uma forma de ver e de viver o

mundo” (FRANCHETTI, 2012, p. 20), e por isso mesmo, continua Paulo Franchetti (Ibid., p.

28), “busca e pressupõe uma visão ascética do mundo”. Ao apresentar uma obra poética

41 Cf. especialmente a oitava parte da obra História da cultura japonesa (1986, p. 149-182), de José Yamashiro. 42 “Se lanzó a una vida de pobreza e peregrinaje para aprender directamente de la naturaleza”. 43 “Excesiva simplicidad, prosaísmo, juegos verbales”.

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carregada de simplicidade e beleza, Bashô ultrapassa as barreiras orientais e torna-se

reconhecido mundialmente por apresentar o par “poesia escrita e poesia vivida” circunscrito

em três linhas – o mesmo Paulo Franchetti diverge de uma costumeira compreensão da síntese

do haikai como algo limitativo, um divertimento literário por sua brevidade de três linhas;

aqui o acompanhamos na crítica44. Tal reconhecimento fez com que Octavio Paz escrevesse

um descomunal ensaio sobre Bashô e que vem a somar-se ao que há de excelente no corpus

bibliográfico do gênero haikai. Para Paz (2009, p. 156), “o haiku é um círculo de silêncio e

recolhimento: manancial, poço de água escura e secreta”. Com Octavio Paz e com Bashô

podemos compreender o enflorado caminho do haikai, poesia com o cheiro da tarde madura,

poesia remansada, deslizando na página como deslizam no ar as flores de cerejeira no cair de

uma tarde de primavera. Com Bashô, o haikai atinge sua máxima de ser “uma palavra cápsula

carregada de poesia” (Ibid., p. 163). Poesia que brota nos vergéis do Oriente.

O legado de Matsuó Bashô para a poesia é o direcionamento do olhar para a

simplicidade no poema. Em matéria de poesia, falar do poema é falar de sua laboriosidade

quase arquitetônica, com suas métricas e rimas, nas formas do poema, que inserem poemas e

poetas nas malhas dos juízos de valores dos cânones literários – um Platão expulsando um

grupo de poetas (os miméticos) e mantendo outros (os citadinos) em sua República, que nada

mais é um Platão já apontando para os cânones literários e juízos de valor (o que presta/não

presta; o que interessa/não interessa); por isso a teoria da literatura precise voltar-se sempre

para o legado platônico. Mas falar do poema é também falar de outra coisa, que não este lugar

do puro hermetismo, parnasianamente pensando. Para isso, podemos ilustrar com um poema

de Carlos Drummond de Andrade chamado “Exorcismo”, em Discurso de primavera e

algumas sombras (1978, p. 113-115), que atenta para a liberação dos vocóides e dos

programas estruturais que impregnam a poesia:

Das relações entre topos e macrotopos Do elemento suprassegmental, Libera nos, Domine. Da semia Do sema, do semema, do semantema, Do lexema, Do classema, do mema, do sentema, Libera nos, Domine. Da estruturação semêmica, Do idioleto e da pancronia científica, Da realibilidade dos testes psicolingüísticos, Da análise computacional da estruturação silábica dos falares regionais,

44 Cf. Franchetti (2007, p. 9-15).

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Libera nos, Domine. Do vocóide, Do vocóide nasal puro ou sem fechamento consonantal, Do vocóide baixo e do semivocóide homorgâmico, Libera nos, Domine. [...] Do programa epistemológico da obra, Do corte epistemológico e do corte dialógico, Do substrato acústico do culminador, Dos sistemas genitivamente afins, Libera nos, Domine.

Ao evocar a liberação dos intelectualismos do poema o que resta? O próprio

Drummond, em um poema de Boitempo III (1980, p. 44), continua a perseguir a líber(t)ação

da linguagem:

Tudo é mais complicado Se se tenta explicar. Um gato me fitou, Percebi tudo: nada45.

Com o poema de Drummond, vemos que o “descomplicar” é a própria matéria da

poesia: desdizer, desexplicar, é o perceber de tudo pelo olhar do gato, é sentir o máximo no

mínimo. Ora, neste ponto Leminski é herdeiro de Drummond. Percebemos esta herança em

um haikai de La vie en close (1994, p. 115):

Saber é pouco Como é que a água do mar Entra dentro do coco?

Neste haikai Leminski, seguindo as trilhas drummondianas, aponta para a definição do

gênero poético: a condensação do máximo (a água do mar) no mínimo (coco);

metalinguístico: o haikai falando do próprio haikai. E se “saber é pouco”, principalmente

quando se “tenta explicar”, como nos diz o poema do Drummond, o melhor é olhar a vida.

Assim fazem alguns poemas de O ex-estranho (2001), última reunião de inéditos de

Leminski, feita por Alice Ruiz, um livro onde predomina menos a tônica existencial e febril

de La vie en close, e mais uma lufada cheia de vida, como podemos ver no poema “Rimo e

rimos” (2001, p. 24): “vida, coisa para ser dita”. Olhar, mas também mergulhar na vida. Se

tomarmos um livro como Distraídos venceremos (1995), mais intimista – onde se encontra

um antológico poema, “Razão de ser”: “escrevo porque preciso / preciso porque estou tonto”

45 Poema “Solilóquio do Caladinho” (1980, p. 43-44).

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(LEMINSKI, 1995, p. 80) – podemos encontrar em um poema um excelente termo que traduz

o mergulho que o haikai faz, tanto na vida como na página em branco: o neologismo

naugrafar.

De todos os náufragos Náugrafo O náufrago Mais profundo (LEMINSKI, 1995, p. 43).

Eis o procedimento do haikai: naugrafia no oceano da página. Naugrafia na matéria do

máximo. Podemos agora levantar algumas perguntas: qual o interesse do Ocidente pelo

haikai? Mais especificamente: qual o interesse da literatura brasileira pela forma poética

oriental? Como o haikai chegou ao Brasil e por quais rotas? E deste encontro, houve rupturas

ou foram os poetas que se valeram do haikai fieis à tradição nipônica? Tais questões, entre

tantas outras que podem surgir, já garantem por si uma série contínua de grandes debates.

Uma citação de Luiza Lobo é introdutória para a questão do interesse ocidental pela poesia

japonesa:

No ocidente, a busca do haikai deriva de uma necessidade de se reencontrar o símbolo, de se superar a fragmentação resultante dos efeitos do capitalismo e do cosmopolitismo modernos, que acarretam o excesso de fragmentação e uma sociedade de simulacros levados ao extremo pela troca simbólica entre signos já mecanizados e esvaziados de sentido (LOBO, 1993, p. 68).

A partir de uma leitura fundamentada no discurso da “pós-modernidade”, Lobo reafirma

o caráter imagético do haikai e, na contramão do traço fragmentário da sociedade dita pós-

moderna, isto é, dispersão, aproxima-se da união que o gênero poético estabelece com o

mundo. Além disso, a obra de Lobo faz um breve panorama da prática do haikai no Brasil,

muito embora a autora se perca em algumas colocações generalizadas de que “ser haikaísta

significa pertencer a um clube seleto e intelectual” (Ibid., p. 66) – o grande empenho de Bashô

é que o haikai justamente não seja de um grupo seleto e muito menos intelectual; e como

veremos adiante, no Brasil essa concepção não condiz. Não obstante, é um ensaio de fôlego

de Paulo Franchetti, “Haikai no Brasil” (2012), que melhor traça um panorama do haikai em

nossa literatura a partir de quatro momentos: (i) da crítica do historiador Afrânio Peixoto, que

introduz em língua portuguesa o haikai, em uma crítica amistosa de 1919; (ii) com os

modernistas, que se apropriaram do haikai pelo seu caráter de brevidade, dando-lhe uma nova

coloração, isto é, adequando-o aos “tempos modernos” das máquinas paulistas, da aceleração

da vida, ou como diz Guttilla (2009, p. 12), “reduzir-se-á a um terceto breve e bem humorado,

cujo tema refletirá a novidade da vida urbana”; (iii) com a difusão do haikai feita pelo poeta

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Guilherme de Almeida (um dos fundadores da célebre revista modernista Klaxon), que

conferiu ao haikai rimas e métricas próprias, além de inserir títulos aos poemas, tomada que,

segundo Franchetti, fracassa “não pela rima, nem pela métrica, mas pela atitude que se

explicita quando os lemos com os títulos que têm” (FRANCHETTI, 2012, p. 203), isto é,

limita a interpretação do leitor; (iv) pela via crítica a partir dos estudos de Fenollosa, que

renderam admiração por parte dos poetas do movimento concretista, valendo-se do haikai

muito mais por um interesse técnico e visual (interesse no seu valor ideogramático e icônico,

nos termos semióticos).

Certo é que nesta trajetória traçada por Franchetti algumas elipses podem ser

encontradas, como a produção do haikai no Brasil pela comunidade nipônica, por exemplo.

Quanto a isto, é imprescindível o livro de Masuda Goga (1988) que tenta seguir a trilha de

imigrantes japoneses entre as décadas de 1930 e 1940 que compuseram haikais no Brasil –

embora a obra limite-se até a década de 1950, constitui um bom corpus de haikaístas da

primeira metade do século. Ainda foram esquecidos por Paulo Franchetti “os exercícios

líricos”46 do jovem Guimarães Rosa, que viu no haikai o ponto de beleza e simplicidade e que

levará para sua prosa – as poesias de Rosa, não só os haikais, inscrevem belas imagens da

natureza, o que levaram-nas à aclamação com um prêmio de poesia da Academia Brasileira de

Letras em 1936 (inclusive, elogiadas pelo já citado Guilherme de Almeida), mas apenas sendo

publicadas postumamente, no volume Magma (1997). Pode-se notar que o haikai estabeleceu-

se no Brasil de forma harmoniosa, reconhecido por vários poetas como uma autêntica forma

poética da simplicidade, mas um simples que muito é.

Leminski muito se dedicou aos haikais e deu-os uma particular elasticidade nos temas,

sempre com humor e com um labor na linguagem. Cada haikai de cada obra sua tem um traço

particular, mas em todos eles o olhar é sempre conciso e direto sobre a realidade. Um haikai

de Caprichos e Relaxos exprime bem o que podemos chamar de uma poesia movente, uma

imagem fotográfica que nada tem de estática:

Poema na página Mordida de criança Na fruta madura (LEMINSKI, 1983b, p. 65).

O poema na página (circunstância) parece abrir o cenário: o espaço que o poema

configura é de transição, transitoriedade, mudança, fluxo, movimento. Os antagônicos

“criança” e “madura” conduzem a ação do tempo. A temporalidade exposta nos dois últimos

46 Fala de Guimarães Rosa ao tradutor Günter Lorenz (cf. LORENZ, 1973, p. 326).

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versos é a temporalidade do Ser que o poema incorporou, quer dizer, o poema fez morada na

temporalidade. O poema na página fotografa, então, com absoluta simplicidade a ação de uma

mordida de criança em uma fruta madura que é, na verdade, o caminho de todo o indivíduo à

maturidade, ou ao conhecimento (à sabedoria, dirão os filósofos), ou até mesmo ao outro lado

do rio. Aqui, percebe-se que o haikai fotografou a travessia. Um haikai de Distraídos

Venceremos (1995, p. 132) exemplifica o que chamamos de passagem para o imagético:

Tarde de vento Até as árvores Querem vir para dentro.

Este é um haikai que brinca com a lógica, pois atribui vida ao objeto (as árvores querem

vir para dentro). Para o plano da racionalidade, não há qualquer relação entre a árvore e o

querer. Ora, esse mover o imóvel só pode encontrar abrigo no terreno da poesia. Quando o

haikai atribui o querer ao objeto, o objeto é. Árvore movente, árvore desejante, devir-árvore.

No torvelinho de imagens, o leitor pode facilmente criar mentalmente espaços dessas árvores

moventes. É o leitor que fabricará imagens e mais imagens de tardes de vento (para

pensarmos nas tricotomias peirceanas e nas fabricações de signos).

Visto como opera o haikai, depois de traçada sua teia simbolóide, voltamos para o

terreno da crítica e indagamos: por que a nossa crítica ainda não se interessou pelo haikai e

pelos haikaístas? Por que, ainda, o olhar com desconfiança? A obra do espanhol R-Izquierdo,

certamente ganha seu mérito por teorizar e repensar o haikai, além de compendiar haikais de

línguas inglesa, francesa e espanhola, mas falha por deixar de lado a nossa literatura. Uma luz

na sombra, para o leitor de língua portuguesa, é um compêndio de haikais de diversos poetas

brasileiros, organizado por Rodolfo Guttilla (2009). Que os dados sejam lançados. Pois, é

nessa miríade que fechamos uma porta e abrimos outra: encerra-se nossa passagem no espaço

literário e partimos para o Oriente próximo.

2.2 Movimento 2 – Budismo e poesia

Conta-nos uma velha anedota que um mestre Zen, Hogen, ocupava seus dias entre o

silêncio e a tranquilidade do campo até receber, em seu templo onde vivia sozinho, quatro

monges viajantes que ali se instalaram e acenderam uma fogueira. Em meio a uma discussão

dos monges sobre objetividade e subjetividade, o mestre Hogen apontou para uma pedra e

lançou um problema: se a pedra, diante dos monges, estava dentro ou fora de suas mentes.

Um dos monges responde que, do ponto de vista budista, tudo é uma objetificação da mente,

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logo, a pedra estaria dentro da mente. Replicou, então, o mestre Hogen: “a sua cabeça deve

estar, então, pesada”47.

Para início de debate nesta zona de operação do movimento de intermédio: por que

dialogar budismo e poesia? O que pode e o que resulta deste encontro? Pode o Budismo

contribuir com a poesia? Quando falamos em budismo, a primeira articulação operatória em

nosso pensamento é a do Zen, uma corrente espiritual que mais parece levar o sujeito a se

isolar do mundo e de suas agruras por meio de um forte silêncio. Embora o interesse ocidental

pelo Oriente não seja tão recente, se levarmos em conta as missões de evangelização do

Extremo Oriente (o Japão) no século XVI e o constante diálogo do pensamento oriental com a

filosofia, dos filósofos gregos a Heidegger, o olhar ocidental para o Leste vai de um misto

entre simpatia e exotismo. Seria insatisfatório, e até incompreensível, falar do Zen sem

percorrer um caminho histórico do Budismo primitivo até sua evolução, visto que é o Zen

fruto deste processo evolutivo. Nossa intenção de trajetória permeia, pois, certa imagem que

construímos do Budismo ao longo dos anos, certas caricaturas. De que Budismo falamos?

Não cabe neste espaço corrigir tais caricaturas e imagens, sejam verdadeiras ou não. Cabe-nos

apenas plantar um desejo de caminho seguro para se chegar ao Zen, na terra do poente.

O primeiro desafio ao se falar de budismo é a tentativa de definição, ou melhor, de

chegar a uma conclusão de ser o budismo uma filosofia, religião, racional, uma ciência do

espírito, se é ascético, ateu ou não teísta. Outros caminhos levam para o budismo como uma

doutrina, ou como um “caminho para a felicidade”. O segundo desafio é o aporte de leituras

disponível, que abre caminho para duas problemáticas: primeira, a dificuldade, na linguagem,

de compreensão do Budismo (inclusive o Zen); segunda, crer (o leitor) que se dominará o

Budismo e se chegará a algum fim apenas com o nível de leitura.

Em língua portuguesa, os primeiros trabalhos (traduções) que tomamos conhecimento

foram nas décadas de 1950 e 1960: O Buda e o budismo (1958), do francês Maurice

Percheron, e Budismo (1964), do estadunidense Richard Abbott Gard. A eles e a alguns

críticos de língua francesa que nos dedicaremos. As obras de Gard e Percheron, juntas,

formam uma boa introdução ao debate e ambas centralizam em suas páginas a figura do Buda,

seu caminho e seus ensinamentos, e o momento histórico de uma Índia pré-budista, em

meados do século VI a.C., época de intensa espiritualidade da tradição bramânica.

A obra de Richard Gard apresenta de modo conciso a natureza do budismo, apontando

para aquele que, mais tarde, tornar-se-ia o Esclarecido e ditaria as bases do pensamento

47 Anedota “A mente de pedra”, compilada na obra Histórias Zen (1999, p. 73), de Paul Reps.

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búdico. É na figura do jovem Siddharta, nascido entre nobres da família Gautama que se

formam as bases do chamado Budismo Primitivo. Com Gard temos algumas definições de

quem foi Gautama: um homem de pureza completa; o Mestre; o Venerado; o Esclarecido; o

Bodhisattva, “aquele cuja essência é o conhecimento perfeito (Bodhi)” (GARD, 1964, p. 60).

Embora Gard se atenha a várias definições de um “líder espiritual”, limitando por muitas

vezes a leitura, o que nos interessa neste pequeno livro é a estruturação de acordo com a

trindade búdica: o Buda, o Dharma (os ensinamentos deixados por Buda) e o Sangha (a

ordem, uma comunidade para a vida monástica). Neste aspecto que podemos visualizar

melhor a base do Budismo Primitivo, a partir do momento em que o jovem Siddharta atinge a

Iluminação e transmite os seus ensinamentos para seus seguidores, ensinamentos que serão

lidos e interpretados de forma dinâmica ao longo da história, possibilitando a criação de várias

“seitas” fora da Índia.

Não obstante, Percheron vai mais além e melhor descreve não só a atmosfera da Índia

do século VI a.C. como também os caminhos de Gautama até tornar-se Buda (literalmente

traduzido por “Despertar”, ou “o acordado”), que em sua juventude viveu um espaço livre,

filho de um homem e de uma sociedade48. Mas é posteriormente, próximo aos trinta anos de

idade, que a trajetória de Gautama toma outros rumos, quando seus olhos “testemunharam a

dura realidade da vida” (PERCHERON, 1958, p. 24). O contato com o sofrimento da vida o

faz decidir abandonar todos os prazeres e todas as riquezas que o cercavam. Seus olhos

conheceram, então, a miséria humana. Um episódio que nos faz lembrar, de longe, um dos

mais belos e expressivos Fragmentos do filósofo francês Blaise Bascal ao examinar a

miserabilidade humana; diz Pascal no Fragmento 978: “[...] Quer ser grande, vê-se pequeno;

quer ser feliz, vê-se miserável; quer ser perfeito, vê-se cheio de imperfeições [...]” (PASCAL,

2005, p. 422). Curioso que neste mesmo Fragmento, só descoberto um século após sua morte,

Pascal alerta para o mal que é “estar cheio de defeitos, mas [que] é um mal ainda maior estar

cheio deles e não querer reconhecê-los” (Ibid., p. 423). Ora, é diante da miséria humana que

Gautama realiza sua travessia: ele compreende que é preciso reconhecer a própria condição

do sofrimento humano, e só então toma a decisão de partir e salvar não só a si mesmo, como

também a humanidade desta condição. A “grande partida” é, pois, um grande momento na

história do budismo: a renúncia. É daí que temos o primeiro grande ensinamento do já então

Buda, o “Sermão de Benares”: “na origem desta dor universal está a sede de existir, a sede

48 Outras obras em língua portuguesa, que centram na figura do Buda histórico e do espírito budista, podem ser consultadas: A ética budista e o espírito econômico do Japão (2007), de Ricardo Gonçalves; A espiritualidade budista (2007), de Takeuchi Yoshinori (org.); Budismo: uma introdução concisa (2003), de Huston Smith e Philip Novak.

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dos prazeres fruídos pelos cinco sentidos exteriores e pelo sentido interior, e mesmo a sede de

morrer” (BUDA apud PERCHERON, 1958, p. 33). Aquele Buda que se entregou a uma vida

de mendicância, de esmolas, de caridade e de desprendimento, tal como fará um Matsuó

Bashô, nômade da poesia.

Seguindo os passos de Christmas Humphreys (1949, p. 29), o “budismo começa com a

iluminação de Buda” e não visou opor-se ao bramanismo, já existente na Índia. Longe de

aprofundar o debate referente aos primeiros passos do Budismo Primitivo e de seu fundador,

o budismo foi mote das mais diversas interpretações ao longo da história. De certo modo, a

menos confiável é aquela que faz do budismo um “local de conforto”, ou como bem pontua o

filósofo francês Fabrice Midal (2006, p. 28), não é interessante uma ideia de Budismo que

vise “a fazer de cada um de nós alguém importante, um bobo mais feliz, um inconsequente

constantemente sorrindo...”49. O que Midal propõe na primeira seção de sua obra Quel

bouddhisme pour l’occident (2006), com o rigor da palavra, é ler um budismo que não se

reduza a uma espécie de disciplina de condução à felicidade, algo terapêutico e que venha a

“responder aos anseios do indivíduo moderno fracassados em sua realização pessoal”50 (Ibid.,

p. 82) – para Midal, o problema se agrava ainda mais quando se toma os ensinamentos de

Buda como uma teoria geral da natureza da realidade e quando se considera o budismo “como

ateu, agnóstico, racional ou científico”51 (Ibid., p. 74), o que dificulta sua compreensão52.

Como a doutrina de Buda fundamenta-se no contato com o sofrimento humano, alguns

críticos tomam o budismo como uma “doutrina do sofrimento” (PERCHERON, 1958, p. 49),

ou até como “filosofia do sofrimento” (HUMPHREYS, 1949, p. 98). Um sofrimento que

sempre vem, uma vida em constante ilusão (maya). Como não lembrar, mais uma vez ao

longe, do filósofo Pascal quando fala, em várias passagens dos duzentos primeiros

Fragmentos de seu Pensamentos, que os divertimentos da vida entretêm o homem e que

sintetiza o pensamento no Fragmento 414: “a única coisa que nos consola de nossas misérias

é a diversão. E no entanto é a maior de nossas misérias” (PASCAL, 2005, p. 157). O próprio

Humphreys, como se estivesse pascalianamente entusiasmado, bem descreve a condição

humana: “somos o que somos e somos incompletos, infelizes, repletos de sofrimento. A causa

49 “Faire de chacun de nous un legume, un animal idiot mais heureux, un décervelé sans cesse en train de sourire...”. 50 “Répond aux attentes de l’individu moderne en mal de réalisation de soi”. 51 “Comme athée, agnostique, rationnel ou scientifique”. 52 Para um conhecimento mais aprofundado, é salutar conferir o debate que Midal (p. 34-75) propicia acerca de um budismo como religião, ou com elementos de uma religião (um fundador, uma comunidade, uma doutrina etc.), com elementos que não são próprios de uma religião (a crença em um deus criador das coisas, dogmas etc.) e como não teísta (desvia-se da ideia da revelação de Deus), além de outras aproximações, principalmente com a tradição cristã.

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de todo esse infortúnio é o desejo; a causa do desejo é a ignorância, a velha ilusão do eu”

(HUMPHREYS, 1949, p. 24). Desse modo, fica claro que a doutrina búdica aponta para certo

tempo: o aqui e agora, o tempo presente, ou como conclui Midal (2006, p. 92): “a verdade do

budismo não existe senão em nosso tempo presente, quer dizer, em nossa maneira de o

interrogar”53.

Do Budismo Primitivo, um momento altívolo que certamente merece destaque é o

ensinamento de Buda, que já contava com oitenta anos, aos seus cinco discípulos, e que foi

chamado de “As quatro nobres verdades”. Se consultarmos o livro Introduction au

Bouddhisme (1989), de Jacques Martin, fundador e presidente da L’Union Bouddhiste de

France, podemos conferir de modo didático cada ensinamento acompanhado de excertos dos

sutras de Buda. A primeira verdade (Dukkha) proclama o reconhecimento da vida como

sofrimento, onde encontramos um tom bastante peculiar nas palavras do próprio Buda: “o

nascimento é sofrimento, [...] a velhice é sofrimento, a morte é sofrimento, a tristeza e os

tormentos são sofrimento, a união com aquilo que não amamos é sofrimento, a separação

daquilo que nós amamos é sofrimento”54 (BUDA apud MARTIN, 1989, p. 31); a segunda

verdade conduz para a causa do sofrimento, que é o desejo, um desejo ávido que é insaciável

e faz o homem amar sua sombra, sua ignorância (avidya); a terceira verdade consiste na total

supressão da segunda verdade, o desejo, e na cessação da primeira verdade, a vida como dor,

eliminando as três raízes do mal: o desejo, o ódio, a ilusão; por fim, a quarta nobre verdade é

a estrada para a salvação e que consiste em oito caminhos, as chamadas “Oito Sendas

Óctuplas” – organizada por Jacques Martin em três grupos: a ética; a disciplina mental; a

sabedoria55.

Parêntesis. Após a iluminação e morte de Buda, os seus ensinamentos (Dharma) e lei

(vinaya) deixados para os discípulos foram suscetíveis a diferentes interpretações, o que se

tornou uma abertura para a evolução do próprio budismo, expandindo-se da Índia. Uma

evolução que permitiu a criação de “escolas”, ou correntes. A primeira delas e a mais antiga é

o Theravada, surgido no século III d.C. no Ceylan (atual Sri Lanka); a segunda é o Hinayana,

ou também chamada de “Pequeno Veículo”, que adota como base de seu pensamento a

trindade búdica (Buda, Dharma, Sangha); a terceira é o Mahayana, ou chamado de “Grande

53 “La vérité du bouddhisme n’existe que dans notre présent, c’est-à-dire dans notre manière de l’interroger”. 54 “La naissance est souffrance, la maladie est souffrance, la vieillesse est souffrance, la mort est souffrance, la tristesse et les tourments sont souffrance, l’union à ce que l’on n’aime pas est souffrance, la separation d’avec ce que l’on aime est souffrance”. 55 Na organização de Martin encontram-se assim dispostas: (i) ética: a fala justa, ação justa, os modos de existência justos; (ii) disciplina mental: esforço justo, concentração justa, atenção justa; (iii) sabedoria: pensamento justo, intenção justa (cf. um amplo comentário de cada grupo em MARTIN, 1989, p. 48-66).

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Veículo”, uma escola peculiar e que mantém divergências tanto frente à escola Hinayana,

quanto ao Theravada.

Seria inteiramente impossível avançar em nosso propósito sem sublinhar aquilo que é

essencial das citadas escolas, até para que fiquem claras as divergências, internas e

posteriores: (i) o nirvana, essencial na tradição do Theravada. Da salvação de Buda, o êxtase,

a quietude. O pleno silêncio do momento em que Buda suprimiu todas as paixões, todo o

sofrimento e todo desejo, atravessando as quatro Nobres Verdades e atingindo a Iluminação.

Certo é que o próprio Buda, ao atingir o nirvana, não se fez claro a seus discípulos do que

seria esse estado de êxtase. O que faz o ideal de Nirvana atravessar todas as escolas do

Budismo, além de ser a finalidade do Theravada, é o seu caráter de plenitude, de libertação e

desprendimento. Não é fácil definir, ou chegar a uma compreensão plena, o que venha a ser o

Nirvana, e para isso recorremos a nossos críticos para uma tentativa de definição. Jacques

Martin nos oferece uma salutar pontuação: “o Nirvana não é um lugar, um estado, onde haja

alguma existência. Ele é fora do espaço e do tempo, fora de toda concepção dualista”56

(MARTIN, 1989, p. 36). Do ponto do vista do praticante, aquele que intente seguir as Nobres

Verdades e o Dharma, continua:

O nirvana é produzido geralmente durante a vida do praticante que tenha eliminado todas as paixões ou impurezas mentais. [...] O indivíduo que tenha realizado o nirvana goza de uma beatitude indescritível, além de uma sensação ordinária de felicidade57 (Ibid., p. 36, grifo nosso).

Primeiro, após a eliminação de todas as paixões e dores, poderíamos falar em uma

“finalidade do nirvana”? Segundo, depois de tudo desaparecido, seria o nirvana um fim?

Muitas são as respostas, satisfatórias ou não. Mas de acordo com o budismo, a finalidade do

nirvana é o rompimento do samsara, isto é, cessação do ciclo sucessivo de existências.

Jacques Martin (1989, p. 30, grifo nosso) assim define o samsara: “um ser que morre e depois

renasce não é nem o mesmo ser, nem um ser diferente; é um continuum que transcorre de

instante em instante, de existência em existência”58. Talvez a compreensão se faça mais útil e

mais clara por metáforas, como a esplendorosa citação de Maurice Percheron:

Suponhamos um continente a emergir do mar por certos picos. Imaginemos ainda que estes ilhéus desapareçam e que outros provenientes do mesmo

56 “Le nibbana n’est pás un lieu, un état, où il y a une quelconque existence. Il est en dehors de l’espace et du temps, en dehors de toute conception dualiste”. 57 “Le nibbana se produit généralement durant la vie du pratiquant qui a éliminé toutes passions ou souillures mentales. [...] L’individu qui a réalisé le nibbana jouit d’une béatitude indéfinissable, bien au-delà d’une sensation ordinaire de bonheur”. 58 “Un être qui meurt puis renaît n’est ni le même être ni un être différent; c’est un continuum qui s’écoule d’instant en instant, d’existence en existence.

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continente submarino deformável saiam das águas, já não serão os mesmos que os precedentes, mas tampouco serão outros (PERCHERON, 1958, p. 62, grifos do autor).

Pela ótica do budismo, a volição do indivíduo frente ao samsara é o Karma, isto é, suas

ações. Humphreys, em uma passagem metafórica, também nos interessa para a compreensão

do Karma: “É uma força perpetuamente geradora. Pode ser uma nuvem de trovoada tão

carregada que nada poderá retardar a sua descarga completa” (HUMPHREYS, 1949, p. 118).

E se o homem é livre para tecer suas próprias ações e construir seu próprio karma, logo, com

o peso da citação agostiniana de Humphreys, “karma e livre arbítrio são duas faces da mesma

verdade espiritual” (Ibid., p. 143). Deste modo, se é possível falarmos em uma finalidade do

nirvana, a cessação do samsara é a meta. Mas se o nirvana é um fim, algumas questões se

sobressaem: seria o nirvana a suspensão do “Eu”, a morte, um nada, um vazio ou um

aniquilamento? Todas essas questões possibilitam muitas interpretações e, posteriormente, o

Zen-budismo as retomará. Apenas duas ressalvas a serem sublinhas: o historiador francês

Léon de Milloué, em sua obra Bouddhisme (1907, p. 130), segue a hipótese de ser o nirvana

um “aniquilamento absoluto do ser”; não obstante, seguimos o comentário do sinólogo

francês Paul Magnin, em sua obra Bouddhisme, unité et diversité (2003, p. 178, grifo nosso):

O nirvana não pode ser explicado exclusivamente por uma problemática de existência ou de não-existência. Ele transcende toda forma e todo conceito, uma vez que ele é de uma outra ordem; ele não pode ser identificado ou reduzido apenas pelo raciocínio elaborado pelo espírito. Ele não é mais redutível unicamente pelos limites da experiência humana59.

Em um movimento obverso, encontramos com a escola Mahayana e com aquilo que lhe

é essencial: (ii) a vacuidade. Tendo surgido cinco séculos após a morte de Buda, o “Grande

Veículo” Mahayana não segue a mesma operação do Theravada, de centralizar o nirvana

como essencial, pois enquanto a antiga escola “se preocupa essencialmente de ser e de

desenvolver os métodos particulares para realizar o nirvana, o Mahayana afirma a dupla

vacuidade do ser e das coisas”60 (MARTIN, 1989, p. 76). Tal como o nirvana, hastear a

compreensão da vacuidade, ou doutrina da vacuidade, leva-nos ao ponto-limite. Dentro do

próprio Mahayana, a doutrina da vacuidade foi pensada com extrema radicalidade por

59 “Le nirvana ne peut être expliqué en recourant à une problématique d’existence ou de non-existence. Il transcende toute forme et toute concept, puisqu’il est d’un autre ordre; il ne peut être identifié ou réduit aux seuls raisonnements élaborés par l'esprit. Il n'est pas davantage réductible aux seules limites de l’expérience humaine. 60 “Se préoccupant essentiellement de l’être et de développant des méthodes particulières pour réaliser le nirvana, le Mahayana affirme la double vacuité des êtres et des choses”.

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Nagarjuna, fundador de uma das duas escolas mahayanistas61. Logo, suspender-se na

alfombra da vacuidade é atingir a onisciência. Não obstante, se o Mahayana aponta a seta

para a natureza profunda da realidade, e se a vacuidade se localiza no espaço, mesmo, entre o

samsara e o nirvana, entre a afirmação e a negação, entre a existência e a não-existência, é

perfeitamente possível acompanhar Paul Magnin (2003, p. 372):

Nagarjuna demonstra que a existência é tão ilusória quanto a não-existência. O mesmo se aplica para a permanência e a não-permanência, o relativo e o absoluto, o composto e o incomposto, o presente, o passado e o futuro. Nagarjuna coloca claramente o princípio da não-dualidade: as coisas não são nem existentes nem inexistentes, nem compostas nem não-compostas etc62.

Como se tudo estivesse estilhaçado, tem o ser apenas que penetrar, experimentar ou

experienciar uma imensa vacuidão. Experiência, mesma, que é a abertura para a vacuidade,

ou compreensão de vacuidade: “a dialética negativa de Nagarjuna propõe [...] a realidade que

não pode, todavia, ser revelada senão pela experiência, pela meditação”63 (MARTIN, 1989, p.

81, grifo nosso).

Em nossa passagem pela gênese e evolução do budismo é a prática da meditação que

nos será útil para um encontro com a poesia. Portanto, serão necessários desvios na complexa

literatura da escola Mahayana, principalmente em suas questões éticas e ontológicas e em

suas divergências com outras escolas budistas.

A abertura que a vacuidade possibilita é assim descrita por Fabrice Midal (2006, p.

119): “a via budista nos convida a penetrar no íntimo e a experimentá-lo de uma ponta à

outra”64. O que é, então, o meditar senão um voltar-se à atenção, à concentração e à paciência,

enquanto prática e disciplina mental. E o que pode o meditar? Um primeiro passo pode ser

dado sobre aquilo de que a meditação deve distanciar-se: tomar a meditação como propósito

de calma ao espírito, ou como propósito de fazer sentir bem. Esta é uma leitura abnóxia e não

muito satisfatória. Menos um método psicológico, mas sim um caminho de libertação, uma

via para melhor nos colocarmos perante o mundo.

61 O Mahayana compreende duas escolas: a madhyamika, fundada por Nagarjuna, e a Yogocara, por Asanga. Dos críticos franceses do budismo, a obra de Paul Magnin é, certamente, a que melhor traz um comentário detalhado e sucinto de toda escola Mahayana e seus movimentos (cf. MAGNIN, 2003, p. 351-409). 62 “Nagarjuna démontre que l’existence est aussi illusoire que la non-existence. Il en va de même pour la permanence et la non-permenence, le relatif et l’absolu, le composé et l’incomposé, le présent, le passé et le futur. Nagarjuna pose clairemente le príncipe de la non-dualité: les choses ne sont ni existantes ni inexistantes, ni composées ni non-composées, etc”. 63 “La dialectique négative de Nagarjuna vise à suggérer [...] la réalité que ne peut toutefois être reconnue que par l'expérience, par la méditation”. 64 “La voie bouddhiste nous invite à pénétrer dans l’intime et à l’éprouver de part en part”.

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Um comentário introdutório vem de Paul Magnin (2003, p. 94): “[...] facilitar a prática

da disciplina mental para erradicar a ignorância, obter a sabedoria e chegar à Iluminação, que

acompanha a cessação (nirvana) do ciclo de renascimentos”65. Magnin comenta como deve

ser conduzida a prática de meditação em uma comunidade budista (Sangha): com o esforço,

atenção e concentração justas, no intuito de eliciar qualquer tipo de distração – para usar uma

acepção pascaliana. Logo, a meditação, pela ótica de Magnin, abre o indivíduo para uma

pacificação interior e para uma “retitude” do comportamento, tanto em sua moralidade,

quanto em seu pensamento.

Embora a obra de Paul Magnin seja louvável pela abrangência da sumarização do tema

da meditação em todo o budismo, dentro da Índia e fora dela, como é o caso do budismo

chinês e do budismo tibetano, acompanhamos o firme trabalho de Fabrice Midal que, ao

debater a meditação, direciona o leitor para o pensamento Zen. Com Midal, portanto,

poderemos argumentar que a meditação não é apenas uma prática para alcançar a sabedoria,

mas uma prática do ver e do sentir o mundo.

Quando falamos em meditação e penetramos em sua sutileza e complexidade, afastamo-

nos de qualquer lance de objetividade das coisas para transcorrer um caminho esférico (ou um

caminho de subjetivação) rumo ao diálogo, ou “a ligação que se estende entre nós e o

mundo”66 (MIDAL, 2006, p. 317). Atar ou reatar o elo, a prática da meditação permite ao

indivíduo não só conhecer a si e a seu redor, mas também questionar a si próprio e o mundo, e

também: a celebrar o presente, o aqui e o agora, a abrir-se para a percepção. Podemos até

dizer que há uma relação de olhar na meditação: ao passo em que o praticante fecha os olhos

para meditar, abrem-se outros, no íntimo. Ver e sentir, mas também escutar: “a meditação nos

ensina a escuta preciosa do simples”67 (Ibid., p. 354).

Por isso, Midal está certo quanto à necessidade de “repensar” o sentido da prática da

meditação, isto é, abri-la para novas possibilidades de leitura. Uma meditação que, mesmo em

estado de atenção, veja, observe. Ou melhor: uma meditação observante “da distinção entre

aquele que olha e o que é olhado”68 (Ibid., p. 326). Certo também está Entai Tomomatsu que

dedica boa parte de sua obra, Le bouddhisme (1935), a repensar o sentido do próprio budismo,

não como algo do domínio intelectual e científico. É preciso vivenciá-lo no coração e senti-lo.

Vivenciar com os olhos, com o tato, com o pensamento. Não foi o próprio Buda quem erigiu

65 “[...] Faciliter la pratique de la discipline mentale pour éradiquer l’ignorance, obtenir la sagesse et parvenir à l’Éveil qui accompagne la cessation (nirvana) du cycle de renaissance”. 66 “Le rapport qui se déploie entre nous et le monde”. 67 “La méditation nous apprend l'écoute précieuse du simple”. 68 “La distinction entre celui qui regard et ce qui est regardé”.

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o seguinte ensinamento (Dharma): “[...] pensativo, percorro o mundo” (BUDA apud

PERCHERON, 1958, p. 94). E mais: “o budismo será compreendido por aqueles que o

sentirem a partir da experiência pessoal”69 (TOMOMATSU, 1935, p. 58). O que Tomomatsu

nos aponta, pois, é que a compreensão do budismo, ou o que ele chama de filosofia

meditativa70, não está apenas nos livros, embora eles indiquem caminhos, mas está na prática

e na experienciação. E se pudermos retomar a questão inicial, o que pode o budismo,

estaremos seguros em concluir que o budismo realça a cor da vida.

Agora, já na dobra do rio, cruzando as planícies, podemos reencontrar as pedras, tal

como na anedota de Paul Reps, e o que veremos é um budismo, de modo geral, como um

desafio ao pensamento e ao sentido. Se na anedota descrita por Reps o monge diz que tudo

não passa de uma objetificação das coisas, o budismo nos responderá, portanto, que é preciso

seguir um caminho para a exteriorização do interior. No terreno budista os caminhos são

longos e vários. É nas veredas da simplicidade, da precisão, da experiência e da libertação que

nos direcionamos para uma proveitosa tese de Fabrice Midal (2006, p. 15) de que “a crítica do

budismo deve ser primeiro uma crítica do olhar”71. Esta é a crítica do olhar que o Zen-

budismo irá dialogar, e a ela voltaremos adiante. Agora é possível, ainda sob a tese da crítica

do olhar como pano de fundo, que o budismo encontre a poesia.

Leminski não estava alheio a esse caminho Zen. Pelo contrário, assim como estava

atento ao haikai, Leminski estava atento para o diálogo que o próprio haikai permite com o

budismo. E não apenas isso, basta vermos as constantes citações e referências a Buda e ao

budismo em seus textos. Leminski escreve uma crônica para a Folha de São Paulo em 1985,

intitulada “Fala, frei Boff!”, em que faz um percurso pelo silêncio de Buda, passando por

Pitágoras, até Graciliano Ramos72. Essa mesma crônica Leminski transformou em versos,

intitulando “Variações para silêncio e iluminação”, que abre sua obra Ensaios e anseios

crípticos73. Em outro texto de 1985, “Carinhos e ternuras”74, há outra citação a Buda, como

também a Jesus. Um texto terno, quase búdico.

Pois bem: juntos, budismo e poesia parecem operar como um panóptico transparente –

sim, é preciso torná-lo transparente para que possamos zerá-lo, e só então zerado é que o

panóptico pode imbuir-se poeticamente. Como é próprio de todo campo de visão colocar em

69 “Le bouddhisme sera compris de ceux qui le sentiront par expérience personnelle”. 70 Cf. capítulo III sobre o budismo como filosofia meditativa (TOMOMATSU, 1935, p. 156-169). 71 “La critique du bouddhisme doid d’abord être une critique du regard”. 72 Cf. Anexo 3. 73 Cf. Anexo 4. 74 Cf. Anexo 5.

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xeque as fronteiras entre o visível e o não visível, aquilo que se vê e aquilo que é encoberto, é

salutar situarmo-nos: em que direção aponta o nosso panóptico?

Quando a poesia haikai põe em seu centro a natureza e constrói um modo de pensar o

real e a ele se mesclar, sua palavra carrega uma ação contemplativa. Não é a natureza apenas

um objeto alheável ao poeta, é a condição do fazer poético apenas mediante uma ação

contemplativa; a poesia oriental une-se à natureza e ambas formam um espaço de

contemplação, simplicidade, beleza e quietude. Aqui as linhas se encontram.

Um unir-se, mas também um habitar, heideggerianamente falando. A poesia haikai, tal

como o budismo, renuncia a toda forma de intelectualismo para fazer-se um elogio à

simplicidade, bem como renuncia à objetividade e ao “Eu”, ou a ilusão do “Eu”. Fabrice

Midal quando fala da arte oriental, em um vasto capítulo sobre o budismo frente à injunção da

modernidade poética, traça um bom panorama da presença do budismo na pintura até a “veia

búdica” na simplicidade dos beats, mas rejeita a poesia haikai, atribuindo-lhe apenas uma

nota sobre o difusor do gênero, Bashô. Em uma obra de fôlego como a de Midal, desprezar a

relação existente entre o haikai e o budismo é inscrever a descrença da importância do haikai

no horizonte do budismo.

Nunesianamente, o que pode o haikai aprender com o budismo? Com o budismo, a

palavra pode entrar em mendicância, palavra nômade. Mas também palavra fluida, palavra

solta, palavra livre, palavra nua. O haikai pode aprender com o budismo a experienciar o

mundo, palavra-experienciação, ou a “fazer irradiar sua abertura ao mundo”75 (MIDAL,

2006, p. 317). Por isso, nossa tese é que o haikai seja a fina flor da poesia. Contém sua beleza,

sua simplicidade e seu cheiro particulares. Em suma, com o budismo, que a palavra poética

medite. Que, percorrendo uma via de solidão e compaixão, mergulhe na vacuidade, absorta

em profundo êxtase. Abnegação, renúncia, sacrifício. Aí a palavra poética atingiu sua

iluminação (son Éveil). A poesia alcançou o satori.

Falar, então, de Matsuó Bashô, dos beats, de nossa literatura contracultural dos anos

1970, de Leminski, é falar de uma literatura que medita, de uma literatura que caminha na via

búdica e de uma literatura que, como diz Midal (2006, p. 333), goza na “liberdade

constante”76. A porta está aberta para o Zen-budismo e outros novos encontros com a poesia.

75 “Faire rayonner son ouverture au monde”. 76 “Liberté constant”.

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2.3 Movimento 3 – O caminho do meio

Um golpe de vento, chuva no orvalho, chão da encosta; o canto dos pássaros, flancos do

outono, rastros de areia; cerrados tranquilos, névoa densa arredor, pardais nos ciprestes. As

vértebras da terra: a primavera por detrás da pedra, corvos, sapos desiderativos, folhas tantas,

mil milhas de trovas, avifauna ávida. Finalidade pétrea. O duro. O tronco. A raiz. Esta que,

entranhada no solo, é a base, mas também o profundo da árvore. Raízes nodosas de uma

árvore em devir. Imagens primordiais – se tais imagens podem levar o leitor a uma

profundidade que é própria da subjetividade do pensamento budista, em especial do

Mahayana, podemos aventurar-nos, no campo das confluências, na hipótese de que elas

participam da imaginação literária.

Fruto direto do budismo chinês – que tinha uma visão mais realista e prática da

existência77 – e fruto indireto da escola Mahayana, por beber em sua subjetividade e em seu

fino trato com a vacuidade, o Zen, dentre o budismo, foi o que mais despertou interesse no

pensamento ocidental, interesse mais voltado para a prática da meditação. Não obstante, o

Zen pouco se popularizou no Oriente. Considerado por Humphreys como a apoteose do

budismo, por ter o propósito de ultrapassar o intelecto, isto é, uma passagem do pensamento

para o conhecimento, o Zen pode ser compreendido como “uma brecha nas portas fechadas da

mente que permita a entrada da luz sem inundação” (HUMPHREYS, 1949, p. 209). Sua

filosofia – tenhamos em mente filosofia não em seu uso habitual, como racional e conceitual,

mas pensemos em “filosofia zen” como seu potencial filosófico – joga com as percepções e

com as sensações, o que dará ao Zen um caráter peculiar por volver-se para o silêncio e para o

nada.

Há muito, o Zen foi encerrado nos confins da compreensão, ao mesmo tempo em que

pensadores, ocidentais e orientais, buscavam transcodificá-lo. Toshihiko Izutsu, pesquisador

do Zen-budismo e do budismo chinês, e a quem gostaríamos de dar certa atenção, ainda não é

conhecido em língua portuguesa e estranhamente é autor de uma obra pouco difusa, Hacia

una filosofía del budismo Zen (2009), que nos valerá para uma passagem no Zen com vista à

poesia. A primeira questão que Izutsu coloca, debate pelo qual o Zen por muito se interessou,

é a relação funcional entre sujeito e objeto. Se por um lado temos as dicotomias sujeito/objeto

e homem/mundo exterior, por outro, o Zen não quer instituir uma realidade transcendental, ou

suprassensível, que seja destoante de nossa realidade empírica e sensível – que é, pois,

mediada pelo intelecto. O que faz o Zen é questionar o princípio de identidade (A é A). Uma

77 Cf. Paul Magnin (2003, p. 411-469).

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pedra, ou uma flor, é o objeto, e aquele que olha é o eu empírico, o sujeito. O que busca o Zen

é uma correlação entre sujeito e objeto, “um estado que não é nem subjetivo nem objetivo,

um estado em que o sujeito e o objeto, o homem e a flor, se fundam em um modo

indescritivelmente sutil, em uma unidade absoluta”78 (IZUTSU, 2009, p. 19). Certo é que,

para isso, é preciso ver o objeto não com a mente, mas com a não-mente79, que é fonte de uma

“visão de mundo não essencialista”80 (Ibid., p. 24). Daí a riqueza e argúcia do pensamento

Zen, pois assim “o homem, neste sentido, é o lugar da realização de todo o universo”81 (Ibid.,

p. 60, grifo do autor).

Fusão, mas também integração, união. O ser-no-mundo, o ser-aí, o Dasein de

Heidegger, que olha uma montanha, mas também a possibilidade de a montanha olhar o ser.

Muito embora esta correspondência sujeito/objeto não esteja apenas no âmbito do pensamento

Zen: está na pintura, na poesia, no haikai. Esta completa unificação, particular do Zen, é

assim chamada por Izutsu de o chegar a ser das coisas. Se um pintor vai pintar uma árvore,

ou um poeta vai escrever um bambu (mais próprio à poesia escrever um bambu a escrever

sobre um bambu), o pintor deve chegar a ser a árvore, o poeta deve chegar a ser o bambu.

Izutsu recorre à imagem de um rio para descrever este chegar a ser:

Não se pode chegar a ser água porque a observados por fora, quer dizer, porque o ego, como um espectador, observa a água como um objeto. Ao invés de atuar deste modo, prossegue o Zen, primeiro deve-se aprender a esquecer o próprio ego-sujeito e a deixar-se absorver completamente pela água. Então, transcorreria como um rio82 (Ibid., p. 79, grifos do autor).

Ora, não nos parece que esse chegar a ser, mediado pelo olho, olhar, é muito próximo

daquilo que Alfredo Bosi (1988, p. 66) falou do olho como uma “fronteira móvel e aberta

entre o mundo externo e o sujeito”? Quando Bosi faz uma leitura do olhar nos gregos antigos,

o que ele chama de “educação do olhar” (Ibid., p. 70) não soa tão próprio ao olhar budista?

Ainda na operação do olhar, um filósofo que muito firmou afeto com as modulações do olhar

78 “Un estado que no es ni subjetivo ni objetivo, un estado en que el sujeto y el objeto, el hombre y la flor, se funden en un modo indescriptiblemente sutil en una unidad absoluta”. 79 Toshihiko confronta a lógica (aristotélica) com a lógica Zen, com o princípio de não-contradição a partir de exemplos didáticos, como “uma montanha é uma montanha” e “uma montanha não é uma montanha”, logo, diz Toshihiko, “A es tan completamente A misma que ya no es A” (2009, p. 37). 80 “Visión del mundo no esencialista”. 81 “El hombre, en este sentido, es el lugar de la realización de todo el universo”. 82 “No se puede llegar a ser agua porque la observamos desde fuera, es decir, porque el ego, como un espectador, observa el agua como un objeto. En lugar de actuar en este modo, prosigue el Zen, primero se debe aprender a olvidar el propio ego-sujeto y a dejarse absorber completamente por el agua. Entonces discurriría como el río”.

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para com a natureza foi o egípcio radicado na Roma Antiga Plotino. Exegeta de Platão83,

Plotino dedicou um longo trabalho sobre os movimentos hipostáticos de processão e retorno

ao princípio (arché), embora deixando uma única obra composta de seis tomos, as Enéadas.

Olhar para o mundo sensível, a nossa volta, mas não “com os olhos do corpo”84, alerta Plotino

(1998, p. 249), e sim com os olhos da alma, o olhar que contempla a beleza e as virtudes. Um

olhar atento e concentrado, como se pode verificar na instigante metáfora feita por Plotino na

Enéada VI (1998, p. 549) de uma orquestra que, se desvia o olhar do maestro, há desarmonia,

mas “se o olhar a ele se volta, canta esplendidamente”85. Mas é no tratado 8, “Sobre a

natureza, a contemplação e o Uno”, da Enéada III que temos o ápice da modulação do olhar

em Plotino. Eis a tese de que tudo contempla, e tudo está em contemplação. “[...] Todos os

seres desejam contemplar e visam a este fim, tanto os seres racionais quanto os animais, e até

mesmo as plantas e a terra que as engendra”86 (PLOTINO, 2002, p. 257). Toda a phýsis

contempla, mesmo que de modos diferentes e à sua maneira. A cabal tese plotiniana de que

“toda a realidade, portanto, é contemplação e silêncio” (REALE, 2012, p. 135).

O dorso da experiência plotiniana, do ponto de vista do olhar e da contemplação – e que

é, na verdade, uma “experiência ética e metafísica da contemplação do Belo penetrada pelo

Bem”87 (NARBONNE, 2012, p. 14) – e o problema Zen do sujeito/objeto, ambos no centro

do círculo e sem entrarem em atrito neste ponto, já podem agregar o haikai para o desvelar do

mundo:

Ao descrever uma flor, uma árvore ou um pássaro, o poeta ou o pintor expressam a iluminação cósmica da pura consciência. Uma flor descrita deste modo não é uma flor objetiva. É outra coisa. É algo que se realiza neste momento como uma flor, mas que poderia também realizar-se como ‘eu’. Esta é a natureza do puro eu segundo o pensamento Zen [...], [pois] a flor e o Eu são a mesma e idêntica coisa [...]88 (IZUTSU, 2009, p. 80).

Tocar no âmago das coisas e integrar-se a elas é muito mais que uma partilha, consiste

em dividir os segredos, os mistérios, os desejos – já que a vida, para o budismo, é baseada na

plena união. Teitaro Suzuki (1976a, p. 21), já consagrado pela crítica do budismo, diz que “o

83

Sem dúvida, eis a originalidade de Plotino e do neoplatonismo, ao fazer exegese das ideias platônicas e ao mesmo tempo hierarquizando a concepção platônica de “real” (cf. REALE, 2012, p. 11). 84 “Sin los ojos del cuerpo”. Enéada VI, tratado 2, capítulo 8. Edição espanhola de Jésus Igal. 85 “Mientras que si se vuelve, canta hermosamente”. Enéada VI, tratado 9, capítulo 8. 86

“Tous les êtres désirent contempler et visent a cette fin, les êtres raisonnables comme les bêtes, et même les plantes et la terre que les engendre”. Enéada III, 8, 1. Edição francesa de Émile Bréhier. 87 “Une expérience éthique et métaphysique dans la contemplation du Beau pénetré par le Bien”. 88 “Al describir una flor, un árbol o un pájaro, el poeta o el pintor expresan la iluminación cósmica de la pura conciencia. Una flor descrita de ese modo no es una flor objetiva. Es otra cosa. Es algo que se realiza en este momento como una flor pero que podría también realizarse como ‘yo’. Ésta es la naturaleza del puro yo según lo entiende el Zen [...], [pues] la flor y el yo son la misma e idéntica cosa”.

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enfoque Zen consiste em penetrar diretamente no objeto e vê-lo, por assim dizer, por dentro.

Conhecer a flor é tornar-se flor, ser flor, florescer como flor”. Ver o objeto por dentro é

experimentá-lo, “experienciá-lo”, ou ainda, é “ver por meio de olhos dotados de prajna

[sabedoria] [...], que nos permite penetrar bem no fundo da própria Realidade” (SUZUKI,

1976b, p. 49). Eis o ensinamento da filosofia budista, abolir um olhar analítico. Ora, Alan

Watts, notável pesquisador britânico e um dos difusores do budismo em língua inglesa,

menciona que, para a prática do Zen, é preciso banir os conceitos e “ver o mundo sem eles.

Depois que descobrimos essa nova visão, podemos elaborar novos conceitos” (WATTS,

2009, p. 83); só assim que o Zen nos direciona a uma visão por inteira do mundo, uma visão

do mundo “de maneira nova” (Ibid., p. 93), ou então, de maneira outra.

Perguntamos: não é a poesia quem também toca no essencial da realidade? A poesia

também não penetra no “dentro” das coisas, que nossos olhos habituais não podem ver? Pode

a poesia também ver por dentro? “Ver não basta. O artista precisa entrar na coisa, senti-la

interiormente e viver-lhe a vida” (SUZUKI, 1976a, p. 23). Se a poesia pode penetrar nesses

espaços e a eles se incorporar, podemos dizer que o caminho do haikai é o caminho do Zen.

Quando o poeta Matsuó Bashô fala do sapo, que mallarmaicamente pula no poço, ou do corvo

estacionado na rama seca, a poesia torna-se o sapo, torna-se o corvo, para ser o caminho

(Tao) em direção à natureza do poço e da rama seca. Assentamento. É a esse estreito laço

entre haikai e Zen que Rodríguez-Izquierdo diz que o haikai é pleno de iluminação (satori) e

possui uma “natureza búdica”89 (RODRÍGUEZ-IZQUIERDO, 2010, p. 131).

Talvez o indivíduo possa inferir que seja absurdo, cientificamente, logicamente, o “Eu”

e o objeto serem os mesmos em absoluta correlação, ou o próprio Zen ser ilógico – o que faz

ser o Zen, para alguns, algo inacessível. O Zen está carregado de exemplos que alimentam o

campo da ilogicidade, como os koans, pequenas anedotas que funcionam como exercícios, ou

enigmas, e que estão repletas daquilo que Toshihiko chama de sem-sentido90. Talvez o melhor

koan para ilustrar a ilogicidade do Zen seja um clássico koan de Shan-hui, poeta chinês do

século V:

Observai a pá nas minhas mãos vazias Enquanto montado num touro vou andando a pé Quando passo sobre a ponte não é a água que corre, E sim a ponte (SHAN-HUI apud SUZUKI, 1961, p. 59).

89 “Naturaleza búdica”. 90 Cf. o capítulo “El sentido y el sinsentido en el Budismo Zen” (2009, p. 81-108).

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O koan responde diretamente ao coração da lógica. Pode uma ponte mover-se? A

articulação da linguagem que o koan procede tira as coisas do lugar, move o imóvel, estilhaça

as linhas para todos os lados. Quando o Zen argumenta que o homem pode absorver-se pelas

águas do rio e chegar a ser rio, ele toca no centro da lógica, ou o que Suzuki aponta para a

escravidão da lógica: “enquanto permanecemos assim escravizados somos miseráveis e

sujeitos a indizíveis sofrimentos [...]. Temos de fazer o possível para conquistar um novo

ponto de vista [...]” (Ibid., p. 63). O que fazer? Como deixar levar-se pela ponte? O Zen

aponta, então, para um caminho de liberdade: de antíteses, dualismos, lógicas, dogmas.

Suzuki igualmente responde: “caso estejas habituado a pensar logicamente, de acordo com as

regras do dualismo, liberta-te delas e chegarás a algo parecido com o ponto de vista Zen”

(Ibid., p. 92).

Os koans, e inclusive os haikais, causam certo desconforto justamente por conduzirem o

leitor a esse caminho de libertação, no terreno do pensamento – vale notar que o próprio

Rodríguez-Izquierdo (2010, p. 141) afirma que o haikai “goza de grande liberdade”91. Isto é,

no plano lexical, onde se encontram poucos adjetivos, advérbios ou pronomes, figurando mais

substantivos e verbos no infinitivo. Em termos Zen, a resolução dos enigmáticos koans e a

esquiva à lógica dão um caráter de dinamicidade ao Zen, quer dizer, a resolução e a

compreensão de um koan são encaradas como uma forma de meditação e caminho para a

iluminação, mas não uma meditação estática, em posição sentada como é clássica no

budismo, e sim uma meditação dinâmica92. O próprio Leminski (1986, p. 22), em uma crônica

para a Folha de São Paulo, diz do koan: “que são os ‘koans’, historietas exemplares do Zen,

senão anedotas, de um humor superior e transcendental?”. Ainda de acordo com Toshihiko

Izutsu, para resolver um koan e resolver o impasse da escravização da lógica no praticante

Zen, é preciso purificar a mente e discipliná-la, ou melhor, é preciso “um rigoroso e metódico

adestramento da mente. Não só é necessária a purificação de todos os pensamentos na mente

que a distrai, mas também a purificação dela mesma”93 (IZUTSU, 2009, p. 134). Tarefa nada

fácil ao pensamento, pois (questão semiótica) se tudo que está à mente é pensamento, um

pensamento que sempre se aprimora com o diálogo, com o pensamento do outro, como pensar

algo impensável? Como livrar a mente do pensamento? Ora, se o pensamento é sempre um

pensar em algo (objeto), então o pensamento Zen é um não-pensamento, ou como sublinha

91 Goza así de gran liberdad”. 92 Das escolas dentro do Zen-budismo, o Rinzai (introduzido no Japão entre os séculos XII e XIII) é o que adota este tipo de meditação dinâmica por meio de resolução de koans para alcançar a iluminação (satori). 93 “Um riguroso y metódico adiestramiento de la mente. No solo es necesaria la purificación de la mente de todos los pensamientos que la distraen, sino la purificación de la mente misma”.

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Izutsu (2009, p. 137) “um pensamento sem objeto”94, que só é alcançado com a supressão do

sujeito, do ego, do “eu empírico”. O que há depois da travessia? Quer dizer: o que há depois

da supressão do “eu empírico”? O Nada (sunyata), a vacuidade.

Anulado o eu empírico, o Nada se afirma não como algo oco na mente humana. O Nada

não se afirma em um mundo articulado linguisticamente, mas em uma “realidade pré-

linguística”95 (IZUTSU, 2009, p. 98). Quando, no koan do poeta Shan-hui, é a ponte quem se

move e não o rio, a compreensão intelectual de que a ponte é imóvel não cabe, não é

suficiente. É preciso “transcender o estágio do homem”96 (Ibid., p. 125), para ver a não-ponte.

Certo é que esta é uma visão bastante sucinta do sunyata e a ele lançaremos um breve

comentário a partir de dois pontos de vista: primeiro, do ponto de vista do pensamento

oriental, o debate acerca do Nada (ou da nadidade) ganha força na chamada Escola de Kyoto,

surgida no início do século XX em torno do filósofo Kitarô Nishida. Em Pensar desde la

nada (2006), por exemplo, Nishida propõe que o reconhecimento de si mesmo (o despertar

para si mesmo) nos joga para a condição de autoidentidade contraditória, “um mundo em que

os contrários se identificam” (NISHIDA, 2006, p. 27)97, mundo que é autodeterminação do

presente absoluto e em que os opostos se conciliam. Mas um mundo dinâmico que se expressa

a si mesmo, dentro de si mesmo e a partir de sua própria autonegação. Ou como lembra

Marcos Müller (2009, p. 160, grifos do autor): “essa contradição de que somos por meio do

conhecimento de nossa nadidade só é uma autocontradição absoluta quando o saber de nossa

morte perene, eterna, torna-se o fundamento originário do nosso si-mesmo”.

Com Nishida, e dentro deste “presente absoluto”, em um centro dentro de infinitos

círculos, podemos fazer inferência a um existir sendo nada, um nada que é “mais real do que

eu ou o mundo a que pertenço” (BEZERRA, 2008, p. 37, grifos do autor). Seguir com Nishida

é seguir com o despertar para a nadificação, para a vacuidade absoluta, para o “renascimento

de uma concepção de mundo surgida da negação absoluta (Nada)” (Ibid., p. 38). Nos jardins

de Kyoto percorre-se um mundo em que o nada é o ponto de partida para a verdadeira

existência, em que a vida converte-se em arte, em que sujeito e objeto estão juntos, e que

“indubitavelmente não haveria diferença, no plano da experiência, entre arte e religião”98

(VEGA, 2002, p. 35).

94 “Un pensamiento sin objeto”. 95 “Realidad pre-linguística”. 96 “Trascender el estadio del hombre”. 97 “El mundo en el que los contrarios se idenfican”. 98

“Indudablemente no habría diferencia, en el ordem de la experiencia, entre arte y religión”.

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O Nada, o mu-ga (não-eu), ou ainda um caminho para a beleza: “esta vivência de estar

fora de si é o elemento essencial da percepção da beleza”99 (NISHIDA, 2006, p. 14). Negar-se

e esvaziar-se para abrir-se a outra realidade, mais profunda. Negar-se que é despersonalizar-

se, como diz o próprio Leminski: “‘Mu-ga’ é ‘despersonalização’, a condição para a

verdadeira criação artística, que se dá, pura, quando a ‘persona’, a máscara convencional do

nosso eu, cai e aflora a força original e indeterminada da nossa natureza [...]” (LEMINSKI,

2012, p. 380). Não é o próprio haikai que opera pelo caminho do mu-ga, despersonalizando,

em direção ao nada?

Segundo: já do ponto do vista da filosofia ocidental, o debate em torno do Nada

atravessou muitos pensadores, da ontologia clássica à Heidegger, além de pensadores que

possibilitaram um frutífero diálogo com o pensamento Zen, como o desprendimento em

Mestre Eckhart. O filósofo alemão Heidegger, nos primeiros capítulos de sua obra capital Ser

e Tempo (2011a), já expõe seu projeto de superação da metafísica ao ler a história da

ontologia e assumir a tarefa de destruí-la, não na acepção negativa de demolir a ontologia

clássica, mas de “definir e circunscrever a tradição em suas possibilidades positivas”

(HEIDEGGER, 2011a, p. 61), como consta no parágrafo 6. A questão é que a própria gênese

da metafísica é marcada pelo esquecimento do ser, por isso o tratado heideggeriano aponte

justamente para a formulação da questão do ser. A questão metafísica que Heidegger se

detém em alguns momentos da primeira seção de Ser e tempo e mais na segunda seção é a

questão do nada. Se nos reportarmos aos parágrafos 40 (primeira seção) e 53 (segunda seção),

vemos que a abertura para o nada é a angústia. No parágrafo 40, Heidegger (Ibid., p. 254) diz

que a “angústia singulariza o Dasein em seu próprio ser-no-mundo que, em compreendendo,

se projeta essencialmente para possibilidades”, isto é, angustiando-se – pois o existir é sempre

fatídico – que o Dasein (o ser-aí) se vê diante de seu absolutamente nada. Já no parágrafo 53,

o nada, trazido pela angústia, desvela o fundamento do Dasein como ser-para-a-morte; diz

Heidegger: “Na angústia, o Dasein dispõe-se frente ao nada da possível impossibilidade de

sua existência [...], [pois] o ser-para-a-morte é, essencialmente, angústia” (Ibid., p. 343). Uma

angústia que só cresce e só abre a insignificância do mundo100. O problema do nada na

ontologia de Heidegger é: o nada é originário ao Ser, pois o Ser é nada, o homem pertence ao

nada, chega-se ao nada pelo Ser, assim como se chega ao Ser pelo nada. Um comentário de

Peter Pelbart (2013, p. 144) acerca da questão heideggeriana do Ser parece claro: “sua

99 “Esta vivencia de estar fuera de sí es elemento esencial de la percepción de la belleza”. 100 Cf. o extenso parágrafo 68 de Ser e tempo (2011a, p. 421-438).

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mediação visa reconduzir o homem à posição de guardião desse Nada que não é um Nada,

mas Ser”.

Posteriormente à publicação de Ser e tempo, é na preleção de 1929, Que é metafísica?

(1989), que Heidegger levantará a pergunta pelo nada, com o objetivo de apresentar a

metafísica. Se a ciência se ocupa única e exclusivamente do ente, o nada não lhe interessará.

Se a metafísica representa e interroga o ente, o nada é, então, negação da totalidade do ente. A

elaboração da questão por Heidegger é: primeiro, não se pode confundir o nada com a

negação, ou um ‘não’, pois o nada é mais originário que a negação; segundo, se o nada é

negação do ente em sua totalidade, não é pela fórmula “pensar o ente/negar o ente/pensar essa

negação” que se chegará ao nada, o que Heidegger chama de um “nada figurado, mas jamais

o próprio nada” (HEIDEGGER, 1989, p. 38). É então que a preleção de Heidegger dialogará

com Ser e tempo na tomada da angústia como abertura e manifestação para o nada. Angústia

que é sempre diante de algo (indeterminável, mais geral) e nunca diante disto (mais particular,

determinável). A resposta de Heidegger é que a angústia – que mais se aproxima de um

grande e pesado tédio101 que abala nossa existência – suspende o ser-aí (Dasein) e “põe em

fuga”102 o ente em sua totalidade. O Dasein suspenso no nada se relaciona com o ente. E o

nada é, então, a possibilidade de revelação do ente. Quer dizer: o estar suspenso no nada do

Dasein “é o ultrapassar do ente em sua totalidade: a transcendência” (Ibid., p. 42). É o Dasein

transcendente porque ultrapassa o ente (tese de Heidegger da liberdade do poder-ser).

Revelado o nada (Heidegger encerra o Posfácio de Que é metafísica? aproximando o

poeta do pensador e escrevendo que o nada é o véu do ser103), podemos averiguar melhor a

relação do haikai com o nada na zona de convergência entre Zen-budismo e poesia, isto é,

tomar o haikai como experiência do nada. Para isso, vejamos se é possível o nada e o silêncio

se avizinharem; se é a poesia uma experiência do nada, mas também uma experiência do

silêncio. No olho do furacão, para usar uma metáfora plotiniana104, falar do silêncio é, a

princípio, falar daquilo que em si não se denomina, daquilo que silencia o verbo. É o que a

mente ocidental entende por silêncio, algo mudo, sem verbo, que não comunica. É possível

transcender a isto? Essa foi a incumbência de um poeta argentino e ensaísta, Santiago

Kovadloff (2003), a partir de sete experiências em direção ao silêncio primordial, ou silêncio

extremo, e à transcendência deste silêncio no campo da poesia, da psicanálise, da matemática, 101 Heidegger dedica quatro capítulos da primeira parte da obra Os conceitos fundamentais da metafísica (2011b) ao tédio em diversas formas, além de formular a pergunta sobre o tédio profundo que é determinado de nosso ser-aí. 102 Cf. Heidegger (1989, p. 39). 103 Cf. Ibid., p. 51. 104 Cf. Plotino, Enéada VI, 9, 3 (1998, p. 78).

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da música, da pintura, da fé e do amor. O ganho de Kovadloff, e que nos interessa, é a

desarticulação do silêncio habitual para expor-se ao silêncio extremo, vivenciá-lo em sua

nudez105. E se com a música, que para Kovadloff é um silêncio audível (já que no transcender,

o silêncio não é ausência de som), é possível mergulhar em uma espécie de sossego da alma,

uma “plenitude que supera a aptidão compreensiva” (KOVADLOFF, 2003, p. 75-76),

estamos diante da compreensão oriental do silêncio, onde “o homem que habita este silêncio

presume estar em contato pleno com a realidade; com a compreensão da realidade” (Ibid., p.

117); Com Kovadloff e com o Oriente, é possível escrever o silêncio, mas também vivenciá-

lo, habitá-lo.

Silêncio extremo também denominado por Kovadloff, em uma assertiva heideggeriana,

como “patência do nada” (Ibid., p. 48). Nada, para o ensaísta argentino, é o zero, o zero

matemático, “a expressão matemática do silêncio” (Ibid., p. 98). Indecifrável, inclassificável,

indistinguível, incontabilizável, ausente de magnitude, o zero é “o nada em que se abriga o

mistério da origem e que, como tal, precede o um” (Ibid., p. 100). Isto porque o um já é

diverso do zero, já é magnitude, já é lógico. Kovadloff não vê confluência entre o que chama

de zero e Deus (podemos lembrar o Uno plotiniano, a unidade primeira), abre mão de uma

investigação de paridade entre ambos para aproximar o zero, o vácuo, o nulo, do pensamento

oriental; zero (silêncio primordial) como iluminador, como “o essencial, o Tao” (Ibid., p.

112). O zero é Zen em potencial. Se a proposição “ver sem enxergar” é propriamente cabível

no Zen, o zero não quer dizer ausência de presença, como podemos habitualmente pensar na

lógica ocidental, o zero é presença.

Na angular das conclusões, não é o haikai uma experiência do silêncio primordial (o

zero) e do nada? Na escritura a palavra pode encontrar o silêncio. Trajetória do poema, que

segundo Santiago Kovadloff, “vai do silêncio ao silêncio. De um silêncio a outro silêncio”

(Ibid., p. 23). O poema parte do silêncio e se encontra com outro silêncio que o nutre, que o

sustenta. Partir do silêncio é também extrair do nada, um nada “longe de ser ausência ou

vazio, é radical alteridade” (Ibid., p. 29). Podemos dizer que a escritura carrega o silêncio,

assim como nos diz o crítico literário Maurice Blanchot em uma tese de que o autor escreve

para alcançar o silêncio, pois “a literatura pretende fazer da linguagem um absoluto e

reconhecer nesse absoluto o equivalente do silêncio” (BLANCHOT, 1997, p. 67). Um

silêncio que só se alcança “a partir das palavras e como o sinal essencial de sua realização”

(BLANCHOT, 1997, p. 67). Em outro momento, diz-nos ainda Blanchot que “a arte parece

105 Cf. Kovadloff (2003, p. 49).

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então o silêncio do mundo, o silêncio ou a neutralização do que há de usual e de atual no

mundo” (BLANCHOT, 2011, p. 41), o que, para o autor, o silêncio na arte seria a verdadeira

comunicação, pois “só há linguagem no silêncio” (BLANCHOT, 1997, p. 70).

Se considerarmos experiência como uma forma de saber, podemos inclusive destacar a

sua etimologia: ex (peri) ência, que evoca o radical latino peri, que, como seu correspondente

grego peira, significa obstáculo, dificuldade. Significado que remonta ainda a palavra latina

periculum que quer dizer perigo e também o verbo aperire que, em língua portuguesa,

significar abrir106. Nesta trilha, podemos dizer que o haikai, enquanto experiência, é um abrir-

se ao silêncio e ao nada; o perigo, neste caso, nada mais constitui-se que levar o leitor a diluir-

se no silêncio extremo, a banir a costumeira objetividade, a despir os habituais olhos, e assim

imergir no nada absoluto, ou um “nada transcendente” (BEZERRA, 2006, p. 95).

Entre a poesia haikai, o budismo e o Zen-budismo, podemos argumentar que a grande

lição que o pensamento budista deixa para a literatura é o fazer-se experienciação do mundo,

ou como diz Fabrice Midal (2006, p. 316), “fazer irradiar a abertura para o mundo”.

Certamente, o pensamento budista contribui para ver melhor, e com olhos outros, a poesia, a

sentir melhor a poesia. Se o budismo ajuda a cada indivíduo a descobrir seu próprio caminho,

um budismo que a cada dia se reinventa, que a poesia possa, na trilha Zen, reinventar a cada

dia seus caminhos em sua abertura ao mundo. Entre budismo e poesia, um caminho para o

coração do mundo pela palavra meditante.

Uma luz para apêndice. Das obras que compõem o nosso corpus de investigação, vê-se

que Caprichos e relaxos pede silêncio já na epígrafe, o que será decisivo para fazer da própria

epígrafe um fio condutor do tema na obra, um elemento participativo do conjunto – fio que

encerra sua jornada zen-budista em La vie en close, que é uma homenagem à cultura nipônica

e seus ídolos.

Aqui, poemas para lerem, em silêncio, O olho, o coração e a inteligência. Poemas para dizer, em voz alta. E poemas, letras, lyrics, para cantar. Quais, quais, é com você, parceiro. (LEMINSKI, 1983a, p. 8).

A epígrafe logo nos conduz ao silêncio e convida o leitor para escolher o caminho a

seguir. O olho, o coração e a inteligência, os três elementos próprios do Zen-budismo. Ver,

sentir e meditar. Poesia para iluminação. E mesmo que se cante, que o canto seja de silêncio

primordial, pois até mesmo a voz é silêncio. Pois o silêncio é o mais importante discurso. Que

106 Para uma maior fundamentação do conceito de experiência, consultar Rocha (2008, p. 101-116).

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a leitura se faça satori, que o satori se faça caminho, relâmpago na consciência. E que o

haikai, em união com a natureza e pelo caminho do mu-ga, se transforme em experiência

narrada de uma phýsis contemplante.

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Capítulo III

UMA VIDA DE CAPRICHOS E RELAXOS

Nós chegamos demasiado tarde para os deuses e demasiado cedo para o Ser. Deste, o homem é poema começado.

(Martin Heidegger, Da experiência do pensar, 1969, p. 31).

Em uma carta de um julho de 1979 endereçada ao poeta Régis Bonvicino, Leminski nos

dá uma pista de seu processo criativo: “não quero uma forma pura: quero um híbrido, um

mutante” (LEMINSKI, 1999, p. 142). Ler a poesia de Leminski é deparar-se com uma poesia

que inventa e se reinventa. Aliás, podemos dizer que a própria poesia da década de 1970

inventou e se reinventou. Talvez o melhor ensaio de Leminski que capte a atmosfera desta

década seja o “Boom da poesia fácil”107. O desbunde. A loucura. A contracultura. O

underground. A resistência cultural. A pura curtição. Se o momento era de agruras, a farra da

poesia, palavra tão bem empenhada por Antonio Risério (2005, p. 26), quis trazer o popular,

num misto de novidade e liberdade, “liberdade de linguagem, de pensamento, de vida”

(LEMINSKI, 2011, p. 73). Trouxe também um estranhamento: “isto é poesia?”.

Estranhamento principalmente àqueles que engavetam a literatura nos departamentos de

semiologia. A farra da poesia da década de 1970 questiona os limites da própria poesia: “o

que deve conter no poema?”. Não por menos, eis sua herança antropofágica dos modernistas.

No meio do torvelinho é que as indagações de Glauco Mattoso, oswaldianamente humoradas,

alfinetando o calcanhar parnasiano, se fazem urgentes: poesia tem que ter estrela? Poeta tem

que ser estrela?108

Esse é o contexto que deságua em Caprichos & Relaxos109. Publicado em 1983, é o

primeiro livro de Leminski, quer dizer, a primeira publicação em grande tiragem, feita pela

Editora Brasiliense, embora reunisse outras obras independentes publicadas pelo autor na

década de 1970. O que dá um caráter de importância a Caprichos é justamente ser uma obra

que reúne a produção de um momento de transição de uma década para outra – década que,

diga-se de passagem, foi a efervescência da produção poética de Leminski. A obra constitui-

se de sete seções. A primeira seção, homônima, contém poemas de versos mais longos e com

um tom mais prosaico, que como lembra Manoel Ricardo de Lima (2002, p. 101), é a sua

107 Cf. Leminski (2011, p. 59-65). 108 Cf. Mattoso, capítulos 1 e 7 (1982). 109 Cf. Anexos 6 e 7, duas matérias de 1983 na Folha de São Paulo sobre a recepção crítica de Caprichos & Relaxos. A primeira, de Cida Taiar, faz um panorama do interesse de Leminski pela popularização da arte, sua estética, até seu lado judoca; a segunda é de Nelson Ascher, que sublinha um Leminski experimentador da linguagem.

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herança dos beats. Já a seção seguinte, Polonaises, traz poemas que olham mais diretamente

para o social, para a dor (dureza) do cotidiano, mas que também sentem por isso e se

envolvem em um invólucro de nostalgia – a própria epígrafe de Polonaises dá a pista, esse

movimento tão rosiano: “choveram-me lágrimas limpas, ininterruptas” (LEMINSKI, 1983b,

p. 45). Vale sublinhar que as duas primeiras seções não trazem nenhum haikai, que aparecerá

nas cinco seções seguintes e com intensidade nas duas primeiras. Haikais que inscrevem a

noite, a natureza, o movimento das coisas, haikais para serem vistos e sentidos, ou melhor,

experienciados. Deste modo, daremos atenção aos haikais das seções Não fosse isso e era

menos. Não fosse tanto e era quase e Ideolágrimas a partir de três ângulos: o primeiro,

destacando um Leminski noturnal, uma poesia que vive, ouve/escuta a noite, quer dizer, é

noite; o segundo, que chamamos de haikoans, quando a poesia se encontra com o enigma dos

koans Zen-budistas; o terceiro, o vazio, quando a sua poesia encontra o caminho do meio, isto

é, quando se dá a vivência do nada.

3.1 Ângulo 1 - Leminski noturnal.

A noite. Quantos poetas, de diferentes gerações, nações e estéticas, não escreveram sob

a inspiração da noite. Quantos poetas não a cantaram. Quanto simbolismo não há na noite.

Noite dos apaixonados, dos loucos, do sono, dos insones, da solidão, da morte. Se uma face

da noite é o abrigo dos românticos e dos parnasianos, que ouvem as estrelas e que a própria

beleza do mundo é estelante, a outra face da noite é dos spleens românticos, das cavernas, do

negrume. Se uma face da noite é a esperança do sono (conforto), a outra é a pura melancolia

(desespero). Silêncio. Noite morta, para lembrarmo-nos do simbólico poema de Manuel

Bandeira110, e ainda: noite trágica. Diante desta dupla face da noite, ou da armadilha da noite,

para sermos mais blanchotianos, uma escritura que se faça noturna quer dissipar-se em sua

escuridão, pois na noite tudo deságua e se acaba. Uma escritura noturna deseja, então, diluir-

se neste imenso silêncio noturnal – o que para Blanchot seria propriamente oportuno para a

literatura, diluir-se para depois, dos escombros, reerguer-se. Selecionaremos dois haikais de

Leminski que seguem este encontro com a noite. Encontro que mais parece uma união. O

primeiro haikai encontra-se na seção Não fosse111; o outro se encontra em Ideolágrimas.

110 Poema “Noite Morta” (BANDEIRA, 1986, p. 89). 111 A partir daqui, usaremos esta abreviatura para a seção Não fosse isso e era menos. Não fosse tanto e era quase.

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A noite me pinga uma estrela no olho e passa (LEMINSKI, 1983b, p. 73).

O primeiro verso já inscreve a síntese: o espaço da noite. Que é também um espaço de

silêncio. Pelo poema, a noite nos fala. Diz. E se diz. Diante da noite, o poema a olha, a

contempla, a deseja, quer se unir a ela, integrar-se. Neste espaço que o poema quer cantar a

noite. Ser noite. Mas há um movimento contrário, que é dado pelos versos seguintes, ou seja,

há um duplo movimento de olhar. Não é apenas o poema quem olha para a noite, sua deusa

contemplativa. É a noite que também o olha. A noite flerta com o poema. E pinga-lhe uma

estrela. O segundo verso é um heptassílabo, ou redondilha maior, um metro que é usado em

trovas populares. Um verso que é, na verdade, um encontro: entre o sujeito e o objeto, entre

aquele que vê (o olho) e aquela que é olhada (a noite). O olho contemplante, mas também a

noite contempladora. Entre ambos, uma estrela gotejada. Uma intertextualidade com a “Noite

estrelada” de Vincent van Gogh? Uma estrela que faz luz à sombra da noite, uma claridade

para revelar, mesmo o que pode estar encoberto, oculto. Claridade para desvelar. Clareira. E

se voltarmo-nos para a mitologia, não é a própria Nyx, deusa da Noite e filha do Caos, que

gera Hemera, a personificação do Dia, e Éter, extrema luminosidade? Luz e noite, mesma

oposição que encontramos na Teogonia de Hesíodo, Érebo, irmão de Nyx (masculino) e

Hemera (feminino), ser e não-ser112. Aliás, se o mito é sempre atual e sempre causando

interesse no seio de uma sociedade, natural que o próprio Leminski tenha se interessado pelo

mito, a ponto de escrever o seu vibrante romance Metaformose, uma viagem pelo imaginário

grego113.

Quanto ao movimento que o poema opera, podemos observá-lo a partir de dois verbos:

pingar (segundo verso) e passar (terceiro verso). Percebemos que o haikai mais se assemelha

a um koan, pois não é a própria estrela que acidentalmente cai, é a noite que a deixa cair, isto

é, lhe oferece o seu brilho. E se a noite prossegue em seu movimento natural, esta passagem

do brilho estelar é um momento único. Momento de entrega, momento de doação.

Compreendemos que o haikai, que também se assemelha a uma película dos primórdios

do cinema, uma película de Méliès, talvez – um poema-trucagem – capta uma noite que não é

112 Cf. prefácio de Jaa Torrano à Teogonia de Hesíodo, (1995, p. 31-39). Na Teogonia, a Noite também é descrita como aquela que abriga o Tártaro, o abismo, o espaço nevoento, como se pode ver na quarta estrofe da “Descrição do Tártaro”: “a casa terrível da Noite trevosa” (HESÍODO, 1995, p. 110). 113 Cf. Leminski (1994).

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um símbolo da morte, como podemos ver na crítica que Blanchot faz de Kafka114, mas da

transitoriedade dos fenômenos (a noite passa, como se vê no último verso dissílabo). E além:

a noite como uma morada. Se o haikai opera um encontro entre sujeito/objeto, a noite é

moradia do contemplante. Podemos ver como esse olho, órgão por excelência da

fenomenologia do olhar, elide a distância com o objeto para fazer abrigo no céu noturnal.

Uma fuga para a noite? Não. Pois, bachelardianamente, a oniricidade do encontro está

traçada. O haikai já operou a simbiose. Dizemos: um caminho para a noite, pois esta é a

condição necessária para a beleza do poema.

O seguinte haikai, que abre a seção Ideolágrimas, parece seguir o mesmo fio condutor:

Hoje à noite até as estrelas cheiram a flor de laranjeira (LEMINSKI, 1983b, p. 99).

Em ambos os haikais o tema primordial é a noite, descrita já no primeiro verso. Ambos

também não obedecem à forma métrica do haikai, onde podemos perceber como Leminski dá

uma elasticidade ao próprio haikai. Se tomássemos os haikais como fotogramas (cada

negativo de um filme), este haikai seria um “plano detalhe” (PD, como é usado no jargão

fotográfico) do primeiro. O primeiro verso, trissilábico, já indica o aqui e agora do poema, o

seu presente (advérbio “hoje”), assim como encontramos o tempo presente no haikai anterior,

pela transitoriedade. Um elemento que é comum a ambos os poemas é o corpo celeste estrela,

mas se ela apresenta movimento no haikai da seção Não fosse (do horizonte celeste ao olho),

aqui o estático prevalece (o que justifica pensarmos este haikai como um fotograma

ampliado). Não mais estrelas que servem de clareira para seu contemplante, mas estrelas que

exalam um doce aroma, o aroma da flor de laranjeira – veja-se a harmonia do segundo e

terceiro versos em sua última sílaba poética (esTREla – laranJEIra), além da presença de

assonância na semivogal e (Hoje à noite) e no e mais fechado (Estrelas / cheiram a flor de

laranjeira).

Neste poema há algo próprio da poesia. As estrelas têm cheiro. Só na poesia sentimos o

cheiro das coisas que não têm cheiro. Só na poesia se vê o que não está visto, ou se diz o que

a linguagem não consegue. Por isso a poesia é o senão das coisas. Mas não só as estrelas têm

seu aroma. Tudo, ao redor do poema, exala o aroma da flor de laranjeira (veja-se o segundo

verso “até as estrelas”), que tem um perfume peculiar. Logo, quando o poema diz cheira, quer

114 Cf. Blanchot (2011, p. 177-186).

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muito mais que aproximar a noite da flor de laranjeira, mas quer tornar-se flor e a seu

perfume render-se, entregar-se.

Poesia também é o outro lado da margem (ela a constrói). Por ela, o leitor faz suas

travessias, transviaja. Uma citação de Octavio Paz (1982, p. 138) nos é proeminente: “a

poesia coloca o homem fora de si [...]”. Assim podemos chegar ao seguinte haikai:

Luxo saber além destas telhas um céu de estrelas (LEMINSKI, 1983b, p. 104).

No primeiro verso podemos observar a elisão do verbo ser: “luxo (é) saber”. Supressão

proposital. Ora, elidir o verbo ser é encontrar com o Zen, com a autonegação, com o

apagamento do Eu empírico. No segundo verso, o substantivo “telha” já constrói uma camada

que separa o dentro e o fora de um espaço. A telha forma o teto, que por sua vez dá forma a

casa, à morada, ao abrigo: habitação que é proteção, espaço de cosmicidade, ou pensando

bachelardianamente, o nosso canto do mundo, o pedaço de nossa infância, o lirismo da

concha115. Mas este espaço, descrito pelo poema, já não é mais o que poderia ser um

instrumento de topoanálise116. Há uma ruptura, cisão. O advérbio “além” (segundo verso) dá o

indício: o saber que além destas telhas há um céu de estrelas, quer dizer, além deste dentro há

um campo de possibilidades, de luminosidade em um fora. O poema joga, então, com a

oposição interior/exterior, luz/sombra. Está, mais uma vez, o poema jogando com o mito,

neste caso o mito da caverna, da República de Platão? Mas vai além desta oposição e inscreve

seu desejo, um desejo de encontro com o céu luminoso (veja-se o primeiro verso, “luxo

saber”). Esse desejo é o querer tornar-se céu de estrelas. O tornar-se Zen-budista: união,

fusão, encontro sujeito/objeto. A poesia se unindo ao mundo.

Com esses três haikais, podemos concluir que todos eles olham as estrelas e mantêm

relação (de movimento ou não) com ela. Esse desejo de tornar-se estrela, que é um desejo de

tornar-se o objeto, união Zen-budista do sujeito com o objeto (o poema em estado de chegar a

ser objeto, pois todo o universo é aquele objeto, no caso, tudo é a estrela) também pode

significar uma relação mallarmeana. Temos aqui um Leminski que digere as constelações de

Mallarmé para seus haikais búdicos e contemplantes. Basta lembrarmo-nos dos versos finais

do antológico “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”:

115 Cf. A poética do espaço, capítulo I, “A casa: do porão ao sótão”, Gaston Bachelard (1978, p. 199-221). 116 Cf. A poética do espaço, capítulo II, “A casa e o universo”, Gaston Bachelard (1978, p.222-244).

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[...] Uma constelação fria de olvido e dessuetude não tanto que não enumere sobre alguma superfície vacante e superior o choque sucessivo sideralmente de um cálculo total em formação vigiando duvidando rolando brilhando e meditando antes de se deter em algum ponto que o sagre Todo pensamento emite um Lance de Dados (MALLARMÉ, 1991, p. 147).

É especialmente esse uso da linguagem que Mallarmé opera, isto é, uma linguagem

movente, que interessa a Leminski. Uma linguagem que se estilhaça no branco da página para

projetar uma possibilidade de constelação, ou como diz Haroldo de Campos, construções de

“miragens gráficas” (CAMPOS, 1991, p. 188). O recurso que Mallarmé se faz é o do

espacejamento, não apenas para liberar os versos da forma fixa das estrofes. É um

espacejamento significativo para o próprio signo, naquilo que Evando Nascimento (2012, p.

57) chama de “o (não) livro de Mallarmé”. Diz ainda Evando (Idem, ibid., grifo do autor):

“espacejar é mais do que o procedimento anódino de afastar letras e palavras, é pôr em relevo

o caráter icônico, material, concreto [...] de todo signo, que passa a ser valorizado em seus

aspectos verbivocovisuais”. Ora, como Leminski digere Mallarmé, só poderia dar essa

“significação” ao signo pela via do haikai, que é concisão. Deglute, antropofagicamente, uma

constelação que vigia, duvida, rola, brilha e medita. Se Mallarmé abriu a palavra para a

constelação meditante, Leminski, em seus haikais, consagrará a sua palavra meditante.

Quando Mallarmé explora o branco da página, está, na verdade, apontando para o

branco Zen da página (está lançando o dado para este acaso do branco Zen, basta verificar o

último verso do poema: “todo pensamento emite um lance de dados”), quer dizer, para o seu

silêncio. Quando Leminski traça sua constelação mallarmeana, nos haikais aqui expostos, e

inscreve a noite, está cingindo o silêncio, pois a noite é silêncio, ou o silêncio habita o coração

da noite. O Leminski noturnal que defendemos a partir dos três haikais é a face de um autor

que põe a escritura em um alto grau de experienciação, pois neste caso podemos ver os

poemas experienciando um fenômeno, querendo ser fenômeno. Mas por que Leminski incide

na noite? Por que não escolhera o dia, tal como um de seus ícones Yukio Mishima, que

perseguiu em sua literatura o sol e o aço? Ora, não cabe à figura do agitador Leminski pôr sua

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escritura para contemplar o dia (Hemera). Um depoimento do próprio Leminski (apud VAZ,

2001, p. 151), nos idos de 1972, pode nos dar a pista: “Mas acontece que na mecânica de

transmissão do saber há um ponto incompatível com meu lado contracultural, meio hippie,

meio bandido. Acordar às 8 horas, em plena segunda-feira, para dar aula é incompatível

comigo”. Não cabe a Leminski, portanto, seguir as pegadas de Mishima – para lembrar a

citação de Bashô, epígrafe de nossa Introdução: “Bashô disse: não siga as pegadas dos

antigos. Procure o que eles procuravam” (LEMINSKI, 1999, p. 111) – pois esse pêndulo entre

o singelo e o rebelde só é possível na noite. Portanto, o brilho que almejará a poesia de

Leminski não é o brilho do dia, enquanto fenômeno, mas sim a iluminação (Éveil), palavra

iluminada no abrir-se para a noite, para o mundo.

3.2 Ângulo 2 – Haikoans

Gostaríamos, primeiramente, de defender neste tópico um Leminski experimentador,

que vai do erudito ao popular. Para isso, verificaremos uma relação pendular em dois haikais

da seção Não fosse. Temos o primeiro:

Entro e saio dentro é só ensaio (LEMINSKI, 1983b, p. 70).

que, quanto à forma, é um haikai bastante peculiar pelas suas figuras de harmonia, tanto a

aliteração em ‘s’ (entro e saio / dentro / é só ensaio) quanto as assonâncias em ‘e’ e ‘o’ (entro

e saio / dentro / é só ensaio), dando um eco próprio ao poema, além das rimas coroadas

(internas: entro / saio; só / ensaio) e das rimas interpoladas (saio / ensaio). Pela forma, pode-

se perceber como a acústica do poema é ondulante. O segundo haikai117 segue uma forma

semelhante:

Passa e volta a cada gole uma revolta (LEMINSKI, 1983b, p. 82).

Neste, vê-se o recurso à assonância em ‘a’ (passa e volta / a cada gole / uma revolta).

Se o haikai anterior sugere uma acústica mais redonda pela assonância em ‘o’, neste, o haikai

sugere uma acústica mais aberta, em ‘a’ – quanto à rima, veja-se a semelhança, com a mesma

presença de rima coroada (passa / volta) e rima interpolada (volta / revolta). Além das rimas,

os dois haikais se assemelham no movimento: no primeiro, temos os verbos de movimento 117 Observa-se que esse haikai se repete na seção seguinte, Ideolágrimas. Cf. Leminski (1983b, p. 101).

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“entrar” e “sair”; no segundo, os verbos “passar” e “voltar”. Dinâmicos, são dois haikais que

se soltaram no tempo, quer dizer, que a escritura tomou voo, como linhas moventes no espaço

da página. Mas há uma cisão entre ambos, o que chamamos de um movimento pendular. Um

pêndulo que vai do fechado para o aberto, do dentro para o fora.

Embora o primeiro haikai transite entre o interior e o exterior (verbo “entrar” e “sair”),

o seu caminho é para o dentro, para o interior, para o subjetivo. Lá, apenas ensaia. Seu espaço

interior e subjetivo é de tentativa e experiência. E como ensaia, medita. O primeiro haikai

visto neste Ângulo é, portanto, uma reflexão da própria palavra meditante que é o haikai. O

próprio haikai é esse dentro que é só ensaio, mesmo na duplicidade da acepção de ensaio:

tanto no plano da experiência (verbo ensaiar), quanto no gênero literário – é pertinente

lembrar que o gênero ensaio é o espaço por excelência para os encontros de linhas paralelas,

um espaço-entre, ou ainda: “o ensaio seria o gênero em que literatura e filosofia se

contemplam, se tocam, intercambiam elementos e funções [...]” (NASCIMENTO, 2004, p.

62).

Enquanto o primeiro poema se põe a pensar o próprio papel do haikai e da própria

palavra búdica, em estado de meditação e de experiência (um olhar para o dentro), o segundo,

não obstante, configura um olhar para o fora, para o cotidiano, ou para o simples desse

cotidiano. O gole já circunscreve o espaço do contracultural dos anos 1970, da rebeldia, da

onda lisérgica e de todo ideal libertário e de resistência à ditadura. Cada gole carrega o seu

sentimento de angústia e de raiva (vê-se como o espaço do poema é de muitas agruras, pois

cada gole tem a sua revolta). A própria geração de 1970 experimentou o álcool como

libertação, quase divino, pois libera a mente dos trilhos do racional, inverte a lógica – basta

lembrar que Leminski foi, até o fim da vida, consumidor do álcool, com breves intervalos de

abstinências (o que o levou, inclusive, à cirrose). Em última instância, podemos concordar

com o deleuziano Daniel Lins (2013, p. 37) que, em uma recente tese, afirma ser o alcoólatra

– misto de criança e diabo, monstro e belo, o poeta das noites – um “quase-acontencimento”.

Embora aqui não caiba uma leitura apurada deste olhar para o social nos haikais de Caprichos

& relaxos118, o que nos interessa é como neste segundo poema o olhar para o cotidiano se

apresenta como um olhar fotográfico e com uma linguagem próxima deste cotidiano (o gole,

isto é, uma marca da oralidade). Neste segundo haikai temos, então, a abertura para o

encontro da palavra (signo verbal) com a imagem (não-verbal). O interstício. As imagens-

118 Em outro trabalho, analisamos alguns haikais de Caprichos & relaxos que estabelecem essa conexão com o contexto por um viés libertário, quer dizer, defendemos a tese de que Leminski subverte o haikai e faz de sua escritura um testemunho (cf. ARAUJO, 2013, p. 1-10).

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mundo que a palavra poética fabrica. Pois cada gole também carrega o seu conjunto de

imagens-mundo, ou imagens dinâmicas.

Com os seguintes haikais, podemos concluir que a operação do movimento pendular, do

mais metalinguístico ao mais fotográfico do cotidiano, é o próprio movimento pendular da

escritura leminskiana, que vai do erudito ao popular, transando todas as ondas, a escritura em

laboratório, o devir da escritura movente. Partimos agora para o encontro do haikai com o

koan na natureza da palavra búdica, ou o que chamamos de haikoan. Para isso, citemos o

seguinte haikai de Ideolágrimas:

Duas folhas na sandália o outono também quer andar (LEMINSKI, 1983b, p. 99).

Podemos afirmar que este haikai também se assemelha a um fotograma. Um fotograma

de uma natureza fluida. Tudo no poema é movimento. Tudo se põe a mover. Leminski, aqui,

faz sua primeira grande abertura para o diálogo de sua poesia haikai com a tradição do haikai

nipônico, movimento que completa seu círculo em La vie en close, ou seja, neste haikai

Leminski dialoga diretamente com Bashô. Com as folhas na sandália, é preciso partir. E a

trilha que Leminski percorrerá encontra com a trilha de Bashô. O poeta nipônico também

pegou suas sandálias para percorrer, errante, os confins da natureza. Quando Bashô

desprendeu-se de tudo para ser um poeta nômade, escreveu três diários narrando seu

nomadismo e, em cada diário, escreveu haikais, registros das paragens misteriosas nas quais

vagueava. Dos três diários, o mais simbólico e mais poético é o último, “Trilha estreita ao

confim”, escrito em 1689 e fruto de uma errância de quatro anos. Um dos haikais de Bashô

que melhor traduz a sua vida Zen é o seguinte, quando Bashô atravessa a floresta de pinheiros

de Kinoshita:

Flores de íris nas sandálias enlaço talismã na jornada (BASHÔ, 2008, p. 43).

Neste momento de intertextualidade é que Leminski e Bashô levam sua escritura ao

desprendimento. Mas no poema de Leminski, não só a sandália conduz ao movimento, à

partida. O outono também quer andar. Faz-nos lembrar do koan do poeta chinês Shan-hui,

quem anda não é o indivíduo sobre a ponte, mas sim a ponte. No haikai de Leminski, não

apenas as sandálias (signo) movem-se, o outono também quer mover-se, fazer parte do

nomadismo. Como pode o outono (fenômeno) andar junto com aquele que anda? O haikoan

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de Leminski propicia essa comunhão, esse consórcio. Não pelo caminho da racionalidade, ou

da lógica, mas por um caminho outro, um caminho Zen. Sujeito e mundo, juntos,

caminhando, movendo-se, nada mais é que o coração do Zen: fluxo. As sandálias (objeto)

querem sentir o mundo, a ele não apenas movimentar-se pela mesma via, mas querem

integrar-se ao mundo e seu fluxo. Basta guiarmo-nos pela seguinte colocação de Alan Watts

(2011, p. 52): “[...] pois o Zen é mover-se com a vida [...]”. Um haikoan, portanto, que leva a

um estado de liberdade de espírito.

Outro ponto em que Leminski, neste haikoan, dialoga com a tradição haikaísta de Bashô

é o fotografar das estações do ano. Um registro imagético tão movente que não caberia, em

nenhuma instância, um barthesiano congelar-se – aliás, é incompreensível que o próprio

Barthes, que conheceu o Zen119 e o pensamento oriental120, não ter acreditado que a imagem

fotográfica pudesse mover-se e sonhar. Fotografar o outono é realizar o que chamamos de

passagem para o imagético. Palavra-câmera. Imagem de um outono que é, mesmo, uma

estação de entremeio, entre o verão e o inverno. Estação da colheita, das folhas que caem, do

balançar das árvores. Uma estação que carrega sua solidão, como diz o próprio Bashô (2008,

p. 28): “[...] e a solidão do outono atingiu meu coração”.

Se o koan é um enigma, uma charada, que tira as coisas dos trilhos da lógica, inverte-a e

usurpa-a para que o objeto transcenda, então o haikai (e mais propriamente o nosso haikoan)

é um enigma de uma natureza circundante, pois a palavra poética consagra sempre um

movimento em direção ao absoluto. Mais uma vez nos deixemos guiar pela colocação

oportuna de Octavio Paz (1982, p. 234): “a experiência poética [...] não nos ensina nem nos

diz nada sobre a liberdade: é a própria liberdade”. A poesia nada ensina. A poesia é.

Ainda no diálogo com Bashô e com a tradição do haikai, outros poemas de Caprichos

& Relaxos centralizam essa natureza movente, sejam haikais ou outras formas poéticas.

Citemos, agora, outro haikoan, ainda em Ideolágrimas, para vermos como a força búdica nele

se manifesta:

A água que me chama em mim deságua a chama que me mágua (LEMINSKI, 1983b, p. 99).

119 Cf. O Neutro (2003, p. 356-360). 120 Cf. O Neutro (p. 362-382).

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Podemos logo observar que o haikai possui um eco aberto: uma rima emparelhada

(deságua / mágua) e a assonância em ‘a’ (a água que me chama / em mim deságua / a

chama que me mágua). A assonância, junto com uma presença do vocábulo ‘m’, parece

sugerir um eco de uma gota d’água ao romper o silêncio da água parada. Neste ponto, o

poema causa um estranhamento em todos os três versos. (i) a água que me chama: aqui, é o

objeto (água) quem chama o sujeito, quem o convida para o encontro. Um convite para a

completa unificação Zen-budista, a qual falava Toshihiku Izutsu. Se esse convite pode

balançar a estrutura da lógica aristotélica, é porque o próprio pensamento aristotélico não

permite tal convite. Esse convite à união não é endereçado ao eu empírico, não para o cogito

cartesiano. Lembremo-nos do Zen, é preciso disciplinar a mente, suprimir o eu empírico e

ultrapassar tal estranhamento. Só assim o sujeito pode atender ao convite do objeto, da água.

Água que (ii) em mim deságua: é preciso mergulhar nessas águas. Aqui temos um Leminski

que leva às últimas consequências o haikai como aquilo que toca, com sensibilidade, no

profundo da vida. Que capta, em sua concisão, este profundo e ao mesmo tempo se lança no

absoluto. Um dos que facilmente percebeu esse poder da poesia japonesa foi o poeta e

cineasta do tempo, Andrei Tarkovsky, que, ao analisar um haikai de Bashô, diz-nos algo

extremamente pertinente para este haikai de Leminski, ou para este desaguar de águas: “o

leitor do haicai deve se incorporar a ele como à natureza; deve mergulhar, perder-se em suas

profundezas como no cosmo, onde não existem nem o fundo nem o alto” (TARKOVSKY,

1998, p. 124, grifo nosso). Um mergulho em estado puro. Por fim, no último verso, (iii) “a

chama que me mágua”, o último estranhamento: a chama (fogo) em antítese à água. Um

enigma koan. Podemos ler o haikai da seguinte maneira, com as seguintes supressões:

água deságua m’água.

O vocábulo criado por Leminski (mágua) e usado na expressão “me mágua” embaralha,

confunde, inverte as coisas, joga com a percepção do leitor. Com a supressão que sugerimos,

pelo uso da apóstrofe (m’água), podemos estabelecer uma amizade entre os opostos, entre o

fogo e a água (não é esse o tipo de amizade que só a poesia consegue estabelecer?). O poema,

então, vai de encontro ao que resulta dessa amizade. O m’água (que deságua no ser) é,

portanto, o chegar a ser da poesia de Leminski. É o íntimo e o brilho de sua poesia. Quando o

calor do fogo encontra com a água, a poesia se encontra com o interior das coisas, com o

interior dos seres. É pelo m’água que a palavra poética de Leminski desperta o satori,

ilumina-se.

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Natureza excelsa. Phýsis contemplante e contemplada, se pensarmos com Plotino, onde

tudo é contemplação, e a própria phýsis como fruto de uma contemplação dada na realidade

inteligível. Ou se quisermos pensar heideggerianamente, phýsis como abertura original do

ser121. As imagens opulentas que os haikoans de Leminski fazem surgir captam o fato central

da vida. Se o caminho do haikai é um caminho para os sentidos, podemos, então, dizer que

Leminski, neste caminho pelos sentidos, é devedor de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de

Caeiro. Caeiro, o pastor andante que via o mundo com simplicidade. O Caeiro Zen-budista

que via e escrevia uma natureza com os sentidos. Caeiro não quer o pensamento, foge dele.

Quer o não-pensamento. Como não lembrarmo-nos deste convite ao não-pensamento no seu

“O guardador de Rebanhos” e como não lembrarmo-nos de uma antológica estrofe do

segundo poema da obra:

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar... (PESSOA, 2011, p. 43).

Quando, no mesmo poema, Caeiro diz que pensar é estar doente dos olhos, ele está

renunciando a toda forma de intelectualismo, pois a poesia é experiência, tanto pelo sentido

quanto pela percepção. Poesia/vida. Esse é o caminho do haikai, de Leminski, do Zen.

3.3 Ângulo 3 - Vazio

Contra a tese de alguns espíritos que julgam ser o haikai o terreno do fácil, de uma

felicidade risível e bobiciada, fica claro que o espaço do haikai está mais para um espaço de

fundo sem fundo que para um espaço lúdico. Está mais próximo a um artesanato da

linguagem (é preciso tê-lo para a concisão dos versos) que a uma facilidade retórica. Basta

olharmos para a obra de Leminski e ver como o poeta dialoga com a tradição de Bashô e com

a filosofia Zen-budista, mas também como ele dá uma elasticidade a seu haikai, que vão dos

mais búdicos aos mais críticos da realidade – eis o seu mérito. Neste tópico, analisaremos dois

haikais que constroem um espaço para o que chamamos de encontro de linhas; haikais na

zona do vazio. Para isso, circundaremos por três temas: a morte, o tempo, o vazio.

Verde a árvore caída vira amarelo a última vez na vida (LEMINSKI, 1983b, p. 101).

121 Cf. Introdução à metafísica (HEIDEGGER, 1987, p. 168).

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O poema fala da transitoriedade das coisas no mundo. Uma árvore verde que já não

mais é. Findou-se. Caída, como um grou em queda livre, seu verde desaparece. Amarela, a

árvore encontra seu estar-no-fim. Conta-nos Toninho Vaz, na biografia de Leminski, que este

haikai foi composto quando a árvore favorita de Miguel, filho de Leminski recém-falecido em

1979, tombou122. Com o findar da árvore (“a última vez na vida”), o poema coloca, mesmo,

no centro do espaço literário a vida e a morte. A vida, existência. Morte, fim. É muito

corriqueiro tomar vida e morte como blocos separados e distantes. Em contrapartida, muitos

foram os que viram não mais uma distância, mas uma proximidade entre ambas. Uma estreita

relação, mesmo. Problematizando-a, admirando-a, ou até amando-a, como fizeram alguns

poetas românticos do século XIX. Entre poetas e filósofos, muitos falaram deste encontro

vida/morte. Foi possível, então, olhar para a morte. Desde um Montaigne (2010, p. 59), para

o qual “filosofar é aprender a morrer”, passando por Schopenhauer (2000, p. 59), que via a

morte como “musa da filosofia”, até o radicalismo de Emil Cioran, que rompe de vez com as

distâncias vida/morte, que pensa uma morte que ocupa a vida em toda a sua estrutura, uma

morte “pura e sublime”123 (CIORAN, 1990, p. 95). Não só a filosofia problematizou a morte.

A literatura configurou-se um espaço privilegiado para a morte. A escritura carrega a morte,

tese defendida pelo crítico literário Maurice Blanchot, que via em seus autores de predileção –

Kafka, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Hölderlin – um espaço literário que era um espaço

da morte, uma ideia em que o homem dissimula-se na morte124. Basta consultarmos uma

longa, porém primordial, citação em que Blanchot tece a disposição vida/morte no espaço

literário:

A literatura aparece então ligada à estranheza da existência que o ser rejeitou e que escapa a qualquer categoria. O escritor se sente presa de uma força impessoal que não o deixa viver ou morrer: a irresponsabilidade que ele não pode superar torna-se a tradução dessa morte sem morte que o espera à beira do nada; a imortalidade literária é o movimento pelo qual, até no mundo, um mundo minado pela existência bruta, se insinua a náusea de uma sobrevida que não é uma, de uma morte que não põe fim a nada. O escritor que escreve uma obra se suprime nessa obra e se afirma nela. Se a escreveu para se desfazer de si acontece que essa obra o compromete e o chama, e, se escreveu para se manifestar e viver nela, vê que o que fez não é nada [...]. Ou, ainda, ele escreveu porque ouviu, no fundo da linguagem, esse trabalho de morte que prepara os seres para a verdade de seus nomes: trabalhou para esse nada, e ele mesmo foi um nada no trabalho (BLANCHOT, 1997, p. 326-327, grifo nosso).

122 Cf. Vaz (2001, p. 220). 123 “D’une mort pure et sublime”. 124 Cf. Blanchot (2011, p. 275).

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Blanchot conclui seu ensaio sobre o direito à morte na literatura afirmando que a morte

é o poder prodigioso do negativo, ou a liberdade, pois a morte resulta no ser. Ora, aqui as

teses de Blanchot nos são úteis, pois constituem uma abertura para aquilo que Heidegger

defende, em Ser e tempo, no parágrafo 49, de que “a morte é um fenômeno da vida”

(HEIDEGGER, 2011a, p. 321), uma interpretação existencial da morte e do ser-para-a-morte,

que já é, em si, uma possibilidade existenciária do Dasein (tese do parágrafo 52)125. Na

ontologia heideggeriana, o ser é ser-para-o-fim porque é temporal, logo, a finitude é um

caráter da temporalização do Dasein126. Como observa Benedito Nunes, em Passagem para o

poético (1992, p. 144), uma extensa análise da ontologia heideggeriana, “o Dasein existe

temporalizando-se. Sem a temporalização, nenhum Dasein seria”. Pela ótica de Heidegger, é

com a temporalização da temporalidade que é possível as modalidades de existência do

Dasein. Quando o poema traça a transitoriedade da árvore, a temporalização foi materializada

na linguagem. Tempo que é o agora, ou o “’fluxo’ dos agora” (HEIDEGGER, 2011a, p. 518).

Então, o “fim” quer dizer o ponto final da existência? Não, responderia o budismo. Para

o budismo, a morte é transmigração, quer dizer, travessia. Um ciclo contínuo que só é

rompido quando se alcança o satori (iluminação). É a morte um mal? Em determinados

pontos do pensamento antigo, o bem, a vida, Deus, estão para o ser, assim como tudo o

contrário está para o não-ser. No oriente, se lembrarmo-nos do escritor-samurai Yukio

Mishima, encontramos aquilo que Blanchot chama de morte como tarefa artística127. Mishima

se preparou (fisicamente) para a morte, cultuou o corpo para que a bainha da espada pudesse

cumprir o ritual. Nos samurais do Japão medieval, a morte era um dever ético, morria-se por

honra e por obediência à hierarquia das castas, basta consultarmos a extensa obra de Maurice

Pinguet (1987) sobre a morte voluntária no Japão.

Se o haikai de Leminski capta o instante da morte (relembremos o último verso: “a

última vez na vida”), sua poesia a vê, e então a materializa. É totalmente verdadeira, e útil

para o haikai em questão, uma citação do antropólogo Louis Vincent-Thomas em uma

volumosa obra, Antropología de la muerte (1983, p. 186, grifo nosso), quando diz que

“representar a morte não é apenas vivê-la em imagens, em nossos sonhos, obsessões,

impulsos, para desejá-la ou temê-la; é também materializá-la em frases, formas, cores,

sentidos”128. A transição do verde da árvore para o amarelo é a transitoriedade das coisas pela

125 Cf. Heidegger (2011a, p. 336). 126 Cf. Heidegger (2011a, p. 415). 127 Cf. Blanchot (op. cit. p. 131). 128 “Representarse la muerte no es sólo vivirla en imagen, en nuestros sueños, obsesiones, impulsos, para desearla o temerla; es también materializarla en frases, en formas, en colores, en sonidos”.

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sua temporalidade existencial. O seu amarelo materializou a morte, a finitude, o estar-para-o-

fim.

Se no haikai anterior a escritura encontra-se num estar-lançado para a morte,

carregando-a, o haikai seguinte é uma abertura para o nada absoluto, para a vacuidade:

Debruçado num buraco vendo o vazio ir e vir (LEMINSKI, 1983b, p. 103).

O espaço do poema diz respeito a um tempo exato: o agora. O primeiro plano do haikai

(dois primeiros versos) é observacional. O poema vê o vazio. O vazio é o nada absoluto Zen.

O nada originário mesmo do ser. A nulidade. O nada que “desvela a nulidade que determina o

fundamento do Dasein” (HEIDEGGER, 2011a, p. 391). No mundo circundante, é o ser-aí,

ser-no-mundo, que está debruçado vendo o vazio. Por ser-no-mundo, a melhor definição é

mesmo a de Benedito Nunes (1992, p. 86, grifos do autor): ser-no-mundo “conota

preliminarmente morar, habitar, ser familiar a”. Dasein que é transcendência no mundo

como horizonte transcendental. Pois, como lembra Heidegger no parágrafo 31 de Introdução

à filosofia (2009, p. 239), “a transcendência, porém, é a constituição essencial do ser-aí”. Na

transcendência que ele mantém uma relação essencial com o nada.

Pelo fio condutor da transcendência passamos para o segundo plano do poema (o último

verso): o ir e vir. Da observação do vazio, o último verso põe o próprio vazio em movimento

pelos verbos ir e vir. Quer dizer, se já há uma articulação originária entre o nada e o Dasein, o

segundo plano sai da observação (estática) e dissemina-se no vazio: dispersão, acepção muito

bem empregada por Heidegger no parágrafo 37 de Introdução à filosofia, acerca do ser-

jogado na existência, mas uma dispersão que também já é originária129. Com os verbos de

movimento do segundo plano, temos uma abertura à possibilidade de o poema mergulhar no

nada, vivenciar o nada. Ou melhor, “corporalizar” o nada, termo empregado por Agustín

Zavala (2013, p. 139): “a corporalização do Nada Absoluto se manifesta na corporalização do

mundo e da sociedade”130. Note-se que a abertura não se dá apenas pelos verbos de

movimento, o próprio espacejamento que há no último verso já dá a possibilidade de abertura

para a vivência do nada. Espacejamento (mallarmeano?) que já é um próprio nada. Dito isto,

ir e vir significa a liberdade do poder-ser livre, ou como interpreta Benedito Nunes (1992, p.

129 Cf. parágrafo 37, item c, “Facticidade e ter-sido-jogado. Nulidade e finitude do ser-aí. Dispersão e singularização” (HEIDEGGER, 2009, p. 354-362). 130 “La corporalización de la Nada Absoluta se manifiesta en la corporalización del mundo y de la sociedad”.

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112) o problema da angústia heideggeriana, “a vertigem da liberdade, porém mergulhando na

finitude do Dasein”.

Na combustão deste movimento e desta vivência, é que o ser-si mesmo se descobre, e o

poema irrompe no nada. No nada do fundamento do ser. Nada que mais é um “acontecimento

ao próprio Dasein” (NUNES, 1992, p. 115, grifo do autor). Vacuidade (sunyata). Podemos

inferir que a poesia também mantém uma relação essencial com o nada, com o vazio. É nesta

relação que a palavra poética pode dilatar-se no nada131. A poesia encontrou o caminho do

meio.

3.4 O close: grande plano

O close é o grande plano. É o estar próximo. É a tomada que dá o detalhe. Antes de sua

morte, Leminski organizou uma obra, que só viria a ser publicada posteriormente, em 1991. O

destino de La vie en close já estava traçado. Esta obra póstuma é, certamente, a mais densa de

Leminski, quer dizer, é uma obra de muitos poemas com certa coloração existencial. Régis

Bonvicino, que escreveu uma matéria em 1991 para a recepção crítica de La vie en close132,

diz que a obra releva todas as faces de Leminski133. Se a década de 1970 foi de grande

efervescência para a sua produção poética, a década seguinte seria de grandes ondulações.

Numa consulta na biografia do poeta pode-se constatar que Leminski perdeu, em períodos

curtos, alguns ícones de sua vida. Como em 1978, ao perder a mãe (o pai já havia morrido em

1973), e no ano seguinte assistir a morte do filho de dez anos, Miguel. Ainda em 1986 recebe

a notícia de suicídio do irmão, Pedro Leminski. Já nos últimos anos de vida, Leminski

enfrenta uma onda de grande depressão e total entrega ao álcool (o álcool foi uma parceira da

vida de Leminski, no entanto o poeta já havia tido complicações de saúde, como em 1978)134.

Como classifica seu biógrafo (2001, p. 281), tínhamos, então, a figura de “um homem

saturado de emoções”. Antes que desabemos em um velho abismo de justificar a poesia pela

vida do autor (e antes que uma patrulha estruturalista se manifeste, para a qual a vida do autor

nada interessa ou tenha a contribuir), preferimos seguir o pensamento de partir da vida do

autor para a obra, pois, como visto, Leminski opera com a junção vida/obra. O que temos em

La vie en close são poemas tempestuosos, em transpenumbra, poemas em lápides. Pois

“sofrer, vai ser minha última obra” (LEMINSKI, 1994, p. 74).

131 José Carlos Michelazzo (2009, p. 101) dá um enfoque na tradução e interpretação de sunyata como dilatação. 132 Cf. Anexo 8. 133 Cf. Anexo 9. 134 Cf. Vaz (2001, p. 208).

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Do diálogo com a tradição nipônica do haikai e com o Zen, La vie en close fecha um

ciclo: em um primeiro momento veremos como os haikais selecionados constituem uma

canção-homenagem feita por Leminski para seus mestres; em um segundo momento, será

verificado como sua poesia dilui-se no nada aberto pela angústia – que, digamos, atravessa

toda a obra La vie en close, dos haikais aos poemas mais longos.

3.4.1 Zona de encontros

Se é um traço característico do poeta compor poemas sem títulos, aqui se encontra uma

série de poemas intitulados, alguns deles já fazendo referencialidade a suas influências. Um

dos primeiros poemas do livro, “Limites ao léu”, define o que é poesia a partir do pensamento

de vários autores:

POESIA: “words set to music” (Dante via Pound), “uma viagem ao desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra Pound), “a fala do infalável” (Goethe), “linguagem voltada para a sua própria materialidade” (Jákobson), “permanente hesitação entre som e sentido” (Paul Valéry), “fundação do ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” (Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz com palavras, não com idéias” (Mallarmé), “música que se faz com idéias” (Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), “um fingimento deveras” (Fernando Pessoa), “criticism of life” (Mathew Arnold), “palavra-coisa” (Sartre), “linguagem em estado de pureza selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire” (Bob Dylan), “design de linguagem” (Décio Pignatari), “lo imposible hecho posible” (Garcia Lorca), “aquilo que se perde na tradução” (Robert Frost), “a liberdade da minha linguagem” (Paulo Leminski)... (LEMINSKI, 1994, p. 10).

A citação a Heidegger poderá conduzir nossa leitura. De todas as citações, a de

Heidegger é a que toca naquilo que é essencial ao homem: a palavra (essa tese de Heidegger

parece mesmo ter muito a dialogar com Leminski). Quando Heidegger toma Hölderlin para

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dizer que o homem se funda na palavra, quer chegar naquilo que ele chama de “essência da

Poesia: que é a Poesia fundação do Ser pela palavra” 135 (HEIDEGGER, 1994, p. 30). Mesmo

refletindo sobre a poesia, essa reflexão continua ligada à questão central de toda sua filosofia:

a questão do Ser. O que nos interessa deste Heidegger é: chegar ao Ser pela poesia. A poesia

como abertura ao Nada originário. Poesia que é “na maior parte do seu tempo escuta”

(HEIDEGGER, 2003, p. 59), já que somos sempre diálogo, “dialogação”, e estamos sempre

ouvindo uns aos outros. Muito menos está Heidegger sendo teórico da poesia. Quanto a isso,

seguimos os passos de Benedito Nunes (1993, p. 87, grifo do autor), que vê a poesia em

Heidegger uma “busca do poético, a aproximação compreensiva da Poesia”. A poesia expõe o

Dasein. A poesia é sua morada. A poesia constrói a essência de sua morada. Eis que

Heidegger nos faz útil: é a poesia que confere a habitação do homem no mundo, “é a poesia

que permite ao homem habitar sua essência” (HEIDEGGER, 2010, p. 178).

Feita a abertura com o poema “Limites ao léu”, podemos entrar em La vie en close.

Nesta obra não há seções, mas podemos dividi-la em duas partes. A primeira parte da obra

contém poemas em que a maioria são intitulados. Nesta parte, há dois haikais com um olhar

muito particular ao social, onde ver é doloroso – um dos haikais, intitulados, faz uma

paráfrase à Céline136. A segunda parte da obra é quase inteiramente constituída de haikais.

Contém cinquenta e oito haikais, dos quais três são intitulados – evidenciando como Leminski

reinventa o haikai, já que a forma poética tradicional japonesa não era intitulada. Esta

segunda parte da obra é aberta com um poema chamado “Kawásu”, que mais parece funcionar

como epígrafe ao que se segue.

"Kawásu" é "sapo", em japonês. Imagino ter relação original com "kawa", "rio". O batráquio é o animal totêmico do haikai, desde aquele memorável momento em que Mestre Bashô flagrou que, quando um sapo "tobikômu" ("salta-entra") no velho tanque, o som da água. (LEMINSKI, 1994, p. 107).

O tom em primeira pessoa do poema deixa exposto certo teor confessional. Seria um

exercício de tradução do próprio poeta? O poema, além de mostrar um Leminski atento ao

ofício de tradutor, introduz toda a tradição do haikai: o batráquio (a rã, animal vertebrado,

sinônimo de anuros e da classe Anphibia) como um símbolo sagrado (totêmico), perpetuado

pelo mestre Bashô – vê-se aí a referencialidade. Epigráfico, o poema vem colocar em xeque o 135 “Esta esencia de la Poesía: que es la Poesía fundación del Ser por la palabra”. 136 Em outro trabalho, já falamos destes haikais com temática social (cf. ARAUJO, 2013).

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próprio fato de ser o haikai tão dinâmico e veloz como o salto do sapo no velho tanque. O

poema seguinte é intitulado “Mallarmé Bashô”, um dos três haikais intitulados desta parte da

obra:

MALLARMÉ BASHÔ Um salto de sapo jamais abolirá o velho poço. (LEMINSKI, 1994, p. 108).

Este poema intertextualiza, entretanto, com um clássico haikai de Bashô, que foi

traduzido para várias línguas, e em língua portuguesa tendo sido traduzido por vários poetas.

Tomemos uma de suas traduções, feita pelo próprio Leminski:

A velha lagoa o sapo salta o som da água (BASHÔ apud LEMINSKI, 1983a, p. 20).

O sapo, símbolo forte na cultura japonesa, mergulha, lança-se no acaso, no acaso

mallarmaico, e entrega-se a um lugar profundo do tanque. Mergulha para habitar o tanque.

Um habitar onírico? Do mergulho, salto ou tombo, o sapo visita esse espaço como se quisesse

integrá-lo. Sapo entre o tanque e a água. Sapo que vivifica o tanque, se “presentifica” nele,

pois não haveria rumor de água sem seu pulo, sem seu salto. Pois é assim que o sapo torna-se

tanque: momento de união. Sapo (sujeito) e tanque (natureza) unindo-se misticamente em um

ato espontâneo e livre. Veja-se que, na tradução, há um espaçamento entre o sapo e o salto. É

o momento do lance, do pulo, do voo, do encontro, do tornar-se. Leminski, em sua biografia

de Bashô, comenta o haikai da seguinte forma:

O velho tanque De todas as formas poéticas do Oriente, o haikai parece ser o que melhor se aclimatou na floresta de signos da literatura ocidental. ........................................................................................................................... O sapo salta O segundo verso exprime a ocorrência do evento, o acaso da acontecência, a mudança, a variante, o acidente casual. O som da água A terceira linha do haikai representa o resultado da interação entre a ordem imutável do cosmos e o evento (LEMINSKI, 1983a, p. 42-45, grifos do autor).

O momento do salto do sapo é o momento do acaso mallarmeano, é o agora Zen, o

instante. Voltando ao haikai de Leminski, a inserção de Mallarmé no título configura-se como

um perfeito consórcio. Bashô projetando o salto do sapo no silêncio do tanque, quer dizer, no

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silêncio da poesia – lembremo-nos de uma celebre citação de Benedito Nunes (1993, p. 96)

encontrada em seu ensaio “Hermenêutica e poesia”: “toda grande poesia termina no silêncio

que ela mesma gera”. Mallarmé lançando os dados ao acaso (não para aboli-lo, pois ele é

constituinte mesmo da poesia). Mallarmé e Bashô também trazem à tona toda a teoria da

intertextualidade e todo o debate da referencialidade. Afinal, “a citação sempre faz aparecer a

relação do autor que cita com a biblioteca [...]” (SAMOYAULT, 2008, p. 49). Portanto, neste

haikai “Mallarmé Bashô” Leminski reescreve palimpsestuosamente os poetas Mallarmé e

Bashô. Aqui, tem-se o salto do sapo, como um lance de dados, diante do poço, o acaso, ou

como analisa Fábio Vieira (2010, p. 103), é o espaço-tempo da “indeterminação”.

Outro haikai de La vie en close é decisivo para o diálogo com a tradição de Bashô:

O corvo nada em ouro nem o céu estraga o vôo nem o vôo dana o céu. (LEMINSKI, 1994, p. 155).

O primeiro verso deste haikai capta uma paisagem contrastante: um corvo negro, tão

negro quanto o céu do anoitecer, e a luminosidade do ouro. O primeiro verso de um haikai é

como uma lente de uma câmera fotográfica que quer captar, pela objetividade, o máximo do

cotidiano. O segundo contraste apresentado no haikai é entre o pequeno corpo de corvo e a

infinidade absoluta do céu. Pelos segundo e terceiro versos notam-se a imbricação entre corvo

e céu, onde um não interfere no outro – a brincadeira entre os verbos nadar e danar já denota a

influência concretista em Leminski. Da ocorrência, um pequeno corvo na imensidão do céu,

chega-se à interação: se o céu não estraga o voo do corvo, este não lhe dana, mas sim se lança

nele, dissipa-se no céu. Um corvo que se esgota na totalidade do céu. E perguntaria, com

razão, o leitor: não haveria algo de metalinguístico nesse esgotar-se? Isto é, um pequeno

corpo (o haikai) que se esgota na imensidão do céu (a página em branco)? Este voo no

horizonte também nos leva a Bashô. Em um haikai que também traz a figura do corvo,

podemos ver a presença do poeta japonês na poética de Leminski:

Um corvo pousado num ramo seco – entardecer de outono. (BASHÔ apud FRANCHETTI, 2012, p. 57).

Se o haikai é este incessante voar na imensidão, a figura do corvo é a ponte entre esses

dois poetas. As imagens captadas por Bashô – rama seca, corvo e tarde de outono – parecem

dialogar com as imagens captadas por Leminski, assim como há uma conexão entre os

contrastes – no haikai acima de Bashô, o mesmo corvo negro e a tarde de outono, ao fundo, o

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envolvendo. Da zona de encontros, partimos agora para uma zona de salto decisiva, que

também é a aurora do haikai, digamos: a zona do nada.

3.4.2 Zona do nada

Se em Caprichos e relaxos pudemos ver o haikai como experiência mística e

contemplativa, um Leminski que vai ao pensamento oriental (budismo Zen) e leva para sua

poesia a experiência Zen da vacuidade (sunyata), em La vie en close, quando dizemos que se

completa um ciclo, quer dizer: se concatena a nossa tese de que a poesia de Leminski funda-se

no nada – um nada originário. Leminski vai também à Heidegger e dele busca não só a

essência da poesia. Com Heidegger, podemos afirmar que há em Leminski uma poesia

suspensa no nada. O nada já foi aberto por Heidegger pela angústia. Se Heidegger, em Ser e

tempo, viu na angústia a abertura privilegiada para o nada (ou manifestação do nada, como

escreve em Que é metafísica?137), em Os conceitos fundamentais da metafísica Heidegger

verá no tédio (na manifestação do tédio) o libertar-se do ser-aí. Na obra de Leminski,

podemos fazer a seguinte averiguação: há em Caprichos e relaxos um nada manifestado pela

angústia (ver Ângulo Vazio) e há em La vie en close um nada manifestado pelo tédio. Nesta

obra póstuma, temos poemas carregados de tédio, solidão e morte. “Tudo é vago e muito

vário” (LEMINSKI, 1994, p. 64), já anuncia um verso sobre o peso deste vazio. Poemas de

dor, de luto, de tristeza, como podemos ver nos versos finais do poema “Luto por mim

mesmo” (Ibid., p. 92): “uma dor que goza / como se doer fosse poesia”. Como Leminski

queria, mesmo, diluir-se totalmente na poesia138, tudo em La vie en close é dor. Dor de

experimentador139. Da dor ao tédio das horas. Aqui nos deteremos em dois haikais

(cuidadosamente postos lado a lado na organização do livro) que trazem essa manifestação de

tédio.

Vazio agudo ando meio cheio de tudo (LEMINSKI, 1994, p. 123).

Já é uma particularidade dos haikais de Leminski um eco fechado produzido pela

assonância em ‘o’ (vazio agudo / ando meio / cheio de tudo) e pela rima interpolada (agudo / 137 Cf. Heidegger (1989, p. 39). 138 Basta conferirmos o poema de “Polonaises”, em Caprichos e relaxos: “vai vir o dia / quando tudo que eu diga / seja poesia” (LEMINSKI, 1983b, p. 58). 139 Mais uma vez somos levados a Caprichos e relaxos, especialmente em um poema bastante peculiar pela sua sonoridade e pela sua forma: “ver / é dor / ouvir / é dor / ter / é dor / perder / é dor” (Ibid., p. 59). Um poema que dialoga com um dos haikais de La vie en close, onde temos “ver é violento / que golpe / aplicar no vento?” (LEMINSKI, 1994, p. 114).

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tudo), além de uma rima encadeada (meio / cheio). Toninho Vaz nos conta que este haikai foi

escrito em um bar, junto com alguns outros, na fase mais radical de Leminski por conta do

excesso do álcool (em 1987)140. O primeiro verso expõe a intensidade do vazio, o seu peso

(“agudo”). Um sentimento de tristeza, tédio, ou até mesmo um estado de saturação, pouco se

manifestou em Caprichos e relaxos. Podemos dizer que a sua tonalidade afetiva estava

adormecida, e aqui desperta. Despertar de forma aguda. Em Os conceitos fundamentais da

metafísica, Heidegger chama de “tonalidades afetivas” sentimentos como tristeza, melancolia,

ira, e estas tonalidades são intrínsecas ao ser do homem. Ela é o “como” de nosso ser-aí e não

simplesmente um “estado de alma”. Ela é o “jeito fundamental como o ser-aí enquanto ser-aí

é” (HEIDEGGER, 2011b, p. 88). Heidegger atenta para o fato de que é preciso despertar estas

tonalidades afetivas adormecidas. Despertá-las é um modo de “deixar o ser-aí como ele é ou

como ele, enquanto ser-aí, pode ser” (Ibid., p. 90). Se há várias tonalidades afetivas, que estão

sempre variando, qual deve ser despertada? Heidegger responde no parágrafo 19 que o

tédio141 é a tonalidade afetiva fundamental e que se encontra velado. É preciso deixar o tédio

acordar para libertar o Dasein. A concretude do despertar desta tonalidade afetiva

fundamental no haikai se concretiza nos dois últimos versos, onde se brota o entediar-se.

Andar (meio) cheio de tudo é o próprio irradiar do tédio por todos os lados (o próprio verbo

de movimento “andar” já se relaciona com a irradiação). É um estar-entediado do ser que não

se encontra ocupado com os afazeres, os passatempos142 da vida. Na cena do haikai, não

parece que se está entediado por isto ou aquilo (o que Heidegger chama de primeira forma de

tédio, o entediar-se por algo143), mas por algo indeterminado, que não se sabe: vazio.

Heidegger nomeia esta indeterminação de segunda forma de tédio144, e aí se dá a dialogação

com o haikai, pois o vazio absorve este ser-entediado: ser-deixado-vazio, pois “o que nos

deixa vazios é o entediante” (Ibid., p. 153). O poema deu espaço para o vazio porque ele se

fez vazio, mergulhou no vazio agudo. E quantos de nós não nos entendíamos a todo o

momento, não somos absorvidos por esse vazio agudo (que Heidegger chama de tédio

profundo). Aberto o ser-aí, o haikai subsequente completa a aurora da tonicidade afetiva:

140 Cf. Vaz (2001, p. 265). 141 O tédio se encontra em relação com tempo, com o longo tempo – o tempo, que lança as perguntas metafísicas pelo mundo, pela finitude e pela singularização – quer dizer, Heidegger tenta chegar “à essência do tempo através de uma interpretação da essência do tédio” (2011b, p. 176). 142 Cf. parágrafo 23, “o ser-entediado e o passatempo”, de Os conceitos fundamentais da metafísica, onde Heidegger fala que o passatempo é a hesitação do tempo que nos aflige, pois é no passatempo que dispersamos o tempo, isto é, é nossa ocupação (Ibid., p. 123-140). 143 Cf. Ibid., p. 103-140. 144 Cf. terceiro capítulo (Ibid., p. 141-173).

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Fruto suspenso a que susto pertenço? (LEMINSKI, 1994, p. 124).

Tudo vem à tona neste haikai a partir da pergunta nos versos finais: o tédio, a angústia,

inconformação, tristeza. O abalo produzido pelo “susto” revela a não identificação do “eu

lírico” com o mundo. O susto revela um não estabelecimento de presença, uma insatisfação

determinada pela indeterminação. Esta marca de insatisfação é, então, o entediante para o ser-

entediado que se entediou por isto? Se o susto tem por função o choque, tudo é

intranquilidade? O que fazer diante do abalo? Como a todo o momento somos bombardeados

por abalos, catástrofes, guerras, miséria, parece mesmo que o melhor é um estar-ausente145. O

primeiro verso do poema já nos direciona: a suspensão. Suspender-se dentro do nada, tal

como nos diz Heidegger no Que é metafísica?146, para a liberdade e transcendência:

compreensão de ser. Ultrapassagem, como escreve o próprio Heidegger em Sobre a essência

do fundamento (1989, p. 94, grifos do autor), tratado da mesma época da preleção Que é

metafísica?, “na ultrapassagem o ser-aí primeiramente vem ao encontro daquele ente que ele

é, ao encontro dele como ele ‘mesmo’”. Diante do fruto suspenso, poesia e filosofia

estabelecem sua dialogação. Com primor o nosso crítico Benedito Nunes tão logo percebeu

esta vizinhança poesia e filosofia, e poesia e Heidegger, a ponto de nos deixar escrita a

afirmação: “a poesia revela a essência humana” (NUNES, 1992, p. 268). Diante do fruto

suspenso, chegamos à fundação do ser pela poesia, a um Dasein poético147. Chegamos, então,

à habitação. Habitação poética.

Com La vie en close completou-se um ciclo no diálogo não só com a tradição oriental,

como com o próprio pensamento filosófico sustentado na ontologia heideggeriana. O título do

livro já dá a pista, o close amplia para o grande plano da imagem fotográfica, dá ênfase,

destaca melhor o encontro com o Oriente. Se em Caprichos e Relaxos é possível encontrar

timidamente a presença bashoniana nos haikais que percorrem o mundo circundante, presença

que se dá pelo tom de simplicidade empregado no haikai, em La vie en close o encontro se

efetiva. O que resulta é uma poesia despojada e desprendida, que aprendeu com o budismo

145 Lembra-nos Heidegger no parágrafo 16 de Os conceitos fundamentais da metafísica que mesmo um estar-ausente, é preciso estar-aí, “precisamos estar aí para podermos estar-fora” (2011b, p. 85). 146 Cf. Heidegger (1989, p. 41). 147 Em dois momentos Benedito Nunes nos fala deste Dasein poético: primeiro, em Passagem para o poético (1992, p. 271): “[...] porque o Dasein está enraizado à totalidade do ente pelos filamentos poéticos da linguagem”; segundo, em Hermenêutica e poesia (1999, p. 158): “o próprio Dasein é considerado poético [...]”.

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Zen a simplicidade, o enigma e o não-pensamento. Uma poesia que aprendeu que para voar

não precisa de asas. Quem voa é o horizonte.

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ZONA DE AJUSTES, ZONA DO FIM

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando tratamos da obra de Paulo Leminski parece que estamos entrando mesmo em

um espaço esgazeado e movediço, também labiríntico. Tudo se estilhaça, mas nunca se perde

o charme. A obra de Leminski é um espaço de encontros. Em uma passagem acerca dos

encontros promovidos por Deleuze, Peter Pelbart (2013, p. 337) diz o seguinte: “encontrar é

sempre afetar e ser afetado, mas igualmente envolver aquilo que se encontra, apossar-se de

sua força sem destruí-lo”. A citação de Pelbart pode guiar nossa conclusão diante do espaço

múltiplo de Paulo Leminski: um poeta que incorpora aqueles que ele encontra. Mas ao

incorporar que Leminski transforma o produto em algo próprio. Talvez a antropofagia

oswaldiana seja, mesmo, sua maior herança. Deglutinagem literária.

No espaço de encontros, Leminski é com os outros. É diálogo com. Inclassificável,

aprendeu com os modernistas, com os concretistas (a eles devedor), surfou na poesia

marginal, nos outdoors, na música, e o fruto de toda essa aprendizagem foi um poeta elástico

que afetou e foi afetado por aqueles com quem encontrou no caminho. O que buscamos nesta

pesquisa foi abrir alguns destes encontros e de seguir a trilha de um Leminski que aprendeu

com o Oriente novos caminhos para a poesia. Um Leminski que aprendeu com Mishima a ser

um experimentador da linguagem. Ora, Mishima presenciou um momento de transição de um

Japão abalado pelo pós-guerra (um país que não era mais feudal). Mishima treina a si próprio

e a seus personagens para o combate e para a morte. Mishima é um signo de resistência:

defende até às últimas consequências o Japão que sonhara. Decadente, Mishima escreveu com

a sua espada de samurai. Sua obra opera por uma tríade básica beleza-ruína-morte. Mas a

beleza é a chave que falta para abrir a porta, porque se a beleza está ligada à ruína e à morte,

como num filme sokuroviano148, ambos protagonistas vão lutar por uma bela morte. Esse

Mishima, signo da resistência, que Leminski vai ao encontro para sua deglutinagem. Mas o

que era problemático na tríade de Mishima, a questão da beleza, estava ao alcance na própria

tradição literária do Japão. É lá que Leminski vai ao encontro. E descobre a poesia haikai.

Com Bashô e com os cultivadores do haikai do século XVI, Leminski aprende a beleza

e a simplicidade da palavra poética. Aprende o nomadismo, o desprendimento, a atenção e a

escuta que conferiram estes haikaístas à poesia. A poesia podia olhar para o objeto e ser o

objeto, chegar a ser o objeto. A poesia era o vir-a-ser. Com Bashô e com a tradição oriental,

148 Pode-se conferir um filme do cineasta russo Alexsandr Sokurov, O Sol (2005), em que há uma explanação de como beleza-ruína-morte se relacionam, valendo notar ser um filme sobre o império japonês.

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Leminski aprendeu o que é o branco (da página), a vacuidade, o vazio (que não é ausência,

como pensamos). Com Bashô, a poesia pode ouvir a chuva, cheirar o nascer da manhã, voar

junto dos pássaros. Com Bashô, Leminski aprendeu o movimento das coisas. E a

deglutinagem que Leminski faz desta ida à poesia japonesa do século XVI é: deslocar Bashô

no tempo e misturá-lo à Stéphane Mallarmé. Quando Bashô executou o pulo do sapo no

tanque, as linhas foram traçadas. O instante do pulo, o aqui e o agora budista, mais o lance de

dados de Mallarmé. Como dizem uns versos de um poema que se encontra n’O ex-estranho

(2001, p. 61): “o mais fundo / está sempre na superfície”. Já com os ideogramas chineses

(código não verbal), Leminski opera um diálogo com Pound e com a semiótica. E essas são as

bases para seu trabalho na publicidade, no jornalismo e na música. Outros encontros vão

surgindo à medida que outras páginas vão sendo viradas. Pois sua poesia está sempre

permitindo novas leituras, novas possibilidades e caminhos.

O que buscamos nesta investigação foi contribuir com a abertura destes encontros de

Leminski com o Oriente e o que resulta destes encontros. Buscamos colaborar com a fortuna

crítica do poeta no que tange à sua produção de haikais, visto que Leminski se dedicou

inteiramente a esta singular forma poética. Por ser breve, a própria crítica literária não deu

muita importância à haikaística, que continua às escuras em seus compêndios. Por vezes,

algumas luzes são lançadas. Por exemplo: o nosso crítico já citado Roland Barthes dedica uma

obra inteiramente ao haikai, o A preparação do romance (2005), notas de seu último

seminário no Collège de France. Neste seminário, entre 1978-1979 (primeiro volume da obra;

o segundo volume compreende o último curso de Barthes, entre 1979-1980), Barthes

investiga o primitivo da escrita, a anotação. Sua tese é bastante peculiar: o haikai é uma

anotação do instante, uma brevidade que é preparatória para o romance, isto é, o haikai é

uma passagem para a narrativa. Algumas colocações são dignas de nota, como a atração que a

forma breve do haikai desperta no olhar do leitor, três linhas soltas na imensidão do branco da

página, o que Barthes chama de aeração do haikai (2005, p. 53). Para o crítico, o haikai é

uma captura do instante, “fruição imediata” (Ibid., p. 100) – a linha que leva à sua tese do

congelamento das imagens. Mas esse instante capturado é puro e incongelável, não carece de

“nenhum ato de reserva, nenhum congelamento” ( Ibid., p. 101, grifo nosso). Ora, neste ponto

Barthes fica frente a frente com ele mesmo. O próprio “capturar” já abre a possibilidade de

vizinhança entre palavra e imagem (encontro intersticial), imagem-congelamento, na ótica do

crítico – veja-se a contradição. Em nossa literatura brasileira, esta tese de Barthes faz sentido

em Guimarães Rosa, por exemplo, que iniciou sua atividade literária na poesia, compondo

haikais – poder-se-ia afirmar que o haikai de Rosa seria uma preparação para sua narrativa. Já

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em Leminski, a tese barthesiana não faz sentido, pois seu haikai não prepara a sua prosa, o

que ele prepara é, pois, a própria poesia. E se Barthes se põe a falar dos limites do haikai149,

na obra de Leminski não há limites.

E às escuras também está a crítica acerca dos haikais de Leminski. Quando são usados

pela crítica, é para ilustrar algum debate, ou fica relegado a algum capítulo, secundário. Ora,

se há em Leminski uma vasta produção de haikais, e se o próprio Leminski vai até à filosofia,

em mais uma deglutinagem, e incorpora Heidegger, para dizer que a brevidade é o essencial

da poesia150, por que a própria crítica do poeta esqueceu-se do rico acervo de haikais de

Leminski em suas teorizações? Portanto, que esta investigação não meramente recubra

lacunas, mas que seja um salto de sapo no tanque da crítica.

149 Barthes primeiro fala que o haikai tem um teor testemunhal, por seu caráter de anotação do agora (BARTHES, 2005, p. 108); segundo, fala dos limites do haikai, quanto ao seu “tema” (Ibid., p. 173-180). 150 Cf. Leminski (1999, p. 194).

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ANEXOS

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Anexo 1

Paulo Leminski, Folha de São Paulo, 21 set. 1985. Caderno Ilustrada, p. 50.

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Anexo 2

Manuscrito em guardanapo, de Paulo Leminski, disponível na Exposição “Múltiplo Leminski”, realizada de 27 out. 2012 a 31 abr. 2013 no Museu Oscar Niemeyer, Curitiba, sob a curadoria de Alice Ruiz. Arquivo pessoal.

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Anexo 3

Paulo Leminski, Folha de São Paulo, 18 mai. 1985. Caderno Ilustrada, p. 50.

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Anexo 4

Variações para silêncio e iluminação

muitos são os silêncios poucos serão ouvidos o silêncio de buda o cristianismo nasceu das palavras de Jesus o zen nasceu de um silêncio de Buda um dia o iluminado em lugar do sermão apresentou aos discípulos uma flor sem dizer palavra um único discípulo entendeu mahakasyapa primeiro patriarca do zen a doutrina da meditação silenciosa da concentração descontraída da dança não dançada da voz sem voz da iluminação súbita da luz interior da superação dialética dos contrários na vida diária o silêncio de pitágoras para pitágoras tudo é número tudo é harmonia tudo é música os astros obedecem a uma matemática essa matemática é uma música não ouvimos a música das estrelas porque nossos ouvidos são impuros a culminância da experiência pitagórica de purificação e ascensão de espírito era ouvir nas noites estreladas a sinfonia vinda das esferas o silêncio dos astros

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nasce da nossa surdez o silêncio de pascal “o silêncio desses espaços infinitos me apavora” os pensamentos estraçalhados de pascal são a crise de uma consciência excepcional no limiar de uma nova era o místico pascal contempla o céu estrelado numa vã espera de vozes o céu calou-se estamos sós no infinito deus nos abandonou “daquela estrela à outra a noite se encarcera em turbinosa vazia desmesura daquela solidão de estrela àquela solidão de estrela” (leopardi / via h. campos) nenhum ufo no close contact of the third kind a solidão "cósmica" de pascal é o pendant do vazio de sua classe social cuja hegemonia está para terminar os germes da revolução francesa que vai derrubar a nobreza e colocar a burguesia no poder já estão no ar pascal ouve nos céus o tremendo silêncio de uma classe que já disse tudo que tinha que dizer pela boca da história o silêncio de hermes é o silêncio hermético o silêncio dos sinais difíceis de ler o silêncio da poesia de vanguarda o claro silêncio de mallarmé e da poesia de vanguarda o silêncio da ilegibilidade de hoje que vai alimentar a legibilidade superior de amanhã hermes é o deus que conduz as almas

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até seu destino o deus que tira o sentido das mensagens mortas e as conduz à vida do entendimento o silêncio "incompreensível para as massas" a grande acusação contra maiakóvski o silêncio lance de dados o acaso uma chance até o absoluto o silêncio de hitler o silêncio de hitler é o silêncio dos tiranos o silêncio ditado pelo medo pela tortura pela prisão pelo medo da tortura pelo medo da prisão o silêncio do terror o silêncio da censura o silêncio da autocensura o silêncio do medo criado pelos que têm medo da história. o silêncio de graciliano o silencio de graciliano ramos é o silêncio das memórias do cárcere o silêncio sibéria o silêncio gulag o alto silencio das consciências incómodas o silêncio que mussolini deu a gramsci o silêncio cercado de grades o grito amordaçado dos que tiram o sono dos tiranos o silêncio de webern é também o silêncio de joão gilberto entreouvido por augusto de campos num silêncio só no quarteto samba de um silêncio só o silêncio dos grandes mestres da ausência como mondrian o silêncio nó o silêncio elipse o silêncio substantivo o silêncio plenitude do som o silêncio de spengler para spengler (“a decadência do ocidente”)

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a forma mais completa de comunicação é a atingida por um casal de velhos camponeses sentados à porta da sua choupana ao cair do sol contemplando o pôr do sol em absoluto silêncio é o silêncio das coisas com sentido demais o silêncio depois que tudo já foi dito o silêncio da maioria a voz da maioria silenciosa é silêncio cúmplice o silêncio de quem compactua com o silêncio de hitler e deixa prosseguir o silêncio de graciliano o silêncio comodista dos que dançam conforme a música o silêncio dos que fingem que não sabem o silêncio dos que fazem de conta que não têm nada com isso o silêncio comprado com a boa vida o silêncio dos que dizem viva e deixe viver um toque de silêncio um minuto de silêncio antes da iluminação.

Paulo Leminski, Ensaios e Anseios Crípticos, 2011, p. 19-25.

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Anexo 5

Paulo Leminski, Folha de São Paulo, 13 jul. 1985. Caderno Ilustrada, p. 34.

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Anexo 6

Cida Taiar, Folha de São Paulo, 14 jun. 1983. Caderno Ilustrada, p. 23.

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Anexo 7

Nelson Ascher, Folha de São Paulo, 24 set. 1983. Caderno Ilustrada, p. 50.

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Anexo 8

Folha de São Paulo, 2 mar. 1991. Caderno Letras, p. 6.

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Anexo 9

Régis Bonvicino, Folha de São Paulo, 13 abr. 1991. Caderno Letras, p. 4.