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Ele Viu os Céus Abertos Ele Viu os Céus Abertos Michell Baunard Tradução de Albuquerque Medeiros (1908) Editora Central Gospel Digitalizado por SusanaCap Revisado por Lucia Garcia HTTP://SEMEADORESDAPALAVRA.QUEROUMFORUM.COM

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Ele Viu os Céus AbertosEle Viu os Céus AbertosMichell Baunard

Tradução de Albuquerque Medeiros (1908)Editora Central Gospel

Digitalizado por SusanaCapRevisado por Lucia Garcia

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S u m á r i o

ORELHAS:

INTRODUÇÃO

CONVIVENDO FISICAMENTE COM O FILHO DO HOMEM

CAPÍTULO 1 - REENCONTRANDO AS PEGADAS DO EVANGELISTA

CAPÍTULO 2 - ELEITO DISCÍPULO DO MESTRE

CAPÍTULO 3 - EDUCADO NA ESCOLA DE JESUS

CAPÍTULO 4 - TESTEMUNHA FIEL DO SENHOR

CAPÍTULO 5 - A FACE HUMANA E DIVINA DE JESUS

CAPÍTULO 6 - A INSTITUIÇÃO DA SANTA CEIA

CAPÍTULO 7 - DURANTE A CEIA COM O SENHOR

CAPÍTULO 8 - AO PÉ DA CRUZ

CAPÍTULO 9 - TESTEMUNHANDO A RESSURREIÇÃO

CONVIVENDO ESPIRITUALMENTE COM O FILHO DE DEUS

CAPÍTULO 10 - O PRIMEIRO TESTEMUNHO DE JOÃO PERANTE OS JUDEUS

CAPÍTULO 11 - JOÃO EM SAMARIA E A MORTE DE TIAGO

CAPÍTULO 12 - JOÃO PARTE PARA O CAMPO MISSIONÁRIO

CAPÍTULO 13 - COMBATENDO AS HERESIAS

CAPÍTULO 14 - O EVANGELHO DE JOÃO

CAPÍTULO 15 - A TEOLOGIA DO EVANGELHO DE JOÃO

CAPÍTULO 16 - SUA PRIMEIRA EPÍSTOLA

CAPÍTULO 17 - JOÃO NA ILHA DE PATMOS

CAPÍTULO 18 - O APOCALIPSE DE JOÃO

CAPÍTULO 19 - O RETORNO DE JOÃO A ÉFESO

CAPÍTULO 20 - A ESCOLA DE JOÃO

CANTO SOBRE AS ÁGUAS DA ILHA

ORELHAS:

Este é o livro mais belo e mais rico que alguém já escreveu sobre o evangelista João — a testemunha mais importante e a mais bem informada da verdade do cristianismo. João foi aquele discípulo que destacou-se entre os doze por sua corajosa ternura e fidelidade a Jesus Cristo, fatores que o tornaram conhecido como "o discípulo que Jesus amava " (Jo 19.26).

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Seguindo todos os dias Aquele que "tem as palavras de vida eterna" (Jo 6.68) como seu amigo e confidente, João foi o discípulo que mais próximo esteve da transfiguração do Senhor no Tabor, de seu coração na Ceia, e de sua Cruz no Calvário. Foi o evangelista do Verbo, o profeta de Patmos, o pastor de Éfeso, o missionário de Jônia, o filho do Trovão.

Michell Baunard nos faz caminhar passo a passo ao lado de João durante aqueles gloriosos dias em que ele viveu em companhia de Jesus, e após Jesus retornar para o Céu, ainda acompanhamos João em sua trajetória até a ilha de Patmos, e em seguida seguimos os seus últimos passos sobre a face da terra.

Venham, venham, pois não é um artista, não é um atleta ou um retórico que vou fazer vocês ouvirem.

É um homem cuja voz ressoa como a do trovão no céu. O universo tornou-se cativo dessa voz inspirada pela graça. Além de encher o mundo, ela é repleta de uma harmonia celestial indescritível. Esse filho do trovão, que Jesus amou, que é uma das colunas da Igreja na terra, que bebeu do cálice de Jesus, que viu abrir-se o céu e que descansou sobre o seio de seu Mestre, vem hoje até vocês. Um grande correr de cortinas celestiais, um portentoso rasgar de véus vai começar. O céu inteiro é a cena e os crentes em Jesus Cristo reunidos em sua Igreja sobre a face da terra serão os espectadores. Porém, não devemos esquecer que João é um homem sem ciência e sem letras, um pescador de Betsaida, o filho de Zebedeu. Que nos poderá dizer este homem da Galiléia que só conhece a sua pesca? Não irá nos falar de redes e de peixes?

Não, ele nos falará unicamente de coisas celestiais ignoradas antes dele. Esse homem que bebeu sua sabedoria nos tesouros do Espírito Santo, vai fazer empalidecer todos os pensamentos sublimes de Aristóteles e de Platão.

Este livro traz inúmeras informações inéditas sobre o Quarto Evangelista. Seu autor, escrevendo de maneira clara e inspiradíssima, mostra, entre outras coisas, que em lugar algum a Verdade se revela de maneira superior à maneira como ela está no Evangelho, e em parte alguma ela se mostra mais profunda e mais bela do que no Evangelho de João.

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INTRODUÇÃO

João foi a testemunha mais importante e a mais bem informada da verdade do cristianismo. Ele foi aquele discípulo que destacou-se entre os doze por sua corajosa ternura e fidelidade a Jesus Cristo, fatores que o tornaram conhecido como "o discípulo que Jesus amava" (Jo 19.26). Quando, ao longo das páginas deste livro, o virmos seguindo Aquele que "tem as palavras da vida eterna" (Jo 6.68) como seu amigo e confidente, o mais próximo de sua glória no Tabor, de seu coração na Ceia, e de sua cruz no Calvário, compreenderemos o direito que o evangelista teve de denominar-se por excelência a "testemunha da Verdade".

Ele foi também um dos discípulos de João Batista. Foi o apóstolo querido de Jesus, o íntimo de sua paixão e de sua glória, o evangelista do Verbo, o profeta de Patmos, o pastor de Éfeso, o missionário da Jônia. João não era uma figura fraca. Não devemos esquecer que apesar de ele ter-se intitulado de o discípulo predileto, Jesus o chamava de filho do Trovão.

João pediu um lugar de honra à direita de seu Rei; mas convém não esquecer que ele se comprometeu em beber o cálice de amargura, e que cumpriu a palavra.

Para ele a perfeição não consistia em contemplar a santidade e a glória do Senhor, mas sobretudo em trabalhar e sofrer. A gloriosa montanha da Transfiguração, onde João foi uma das testemunhas do Salvador, destacou-se tão-somente como um degrau da crucificação. Se ele descansou no seio do seu Mestre, não adormeceu.

Levantai-vos e caminhemos (João 26.46) disse Jesus aos que estavam com ele no Getsêmani. Era para caminhar rumo ao Calvário, para marchar ao combate que o Senhor o chamou. E mais tarde nenhum apóstolo sustentou nem comandou tão brilhante combate como o apóstolo João. Ele refutou a gnose, detestou o nicolaísmo, anatematizou Cerinto e seus erros, padeceu pela justiça, odiou a iniqüidade e amaldiçoou Roma, inebriada de volúpia e de sangue sobre a cabeça das nações.

Mostrou suspensa a taça dos flagelos divinos, repreendeu as igrejas da Ásia por sua inconstância e fraqueza, e até em seus

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pastores denunciou as máculas. Escrevendo à mocidade cristã que formara, João antes de tudo a felicita por ser forte (1 João 2.13). Fala de lutas, de triunfos e de vitórias. Atravessou o fogo, suportou o exílio, desejou a morte, porque para demonstrar o quanto amava era pouco sofrer, se não conseguisse morrer.

Será possível representar em um livro essa alma tão elevada, essa existência tão grandiosa? A mesma ponderação sobre a impossibilidade de se traçar um perfil completo de um personagem de estatura biográfica tão rica e variada como o apóstolo João foi também feita pelo pastor Agostinho de Hipona, quando no ano 396 ele retirou da vida do homem que viu os céus abertos lições preciosas para o seu rebanho. Assim pregava Agostinho:

Eu, que lhes falo agora, será que poderei esquecer quem sou e o assunto de que trato? Trato de coisas divinas, e sou apenas um homem. Trato das coisas do Espírito, e não passo de um mortal Longe de mim, meus queridos irmãos, a vã presunção de sondar esses mistérios. As lições que lhes apresento tomo-as primeiramente para mim. Talvez seja temerário querer perscrutar desta maneira os mistérios de Deus. Porém, se não podemos penetrar até à Fonte, bebamos juntos, pelo menos, das águas que correm pelo riacho. Se não temos acesso direto aos mistérios de Deus, procuremos ouvir quem teve acesso.

E por sua vez, também explorando as riquezas espirituais e humanas da imensa figura apostólica do apóstolo João, o inspiradíssimo pregador João Crisóstomo propunha, também no século IV, ao rebanho dirigido por ele na cidade Neo-testamentária de Antioquia:

Venham, venham, pois não é um artista, não é um atleta ou um retórico que vou fazer vocês ouvirem. É um homem cuja voz ressoa como a do trovão no céu. O universo tornou-se cativo dessa voz inspirada pela graça. Além de encher o mundo, ela é repleta de uma harmonia celestial indescritível.

Esse filho do trovão, que Jesus amou, que é uma das colunas da Igreja na terra, que bebeu do cálice de Jesus, que viu abrir-se o céu e que descansou sobre o

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seio de seu Mestre, vem hoje até vocês. Um grande correr de cortinas celestiais, um portentoso rasgar de véus vai começar. O céu inteiro é a cena e os crentes em Jesus Cristo reunidos em sua Igreja sobre a face da terra serão os espectadores.

Porém, não devemos esquecer que João é um homem sem ciência e sem letras, um pescador de Betsaida, o filho de Zebedeu. Que nos poderá dizer este homem da Galiléia que só conhece a sua pesca? Não irá nos falar de redes e de peixes? Não, ele nos falará unicamente de coisas celestes ignoradas antes dele. Esse homem que bebeu sua sabedoria nos tesouros do Espírito Santo, vai fazer empalidecer todos os pen-samentos sublimes de Aristóteles e de Platão.

O que o leitor passará a ler é, além de um livro biográfico, um livro de doutrina, útil a todos os que tiverem interesse em instruir-se na verdade. Em lugar algum a Verdade se revela de maneira superior à maneira como ela está no Evangelho, e em parte alguma ela se mostra mais profunda e mais bela do que no Evangelho e na vida de João.

1 ª p a r t e

Convivendo fisicamente com o Filho do Homem

CAPÍTULO 1 - REENCONTRANDO AS PEGADAS DO EVANGELISTA

Betsaida, a cidade onde João nasceu A alguns quilômetros de distância de Nazaré, sobre um monte às margens do lago de Tiberíades, até o início do século 20 era possível ver os restos de grandes ruínas paralelas à costa. Vários blocos de pedra bruta indicavam que ali existira uma grande cidade. Dois blocos se destacavam entre aquelas ruínas.

Um deles representava os restos de um edifício de pequenas dimensões, situado perto da praia, apresentando colunas e pilastras mais antigas que os muros. O outro era um

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monumento de grande extensão, do qual só restavam duas muralhas prestes a cair, porém ainda ornamentadas de belos fragmentos, de capitéis coríntios, mutilados e estendidos confusamente na relva que os ocultava.

O local daquelas magníficas ruínas apresenta-se hoje desolado e morto. Durante muito tempo o lago de Tiberíades banhou tristemente o que restou daquelas construções amontoadas ou esparsas na margem. Porém ali existiu Betsaida, cidade onde nasceram os apóstolos João e seu irmão Tiago. O próprio nome Betsaida não foi conservado até os nossos dias. Vários séculos depois da morte de João, os turcos que se apossaram da Palestina deram ao lugar o nome de Tell-Houm.

Beit significa casa, e Saindoun significa pesca. Betsaida tinha, portanto, seu nome derivado da principal atividade de seus habitantes — a pesca. Suspensa sobre o golfo mais setentrional do mar da Galiléia, Betsaida se destacava entre dois dos maiores símbolos do infinito: as montanhas e as águas. As montanhas formam, dos despenhadeiros de Gilboé às primeiras colinas do Líbano, um vasto panorama que se abre aqui e ali para melhor mostrar o céu. O lago, que não tem mais de 20 quilômetros de circunferência, fica ao pé dessas colinas. Suas águas célebres banhavam Tiberíades, Corazim, Cafarnaum — nomes históricos e benditos, que comovem o nosso coração.

Nessa praia estavam espalhadas dez cidades, constituindo o que os antigos chamavam de Decápolis. Como último elemento desse cenário grandioso, e formando a moldura do quadro, podia-se ver, ao oriente, o deserto que se estende pela Ituréia, Abilene e Traconites. Ao sul está o Jordão, que sai do lago para descer pelo vale do Hinom. Ao ocidente ficam a planície de Esdrelom e o monte Tabor, sobre o qual todas as tardes o sol descansa e desaparece.

Uma magnificência de natureza mais elevada estava reservada àquela região que Deus ia consagrar com sua presença, e que foi o berço do seu grande evangelista. O historiador judeu Flávio Josefo conta que Felipe, tetrarca da Galiléia, embelezou Betsaida de tal forma que ela perdeu suas características judaicas. É por isso que enquanto Marcos a denomina de aldeia (Mc 8.23), Lucas a chama de cidade (Lc 9.10).

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O embelezamento realizado pelo tetrarca Felipe teve um caráter profano. O tetrarca quis adaptá-la aos costumes das nações pagãs, e para que Betsaida nada conservasse de sua origem, Felipe trocou o seu nome para Júlias, em homenagem à Júlia, neta do imperador Augusto. Assim transformada, e situada no caminho da Síria para o Egito, Betsaida foi pouco a pouco sendo invadida pela influência romana. Muitos milionários construíram nela suas mansões e vilas de veraneio. A cidade passou a ser um ponto de encontro para negócios e lazer.

Porém, à sombra da população rica, flutuante e soberba que chegava e saía de Betsaida, havia uma população simples, austera, laboriosa, que protestava energicamente contra as novas idéias e os novos costumes que circulavam na cidade. Essa população era composta, sobretudo, de pescadores do lago, e os seus dias transcorriam distanciados dos homens soberbos e mais próximos de Deus.

Zebedeu, seu pai

Foi entre essas pessoas de trabalho árduo e de fé inflexível que Jesus escolheu dois irmãos para incluí-los entre seus apóstolos. Zebedeu era o chefe da família. Alguns antigos comentaristas levantaram a hipótese de Zebedeu ter sido parente de José, o pai adotivo de Jesus. Porém isso ficou só na hipótese, pois nenhum dos quatro evangelhos fornece qualquer elemento que o confirme.

Zebedeu era pescador. Convém não esquecer que, para os judeus, ser pescador era tido como uma honra quase religiosa. O costume nacional e os ensinamentos dos rabinos faziam do trabalho manual um dever cuja obrigação incluía até os mais elevados sábios e chefes judaicos. Os rabinos exigiam que todos os letrados soubessem um ofício manual. O rabino Gamaliel, em seu livro Hoad, ordenava isso. O ilustre rabino Jochana foi alfaiate; o rabino Judas Levi foi pescador. No antigo oriente, o trabalho manual era um costume e uma lei.

Zebedeu possuía uma barca no lago de Tiberíades da qual ele era o patrão. Às vezes associava-se com outra família de pescadores, cujo chefe se chamava Jonas, pai de Simão Pedro e

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de André. Consta que desde essa época reinava grande união entre essas duas famílias que o apostolado ia tornar dali por diante inseparáveis. Tiago e seu irmão João eram companheiros de pesca de Pedro (Lc 5.10). Outras vezes Zebedeu era ajudado na pesca por pessoas a quem ele pagava.

Por esta circunstância e outras análogas é que ob-servadores consideravam essa família de pescadores como gozando de um certo bem-estar. Porém, na realidade a maior fonte de riqueza daquela família era o trabalho. Deus não procura fortuna naqueles que Ele resolve convidar para o seu apostolado. Ele também não excluiu os ricos nem os grandes. Porém, geralmente as suas escolhas estão do outro lado. Se houver em qualquer parte, mesmo que seja no oculto de um casebre, em uma rua de uma aldeia perdida, atrás de uma montanha ou no fundo de um bosque alguém que tenha desejo sincero de servi-lo, é lá que ele fará a convocação para sua Seara; é lá que ele derramará sobre a cabeça desse servo a unção que o capacitará para Sua obra.

Dois filhos de Zebedeu exerciam com ele o ofício de pescador, passando a noite no lago, trabalhando pesado, enfrentando às vezes perigosas tempestades, e descendo de dia com ele à praia a fim de negociar o peixe e consertar as redes. O mais velho dos irmãos chamava-se Tiago. Nos evangelhos ele é designado por Tiago "o maior" para ser distinguido do outro Tiago, filho de Alfeu, denominado "o menor". O filho mais moço de Zebedeu chamava-se João. É a sua história que vamos contar aqui.

Na língua hebraica João significa beleza, graça divina, amor. Vários outros personagens da história de Israel já haviam usado esse nome, mas o filho de Zebedeu é quem estava destinado a torná-lo imortal. Além da instrução religiosa que os judeus recebiam na sinagoga, onde o rabino explicava ao povo a lei de Deus, não consta que João tivesse sido iniciado no estudo das ciências humanas liberais. Falando dele em Atos dos Apóstolos, Lucas chama tanto a ele como a Pedro de "homens sem letras e indoutos" (Atos 4.13).

O idioma dos galileus era o aramaico, que passara a ser falado em toda a Palestina desde o tempo do retorno do cativeiro. Porém, o grego também se tornara tão comum na "Galiléia das nações" que João pôde em poucos anos entendê-lo

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e até falá-lo. Não era por certo o grego das altas escolas, cheio de arte e de tons delicados, tal qual o falavam em Atenas e Alexandria. Era o grego comum, conforme o chamavam, o grego koinê. Um grego "com ares de bárbaro", mais simples, mais popular, mesclado de locuções locais, sobrecarregado de fórmulas hebraicas e do esplendor helênico. Porém um dia os elementos brutos dessa língua, sob a ação do fogo sagrado do Pentecostes, traçarão o perfil da figura divina de Jesus Cristo, e se tornarão a língua do Evangelho de João.

Salomé, sua mãe

A mãe de João era aquela generosa Salomé que mais tarde veremos acompanhando os passos de Jesus durante seu ministério (Marcos 15.40; 16.1). Nada prova, porém, como pretendem alguns autores, que Salomé, mãe de João, fosse parente ou mesmo irmã de Maria, mãe de Jesus. Mas o Evangelho nos faz entender que suas almas ao menos eram da mesma família. Houve um episódio em sua vida que nos forneceu traços visíveis de seu caráter e do seu coração. Foi quando ela se aproximou de Jesus para interceder pelos seus filhos, solicitando para eles um lugar de honra junto ao Rei de Israel (Mateus 20.20-21).

Veremos Salomé mais tarde no monte Calvário. Porém, naquela hora suprema ela não passou de uma mãe cristã. Ela reconheceu que o verdadeiro trono do Rei das dores era uma cruz, e ao ver seu filho João ao pé daquele trono sangrento, no primeiro lugar que tinha pedido para ele, ela certamente se posicionou ao lado do filho e ficou ali até o fim, conservando a fidelidade mais generosa, aquela que sobrevive à morte e que, desfeita em lágrimas, fica junto ao túmulo.

Tendo tido, portanto, uma origem modesta, uma aldeia por pátria, um pescador por pai, uma mulher generosa por mãe, e por única riqueza uma barca, assim foi o evangelista João. Porém, será dessa simplicidade que Deus fará brotar o grande evangelista e o visionário de Patmos.

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O João que batizava

Por aquela mesma época outro homem chamado João, o precursor de Jesus, filho de Zacarias e de Isabel, começou a pregar o batismo do arrependimento às margens do rio Jordão. Ele não ostentava a pompa arrogante dos que habitavam a casa dos reis. Sua vida era rigorosa, a alimentação muito simples, a vestimenta grosseira, e ele próprio era ainda mais austero que sua pregação.

Desde o seu nascimento João Batista tivera uma consagração divina. Muito cedo a mão de Deus o arrastou ao deserto desolador e grandioso, que se estende acima do mar Morto. Ali, diante da severa cadeia de montanhas de Moabe, contemplando as grandezas terríveis daquele país abatido, ele se preparou, sob o olhar de Deus, ao ministério dos profetas. O próprio Filho de Deus declarou que, entre os nascidos de mulher, nenhum era maior que João.

Por isto, desde que se fez ouvir "a voz que clamava no deserto", grande número de israelitas se achegaram a João para escutar sua pregação e confessar-lhe os pecados. Porém, além dessa multidão atenta e faminta, João Batista tinha a seu lado seus discípulos, conforme o nome dado pelo Evangelho aos seus ouvintes mais fiéis e mais assíduos. Estes se haviam apegado ao profeta e até o ajudavam no seu ministério sagrado, batizando a multidão. João Batista edificava-os na vida de santidade, ensinando-lhes a orar, iniciando-os nos mais profundos mistérios da fé, preparando-os assim para as próximas revelações do Reino dos céus.

João, filho de Zebedeu, foi um desses discípulos. Não foi preciso ao jovem galileu deixar seu pai nem sua barca. O ano em que João Batista começou a pregar no Jordão era um ano sabático ou de "repouso universal", e por isso João teve tempo suficiente para ir com André ouvir as lições do mestre. Quando mais tarde ele se tornar apóstolo e evangelista, nós o veremos começar a narrativa da vida de Jesus pelo magnífico capítulo do "Testemunho de João." Essas cenas preliminares das margens do Jordão, especialmente circunstanciadas e minuciosamente expostas em seu livro, não poderiam ser relatadas com mais autoridade e mais fidelidade senão por aquele que as havia presenciado.

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As primeiras lições que o filho de Zebedeu aprendeu na escola de João Batista foi sobre Jesus Cristo, o Filho de Deus. Enquanto outros historiadores comentaram os aspectos exteriores da pregação do Precursor, o apóstolo penetrou mais além no ensinamento do mestre, retendo e assimilando especialmente as respostas que João Batista dava a seus discípulos sobre aquele que devia ser o Redentor de Israel.

João Batista dizia que não era mais que o Precursor, alguém semelhante aos batedores que no Oriente tinham o costume de caminhar adiante dos soberanos a fim de afastarem qualquer obstáculo que por acaso surgisse no caminho real. Declarava também ser tão-somente o paraninfo que se coloca em segundo plano ao lado do esposo para honrá-lo e servi-lo na festa nupcial. Narrando esses fatos, João torna bem saliente o quanto o cora-ção de João Batista estava desde então preparado para a adoração daquele que havia de vir.

Vós mesmos me sois testemunhas de que disse: eu não sou o Cristo, mas sou enviado adiante dele. Aquele que tem a esposa é o esposo; mas o amigo do esposo, que lhe assiste e o ouve, alegra-se muito com a voz do esposo. Assim, pois, já essa minha alegria está cumprida. É necessário que ele cresça e que eu diminua. Aquele que vem de cima é sobre todos, aquele que vem da terra é da terra e fala da terra. Aquele que vem do céu é sobre todos. E aquilo que ele viu e ouviu, isto testifica; e ninguém aceita o seu testemunho. Aquele que aceitou o seu testemunho, esse confirmou que Deus é verdadeiro. Porque aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, pois não lhe dá Deus o Espírito por medida. O Pai ama o Filho e todas as coisas entregou nas suas mãos. Aquele que crê no Filho tem a vida eterna, mas aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece. (João 3.28-36)

Eram estas as revelações que o futuro evangelista do Verbo recebia a respeito do Messias de Israel, antes mesmo que visse a beleza de sua face. Aqueles que, maravilhados pela divina luz que irradia de seu Evangelho, têm procurado saber em que escola filosófica do Oriente, do Egito ou da sábia Grécia aprendera ele essa alta doutrina, devem simplesmente lembrar-

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se que ele era discípulo do Precursor. João, o Evangelista, herdou-a de João, o Profeta. E João, o Profeta, aprendera-a na escola daquela que, trazendo-o ainda no seu ventre, dissera à Maria:

E de onde me provém isso a mim, que venha visitar-me a mãe do meu Senhor? (Lucas 1.43)

A escola de João não é, portanto, a escola de Atenas ou de Alexandria, de Platão ou de Filon. É a escola de João Batista, de Isabel, de Maria, a escola do anjo da Anunciação, a escola do próprio Céu.

CAPÍTULO 2 - ELEITO DISCÍPULO DO MESTRE

Já fazia um ano que João Batista estava pregando, anunciando a magnificência mais que humana daquele "que estava entre os homens, mas que os homens ainda não conheciam". Porém, João Batista o reconhecera à margem do rio Jordão, e dava disso testemunho dizendo:

Eu vi o Espírito descer do céu como uma pomba e repousar sobre ele... E eu vi e tenho testificado que este é o Filho de Deus (João 1.32,34)

O dia em que João viu Jesus

O filho de Zebedeu ainda não o tinha visto, mas tudo o que ouvia dizer desse Mestre extraordinário aumentava cada vez mais o desejo de conhecê-lo, e despertava no seu coração os primeiros indícios daquele amor que ia tornar-se inseparável do seu nome.

A escola de João Batista era para seu discípulo uma escola de doutrina superior e celestial, e ao mesmo tempo o aprendizado de uma vida santamente contrita. Seguindo o exemplo do mestre, dedicou-se ao nazireado, exercício de santidade em que os judeus se consagravam mais particularmente a Deus, fazendo voto de abster-se de bebida fermentada, não tocando em cadáver e deixando crescer intacta

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a cabeleira (Números 6.1-8).

Acredita-se que João também tenha recebido o batismo do Precursor. Porém, aquele batismo tinha sido só uma preparação para o batismo daquele que batizaria com o Espírito Santo e com fogo. E João Batista bem compreendera isso. Ele preparara o caminho do Senhor, e tornara retas as suas veredas: o Senhor podia vir.

Jesus Cristo, Filho de Deus, apareceu às margens do Jordão no 15º. ano do reinado de Tibério, o 30º. da era cristã, e, segundo cálculos de sábios cronologistas, no começo da primavera.

Havia ali um lugar que os judeus chamavam de Betábara, e que o Evangelho chama de Betânia ou "casa dos navios". Fora naquele lugar que outrora os judeus, guiados por Josué, tinham atravessado o Jordão. Era costume os barcos que navegavam pelo Jordão fazerem uma parada naquele lugar. Como aquela praia era muito freqüentada por causa do movimento dos barcos, João, filho de Zacarias, batizava ali.

Naquele dia João Batista tinha junto de si só dois de seus discípulos. O evangelista João diz que um deles era André, irmão de Simão Pedro. Mas não revela quem era o segundo. Porém, conhecendo-se o seu costume de nomear a todos e não se incluir por uma questão de modéstia, conclui-se que o segundo discípulo era o próprio evangelista João.

João conservou na memória todos os pormenores sobre o aparecimento de Jesus às margens do Jordão. Foi, diz ele, na décima hora depois do nascer do sol. Isso correspondia mais ou menos às quatro ou cinco horas da tarde. Essa era a hora em que os sacerdotes do Templo de Jerusalém ofereciam o sacrifício da tarde, imolando um cordeiro (Números 28.4). Vendo aparecer diante dele o divino Salvador Jesus naquela hora solene do sacrifício da tarde, João Batista aproveitou a ocasião para apontar para ele e dizer aos dois discípulos:

Eis aqui o Cordeiro de Deus (João 1.36).

Foi esse o nome pelo qual João, filho de Zebedeu, aprendeu pela primeira vez a conhecer Jesus. Ele jamais o esquecerá. A designação "Cordeiro de Deus" aparecerá mais tarde nos escritos do evangelista e nos escritos do profeta de Patmos. E

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veremos nisso uma lembrança daquele grande dia, e como que uma herança de João Batista, seu primeiro mestre.

Não era possível dar ao Filho de Deus que se fizera homem um nome que definisse sua pessoa e sua missão na terra com mais vivo esplendor.

Jesus Cristo é o Cordeiro e o Santo de Deus. Nele não há mácula alguma. Nele só há inocência. Esse Ser absolutamente puro, que desde o pecado original não era neste mundo senão um sentimento e uma lembrança, desceu do seio de Deus para andar entre nós.

Conhecendo o Cordeiro de Deus

O Cordeiro, que é a santidade, é também a doçura. Ei-lo! Ele veio não com o espírito atemorizante com que já outrora abalara o topo do Sinai. Não está mais prevalecendo a lei do temor, e sim a lei da graça. Ele não está mais ali na condição de Leão de Judá, mas sim de o manso Cordeiro de Deus. Veio inaugurar o reinado do Amor, e como o maior amor é o dom da própria vida, eis que esse nome de Cordeiro, símbolo da santidade, emblema da doçura, irá significar agora a vítima do sacrifício. Há muitos séculos que o mundo culpado implorava à virtude um sangue imaculado que o resgatasse e satisfizesse a Deus. Desta vez o sacrifício será digno do Senhor, pois a vítima será o próprio Filho de Deus.

Também de agora em diante não haverá outro sacrifício sobre os altares da terra senão este. Quando Deus estiver irritado, quando os corações estiverem à míngua e clamarem pela vida, será esta mesma vítima que há de abrandar a Deus.

E quando em Patmos o céu se abrir sobre a cabeça de João, o evangelista, ele poderá entrever o Cordeiro, a vítima que foi oferecida desde o começo, que ele viu pela primeira vez nas margens do rio Jordão, que ele viu imolada no Calvário, e que o anjo lhe mostrará na visão de Patmos, coroada e gloriosa. Os dois discípulos, ouvindo pela primeira vez João Batista apresentar Jesus, compreenderam que se tratava do Messias, e decidiram seguir esse novo Rei. E imediatamente passaram a andar com ele ao longo do rio. Tendo consciência de serem tão

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simples e tão rústicos, temiam aproximar-se dele e conservavam-se à distância por timidez e respeito. Mas Jesus, voltando-se e vendo que eles o seguiam, perguntou-lhes: Que buscais? (João 1.38)

A bondade, a beleza, a majestade da face adorável de Cristo que lhes aparecia pela primeira vez, logo os conquistou. Jesus perguntou-lhes o que eles procuravam. Mas haverá no mundo alguma coisa que se possa ainda tentar achar depois que se viu o rosto de Jesus? Eles nada mais queriam, e num ímpeto responderam: Rabi, onde moras? (v. 38).

Este nome de "mestre" era já uma promessa de que lhe pertenceriam.

Vinde e vede (v.39), Jesus respondeu. Foram e viram onde habitava aquele que criou todas as coisas, mas que viverá neste mundo tão isento delas, que no decorrer do seu ministério declarará que não tem sequer uma pedra onde apoiar a cabeça. E ficaram em companhia dele o restante daquele dia. Porém, o que viram, o que acharam naquele que encontraram? Certamente a beleza divina se manifestou a eles em todo o seu esplendor.

Seria alguma beleza capaz de arrebatar o olhar? Não. Era a beleza incorruptível da justiça, da santidade, da virtude; beleza que o olhar interior pode sempre perceber, e que impressiona tanto quanto mais puro for esse olhar. Ora, João era puro.

Segundo suposição muito bem respaldada dos grandes estudiosos, João tinha naquela época uns 25 anos, idade em que o homem se dedica a buscar um relacionamento profundo com Deus e a conhecê-lo melhor.

A noite chegara. Os discípulos e o Mestre tinham ficado juntos o dia inteiro. De acordo com o método de contagem do tempo utilizado pelos judeus, a expressão "o dia inteiro" também abrangia a noite. A conversa, começada no fim do dia, continuou noite adentro. Passaram toda ela em íntima palestra, e João e seu amigo puderam desvendar algo dos ministérios do Reino dos céus.

Grandioso dia, grandiosa noite para aqueles que os passam com Jesus Cristo em sua casa! "Senhor, onde habitas? Por favor, diga-me onde é a tua morada para que eu possa também fixar

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nela a minha. Só desejo unir-me a ti, ó Senhor". "Ó, venha e veja!" Quão doces são estas palavras, e como é bom saber onde Jesus habita!

Da parte de nosso Senhor Jesus Cristo, aquelas horas conversando com João e André representaram um ato de eleição.

Nós o amamos porque ele nos amou primeiro (1 João 4.19) João dirá um dia. Foram os primeiros passos admiráveis na direção do Senhor, que resultaram em atenções misteriosas e que só serão conhecidas por homens resolvidos a procurar Deus e a entregar-se a ele.

Irineu, que foi da mesma escola e quase do mesmo tempo em que João viveu, conta que nos últimos anos de sua vida, João ainda se recordava de tudo:

— Todos os anciãos que cercavam João na Ásia afirmavam que João contava freqüentemente como Jesus, na idade de trinta anos, se revelara primeiramente a ele e a André, e lhes ensinara coisas maravilhosas. Alguns ouviram isso não só através do próprio João, mas também pelos outros discípulos, que deram disso pleno testemunho.

Entre esta eleição misteriosa de João e sua vocação ao apostolado de Jesus Cristo ocorreram alguns acontecimentos notáveis. Entre os evangelistas, só João os relatou, porque só ele os testemunhou. Fazem parte da sua particular história com o seu divino Mestre.

"Achamos o Messias!”

Estes acontecimentos ocorreram na Galiléia. A notícia do encontro dos dois discípulos de João Batista com o Salvador não tardou a espalhar-se entre os pescadores do lago de Genesaré. André, o companheiro de João naquelas inesquecíveis horas passadas em companhia de Jesus, não pôde calar a sua felicidade, e assim que retornou e encontrou Simão Pedro, seu irmão, disse-lhe: Achamos o Messias (João 1.41) e em seguida levou seu irmão para conhecer o Mestre. E Jesus impressionou profundamente Pedro ao dizer-lhe:

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Tu és Simão, filho de Jonas; tu serás chamado Cefas — que quer dizer Pedro. (João 1.42)

No dia seguinte é a vez de Felipe, também de Betsaida. O Senhor se aproxima dele e o convence a segui-lo. Por sua vez Felipe encontra Natanael, seu amigo, e informa-o que acabou de descobrir aquele que Moisés e os profetas anunciaram. Natanael duvida:

Pode vir alguma coisa boa de Nazaré? (João 1.46).

Mas Jesus vira esse bom israelita quando ele ainda estava debaixo da figueira. Lembra-lhe a hora, as circunstâncias e talvez alguns segredos. Subjuga-o ainda mais pelo amor do que pela luz, e o discípulo vencido adora o Mestre, o Filho de Deus, o Rei prometido a Israel (João 1.49).

Tal é a narrativa de João, tais são as reticências do princípio da vida que ele passou junto de Jesus, na sua aldeia, no meio de seus irmãos e companheiros, convertidos como ele. Mil particularidades pessoais, alusões locais, a simplicidade da descrição e um tom de verdade realmente inimitáveis dão a essa narrativa o mesmo interesse e encanto de sinceridade que a presença da testemunha dá às memórias íntimas.

Enquanto os outros historiadores se contentam em relatar a vocação definitiva desses pescadores do lago, o apóstolo João, como testemunha ocular, nos conduz preliminarmente à conversão deles. É ele o historiador dessas conversões por ter sido a primeira conquista. Foi dele, foi de André, foi de Betânia e em seguida de Betsaida que partiu a vibração das ondas de poder que em breve irão agitar todos os recantos do mundo.

A água transformada em vinho

A primeira reunião desses discípulos e a primeira manifestação da glória do Senhor Jesus são da mesma época, e é a mesma testemunha que nos conta isso. Natanael, que acabara de reconhecer em Jesus o Messias, morava na aldeia de Cana, a moderna Kafar-Kenna, distante quase cinco quilômetros de Nazaré, e a pequena distância de Betsaida.

Celebrava-se um casamento em uma família daquele lugar.

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Talvez os noivos fossem parentes de Natanael ou do próprio Jesus. O fato é que Jesus, os primeiros discípulos e Maria foram convidados. Jesus e os que o acompanhavam eram apenas seis pessoas, todas da mesma região, de condição igualmente humil-de, unidos por aquela intimidade que encerrava as sementes da universalidade da futura Igreja cristã.

Um jantar familiar durante um casamento inaugura o novo Reino, assim como uma ceia de despedida deverá coroá-lo. Jesus começou por mudar a água em vinho, assim como um dia o veremos usar o vinho como símbolo do seu sangue. Aquele milagre já prefigura a transformação da água da antiga lei no vinho evangélico que vai inebriar as almas em núpcias divinas. E essas almas começarão a maravilhar-se por ele.

Jesus principiou assim os seus sinais em Cana da Galiléia e manifestou a sua glória, e os seus discípulos creram nele, João 2.11.

Ali terminava a vida oculta de Jesus. Quando pela primeira vez João encontrou Jesus Cristo nas margens do Jordão, ele o tinha admirado e amado como Mestre. Mas agora, nesta segunda manifestação de sua glória, nas bodas de Caná, João crê nele, e já o adora como Deus. Está subjugado, conquistado para sempre.

A escolha dos Doze

Tinha chegado a hora de Jesus organizar o grupo de seus discípulos. Se Jesus tivesse consultado os mais simples princípios da prudência humana, teria procurado para o acompanhar no seu ministério terrestre pessoas que se equiparavam aos três reis que se haviam ajoelhado diante dele, ou aos doutores a quem ele havia maravilhado no Templo. Ou bastava falar a seu Pai para que uma legião de anjos baixasse à terra. Se ele tivesse agido assim, não teria ido buscar seus colaboradores em barcos de pesca.

Porém, se ele não tivesse escolhido como seus discípulos aqueles simples pescadores, sua obra teria sido puramente humana, e não teria se revestido de uma ternura infinita e de uma força divina. Eis porque o Senhor só abriu o seu coração,

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com raríssimas exceções, aos ingênuos, aos pobres e aos pequeninos. Ele lembrou-se sempre daqueles que o tinham inicialmente amado. Por isso foi que ele, abandonando os palácios e as escolas, desceu à praia do mar da Galiléia.

Jesus, andando ao longo da praia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, os quais lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores. E disse-lhes: Vinde após mim, e eu vos farei pescadores de homens. (Mateus 4.18)

Em seguida foi a vez de convocar oficialmente João e seu irmão Tiago:

E, adiantando-se dali, viu Jesus outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, num barco com Zebedeu, seu pai, consertando as redes; e chamou-os. Eles, deixando imediatamente o barco e seu pai, seguiram-no. (Mateus 4.21-22)

João abandonou suas redes. Aliás, para seguir a Jesus foi necessário deixar tudo, romper com tudo, tudo sacrificar a Deus.

Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. (Mateus 10.39)

Eleito discípulo do Mestre

De quantas almas essa renúncia de João ia tornar-se a história, e que reinado de consagração a ele Jesus Cristo inauguraria neste mundo!

CAPÍTULO 3 - EDUCADO NA ESCOLA DE JESUS

Jesus, tendo escolhido João e Tiago, tornou-os definitivamente seus companheiros. Porém, Salomé não quis separar-se de seus filhos. É por isso que a vemos seguindo os passos de Jesus juntamente com outras mulheres da Galiléia. Elas se ocupavam com a subsistência do Mestre e recebiam suas

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lições.

O apostolado para o qual o filho de Salomé tinha sido convidado deveria ser o instrumento de salvação do mundo. Mas era preciso que antes esses rudes pescadores sofressem uma transformação completa. A eles, sim, caberia o trabalho de propagar o evangelho por toda a terra. Pois o objetivo de Jesus não era realizar diretamente, por si mesmo, a obra sobrenatural da conversão da humanidade.

Durante toda a sua vida, o divino Pastor só teve no seu rebanho algumas raras ovelhas do redil de Israel. Em três anos de pregação, de grandes exemplos e de milagres, o Mestre só conseguiu reunir ao seu redor doze apóstolos e setenta e dois discípulos. Isto prova muito bem que ele não foi e não quis ser, durante sua estada neste mundo, um grande ganhador de almas. Como ele mesmo declarou algumas vezes, seu trabalho não era propriamente colher e sim semear. Ele semeou, e em seguida deixou ao tempo o cuidado de fazer brotar as sementes. O trabalho de colher e dar continuidade à semeadura caberia aos apóstolos. Somente depois de sua Ascensão, precisamente no dia de Pentecostes, é que começaria a pregação geral, universal.

Ele constituiu os apóstolos primeiramente com uma grande autoridade e poder doutrinário, por ele assistido até a consumação dos séculos.

Quem vos recebe a mim me recebe; e quem me recebe a mim, recebe aquele que me enviou. (Mateus 10.40)

Assim que reuniu aquele pequeno exército e o armou com sua autoridade, Jesus quis fazer com eles um pequeno treinamento, mandando-os dois a dois às ovelhas de Israel. Aquela missão de algumas semanas proporcionou-lhe ocasião de resumir suas instruções sobre o ministério confiado àqueles singulares evangelizadores do mundo. Deveria ser principalmente um ministério de pobreza e renúncia. Eles foram aconselhados a não possuir nem ouro, nem prata, nem duas túnicas, nem alforges, nem bordão. Deveriam dar de graça o que de graça haviam recebido.

Tinha de ser fundamentalmente um ministério de amor. Eles estavam sendo enviados para curar os doentes, libertar os

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cativos de espíritos imundos, ressuscitar mortos e levar a paz de Deus a toda a casa onde entrassem. Enfim, deveria ser um ministério de sacrifício, de imolação, e Jesus insistia neste ponto igualmente doloroso e fecundo do seu apostolado:

Acautelai-vos, porém, dos homens, porque eles vos entregarão aos sinédrios e vos açoitarão nas suas sinagogas; e sereis até conduzidos à presença dos governadores e dos reis, por causa de mim, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios. (Mateus 10.17-18)

Na escola do Mestre dos mestres

Sob a liderança do incomparável Mestre dos mestres Jesus, havia sempre uma escola pública para as multidões à beira dos lagos, na vertente das colinas da Galiléia, no deserto imenso, ou nas galerias do templo de Jerusalém. Jesus ensinava até as sombras da tarde se transformarem em noite, e até a multidão, edificada, curada e abençoada, voltar para as aldeias. Então o Mestre ficava só, rodeado de seus apóstolos. Era quando eles lhe perguntavam:

— Mestre, o que significa para nós esta parábola?

Jesus então abria os lábios e lhes ensinava. Não havia mais mistérios, não havia mais dúvidas. Era a verdade pura, a verdade plena fluindo de sua fonte. Então os discípulos concluíam:

Eis que, agora, falas abertamente e não dizes parábola alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de Deus. (João 16.29,30)

Tal era a escola íntima do Mestre da verdade.

Escola extraordinária, plenamente alicerçada no amor. Essa escola não tinha só por alicerce o espetáculo de milhares de pessoas milagrosamente saciadas com alguns pães e alguns peixinhos, ou a grandiosa cura de enfermos ao longo das estradas que causava a admiração nas multidões, ou a ressurreição de um adolescente, cujo cortejo fúnebre Jesus faz

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parar. Mas destacava-se especialmente pela atenção toda especial que Jesus dava ao pedido de um pai que lhe pedira para ir até sua casa curar sua filha enferma; ou pelos sentimentos de um pai que não tinha certeza se Jesus se interessaria em libertar seu filho possesso; ou o caso de uma pobre mulher, que por causa da febre não pôde se apresentar diante do médico celeste. Jesus fez então recuar o povo. Porém, entre os apóstolos, nem todos são admitidos ao privilégio de contemplar esses milagres.

No seio dessa intimidade, há um lugar especial para o apóstolo João. Nos evangelhos há duas figuras que predominam e se destacam das outras por sua originalidade: Pedro e João. Ambos eram amigos do Mestre. Mas, conforme observou um autor antigo, nessa amizade existia uma pequena diferença: "O imperador Alexandre dizia que entre dois de seus amigos havia uma marcante diferença: um amava a Alexandre, o outro amava ao Rei. Poderíamos dizer o mesmo dos dois discípulos: Pedro era amigo do Messias, enquanto João era amigo de Jesus".

João não era somente o amigo íntimo de Jesus. Era "o discípulo a quem Jesus amava", conforme ele próprio se designava no Evangelho. O Senhor o honrou com suas confidencias. No momento de seus maiores milagres, João foi admitido ao seu lado para ali ser o exemplo de amor. Em suas mais elevadas lições ou em suas mais edificantes conversas, foi João que esteve presente para aprender a doutrina da verdade e colher as provas de sua divindade.

Assim João se formou na escola de Jesus. Se a educação de uma criança realizada por um homem é coisa excelente, poucas coisas existem mais dignas de louvor do que contemplar Deus em pessoa dedicando-se a polir o seu apóstolo, talhando-o no mármore da verdade, revestindo-o com o sopro do seu Espírito, aquecendo-o em seu próprio seio, elevando-o gradualmente até aquela semelhança divina.

Foi na Galiléia que João e os discípulos receberam as primeiras lições sobre o Evangelho; e foi para os seus amigos que Jesus reservou, junto com os primeiros frutos de sua graça, as primeiras lições sobre o amor divino.

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A manifestação do poder de Deus

Logo nas primeiras páginas dos evangelhos de Marcos e Lucas, lemos que o Senhor foi com os discípulos para Cafarnaum. Naquela cidade, Pedro, que era casado, tinha casa e família. Sua sogra estava doente. Na companhia de Jesus estavam Tiago, João, Pedro e André. Foi sob o olhar atento de todos eles que Jesus, aproximando-se do leito onde jazia aquela mulher enferma e febril, estendeu-lhe a mão e ordenou-lhe que se levantasse. No mesmo instante a doente ficou curada, e levantando-se preparou-lhes uma refeição. O Senhor havia colocado o seu poder a serviço da amizade, e era com esses laços que sua bondade atava ao seu carro triunfal aquele pequeno grupo de pescadores.

Porém, isto foi apenas um prelúdio das maravilhas que estavam por acontecer. Naquele primeiro ano de pregação de Jesus, quando ele e seus discípulos estavam junto ao lago aproximou-se dele um homem. Chamava-se Jairo, e era chefe da sinagoga de Cafarnaum. Jairo lançou- se aos pés do médico celestial, pois sua filha de 12 anos estava morrendo.

Jesus imediatamente atendeu àquele pedido de socorro. Porém, só três discípulos privilegiados deviam assistir ao milagre que se preparava. O Mestre chamou João, Pedro e Tiago, e com eles seguiu para a casa da menina agonizante. No caminho souberam que a menina acabava de expirar. Já em torno da casa ouvia-se a música fúnebre, que, segundo o costume da época, devia rodear de encantos a alma que havia partido. Algumas pessoas disseram ao Messias que ele deveria dar meia-volta, pois sua presença não era mais necessária ali. Os pais da menina estavam em desespero. Porém, as horas de desespero são as horas de Deus.

Jesus, Pedro, Tiago e João entraram naquela casa, seguindo o pai e a mãe da criança. Então, todo o poder do Céu e toda a ternura da terra se inclinaram sobre aquela menina, e João ouviu o Senhor pronunciar palavras de vida e de imortalidade, palavras que mais tarde ele deveria ouvir diante do túmulo de Lázaro:

A menina não está morta, mas dorme. E riram-se dele... E, tomando a mão da menina, disse-lhe: Talitá cumi, que, traduzido, é: Menina, a ti te digo: levanta-

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te. E logo a menina se levantou e andava, pois já tinha doze anos; e assombraram-se com grande espanto. (Marcos 5.39-42)

O propósito de Jesus era dar grandes lições aos seus apóstolos. A primeira dessas lições foi a de sua divindade. Ele permitiu que só aqueles três discípulos escolhidos presenciassem aquele milagre porque seriam justamente esses discípulos que mais tarde dariam os mais expressivos testemunhos da divindade do Mestre da vida: João, nas páginas do seu Evangelho; Pedro, com o testemunho de sua recuperação após ter negado o Salvador, e Tiago por ter sido o primeiro dos apóstolos a ser martirizado por amor a Cristo.

A segunda grande lição que Jesus deu a seus discípulos foi a de que era necessário começar pelo fazer, antes de dedicar-se ao dizer. João e os que estavam com ele aprenderam que o Evangelho devia ser antes de tudo uma consolação, um socorro, a grande expressão da graça de Deus, preparando desta forma o terreno para em seguida ser uma pregação. O Deus de bondade, querendo formar apóstolos conforme o seu coração, não os levou às academias, nem aos pórticos dos sábios, nem às tribunas dos eloqüentes, mas conduziu-os à escola da ternura, do amor respeitoso e da necessidade da manifestação do poder do Alto: ao leito de uma criança que acabara de falecer.

O entusiasmo de João por Jesus

É fácil imaginar a intensidade do entusiasmo que se apoderou de João por aquele Mestre, e esse sentimento transparece nas palavras que os Evangelhos citam de João.

Naquela época, porém, esse entusiasmo não estava inteiramente livre da mistura de sentimentos egoístas. Como todas as pessoas que amam de verdade, João queria que só o Ser amado fosse grande, só ele fosse honrado.

De maneira que toda e qualquer homenagem ou glória atribuída a outro que não fosse o Mestre parecia-lhe um ultraje, uma usurpação. Além disso, os apóstolos, felizes pela proteção com que o Senhor os cercava, e confiantes em suas promessas, deixavam suas almas serem invadidas por pensamentos de

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orgulho e de rivalidade, dos quais João também não estava isento.

Mateus conta que um dia começou entre eles uma discussão sobre qual deles seria o maior:

Naquela mesma hora chegaram os discípulos ao pé de Jesus, dizendo: Quem é o maior no Reino dos céus? E Jesus, chamando uma criança, a pôs no meio deles e disse: Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no Reino dos céus. Portanto, aquele que se tornar humilde como esta criança, esse é o maior no Reino dos céus. (Mateus 18.1-4)

Em outra ocasião João viu alguns discípulos que, sem ser da mesma família apostólica, estavam expulsando demônios das pessoas em nome de Jesus. Na opinião de João isso era um roubo sacrílego ao direito dos apóstolos e à honra de Deus. João o proibiu e contou o caso para Jesus:

Mestre, vimos um que em teu nome expulsava os demônios, e lho proibimos, porque não te segue conosco. E Jesus lhes disse: Não o proibais, pois quem não é contra nós é por nós. (Lucas 9.49,50)

João sabia amar, mas não conhecia ainda o dom muito mais difícil de esquecer-se a si mesmo e desaparecer diante dos que querem fazer o bem com sinceridade, mesmo quando nos fazem concorrência e agem de modo diverso do nosso.

Certa vez Jesus resolveu ir à cidade de Jerusalém. O caminho mais curto para a Cidade Santa atravessava a terra de Samaria. Ali se encontram ainda vestígios da antiga estrada que ligava estas duas províncias da Palestina. Os samaritanos, compostos em parte de pessoas vindas de colônias estrangeiras, eram inimigos dos judeus.

O Senhor mandou dois de seus discípulos pedir-lhes licença para passar. Um era João; o outro era seu irmão Tiago. Os dois entraram na cidade, mas os samaritanos negaram-lhes a licença, impedindo-os de passar por seu território. João e Tiago, enraivecidos, perguntaram a Jesus:

Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez? Voltando-se,

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porém, repreendeu-os e disse: Vós não sabeis de que espírito sois, Porque o Filho do Homem não veio para destruir as almas, mas para salvá-las. (Lucas 9.54-56)

"De que espírito sois?”

Qual era esse espírito que João desconhecia, e mais tarde devia possuir melhor do que os outros e que se tornaria o espírito apostólico? Havia o espírito antigo, o espírito judeu, absoluto, repressivo, que castigava rigorosamente os culpados, executando por si mesmo a vingança divina. O espírito cristão, ao contrário, era um espírito de doçura. O amor perfeito não conhece vingança. Não há arrebatamentos de cólera onde existe o amor em toda a sua plenitude. Não se deve repelir a enfermidade humana, mas sim estender-lhe a mão. O desejo de vingança não entra nas almas transformadas e magnânimas.

Jesus mostrou a João que era preciso amar, que era preciso esquecer-se de si próprio. Os discípulos, antes de conhecerem Jesus, haviam formado uma idéia muito grosseira do Reino de Deus, achando que ele seria o grande império de um príncipe terrestre, cujas fronteiras se estenderiam de um mar a outro. Era o que chamavam de reconstituição do Reino de Israel. Inutilmente Jesus lhes repetia que seu reinado não era deste mundo, que ele devia sofrer os males profetizados ao Varão de dores, e que seus apóstolos e seguidores só deveriam esperar a hora em que carregariam a cruz em sua companhia.

Porém, ninguém o ouvia. O espírito de João era nisto tão lento como o dos outros. Parece até que sendo o maior amigo deste grande rei e estando mais perto do seu coração, ele achava que deveria também estar mais perto de seu trono, nesse império grandioso que todas as esperanças da nação saudavam com entusiasmo e boas-vindas.

Esse era também o pensamento de Salomé, sua mãe. Animada pelo zelo com o qual ela mesma havia sempre servido esse Mestre tão bom, e seguindo os seus passos, ela aproveitou uma ocasião em que o Senhor descia para Jerusalém, a antiga cidade dos reis, para aproximar-se dele e reivindicar-lhe algo que estava dentro do seu coração. Ela achava que estava se

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aproximando o dia em que o Senhor ia afinal tomar posse do seu trono. O momento era urgente; ela não podia perder aquela oca-sião. Aproximando-se de Jesus em companhia de seus filhos João e Tiago, aquela mulher o adorou e fez-lhe um pedido. Jesus a recebeu da seguinte forma:

E ele disse-lhe: que queres? Ela respondeu: Dize que estes meus dois filhos se assentem um à tua direita e outro à tua esquerda, no teu Rei- no. Jesus, porém, respondendo, disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu hei de beber e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado? Dizem-lhe eles: Podemos. E diz-lhes ele: Na verdade bebereis o meu cálice, mas o assentar-se à minha direita ou à mi-nha esquerda não me pertence dá-lo, mas é para aqueles para quem meu Pai tem preparado. (Mateus 20.21-23)

Era costume no conselho supremo da nação judaica colocar abaixo da cadeira principal ocupada pelo príncipe do Sinédrio, dois lugares de honra, denominados o lugar do Pai e o lugar do Sábio.

Ouvindo Salomé solicitar a honra daquela preferência, Jesus tratou imediatamente de desenganar aquela mãe iludida que se equivocara sobre a natureza de seu futuro reinado. Ao ouvir dos filhos de Zebedeu a palavra "podemos", Jesus imediatamente aceitou aquela confissão de boa vontade, e seu olhar divino penetrou o futuro até o dia em que Tiago e João seriam levados ao martírio por seu nome. Portanto, ele não hesitou em prometer-lhe glória muito superior às grandezas terrestres por eles cobiçadas.

Amar a Deus e servir aos homens era bom; esquecer-se de si próprio era ainda melhor. Porém, a grande expressão de amor era sacrificar-se livremente e sofrer. Pois o amor precisa ter sua prova dolorosa, e o dom supremo que ao discípulo o Mestre apresenta é um cálice de dor. Deste cálice Jesus foi o primeiro a beber; foi o primeiro a encostar nele os seus lábios. Jesus não tardou em dar ao seu discípulo uma amostra do que reservava àqueles que o amam a ponto de morrerem por amor a Ele.

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Vendo a glória de Deus

João foi um dos três discípulos a testemunhar a transfiguração do Senhor. Jesus quis dar um testemunho particular e brilhante de sua divindade àquele que ia ser o mais elevado no conhecimento de Deus, a fim de que, havendo contemplado a glória eterna e divina, ele pudesse fazer ressoar aquela grande expressão: "No princípio era o verbo!". Além do mais, era necessário que ele tivesse por testemunhas de sua glória aqueles que deviam mais tarde ser testemunhas de seus sofrimentos no jardim das Oliveiras.

Tomou consigo a Pedro, Tiago e seu irmão João, os mesmos que tinham assistido à ressurreição da filha de Jairo, e, deixando no vale os outros discípulos, conduziu aqueles três discípulos até o cume de uma montanha. Segundo a tradição dos tempos apostólicos, essa é a montanha cônica que na planície de Esdrelom ergue o seu cume revestido de sombra e de verdura, e que o sol, todas as tardes banha-a de um suave brilho. Por isso os judeus a chamam de Monte Tabor, que significa "leite de luz". O Senhor transfigurou-se diante daqueles três discípulos. Aquela esplendorosa visão só deveria repetir-se no fim dos dias de João na ilha de Patmos. A face de Jesus resplandeceu como o sol, suas vestes brilharam como uma luz viva e branca como a neve — imagem de sua futura ressurreição e da nossa.

Moisés e Elias, a lei e os profetas, a antiga aliança e o mundo do passado apareceram diante dele, enquanto mais abaixo os apóstolos representavam o sacerdócio e a Igreja do futuro. Moisés e Elias conversaram com Jesus sobre os sofrimentos pelos quais ele ia passar na cidade de Jerusalém. Falaram como se fosse um assunto de alegria e de seu mais ardente desejo. Os apóstolos estavam arrebatados. Naquele instante ouviu-se uma voz que dizia:

Este é o meu filho amado; a ele ouvi. (Lucas 9.35)

Todo aquele episódio superou as forças daqueles três homens limitados e mortais. João e seus companheiros aterrorizados, ficaram por algum tempo estendidos, prostrados no chão. Jesus os levantou, a visão se desfez, e os discípulos receberam ordem de não revelar a ninguém o que acabavam de ver até o dia em que o Filho do Homem tivesse ressurgido dentre

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os mortos.

Mais tarde falaram sobre isto como uma das maiores experiências da vida evangélica. Pedro escreveu em sua segunda epístola:

Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente compostas, mas nós mesmos vimos a sua majestade, porquanto ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem me tenho comprazido. E ouvimos esta voz dirigida do céu, estando nós com ele no monte santo. (2 Pedro 1.16-18)

Quanto a João, é sem dúvida a esta manifestação e a esta voz que ele se refere quando, logo no começo do seu Evangelho, depois de ter proclamado a divindade do Verbo encarnado, acrescenta:

E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e verdade. (João 1.14)

O raio celeste que brilhou no monte Tabor iluminou a mente de João e abrasou o seu coração. E assim foi que gradativamente o Mestre realizou a educação de seu apóstolo mais querido: a educação da fé e do amor. Nas lições e cenas que acabamos de descrever, Jesus havia-lhe demonstrado as provas de sua divindade com a realização de seus milagres. Deu-lhe os exemplos do espírito de amor cristão e apostólico, da bondade e da doçura, da dedicação para com os outros e da renúncia de si próprio. Porém, essas verdades ficarão apagadas em sua mente até que o Espírito Santo venha vivificá-las:

Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)

Aqueles ensinamentos eram apenas sementes depositadas no seu coração. Um dia o fogo do Pentecostes as acenderá com sua chama, e veremos então que colheita João fará daquelas sementes.

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CAPÍTULO 4 - TESTEMUNHA FIEL DO SENHOR

Sendo o discípulo amado do Mestre, João sempre falou como testemunha íntima. Ele recorda este título a cada instante. E foi graças a esse privilégio que ele pôde ver melhor, mais perto e mais a fundo os mistérios e a beleza da alma do Mestre amado. Essa condição também é comprovada ao lermos o Quarto Evangelho.

Mil particularidades de lugar, de tempo e de estilo revelam a presença pessoal do narrador no local onde os fatos ocorreram. As reflexões ardentes e profundas denunciam a presença do coração do amigo particular do Mestre. O seu livro também faz com que nós vejamos, ouçamos e toquemos o Verbo de Deus verdadeiramente vivo em sua narrativa. Em toda a parte o discípulo aparece sob a capa do evangelista, e nós o seguimos, por assim dizer, graças à irradiação de sua alma e o rastro de seus passos.

Colocando em ordem a Casa do Pai

A primeira vez que se nota a presença de João na vida pública de Jesus é em Jerusalém, para onde o Senhor descera a fim de participar da Páscoa, seguido pelos discípulos. Chegando à cidade, Jesus subiu ao Templo para dele tomar posse em nome de Deus, seu Pai.

Ao chegar diante do Templo, Jesus encontrou a entrada obstruída por mercadores de toda espécie. Havia ali vendedores de bois, de carneiros e de pombos, que proviam as vítimas e os outros itens utilizados pelos judeus vindos para sacrificar. João também viu ali os cambistas, pois o imposto de duas dracmas, previamente cobrado para as despesas do culto, devia ser pago em moeda judaica. As moedas pagãs, modeladas com a efígie de ídolos e imperadores pagãos, eram proibidas no Templo santo.

Diante daquele quadro, o Filho de Deus, armando-se de um chicote, expulsou os vendedores sacrílegos e virou as mesas dos cambistas com uma autoridade que declarou ter recebido do próprio Pai:

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E disse aos que vendiam pombos: Tirai daqui estes e não façais da casa de meu Pai casa de vendas. (João 2.16)

João admirou o zelo e a indignação sagrada do novo Finéias:

E os discípulos lembraram-se do que está escrito: O zelo da tua casa me devorará. (João 2.17)

Quando os judeus, indignados diante da audácia de Jesus, perguntam-lhe com que direito ele agia e falava daquela maneira, Jesus apelou imediatamente para a autoridade dos seus milagres. Ele se referiu logo ao maior de todos eles:

Derribai este Templo, e em três dias o levantarei. (João 2.19)

Os judeus não compreenderam essas últimas palavras, e só viram nelas motivo para incriminar Jesus. Porém, mais tarde João, diante das evidências da ressurreição do Senhor, entendeu-as e nos deu a explicação:

Mas ele falava do templo do seu corpo. Quando, pois, ressuscitou dos mortos, os seus discípulos lembraram-se de que lhes dissera isso; e creram na Escritura e na palavra que Jesus tinha dito. (João 2.21-22)

A partir daquela data os milagres passaram a jorrar das mãos de Jesus, e João observou que, diante daqueles sinais e prodígios, os judeus se dividiram em dois grupos: uns criam nele, outros desconfiavam de sua influência nascente, principalmente os chefes de Israel, que viam em Jesus uma ameaça contra o poder deles.

O encontro com Nicodemos

Em todo o caso, entre aqueles líderes uma exceção foi assinalada e descrita por João. Atraído pela autoridade e pelos sinais que Jesus operava, aproximou-se dele um doutor da lei que o apóstolo seguirá em cada uma das fases de sua lenta conversão e de sua perseverança. Chamava-se Nicodemos. Ele era, no tempo de Jesus, um grande sábio muito famoso.

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Conforme o uso do tempo, João deu-lhe o nome de príncipe, título que os sábios da nação atribuíam a si mesmos. "Há três coroas", diziam esses sábios orgulhosos: "a coroa da lei, a coroa do sumo sacerdote e a coroa do soberano; mas a do rabino está acima da coroa do rei". Estamos, pois, em pleno centro dos hábitos, dos costumes e da história judaicos. Homem reto, porém tímido, Nicodemos veio ao encontro de Jesus durante a noite para não comprometer sua dignidade de doutor em uma entrevista pública com um galileu.

Este foi ter de noite com Jesus e disse-lhe: Rabi, bem sabemos que és mestre vindo de Deus, porque ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não for com ele. (João 3.2)

A resposta de Jesus é, no Evangelho de João, o modelo de todos os discursos que ele proferirá daí em diante em Jerusalém, na presença das pessoas de cultura às quais eles são dirigidos. Todas as questões levantadas nas escolas e sinagogas, a purificação pelo mistério da água, o novo nascimento espiritual, os dons e as virtudes dos "homens de espírito", conforme se denominavam esses sábios, todos esses assuntos são resolvidos pelo Mestre dos mestres, que, sem demora, dali se eleva à revelação dos maiores mistérios de que ele mesmo é o centro. O maior de todos eles é o mistério da encarnação, o mistério do Deus que se fez homem e desceu do céu para falar com os homens:

Na verdade, na verdade te digo que nós dizemos o que sabemos e testificamos o que vimos, e não aceitais o nosso testemunho. Se vos falei de coisas terrestres, e não crestes, como crereis, se vos falar das celestiais? Ora, ninguém subiu ao céu, senão o que desceu do céu, o Filho do Homem, que está no céu. (João 3.11-13)

O mistério do amor divino e da vida eterna foi manifestado por Jesus na bela frase que tantas vezes encontraremos em João:

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o sei Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (João 3.16)

Esta linguagem, profunda e simples, não pertence ao homem: é a do próprio Deus. As palavras trocadas durante essa

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célebre conversa entre o doutor da lei e o Deus do Evangelho marcam a transição entre os dois Testamentos. A partir dela a Igreja passa a suplantar a Sinagoga. Uma nova religião, mais elevada, mais completa, mais espiritual, estava sendo fundada, e o doutor judeu acabava de ouvir a primeira e a maior palavra daquela religião do futuro, palavra que encherá o Evangelho de João: O amor; o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus.

Toda aquela conversa, por mais admirável que seja, não era senão o curto resumo de uma grande pregação. Mas este resumo condensa em um foco luminoso toda a doutrina de Cristo. Ao longo dos séculos, muitas pessoas têm perguntado como João pôde ficar sabendo do conteúdo dessa conversa, levando-se em conta que ela foi secreta, confidencial. Que relacionamentos particulares fizeram com que João penetrasse nesses segredos? É um assunto que retornaremos mais tarde, e assim teremos uma nova prova da fidelidade do testemunho de João.

O encontro com a samaritana

Passadas as festas, os chefes dos judeus começaram a irritar-se ao ver a fama e o crescimento de Jesus na opinião do povo. Jesus decidiu então voltar para a Galiléia, e João e os outros discípulos o seguiram. Escolheram a estrada de Samaria. Foi naquela estrada que o Filho de Deus teve a sublime conversa com a samaritana, e deste episódio João, o fiel companheiro de Jesus, anotou o local, o instante e os incidentes com uma precisão que marca a impressão de seus passos sobre os passos de Jesus.

Depois de uma jornada difícil, o Senhor chegou a uma cidade de Samaria chamada Siquém ou Sicar - lugar de gratas recordações para os judeus. Abraão, descendo da Mesopotâmia, ali levantara um altar. Jacó ali comprara terras para seu filho José e cavara um poço que João denomina como seus contemporâneos, "fonte de Jacó".

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Eu te tenho dado a ti um pedaço de terra mais que a teus irmãos, o qual tomei com a minha espada e com o meu arco da mão dos amorreus. (Gênesis 48.22)

Foi à beira desse poço, até hoje conservado, e do qual se pode medir a profundidade, que Jesus se sentou.

O Senhor estava fatigado da caminhada, diz João (João 4.6). De Jerusalém até a cidade de Sicar são três dias de viagem por estradas ásperas e sob os abrasadores raios do sol da Síria. Jesus estava com fome e com sede. Após enviar seus discípulos, inclusive João, para procurar alimento na cidade, Jesus ficou descansando naquele lugar, quando chegou uma mulher trazendo um cântaro na cabeça, à maneira oriental. Viera buscar água na fonte de Jacó. Era isso quase à hora sexta (João 4.6), observa João, hora correspondente ao meio-dia, hora em que o sol está na plenitude de sua força. Jesus, vendo aquela mulher que vinha tirar água, pediu que lhe desse de beber.

João não ouviu pessoalmente o diálogo, mas certamente se inteirou mais tarde dos detalhes. Teve a oportunidade de saber dos próprios samaritanos, por ter ido logo depois do Pentecostes levar-lhes a notícia sobre o batismo no Espírito Santo e os primeiros frutos do seu apostolado. Além disso, a samaritana, após ter sido encontrada por Jesus, passou a contar sobre esse encontro a todos, com o entusiasmo de uma mulher que encontrara a graça e a verdade. Da indiferença zombeteira para com aquele judeu desconhecido que, ousando ir contra os preconceitos de sua nação, conversou com uma estrangeira, de repente aquela mulher passou à admiração, sobretudo quando o ouviu falar de uma água viva e espiritual, a única capaz de matar a sede que atormenta as almas.

Uma dessas almas, manchadas, porém sequiosas de reabilitação, era ela mesma. Ouvindo humildemente aquele homem inspirado revelar os erros de sua vida, ela reconheceu em Jesus um profeta, e submeteu-lhe a grande questão que separava os judeus dos samaritanos: Onde se deveria adorar? Seria em Jerusalém? Seria numa das montanhas do Ebal ou no monte Gerizim? Do lugar onde se achavam avistava-se, erguido sobre o cume daquele monte, o templo separatista dos samaritanos, do qual ainda existem ruínas.

O Verbo de Deus dignou-se instruí-la. Aquela pobre mulher

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aviltada, desprezada, recebeu de Jesus a sublime revelação do caráter especial da Boa Nova:

Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim o adorem. (João 4.23)

Enfim, um instante depois o Messias revelou-se a ela: "Eu o sou, eu que falo contigo" (João 4.26). Deixando ali o cântaro, correu a anunciá-lo na cidade. A cidade era próxima. Do poço de Jacó avistavam-se os telhados chatos de Sicar, que brilhavam através da folhagem pálida e espigada das oliveiras. Em parte nenhuma se mostra melhor a fidelidade da testemunha ocular como nesse lugar, nessa conversa e nessas circunstâncias.

Quando os discípulos retornaram trazendo o alimento que tinham ido comprar, João diz que todos eles se espantaram ao ver o Mestre conversando com uma mulher samaritana. A surpresa deles não foi menor ao vê-lo recusar o alimento que tinham trazido. Em palavras rápidas trocadas confidencialmente entre si e ouvidas por João, perguntavam-se: Trouxe-lhe, porventura, alguém de comer? Mas o pensamento de Jesus naquele momento estava voltado unicamente para a realização da vontade de seu Pai e a salvação das almas.

A grande obra que alimentaria e saciaria o coração de Jesus era a da conversão do mundo. Ao redor dos discípulos e do Senhor as espigas balançavam nos campos férteis. Mostrando então aos apóstolos aquelas futuras e ricas colheitas, Jesus Cristo disse-lhes alegoricamente:

Não dizeis vós que ainda há quatro meses até que venha a ceifa? Eis que eu vos digo: levantai os vossos olhos e vede as terras, que já estão brancas para a ceifa. E o que ceifa recebe galardão e ajunta fruto para a vida eterna, para que, assim o que semeia como o que ceifa, ambos se regozijem. Porque nisso é verdadeiro o ditado: Um é o que semeia, e outro, o que ceifa. (João 4.35-37)

Sementes favoráveis acabavam de ser depositadas naquela terra de Samaria, cujos habitantes, impressiona- dos com as palavras da pecadora, vieram pedir a Jesus que permanecesse com eles. Jesus lhes atendeu, ficou naquela cidade durante dois

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dias e muitos creram nele. Muitas daquelas pessoas de Samaria serão futuramente batizadas pelo diácono Felipe; João em seguida virá para confirmá-las. Será um dos ceifeiros destinados a ajuntar a colheita espiritual naquele campo semeado e regado com os suores do Mestre.

Depois de sair de Sicar, Jesus continuou viajando rumo à Galiléia, dirigindo-se a Caná e Cafarnaum.

O paralítico em Betesda

A festa que atraiu pela segunda vez Jesus à Jerusalém era, segundo uns, a solenidade pascal, e na opinião de outros, a festa de Purim. A chegada do Senhor foi marcada por um de seus milagres. Havia naquela cidade uma piscina famosa da qual ainda existe vestígios, e que João nos descreve ligeiramente. Chamava-se em hebraico Betesda, isto é, "casa de misericórdia". Estava situada perto de uma das portas da cidade, denominada Porta das Ovelhas, pois era costume dos pastores levarem os rebanhos para ali beberem. Tinha cinco alpendres, conforme observação de João. Pelas escombros que ainda existem dela, pode-se reconhecer os vestígios de uma galeria circular para onde se descia através de uns degraus de mármore. Deitado em uma cama estava ali um homem que há 38 anos era paralítico. Ele estava ali esperando que o anjo viesse revolver a água a fim de que ela adquirisse a virtude curativa. Mas não havia ninguém que ajudasse aquele homem a entrar na piscina quando o anjo agitava as águas, observa o narrador com a exatidão ordinária de seu testemunho.

Jesus passou por ali, viu aquele homem estendido, e sabendo que havia muito tempo que ele estava doente, perguntou-lhe: "Queres ficar são?" E em seguida, disse-lhe:

Levanta-te, toma a tua cama e anda. Logo, aquele homem ficou são, e tomou a sua cama, e partiu. (João 5.9)

O amor fizera a sua obra, mas o ódio ia começar a sua. O dia em que essa cura ocorrera era um sábado, lembra João. A obrigação em se observar o repouso do sábado tinha se tornado naquela época uma superstição terrível e cega. O castigo

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infligido indistintamente contra o idolatra, contra o assassino e contra quem violasse o sábado era o exílio. "Deus perdoa qualquer pecado a todo aquele que guarda o Sábado, menos o pecado de não guardá-lo", diz um texto do Talmud.

As autoridades judaicas ficaram então enraivecidas contra aquele que acabava de se colocar acima do sábado, restituindo a saúde a uma mortal criatura de Deus. A hipocrisia dos fariseus culpava tanto o doente quanto aquele que o curara milagrosamente. Diante de suas pérfidas censuras, Jesus respondeu com uma só palavra:

Meu Pai trabalha até agora e eu trabalho também. (João 5.17)

Isto é, há um sábado que Deus não conhece, é o sábado do bem. O quê? Chamar a Deus de seu Pai é fazer-se igual a Deus. Isto era uma grande blasfêmia. Travou-se um longo debate sobre aquela afirmação tão audaciosa, incrível, absolutamente provocadora. Jesus fez ainda naquele momento uma longa exposição sobre sua divindade. Porém, como a fúria dos fariseus tornou-se cada vez mais ameaçadora contra ele, foi necessário ele e os discípulos deixarem Jerusalém por algum tempo e voltarem à Galiléia.

Após retornar à Galiléia, a narrativa de João nos coloca de novo diante do lago de Tiberíades, de Cafarnaum, dos barcos e pescadores, da fé singela da multidão e do entusiasmo do povo em seguir Jesus Cristo até no deserto. É nessa ocasião que João nos conta a multiplicação milagrosa dos pães e peixes, a noite em que Jesus andou sobre o mar, suas pregações sublimes na sinagoga, a emoção dos ouvintes, a futura instituição da Santa Ceia.

Jesus na Festa dos Tabernáculos

No entanto, aproximava-se a festa dos Tabernáculos. Celebrava-se em outubro e era a mais alegre das solenidades judaicas. Como recordação do tempo em que os hebreus viveram no deserto, o povo construía nas ruas e praças da cidade tendas de folhagem onde permanecia durante sete dias. Faziam-se sacrifícios, e os judeus, desfilando, com palmas verdes

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nas mãos, subiam ao Templo para render graças a Deus.

Os irmãos de Jesus insistiram com ele para que fosse àquela festa, a fim de tornar-se conhecido. Mas o Senhor deixou que primeiro partisse todo o cortejo dos seus parentes, e mais tarde encaminhou-se em segredo para a cidade, onde já era o assunto de todas as conversas.

João relata a cena de surpresa e admiração de que Jesus foi alvo na cidade Santa, quando de repente, no momento em que todos achavam que ele estivesse na Galiléia o Senhor apareceu no Templo. Imediatamente as pessoas o rodeiam, ouvem-no e admiram-se da eloqüência inexplicável de suas palavras.

Como sabe estas letras, não as tendo aprendido? (João 7.15)

A impressão de assombro que a pregação de Jesus causava sobre o auditório daquela época é a mesma que sentimos quando lemos o evangelista. Convém observar que as pregações que Jesus fazia na Judéia não eram mais as simples e fáceis parábolas que tinham feito o povo vibrar e se maravilhar nas colinas da Galiléia. Aqueles a quem o Mestre se dirigia agora eram os doutores que repetiam sobre si mesmos que "o rabino deve absorver-se inteiramente na ciência sagrada, a qual possui a chave do céu, e o torna igual a Deus".

A esses escribas tinha sido exigido primeiramente galgar os três degraus da iniciação antes de obterem o direito de sentar-se na cadeira dos profetas. Esses eram os judeus helenos vindos das brilhantes cidades de Atenas, Roma, Éfeso e Alexandria. A linguagem dirigida àqueles espíritos polidos e curiosos dos assuntos de difícil compreensão não podia ser a mesma utilizada para instruir os rústicos e ingênuos habitantes das margens do lago de Genesaré. Portanto, se as pregações de Jesus, colhidas por João, diferem pela forma das registradas pelos outros evangelistas, é porque João nos transmitiu particularmente o ensino de Jesus em Jerusalém, a principal cidade dos príncipes dos sacerdotes e dos chefes de Israel.

Os escribas perguntavam entre si: "Onde ele aprendeu isto?" Era um milagre de natureza intelectual, não menos extraordinário que os de natureza física e para o qual pediam explicações.

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Jesus dá sempre a explicação de que ele é Deus. Sua sabedoria não é uma ciência humana, laboriosa; não depende de estudo, ela flui da fonte divina; não vem do homem, mas d'Aquele que o enviou e por isso que Jesus diz que "minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou. Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus ou se falo de mim mesmo".

Aquela palavra autorizada, confirmada pelas obras, abalava os espíritos, e João nos coloca bem no meio da hesitação desse auditório tão dividido. O povo tomara de boa vontade o partido do profeta, mas queria ver brilho e ilustração naquele a quem se entregava, e Jesus não era mais do que um operário de Nazaré: Bem se sabe de onde ele vem! Vinte vezes o povo levantará a mesma objeção contra Jesus. Sabeis de onde venho? respondia o Mestre com calma majestosa. Sabeis de onde sou? E a tais homens ele falava sobre o seio do Pai de onde descera e para onde voltaria depois de algum tempo:

Vós me buscareis e não me achareis; e aonde eu estou vós não podeis vir. (João 7.34)

E, no último dia, o grande dia da festa, Jesus pôs-se em pé e clamou, dizendo:

Se alguém tem sede, que venha a mim e beba. (João 7.37)

Neste dia o sumo sacerdote costumava descer da montanha trazendo uma urna de ouro que enchia na fonte de Siloé. Em seguida voltava rodeado pelo povo, ao som de cânticos e trombetas, e, entrando no Templo, derramava aquela água sobre o altar, para comemorar a fonte milagrosa que Moisés fizera jorrar do rochedo. Jesus, aproveitando a ocasião da cerimônia, ofereceu uma água melhor às almas sequiosas:

Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. (João 7.38)

O Filho de Deus revelava-se como a Fonte da Vida. Aqueles grandes paralelos constituíam uma nova espécie de recurso ilustrativo do que ele queria ensinar, algo semelhante às parábolas, tirados de outros lugares e feitos para pessoas simples. Que sublime aplicação dava assim o Senhor aos símbolos antigos, e que torrentes de vida e ensinamentos

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desciam às almas!

Naquela festa costumavam também deixar acessos sobre as alturas de Sião dois imensos candelabros que projetavam a luz sobre Jerusalém inteira. Era a lembrança da nuvem luminosa que outrora guiara os filhos de Israel nas noites do deserto. Realizando em si mesmo essa figura expressiva, Jesus Cristo continua sua pregação dizendo:

Eu sou a luz do mundo: quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida. (João 8.12)

Sobre esta afirmação travou-se imediatamente uma disputa, de um lado violenta, de outro lado calma e sublime. Jesus Cristo novamente afirmou sua filiação divina, sua santidade que desafiava qualquer acusação, sua geração eterna, anterior não só ao nascimento de Abraão, mas a tudo: Sou o princípio, sou antes de tudo, eu, que vos falo. Essas palavras de Jesus deverão sugerir mais tarde a João o prólogo de seu Evangelho: "No princípio era o Verbo..." Diante de afirmação tão clara, tão repetida de sua divindade só restava aos ouvintes de Jesus duas respostas a dar: ou atirar-se aos seus pés como aos pés de um Deus, ou apedrejá-lo como um blasfemador.

Então, pegaram em pedras para lhe atirarem; mas Jesus ocultou-se, e saiu do templo, passando pelo meio deles, e assim se retirou. (João 8.59)

A mulher adúltera

O que irritava aqueles homens violentos e orgulhosos não era a grandeza sobre-humana, a bondade e a calma de Jesus, e sim a sabedoria superior com a qual ele acabava de confundir toda aquela astúcia e maldade. No dia seguinte Jesus chegou cedo ao templo. Com o propósito de ensinar ao povo ele se dirigiu ao lugar contíguo à sala do conselho, e que se chamava "lugar do tesouro" (João 8.20), pois naquele lugar se achavam os cofres de bronze destinados às ofertas.

Ali os fariseus levaram aos pés de Jesus uma mulher surpreendida em adultério, e hipocritamente pediram que ele pronunciasse a sentença daquela mulher que a lei condenava à

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morte. A ocasião era propícia para eles alardearem sua própria justiça e confundir aquele profeta e aquele justo acusando-o de crueldade homicida se condenasse a pecadora a ser apedrejada, ou de violação flagrante da lei se a absolvesse.

João acompanhou toda aquela cena atentamente. Viu o Mestre inclinar-se silencioso e escrever com o dedo no chão. O que ele escreveu? João não o diz. Ele viu quando Jesus, ao ser intimado a se pronunciar, levantou por um instante a cabeça e como única resposta disse esta frase:

Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire a pedra contra ela. (João 8.7)

Jesus continuou a escrever. Como as palavras traçadas pelo juiz que penetra a consciência humana, aquelas palavras incomodaram sem dúvida aqueles hipócritas. João notou que eles saíram um a um a começar pelos mais velhos até os últimos; ficaram só Jesus e a mulher, que estava no meio. (João 8.9)

Era a miséria diante da misericórdia. E a misericórdia perdoou a miséria.

E, endireitando-se Jesus e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te e não peques mais. (João 8.10,11)

A humilhação fora exaltada; porém, para caminhar nas veredas da justiça e da virtude. O Homem Deus Jesus revelou-se tanto pela sua bondade como pelo seu poder, tanto por sua misericórdia como pelas suas maravilhas. "Só Deus é bom", disse ele um dia. Sim, e o que nos prova que tu és Deus, o Senhor Jesus, é que jamais alguém foi tão como fizestes.

Alguns livros usados por aqueles hipócritas orientavam o rabino a andar lentamente, um tanto encurvado, com a cabeça baixa, com vestes escuras, coberto por um véu preto, e evitando falar com uma mulher.

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A cura do cego de nascença

A cura de um cego de nascença desencadeou novas tempestades contra Jesus. O quadro que João traçou do drama refletiu perfeitamente tudo. Começou por uma discussão levantada entre os discípulos sobre a origem da cegueira.

E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou os seus pais, para que nascesse cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou, nem seus pais; mas foi assim para que se manifestassem nele as obras de Deus. Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. (João 9.2-5)

E para provar a veracidade do que dissera Jesus curou o cego com um pouco de saliva misturada com terra. Jesus untou com esta mistura os olhos do cego e mandou que ele se lavasse no tanque de Siloé. Por estes singelos pormenores reconhece-se a exatidão de João: isso não se inventa.

Segundo uma antiga profecia, Siloé era o símbolo da graça divina:

Porquanto este povo desprezou as águas de Siloé que correm brandamente e com Rezim e com o filho de Remalias se alegrou. (Isaías 8.6)

Agora se achava aberta aos filhos de Israel e, depois do Calvário, ao mundo, uma fonte de salvação e saúde muito mais elevada e poderosa, cheia de graça e de verdade, e muitos têm vindo a ela para recuperar a visão física e espiritual!

Logo após a realização daquele milagre, Jesus foi contestado outra vez. Primeiramente, os vizinhos do cego que, vendo curado o homem que sempre encontravam sentado à porta do Templo pedindo esmola, custaram a crer no milagre. É ele, diziam uns; Não, é alguém que se parece com ele, diziam outros. Mas ele respondia: Sou eu mesmo!

Em seguida os próprios membros do Sinédrio começaram a investigar. O cego compareceu, e contou o fato com simplicidade. O conselho, confuso, agitou-se em direções diversas: Este homem não pode ser de Deus, uma vez que não

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guarda o sábado, disseram alguns.

Mas outros responderam: Como pode um pecador fazer tais milagres? Era uma questão difícil. Perturbadas, as autoridades pediram a opinião do homem que fora curado: Que achas de quem te abriu os olhos? Ele respondeu sem hesitar: Que é um profeta.

Sem dúvida, mais de um doutor ali presente viu-se forçado a pensar como ele. Estavam, portanto, divididos. Foi quando alguém levantou a questão: quem nos garante que o mendigo era mesmo cego? Portanto, era necessário certificar-se. Imediatamente foram intimados os pais da testemunha e confrontados com ele:

— É este o vosso filho?

— É.

— Ele nasceu cego?

— Sim.

— Como então ele está vendo agora?

— Isto não o sabemos, responderam aquelas pessoas simples e aterrorizadas, temendo ser consideradas inimigas da lei.

Seus pais responderam e disseram-lhes: Sabemos que este é o nosso filho e que nasceu cego, mas como agora vê não sabemos; ou quem lhe tenha aberto os olhos não sabemos; tem idade; perguntai-lho a ele mesmo, e ele falará por si mesmo. (João 9.20-21)

Chamaram outra vez o mendigo. Era preciso a todo o custo destruir as colunas da fé em Jesus que já se erguiam na opinião do povo arrancando uma confusão negativa da testemunha importuna de seu poder divino.

— Dai glória a Deus — , gritam aqueles hipócritas. E é com esse nome sagrado que eles tentam levar o mendigo a mentir acrescentando uma blasfêmia: Sabemos que este homem é um pecador! Mas nada existe mais eficiente para desmascarar espíritos mal intencionados do que um coração simples e sincero.

O mendigo lhes respondeu: Se é um pecador não sei; o que

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sei é que eu estava cego e agora vejo! Só restava agora uma alternativa: ver se, ao testemunhar, ele cairia em contradição. Recomeça então o interrogatório: Que te fez ele? Como foi que te abriu os olhos? A esta pergunta, o mendigo impaciente lança-lhes uma sentença de uma ironia vingadora: Já vo-lo disse, por que quereis tornar a ouvi-lo ? Será que quereis também vos tornar seus discípulos? Discípulos daquele Galileu! Eles se irritaram e falaram que o mendigo, se quisesse, que se tornasse discípulo de Jesus; eles não desceriam a isto, pois eram discípulos de Moisés. Eles sequer sabiam de onde era aquele Jesus. O mendigo responde com admiração:

Nisto, pois, está a maravilha: que vós não saibais de onde ele é e me abrisse os olhos. (João 9.30)

O mendigo, já cansado de ouvir os fariseus e doutores chamarem de pecador ao profeta que lhe curara, usou este argumento invencível:

Ora, nós sabemos que Deus não ouve os pecadores; mas, se alguém é temente a Deus e faz a sua vontade, a esse ouve. Desde o princípio do mundo, nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença. Se este não fosse de Deus, nada poderia fazer. (João 9.31-33)

Os doutores, enfurecidos, responderam:

Tu és nascido todo em pecados e nos ensinas a nós? E expulsaram-no (João 9.34).

Pronunciaram contra ele a exclusão da sinagoga. Mas Jesus consolou-o a seu modo, como sabe consolar os que por ele sofrem, dando à sua alma uma luz divina mais elevada do que a que tinha restituído aos seus olhos. O mendigo só conhecia seu benfeitor como um profeta, mas agora o Senhor revelou-se a ele como Deus.

Eu também creio, e também te adoro, ó Senhor Jesus! Eu também era cego, não de nascença, mas de orgulho, e tu tiveste piedade de mim e me abriste os olhos! Não permitas que jamais eles se fechem depois de ter visto a tua luz, nem que as correntes da impiedade jamais fechem minha boca, depois que tu consentiste que eu te confessasse, apesar de toda a minha indignidade.

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Dali por diante a vida de Jesus não se achou mais em segurança entre os fariseus, os quais a cada dia exigiam mais e mais as provas e os testemunhos de sua divindade. Ele teve, conforme nos conta João, de atravessar de novo o Jordão, retirando-se por algum tempo para a província da Peréia, que se estende pela margem oriental do rio até os confins do deserto, ao sul do Mar Morto.

Ali ele passou algum tempo entre populações felizes de possuir por sua vez o grande profeta de Israel, a quem apresentavam os doentes para que ele curasse e as crianças para que ele abençoasse. A doença e a morte de Lázaro o fizeram voltar à Judéia para um milagre dos mais impactantes entre todos os que até então ele fizera.

A ressurreição de Lázaro

Neste episódio João abrirá para nós a bendita aldeia de Betânia, situada a três quilômetros de Jerusalém. É a cidade cujas casas brancas ainda hoje estão dispostas em forma de escada nos flancos do monte das Oliveiras, encobertas pela folhagem e pelas alturas que as ocultam do mundo. Foi ali, naquele recanto de paz, que o Senhor achou o único bem da terra: corações que o compreendiam e o amavam.

Estava, então, enfermo um certo Lázaro, de Betânia, aldeia de Maria e de sua irmã Marta. (João 11.1)

O discípulos não nos faz conhecer de outra forma a família em cujo seio vai nos introduzir. Referindo-se a um episódio relatado pelos outros evangelistas, João identifica uma das irmãs de Lázaro:

E Maria era aquela que tinha ungido o Senhor com ungüento e lhe tinha enxugado os pés com os seus cabelos, cujo irmão, Lázaro, estava enfermo. (João 11.2)

Assim como Mateus e Marcos nos haviam mostrado a alma ardente e moderada de Maria, inteiramente entregue à contemplação, silenciosa aos pés do Mestre, assim vamos encontrá-la agora nos traços fiéis daquele que a viu imersa num

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único sentimento, e só sabendo chorar. Após ter enviado um recado a Jesus ela ficou quieta em sua casa, e só levantou-se quando o seu Deus se aproximou. Ela correu para ir lançar-se aos seus pés adorados, mas vagarosos em vir consolá-la. Ora Jesus, diz João, amava a Marta e a sua irmã e a Lázaro (João 11.15). Nada mais era necessário dizer. Amados de Jesus também o seriam de João cuja narrativa nos comunica sua compaixão para com aquela família.

O recado que Marta e Maria mandaram era curto; constava apenas destas palavras:

Senhor, eis que está enfermo aquele que tu amas. (João 11.3)

Não lhe pediam que voltasse à Judéia devido às ameaças dos judeus. Contentavam-se apenas em fazer um apelo àquele coração que bem conheciam. Não se enganaram, pois Jesus Cristo disse logo a seus discípulos:

Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela. (João 3.4)

Como ocorrera com o cego de nascença, aqui também o milagre é anunciado antecipadamente; é uma promessa. Deus, porém, é Senhor do tempo, e só dois dias depois (João mesmo o observa) Jesus disse a seus discípulos: Vamos outra vez para a Judéia. Mas ir à Judéia era entregar-se à morte.

Disseram-lhe os discípulos:

Rabi, ainda agora os judeus procuravam apedrejar-te, e tornas para lá? (João 11.8)

Mas era necessário, pois nesse intervalo de tempo Lázaro havia morrido. Jesus deu a seus discípulos a notícia desse fato com estas palavras de esperança imortal e divina:

Lázaro, o nosso amigo dorme, mas vou despertá-lo do sono. (João 11.11)

Senhor, se dorme, estará salvo, responderam os discípulos. Não entenderam que Jesus estava falando figuradamente da morte.

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Lázaro está morto (...) mas vamos ter com ele. (João 11.14,15)

E foi então que Tomé pronunciou aquelas palavras que João repete com admiração:

Vamos nós também, para morrermos com ele! (João 11.16)

Depois deste prólogo ocorrido na Peréia, a ação transporta-se para a aldeia de Betânia. Ali os discípulos, bem como João, desaparecem. João não é mais que o espectador atento e enternecido, o relator fiel daquele drama que apresenta-se aos nossos olhos, ora lacrimosos, ora fascinados pela luz.

Em primeiro lugar aparece Marta, ativa, impetuosa, correndo ao encontro do Mestre, dirigindo-lhe uma palavra na qual a censura se mescla com o amor:

Senhor, se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido! (João 11.21)

Mas em seguida ele pronuncia uma palavra de fé:

Mas também, agora, sei que tudo quanto pedirdes a Deus, Deus to concederá. (João 11.22)

Jesus respondeu-lhe:

Teu irmão há de ressuscitar. (João 11.23)

Ela pensa que ele está falando de uma ressurreição futura, a do último dia. Mas Jesus intercepta-lhe essa idéia com esta grandiosa declaração:

Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. (João 11.25)

Marta retorna para casa e avisa a Maria que o Mestre havia chegado e mandara chamá-la. Entra então em cena Maria, a contemplativa. Fala menos, porém chora mais.

Jesus, pois, quando a viu chorar e também chorando os judeus que com ela vinham, moveu-se muito em espírito e perturbou-se. E disse: Onde o pusestes? Disseram-lhe: Senhor, vem e vê. Jesus chorou.

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Disseram, pois, os judeus: Vede como o amava. (João 11.33-36)

São frases que deveriam ser lidas de joelhos, e são elas que fazem do evangelho de João não só o evangelho mais humano, como também o mais divino de todos os evangelhos. A antigüidade austera escrevera que "chorar não era digno de um filósofo", mas João nos mostra que chorar é digno do Filho de Deus.

Jesus encaminhou-se para o sepulcro. Para ali nos conduz João! Era uma caverna e tinha uma grande pedra redonda fechando sua entrada.

Há quatro dias que o cadáver estava ali e já exalava mau cheiro. Removeram a pedra. Em voz alta e poderosa, o Verbo de Deus, que é a ressurreição e a vida, ordenou ao morto que se levantasse: Lázaro, vem para fora! No mesmo instante levantou-se Lázaro ainda tendo as faixas com que envolviam o corpo dos orientais; o rosto ainda estava coberto com um lenço. Desatai-o e deixai-o ir! Todas as minúcias deste milagre, as impressões dos que o testemunharam, cada passo das duas irmãs, cada palavra de Jesus, sua oração, os olhos voltados para o céu, a autoridade e o tom de voz, tudo o que uma testemunha pôde ver e ouvir não se apagou da memória de João. É a memória do coração. De nada nos esquecemos, absolutamente de nada, quando amamos.

Muitos, pois, dentre os judeus que tinham vindo a Maria e que tinham visto o que Jesus fizera creram nele. (João 11.45)

Era esse o fruto que o Salvador do mundo queria: que cressem nele.

João foi o espectador que tudo viu, o observador atento e emocionado em quem esta cena produziu impressão inapagável; dela ele não esqueceu um só pormenor. Tudo foi apanhado em flagrante, tomado ao vivo: foi a fotografia que se revelou no espírito do apóstolo, que se imprimiu naquele coração.

Nem com o talento, e nem mesmo com o coração João poderia conceber semelhante fisionomia: ela ultrapassa completamente sua capacidade. Este Jesus é homem, e como pôde ressuscitar Lázaro? Ele é Deus, e eis que se abala e chora.

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Como reunir traços tão diversos, tão opostos? Perguntem a João. Mas ele não sabe. Ele viu, ele descreveu, e nada mais pode dizer. O humano e o divino confundiram-se harmoniosamente e nos fizeram ver, num só ato, a beleza total de Jesus. Ele é homem, homem pelas alegrias, pelas inquietações, pelas agitações e ternuras de amor. Mas ao mesmo tempo é Deus, e o amor arma-lhe o braço com todas as forças divinas. Tal coisa nunca tinha sido vista, e jamais tornará a ser vista neste mundo de sombras, onde perto daqueles a quem amamos e que sofrem, e que nos chamam em seu socorro, deseja-se tanto e faz-se tão pouco!

CAPÍTULO 5 - A FACE HUMANA E DIVINA DE JESUS

A principal conclusão que devemos tirar sobre o porquê dos milagres de Jesus está fundamentada na sua divindade. Jesus sempre dizia:

Se não credes em mim, credes nas minhas obras... (João 10.38)

João sabia que Jesus era, antes de tudo, o Verbo, isto é, a Palavra substancial que ele via propagar-se, alcançar, agir, "cheia de graça e de verdade" sobre os espíritos rebeldes ou sobre a multidão entusiasmada. Mas não bastava a Jesus proclamar-se o Filho de Deus. Era preciso que todo o seu ser afirmasse isso também. Ora, no Evangelho de João, Jesus Cristo é verdadeiramente Deus. Ele mostra-se como Deus em toda sua pessoa, em suas ações, em sua vida. Sustentou ele esse título de maneira simples, constante e naturalmente. E sua fisionomia foi reproduzida do natural pelo seu discípulo predileto, e apareceu como uma visão terrestre da divindade.

Procuremos escutar como fala Jesus Cristo. Sua eloqüência é sublime porque vem das alturas. É a expansão do Verbo de Deus. Por isto não se acha nas palavras de Jesus aquela excitação viva que levava os profetas a ímpetos ardentes e a imagens audaciosas, quando o Espírito divino, tomando-os em suas asas, transportava-os ao seio das visões celestiais. O raio não o fulmina, porque ele é luz. Sem esforço ele atinge as alturas, porque é ali o lugar do seu Espírito, e ele está no próprio

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seio do mistério que revela.

A serena expressão da grandiosidade

Eis porque sua palavra é sempre tão simples como natural e elevada. Os filhos de rei, nascidos no meio das grandezas, falam com toda naturalidade sobre palácios, cetros e coroas. Jesus não discute, não replica, não declama. Nem mesmo procura provar nada. O que tem a luz a fazer senão mostrar-se? A palavra é por ele semeada como os grãos nos campos, abundantemente, porque ele os tem em quantidade; serenamente, porque ele é o Senhor; com simplicidade, porque ele pode humilhar-se sem nada perder de sua grandeza; enfim, confiantemente, porque ele sabe o dia e a hora da colheita.

Sendo ele mesmo profeta, via-se morrer e tombar no sepulcro como o grão na terra, mas para emergir como a espiga. Dizia que seu sangue seria seu batismo, e que sua paixão seria sua glória, e que tudo enfim seria consumado na unidade e não haveria mais do que um só rebanho e um só pastor. Tudo o que temos visto ao longo desses dois mil anos de história da Igreja, todas as luzes e direções que a humanidade há de receber do Evangelho até o fim dos tempos, Jesus o predisse.

Um terceiro poder da inteligência de Jesus é não conhecer a dúvida, é permanecer certo e senhor de si mesmo. Esta certeza serena jamais abandonou o Mestre. Ele mantinha-se sempre inabalável ao falar e provar sua divindade. Enquanto os opositores a discutem, ele a sustenta; enquanto eles a negam, ele a confirma. Ousam objetar-lhe que ele não conhece as letras; ele responde que é a Sabedoria de Deus em pessoa. Não querem ver nele senão o filho de José, o carpinteiro, cuja família conhe-cem em Nazaré; ele assegura tranqüilamente que o próprio Deus é seu Pai, e que veio de Deus.

Não se incomoda se seu discurso surpreende. Se sua linguagem escandaliza, ele não a corrige; se sua palavra parece severa, ele não a modifica. Se os incrédulos o abandonam por causa da sua doutrina, ele se compadece dos dissidentes, mas deixa-os partir. A cada reação de espanto por suas afirmações, o Verbo de vida responde com uma afirmação ainda mais positiva.

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"Nunca ninguém falou como este homem”

Se, como a definiram, a eloqüência é o som de uma grande alma, a eloqüência de Jesus é o som de uma alma divina. Enquanto a palavra do homem significa o que ele fez, a palavra de Deus faz o que ele diz. Ele é a palavra criadora através da qual tudo foi feito, a palavra de vida graças a qual tudo subsiste. Ela participa de todos os atributos divinos: do poder, da bondade, da fecundidade, da simplicidade, da imortalidade. Passarão os céus e a terra antes que passe ou pereça uma só sílaba pronunciada pelos lábios de Jesus.

Jamais alguém viu Jesus recuar na defesa da verdade. Quando os judeus zombaram dele e com seu desdém o fizeram voltar à sua província da Galiléia, João o mostra pouco depois do alto dos pórticos do Templo, em presença da multidão, anunciando que é o Cristo (João 7.28). Ele poupa os humildes, perdoa os pecadores, porém desmascara os hipócritas, confunde os soberbos, porque ele é a verdade e eles são a mentira.

Atentam contra sua vida, mas por acaso alguém poderá matar a verdade? Tramam sua morte: Jesus vai ao encontro dela. Ele é a luz do mundo e brilhará sobre todos eles até que a noite venha. Mas essa noite não o assusta, porque a verdade terá uma alvorada ainda mais bela.

Quando levantardes o Filho do Homem então conhecereis quem eu sou (João 8.28).

Enfim, na cruz, quando não lhe restava mais do que um sopro de vida, Jesus quis ainda, com um tranqüilo e derradeiro olhar, certificar-se de que toda a verdade se havia cumprido. Está consumado, disse ele ao expirar. Eis o que João viu e o que devia repetir. Tal força de caráter, tal magnanimidade seriam unicamente humanas?

Seu amor incomparável

O seu amor era um amor imenso. Enquanto o nosso amor alcança só um pequeno círculo, o amor de Jesus Cristo

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transborda e alcança o mundo inteiro:

Eu não rogo somente por estes, mas também por aqueles que, pela sua palavra, hão de crer em mim; para que todos sejam um, como tu, o Pai, o és em mim, e eu, em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. (João 17.20-21)

Era o amor total, absoluto, que se entregava por completo, sem excluir pessoa alguma. Enquanto o nosso coração só quer um objeto nobre para expressar o seu amor, o amor de Jesus dirigi-se aos pequenos, aos pobres, aos decaídos, aos miseráveis. Ele deixa o rebanho para buscar a ovelha ferida e desgarrada, que ele carrega nos ombros e traz para o redil. Passou pela terra afastado dos príncipes e dos grandes. Chamou para perto de si os ignorantes e os pecadores. Amou os humildes a ponto de ajoelhar-se e lavar-lhes os pés.

Havia em Samaria uma mulher que sofria sob o peso do pecado. Jesus Cristo se fatigou a fim de ir alcançá-la no meio do seu povo. Havia na Judéia uma pecadora que se tornara o escárnio de todos. Jesus, tendo-lhe perdoado, conduziu-a para junto de sua cruz, onde ela tanto chorou que o próprio céu admirou-se de sua dor. Enfim, ele pediu que um simples pescador como Pedro e vários outros pescadores, seus amigos, apascentassem suas ovelhas, e ao pedir isto ele não quis saber o que eles tinham ou sabiam, mas certificou-se de que sabiam amar e que saberiam morrer.

Era o amor generoso e desinteressado. Quando ele pensou em si mesmo? Multiplicou o pão para a multidão faminta, mas quanto a ele, vivia do que lhe davam, e jejuava sempre nas cidades e desertos. Nas bodas de Caná transformou a água em vinho, mas pediu um copo d'água a uma estranha.

É a sua Vida que ele nos dá com abundância, e não encontramos no Evangelho de João expressão que tenha mais a ver com Jesus do que esta. Seu amor perde-se na própria eternidade, no seio da qual Jesus nos quer perto de si.

Foi nessa perfeição e beleza soberana que João viu o Homem-Deus levantando os olhos ao céu, invocando o nome de seu Pai, colocando as mãos sagradas na cabeça do doente, derramando abundantes lágrimas diante do túmulo de um

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amigo, fazendo jorrar a vida de sua alma e de suas mãos, fazendo correr a graça, a saúde e a regeneração nos corpos e nas almas das pessoas que o procuravam.

João havia lido tudo isso no olhar de Jesus, olhar do qual uma única centelha bastaria para conquistar um apóstolo, para transformar um homem, para arrebatar as almas para sempre. Este espetáculo por si só era outra eloqüência, outra revelação da divindade. Sentia-se estar "na companhia do Pai e do Filho". Estava-se com Jesus tão sublimemente como se estará com Deus no céu.

A exatidão do retrato que João pintou

Tal foi o retrato que João traçou de seu Mestre. Nada citou que Jesus não tivesse dito, nada escreveu que não tivesse visto. Devido a uma irremediável enfermidade humana, toda grandeza perde seu prestígio vista de muito perto. Porém, três anos passados na familiaridade da alma de Jesus tinham feito crescer aos olhos de seu discípulo o brilho de sua beleza sem igual.

Qual de vós me convencerá de pecado? perguntava o Justo. Há dois mil anos que o Evangelho sustenta o mesmo desafio ao mundo. Será que, ao longo dos séculos, acharam em Jesus uma única ambigüidade, uma só fraqueza, uma única sombra de injustiça? Eclipsou-a alguma beleza? Alguém já conseguiu igualá-la? Não!

Seria possível a caneta ou o pincel criar, imaginar esse retrato de Jesus não tendo existido qualquer original que se aproximasse, que pudesse ao mesmo dar uma idéia e fornecer o modelo? Não, porque não é possível criar Deus, não se inventa uma figura divina, pois o inventor seria então maior que o herói. Se João pôde exprimir o ideal divino é que este ideal viveu debaixo de seus olhos, e que, como o próprio João confessa, ele usufruiu durante três anos da visão, da palavra e do contato com Deus. Para ele nos dar um retrato verdadeiramente divino só teve que recordar-se e descrever.

Que grande ouvinte teve Jesus de suas palavras! Que maravilhoso contemplador de suas obras! Que discípulo fiel à doutrina! Ó contemplador espiritual! Ó homem divinamente

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inspirado, tu vistes a face do próprio Deus!

CAPÍTULO 6 - A INSTITUIÇÃO DA SANTA CEIA

Para compreendermos esta nova revelação do amor de Jesus e circundarmos o mistério no seu conjunto, iniciaremos a análise da narrativa de João pelo milagre da multiplicação dos pães, que forneceu ao Senhor os argumentos e a ocasião dessas divinas instruções.

A multiplicação dos pães e dos peixes

Foi durante a última temporada de Jesus na Galiléia. Excetuando Nazaré, toda aquela província fizera ao Mestre e aos discípulos carinhosa recepção. Desejando, porém, afastar por algum tempo seus discípulos das doçuras desse lugar, e prepará-los para novas lutas, Jesus tinha passado para o outro lado do lago, indo para um local solitário que chamavam de deserto, e que ficava vizinho de Betsaida, cidade natal de João.

Imediatamente após a sua chegada, juntou-se em torno dele uma multidão ávida de suas palavras e sobretudo desejosa de ver ou usufruir dos seus milagres. O deserto é limitado ao norte por uma montanha de encostas suaves. Ali sentou-se Jesus Cristo para instruir o povo e curar os enfermos. Ele fez com que também se sentassem perto dele os discípulos. Informando esse detalhe, João indica qual era o seu lugar e dá ao seu testemunho uma primeira garantia de autenticidade.

A Páscoa, festa dos judeus, estava próxima (Jo 6.4), acrescenta ele. Ora, as horas desse dia celeste iam pas-sando ao som das bem-aventuradas palavras de Jesus, e ninguém pensava nas necessidades da vida. Porém, quando a noite chegou, tornou-se tarde para atravessar de novo o lago em busca de alimento e o Senhor, compadecido, preocupou-se em providenciar comida para tão grande multidão.

Foi então que Jesus, com um milagre, inaugurou a perpétua providência do amor cristão multiplicando pães e peixes para

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todos. Fiel à sua memória, João começou a descrever esta cena por um prólogo no qual o Mestre e os discípulos conversaram edificantemente. Os outros evangelistas falaram apenas de um modo geral e vagamente; João, testemunha ocular, designa-os pelo nome e individualidade. O Senhor perguntou primeiro a Felipe: Onde compraremos pão para estes comerem? Felipe assustou-se. Nem o Mestre nem os discípulos eram ricos. Nem duzentos dinheiros de pão não bastarão para que cada um tome um pouco (Jo 6.7), responde Felipe. Aquela observação destacava o fato de ser impossível Jesus e os discípulos alimentarem aquela multidão, e a grandiosidade do milagre que ia acontecer.

Em seguida André, irmão de Pedro, diz a Jesus que um menino estava ali com cinco pães e dois peixinhos.

Mas, o que é isto para tantos ? (v.9) perguntou André. Jesus mandou o povo sentar-se na relva, que era espessa naquele lugar, conforme observa João, que de tudo se lembra. Cinco mil homens sentam-se sobre a relva. O alimento começou a ser distribuído pela mão daquele que de um grão de trigo faz sair uma colheita. Os discípulos reúnem as sobras, com as quais en-chem doze cestos.

João nada omite do que lhe causou admiração. Mas nem nessa passagem, nem em nenhum outro lugar, essa admiração se revela por qualquer palavra de entusiasmo ou espanto. É simplesmente o tom sereno da narrativa que se desdobra na mão de uma testemunha sincera. Sua narrativa não é senão o sublime relatório do que se lhe passou sob os olhos.

Jesus, o pão da vida

Todavia, este milagre foi somente a ligeira manifestação de um mistério mais elevado que forneceu os parâmetros de uma doutrina sublime. Entusiasmada com o que acabava de presenciar, a multidão quis tomar consigo o seu benfeitor e torná-lo rei. Jesus, porém, retirou-se para a montanha, e aproveitando a noite desceu escondido pelo lado do mar. Apesar do vento rijo que soprava, ele caminhou sobre o lago onde foi encontrado pelo barco dos apóstolos, distante uns cinco ou seis

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quilômetros da margem..., por volta da quarta vigília. Estas informações precisas são de João, que desde a infância conhecia o lago (João 6.19). Receberam-no a bordo, desembarcaram e seguiram com ele até Cafarnaum.

O povo de toda a região havia seguido para lá, insistindo em reconhecê-lo como rei de Israel. A multiplicação dos pães principalmente confirmava essa crença, pois era uma tradição para os judeus que o Messias, assim como Moisés, devia fazer descer o alimento do céu.

Fazendo então alusão àquela opinião comum, alguns disseram a Jesus:

Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos, e creiamos em ti? Que operas tu? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes a comer o pão do céu. (João 6.30-31)

Intimado a dar um pão sobrenatural pelo exemplo de Moisés, Jesus Cristo começou por propor-se a si mesmo como alimento espiritual da vida deificada que ele trazia ao mundo:

Eu sou o pão da vida; aquele vem a mim, não terá fome; e quem crê em mim nunca terá sede. (João 6.35)

Porém, enquanto os judeus cobravam de Jesus que ele lhes desse pão material, Jesus lhes falava do pão espiritual. Esse pão não tinha analogia alguma com o alimento material do maná, que havia sido dado por Deus a Moisés. Jesus, portanto, não satisfizera ainda ao pedido dos judeus; não realizara a esperança da multidão.

E é por isso que, de repente, querendo acentuar mais ainda a sua pregação, Jesus lhes dá a promessa de outro pão, o pão da vida, superior ao primeiro. João usa nova e estranha linguagem sobre esse assunto mais elevado:

Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. (João 6.50)

O Mestre não propõe mais somente vir a ele, ou mesmo crer nele, mas comê-lo.

Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre; e o pão que eu

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der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. (João 6.51)

Este pão é sua carne! Jesus Cristo o explica: A carne que deveremos comer é o símbolo da verdadeira carne que ele vai em breve entregar para a redenção do mundo, a mesma à qual João se referiu quando disse que o verbo se fez carne.

Depois, como se não fosse bastante formal esta ordem de comer a sua carne, Jesus a completa pela de beber o seu sangue, o que é mais alegoricamente inexplicável ainda:

Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. (João 6.54)

E como para que este milagre fosse necessário uma garantia, o Senhor apelou para o dia em que os judeus veriam essa mesma carne ressuscitada, livre das leis da matéria grosseira, subir triunfante ao céu para ficar à direita do Pai.

Sabendo, pois, Jesus em si mesmo que os seus discípulos murmuravam a respeito disso, disse-lhes: Isto vos escandaliza? Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava? (João 6.61-62)

Os discípulos, para quem esta doutrina era tão clara na fórmula e tão misteriosa no sentido, não podendo negá-la nem compreendê-la, resolveram desprezá-la e abandonar Jesus.

Desde então, muitos dos seus discípulos tornaram para trás e já não andavam com ele. (João 6.66)

Porém o Mestre, que se compadeceu deles e os amava, preferiu deixá-los afastar-se porque ele não pode transigir com a verdade, nem dizer o que ele não era. Mas é Pedro quem, liderando o número dos discípulos que ficaram, pronuncia uma das mais belas e profundas declarações que alguém já fez sobre Jesus:

Então, disse Jesus aos doze: Quereis vós também retirar-vos? Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna. E nós temos crido e conhecido que tu és o Cristo, o Filho de Deus. (João 6.67-69)

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Esse pão se chama o pão celeste, o pão descido dos céus, o pão da vida. Pois a terra tornou-se incapaz de nos proporcionar alimento que desse vida. Ela se corrompera desde o pecado original, como árvore de seiva esgotada que não dá mais frutos. Nem luz, nem amor, nem força. É a própria morte, segundo a expressão comum de João.

Ora, o novo maná veio trazer à alma uma vitalidade superior e imortal. Aquele que come minha carne fica em mim, e eu nele. Eu vivo, e vós também vivereis, repetia Jesus em outro lugar.

Não tínhamos sobre a terra senão um esboço da vida; Jesus nos fez entrar na vida completa, perpetuada, eterna: Aquele que comer deste pão viverá eternamente.

Enfim, o próprio corpo, vivificado pelo Espírito Santo, irá receber dele semente de ressurreição, que finalmente fará brotar a vida do seu próprio túmulo:

Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram... Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. (João 6.49,54)

Ele estava ensinando, portanto, a regeneração total de todo o nosso ser, e João poderá exclamar com entusiasmo e ação de graças: Quanto a nós, sabemos que passamos da morte à vida. Era o amor levado aos limites extremos, tal qual o homem podia imaginar, mas que só um Deus podia realizar. Era o amor indo aos limites do tempo pela perpetuidade, pois, enquanto neste mundo os laços mais sólidos se rompem, o divino amigo com-promete-se a ser nosso hóspede até o fim dos séculos.

Era o amor vencedor das fronteiras dos corpos, penetrando e unindo as almas. Enquanto nossas alianças não atingem o ser humano no que ele tem de íntimo; enquanto as formas de linguagem que representam uma vida que se confunde com outra são apenas uma metáfora e uma bela poesia, a comunhão com Jesus é tão real, tão profunda, que se parece com a das três Pessoas divinas formando um só Deus.

Será que o homem entregue a si mesmo seria capaz de alcançar essa doutrina? Será que qualquer um dos discípulos, que não fosse o discípulo predileto, teria podido colhê-la tão

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completa e tão viva dos lábios de Deus? Não. Uma ciência tão elevada e tão íntima da Divindade não podia ser colhida senão na própria fonte. Houve uma noite misteriosa quando João repousou sobre o seio de seu Mestre. Se os grandes pensamentos vêm do coração, então os pensamentos elevados e puros só podem vir do coração de Deus.

Aproximemo-nos desse coração, acheguemo-nos a essa fonte. Vejamos o que ocorreu naquela noite.

CAPÍTULO 7 - DURANTE A CEIA COM O SENHOR

Havia três anos que João não deixava seu Mestre. Ele tinha gravado no espírito as suas palavras, havia fixado em sua alma os traços fisionômicos de Jesus. Tinha também participado de seus sofrimentos. Em parte alguma se lê sobre os ultrajes dos judeus, o ódio dos fariseus, a inveja dos sacerdotes contra o Filho de Deus em uma história mais contínua e mais comovedora como no Evangelho de João.

Porém, naqueles últimos tempos, o apóstolo verificara que a cólera, a princípio em surdina, prorrompia dia a dia em ameaças mais sinistras. Os inimigos chegavam já às primeiras violências contra Jesus. Um dia os fariseus mandaram pessoas para prender o Mestre (João 7.32,44). Outra vez quiseram apedrejá-lo. João sabia que, em uma reunião do Sinédrio, haviam decretado que o Justo devia morrer (João 11.47). Mas Jesus escapou daquelas mãos deícidas, dispostas a matar o próprio Deus (João 8.59). Conseqüentemente, conforme nos conta João, os discípulos foram obrigados a seguir o Mestre para uma espécie de exílio, e passaram um tempo escondidos em uma cidade, junto ao deserto, chamada Efraim (João 11.54) para fugirem dos males extremos que ameaçavam cair sobre a cabeça de Jesus.

Porém, a festa da Páscoa, que fez Jesus voltar à cidade, despertou o entusiasmo popular com tal impulso de gratidão que os inimigos do Salvador resolveram definitivamente acabar com ele, e João previu tristes acontecimentos.

Muitas vezes Jesus havia dito:

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Ainda o meu tempo não está cumprido. (João 7.8)

Porém, João ouvia-o dizer agora:

É chegada a hora em que o Filho do Homem há de ser glorificado. Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem, neste mundo, aborrece a sua vida, guardá-la-á para a vida eterna. (João 12.23-25)

Ora — observa o discípulo — Jesus dizia isso significando de que morte havia de morrer. (João 12.33)

Jesus dizia ao povo que em breve a Luz lhes seria retirada (João 12.35); porém jamais aquela Luz mostrará brilho mais divino. Sua alma parecia já cheia do céu, e João, que seguia ininterruptamente a Jesus naquela fase suprema, podia prever revelações mais elevadas e maiores.

Era a última semana de vida do Filho do Homem. No quarto dia, tendo ele ido ao átrio do Templo, propôs ao povo dupla parábola. Após contar primeiro o crime dos maus vinhateiros que mataram o filho do dono da vinha, Jesus falou em seguida de uma grande ceia que um rei preparara para as bodas de seu filho, e para a qual convidara os pequenos e os pobres, dizendo-lhes: "Vinde, pois está tudo pronto.”

A escolha do local para a celebração da Páscoa

No dia seguinte, dia 13 do mês de Nisã, era quinta-feira, o primeiro dos dias em que os judeus comiam pão fermentado. Jesus havia se retirado da cidade, provavelmente para Betânia, dirigindo-se à casa de Lázaro, que ele quis visitar pela última vez. Jesus saía todas as tardes de Jerusalém e se hospedava em Betânia, de onde voltava todas as manhãs para realizar o seu trabalho.

Deixando Jerusalém todas as noites, ele escapava de seus inimigos que, com medo do povo, não ousavam apoderar-se dele em pleno dia.

Os discípulos vieram lhe perguntar:

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Onde queres que preparemos a comida da Páscoa? (Mt 26.17)

Aquela não deveria ser uma Páscoa como todas as outras. Jesus, querendo torná-la uma solenidade mais particular, designou dois dos discípulos para prepará-la. Um deles era João.

E mandou a Pedro e a João, dizendo: Ide, preparai-nos a Páscoa, para que a comamos. (Lucas 22.8)

João começava assim a desempenhar no Cenáculo o belo papel que não mais abandonaria: convinha que aquele que havia sido iniciado intimamente nas profundezas do mistério, fosse o primeiro ministro a participar de sua consumação.

Tendo chamado em particular os dois discípulos, Jesus deu-lhes certas instruções mais específicas:

E ele lhes disse: Eis que, quando entrardes na cidade, encontrareis um homem levando um cântaro de água; segui-o até à casa em que ele entrar. E direis ao pai de família da casa: O mestre te diz: Onde está o aposento em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos? Então, ele vos mostrará um grande Cenáculo mobiliado; aí fazei os preparativos. (Lucas 22.10-12)

O interesse particular que Jesus Cristo demonstrava pela solenidade, aqueles pormenores domésticos tornando-se de repente dignos da preocupação de Deus, e o requinte de esplendor naquele que se dignara nascer em uma estrebaria, que morara em um casebre e que ia amanhã morrer numa cruz, eram para os apóstolos o prenuncio de grandes acontecimentos que Jesus preparava, e João entendia que estavam para atingir a qualquer momento as manifestações supremas do amor.

João obedeceu ao Mestre. Muitos intérpretes afirmam que foi um dos discípulos, João Marcos, que teve a honra de emprestar a casa para a Ceia. Pedro e João ali prepararam, segundo as instruções formais de Jesus, uma sala grande e bela, para a celebração da última Páscoa em companhia de Cristo. A casa ficava a trezentos passos da porta de Sião, e na encosta da montanha. Era um imóvel isolado, de dois andares, que depois ficou sendo chamado de o "Cenáculo do Senhor". No andar térreo, a primeira sala atapetada - segundo o costume do Orien-

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te - servia de sala de jantar. Mas foi na segunda sala, menos espaçosa e localizada no andar superior, que o Senhor celebrou a última Páscoa e instituiu a Santa Ceia. E foi ali que Ele apareceu aos discípulos no dia da ressurreição. Foi ali também que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos. Enfim, o Cenáculo tornou-se o primeiro templo cristão na história da Igreja, e foi daquele lugar que partiram os discípulos para evangelizar o mundo.

Estando tudo pronto e chegando a noite, Jesus entrou no Cenáculo com os doze apóstolos para a ceia dos pães asmos.

O Êxodo estabelecera aos israelitas que cada um comesse a Páscoa em família. Tomavam essa refeição de pé, tendo os rins cingidos e o bordão na mão, como viajantes, em memória do dia em que o Senhor, com poder e grande glória, os tirara do Egito. Mas Jesus pensava numa viagem mais longa, e as palavras de despedida juntaram-se a palavras de amor:

Desejei muito comer convosco esta Páscoa antes que padeça, porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no Reino de Deus. (João 22.15-16)

A antiga Páscoa tinha sido a passagem da idolatria egípcia à unidade de Deus proclamada no deserto: Eu sou o que sou... A nova Páscoa, cuja realização João preparara, era a passagem da fé no Deus vivo dos judeus à fé no Deus presente no meio dos homens até o fim dos séculos: Eis que estou convosco!...

Comeu-se então o cordeiro, que os discípulos repartiram entre si, no meio de conversas cheias de esperança e temor. A despedida do Mestre e o anúncio de seus sofrimentos diante daquela carne imolada esclareciam no espírito de João o sentido profético da primeira frase que ele ouvira a respeito do Redentor: Eis aqui o Cordeiro de Deus!

O Filho de Deus ajoelha-se aos pés de simples pescadores

A Páscoa legal terminara. Jesus levantou-se da mesa - conta o discípulo - para cumprir um mistério ainda maior do que a ação figurada que ele acabara de concluir. Como dentro de poucos instantes Jesus irá realizar outro sacrifício, e um novo altar

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substituirá o antigo sacrifício e a antiga Páscoa, Jesus sentiu-se tomado de um respeito profundo e divino por aqueles humildes, pobres e pequenos pescadores, chamados por ele à honra do sacerdócio. Levantou-se então diante deles como se fossem príncipes, e cingiu-se para os servir. Colocou água numa bacia e ajoelhou-se diante deles como um servo, como um escravo. O Deus Criador foi visto de joelhos lavando os pés daqueles homens e enxugando-os em seguida com uma humildade que os encheu de espanto.

Não era raro naquele tempo e naquele país lavar os pés dos hóspedes antes da refeição. Mas o que significava aquele ritual, uma vez que a ceia já havia terminado? Que outra ceia maior do que a do Cordeiro Pascal ia então realizar-se? Os apóstolos se admiravam, diz João; Pedro reclamou. Não compreendiam porque semelhante honra estava sendo dada a homens. Porém, eles não sabiam que não era o homem que o Senhor humilhado venerava neles, e sim ao próprio Deus de quem eles iam tornar-se seguidores. Após aquele grandioso gesto, Jesus lhes perguntou:

Entendeis o que vos tenho feito?... Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. (João 13.12, 14-15)

Jesus, com o seu sublime exemplo, levou os discípulos a se prostrarem diante da humanidade para se dedicarem a ela. Ensinou-os a servir, a interceder, a expulsar demônios, a edificar, a lavar todos os pés que a terra tivesse manchado, a levá-los à presença de Cristo para o aceitarem como Salvador, a curar os pés daqueles que os espinhos tivessem ferido, e a enxugá-los com a paciência, com o amor e com a misericórdia.

A instituição da Santa Ceia

Após aquela grande lição, Jesus pôs-se de novo à mesa. Recomeçou a ceia. É o que os intérpretes chamam de "a segunda ceia". Nos evangelistas algo de mais solene brame e anuncia naquele momento a hora sagrada e a aproximação do

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mistério.

Ali, no silêncio de uma hora de tranqüilidade e paz, Jesus partiu o pão e fez a mais surpreendente declaração que João já ouvira até ali:

Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos. Porque isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados. (Mateus 26.26-28)

João lembrou-se do que Jesus dissera aos habitantes de Cafarnaum, quando se apresentou a eles como o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer desse pão, viverá para sempre... (João 6.51)

Convém notar que os discípulos, no Cenáculo, não sentiam mais aquele horror que se havia apossado deles quando Jesus anunciara pela primeira vez que ia dar-lhes sua carne para eles comerem e seu sangue para eles beberem. Percebia-se aqui a grande sutileza e sabedoria de Jesus em estabelecer como símbolos do seu corpo e do seu sangue o pão e o vinho! Ao participarem deles, estaria então satisfeita a necessidade mais profunda do coração humano!

Necessidade da verdade e do amor. Do amor tornado sensível, da verdade tornada palpável, da vida em nós, da união à Vida que Jesus veio realizar. Estava, portanto, instituída a Santa Ceia para ser perpetuada em um memorial: Fazei isso em memória de mim.

O traidor

No entanto, enquanto ceava com seus discípulos e amigos, Jesus sofria. Judas estava perto dele, e não longe de João, pois o traidor podia pôr a mão no mesmo prato que o Mestre. O Senhor sabia quais eram os seus planos; via sua desgraça, e era isso que o entristecia.

As palavras de amor pronunciadas por Jesus misturavam-se na conversa com palavras de queixa que revelavam a mágoa profunda que feria o coração do Senhor. Sobre João e os outros

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discípulos, Jesus dizia:

Ora, vós estais limpos, mas não todos. (João 10.10)

A mesa, Jesus falou outra vez sobre Judas e os demais:

Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido. (João 10.18)

E foi a Judas que ele dirigiu estas palavras:

Mas para que se cumpra a Escritura: O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calcanhar. (João 13.18)

Houve uma agitação geral entre os discípulos após Jesus pronunciar aquelas palavras. Por não revelar nome algum, Jesus fazia cair a suspeita sobre todos eles! Colocado ao lado do Mestre, João percebera a inquietação geral. Será que não teria sido mesmo para confidenciar-se com ele que Jesus o tinha querido tão perto do seu coração? João recolhia as confidências de Jesus, e gostava imensamente de ser o porta-voz das profundas revelações do seu Mestre.

João percebeu que Jesus estava emocionalmente abalado. Dirigindo-se a todos, o Senhor denunciou em alta voz o grande pecado que um deles estava para cometer:

Na verdade, na verdade vos digo que um de vós me há de trair. (João 13.21)

Quem era o traidor? Os discípulos olharam-se e interrogaram uns aos outros. Mais agitado ainda que os demais, João avançou receoso até o seio do Mestre como para desviar o golpe ou fechar a ferida que a traição abrira no coração de Jesus.

Tendo João se colocado perto de Jesus na Ceia, não se separou mais dele. Ninguém jamais se apegou tão fiel e familiarmente ao Filho de Deus como o apóstolo João. Quando Jesus foi preso, João entrou com ele no átrio e não o abandonou nem na Cruz, nem na morte, nem mesmo depois de sua morte, até que fosse sepultado.

É ele mesmo quem conta:

Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus. Então, Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse

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quem era aquele de quem ele falava. E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é? Jesus respondeu: É aquele a quem eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a Judas Iscariotes, filho de Simão. E, após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-o depressa. (João 13.23-27)

Foram as palavra que o Mestre misericordioso dirigiu a Judas, como para mostrar-lhe que conhecia seus projetos. Porém Judas saiu em seguida. Já era noite.

Nenhum dos que estavam à mesa com Jesus percebeu a que propósito falara ele a Judas. Mas João, que o conta, não podia ignorar: Jesus confidenciara-se com ele sobre sua maior dor. Um anjo o havia confortado no jardim das Oliveiras; agora um amigo o consolava inclinando-se sobre o seu peito na mesa da Ceia. O amigo divino necessitou do conforto do amigo mortal. Aquele que tornou-se do nosso tamanho e assumiu a nossa humanidade não escapou à lei que, na hora do sofrimento, faz curvar-se a criatura, por mais forte e por maior que seja, diante de outras, muitas vezes mais fracas, que nada sabem, que nada podem, mas que pelo menos nos amam e são capazes de compreender e aliviar o nosso sofrimento. Amigos que se dispõem a tomar sobre si uma parte do nosso sofrimento, de nos trazer o bálsamo da compaixão, bálsamo tão soberano e benfazejo que fez com que um homem se tornasse capaz de consolar o próprio Deus.

Jesus derrama o seu coração diante dos seus amigos

Assim que Judas saiu, o Senhor iniciou uma explanação sublime. Nada mais podia conter o impulso da alma que se queria dar totalmente, mas que se contivera por estar na presença dolorosa de um filho de Belial.

Judas não sabe o que perdeu. João consagrou quatro capítulos às palavras maravilhosas que Jesus pronunciou após a Ceia. É a parte mais admirável do seu Evangelho. Nem ordem nem arte humana alguma presidem aquelas palavras que só o Filho de Deus poderia pronunciar. Nelas sente-se transbordar por

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completo a alma que acaba de manifestar a plenitude do seu amor pelos discípulos, e que em breve vai sacrificar-se na morte.

João recolheu todas aquelas palavras, pois estava então reclinado sobre a própria fonte da Divindade. O tom celestial que elas conservam em seu livro comprova que o discípulo realmente havia colocado o seu ouvido sobre o coração adorável de Jesus, do qual se fez eco. Quando João escreveu o seu Evangelho ainda continuava cheio das sublimidades que ouvira no coração do Filho do Homem.

Jesus Cristo começou por dar graças ao Pai pelo trabalho maravilhoso que acabava de realizar. Assim como outrora Deus se havia louvado da bondade de sua obra depois da Criação, Cristo louvou-se da excelência ainda maior da obra da Redenção:

Agora, é glorificado o Filho do Homem, e Deus é glo-rificado nele. Se Deus é glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo e logo o há de glorificar. (João 13.31-32)

Depois da ação de graças começou a despedida. Mas que promessas divinas poderiam consolar os discípulos naquela despedida, e que esperanças seriam capazes de levantar os olhos dos discípulos para o céu?

Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco. Vós me buscareis, e, como tinha dito aos judeus: para onde eu vou não podeis vós ir, eu vo-lo digo também agora. Um novo mandamento vos dou: Que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós, que também vós uns aos outros vos ameis. (João 13.33-34)

Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço e as fará maiores do que estas, porque eu vou para meu Pai. E tudo quando pedirdes em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. (João 14.12-13)

E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em vós. (João 14.16-18)

Jamais palavras tão elevadas tinham sido pronunciadas

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sobre a face da terra. Felipe admirou-se ao ouvir aquelas sublimes palavras de Jesus. Ele pensou que o céu ia abrir-se diante de si, e pediu para ver o Pai, (João 4.8). Judas (não o Iscariotes) pensava que havia chegado a hora em que o Cristo ia enfim manifestar-se a Israel (João 4.22). Tomé perguntava que caminho o Messias ia tomar, e queria segui-lo (João 14.5). Todos viam bem naquelas palavras de Jesus o hino de sua glória futura, mas não eram capazes de avaliar por que preço essa glória ia ser adquirida, e como aquela ação de graças era o testamento onde Jesus, às vésperas de ser crucificado, deixava como última palavra de sua doutrina, de sua suprema vontade, e como herança de sua graça.

A Felipe Jesus respondeu:

Disse-lhe Jesus: Estou há tanto tempo convosco, e não me tendes conhecido, Felipe? Quem me vê a mim vê o Pai: e como dizes tu: Mostra-nos o Pai? (João 14.9)

E a Tomé, Jesus declarou:

Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim. (João 14.6)

Sua última vontade, perpetuamente repetida, foi o mandamento do amor:

Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele e faremos nele morada. O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros. (João 14.15,23;15.12;13.35)

A suprema herança que Jesus deixa aos seus discípulos é o dom do Espírito Santo, o Espírito da Verdade que procede do Pai e que irá lhes ensinar todas as coisas futuras. Depois, como coroação soberana de todos os dons, Jesus lhes deixa uma paz sobre-humana, uma paz inabalável mesmo no centro da tempestade; uma paz universal que se propagará entre indivíduos e as nações quando eles aceitarem a Cristo como Salvador e aprenderem a amar-se uns outros. Uma paz divina, superior à que o mundo dá, uma paz que ninguém nos poderá tirar e que deverá enfim eternizar-se no céu. Quantas palavras inesquecíveis João reuniu naquela noite memorável, e que raios

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de esplendor desceram subitamente sobre João, sobre seus companheiros, e desce hoje sobre nós!

A grandiosa explanação de Jesus terminou com uma bela oração. Jesus levantou os olhos para o céu, e dirigindo-se a Deus, disse:

Pai, é chegada a hora; glorifica a teu Filho, para que também o teu Filho te glorifique a ti... Eu glorifiquei-te na terra tendo consumado a obra que me deste a fazer. E, agora, glorifica- me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse. Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste; eram teus e tu mos deste, e guardaram a tua palavra... Pai, aqueles que me deste quero que, onde eu estiver, também eles estejam comigo, para que vejam a minha glória que me deste; porque tu me hás amado antes da criação do mundo. (João 17.1,4-6,24)

Tendo dito isto, Jesus preparou-se para morrer. Ele via o inimigo invisível aproximar-se:

Já não falarei muito convosco, porque se aproxima o príncipe deste mundo e nada tem em mim. Mas é para que o mundo saiba que eu amo o Pai e que faço como o Pai me mandou. Levantai-vos, vamo-nos daqui. (João 14.30,31)

Estava terminada a despedida. O grande discurso do Cenáculo foi concluído com um brado de sublime coragem: Levantai-vos e vamo-nos daqui!

A santa humanidade que estava prestes a quebrar-se como um vaso de puro alabastro, deixava transparecer toda a chama interior da alma de Jesus. A luz era tão intensa que os discípulos ficaram ofuscados. E eles disseram:

Eis que, agora, falas abertamente e não dizes parábola alguma. Agora, conhecemos que sabes tudo e não precisas de que alguém te interrogue. Por isso, cremos que saíste de Deus. (João 16.29,30)

Seria possível achar em outro lugar palavras nas quais a divindade se manifeste em traços mais nítidos? É principalmente nessa magistral exposição de Jesus que transbordam esses

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tesouros "de humanidade e de benignidade" que, conforme diz o apóstolo Paulo, jorram do seio do nosso Salvador.

Nada havia, no entanto, que denotasse a pompa de uma oração preparada, como o diálogo que Sócrates moribundo teve com seus discípulos. A elevação e a profundidade da doutrina se equilibram mutuamente pela sua própria doçura, e são para a alma como o azul do céu. O que aconteceu entre Jesus e os discípulos foi uma conversação sublime, porém familiar e íntima, de um pai com seus filhos, de um amigo com seus amigos, no silêncio de uma noite, durante uma ceia de despedida.

Pedro ali fez as suas promessas vivas e suntuosas, Tomé insinuou suas dúvidas, Felipe expôs seus desejos, Judas (não o traidor) suas esperanças. Porém, nada é capaz de exprimir a impressão que aquelas palavras deixaram no coração dos discípulos. Quando as lemos, elas ainda hoje vibram dentro do nosso ser, como se tivessem acabado de sair dos lábios do Senhor. Elas por si só seriam suficientes para povoar qualquer solidão e preencher uma vida, pois foram suficientes para transformar o mundo.

No final de todas as ceias, ao pé de todos os Calvários, na presença de todas as ações de graças, tudo se apaga e não se pode ouvir mais do que duas vozes imortais, a da alma que diz a Deus: Senhor, mostra-me o caminho! e Deus que responde: Eu sou o caminho, a verdade e a vida!

CAPÍTULO 8 - AO PÉ DA CRUZ

Depois do hino de ação de graças, Jesus Cristo, tendo dado o sinal para deixarem o Cenáculo, encaminhou-se com os discípulos para o monte das Oliveiras, onde costumava orar durante a noite.

Caminhavam juntos e lentamente. Era uma noite triste e suavemente iluminada pelo luar da Páscoa. Ao atravessarem as vinhas que naquele lugar cresciam como grandes arbustos, os discípulos se lembraram que Jesus havia tomado da natureza que os cercavam imagens capazes de melhor fazê-los compreender a sua doutrina:

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Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o lavrador. Toda vara em mim que não dá fruto, a tira; e limpa toda aquela que dá fruto, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho falado. (João 15.1-3)

E assim chegaram ao pé da montanha, num lugar pedregoso no qual a história e a profecia estão de acordo em indicar como o local de seus temores. Estavam no leito do ribeiro de Cedrom, cavado no vale chamado primitivamente Tofet ou Ben-Hinon, e denominado depois de Vale de Josafá. A palavra Cedrom significa em hebraico "trevas". E nada é mais sombrio que aquele barranco, quase sempre seco, em cima do qual serpenteia um atalho estreito que parece suspenso sobre o abismo.

Era dali que o livro de Levítico orientava que o bode expiatório devia ser lançado. Caindo do alto dos rochedos de Zug, devia expiar as culpas do povo. Davi também atravessou o Cedrom quando fugia de Absalão. Mais adiante, o caminho alarga-se e avança até o lugar chamado Getsêmani. Ali, do jardim onde o Senhor ia começar a sofrer, viam-se de um lado as colinas da Cidade Santa, e do outro a montanha de onde Jesus devia subir ao Céu.

João mesmo não relatou a paixão de seu Mestre no jardim das Oliveiras. Porém, foi quem mostrou Jesus dizendo, muito tempo antes de cair de cansaço e dor no Getsêmani:

Agora, a minha alma está perturbada; e que direi eu? Pai, salva-me desta hora; mas para isso vim a esta hora. (João 12.27)

Não é, na verdade, o prelúdio ou o eco dos gemidos do Getsêmani?

E necessário distinguir as duas paixões de Jesus Cristo: a do corpo e a do coração.

Ser amarrado, escarnecido, chicoteado e coroado de espinhos; ser crucificado e traspassado por uma lança, é suplício do corpo. Porém, por mais horrível que se suponha, não é essa a tortura que mais atinge as almas superiores. Esses sofrimentos são enfrentados corajosamente, algumas vezes até com alegria, e Jesus mesmo declarou que não se devia temer aqueles que

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matam só o corpo.

Porém, ser vendido por seu amigo, ter escolhido homens para seus companheiros leais e íntimos, seus herdeiros, seus irmãos, e ver-se de repente traído por um deles e abandonado pelos outros; sofrer sucessivamente o beijo da hipocrisia, o dardo da ingratidão, o abandono da covardia; suportar a deslealdade deste, a ingratidão daquele, a desonestidade de um tribunal e a estupidez insolente da plebe; enfim, ser bom, ser santo, ser Salvador, ser pastor, ser pai, ser Deus, e tornar-se a vítima daqueles a quem ele tinha vindo resgatar; ter deixado o Céu para salvar a terra, e depois morrer desamparado pelo céu e pela terra: aquele sim era o grande suplício do coração de Jesus.

Foi esse, portanto, o maior sofrimento de Jesus Cristo. Toda a sua paixão verdadeira e profundamente sentida ocorreu no momento em que ele suou gotas de sangue no Getsêmani, sentindo certamente o coração traspassado pela traição e o abandono dos amigos. E essa dor foi muito maior do que aquela em que o seu coração, traspassado por uma lança, jorrou sangue e água.

João registrou três feridas sobre o coração de Jesus, três profundos golpes sofridos por Aquele que nos amou: o primeiro ocorreu no jardim do Getsêmani com a fuga dos discípulos, o segundo em casa de Caifás com a negação de Pedro, e o terceiro na cruz. João permaneceu ao seu lado durante aqueles momentos extremos para fazer de sua companhia um apoio, já que não podia fazer de seu próprio corpo um amparo.

No Getsêmani sozinho com Deus

Jesus chegou ao Getsêmani em companhia dos discípulos. Eram onze, mas ele só convocou para seguir com ele mais adiante a três deles: Pedro, Tiago e João, os mesmos que o tinham acompanhado à montanha onde outrora ele fora transfigurado. Aos demais ele ordenou que o esperassem sob as oliveiras, e retirou-se para a suprema agonia, pedindo aos três discípulos que o seguiram unicamente que orassem para aliviar-lhe a tristeza mortal.

E principalmente em horas como essa que a amizade é o

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mais indispensável dos bens. O próprio Deus procurou sua doçura compassiva; ele veio para junto dos apóstolos e tornou a voltar. Mas os apóstolos dormiam, e João, o predileto, dormia também como os outros.

Vencidos pela tristeza, eles adormeceram, como filhos extenuados junto do leito do pai, que acabam por cair numa sonolência na qual a alma continua velando diante da dor. Jesus Cristo não os acusou, antes compadeceu-se deles. Disse:

Na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca. (Mateus 26.41)

Cremos com sinceridade, amamos com fidelidade, fazemos de nossa dedicação, de nossa entrega um dever e uma honra. Porém, nossa pobre natureza tem seus retrocessos. Muitas vezes é nossa paciência que se cansa, é a saúde que fraqueja, é o ideal que se encobre, é o ardor que se apaga, são os olhos que se sobrecarregam de tristezas e aborrecimentos. E de repente somos surpreendidos dormindo, depois das mais veementes garantias de que velaríamos, combateríamos, sofreríamos por amor a Cristo. Ó, quem nos livrará deste corpo de morte?

Vigiai e orai, repetiu-lhes Jesus. Primeiro, é necessário vigiar, ter os olhos abertos, acautelar-se das ciladas, porque é a hora das trevas, e elas jamais deixarão de cercar e atacar os discípulos do Deus de quem o mundo não cessa de tramar a morte. E é necessário também orar. A oração move a mão de Deus, sensibiliza o seu coração. Se o Filho do homem tem que beber o cálice e derramar o seu suor de sangue, que ao menos ele não sofra sem ser consolado. Que os amigos, vigiando e orando, estejam com ele na sua agonia e confortem o seu coração!

Há ainda outro dever: o da ação.

Levantai-vos, partamos; eis que é chegado o que me trai. (Mateus 26.46)

Não se trata mais de vigiar, nem mesmo de orar; trata-se agora de caminhar com determinação e coragem.

João levantou-se. Seu divino Mestre estava sendo preso pela guarda enviada pelo Sinédrio. Os homens vinham armados e traziam lanternas e archotes. João descreve que caíram por terra ao ouvirem uma palavra do Homem-Deus. João também

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descreveu a reação de Pedro contra Malco, e registrou as palavras de misericórdia com as quais o Senhor pediu que nada fizessem a seus discípulos (João 18.8). Haviam seguido Jesus até ao pé da colina, e três deles ao jardim. Quantos o acompanharão à casa dos que o mandaram prender?

Seguindo o prisioneiro Jesus

E Simão Pedro e outro discípulo seguiam a Jesus. E este discípulo era conhecido do sumo sacerdote e entrou com Jesus na sala do sumo sacerdote. (João 18.15)

E outra vez João, fazendo uso de sua conhecida atitude de modéstia, deu a si mesmo o tratamento de "o outro discípulo". Ele próprio se denuncia em termos velados, mas transparentes, que revelam a modéstia da testemunha. Uma das provas de que "o outro discípulo" era João foi o fato de, mais tarde, as autoridades do Sinédrio que os prenderam terem-se lembrado que aqueles dois homens tinham sido vistos seguindo a Jesus (Atos 4.13).

João foi o primeiro a chegar. Não quis deixar o Mestre um instante sequer. Por conhecer pessoas daquele meio, pôde entrar na casa de Caifás, penetrou no átrio e não disfarçou nem quem era e nem a quem amava. Era um discípulo de Jesus, todos sabiam. A mulher que tomava conta da porta parece fazer alusão ao homem que havia entrado primeiro quando perguntou a Pedro:

Não és tu também dos discípulos deste homem? (João 18.17)

João fez com que se abrisse o portão para ele. Falou com os funcionários de Caifás, e introduziu Pedro. Ele certamente gostaria que outros discípulos estivessem ali como um protesto, como um apoio, como uma mediação entre o Justo perseguido e seus perseguidores. Jesus sabe que os dois discípulos estão ali, e por isso diz ao sumo sacerdote:

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Para que me perguntas a mim? Pergunta aos que ouviram o que é que lhes ensinei; eis que eles sabem o que eu lhes tenho dito. (João 18.21)

Mais tarde, quando o coração de Jesus sofrer o golpe da negação de Pedro, é necessário que o Filho de Deus tenha ao seu lado um discípulo fiel sobre o qual ele possa pelo menos pousar o olhar. Esta honra coube ao apóstolo João.

Uma das coisas que João faz sobressair na Paixão do Mestre é o caráter espontâneo de seu sacrifício. Jesus o declara desde o começo:

Por isso, o Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém me tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar e poder para tornar a tomá-la. (João 10.17,18)

Tendo feito esta declaração de sua soberania, e salientando que é por livre escolha que vai morrer, Jesus não caiu em contradição em momento algum. Quis ordenar em pessoa o sacrifício, tudo prevendo, tudo predizendo, na plena posse de uma alma dona de si e de seu destino. Depois, chegada a hora, é ele mesmo quem avisa ao traidor e lhe diz que O que fazes, faze-o depressa. (João 13.27). Ele é Senhor de seus inimigos. Foi por isso que ele os prostrou por terra assim que lhes disse quem era, e só se entregou quando deixou bem claro que seu sacrifício seria voluntário por amor a nós. Ele também demonstrou que era Senhor de seu próprio juiz. Quando Pilatos ousou dizer, ao grande, ao soberano, ao infinitamente poderoso Senhor Jesus:

Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? (João 1.10)

Jesus lhe respondeu:

Nenhum poder terias contra mim, se de cima te não fosse dado; mas aquele que me entregou a ti maior pecado tem. (João 19.11)

Enfim, ele é Senhor da própria morte. Quando a morte, achando-o esgotado pela perda de sangue, se dispuser a dar-lhe o golpe final, ele subitamente a fará parar até que, recordando tranqüilamente as Escrituras a fim de certificar-se de que tudo

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estava cumprido, far-lhe-á sinal de ferir, dando um brado poderoso: Está consumado. (João 19.30). Naquele brado estava a força, a liberdade e a vida.

Assim, aos olhos de João, o seu Mestre não sucumbiu: ele se ofereceu, se doou; não foi ele o supliciado, mas sim nos livrou do suplício eterno; não foi a vítima, e sim o Sacerdote. E este sacerdote era Deus:

Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. (João 1.29)

Todavia, depois que se mostrou no átrio de Caifás ao lado de Jesus, o apóstolo João não apareceu mais na Paixão de seu Mestre até a crucificação. Para onde ele foi? O Evangelho não o diz. Respeitemos o silêncio sagrado do Evangelho.

Diante de Jesus Cristo na cruz

E junto à cruz de Jesus estava a sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa. Depois, sabendo Jesus que já todas as coisas estavam terminadas, para que a Escritura se cumprisse, disse: Tenho sede. (João 19.25-28)

Era a consumação da fidelidade da parte de João. A paixão do Homem-Deus, a paixão de seu coração entrara na crise suprema. Abandonado pelos seus apóstolos, agora ele se queixava de ter sido desamparado também pelo Pai:

Eli, Eli, lemá sabactâni?: Deus meu, Deus meu, por que me desampareste? (Mateus 27.46)

João não o abandonou. O firmamento se cobriu de trevas, a terra tremeu como para sacudir de sua face a sacrossanta Vítima do mundo, os túmulos se abriram como que tomados de pavor sagrado. Sozinho entre todos, o amigo de Jesus de obstinava a crer e a amar: "O amor é forte como a morte".

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Da parte de Jesus foi a consumação em sua plenitude: ele dera tudo que o lhe restava. O que poderia ele ainda dar, despojado como estava, nada mais tendo de que pudesse se dispor para entregar em resgate da humanidade? Para qualquer lado que ele voltasse os olhos, Jesus nada mais via que lhe pertencesse. Mas de repente ele viu Maria e viu João, que com o olhar lhe diziam: "Nós lhe pertencemos". Era tudo o que lhe restava. Mas ele deu um ao outro: João, eu te entrego Maria, minha mãe; Maria, eu te entrego João, meu amigo.

Tudo o que havia de respeitoso e terno no seu amor para com sua mãe vai viver agora no coração de João. Ele tornou Maria mãe de João, e tornou João filho de Maria. Agora João, seu discípulo mais achegado, tornara-se seu irmão! Por isso é fundamental nos achegarmos ao pé da cruz e ficarmos com Jesus Cristo em meio aos nossos sofrimentos. Ele se revelará como nosso irmão.

Mas a herança que Jesus estava deixando não se limitava só ao discípulo João. Estendia-se ao mundo inteiro. João representava todos aqueles a quem Jesus estendia a mão e de quem se tornava o irmão mais velho de uma família cujo Pai estava no céu.

No entanto, o discípulo continuou ao pé da cruz para testemunhar algo ainda maior:

Contudo, um dos soldados lhe furou o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água. E aquele que o viu testificou, e o seu testemunho é verdadeiro, e sabe que é verdade o que diz, para que também vós o creiais. (João 19.34,35)

CAPÍTULO 9 - TESTEMUNHANDO A RESSURREIÇÃO

As memórias de João nos transportam para o que aconteceu três dias após a crucificação. João se retirara para uma casa em Jerusalém, talvez sua própria casa, na qual hospedara a mãe de Jesus, e que Nicéforo e outros historiadores dizem que estava situada na colina de Sião. Pedro também se encontrava lá, abatido pelos remorsos.

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Foi aí que chegou a João a primeira notícia de um fato maravilhoso. No domingo pela manhã, entrou precipitadamente pela casa a dentro uma mulher. Era Maria Madalena que com a voz chorosa, dizia:

Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram. (João 20.2)

O que aconteceu? O que veio esta mulher contar? O que é que ela tinha visto?

Pela manhã algumas mulheres da Galiléia — entre as quais o Evangelho cita Maria, mãe de Tiago, o menor, e de José; Salomé, mãe de João, e Joana, mulher de Cusa, procurador de Herodes — tinham ido muito cedo ao sepulcro de Jesus. O sepulcro estava localizado no centro de um jardim sobre a encosta da montanha do Calvário, escavado no rochedo, conforme se vêem ainda hoje os túmulos dos patriarcas e dos reis de Judá.

Aquela gruta sepulcral e aquele jardim eram de um judeu distinto, chamado José de Arimatéia, que, auxiliado por Nicodemos, ali depositara o corpo do Mestre, depois de tê-lo preparado com essências aromáticas e envolvido em faixas, como era costume no Oriente. Mas esse embalsamamento rápido, preparado às pressas na véspera de um Sábado, fora insuficiente. Com o propósito de concluir o trabalho de suprema piedade, as mulheres para lá se dirigiram antes mesmo do amanhecer, levando consigo vasos cheios de aromas. Inquietas, perguntavam entre si quem removeria a pedra que fechava o sepulcro.

"Roubaram o meu Senhor!”

Madalena, a mais ativa de todas, apressou o passo e chegou antes das outras. Estava ainda escuro quando ela chegou ao jardim, perto do túmulo cavado na rocha. Seu primeiro impulso foi correr até a entrada do santo lugar onde repousava o corpo do Mestre amado.

Porém, a pedra já havia sido removida! Madalena se perturbou, pensou inicialmente em roubo, em uma profanação.

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Mas não ousou penetrar naquele lugar escuro. E, sem esperar pelas outras, saiu correndo desvairada, fora de si, rumo à casa onde estavam Pedro e João para dizer-lhes: Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram.

Receios do amor que crê tudo perdido, no momento mesmo em que está prestes a achar tudo de novo! A forte emoção que agita o coração de Madalena também é sentida por João. Não se fala ainda em ressurreição; nem se pensa nisso. Ao ouvirem as primeiras palavras de Madalena, os dois discípulos se abalam e imediatamente resolvem ir até o sepulcro para averiguar. E João quem conta:

Então, Pedro saiu com o outro discípulo e foram ao sepulcro. E os dois corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais apressadamente do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro. E, abaixando-se viu no chão os lençóis; todavia, não entrou. Chegou, pois, Simão Pedro, que o seguia, e entrou no sepulcro, e viu no chão os lençóis e que o lenço que tinha estado sobre a sua cabeça não estava com os lençóis, mas enrolado, num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. Porque ainda não sabiam a Escritura, que diz que era necessário que ressuscitasse dos mortos. (João 20.3-9)

João procedeu como um narrador muito exato. É, como se vê, ao mesmo tempo a testemunha mais próxima, o mais fielmente instruído, o que primeiro acreditou na ressurreição: Então, entrou também o outro discípulo que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu. (João 20.8). E o que o levou a crer na ressurreição de Cristo? Em primeiro lugar as Escrituras; em segundo, as promessas do Salvador; em terceiro, todas as evidências que ele viu dentro do túmulo; e em quarto, o testemunho do seu coração. O coração é sempre o primeiro fator nas verdades de Deus. Pedro ainda estava a caminho, mas João já vira e crera. Para crer, o caminho mais curto é o amor.

João voltou para casa com Pedro. As horas do dia haviam transcorrido rapidamente, e Pedro e João ficaram hesitantes entre o temor e a esperança, quando viram de novo Madalena vir até eles. Não era mais a mesma mulher. Sua face estava radiante, suas palavras eram de fogo. João as guardou, e com

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que encanto as repetiu fielmente para nós! Retornando após os discípulos, Madalena havia ficado chorando perto do sepulcro. Ela não tinha podido desprender-se daquele lugar tão cheio de tristes e de doces recordações. Porém, de repente ela viu, no lugar onde o corpo de Jesus estivera, dois vultos vestidos de branco: eram dois anjos. Eles lhe perguntaram:

Mulher, porque choras? (João 20.13)

Madalena respondeu:

Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram.

O reencontro com o Senhor ressurreto

Em seguida ela se voltou e viu que havia mais alguém ali. Era o Senhor. Todavia, no meio das lágrimas, ela não o reconheceu, e pensou que ele fosse o jardineiro. Ela também perguntou a ele pelo seu Mestre. Jesus só lhe disse uma palavra: "Maria!". Mas esse era o seu nome de honra, o seu nome de reabilitada, e aquela voz ela conhecia muito bem: era a voz do Mestre! Rabboni! exclamou Maria Madalena, e se lançou aos seus pés para adorá-lo.

Mas o Senhor lhe disse:

Não me detenhas, porque ainda não subi para o meu Pai, mas vai para meus irmãos e dize-lhes que eu subo para meu pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. (João 20.17)

Era para poupar o coração de Madalena que Jesus lhe impunha aquele sacrifício. Como poderias ainda ficar sobre a terra, se eu te deixasse beijar meus pés?

Era a hora do Cristo invisível suceder o Cristo visível. Até ali tinha sido possível derramar lágrimas e perfumes aos pés dele. Agora não seria mais possível. Jesus fez Madalena levantar os olhos para o céu, para onde ele em breve vai subir, e mandou-a contar a seus irmãos tudo o que acabava de ver.

João e Madalena creram pelo que viram e ouviram; creram pelo olhar. O de João foi mais espontâneo, o de Madalena mais ansioso. Um só necessitou de um olhar e logo creu; o outro

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necessitou de palavras e aparições. Ambos se apressaram e correram. Todo amor tem asas. Mas João só precisa de um instante para contemplar as evidências e crer; Madalena deve demorar-se algum tempo mais no túmulo. João advinha; Madalena procura. Mas quando se ama a Jesus, não se procura durante muito tempo: ambos o encontram no seio de seu triunfo. Como dádiva e coroamento por o terem seguido até o lugar de seu suplício.

Eis o despertar que Deus reserva àqueles que lhe são fiéis. Há sempre duas cabeças sobre as quais Jesus Cristo não cessa de estender no mundo as duas mãos que foram cravadas em sua cruz ensangüentada e gloriosa: a do arrependimento e a da fidelidade. Ele as estendeu sobre Madalena e João. A uma ele perdoou muito; ao outro ele confiou os seus segredos. Enquanto o arrependimento permaneceu mais abaixo, a seus pés, beijando-os com humildade, a lealdade e a inocência repousa-ram sobre o seu coração.

A princípio, o relato das mulheres foi considerado "delírios femininos". E os primeiros relatos dos homens não conseguiram inspirar mais fé que o das mulheres. A aparição de Jesus a Pedro tinha sido algo pessoal. Os discípulos de Emaús tinham reconhecido o Senhor pelo partir do pão. Eram fatos isolados. Os que ouviam essas narrações admiravam-se, ficavam emocionados, mas não se rendiam.

João narrou os fatos da ressurreição opondo a sua fé e a de Madalena à pertinaz incredulidade de Tomé. Agora não se tratavam mais de aparições isoladas. Jesus aparecera aos apóstolos reunidos num mesmo lugar.

Tais eram as mais vivas recordações de João. E mais tarde, na abertura de sua primeira carta, ele revela em que fatores de credibilidade sua autoridade para falar sobre a ressurreição de Jesus se baseava:

O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram a Palavra da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão

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conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)

Por ele ter visto, ouvido e tocado, nós podemos ainda hoje ver, ouvir e tocar em tudo aquilo que ele nos contou: a marca imortal do seu livro permanece sempre jovem em nosso coração.

O ressurreto prepara sua despedida

Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão a Galiléia e lá me verão. (Mateus 28.10)

Foi o que Jesus disse à Madalena. E foi ali, na Galiléia, que João viu coroar-se a vida ressuscitada do vencedor da morte. O Cenáculo tinha ficado para traz. Os apóstolos haviam retornado para o lago, cheios de temor e de esperança, tornando-se outra vez pescadores de peixes depois de terem sido consagrados pescadores de homens.

Um dia estavam pescando. João e Tiago ali se encontravam com Pedro, Tomé, Natanael e dois outros discípulos. A noite de trabalho tinha sido má, e os pescadores estavam voltando sem ter apanhado nada quando, no momento de encostarem à praia, viram alguém que os esperava e que os cumprimentou de uma maneira que eles já conheciam:

Filhos, tendes alguma coisa de comer? Responderam-lhe: Não. (João 21.5)

Jesus lhes orientou a lançar a rede à direita do barco, eles obedeceram e viram de repente na rede uma pesca milagrosa.

João deleitava-se com essa narrativa. Ao escrevê-la, ele revia o lago, com alegria, talvez agora muito longe de onde ele estava. Via também sua casa, o barco e os utensílios de pesca. Citou também os nomes dos amigos mais fiéis. Nessa narração reconhece-se de imediato a mão, a linguagem e o olhar do filho de pescador. João tem o olhar agudo que calcula as distâncias no ar e até o fundo da água. Sabe de que lado foi atirada a rede; sabe que a rede é de arrastão como as dos pescadores do oceano nos dias de pesca abundante. Na sua opinião, o milagre consistiu principalmente no fato de que a rede devia romper-se forçosamente, e no entanto resistiu até o fim.

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Mas quem fizera aquele milagre? Quem era o desconhecido tão poderoso e tão bom, que os orientara sem mesmo precisar entrar no mar? É o Senhor! exclama um discípulo que o reconheceu com um simples olhar. E esse discípulo foi João. Ele mesmo se identificou no seu evangelho:

Aquele discípulo a quem Jesus amava. (João 21.7)

Aqueles que se amam se reconhecem sem esforço, pela simples simpatia e semelhança.

Uma refeição em comum, à beira do lago, consagrou aquela solene visita de Jesus. Havia sido em meio a uma refeição, nas bodas de Caná, que o Senhor pela primeira vez tinha manifestado sua glória. Em uma outra refeição, a Santa Ceia, ele revelara a grandiosidade do seu amor. Agora qual era o símbolo daquela última refeição do Ressuscitado com a qual João encerra o seu Evangelho, senão o grande banquete que nos está preparado no Céu, e para o qual nos convida o Esposo das núpcias eternas?

João foi a testemunha mais importante, o historiador mais completo da ressurreição. Enquanto nos outros evangelistas o divino Ressuscitado atravessa rapidamente o horizonte como um magnífico meteoro, no Evangelho de João ele é um sol radiante do meio-dia. Ele vê, fala, ama, é uma existência inteira que começa na terra para findar-se no céu.

E que existência! Compassiva e boa como deve ser a de um homem; poderosa, transfigurada e digna de um Deus! E que ternura! Que familiaridade! Que surpresas encantadoras! Que palavras de Pai nessas despedidas sem fim que precederam a partida! Seu prazer era mesmo estar entre os seus discípulos.

Percebe-se que Jesus, por os amar tanto, tem dificuldades de os deixar. Reúne-se a eles por toda parte: no Cenáculo, à beira do lago, no meio do trabalho, na hora da refeição, no caminho da cidade. Por que estais tristes? pergunta a uns. Não vos assusteis, não tenhais medo de nada, diz a outros. Paz seja convosco! diz ele a todos. Eles não são mais seus servos, e o próprio nome de amigos não o exprime bem. São seus filhos de agora em diante. Filhos, não tendes nada para comer?

Como outrora José, quando achou os irmãos, ele não quer nem mesmo lembrar-se que o abandonaram. Entre todos os fiéis,

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há uma que foi grande pecadora: é a essa mulher que Jesus aparecerá primeiro. Entre os doze apóstolos, há um que o negou: Jesus aparece a Pedro antes dos outros. Não se fala mais na apostasia. E quando Pedro, lembrando-se da sua ingratidão, fica confuso diante de uma tão grande misericórdia, Jesus pede-lhe que, como prova de que o apóstolo lhe ama, apascente suas ovelhas. Pedro o negara três vezes, e por três vezes o Senhor pede-lhe a confissão do seu amor (João 21.15-17).

Assim, no Evangelho de João é a alma de Jesus que palpita. Se ele sentiu tremer e transbordar a vida do Filho do Homem, viu também completar-se em Jesus a obra definitiva do poder de Deus. É a paz firmada entre o céu e a terra, a sua aliança escrita nessas chagas gloriosas que Jesus mediador deixará entre a humanidade na terra e seu Pai que está nos céus.

Quando Jesus finalmente, diante dos seus discípulos, ocultou-se entre as nuvens e retornou para junto do Pai, deixou-lhes a maior de todas as responsabilidades - evangelizar o mundo - e a maior de todas as heranças - seus ensinamentos, a fé e o amor. Ele já não estaria fisicamente presente entre eles, e sim espiritualmente. Iria começar a segunda e última etapa da vida do apóstolo João.

2 ª p a r t e

Convivendo espiritualmente com o Filho de Deus

CAPÍTULO 10 - O PRIMEIRO TESTEMUNHO DE JOÃO PERANTE OS

JUDEUS

Os três anos passados na intimidade de Jesus Cristo haviam transformado João na grande testemunha do Evangelho, e as relações familiares com o Filho de Deus foram suficientes para lhe proporcionar toda a vastidão de conhecimentos que ele revelou depois, e garantiu-lhe a sinceridade de suas palavras.

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Mas quem nos explicará essa nova energia que vai fazer do discípulo predileto um apóstolo e um mártir? O que será responsável por essa transformação súbita que do homem silencioso e anônimo de ontem tornou hoje o mais sublime dos evangelistas? É que aquele espírito ainda precisava de um último raio de luz. Era-lhe necessária uma chama que aquecesse poderosamente aquele coração para fundir e tornar de bronze aquela alma cheia de fidelidade e ternura.

O Espírito Santo fez o milagre, o milagre necessário, milagre que Jesus Cristo profetizara no Evangelho de João. Foi unicamente em João que a teologia referente ao Espírito Santo recebeu as revelações e o desenvolvimento que formam um conjunto doutrinário completo.

João nos conta que, na última conversa de Jesus com seus discípulos, às vésperas de sua morte, os apóstolos ouvindo-o falar em partida, ficaram tristes; mas o Senhor lhes disse:

E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre, o Espírito da verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê, nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós. (João 14.16-18)

Jesus disse então qual era a origem, a natureza e o ministério deste outro Consolador. Ele é o Espírito que procede do Pai, e que seria enviado pelo Pai e pelo Filho. Este Espírito chama-se Espírito da Verdade, enviado por Deus a fim de despertar o espírito dos apóstolos à doutrina do Evangelho, assim como o sol desperta no seio da terra as sementes adormecidas:

Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)

Os apóstolos tinham recebido ordem de ficar no Cenáculo até que do alto fossem revestidos de poder.

O Pentecostes justificou as promessas divinas. As línguas de fogo que os apóstolos viram descer sobre suas cabeças enquanto oravam no Cenáculo representavam a chama e a luz

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interior com as quais o Espírito da Verdade vinha abrasá-los. O vento que abalou o lugar onde oravam era a imagem daquele sopro cheio de força que iria derrubar os ídolos do paganismo e propagar a verdade do Evangelho sobre a face da terra. A coragem que encherá mais tarde o coração dos apóstolos diante dos carrascos foi proporcionada pela presença e a graça do Espírito Consolador que o Mestre lhes prometera.

Não é preciso procurar em outro lugar o segredo da transformação que fez do filho de Zebedeu o evangelista do Verbo, e do terno discípulo um testemunho destemido da verdade. Pode-se mesmo dizer que naquele sentido, ele não é mais o mesmo homem que viu Jesus pela primeira vez às margens do Jordão. Na verdade, é outro homem - é o homem do Pentecostes.

Nós veremos esta transformação manifestar-se em sua vida e em suas obras. A alma de João, cheia dos dons de Deus, parecia um navio ainda ancorado no por- to apenas à espera do vento para iniciar a navegação. O Espírito Santo soprou no Cenáculo e o apóstolo partiu.

Pedro e João, companheiros de ministério

Uma das recomendações de Jesus foi que os discípulos se associassem dois a dois para pregar o Evangelho. Eis porque, daquele momento em diante, João não andará mais só. A princípio ele tornou-se companheiro inseparável de Simão Pedro. Não era só o prelúdio e o exemplo da associação que devia ser uma das forças de conquista do futuro. Os comentaristas quiseram ver nessa união dos dois apóstolos o símbolo da união da doutrina e do amor. Para eles Pedro e João constituem a verdade aliada ao amor, um levando a luz, o outro o calor; um dono dos espíritos, o outro soberano das almas; mas ambos invencíveis porque andavam juntos, de ânimos e corações entrelaçados.

Na opinião de muitos estudiosos, esses dois apóstolos representavam, antes do Pentecostes, um a vida ativa, o outro a vida contemplativa. Pedro era a energia da ação e do combate. João era a quietude da contemplação, repousando em silêncio

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perto daquele que ele amava, e antevendo as calmas alegrias da eternidade.

Os apóstolos não se dirigiram logo às nações. O Pastor lhes dissera que deviam primeiramente ir às ovelhas de sua casa, de Israel. Os judeus deviam ter as primícias do Evangelho, e Pedro e João começaram pelas almas de Jerusalém.

Naquela época Jerusalém era quase uma cidade romana. Sob Herodes, conforme informa Plínio, ela se tornara a mais magnífica cidade do Oriente. Porém, com isso perdera muito da sua religiosa originalidade. O príncipe cortesão construíra bem perto um circo e um teatro onde se celebravam as festas qüinqüenais em honra de Augusto. Reconstruíra e transformara o Templo, porém profanando-o: Em cima da porta principal da Casa Santa via-se brilhar a águia de ouro de Roma e de Júpiter, como um duplo insulto à religião e à liberdade.

Enquanto os fariseus exageravam nas exigências do culto até a superstição e se apegavam aos rituais sem, no entanto, conseguirem preservar a fé e a obediência a Deus, havia bajuladores chamados herodianos que não conheciam outro Messias senão o rei Herodes, outras leis senão os seu favores, outras festas senão os espetáculos para os quais ele os convidava. E os costumes iam se corrompendo na orgia e no sangue.

A crise da fé não era menos mortal. Os intelectuais de então, chamados saduceus, ensinavam que se devia usufruir de todos os prazeres neste mundo, pois que nada se sabia do outro. E pouco caso faziam da imortalidade. Desta forma Jerusalém começava a ser uma cidade profana. Seu importante papel apagava-se, seu sacerdócio inspirava medo; ela própria começava a abrir mão de sua missão, deixando cair a barreira que outrora a separava do paganismo.

Contudo, o povo guardava ainda ao culto nacional fidelidade escrupulosamente zelosa. Mesmo os primeiros discípulos de Jesus Cristo não tinham rompido com a Sinagoga. Freqüentavam o templo, como o fizera o Mestre, e foi nessa Casa abençoada que João deu o primeiro testemunho de Jesus.

Havia poucos dias que fora celebrado o Pentecostes legal. Os estrangeiros ainda estavam em grande número em Jerusalém, quando, juntos, Pedro e João subiram ao Templo.

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Dirigiram-se primeiro, pelo pórtico exterior, até a Porta Formosa, como chamavam a porta de Sur ou Seir. O historiador Josefo dá-lhe o nome de Coríntia, porque era feita de bronze corinto. Entre as dez portas que davam entrada ao Templo esta era considerada a mais notável pelos ricos ornamentos que a decoravam.

Diz o Evangelho que era a nona hora, correspondente à nossa terceira hora da tarde, e os apóstolos dirigiam-se ao templo para orar (Atos 3.1). Sob aquele rico pórtico achava-se um mendigo, aleijado de nascença, que traziam para ali todos os dias, e que fazia um doloroso contraste com o brilho do magnífico edifício. Mas ouçamos o livro de Atos.

Ele, vendo a Pedro e João, que iam entrando no Templo, pediu que lhe dessem uma esmola. E Pedro, com João, fitando os olhos nele, disse: Olha para nós. E olhou para eles, esperando receber alguma coisa. E disse Pedro: Não tenho prata e nem ouro, mas o que tenho, isto te dou. Em nome de Jesus Cristo, o Nazareno, levanta-te e anda. E, tomando-o pela mão direita, o levantou, e logo os seus pés e tornozelos se firmaram. E, saltando ele, pôs-se em pé, e andou, e entrou com eles no templo, andando, e saltando, e louvando a Deus. (Atos 3.3-8)

Aquele dom de milagres era um dos poderes do novo apostolado. O Mestre antes de deixar seus apóstolos e nas últimas horas passadas entre eles, dera-lhes aquele poder, como a confirmação divina da sua Palavra e o selo de sua autoridade:

E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda a criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome, expulsarão demônios; falaram novas línguas, pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e imporão as mãos sobre os enfermos e os curarão. (Marcos 16.15-18)

A conversão daquele coxo foi mais devida à bondade maravilhosa de Pedro e João do que ao fruto de uma eloqüência brilhante. Foi, essencialmente, fruto da manifestação do poder de Deus. Os apóstolos nada tinham, eles mesmos o declararam.

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Porém, para dar não é necessário ter; para dar é preciso amar, e para amar é preciso crer.

Pedro acreditava e João amava: Olha para nós, disseram eles ao coxo. Olha para esses que na sua pobreza representam o Deus que criou o universo e que pode te curar. E sob o poder do seu nome que tudo se ergue e anda no céu e na terra. E não está tão longe o dia em que o mundo inteiro, também entrevado, mendigo também, sob a mesma palavra e pelo poder do mesmo Nome se levantará, andará, e irá dobrar os seus joelhos na presença desse Deus.

A lei judaica proibia que os coxos e os cegos entrassem no Templo. Porém, ao se ver curado, o ex-coxo imediatamente entrou no Templo seguindo os apóstolos. Não havia para aqueles dois servos de Deus cortejo mais belo. Era a imagem perfeita do que seria a partir dali a missão apostólica.

E todo o povo o viu andar e louvar a Deus; e conheciam-no, pois era ele o que se assentava a pedir esmola a Porta Formosa do Templo; e ficaram cheios de pasmo e assombro pelo que lhe acontecera. E, apegando-se ele a Pedro e João, todo o povo correu atônito para junto deles no alpendre chamado de Salomão. (Atos 3.9-11)

Aquele era um dos novos e magníficos pórticos construídos por Herodes, o Grande, no mais sofisticado estilo grego, com colunas de mármore, videiras de ouro trepando pelas cornijas, véus de púrpuras e pinturas cuja descrição fiel foi realizada pelo historiador Josefo. Chamavam-no "pórtico de Salomão" porque se erguia sobre o grande terraço construído por aquele príncipe, a 160 metros acima do vale. Unia-o uma ponte à grande praça que se estendia desde o barranco de Tirofenon até o declive da montanha de Sião, cujos limites e ruínas os arqueólogos reconhecem perfeitamente.

Era ali que se reuniam os judeus prosélitos e os judeus da Porta que não podiam penetrar no interior do Templo. Foi também ali que Pedro, tomando a palavra, pronunciou seu famosa pregação de Atos 4.12-26.

Aquela pregação tão simples, tão corajosa, era a afirmação da divindade e da ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, com toda a eloqüência dos fatos:

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O Deus de Abraão, e de Isaque, e de Jacó, o Deus de nossos pais, glorificou a seu Filho Jesus, a quem vós entregastes e perante a face de Pilatos negastes, tendo ele determinado que fosse solto. Mas vós negastes o Santo e o Justo e pedistes que se vos desse um homem homicida. E mataste o Príncipe da vida, ao qual Deus ressuscitou dos mortos, do que nós somos testemunhas. Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos pecados, e venham, assim, os tempos do refrigério pela presença do Senhor. (Atos 3.13-15,19)

Este é o resumo das palavras de Pedro e João. Foram ouvidos; cinco mil homens presentes creram em seu testemunho e foram batizados. Aquela fé, aquele batismo da multidão, aquela conversão em massa, provocada pelo acontecimento de um fato público - a crucificação de Cristo e sua ressurreição - apenas quarenta dias antes daquela pregação, é uma das provas mais fortes da verdade da Ressurreição.

Porém havia ali pessoas que não estavam satisfeitas com aquelas conversões. Muitas dessas pessoas discordantes saíram do Templo, curiosas para ouvir aqueles profetas singulares. Eram os sacerdotes. Com eles veio também "o magistrado do templo", como chamavam o oficial superior que comandava dia e noite os soldados encarregados da guarda de Sião, e para quem qualquer ajuntamento era considerado perigoso. Parece que aquele homem ocupava um lugar bastante elevado, pois Flávio Josefo o nomeia logo abaixo do sumo sacerdote.

Mas os que comandavam com mais fúria a repressão eram os saduceus. Como se sabe, professavam uma espécie de epicurismo misturado com judaísmo, e ninguém ignora que foi entre os partidários da vida livre que o cristianismo encontrou, em todos os tempos, os mais violentos adversários. A opinião deles prevaleceu. Os apóstolos foram presos sem qualquer julgamento. Mas, como chegara a noite, deixou-se para reunir o conselho no dia seguinte, e Pedro e João passaram aquela noite na prisão:

E lançaram mão deles e os encerraram na prisão até o dia seguinte, pois era já tarde. (Atos 4.3)

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Os dois apóstolos na prisão

Onde era essa prisão? A natureza do delito e a autoridade de Caifás, que era da seita dos saduceus, parece supor que a casa onde os dois apóstolos foram encerrados, segundo a expressão do texto, outra não fosse senão a própria casa do sumo sacerdote. Não seria aquela mesma casa onde tinham colocado o Senhor na noite de sua prisão? A alma cristã sente certa doçura em ver Pedro e João sendo aprisionados no mesmo lugar onde Jesus sofrera recentemente, ali achando seus traços, sua coragem, seu ardor; honrando-se com seus grilhões, animando-se com o que acontecera naquele primeiro dia; Pedro glorificando pelas travas que lhe tinham sido profetizadas, João saboreando o cálice que lhe fora prometido, e ambos passando a noite realizando aquele culto em ação de graças ao Senhor que os honrava em permitir que eles fossem presos por confessarem o seu Nome!

No dia seguinte foi a vez de darem outro testemunho. A doutrina dos apóstolos não podia escapar à lei comum, e ambos foram levados ao Sinédrio.

O Sinédrio, conselho supremo da nação judaica, compunha-se de setenta membros, presididos pelo sumo sacerdote. Esse tribunal realizava as sessões todos os dias, e era de sua competência julgar as mais graves causas civis e religiosas, como a falsa profecia, a idolatria e a blasfêmia. Josefo conta que os próprios reis curvavam a cabeça às suas sentenças. Porém, no presente caso, tratava-se de dois pobres pescadores. Todavia, mesmo naquela ocasião foi usado todo o aparato judicial para tal solenidade. Anás, o antigo príncipe dos sacerdotes presidia, e Caifás, João, e Alexandre estavam do seu lado, Atos 4.6. Em redor deles agrupavam-se os anciões, os escribas e os príncipes do povo.

Os apóstolos compareceram. Foram interrogados:

E, pondo-os no meio, perguntaram: Com que poder ou em nome de quem fizeste isto? (Atos 4.7) — perguntaram a ambos. E Pedro respondeu. Não era mais o Pedro fraco que Caifás vira outrora renegar seu Mestre à voz de uma criada. Ele rogava aos príncipes do povo e aos anciões que escutassem sua palavra. Não falava com veemência aos chefes da nação. Respeitava-lhes

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a autoridade, porém sem diminuir em nada os direitos da verdade. Aqueles que mataram seu Mestre anunciavam a divindade do Senhor Jesus Cristo de Nazaré: eles o tinham crucificado, porém Deus o ressuscitara; eles o tinham repudiado, no entanto ele era a pedra angular sobre a qual todo edifício devia ser edificado. Blasfemaram o seu nome, porém não havia debaixo dos céus outro nome em que houvesse salvação:

E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos. (Atos 4.12)

Os juízes ficaram confusos. Olhavam esses homens sem cultura, sem letras, que sabiam apenas a língua do país, e não compreendiam de onde vinha aquela eloqüência que se manifestava neles. Era a eloqüência do Espírito Santo, eloqüência poderosa, segura, que começava naquele dia a exercer o império, e cujo cetro devia ser sustentado pelas mãos das almas simples que cressem em Jesus. Os magistrados perguntavam entre si quem eram aqueles oradores. Lembravam-se de tê-los visto no átrio, tímidos ou apóstatas, encolhidos enquanto eles julgavam seu Mestre, e não sabiam de onde lhes tinha vindo subitamente tal coragem.

O mendigo que havia sido curado também estava lá em pé junto deles. Os juizes sentiam aquela aflição indescritível que se sente quando se está às voltas com uma força invisível e misteriosa. Sem poder para contestar e sem esperanças de vencer, reuniram-se em particular e encerraram a reunião após terem resolvido proibir aos discípulos que pronunciassem aquele Nome.

Os apóstolos responderam:

Julgai vós se é justo, diante de Deus, ouvir-vos antes a vós do que a Deus; porque não podemos deixar de falar do que temos visto e ouvido. (Atos 4.19-20)

O Sinédrio percebeu que era preciso ceder. O testemunho era formal e o milagre inegável. O povo instintivamente se pronunciava em favor daqueles que acabavam de curar um homem do povo. O conselho teve medo de recomeçar contra os discípulos a série de intrigas ou violências que tinham tido tão mau resultado contra Jesus. Contentaram-se com ameaças e absolveram os apóstolos, que confirmaram, mais firmes e

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intrépidos do que nunca, sua fé em Jesus Cristo.

O livro de Atos conta o acolhimento que o dois apóstolos tiveram na assembléia dos irmãos quando retornaram. Ao acabarem de contar o que havia ocorrido, o Cenáculo inteiro levantou-se para agradecer a Deus por tão grande livramento e vitória.

E, ouvindo eles isto, unânimes levantaram a voz a Deus e disseram: Senhor, tu és o que fizeste o céu, e a terra, e o mar, e tudo o que neles há; que disseste pela boca de Davi, teu servo: Por que bramaram as gentes, e os povos pensaram coisas vãs? Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma contra o Senhor e contra o seu Ungido. Porque, verdadeiramente, contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungistes, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer. Agora, pois, ó Senhor, olha para as suas ameaças e concede aos teus servos que falem com toda a ousadia a tua palavra, enquanto estendes a mão para curar, e para que se façam sinais e prodígios pelo nome do teu santo Filho Jesus. (Atos 4.24-30)

Após esta oração, foram imediatamente atendidos. O Cenáculo tremeu, o Espírito Santo os encheu de poder, e daquele dia em diante nada mais pôde detê-los.

A pregação dos apóstolos deu frutos imediatos, convertendo alguns de seus juizes. Dois doutores da lei, Nicodemos e o famoso Gamaliel, seu mestre, segundo a tradição, declararam-se cristãos. O pregador Crisóstomo acrescenta que receberam o batismo das mãos de Pedro e de João. Começava a aurora da verdade a iluminar os cumes dos montes da incredulidade.

CAPÍTULO 11 - JOÃO EM SAMARIA E A MORTE DE TIAGO

O amor e a fé começaram o seu reinado naquela bela

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comunidade da Igreja do Cenáculo, que ia tornar-se o modelo ideal das igrejas, e cuja lembrança devia iluminar as últimas instruções de João em Eféso.

E perseveraram na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações. Em cada alma havia temor, e muitas maravilhas e sinais se faziam pelos apóstolos. Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e fazendas e repartiam com todos, segundo cada um tinha necessidade. E, perseverando unânimes todos os dias no Templo e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e caindo na graça de todo o povo. E todos os dias acrescentava o Senhor à igreja aqueles que se haviam de salvar. (Atos 2.42-47)

Pedro e João em Samaria

Com efeito, o Evangelho não era mais o pequenino grão de mostarda da parábola. Uma grande árvore se erguia agora sobre a terra. A verdade não se deslocara ainda rumo aos povos assentados à sombra da morte; porém uma cidade, uma província até então inimiga entreabria os olhos à claridade celeste! Era a cidade de Samaria, outrora hostil e sobre a qual João pedira a Jesus que fizesse cair fogo do céu. Convertidos por Felipe, um dos sete novos diáconos, e batizados por ele, os samaritanos esperavam que a mão dos apóstolos, únicos investidos do poder de Deus, lhes conferisse o batismo no Espírito Santo. Pedro foi designado para essa missão. João não podia separar-se dele, e partiram juntos. Convinha que aquele que outrora sugerira que o fogo vingador caísse sobre os samaritanos, sabendo enfim agora de que Espírito era, fizesse cair sobre suas cabeças a chama do Espírito Santo.

Impuseram, pois, as mãos sobre os novos convertidos. Assim, a pregação da Palavra juntava-se ao exercício de um ministério mais elevado: a ministração da graça e do batismo, em toda a plenitude do poder apostólico.

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Simão, o mágico

Foi ali que João se achou pela primeira vez na presença de uma dessas heresias filosóficas e místicas ao mesmo tempo que, com o nome de gnosticismo, devia ser o campo de futuros combates. Nessa província de Samaria achava-se um mágico conhecido pelo nome de Simão, praticante de artes mágicas e que pretendia comprar o dom do batismo com o Espírito Santo.

Simão era da aldeia de Giton ou Gita, na Samaria. Apresentara-se aos samaritanos como aquele que ditara a lei no Sinai. Aos pagãos ele se dizia o Zeus soberano, dando o nome de Minerva ou Sabedoria encarnada a uma prostituta que ele encontrara em Tiro e que ele chamava de Helena. De acordo com o sistema que ele pregava, ela representava o princípio passivo e material, que ele, Simão o mágico, o Salvador, viera reabilitar no mundo.

Quando apareceu a Boa Nova do cristianismo, Simão não a repudiou; fez-se batizar, e tomando da doutrina do Evangelho o que podia adaptar-se a seus sonhos e suas mentiras, apresentou-se em pessoa como o Redentor. Não era ele, com efeito, o libertador das almas degradadas no corpo? Não era ele o bom pastor que viera procurar e salvar dos abismos do mundo onde ela se perdera, aquela Helena desgraçada, aquela ovelha ferida e perdida no deserto das paixões grosseiras?

Simão ia, portanto, semeando suas falsas doutrinas e sua fama em Samaria e em outras províncias. A Síria, a Fenícia, talvez mesmo Roma, viram Simão maravilhar as multidões, menos pela sedução de suas mágicas do que pelo ostentação de sua vida. Fazia-se passar, segundo Jerônimo, pelo Verbo divino. "Eu sou o Verbo, dizia ele, a Palavra de Deus, o Belo, o Paracleto, o Todo-Poderoso, o Todo de Deus".

Simão testemunhou os milagres operados sobre os neófitos de Samaria pela imposição das mãos dos dois apóstolos; e aqueles dons do Espírito Santo, que o enchiam de admiração, despertaram-lhe também a inveja. Achando que tudo aquilo não passava do efeito do prestígio empregado por concorrentes mais hábeis, o mágico propôs a Pedro e a João comprar-lhes o segre-do. Mas aqueles que haviam dito ao mendigo que estava na porta do Templo que não possuíam nem ouro nem prata,

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repeliram as ofertas interesseiras do impostor dizendo-lhe: O teu dinheiro seja contigo para perdição. O Senhor assim o tinha ordenado: De graça recebeste, de graça daí. (Mateus 10.8). Aquela tentativa de negociar com coisas santas recebeu o anátema dos apóstolos e o nome, dali em diante, de Simonia, e iria perpetuar a lembrança de seu primeiro autor, Simão, o mágico, assim como o anátema lançado contra ele.

Naquela época João também participou do ministério da eleição dos pastores. Naquele tempo os apóstolos designaram a um deles, Tiago, denominado o Menor, irmão de Jesus, para exercer as funções de pastor de Jerusalém. Tiago, por sua grande santidade, conquistou o respeito tanto dos judeus como dos cristãos.

O Talmude conta que o judeu Eligazer foi curado da picada de uma cobra pela oração de Tiago em nome de Jesus.

Outra tradição diz que Tiago era tão parecido com Jesus nos modos e nos traços, que até se pensava que ele era gêmeo com o Senhor. Vendo-o, tinha-se a ilusão de ver o próprio Jesus Cristo.

A morte de Tiago, irmão de João

Tiago, irmão de João, foi o primeiro apóstolo mártir. No evangelho, as existências desses dois filhos de Zebedeu parecem fundir-se numa só, sem que um só traço denote a personalidade distinta de Tiago. Criados na mesma casa e trabalhando na mesma barca, e convidados no mesmo dia a tornarem-se pescadores de homens, tendo estado juntos à divina confidência da transfiguração, da agonia no Getsêmani e das últimas manifestações de Jesus, parecia que deveriam ser inseparáveis na morte como o tinham sido na vida. Não fora a ambos e na mesma circunstância que o Senhor dissera que be-beriam de seu cálice? Mas o cálice de um não seria exatamente igual ao cálice do outro. Para João, a dor amarga foi a de ver sofrer seu irmão e ele ficar. Para Tiago, foi a de separar-se de João e partir.

Isso ocorreu onze anos depois da morte de Jesus, no 44º. ano de sua Encarnação, no 2º. ano do reinado de Cláudio, sendo cônsules Quintius Crispinus e Marcus Statilius Taurus.

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Quem ordenou a execução do apóstolo foi o famoso Herodes Agripa, do qual Flávio Josefo contou a vida tão agitada. Favorito de Antônia, mãe de Germânico, partidário e íntimo da casa de Druso, embalado pelas intrigas assim como pelas orgias do palácio de Tibério, Agripa tinha os princípios morais corrompidos e a depravação dos costumes própria dos perseguidores. Seu avô, Herodes o Grande, fora o assassino das crianças de Belém, e atentara contra a vida de Jesus. Sua mulher era aquela adúltera, Herodíades, que pedira a cabeça de João Batista, e sabe-se hoje de todas as devassidões que sua irmã praticou, a também adúltera Berenice, que depois passou a viver com o próprio irmão.

Audacioso e hábil, dominador e bajulador, Agripa possuía a flexibilidade de caráter dos romanos da decadência, cujo único objetivo era a riqueza, e fazia qualquer coisa pela obtenção do prazer. Depois de protegido por Caio, foi parar numa prisão infamante, e subitamente foi arrancado da desgraça e do exílio para sentar-se no trono de sua pátria.

As perversidades que ele havia aprendido ao viver entre os romanos não lhe impediram de mostrar um certo gosto pela religião dos judeus, o que fazia com que ele fosse bem recebido pelo povo e pelos sacerdotes. Além disso, era um espírito político, não se comprometendo com crimes inúteis, sempre pronto para tudo e nunca hesitando diante de uma crueldade que lhe pudesse servir de degrau para o aumento de poder ou para a conquista de riquezas.

Foi o que sucedeu na circunstância da morte de Tiago. Agripa voltava de Roma. O imperador Cláudio, a quem muito auxiliara a subir ao trono, não contente de confirmá-lo na posse da Galiléia assim como na antiga tetrarquia de Felipe, acabava de dar-lhe a Judéia, Samaria e todas as terras do Líbano. Um tratado de aliança, cheio de elogios, tinha sido gravado numa placa de bronze fixada no Foro. Forte pelo apoio do príncipe, Agripa queria sê-lo também através da afeição de seus súditos. E como, no seu regresso, achasse o país profundamente dividido pela invasão progressiva da religião cristã, pensou que um dos meios mais seguros de adquirir popularidade seria proceder com rigor contra "aquela minoria odiosa".

Era no tempo dos pães asmos que precede a Páscoa. Agripa, que residia em Cesaréia, foi à cidade santa para essa

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solenidade. A multidão era grande em Jerusalém; e os da Dispersão, vindos animados à festa, só falavam naqueles judeus que se viam por toda a parte "pregando um novo Deus". As numerosas conversões amedrontavam os sacerdotes e os rabinos, ameaçados em sua autoridade e ensino. Indiferente sem dúvida à questão de doutrina, Agripa ficou temeroso ao saber que aqueles homens pregavam em nome de um novo rei dos judeus. Era necessária uma vítima à cólera pública; Tiago foi o escolhido.

O apóstolo foi denunciado pelo judeu Ozias, que o entregou aos soldados de Agripa. Viu-se então, conta Clemente de Alexandria citado pelo historiador Eusébio de Cesaréia, o que devia se repetir tantas vezes na história dos cristãos martirizados: o próprio acusador, horrorizado de seu crime e impressionado com a plácida firmeza do mártir, declarou-se cristão com o risco de perder a própria vida. Ambos foram condenados à morte.

Ora, enquanto caminhavam juntos para o suplício, diz-se que Ozias, lançando-se aos pés de Tiago, pediu-lhe com insistência que lhe perdoasse. Tiago parou por um momento. Já o perdoara no coração, mas lembrando-se que Ozias não era ainda batizado em águas, hesitou em dar-lhe o ósculo dos irmãos. Porém Jesus imediatamente falou ao coração de Tiago que aquele homem já estava batizado na graça, e que em breve o seria no sangue. Tiago então o abraçou e o beijou, repetindo como por despedida as palavras do Senhor: "A paz seja contigo!". Em seguida foram ambos decapitados.

Jesus havia sido crucificado há 11 anos, naquele mesmo dia de Páscoa. O Senhor morrera perdoando também a seus carrascos e pensando naquela mesma cidade que apedrejava os justos e matava os profetas. Doze anos antes, Jesus havia perguntado a Tiago se ele podia ser batizado no batismo em que Jesus era batizado, e ele respondera com bravura: "Posso!". Aquela palavra acabava de se cumprir.

João, que recebera idêntica promessa e tomara o mesmo compromisso, não ia tão cedo entrar na posse da divina herança. Mas o martírio do irmão foi o primeiro sacrifício que Deus exigiu dele. Moisés havia escrito no livro de Levítico:

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Depois, tomará para expiar a casa duas aves (...) e degolará uma ave num vaso de barro sobre as águas vivas (...) Então, tomará a ave viva e a molhará na ave degolada (...) Então soltará a ave viva para fora da cidade. (Levítico 49.49-51,53)

Ora, foi conforme esse ritual que as coisas se passaram. Tiago tinha sido a vítima escolhida. Coberto com o sangue do irmão, João não tardará a abrir as asas e voar. O martírio de Tiago foi o sinal da primeira dispersão dos apóstolos. Vendo que o rei Agripa preparava o mesmo tipo de morte para Pedro, e que este só escapara uma vez graças a um anjo libertador, os discípulos lembraram-se da palavra do Senhor: "Se uma cidade vos repelir, refugiai-vos noutra". Sacudindo, portanto, a poeira dos pés, resolveram afastar-se de Jerusalém.

Uma tradição antiga afirma que Jesus teria recomendado aos apóstolos que ficassem na Judéia durante doze anos, antes de se dispersarem para terras longínquas. Era a explicação da instrução evangélica:

Mas ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel. (Mateus 10.6)

Conforme Jesus havia predito, as tendas de Israel iam-se dilatar, e Pedro já tivera revelação de que, dali por diante, não mais haveria para o Evangelho distinção de raça. Pouco a pouco a opinião de Roma passara a mudar com relação ao Cristianismo. Segundo Tertuliano, Tibério propusera ao Senado admitir Cristo no número dos deuses. Mas esse era o tipo de ajuda que os discípulos dispensavam.

A conversão de Paulo

A mais importante conquista da fé, porém, foi a do jovem Paulo de Tarso. Nunca o apostolado fizera mais esplendida convocação que a daquele fariseu, discípulo de Gamaliel, de origem judaica, nascido na Grécia, romano pelo direito de cidadania, pertencente por todos estes títulos aos grandes povos, e, sem dúvida por esse motivo, escolhido por Deus para a honra de se tornar mestre na doutrina cristã. Não tivera como Pedro a visão simbólica da admissibilidade igual de todas as

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nações no reino de Deus. Porém, como ele mesmo o declarava, recebera diretamente do próprio Jesus Cristo a missão de pregar aos pagãos. Tinha, todavia, vindo à Jerusalém a fim de conversar com os primeiros missionários do evangelho de Jesus. Paulo conta:

E conhecendo Tiago, Cefas e João, que eram considerados como as colunas, a graça que se me havia dado, deram-nos as destras, em comunhão comigo e com Barnabé, para que nós fôssemos aos gentios e eles, à circuncisão; recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também procurei fazer com diligência. (Gálatas 2.9-10)

E a primeira vez que encontramos Paulo ao lado de João. Será também a última. O evangelho não faz referência alguma a algum contato posterior entre estes dois apóstolos, chamados, no entanto, a ceifar sucessivamente no mesmo campo da Ásia. Separados pela distância, permaneceram sempre irmãos pela fé e doutrina. Debaixo de uma diferença incontestável de linguagem, o ensino é, no entanto, o mesmo. A aliança contraída naquela entrevista entre Pedro, Paulo e João jamais se rompeu, e em seus livros, como outrora na vida, os três apóstolos estarão sempre de mãos dadas.

João foi também um dos juízes, no primeiro Concilio de Jerusalém, durante o qual ficou estabelecido que os gentios convertidos ao cristianismo ficariam isentos da circuncisão e das cerimônias prescritas pela lei de Moisés. Esta questão estabelecida no berço da Igreja era, no fundo, a questão de sua universalidade e de sua livre difusão no mundo. Mais do que qualquer outro apóstolo, João não pretendia ver a Igreja presa à Sinagoga, pois melhor do que ninguém ele sabia e proclamava que era chegada a hora em que se adoraria a Deus não somente em Jerusalém ou no monte Gerizim, mas em todos os recantos da terra, em espírito e em verdade. (João 4.21-23)

João sabia também que o Bom Pastor tinha outras ovelhas além das do antigo rebanho de Israel, e queria fazer de todas elas um só rebanho com um único Pastor, Jesus Cristo. O evangelho de Jesus Cristo pregava uma mensagem universal. Ora, esta universalidade essencial da Igreja resultava, como conseqüência, na abolição dos ritos que a prenderiam ao templo de Jerusalém.

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O único ponto sobre o qual ainda se manifestavam algumas hesitações no seio do apostolado primitivo era a maneira e o momento que melhor conviria para suprimir aqueles ritos. O concilio concordou em que alguns fossem conservados, ao menos temporariamente, a fim de aproximar os espíritos divergentes e fundir o helenismo e o judaísmo. Mas no dia em que a Igreja tivesse reunido os dissidentes, aquelas resoluções simplesmente seriam suprimidas, como os andaimes que caem logo que o edifício é construído.

João, o apóstolo conciliador

O papel que a tradição, no decorrer daquele tempo, designou a João era justamente um papel de conciliação. João, o pregador do "novo mandamento"; João, que fez cair a barreira de preconceitos e ressentimentos que separava Samaria de Jerusalém, e que vai abrir para toda a Ásia grega as fontes que jorram para a vida eterna, mostrou-se também, durante sua longa existência, um cristão observador da lei de seus pais no que ela possuía de compatível com o cristianismo. Ele celebrava a Páscoa cristã no mesmo dia marcado para a Páscoa da antiga lei. No evangelho João citou com prazer a afirmação de Jesus:

A salvação vem dos judeus. (João 4.22)

João conservou-se israelita tanto pelo coração como pela raça, e quando quiser pintar o coração glorioso de tudo, Jerusalém é que lhe aparecerá brilhante, e as doze tribos serão o emblema vivo do universalismo da Igreja triunfante.

Pouco tempo depois do concilio, os apóstolos se dispersaram. Não os veremos mais reunidos. Não se pode precisar a época daquela última e definitiva separação; e é muito provável que aquela partida tenha ocorrido sem solenidade alguma, cada apóstolo indo para onde o chamava o Espírito Santo e a necessidade dos povos.

Pedro e João, que sempre tinham vivido muito unidos, tiveram que suportar dolorosamente o sacrifício necessário da separação.

Foi na Ásia que levantou-se os dois imperadores que a

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história coloca acima de todos os outros: Ciro e Alexandre, o Grande. Dispersando os judeus e dando à Sinagoga plena liberdade, Ciro espalhou em seus vastos Estados as páginas dos livros santos, propagando assim a doutrina primordial da unidade de Deus. Por sua vez, meditando a unidade de uma única pátria, de uma só civilização, de uma única filosofia, Alexandre estabeleceu do Indos ao Nilo, a unidade de linguagem: o grego seria a língua de João e de Paulo. Nos desígnios de Deus esses grandes homens tão-somente lavraram a terra a fim de que a verdade fosse espalhada em profusão pelos "semeadores da Palavra", como os atenienses chamavam os apóstolos.

Desta forma foi que o mundo oriental, o mundo helênico, enfim o mundo romano tinham ouvido o grito do Precursor: Preparem os caminhos! Estando, pois, livres os caminhos, os conquistadores partiram.

Daqui por diante, e particularmente nos capítulos que se seguem, o Evangelho não rastreará mais os passos de João. Sua trajetória será muitas vezes um tanto sombria. Será em tradições posteriores, por vezes alteradas e desfiguradas pela imaginação dos escritores, que temos de procurar os traços meio apagados de seus passos.

CAPÍTULO 12 - JOÃO PARTE PARA O CAMPO MISSIONÁRIO

João não se dirigiu imediatamente para a Ásia. Um dever sagrado o prendia ainda à Judéia. Era sua responsabilidade para com a mãe de Jesus, que se tornara também sua, pelo legado divino da Cruz. Tudo nos leva a crer que Maria haja ficado em Jerusalém e lá tenha morrido. Ali, na cidade santa, ela ficou com João até o seu derradeiro dia. Ali ela desceu ao túmulo.

Quando todos os irmãos partiram, e a Judéia, perturbada pelas discórdias, corrompida pelo paganismo dos costumes, rebaixada em sua fé pelos idumeus, e em sua liberdade pelos procuradores Félix, Festus, Albinus, João resolveu deixar também Jerusalém e procurar outro campo para semear a santa semente.

Vamos encontrá-lo pouco tempo depois na Ásia proconsular. Não viera só. Acompanhavam-no os anciãos da

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Igreja de Jerusalém que não tinham fugido para além do Jordão. O pastor Papias de Hierápolis menciona um enorme cortejo de discípulos que se reuniram a João. Eram íntimos dos grandes apóstolos e, tendo-os visto e ouvido, podiam repetir o que haviam ensinado André, Pedro, Felipe, Tomé, Tiago, Mateus e os outros apóstolos e discípulos do Senhor.

João chega a Éfeso

Não se pode fixar com exatidão a data da chegada de João a Éfeso. Calcula-se que tenha sido posterior ao ano 54 d.C. porque naquela época o livro de Atos, falando da pregação de Pedro naquela cidade, não faz menção alguma de João. Porém, outros historiadores acham que João só tenha chegado a Éfeso após a destruição de Jerusalém.

A formosa Éfeso, rica pelo comércio, pelas tradições e pelas artes, era a rainha e a capital da Ásia. Era a Atenas do Oriente. Sucessivamente arruinada por terremotos e incêndios, reconstruída à custa de toda a Grécia, favorecida por Alexandre, liberta por Augusto, orgulhosa da plêiade de poetas, sábios, oradores, pintores e jurisconsultos de que era o berço, como Hipponax, Artemidoro, Parhasio e Apeles, bem que mereceu ser chamada por Plínio de "o farol da Ásia".

Cinqüenta cidades semeadas por aquela praia afortunada brilhavam em torno dela, conta o historiador Filóstratos. Entre elas se destacavam Lídia de Sardes, Tiatira, Tales e Magnésia, inteiramente gregas pelos costumes e pela linguagem. Mais acima, na Mísia, Cízico reunia em sua encantadora praia todos os romanos abastados, sequiosos de sol, de elegâncias e prazeres. Ali erguiam-se também Alexandria de Trôade, para onde César pensara transferir a sede de seu império; Pérgamo, outrora célebre não só pelo tesouro das letras como pela opulência proverbial de seus reis.

Um pouco abaixo, na Cária, ficava Alabanda, pátria dos palhaços e das cantoras, rebaixada a tal ponto pela luxúria que foi a primeira cidade que consagrou um templo a uma divindade opressiva de Roma. Halicarnasso erguera-se da ruína que lhe infligira a cólera de Alexandre. Ela estendia, então, sob um céu

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admirável, seus monumentos de mármore, cujos destroços ainda causam admiração aos viajantes.

Enfim, mais perto de Éfeso, e como satélites, viam-se reluzir num raio de cinqüenta a sessenta milhas apenas, Priene, Mileto, Heraclea, Esmirna, Fócea, Colofon, Clazomena e a ilha de Samos — toda aquela praia heróica que os gregos chamavam de seu país helênico, e que a história e a epopéia tornaram imortais com Heródoto e Homero.

Éfeso era grandiosa. Da colina de Pirone cujo solo fértil fora exaltado por Pausânias, ela descia em degraus até a beira do mar Egeu, seguindo as margens frescas do rio Castro, cujo leito se alargava perto de Éfeso e levantava ilhas de grande verdura. No recinto da cidade, o pequeno lago de Pégaso, o riacho Frísias e a fonte de Calípio mantinham durante o verão daquele clima ardente uma temperatura relativamente agradável. Filostrato fala também da arena do Xisto, onde costumava haver corridas, e onde o povo ia ver as lutas de morte dos gladiadores. Enfim, por cima da cidade, as colinas Cilbianas, inundadas de luz; embaixo, os dois promontórios do golfo de Colofão; o porto coberto das velas dos navios, e o mar cheio de ilhas, davam a este quadro a única moldura condigna: o infinito das montanhas, do mar e do céu.

Porém, não foi por certo nenhuma dessas belezas que atraiu João a Éfeso. O apóstolo chegou ali para enfrentar o desafio de evangelizá-la e lutar em seu território contra as hostes infernais, que haviam instalado ali um quartel-general. Como Roma, Atenas, Antioquia e Alexandria, Éfeso era, além de grande centro de negócios, o maior centro de falsas doutrinas da Ásia, doutrinas sempre incandescentes porque recentemente vindas do próprio inferno. Ela era uma espécie de fossa aberta a todo o tipo de superstição e perversão. Era o grande centro do politeísmo asiático.

O paganismo, muito desacreditado em sua mitologia, possuía em Éfeso dois elementos que, entre povos semelhantes, deviam assegura-lhe uma longa vida: a beleza do culto e a permissividade durante as celebrações. A religião de Éfeso possuía essas duas seduções. Diana era uma das mais antigas divindades de Éfeso, a rainha dos ídolos. Ela era a devassa Astarote das antigas religiões dos cananeus que, como se sabe, faziam da natureza um deus e da luxúria um culto. Em cada local

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essa deusa tinha um nome diferente. Nas praças, Artêmides, na margem dos pântanos, Diana, no porto, Alfeônia, nas montanhas, Coriféia. Em todos esses lugares ela recebia homenagens variadas, muitas das vezes imorais e sanguinárias.

Mas em parte alguma ela era tão soberana como no Templo erguido em sua homenagem em Éfeso, para onde a multidão afluía atraída pela lascívia e os elementos artísticos do culto.

Pausânias declara que o templo de Diana em Éfeso excedia em esplendor a todos os templos dos outros povos. No centro do edifício - que já havia sido queimado por Eróstrato e depois reconstruído no mais belo estilo jônico -, perto dos altares talhados por Praxíteles, por cima de estátuas de deusas que faziam aquele santuário parecer um Olimpo, "a grande Diana dos efésios" era representada por um bloco de madeira negra grosseiramente talhado, e envolta em tiras como as múmias do Egito. Dizia-se que a estátua tinha descido do céu. O seu altar era dia e noite rodeado de sacerdotes, enquanto os jovens auxiliares mantinham acesa a fogueira onde lançavam incessantemente animais vivos.

Era ali que, segundo refere Dionísio de Halicarnasso, a confederação jônica inteira vinha prestar adoração. "Em certos dias, diz ele, homens, mulheres e crianças ali se encontravam por causa dos negócios e da religião. Realizavam corridas de cavalos, disputas de exercícios ginásticos e de música, dando prêmios aos vencedores. As cidades também ofereciam aos deuses presentes caros. Quando os espetáculos e os negócios terminavam, acabadas as festas e os divertimentos, se uma cidade tinha alguma contenda com outra, achavam-se ali magistrados que julgavam a questão.”

O culto a Diana dos efésios

Quais eram as práticas que acompanhavam o culto de Diana-Astarote? Os historiadores pagãos traçaram um quadro que pode dar uma idéia dos horrores que se praticavam ali. "Durante os dias de festividade à deusa, via-se toda a cidade mergulhada na imoralidade e na ociosidade. Viam os sacerdotes e os milhares de cultuadores como agentes de depravação e

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obscenidades. Só se via nas ruas gente lasciva, dissoluta e afeminada, e à noite só se ouviam gritos, gargalhadas e gemidos de luxúria".

O culto à Diana havia corrompido de tal maneira os efésios que foi isto o que eles disseram ao sábio Hermodoro: "Não queremos que haja homens de bem em nosso meio. Se existirem, que passem a viver em outros lugares e com outros povos".

Tal era a cidade para onde o apóstolo João viera pregar o evangelho, a pureza e a santidade. Aquele lugar era uma das mais largas portas do inferno e estava entregue aos demônios; por isso João viera estabelecer-se ali para arrebatar aquelas almas das garras de Satanás. Sua coragem devia brilhar tanto mais quanto maior era o número dos inimigos de Deus e filhos das trevas naquela cidade.

Hoje nada restou da grande metrópole da Ásia no meio dos pântanos onde ela havia sido destruída. Éfeso é uma cidade morta, extinta. Há alguns anos ainda se via perto da praia um grande monte de escombros, muralhas caídas e blocos estendidos. Era o lugar onde se erguia o templo da "grande Diana".

Quando o apóstolo entrou no grande porto de Éfeso, protegido contra as marés por uma muralha de arrecifes, não podia ignorar que aquela cidade não era completamente estranha aos membros de sua raça e de sua religião. Os judeus ali estavam estabelecidos em grande número. Tinham seu culto, suas coletas, suas sinagogas e, excetuando Alexandria, poucas cidades tinham tantos judeus quanto Éfeso.

No entanto, eles não viviam felizes ali. Josefo conta-nos que os judeus eram perseguidos pelas autoridades romanas, zombados em seu culto, insultados em suas crenças, despojados de seus bens, obrigados a trabalhos pesados, sobrecarregados de impostos opressivos. Há meio século o primeiro Herodes passara por ali em companhia de um dos ministro de Augusto, chamado Agripa, e aquela multidão havia lançado diante deles um clamor de desespero tão grande que o ministro não teve outra alternativa senão fazer-lhes justiça. Agripa restituiu-lhes parte dos bens a pedido de Herodes, a quem abraçou publicamente em sinal de amizade para com toda a nação. Mas

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quando aqueles dois homens partiram, suas promessas caíram no vazio, e os judeus voltaram a sentir dolorosamente o peso da maldição dos homens e de Deus.

Porém, havia algo ali que consolava o apóstolo. O evangelho havia sido pregado em Éfeso, e ao pisar naquela cidade pagã, João pôde encontrar discípulos de Jesus.

Os primeiros alicerces da fé em Éfeso

O primeiro a pregar-lhes a salvação de Jesus Cristo foi talvez o próprio Pedro, durante a viagem que fez às cidades orientais, depois do primeiro concilio de Jerusalém, descrito em Atos 15.

Um outro discípulo do Senhor também ali estivera, com menos doutrina e menos autoridade, porém com eloqüência e encanto de dicção suficientes para agradar aquele povo no meio do qual havia muitos artistas e oradores. Chamava-se Apolo. Era um alexandrino, varão eloqüente e poderoso nas Escrituras. Porém, aquele eloqüente arauto do Evangelho só conhecia o batismo de João Batista.

Dois cristãos de Éfeso, vindos de Roma a Corinto e de Corinto a Éfeso, chamados Áqüila e Priscila, simples trabalhadores, o chamaram de lado e lhe esclareceram sobre pontos fundamentais das Escrituras. Recomendaram-no em seguida aos fiéis da Acaia para onde Apoio estava indo evangelizar. Áqüila e Priscila eram dois operários, e se tornaram mestres de um sábio que, com sua arte de bem falar, acabara de maravilhar a Grécia; e este aceitara tornar-se um humilde discípulo daquele casal num conhecimento que a escola não lhe havia dado — eis uma novidade à qual Deus começava a acostumar o mundo.

Enfim, o próprio Paulo viera a Éfeso pouco tempo depois de Apoio, e sua pregação não fora vã. Durante quase três anos viram-no ensinar, prender a multidão com a sua palavra poderosa nos assuntos espirituais, libertar os possessos, curar os enfermos. Ele levou tão longe as conquistas da fé cristã que o culto pagão foi abalado em seus alicerces. Depois de uma revolta realizada em nome da "grande Diana de Éfeso", o

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apóstolo foi perseguido e teve de embarcar e fugir pelo mar, le-vando, porém, consigo alguns discípulos escolhidos.

Mas antes de partir, reunira ainda uma vez em Mileto os sacerdotes da Igreja de Éfeso para recomendar-lhes o rebanho, no meio do qual constituíra bispos e pastores.

Timóteo, pastor de Éfeso

A frente destes ficou Timóteo, seu discípulo predileto que ele próprio chamava de "o bom soldado de Cristo." Era um grego de Licaônia, homem ainda na flor da idade, de saúde delicada e vida austera, mas de alma intrépida, e que, para salvar seu povo, não recuaria nem mesmo diante do martírio. Espírito formado nas Santas Escrituras por sua mãe piedosa Eunice e sua avó Lóide, havia se convertido a Jesus Cristo após ouvir a pregação de Paulo na cidade de Listra. Foi depois consagrado pela imposição de mãos.

Em seguida os irmãos viram-no trabalhando para o Senhor por toda a parte, na Ásia, na Macedônia, em Atenas, em Tessalônica, em Corinto, em Jerusalém e em Roma, pregando o Evangelho e partilhando das heróicas lutas do seu pai na fé, Paulo. Quando este viu as grandes esperanças de conversão em Éfeso, a ninguém achou mais digno de assumir a liderança daquela igreja que o jovem missionário formado em sua escola, Timóteo.

Paulo havia começado a obra, e João organizou-a. Foi o evangelista quem fundou e dirigiu as igrejas da Ásia. Assim, enquanto Timóteo se fixou em Éfeso, João estendeu as conquistas do Evangelho até os confins da Ásia Superior.

Uma das tarefas de João foi designar a cada um de seus enviados o posto onde deviam estabelecer-se e liderar em nome de Jesus Cristo. Pois a ordem expressa que o Senhor dera aos discípulos enviados a pregar fora a de estabelecerem e fundarem igrejas. Um pastor para cada igreja. Mas sobre cada uma os apóstolos mantinham a autoridade.

Fixar um pastor em cada congregação foi obra do Quarto Evangelista. Porém, já tínhamos visto Tiago, o Menor, ser

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escolhido para liderar a Igreja de Jerusalém. O próprio Paulo, que após sido chamado pelo Senhor, percorreu quase o mundo inteiro, fez com que seu discípulo Tito ficasse em Creta e Timóteo em Éfeso.

No ponto mais elevado do litoral, ao Norte, levantava-se Alexandria de Trôade, entre as ruínas onde outrora se erguera a cidade de Tróia. João para ali mandou Carpo, aquele que hospedara Paulo (2 timóteo 4.13). Um trecho da segunda Epístola a Timóteo no-lo mostra ali estabelecido antes da morte do apóstolo, função que ele recebera quando Paulo por ali passou.

Mais abaixo estava Pérgamo, menos rica do que sob o governo dos Atálidas, porém com razão ainda orgulhosa de sua biblioteca, de suas sábias escolas, e dominando do alto da montanha cônica o curso e o fértil vale do rio Calco. Foi naquele lugar que, pelas constituições apostólicas, João instalou mais tarde Gaio, um homem de bem, a quem foi dirigida sua terceira Epístola.

Esmirna não ficava longe. Destruída pelos Lídios, reconstruída por Antígono e Lisímaco, era cidade nova, construída como anfiteatro sobre a encosta da montanha, prolongando até o mar suas belas ruas bem alinhadas, suas praças, seus templos de mármore cheios de gloriosas lem-branças. Como podia uma cidade onde também eram venerados o santuário e os mistérios da deusa Diana, e que levantara um templo a Tibério, ao lado de outro em memória do poeta Homero, trocar os costumes e a poesia por crenças severas e uma moral santa pregada por missionários considerados bárbaros? João para lá mandou um de seus melhores discípulos, chamado Ariston. Porém, as crônicas apostólicas não lhe mencionaram o nome.

Ao oriente de Éfeso, mais para o centro, e quase na mesma linha de Sardes, encontrava-se primeiramente Filadélfia, também despovoada pelos abalos daquele solo inquieto; Laodicéia, uma das maiores cidades da Frígia, e Colossos, que devia alguns anos depois também sucumbir pela violência dos terremotos.

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As responsabilidades de vários ministros de Deus

Segundo Paulo, o pastor de Colossos foi seu querido Epafras, que se mostrou um fiel ministro de Jesus Cristo. Quanto à Laodicéia, parece que Arquipo se encarregou de governar sua igreja. E a ele que os registros apostólicos designam antes de Epafras e de Ninfas, e em sua casa se reunia a igreja nascente. Enfim, mais perto de Éfeso, Tralas e Colofão, apesar de menos importantes, receberam o mesmo cuidado do apóstolo. Foi por intermédio do Quarto Evangelista que Sóstenes veio a Colofão, tendo sido um dos primeiros companheiros de Paulo. Após ele, Tíquico descerá à cidade dos antigos oráculos, e lhe fará revelações mais fidedignas do que as do célebre Apolo, o Claro.

O primeiro pastor de Tralas foi ainda mais conhecido. Na opinião de Basílio, foi o apóstolo Felipe, antes de sua viagem às Índias. Segundo Eusébio, Felipe morreu em Hierápolis, perto de Laodicéia, onde mais tarde duas de suas filhas dedicaram-se até à morte ao serviço de Jesus Cristo.

Quão belo, ativo e exemplar era aquele grupo de jovens ministros do Evangelho, que mais pareciam uma geração de obreiros de Deus vindos diretamente do Céu! Que súbito desabrochar de coragem, de doutrina, de obras milagrosas e de pregação inspirada e eloqüentíssima! Que grandes homens aqueles cristãos, pobres mas realizadores de imensas obras, simples mas inabaláveis na fé! Que felicidade seria poder seguir e historiar todos os seus passos naquela Ásia cobiçada por todos os exércitos antigos, mas que nunca vira conquistadores de semelhante espécie!

Os próprios apóstolos trabalhavam para se manter. Paulo deu-lhes o exemplo e a isso exortou os irmãos. E o filho de Zebedeu, chegando a Éfeso, não procederia de outra maneira. Enobrecendo assim o trabalho manual, estes homens preparavam uma das maiores reformas operadas pelo evangelho. Ergueram-no do desprezo onde o haviam colocado as sociedades antigas que o consideravam castigo do vencido e do escravo, e o honraram dando-lhe o valor de um sacrifício que ofereciam eles mesmos todos os dias Àquele que disse no Evangelho de João:

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Meu pai trabalha até agora, e eu trabalho também. (João 5.17)

As atividades de João em Éfeso

Se, em vez de realizarem essas coisas grandiosas e de morrerem por elas, esses sacerdotes tivessem tido tempo de contá-las, quantas maravilhosas e extraordinárias revelações não nos dariam suas histórias! Eles não eram vistos sentados à sombra dos pórticos públicos, ou nos camarotes dos circos, nos teatros ou anfiteatros, arrastando a clâmide dos nobres ou o manto dos filósofos nos degraus de mármore dos palácios ou dos templos. Porém, via-se sempre um homem vestido com simples túnica, descer até o porto, conversar familiarmente com os marinheiros sobre a pobre profissão deles, que também era a sua, falar-lhes primeiro do vento e da tempestade, para em se-guida falar-lhes daquele a quem os ventos e os mares obedecem, e exercer, da antiga profissão de pescador de peixes, o ofício de pescador de homens.

Esse homem era João. Se acompanharmos os seus passos, nós o veremos entrar numa loja escura, onde um casal se ocupa em orar a Jesus Cristo enquanto fabrica tendas. É a casa de Áqüila e Priscila. Nós o encontraremos sentado e discutindo, após horas de labor, com um operário que trabalhava em bronze, desencaminhado pelo orgulho e o espírito de rebelião: esse operário era Alexandre, que resistira ao apóstolo Paulo (1 Timóteo 1.20; 2 Timóteo 4.14). Algumas vezes o escutaremos pregar sobre o Verbo Eterno, e dar testemunho do que vira e tocara, na casa de um novo convertido que o hospedava: era a de Tirano, professor de Éfeso que já havia recebido Paulo. (Atos 19.9)

Mais de uma vez ele era visto na casa de um discípulo para onde afluíam os pobres e os estrangeiros socorridos pelo amor fraternal: era a casa de Gaio, que João "estimava na verdade de Jesus". Sem dúvida seria também visto instruindo, dirigindo e abençoando os filhos de uma grande família cristã, repetindo-lhes sem cessar o novo mandamento: Amai-vos uns aos outros. Era essa, com efeito, a exortação aos filhos e aos discípulos da fé. Porém, o mais comum seria vê-lo pregar na masmorra dos

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escravos sobre o amor de Jesus, que se havia feito escravo por nós. Assim foi o primeiro apostolado desse homem.

Quem crê em mim, como diz a Escritura, rios de água viva correrão do seu ventre. (João 7.38)

As revelações sobre a vida divina, outrora manifestadas em Jesus, começavam a transbordar em borbotões do seio de João. Era, com efeito, a vida, a vida sobrenatural, fonte de todas as outras, que João pregava em Éfeso, quando dizia:

Quem crê no Filho de Deus em si mesmo tem o testemunho; quem em Deus não crê mentiroso o fez, porquanto não creu no testemunho que Deus de seu Filho deu. E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna; e esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida. Estas coisas vos escrevi, para que saibais que tendes a vida eterna e para que creiais no nome do Filho de Deus. (1 João 5.10-13)

O testemunho dos cristãos de Éfeso

Aqueles, portanto, que queriam viver essa vida superior, aceitavam o Filho de Deus. Havia primeiramente as almas oprimidas. E quando a miséria dos tempos, a tirania dos imperadores, a licensiosidade brutal e desenfreada dos soldados, as execuções dos pretores, as devastações do inimigo, a anarquia das províncias conspiravam para pôr tudo a perder, inúmeras almas inclinavam os ouvidos à voz suave, à voz de João, que pregava a salvação em Cristo Jesus, a igualdade entre os irmãos, a justiça eterna.

Havia muita gente infeliz, que sofria por viver em um mundo decaído. Eram pessoas sequiosas de infinito, famintas de Deus, e que compreendiam muito bem o apóstolo João quando ele falava da única água que pode matar a sede do coração humano pela vida eterna.

E havia também as almas simples, nas quais ainda não se apagara completamente a honestidade, e que reconheciam o verdadeiro Deus no milagre contínuo da vida dos cristãos e no

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amor que eles expressavam. O mundo viu aqueles santos e acreditou na santidade.

Aqueles irmãos tinham os seus grupos escolhidos, a frente dos quais devemos colocar as viúvas, sobre as quais Paulo falou demoradamente em sua carta à Igreja de Éfeso. Quando se considera o que era a mulher naquele tempo, com que facilidade lhe davam o divórcio, e com que leviandade ela contraía novas núpcias, contando os maridos pelas estações de verão, segundo um ditado da época, podemos calcular que grande e difícil serviço ia a Igreja prestar à sociedade, honrando a viuvez quase tanto como a própria virgindade.

Além disso, era uma das características da mensagem cristã dirigir-se aos aflitos, e não havia corações mais despedaçados do que esses. Aquelas mulheres que tinham ficado sós, vazias de todo, como dizia seu novo e triste nome, sem amor nem amparo, o Evangelho as acolhia nas portas do desespero, e abria-lhes as almas para uma aliança divina que não conheceria nem a separação nem a morte.

As antigas crônicas da Igreja registram muitas santas viúvas entre os primeiros discípulos do apóstolo João. Isoladas ou reunidas, as viúvas da igreja oravam, trabalhavam, cantavam salmos, cuidavam das casas de oração e dos templos, felizes apesar da pobreza, agradecidas pelas ofertas que os irmãos lhes davam, elevando os corações a Deus em ação de graças.

Tudo isso era motivo de admiração para os gregos. Mas em parte alguma a admiração pelo testemunho da Igreja era tão grande como na cidade de Éfeso e no tempo de João.

Éfeso, porém, era uma cidade extremamente devassa. No entanto, não era todos os dias que se ria em Éfeso. Viam-se naquela época terríveis calamidades caírem de todos os lados sobre aquela cidade de dores e de prazeres. Éfeso era muitas vezes sacudida no meio das festas por terremotos que lhe arruinavam casas, teatros, templos. O historiador Estrabão cita-nos cidades marítimas da Jônia destruídas por terremotos.

Entre aquelas cidades arrasadas Éfeso era a primeira a ser citada, e o amor de João achou ali lúgubre e vasto campo de exercício. Alguns antigos historiadores afirmam que ele ressuscitou dezenas de mortos que haviam sido soterrados durante os terremotos. Eusebio, Sozomeno, e antes desses,

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Apolônio, o teólogo, narram alguns milagres de mortos ressuscitados pela oração do apóstolo. Porém, essas são histórias extra-bíblicas, e devem ser consideradas com cautela.

João pregou primeiro o Evangelho que devia escrever mais tarde, dirigido aos povos e aos reis.

A zombaria contra os cristãos

Era quase impossível homens devassos, materialistas e cegos não escarnecerem dos cristãos. Eles ouviam os cristãos falar de seu Pai dos céus, e esse filho de um Pai celeste não passava de um escravo aviltado, de um mendigo destinado a todo o desprezo e a todos os suplícios! Ouviam os cristãos clamar pela vinda de seu Reino, e estavam sob o reinado de Nero e Domiciano. Ouviam-nos desejar que a vontade de Deus fosse feita sobre a terra, assim como ela era feita pelos anjos no céu, e isto estava sendo pedido numa época em que só se obedecia "às vontades do sangue e da carne", como o denunciava o apóstolo João.

Mas, por entre semelhantes escárnios a Igreja seguia o seu caminho. Enquanto em Chipre, Rodes, Cós, Mileto e Pérgamo a alta sociedade ia aos templos, aos circos, às alegres vilas, às festas elegantes e aos lugares onde se entregavam a orgias e bacanais, durante os quais ouviam a leitura das descrições lascivas de Ovídio, deleitavam-se com o cinismo de Petrônio, com os poemas torpes de Catulo, uma geração pura, oculta no meio do povo, reunia-se para orar e glorificar o nome de Jesus Cristo. João não lhes passava o cálice que embriagava os participantes das orgias de Éfeso, mas fazia-os beber do cálice que recebera da mão de Jesus na ceia de despedida, e esses irmãos levantavam-se da nova mesa fortes contra a luxúria, maduros para o testemunho, preparados para o martírio.

CAPÍTULO 13 - COMBATENDO AS HERESIAS

O Reino do mal fez suas represálias. Travou-se então grande luta contra a verdade, e Éfeso não tardou em ver

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cumprir-se a predição que Paulo fizera aos anciãos em sua última despedida:

Porque eu sei isto: que depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não perdoarão o rebanho. E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si. (Atos 20.29-30)

Escrevendo a seu filho Timóteo, Paulo dizia-lhe:

Ó timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, tendo horror aos clamores vãos e profanos e às oposições da falsamente chamada ciência; a qual professando-a alguns, se desviaram da fé. A graça seja contigo. Amém! (1 Timóteo 6.20-21)

Porém, como ele o temia, já "os lobos famintos tinham entrado no redil", e Paulo sabia que era um dever prevenir seu discípulo para que não se perdesse envolvido com fábulas, mitos e genealogias intermináveis:

Como to roguei, quando parti para Macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinem outra doutrina, nem se dêem a fábulas ou a genealogias intermináveis, que mais produzem questões do que edificação de Deus, que consiste na fé; assim o faço agora. (1 Timóteo 1.3-4)

Não pode haver dúvida: essa ciência falaz era a Gnose, segundo o próprio nome que lhe dá o texto grego. As genealogias e teogonias eram as dos Eons, emanações dos espíritos do seio do Infinito. Mas Paulo tinha apenas entrevisto o gnosticismo; estava reservado a João combatê-lo.

O combate contra o gnosticismo

Foi certamente este um dos maiores perigos que o cristianismo correu. O gnosticismo não era uma heresia parcial, negando este ou aquele ponto das doutrinas reveladas. Era uma dessas negações radicais, coletivas, abrangendo todo o corpo doutrinário do cristianismo nascente. Intencionava levá-lo ao nível de uma filosofia, e, por fim, depois de o ter sufocado,

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aniquilá-lo e substituí-lo. Era a coligação de todas as falsas doutrinas e de todas as crenças contra o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.

O gnosticismo era uma mistura confusa de heresias, procedente da fusão do judaísmo alexandrino e das superstições orientais. Do lado da Grécia e do Egito helênico, o platonismo, o estoicismo, o pitagorismo sopravam sobre o Evangelho a fim de apagá-lo. Do lado da Pérsia e da Índia, a reencarnação, o parsismo e a teoria das emanações introduziam no seio da religião cristã as genealogias infinitas dos Eons, semidivindades ou espíritos subalternos, produtos de uma cosmogonia panteísta.

Desta mistura resultava a mais terrível confusão de doutrinas. O propósito de seus criadores era destruir o Evangelho e substituí-lo pela Ciência, que é o significado do nome Gnose. Ela devia ser, antes de tudo, o conhecimento superior das coisas. O cristianismo, na transformação pela qual o faziam passar os homens de espírito, não visaria mais a salvação, mas seria só uma obra de especulação, uma teoria mística. Pondo totalmente de lado o aspecto moral, faziam a perfeição do homem consistir não na conversão, na transformação de vida e na pureza do corpo, mas simplesmente na prática da ciência: a inteligência seria tudo no homem, o resto não teria valor.

O dualismo ensinava que, de um princípio duplo, o bom e o mau, procediam o bem e o mal, que vivem sempre em luta no universo. O espírito era o bem, e provinha da luz. A matéria era o mal, e provinha das trevas. Como então podia o Verbo, que é essencialmente luz e santidade, unir-se hipostaticamente à matéria, mergulhada toda ela no mal? Semelhante sistema excluía toda a possibilidade da Encarnação e, como conseqüência, da Redenção. De modo que, se Jesus Cristo fora visto sobre a terra em carne humana, carne padecente, era ape-nas aparência, na opinião dos gnósticos. Esta doutrina passou a ter o nome de docetismo.

Daí também resultavam enormidades de erros de ordem moral, cujo usufruto as múltiplas seitas disputavam entre si.

Alguns adeptos dessas seitas, ouvindo declarar que a matéria era essencialmente má, chegavam à cômoda conclusão de que se o corpo nenhum direito tinha, também nenhuma

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obrigação tinha, portanto. Não existindo solidariedade alguma entre ele e a alma luminosa, esta não podia ser responsável pelos atos dele, por mais monstruosos que fossem. A seita dos nicolaítas, ou dos baalamitas, abraçou essas abomináveis conclusões. Disto resultaram infâmias que se abrigaram sob o manto da ciência dos gnósticos. Porém, essa montanha de orgu-lho tinha sua base na lama.

Viu-se então de todos os lados aparecerem "doutores" que, com o nome de cristãos e em nome do cristianismo, ensinavam essas idéias, tentando falsificar o Evangelho. Pouco acostumados a se ver diante de uma doutrina absoluta e totalmente deferente das outras, os gnósticos imaginavam de bom grado ter feito um grande favor a Jesus Cristo abrindo-lhe suas portas nos templos da filosofia. Pensavam honrar o Messias galileu atirando-lhe sobre os ombros o manto dos filósofos da Grécia civilizada. Não era exatamente este monstruoso disfarce que o Senhor profetizara, quando denunciou os sedutores revestidos da lã das ovelhas, mas que no fundo não eram senão lobos famintos?

Assim, durante dois séculos, a gnose esteve cons-tantemente em luta contra a fé evangélica, a qual tentou sufocar desde o seu nascimento. Mas não conseguiu.

A gnose tinha tudo para isto. Nascera na Ásia, no ponto mais sonoro do mundo civilizado, entre o judaísmo de um lado e o parsismo do outro. O helenismo penetrava naquela região com todas as suas seduções. O criativo gênio do Oriente o embalava com suas fábulas, rodeando-o de símbolos e alegorias. Uma metafísica abstrata e vaporosa atraía os seus filósofos. Se aquelas doutrinas eram um ecletismo cômodo, mais cômoda era a sua moral. Mesmo as almas sequiosas das coisas espirituais ali achavam, ao lado de um sensualismo velado, ritos e superstições suficientes para que o aspecto religioso ausente mantivesse ainda ali a aparência sedutora.

Assim, desde o começo, o gênio do mal punha na frente a tríplice força de toda seita que quer apanhar o homem por inteiro: o orgulho era atraído pelo racionalismo, a carne pelo sensualismo, a mente pelo misticismo. Tal era o tríplice aspecto sob o qual a heresia apareceu em Éfeso, opondo aos sagrados ensinamentos de João as invenções de Cerinto, as abominações dos nicolaítas e as operações mágicas de Apolonio de Tiana.

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Cerinto, o grande heresiarca

Cerinto, o fundador do gnosticismo, era de origem judaica, mas nascera na cidade de Antioquia. Esta era também a pátria de Saturnino e de Bardesano, outros hereges daquele tempo. Cerinto teve uma vida cheia de aventuras. De Antioquia aquele espírito irrequieto mudou-se para Alexandria. Aquela cidade iria se tornar a segunda pátria do gnosticismo. Edificada às margens do Nilo para completar a aliança da Grécia e do Oriente, a cidade de Alexandria tomara de cada uma daquelas civilizações os requintes e os excessos, procurando misturar sofismas elegantes à superstições voluptuosas. Ali se encontravam mágicos da Caldéia, hierofantes de Osíris, filósofos de Atenas e rabinos da Palestina.

Nos cofres de cedro da biblioteca de Ptolomeu estavam reunidos os escritos de Aristóteles, de Platão e a Bíblia dos Setenta, a Septuaginta. Um teto comum abrigava as idéias nascidas sob os céus mais diversos. Os próprios judeus, tão numerosos e tão ricos naquela cidade de comércio, não estavam longe de fazer concessões de doutrina, seguindo o exemplo de Filo e Aristóbulo, adaptando Moisés ao pensamento de Platão, e interpretando Gênesis segundo o espírito de Timeu. Cerinto fre-qüentou aquelas escolas, e seu sistema herético ali recebeu forte marca de misticismo.

O sofista voltou depois à Antioquia, sua pátria, mais ou menos no tempo da pregação de Paulo e Barnabé. Sua chegada marcou o início de distúrbios, conforme nos contam Atos dos Apóstolos. Zelador da lei, Cerinto e seus seguidores se amotinaram contra os pregadores da nova religião. Podemos dizer que toda a oposição que o cristianismo encontrou a princípio nos judaizantes deveu-se às intrigas de Cerinto.

Foi então que apelou-se para o concilio de Jerusalém. Condenado unanimemente, Cerinto resolveu fundar uma religião para si. Sua intenção era ser ao mesmo tempo judeu, cristão e gnóstico. Tirando do evangelho aquilo que ele achava ser verdade, procurou adaptar isso às suas fantasias, e passou a pregar uma mistura extravagante de filosofia oriental, de mosaísmo descaracterizado e de cristianismo disfarçado.

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Ao ver-se formalmente excluído da Igreja, sacudiu o jugo da fé e mudou-se para a Ásia, precisamente par a cidade de Éfeso, onde encontrou o apóstolo João.

Entre ele e João travou-se o grande combate que desde aquele tempo jamais cessou de dividir os homens.

Cerinto foi o primeiro a negar a divindade de Jesus. Na opinião dele Cristo não era Deus. Ele dizia acreditar na existência de um Deus infinito, soberano, mas este residia em sua grandeza, solitário, incomunicável, e cujo único nome era o abismo e o silêncio. Desse abismo e desse silêncio Deus não tinha saído nem para criar o mundo nem para salvar o homem. Incumbira das obras subalternas da Criação e da Revelação um certo poder formador dos seres e legislador dos hebreus. Deus mesmo se achara muito elevado e superior para dignar-se a fazer-se homem. Mandara, por isso, apenas o seu Filho para resgatar o mundo: esse Filho era Cristo, simples homem.

Cerinto dizia também que Cristo, filho único do Princípio Criador, não era a própria pessoa de Jesus; habitava simplesmente o espírito de Jesus; de modo que a encarnação fora apenas aparente. Em certo momento, o sopro divino havia descido sobre o homem Jesus, porém sem identificar-se com ele. No dia de seu batismo, Jesus o recebera sob a forma de uma pomba. Na crucificação o perdera, como ele próprio se queixava na cruz: Por que me abandonaste? Naquele momento o divino Eon, o Cristo, desfizera a aliança com Jesus, e voltara a seu princípio impassível e imortal.

A seita dos gnósticos fez progressos alarmantes. A gangrena devoradora, como a chamava Paulo (2 Timóteo 2.17), não tardou a alastrar-se por toda a Ásia Menor. A Galácia foi particularmente atingida. Aquele era o motivo da maior tristeza do apóstolo das nações, por- que a Galácia era o seu campo de predileção, e na epístola aos Gálatas Paulo queixou-se amargamente dos ataques de doutrinas espúrias àquela igreja florescente.

Por mais que aquela seita fosse odiosa ao apóstolo Paulo, era-o ainda mais diretamente contrária ao espírito de João. João era o apóstolo do amor, e o amor não estava com aqueles orgulhosos. Eles não se davam ao trabalho de praticar a caridade. Não cuidavam da viúva, nem do órfão, nem do aflito,

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enfim, de ninguém que sofresse — fosse ele prisioneiro ou estivesse em sua casa — de ninguém que tinha fome e sede.

Nada possuía maior capacidade de amargurar o coração de João. Revoltado com a atitude dos seguidores de Cerinto, João proibiu aos cristãos qualquer comunicação com aqueles pervertores. Foi referindo-se a eles que João escreveu:

Todo aquele que prevarica e não persevera na doutrina de Cristo não tem a Deus; quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem tanto o Pai como o Filho. Se alguém vem ter convosco e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem saúda tem parte nas suas más obras. (2 João 9-11)

Mas não bastava fugir da impiedade; era necessário combatê-la. As epístolas de João estão cheias de alusões evidentes àquela heresia que separava em Jesus o Deus do homem:

Porque já muitos enganadores entraram no mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Este tal é o enganador e o anticristo. (2 João 7)

Mas a verdadeira resposta de João foi o seu Evangelho. Porém, em suas páginas Cerinto nem sequer foi citado. João não discutiu: ele afirmou solene e soberanamente a verdade. Com seu estilo sublime, João expôs que no princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, e que o Verbo criou o mundo, e que o Verbo se fez carne, e esse Verbo é Jesus. E foi o Verbo-Deus que desde o princípio ele viu, contemplou, amou, tocou com as próprias mãos, e do qual estava dando testemunho. Assim, todas as distorções e fantasias de Cerinto se evaporavam diante da luz, desde a primeira até a última página do Quarto Evangelho.

João combate os nicolaítas

Naquela mesma época surgiu outra heresia, idêntica ao gnosticismo no conteúdo, mas diferente na forma e nas práticas. Era a dissolução e a libertinagem dos sentidos depois do desvirtuamento do espírito. Era o nicolaísmo.

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Segundo o historiador Eusébio de Cesaréia, Cerinto, já cansado de se manter nas alturas severas da especulação, havia descido às conseqüências práticas de uma moral muito sensual. Pregava um futuro reinado terrestre de Cristo, no qual seus seguidores se embriagariam de delícias semelhantes àquelas que os muçulmanos esperam achar no paraíso de seu profeta Maomé. A seita que formulou este sensualismo grosseiro foi a dos nicolaítas, que se identificou como os cerintianos.

Foi o próprio apóstolo João que nos revelou, no Apocalipse, o nome e as obras dessa seita infame, que dizia ter achado numa palavra do Evangelho a justificação de todas as suas horríveis práticas. Quem era esse Nicolau que lhe dava o nome? Seria o diácono de mesmo nome, eleito com Estevão depois do Pentecostes? (Atos 6.5). Os grandes estudiosos têm chegado à conclusão que sim, e deve-se ver naquele diácono o primeiro exemplo dessas quedas, que de alturas quase celestes pre-cipitam ao abismo da perversão homens consagrados.

Mas também é provável que se tratasse de outra pessoa. Porém, seja qual tenha sido o líder dos nicolaítas, o que João nos diz de suas dissoluções confirma bem o que a história nos revelou. O nicolaísmo era um sensualismo ligeiramente velado por símbolos gnósticos. Uma das afirmações da gnose era que os iniciados na ciência transcendente, escapando completamente à dominação dos poderes humanos, não cometeriam pecado algum caso se entregassem a práticas carnais. O que sabemos de certas práticas da seita nicolaíta coincide perfeitamente com esses princípios permissivos. À sombra do templo de Diana, às margens indolentes dos rios Castro e Meandro, cujos encantos deslumbrantes os poetas cantaram, em frente à ilha de Cós, pátria de Vênus, aquela seita defendia ensinamentos e costumes que não poderíamos sequer mencionar.

Entre as cidades situadas na costa da Ásia, Éfeso e Pérgamo foram as que mais sofreram o contágio dos nicolaítas. O próprio apóstolo confirma isto no Apocalipse. Ele confessa também, em nome de Jesus, o ódio que tinha àquela perversão de costumes, muito mais sedutora do que a das idéias. Eram, como ele o dizia, as profundezas de Satanás.

Mas eu vos digo a vós e aos restantes que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina e não

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conheceram, como dizem, as profundezas de Satanás, que outra carga vos não porei. (Apocalipse 2.24)

Que lutas não teve ele que travar contra aquela seita? Que milagres de santidade e de vida consagrada puderam fazer retroceder aquele lodaçal de devassidão que ameaçava sufocar a semente do Evangelho? A história não registrou isso exatamente; porém sabemos que a comunidade dos fiéis em Éfeso mostrou-se enérgica di- ante daquela sedução. Tal foi o testemunho que daqueles crentes deu o próprio Senhor Jesus no Apocalipse:

Eu sei as tuas obras, e o teu trabalho, e a tua paciência, e que não podes sofrer os maus; e puseste à prova os que dizem ser apóstolo e o não são e tu os achaste mentirosos. Tens, porém, isto: que aborreces as obras dos nicolaítas, as quais eu também aborreço. (Apocalipse 2.2,6)

O ataque da magia oriental

Os ataques de Satanás tomavam diversas formas. Naquela mesma época João viu surgir também um terceiro inimigo de Jesus: a magia oriental, que invocava contra o Evangelho todas as suas forças ocultas. Aquele novo ataque parecia o mais perigoso, porque opondo milagres aos milagres, usava o próprio nome de Deus, de quem dizia receber o poder, e achava no povo um cúmplice devido à sede inextinguível do sobrenatural que devora as almas.

Éfeso foi o mais importante campo de batalha contra aquela terrível artimanha do diabo. Era ali que se viam homens sujos, de olhos esbugalhados, cabelos soltos e em desordem, sacudindo a cabeça como se estivessem em convulsões, proferindo palavras obscuras e entrecortadas que eram tidas como oráculos, e ostentando possuir poderes sobrenaturais, de preferência às portas dos templos, de onde lhes veio em Roma o nome de fanáticos.

Para os membros da classe instruída de Éfeso, as práticas mágicas, os encantamentos, as evocações, todas as ciências ocultas tornaram-se uma paixão. Convém lembrar que foi em

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Éfeso que Paulo fez devorar pelas chamas livros de magia no valor de cinqüenta mil peças de prata. (Atos 19.19)

Porém, a magia não morrera. Os mágicos chegavam da Ásia e da Pérsia trazendo o sabeísmo, o culto dos gênios, os encantamentos da erva omont, cuja bebida provocava o "delírio divino". Vindos do Egito, todos os anos desembarcavam no porto de Éfeso bandos de adivinhos, de astrólogos e de magos. Os caldeus vinham vender aos efésios o segredo do futuro pela combinação misteriosa dos algarismos e a conjunção dos astros. Era ali que, segundo o relatório de Clemente de Alexandria, letras cabalísticas, chamadas letras epizesias, eram procuradas pela sua maravilhosa virtude curativa ou divinatória.

Viam-se essas letras escritas por toda parte, no pedestal da estátua de Diana, em roda de sua cintura e sobre o seu diadema. As pessoas traziam-nas gravadas como um talismã em anéis sagrados, dos quais consideravam como dever nunca se separarem. Nem os decretos de Augusto nem a repressão violenta às artes mágicas puderam moderar esse delírio perigoso para a razão pública, e todas as pessoas supersticiosas nele se precipitavam com inquieto frenesi, quando de repente desembarcou em Éfeso o mais famoso entre todos os magos daquele tempo.

O satânico Apolônio de Tiana

Apolônio de Tiana era o seu nome. Ele tinha vindo opor os seus falaciosos prestígios aos milagres dos apóstolos, e suas pomposas virtudes à santidade cristã. Aquele era o único terreno onde o antagonismo do céu e da terra não se haviam ainda encontrado e travado combate.

Mas quem era aquele homem? Qual o papel que ele representava ou que lhe atribuíam? Que crédito merece a sua história?

Havia quase um século que a figura imponente de Jesus Cristo irradiava seu brilho na história, lançando um fulgor que fazia empalidecer todas as outras glórias. Por mais que se quisesse fechar os olhos à sua luz, aquela incomparável beleza da natureza humana e da natureza divina unidas numa só

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pessoa, o puro exemplo de um sábio que era ao mesmo tempo o Justo, o legislador do mundo, e seu Salvador pelo poder do seu sangue; aquele Deus, enfim, que era ao mesmo tempo o mais doce e o mais humilde dos filhos dos homens, impunha admira-ção sem todavia desencorajar a inveja. Era uma superioridade que não se podia desconhecer. Para diminuí-la e esmagá-la a filosofia procurou um concorrente que pudesse se opor vitoriosamente a Jesus.

Um sábio da Capadócia, chamado Apolônio, foi o escolhido. Seu primeiro biógrafo, Moeragenes, citado por Orígenes, tinha-o como poderoso encantador; Dion Cássio citava uma predição dele; o imperador Caracala falava em erguer-lhe um santuário; a imperatriz Júlia, esposa de Severo, pedira que lhe escrevessem sua história; Flávio Filóstrato pôs mãos à obra e apresentou-lhe um romance.

A história de Apolônio de Tiana, escrita por Filóstrato, é uma falsificação, um plágio da vida de Jesus Cristo. Nela não é feita nenhuma referência ao Filho de Deus, porém nisso nota-se mais uma das habilidades de Filóstrato. Inúmeras passagens traem a intenção do autor. O nascimento de Cristo tinha sido anunciado à Maria por um anjo; o deus egípcio Proteu apareceu igualmente à mãe do encantador para lhe revelar a glória futura de seu filho. Muitos sinais tinham ocorrido em torno do presépio de Jesus; notaram-se sinais semelhantes no berço do "grande Apolônio".

O menino de Nazaré ia todos os anos ao templo, e em uma dessas vezes causou admiração aos doutores; o jovem Apolônio, assíduo nos templos, ali demonstrava possuir uma ciência ainda mais admirável. Jesus lia nos corações, o mágico conhecia o segredo dos pensamentos; ele descobriu um crime secreto de um ciciliano, assim como Jesus penetrou o segredo da vida da samaritana.

Jesus é Deus e homem: Eunápio reclamou esse título para o herói sobre-humano de Filóstrato. Jesus realizou milagres, Apolônio os realizou ainda mais admiráveis, pois a ficção não sabe falsificar sem que exagere, e por ali mesmo a invenção se trai. Jesus ressuscitou milagrosamente a filha de Jairo e o filho da viúva; Filóstrato fala de um jovem de Roma cujo cortejo fúnebre Apolônio encontrou, ressuscitou o rapaz e o restituiu à sua mãe. Os possessos foram libertos, os demônios eram forçados a se denunciar pela própria voz. A história de Empusa, noiva de

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Menippus, um discípulo de Apolônio, libertado por ele, é a imitação de uma narrativa do Evangelho de Lucas. Enfim, à semelhança do Homem-Deus, é também por um de seus discípulos, o cobiçoso Eufrates, que o filósofo foi vendido: como Jesus, Apolônio enfrentou resolutamente os juizes, certo da sorte que lhe estava reservada.

Como Jesus, Apolônio foi abandonado; como Jesus ele sofreu os ultrajes dos tiranos. Enfim, para que nada faltasse àquele disfarce, o filósofo, que todos achavam que estivesse morto, apareceu entre os seus; mostrou-se aos amigos, insistindo para que o tocassem a fim de terem a certeza de que não era um fantasma fugido do reino das sombras.

Porém, ao lado dessas semelhanças completamente artificiais, havia entre o Evangelho e o livro de Filóstrato a distância infinita que separa os romances escritos por homens que não conhecem a Deus, da história sem igual do Filho de Deus. Os pobres inventores não tinham sabido fazer de seu sábio ideal nem ao menos um homem vulgarmente honesto. Ou muito alto ou muito baixo, esse tipo não atinge ou não ultrapassa as medidas. É que a medida de Deus não está nas mãos do homem para que ele possa assim talhar uma figura conforme a sua fantasia. Não há nada melhor para pôr em relevo a excelência do Evangelho do que aquela pobre imitação, que serve de fortalecimento das evidências da divindade de Jesus.

O ensino deste suposto rival de Jesus Cristo mostrava da mesma maneira uma falsificação grosseira do Evangelho. Sua doutrina era a do pitagorismo. Tinha tendências a voltar ao culto primitivo da natureza universal, cujas forças múltiplas recebiam adoração sob muitos nomes e muitas formas. Sua moral pregava a abstinência, a vida discreta, o desprendimento, a luta contra a concupiscência. Eram as normas de vida dos cristãos, menos a base, o meio e o vértice que é a humildade, a verdade e o amor.

Por isso ruiu tudo por terra. A tentativa de melhorar o mundo começada por Apolônio, continuada mais tarde por Plotino e Porfírio, perdeu-se pela afetação, pela esterilidade e pelo ridículo, e dela só ficou a lembrança de um frágil sonho de orgulho por parte daqueles que querem reformar o mundo sem Deus, com a pretensão de fazê-lo melhor do que Ele o fez.

Agora, quais são as grandes linhas dessa história? Que

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verdade se destaca desse amontoado de fábulas com que Filóstrato sobrecarregou a vida de seu herói?

Depois de ter passado os primeiros anos de sua vida na pequena cidade de Tiana, na Capadócia, onde nascera, Apolônio partiu para as escolas de Tarso. Ali foi seduzido pelo caráter místico da escola de Pitágoras, e, separando-se da companhia de estudantes turbulentos, começou a levar vida solitária, pessoal e estranha que devia dar-lhe todo o prestígio e as honras futuras.

Observando durante alguns anos o silêncio dos pitagóricos, repartiu a pequena fortuna entre a irmã e os pobres, e em seguida, vestido unicamente de uma túnica de linho, pôs-se a percorrer, sucessivamente, a Pérsia, a Babilônia, as Índias, o monte Atos, Antioquia, Chipre, a Grécia, entretendo-se com os brâmanes e os mágicos, os filósofos e os sacerdotes, sondando todos os mistérios da ciência e da natureza, arrancando-lhe segredos que fez depois passar por fenômenos divinos, e desta maneira maravilhando e fascinando as multidões, eternamente ávidas de novidades, de milagres e revelações.

Uma grande reputação de sábio e de realizador de milagres precedera-o, portanto, quando chegou a Éfeso. Ali ele teve acolhida digna de sua fama. Não houve nobre operário nem homem de condição mais baixa e vil que não lhe viesse ao encontro, deixando o trabalho para lhe ver a face. Seguia-o tão grande multidão, que era quase impossível chegar perto dele; uns, maravilhados com seus conhecimentos, outros com a majestade de seu porte; uns, impressionados pela sua maneira austera de vestir, outros, por sua alimentação, e a maior parte pelo conjunto de todas estas coisas, com as quais se entretinham entre si de diversos modos.

Apolônio de Tiana, o perigoso impostor, o homem que tentou usurpar o nome, a história, as maravilhas e a glória de Jesus, entrou em Éfeso quando lá ainda se encontrava o apóstolo João.

Porém sua estada naquela cidade foi muito curta, e o entusiasmo do povo arrefeceu prontamente. Devemos atribuir esta desconsideração à influência secreta da comunidade cristã? João teria contribuído para isso, esclarecendo o povo enganado e desmascarando o impostor? Filóstrato diz apenas que seu herói encontrou grande oposição em Éfeso. Depois, suas virtudes não

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foram convincentemente provadas diante do povo, conforme quisera fazer crer o seu "biógrafo". Alguns, como Eufrates, notaram que a pobreza austera de Apolônio era fingida. O que havia ali era um esperto negociante sob a capa de um filósofo.

Seu orgulho e pedantismo levou o povo a rejeitá-lo e a se afastar dele. Não recebo ordens de ninguém, dizia Apolônio; sou eu que mando em mim mesmo. Quando, perto de Babilônia, alguém lhe perguntou o que trazia consigo, o soberbo filósofo respondeu: Trago comigo a justiça, a constância, a sabedoria, a temperança, a modéstia, a paciência, a magnanimidade, a conti-nência e a coragem...

Tal era o homem que mais tarde o sofista Hérocles não temeu comparar com Aquele que foi "manso e humilde de coração"! O povo que a princípio correra para ouvir suas lições, acabou vendo nele apenas um charlatão da sabedoria. Apolônio abandonou então a cidade de Éfeso.

CAPÍTULO 14 - O EVANGELHO DE JOÃO

A vasta coligação do mal e do erro, que acabamos de descrever, pedia um testemunho brilhante da verdade cristã e da santidade de Deus. Foi então que João escreveu seu Evangelho. O que primitivamente se chamava Evangelho não era um livro, era uma mensagem verbal. Jesus Cristo havia tão-somente ensinado. Seus apóstolos fizeram como ele: nada escreveram, simplesmente pregaram. A palavra, inspirada diretamente por Deus, provada pelos milagres, derivada de lembranças de fonte fresca e pura, devia ser suficiente para a fundação do Reino de Deus. Era aquele o sopro do qual dizia a Escritura que renovaria a face da terra. Era um sopro de fogo; mas apenas um sopro.

Aquela palavra, no entanto, não tardou muito a ser escrita. Uns expuseram primeiro a doutrina de acordo com a necessidade dos tempos: foi o objetivo das epístolas. Outros redigiram a própria vida de Jesus: é o que conhecemos e veneramos particularmente com o nome de Evangelho.

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Os evangelhos sinóticos

Se procurarmos a razão e o caráter próprio das três primeiras narrativas, chamadas sinóticas, notaremos primeiro que foram escritas visando as três grandes famílias de povos dentre os quais saíram os seguidores de Jesus Cristo.

O Evangelho de Mateus foi escrito para os judeus, na Judéia, por um judeu e conforme os costumes da nação judaica. Foi redigido na língua desse povo. Há um livro conhecido sob o nome de evangelho dos Hebreus que os estudiosos afirmam ser o evangelho de Mateus na sua primeira forma.

O Evangelho de Marcos foi escrito em Roma, para os romanos e sob a supervisão de Pedro.

O Evangelho de Lucas é inteiramente grego em seu propósito, origem e destino. Nascido em Antioquia, cidade de língua e costumes gregos, companheiro de Paulo e historiador de suas viagens pela Ásia, Lucas, o doutor, foi o evangelista escolhido por Deus para escrever à população grega, da qual Paulo, seu mestre, era o apóstolo.

Desta forma o Filho de Deus iluminou, como que por três raios de sua divina face, as três grandes famílias da civilização do seu tempo.

Depois da redação dos três evangelhos sinóticos, o ponto de vista da exposição assim como da moral cristã mudou. Não era mais necessário citar as profecias para convencer os judeus que a sinagoga estava morta. Jerusalém caíra em poder de Tito, e via-se a vontade de Deus em caracteres ardentes sobre as cinzas fumegantes do Templo destruído. O que convinha principalmente fazer sobressair na pessoa de Jesus não era mais o Messias de um Israel agora vencido e disperso; era o Deus que o universo devia adorar; não um deus qualquer de segunda ou terceira categoria, intermediário entre o mundo e seu autor, mas o próprio Autor do mundo. Ora, para isto bastava fazer vir à luz a parte mais profunda do ensinamento de Cristo, contanto que ainda vivesse algum de seus discípulos que a tivesse recolhido fielmente, e que a pudesse transmitir.

João, filho de Zebedeu, outrora discípulo do Salvador, tornado o apóstolo da Jônia, e que passara a viver em Éfeso,

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para onde iam todas as heresias, era o mais apto dos apóstolos para combater a mentira, assim como o mais instruído na verdade, pois repousara sobre o próprio coração do Verbo de Deus.

A história de seu Mestre estava-lhe bem presente no espírito. Penetrara-lhe em sua alma tão profundamente que não era mais possível sair. Quanto maior e mais grata é uma lembrança, mais se enraíza e vive no coração que a recebeu. Grande era, portanto, a vitalidade da lembrança de Jesus Cristo na memória de João! O próprio Jesus Cristo havia dito aos apóstolos que o Espírito Santo lhes faria lembrar tudo o que Ele dissera e tudo o que Ele fizera, tal qual o fogo faz aparecer uma escrita invisível:

Mas aquele Consolados o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito. (João 14.26)

João, que relata essa promessa profética, devia vê-la realizada completamente em si mesmo.

Portanto, João foi solicitado a escrever. Seu livro devia ser oriundo da necessidade urgente da Igreja Cristã e do pedido dos irmãos. O biblicista e erudito do século IV, Jerônimo, escreveu: "O apóstolo João, aquele a quem Jesus Cristo amou mais do que aos outros, escreveu o seu Evangelho a pedido dos bispos da Ásia, contra Cerinto e outros heréticos, e especialmente contra o erro dos ebonitas que começava a espalhar-se, e que ensinavam que Jesus não existira antes de Maria".

A lembrança de Jesus Cristo era ainda uma lembrança contemporânea. Aqueles que eram discípulos com João, e os bispos da Ásia sob sua liderança, insistindo para que João escrevesse, ouviram dele esta resposta: "Jejuem comigo durante três dias, e em seguida relatare- mos uns aos outros o que nos for revelado." Durante a noite foi revelado a André, um dos apóstolos, que "João devia escrever tudo sozinho, em seu nome, mas com a aprovação de todos os demais irmãos.”

Os discípulos, ou pelo menos alguns, como André, o apóstolo da Acaia, eram vivos ainda quando João terminou de escrever seu Evangelho. Por outro lado, Jerusalém já não existia. A prova disto está no fato de que o evangelista só fala dela no

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passado, referindo-se à existência de vários lugares em Jerusalém que não eram então mais que um monte de cinzas.

É, portanto, depois da ruína daquela infeliz cidade, e antes da morte de André e dos discípulos, isto é, mais ou menos entre os anos 70 e 80 d.C. que devemos datar a redação do Quarto Evangelho. Essa é, portanto, a data atribuída a esse livro pelas inscrições dos manuscritos mais antigos. Naquela data as doutrinas gnosticas, citadas por Paulo, já estavam bastante espalhadas, fazendo-se, portanto, necessária uma refutação, como a que João lhes opôs no seu Evangelho. Não podemos, pois, aceitar a opinião gratuita que defende ter o apóstolo escrito o seu evangelho quando já estava com 90 anos, nos limites extremos de sua longa existência.

Quanto ao lugar onde o Quarto Evangelho foi redigido podemos verificar por algumas evidências que, conquanto os fatos contados se passem na Palestina, no entanto ele não foi escrito naquele país. É em terra estranha e para estrangeiros que é necessário explicar os nomes mais elementares da língua como o de Messias e Rabi. É só a estrangeiros que se deve informar a antiga inimizade entre samaritanos e judeus, e sobre o costume do embalsamamento e das abluções. Se João explica estas e muitas outras coisas semelhantes, é porque estava escrevendo seu livro longe da Judéia; ele o escreveu em Éfeso.

Portanto, tudo indica que ele o tenha escrito naquela cidade. Isto foi expressamente declarado por Irineu, discípulo de João, e Irineu sabia o que estava dizendo porque viveu no mesmo lugar e na mesma época do apóstolo: "João, o discípulo do Senhor, João, que repousou sobre o peito de Jesus, escreveu seu Evangelho na cidade de Éfeso, na Ásia." Os mais antigos ma-nuscritos da versão siríaca e da versão copta designam essa cidade.

Durante muito tempo foi ali conservado o manuscrito original do apóstolo; e Pedro, o mártir, bispo de Alexandria, ainda invocava sua autoridade decisiva no começo do IV século: "O manuscrito, o autógrafo de João, o evangelista, foi até hoje, pela graça de Deus, conservado na Igreja de Éfeso, e ainda é ali examinado com respeito pelos fiéis.”

O fragmento de Muratori diz que o apóstolo começou a escrever o Quarto Evangelho por solicitação dos bispos seus

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irmãos, que pediram um resumo dos testemunhos dos últimos sobreviventes entre os discípulos de Jesus. Clemente de Alexandria e Jerônimo contam a mesma coisa. Ora, não é a este caráter de coletividade que se devem atribuir certas formas de linguagem do evangelista, que se exprime no plural como que para nos indicar que nos fala por todos? E vimos a sua glória. (João 1.14). E na primeira epístola:

O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra de vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão conosco; e a nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)

O mesmo fragmento de Muratori diz que o principal incentivador desta redação do Evangelho de João foi o apóstolo André. Ora, André foi o primeiro dos discípulos de Jesus que João fez aparecer a seu lado na escola do divino Mestre, como se, fazendo um apelo às recordações em comum, quisesse colocar o quadro autêntico desses princípios sob uma dupla garantia.

Inspirado pelos altos Céus

Os discípulos e os bispos contemporâneos de João, tendo à frente André, não deviam somente lhe inspirar o Evangelho: deviam também aprová-lo, diz a passagem citada. Temos ainda sob nossos olhos o texto dessa aprovação. Acha-se formulado nos últimos versículos do Evangelho de João. Conforme o reconhecem os melhores intérpretes, o apóstolo deixou a pena, cedendo-a aos discípulos; estes leram o Evangelho que ele acabara de redigir. Tendo-o examinado e confirmado sua autenticidade, todos juntos o aprovaram nestes termos:

Este é o discípulo que testifica dessas coisas e as escreveu; e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro. Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada uma das quais fosse escrita, cuido

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que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém. (João 21.24-25)

Uma tradição conta que quando João começou a escrever o seu Evangelho proclamando a geração eterna de Jesus Cristo por estas sublimes palavras No princípio era o Verbo, viu-se num céu límpido o fulgor de um relâmpago, e ecoou ao longe o estrondo de um trovão. Aquele acontecimento era o símbolo da força e do brilho daquela palavra descida dos altos céus. Conta-se que João orou e jejuou muito, pedindo a Deus a inspiração celeste. Um livro dessa magnitude não se escreve tão-somente com elementos humanos. São necessárias as palavras e a inspiração de Deus. E foi entre gemidos indescritíveis que o Espírito Santo fez ressoar as mais sublimes palavras que a terra jamais escutara.

Diferenças entre João e os sinóticos

Tendo lido narrações biográficas escritas antes da sua, o apóstolo notou certas omissões. Apesar de inspirados, e colhendo informações em fontes seguras, os três primeiros evangelistas não tinham sido, como ele, testemunhas de todos os fatos que contavam. Mateus tinha sido o sétimo chamado à honra do apostolado; Marcos não era dos doze, e Lucas só se convertera muitos anos após Jesus ter cumprido o seu ministério. Portanto, as narrativas dos três evangelistas necessitavam ser completadas em três pontos principais:

1) Primeiramente, quanto ao início da vida pública de Jesus e aos episódios ligados às primeiras conversas do Mestre com os discípulos e os contatos de João Batista com o divino Messias, coisas estas que o evangelista conhecia muito bem.

2) Em segundo lugar, quanto às diferentes estadas de Jesus em Jerusalém, e aquele período que ele passou na Judéia, quando realizou os seus maiores milagres e proferiu suas mais sublimes pregações. Tudo isto tivera como cenário o pórtico do Templo, a casa de Betânia, o Cenáculo.

3) E em terceiro lugar, quanto á vida ressuscitada, havia muitas lacunas nos retratos da ressurreição de Jesus.

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A João, pois, competia narrar esses fatos; foi uma das finalidades principais do livro. Mas não foi o único objetivo do seu autor. Se admitíssemos isto estaríamos rebaixando o seu Evangelho ao papel de simples complemento e ele não apresentaria a riqueza e a unidade inimitável que o distingue. Mas o apóstolo não desprezou essa função que seu evangelho poderia exercer, como claramente revela a leitura. O que os outros disseram, João cita; o que desenvolveram, ele abrevia; o que se leu em outro lugar, ele supõe conhecido; o que falta, ele supre. Assim, sua narrativa coloca-se ao lado e ao mesmo tempo acima da dos seus predecessores. Ele não os seguiu, mas também não entrou em oposição com nenhum deles. Se em várias ocasiões deixou de lhes seguir os passos, encontrou-os freqüentemente, para que se veja que todos quatro seguiram o mesmo caminho — aquele por onde Jesus passou e fez resplandecer a luz de sua face divina.

A ordem dos fatos e a cronologia não estavam indicadas nos Evangelhos anteriores. Muito mais preocupados em expor a doutrina de Jesus do que em escrever uma história com desenvolvimento regular e sucessivo, e dominados pelo hábito do ensino oral, os sinóticos tinham se preocupado mais com a instrução dos leitores do que com a marcha exata do tempo.

João preencheu essa lacuna. Lucas declara que já havia pensado em pôr em ordem os fatos da história de Jesus. Mas foi João quem o fez. Quatro Páscoas, algumas outras festas do ano religioso judaico claramente indicadas cada uma em seu lugar marcam o caminho do historiador, fixando a data dos acontecimentos principais da vida do Mestre divino. Todos os sincronismos que se fizeram do Evangelho partiram destes pontos esclarecidos por João.

Desta forma a vida de Jesus retornou ao seu lugar positivo no tempo; o ideal por essência moveu-se no seio da realidade bem determinada. O Evangelho considerado o mais espiritual tornou-se igualmente aquele que melhor marcou o caráter exato e histórico da vida de Jesus. João delimitou o leito do rio por onde a narração iria agora correr por margens definidas.

O próprio apóstolo revelou a terceira e principal finalidade de seu trabalho:

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Jesus, pois, operou também, em presença de seus discípulos, muitos outros sinais, que não estão escrito neste livro. Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome. (João 20.30-31)

Portanto, a finalidade de João ao escrever seu evangelho não foi unicamente a de completá-lo e pô-lo em ordem, mas sim a de provar a divindade de Jesus.

Provando a divindade de Jesus

Não era essa, sem dúvida, uma crença e uma doutrina pessoal de João. Antes dele já os três evangelistas a tinham formulado. A divindade de Jesus Cristo manifestava-se igualmente em todas as epístolas de Paulo. Quem escreveu esta definição:

dos quais são os pais, e dos quais é Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito eternamente. Amém. (Romanos 9:5)

não foi João, mas Paulo. E João, endereçando seu Evangelho às nações, teve todo o cuidado de prevenir aos prezados amigos que ele não era nenhum inovador, e que seu ensinamento era o mesmo que eles tinham ouvido desde o princípio.

O que os outros evangelistas apenas anunciaram, João desenvolveu. Tinham verificado a divindade de Cristo, João a demonstrou. Tinham-na feito sobressair na narrativa da vida de Jesus, João deu-lhe todo o brilho na pregação do Senhor.

Entre os milagres de Jesus, ele preferiu narrar aqueles que melhor provam sua divindade. Entre as palavras de Jesus, insistiu sobre aquelas que confirmaram mais claramente a sua divindade. O caráter histórico do livro nada perdeu com isso; porém o caráter dogmático e apologético destacou-se mais nitidamente. Deste modo João atingiu o fim primordial de sua obra, que era opor uma refutação indireta, porém formal às incredulidades do tempo e do futuro quanto à natureza divina de Jesus.

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João se encontrava, pelo seu apostolado, em presença das escolas gnósticas. Isto é bem visível no seu Evangelho. Obrigado a dirigir-se às filosofias, não desprezou, no entanto, as altas especulações que os sábios da Ásia pretendiam achar na ciência. Daí o porquê de João, o evangelista, ter sido chamado na antigüidade de "João, o teólogo". Daí a profundidade dogmática do livro. Não é mais o evangelho do cumprimento da antiga profecia; não é mais apenas a narrativa dos acontecimentos de uma vida sublime: é o Evangelho do Verbo de Deus, mas o Verbo Vivo, palpável, numa história fiel.

Vemos também que as palavras de Jesus, repetidas por João, foram quase todas pronunciadas na Judéia e em Jerusalém. Não se fala a doutores e aos principais de um povo como se fala a pescadores de um lago. Na Galiléia, diante de uma multidão composta de pessoas simples, numa barca, numa praia, sobre a relva de uma colina, para os pequenos e os pobres, as parábolas familiares, como simples conversas, harmonizavam-se muito mais com a bondade condescendente de Jesus do que com a sua profundidade teológica.

Porém na Judéia, sob os pórticos do Templo de Jerusalém, aos conhecedores da lei, aos prosélitos vindos de todas as sinagogas, aos estrangeiros chegados de todas as cidades cultas, era necessário, sobre um mesmo fundo de doutrina, Jesus usar outras palavras, outros métodos de comunicação. Na Galiléia Jesus de Nazaré era o profeta prometido a Israel, e seus ensinamentos simples e sua bondade bastavam para comprovar a sua missão divina. Porém na Judéia, ele tinha que se apresentar como um doutor, um Mestre, e seus discursos deveriam provar sua divindade. Ora, as palavras pronunciadas por Jesus e citadas por João eram de tal profundidade e magnitude que os próprios inimigos confessavam que jamais homem nenhum falou como este. (João 7.46)

O Evangelho de João é como a flor dos Evangelhos. Só podia penetrar a tal profundidade aquele cuja cabeça repousou sobre o peito de Jesus. Só o amigo tão íntimo do Senhor, o discípulo tratado pelo Mestre como um outro eu, seria capaz de ter os pensamentos e sentimentos que ele apresenta no Quarto Evangelho. João bebeu em segredo naquela fonte divina, seu evangelho é o resultado da união entre o seu coração e o coração de Jesus.

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Se é verdade que pelo estilo se conhece o homem, que homem poderia melhor descrever Jesus Cristo como o Verbo Todo-poderoso e o manso Cordeiro de Deus, a não ser o gênio ardente e ao mesmo tempo meditativo do filho do trovão, do discípulo predileto? Eis porque a grandeza e a bondade de Jesus, sua sublimidade e ternura, todos os aspectos e traços do Salvador se refletem no Quarto Evangelho como na mais cristalina água. Das narrativas evangélicas a de João é a mais admirável, a mais comovente e a mais simples. Vemos se reproduzirem ao vivo todos os fatos que ele descreve; ele faz realmente reviver Jesus Cristo diante dos nossos olhos. Milagre tanto de simplicidade como de sublimidade, um vôo para a luz eterna, porém sempre amparado pelo sopro do amor que nasceu em um coração humano.

João era um homem puro. Todos reconhecem que esse fato é uma força intelectual indispensável nas coisas divinas. E principalmente neste assunto que a penetração do olhar do espírito depende de sua pureza: "Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus." A pureza moral permite voar livre e continuamente para a luz. O olhar da alma, como o do corpo, tem maior ou menor alcance de acordo com a pureza da pessoa. "Há, diz muito bem Orígenes, diferentes formas sob as quais o Verbo se revela a seus discípulos, conformando-se ao grau de luz de cada um, conforme os graus de seus pro-gressos na santidade. Se ele se manifestou na montanha da Transfiguração sob uma forma mais sublime do que aquela com a qual apareceu aos que, tendo permanecido embaixo, não podiam atingir o alto, a razão é porque os que ficaram embaixo não tinham os olhos capazes de contemplar a glória e a divindade do Verbo transfigurado. João e só mais outros dois discípulos foram levados por sua santidade a essas luminosas alturas".

O estilo do Evangelho de João é espontâneo e sublime. A expressão jorra naturalmente, sem afetação, vertendo-se no discurso como o ouro em fusão, sob o fogo do Espírito Santo. Daí esses vôos rápidos que são como o bater de asas da águia dos evangelistas. A plenitude do Espírito, ao descer do céu, achando na palavra humana vaso muito estreito para poder contê-la, ocupou-a com violência e transbordou. As formas ordinárias da linguagem foram destruídas; o pensamento entrou em luta com a expressão; e além do primeiro sentido aparecem sentidos

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novos e profundos que prolongaram indefinidamente a riqueza de significado das palavras. Isto ocorreu com a capacidade de João se expressar por escrito.

Além do mais, ninguém duvida que o contato de João com as escolas de Éfeso e sua convivência habitual com os gregos tenham polido aquele pescador. Nele nada há de impróprio, de inconveniente, de rasteiro. Dir-se-ia que João não só recebeu o dom de tudo ver, mas de exprimi-lo muito bem. Todavia, os hebraismos, as formas siríacas, as locuções caldaicas, traem no idioma grego que João usou o hábito de outra língua e de outro país. Reconhece-se o galileu no cidadão de Éfeso, e as duas pátrias de João podem ser identificadas muito bem só por seu estilo.

O conhecimento perfeito que ele tinha do judaísmo mostra a que cultura ele pertencia por direito de nascença; mas a maneira um tanto livre com a qual ele falou sobre os seus compatriotas prova que ele rompera com a Sinagoga. O estilo sentencioso, entrecortado e ritmado da frase procede claramente do elemento hebraico, ao passo que a fluidez suprema da sua linguagem faz logo reconhecer a influência das novas pessoas entre as quais ele terminou os seus dias. Quanto às repetições que lhe são habituais, alguns estudiosos viram nisso um sinal da grande velhice do escritor sagrado.

É desta forma que o Evangelho completo revela o autor e o autor explica o Evangelho. O evangelho de João é o mais belo trabalho que a terra possui e que jamais possuirá, mesmo entre aqueles nascidos da inspiração de Deus.

Quanto mais uma palavra se assemelha a um pensamento, um pensamento a uma alma, uma alma a Deus, mais belo torna-se tudo isso. Ora, que beleza sem igual não devia brilhar num livro onde a palavra é a imagem do pensamento e da alma do Filho de Deus?

O Evangelho de João termina pela confissão de sua impossibilidade de tudo dizer e de atingir essa profundidade inesgotável de grandeza, virtudes e graças que é Jesus Cristo:

Há, porém, ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e, se cada uma das quais fosse escrita, cuido que nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem. Amém. (João 21.25)

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João confessava-se perturbado pelo sentimento do inefável que é a revelação de nossos limites, sentimento doloroso muitas vezes, mesmo em presença das grandes coisas humanas — desespero inevitável do homem diante da imensidão de Deus.

CAPÍTULO 15 - A TEOLOGIA DO EVANGELHO DE JOÃO

O Evangelho de João não é unicamente uma narrativa e uma história; é a exposição de uma teologia inspirada. Primeiro narra-se a geração eterna do Verbo, sua atuação no mundo e entre os espíritos, sua encarnação realizada e perpetuada; depois, a explicação e a razão destas maravilhas, o amor de Deus, um amor eterno, infinito, dando por si só a chave de todos os mistérios: tal é o assunto e o fundo dessa teologia, a mais admirável entre todas as teologias que o ser humano já elaborou no mundo.

Assim como a Bíblia começa pelo Gênesis, que é a criação do mundo, o Evangelho de João começa pelo Verbo, que é a início da revelação profunda sobre o Filho de Deus. Moisés expôs os princípios da sabedoria divina; João proclamou sua consumação.

Jesus Cristo nunca se servira desse nome de Verbo para designar-se a si mesmo; João também nunca o põe em seus lábios divinos no decorrer do Evangelho. É ele, João, e somente ele que, para adaptar-se à linguagem de alguns de seus contemporâneos, usa esta palavra no intuito de fazê-los compreender, e melhor do que o faziam eles, de que forma Deus se exprimira ao mundo.

Tanto os filósofos em seus diálogos como os gnósticos em suas escolas, assim como os rabinos judeus no seio de suas sinagogas, falavam do Verbo como expressão de Deus manifestada aos homens. Mas enquanto uns tinham uma idéia errônea, outros possuíam apenas uma noção incompleta. Portanto, se quisermos saber com quem o evangelista aprendeu o que ele escreveu sobre o Verbo, onde leu sobre este grande nome, ele próprio no-lo revela quando diz no livro de Apocalipse:

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E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco. O que estava assentado sobre ele chama-se Fiel e Verdadeiro e julga e peleja com justiça. E os seus olhos eram como chama de fogo; e sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito que ninguém sabia, senão ele mesmo. E estava vestido de uma veste salpicada de sangue, e o nome pelo qual se chama é a Palavra de Deus. (Apocalipse 19.11-13)

O começo do evangelho de João arrebatava de entusiasmo o espírito de Agostinho. Ele comparava o Quarto Evangelho a uma grande montanha, alta e serena, de onde a divindade se deixava contemplar. E que montanha tão grandiosa, e quão alta foi a elevação deste gênio! "Vejam vocês: João ultrapassou todas as alturas terrestres, todos os espaços etéreos, em seguida os próprios coros celestes e as legiões de anjos. Por que lhe falais do que o céu e a terra contêm? São tão-somente criaturas. Que fazem aqui os próprios seres espirituais? São unicamente obra de Deus, não são o próprio Deus. Mas quereis atingir a Divindade? Subi às alturas onde habita o evangelista João, entrai em seu Evangelho e ele nos revelará as sublimidades de Deus".

Diante do seu rebanho em Antioquia, assim pregava Crisóstomo: "Vocês desejam penetrar o segredo dos palácios, conhecer os atos do imperador, porém venham aprender as maravilhas do Deus de vocês. É o nosso melhor amigo que nos ensinará. Ele traz consigo a Palavra de Deus. Se um anjo nos viesse comunicar a linguagem dos céus, com que ardor correríamos para ouvi-lo! Ora, aquele que nos fala nas páginas do evangelho de João veio do próprio Céu. É Jesus. Nele reside o Espírito diante do qual o futuro é como o presente, e que conhece todas as obras de Deus tão bem como conhece seu próprio Espírito. Jesus revelou os seus segredos a João. Não elogiem mais os pensamentos de Platão e Pitágoras. Eles procu-ram, João viu. Desde o princípio de sua narrativa ele apodera-se de todo o nosso ser, eleva-o acima da terra, do mar e do céu, leva-o para uma região mais elevada do que os anjos, além de toda criatura... Que perspectiva então se abriu diante de nossos olhos! O horizonte recuou sem fim, os limites se apagaram! Foi o infinito que apareceu a João, o amigo de Deus. E foi quando ele disse: No princípio era o Verbo.

O prólogo do evangelho de João, que mostra o itinerário do

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Verbo partindo do seio eterno do Pai, descendo de esfera em esfera até as humilhações da encarnação, é de uma magnificência sobre-humana.

Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. (João 1.3)

O Verbo antes da Encarnação

Sua marca está por toda a parte: o Criador assinou a sua obra, nela imprimindo a sua imagem e grandeza. Qual é este testemunho e esta amostra que o Verbo nos deu de si senão a beleza indescritível do mundo que expôs aos nossos olhos? O céu, a terra e o mar são as mais belas palavras de um livro no qual está escrita a Palavra de Deus. "O céu é um decálogo onde Deus se revelou, disse Clemente de Alexandria, e o mundo, repetindo a bondade, a sabedoria e a beleza de seu autor, vai cantando por toda a parte as maravilhas do Verbo, no tom harmonioso que o sábio Pitágoras pensava ouvir nos céus.”

João afirmou também que o Verbo não é somente o arquiteto do mundo físico e da ordem material; ele é Esplendor de Deus, e penetra o mundo dos espíritos para lhes ser a luz, a inspiração e a vida:

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Ali estava a luz verdadeira, que alumia a todo o homem que vem ao mundo, estava no mundo, e o mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. (João 1.5,9-10)

No terreno natural, o Verbo é a luz da razão. É aquela palavra profunda que se faz ouvir sem cessar no mais íntimo da consciência. Esta palavra falou, esta luz brilhou antes mesmo de Jesus Cristo vir habitar entre nós; esclareceu os sábios antes de iluminar os santos; e este sol das almas teve uma longa aurora, antes do belo dia em que brilhou sobre as nossas cabeças.

Os homens ouviram. O Verbo de Deus retumbou nas alturas do Orebe e do Sinai, ecoou nas mensagens dos profetas, cantou nas harpas santas, e as nações guardaram-lhe os ecos. Assim, desde antes da encarnação de Cristo o Verbo estava no mundo.

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Porém o Verbo estava no mundo, mas o mundo não o conheceu. Eis, em resumo, toda a história do homem em seus relacionamentos com Deus durante quatro mil anos. Deus nos deu primeiro sua imagem na obra de suas mãos. E depois nos deu sua Palavra. Porém nem o belo, nem o verdadeiro, nem a voz da razão nem a da lei tinham sido compreendidos. Foi então que Deus resolveu nos dar a sua presença, a sua revelação pessoal, o seu Filho Jesus Cristo.

Foi quando ocorreu a terceira grande ação do Verbo, sua Encarnação. Sabe-se que a razão humana a declarava impossível. Na época do nascimento de Jesus Cristo todas as escolas eruditas dos judeus e dos pagãos estavam de acordo em afirmar a impossibilidade de qualquer união de Deus, o ser incomunicável, com sua criatura, o homem.

Por outro lado, o coração pulsava, clamava, implorava um Deus semelhante a nós, e que vivesse entre nós. Todo o antigo politeísmo, toda a idolatria eram apenas aspirações cegas por essa aproximação. O homem tinha sede de Deus.

Quem nos daria ao mesmo tempo um Deus inacessível e um Deus acessível; um Deus acima de todos os mundos e um Deus unido ao mundo; um Deus que não se ousava nomear e um Deus que se podia amar; um Deus diferente do homem e um Deus semelhante ao homem? Quem nos daria? Jesus Cristo!

João nos descreveu o vôo sublime do Verbo de Deus até Belém. Toda a magnificência termina neste mistério em que Deus desce até o homem para elevá-lo até ele:

E o verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. (João 1.14)

Eis a Encarnação, eis o que Orígenes chamava de "o casamento do Verbo com a humanidade". Assim, o Verbo ou a palavra invisível de Deus se exprimiu para nós em caracteres tangíveis, e o Ser incorpóreo revestiu-se de um corpo pelo qual, tornando-se sensível, pôde unir-se a nós.

A humanidade de Jesus está tão bem demonstrada quanto a sua divindade no Evangelho de João; e o homem não foi colocado ali sob uma luz menos brilhante do que a de Deus.

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A dupla natureza de Jesus

Aquele que o cansaço obriga a sentar-se á beira do poço de Jacó e pede água, é o homem; mas aquele que, penetrando a consciência da mulher samaritana, revela-lhe os segredos de sua vida e a sede do seu coração, é o Verbo de Deus. Aquele que se comove de compaixão e misericórdia diante da mulher adúltera, é o homem; mas aquele que a vinga do desprezo e a absolve do crime é o Senhor, é Deus. Aquele que se perturba e chora diante do sepulcro de Lázaro, é o meigo amigo Jesus, é o homem; mas aquele que invoca o nome de seu Pai, e ordena à morte que ela deixe a sua presa, é Deus. Aquele a quem a traição entristece mortalmente no Cenáculo, é o homem; mas aquele que se entrega declarando que seu suplício salvará a humanidade, é o Senhor Todo-poderoso, é Deus. Aquele que se queixa na cruz de ter sido abandonado pelo céu assim como pela terra é o mortal, é o homem; mas aquele que com o olhar tranqüilo, abrangendo o passado e o futuro, declara que tudo está consumado, é verdadeiramente o Filho de Deus. Aquele que morre, pagando assim o terrível preço da nossa redenção, é o homem; mas aquele que prediz a sua ressurreição e ressuscita no dia marcado, é Deus. Aquele que, vencedor da morte, come com seus discípulos e faz-se tocar por Eles, dizendo que é de carne e osso, é o homem; mas aquele diante de quem Tomé cai de joelhos, e que diante de seus discípulos sobe aos céus, é Deus.

Eis aqui o vosso rei, disse Pilatos mostrando-o ao povo. Senhor meu e Deus meu, disse Tome vencido e ajoelhado diante dele. Estas duas frases do fim da narrativa de João correspondem à frase do princípio: E o verbo se fez carne!

João acrescenta que não somente o Verbo se fez carne como nós, mas que ele está conosco, e que habita no meio de nós. Mas João ainda diz mais. Não é conosco, mas em nós que o Verbo habita. Até então o mundo só tinha de Deus e da Verdade uma centelha fugitiva, mas Jesus nos trouxe a revelação plena do Pai e toda a Verdade. Os homens tiveram então a oportunidade de se saciarem na plenitude da graça. O Verbo feito carne habitou literalmente entre nós, segundo a expressão do apóstolo João.

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O mistério da Encarnação

Que razões João apresentou para o mistério da Encarnação? Que motivos incompreensíveis fizeram com que o próprio Deus se lançasse nessas humilhações da eternidade ao tempo, do céu à terra, do seu Trono ao presépio, de sua Glória à cruz? Como pôde o Espírito fazer assim aliança com a matéria, e o Ser bem-aventurado descer para o meio de nossas enfermidades? Isso tudo era um escândalo para os judeus e uma loucura aos olhos dos gregos, que declaravam uma incompatibilidade irremediável entre estes dois extremos.

A resposta está em uma palavra: O amor. Um amor imenso, infinito, de Deus para com sua criatura, eis o que João apresenta como a única, porém grandiosa explicação dessa atitude de Deus para conosco, Jo 3.16.

Deus é amor, eis a verdade primordial expressada pelo apóstolo João. O amor de Deus é um amor Todo-Poderoso, podendo tudo o que quer, querendo tudo o que pode. Dentro desses dois princípios estabelecidos, todos os milagres de bondade são apenas a conseqüência e a simples expressão desse amor.

Era de se esperar que Deus, amando infinitamente, desse provas proporcionais à profundidade de seu amor e à infinidade de seu poder. E o que é próprio da onipotência de um Deus vai muito além da capacidade de nossa fraca inteligência.

O que é o amor senão o dom de si? Deus ama infinitamente, pois ele é o infinito; eis a explicação que João apresenta como o último limite do amor. E esse amor levou Jesus à obediência até a morte de cruz; ao derramamento de seu sangue até a última gota. Deus não quer que se possa dizer que alguém ama ainda mais do que ele.

Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos. (João 15.13)

O Evangelho é a manifestação do amor de Deus. O coração de Jesus Cristo, o coração sobre o qual o evangelista repousou, disse-lhe tudo. Foi ali, foi daquela altura que a águia mergulhou o olhar até o fundo dos mistérios sagrados.

Esta bela argumentação tinha além de tudo o poder de

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atingir as heresias até às raízes. Pois o que negava Cerinto, e por que o negava ele? E o que é que todas as heresias, todas as facções recusavam a compreender? Não era o poder de Deus nem a sua sabedoria. Era o seu amor, o mistério de sua bondade. O homem, amado por Deus, teima em não querer acreditar naquele amor. Cerinto, por exemplo, não queria admitir que o Deus infinito fosse o Deus criador.

Seu egoísmo não podia aceitar que o infinitamente grande pudesse amar bastante o infinitamente pequeno, amar os seres humanos a ponto de criá-los com suas mãos, lançando sobre Eles um reflexo de sua própria beleza e divindade. Repugnava-lhe admitir que o Cristo, o Filho de Deus, fosse ao mesmo tempo Jesus, o filho de Maria. Naquele coração pequeno não podia entrar a idéia que Deus pudesse amar a ponto de se tornar semelhante à criatura amada.

Enfim, aquele homem achava que a divindade havia se retirado de Jesus na hora da crucificação; a paixão era um escândalo para aquele judeu, uma loucura para a mente filosófica de Cerinto. Ele não compreendia que o amor de Jesus pudesse chegar a tal extremo de dar a sua vida por nós. Assim, o orgulho daquele sofista naufragou diante do mistério do amor de Deus.

Eis porque João, olhando de cima todas aquelas subtilezas daqueles homens sem coração, e indo diretamente ao centro da verdade, definiu Deus como sendo amor, e disse que o princípio de toda a fé é crer nele:

Jesus é o Coração eterno inclinando-se para nosso coração e comprazendo-se em nos alcançar e nos envolver com o seu imenso amor. Assim concebido, o Evangelho é invencível porque se apóia sobre o coração, e esse é imortal.

CAPÍTULO 16 - SUA PRIMEIRA EPÍSTOLA

Após escrever o seu Evangelho, João percebeu que era necessário torná-lo conhecido nas Igrejas cristãs; mais tarde João escreveu no Apocalipse:

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E vi outro anjo pelo meio do céu, e tinha o evangelho eterno, para o proclamar aos que habitam sobre a terra, e a toda nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo com grande voz: Temei a Deus e dai-lhe glória, porque é vinda a hora do seu juízo. E adorai aquele que fez o céu, e a terra, e o mar, e as fontes das águas. (Apocalipse 14.6-7)

Esta divulgação universal devia ser em breve a do Evangelho de João.

O apóstolo começou por endereçá-la aos fiéis da Ásia. Seu Evangelho dizia: No princípio era o Verbo... Sua 1ª. epístola faz alusão a isso, começando por estas palavras idênticas: O que foi desde o princípio, o Verbo da vida, vo-lo anunciamos.

Dirigida coletivamente a toda a cristandade, a Primeira Epístola não traz inscrição alguma nem saudação particular a esta ou aquela igreja. Aquele que a escreve nem se identifica. A data nem por isso deixa de estar implicitamente indicada em algumas linhas do segundo capítulo. Por aí se vê que naquela época, os primeiros evangelhos estavam nas mãos de todos: a fé estava sendo anunciada no universo inteiro, como o afirma o apóstolo Paulo. João escreveu seu Evangelho só para confirmá-la:

Eu vos escrevi, pais, porque já conhecestes aquele que é desde o princípio. Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus está em vós, e já vencestes o maligno. (1 João 2.14)

E vós tendes a unção do Santo, dizia João um pouco mais adiante, e sabeis tudo. (1 João 1.2-20)

Assim como no Evangelho, João apresenta-se em sua Primeira Epístola como a testemunha dos fatos, cuja história ele conta, e em termos enérgicos o declara:

O que era desde o princípio, o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da palavra da vida (porque a vida foi manifestada, e nós a vimos, e testificamos dela, e vos anunciamos a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada), o que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também tenhais comunhão

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conosco; e a nossa comunhão é com o pai e com o seu Filho Jesus Cristo. (1 João 1.1-3)

Ele empregou a mesma linguagem, o mesmo estilo, os mesmos pensamentos, as mesmas expressões tanto no evangelho quanto na carta. O pórtico e o templo são da mesma arquitetura, porque são da mesma mão e tiveram a mesma fonte de inspiração.

Só nos resta saber em que circunstâncias e contra que negações o livro foi escrito. João o revela, indicando o caráter apologético e demonstrativo de sua Primeira Epístola.

Havia os que negavam o Filho e sua divindade. Entre eles havia os que não consideravam as duas naturezas no Homem-Deus. Uns viam nele só a sua divindade, porém sem a humanidade, conforme faziam os docetos; outros consideravam só a humanidade sem a divindade, conforme faziam os gnósticos. Além do mais, quem eram os falsos profetas e os espíritos nos quais não se devia crer, senão os charlatães como Apolônio ou Simão o Mágico? João os denuncia claramente; só faltou declarar-lhes os nomes.

Em sua Primeira Epístola, João deixa bem claro que para compreender e seguir a verdade, é necessário ser puro e bom. O que impedia os fariseus de alcançarem a fé, era o fato de suas obras serem más; o pecado projetava sombra na inteligência deles. O que os impedia de ouvir o Mestre dos mestres era o fato de eles procurarem a glória dos homens de preferência à glória de Deus, e o orgulho lhes ter nublado o espírito. Para que o Evangelho penetre no mais íntimo do coração do homem, é necessário que encontre um solo desembaraçado de espinhos.

Por isso João escreveu:

Eu vos escrevi, jovens, porque sois fortes, e a palavra de Deus está em vós, e já vencestes o maligno. (1 João 2.14)

Tudo deve ser pureza com os discípulos do Cordeiro.

Para crer é necessário amar. Aquele que não ama não está na luz, não conhece a Deus, declara terminantemente o Discípulo João em sua Primeira Epístola. Ora, o que é o Evangelho senão o espelho ardente de um amor que só pode ser compreendido pelo amor? "Apresentai-me a um coração

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amoroso e ele sentirá o que digo", escrevia Agostinho.

E esta uma das condições da fé. Amar a Deus primeiramente e aspirar por ele como pela beleza, pelo amor e pela grandeza supremas. Em seguida amar os homens, ver neles os filhos desse Deus que reside no céu, para neles amar a Deus. Este é o caminho mais direito e o mais curto para se chegar à verdade. Entra-se na fé com a alma toda inteira; e foi com razão que alguém disse que "quem ama já creu em mais da metade".

Meus filhinhos, escrevia João, estas coisas vos escrevo para que não pequeis. Não era unicamente uma questão de doutrina que ele estava tratando em sua epístola; o que ele estava ensinando é que um dos frutos do Evangelho é a santidade. Não é bastante compreender e crer na verdade, é necessário principalmente "praticá-la", sob pena de cair na mentira e na hipocrisia:

E nisto sabemos que o conhecemos: se guardarmos o seu mandamento. Aquele que diz: Eu conheço-o e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade. Mas qualquer que guarda a sua palavra, o amor de Deus está nele verdadeiramente aperfeiçoado; nisto conhecemos que estamos nele. (João 2.3-6)

Toda a Primeira Epístola de João mantém-se nessas regiões puras de santidade divina e humana; divina na fonte, humana nos atos. E estes filhos de Deus, estes cristãos nascidos de novo, estes filhos do Evangelho têm por obrigação e princípio o de ser semelhantes a seu Pai, sendo santos como ele é santo.

Porém essa santidade não é impecabilidade. A Primeira Epístola explica que o Evangelho da justiça é também o da misericórdia. Foi para destruir as obras do diabo que o Filho de Deus se manifestou. Jesus veio a esta terra como o redentor dos homens, como a vítima da propiciação imolada pelos nossos pecados; não somente pelos nossos, mas pelos do mundo inteiro. O sangue de Jesus Cristo nos purifica de todo pecado. Se um de nós pecar, temos junto do Pai um advogado, Jesus Cristo.

Se confessarmos os nossos pecados, ele [Deus] é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça. (1 João 1.9)

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CAPÍTULO 17 - JOÃO NA ILHA DE PATMOS

Quando João tornou-se velho não escapou da grande tristeza de que são acometidos aqueles a quem Deus concede vida longa, que vêem desaparecer ao seu redor todos os seus amados, e que ficam a sós no mundo para deles dar o testemunho e perpetuar a lembrança. Paulo, mártir em Roma, havia terminado ali a sua carreira começada há trinta anos no caminho de Damasco. Pedro abraçara aquele grande companheiro no caminho do suplício, e no mesmo dia teve a honra de, por sua vez, subir à cruz de seu Mestre, no alto de uma colina de onde abençoara a cidade e o universo. Foi igualmente nos braços de uma cruz que André adormeceu o sono da morte de uma maneira digna do irmão do príncipe dos apóstolos. Depois de Tiago o Maior, depois de Tiago o Justo, Simão, o Zelote, ofereceu em Jerusalém o sacrifício de seu sangue.

Tomé terminou sua carreira nas Índias, depois de ter levado mais longe do que todos os outros a fé em Jesus que mais do que os outros lhe custara alcançar. Mais perto de João, na Frígia, Felipe teve um martírio glorioso. Assim, pouco a pouco haviam partido todos os irmãos, e o Senhor reconstituíra quase inteiramente no céu aquela família do Cenáculo.

Só restava um. Vendo a existência de João prolongar-se desse modo, os discípulos passaram a creditar que ele não morreria, e espalhou-se essa notícia entre eles, como o próprio João o declarou. Mas a vida para ele se tornara cheia de amarguras. Parecia que tinha vivido tanto tempo só para ver um imenso desastre mais inconsolável do que todos os outros: Jerusalém já não existia.

Depois de desolações que encheram de pasmo a história, Vespasiano e Tito tinham armado suas tendas na própria colina onde o discípulo vira um dia o Mestre chorar sobre a cidade culpada, que matava os profetas. A cidade estava em ruínas, o Templo era um montão de cinzas, e aqueles que puderam fugiram naqueles dias de muitas mortes e incêndio, dispersando-se pelo mundo. João foi informado de que, dos lugares onde

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vivera com Jesus e os outros apóstolos, nada mais existia.

Foi um golpe profundo para o seu coração. Mesmo que consideremos como nossa pátria o céu, no entanto o amor ao lugar onde vivemos na terra é um sentimento que fica enraizado em nosso coração até nosso último dia de vida. João lembrou-se das lágrimas que o Mestre havia derramado diante de Jerusalém, ao profetizar sua destruição, conforme registrou Lucas (19.41-44).

Houve um momento em que João pensou que havia chegado a sua hora. Domiciano reinava. Este imperador, chamado por Tertuliano de "a outra metade de Nero", era um homem medroso e feroz. Sua crueldade astuciosa, conforme a classifica o historiador Suetônio, alarmou-se com os avanços "daquela seita invasora", a religião cristã, que ameaçava predominar em todas as províncias do império romano. Com efeito, no seu reinado a fé transbordou até Roma.

Não era mais sobre os degraus do trono que o cristianismo se assentava; ele agora ameaça subir até para cima do trono. A linhagem Flávia, que dera um basta às guerras civis, e proporcionara doze anos de paz ao mundo antes de ter o desgosto de lhe dar Domiciano, continha cristãos em seu seio. Tito Flávio Clemente, primo irmão do Imperador, era cristão; e quando casou-se com sua prima Flávia Domitilla, encontrou-a já cristã ou converteu-a. Uma sobrinha de Domiciano, chamada também Flávia Domitilla, era cristã.

Esses cristãos de família nobre estiveram algum tempo nas boas graças do imperador. Apesar da humildade cristã de Tito Flávio Clemente ser vista pelos pagãos como moleza, Domiciano resolveu torná-lo cônsul ordinário e cônsul com o imperador, o que era honra dobrada. Enfim Domiciano também adotou os dois filhos menores de Clemente, nomeou-os seus herdeiros e deu-lhes o nome de Vespasiano e Domiciano.

Quando Domiciano morresse, aqueles dois filhos de Clemente, que também eram discípulos do Evangelho, subiriam ao trono, de que eram herdeiros, e, 60 anos apenas depois da morte ignominiosa daquele Chrestos — Cristo, conforme o chamara Suetônio, ainda estando vivo seu último apóstolo e amigo, seu culto chegaria sem maiores atropelos, regularmente, a dominar a capital do império do mundo e talvez João fosse

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chamado a vir somente pregar e celebrar cultos a Jesus Cristo na presença dos Césares! O inferno deve ter tremido diante de tal perigo. Domiciano o descobriu e imediatamente fez o sangue correr. Sangue de cristão. Sangue de mártires!

O cônsul Flávio Clemente, seu parente, teve a cabeça cortada. Flávia Domitilla, sobrinha do imperador, foi exilada para longe. Os dois príncipes desapareceram para não morrer. No dizer de Suetônio, todos os que eram ou pareciam ser cristãos, passaram a sofrer uma perseguição encarniçada.

Esta força crescente de Cristo tornara-se para Domiciano um motivo de terror. Segundo uma narrativa do historiador Hegesippo, Domiciano tinha feito comparecer à sua presença dois pobres cristãos da Judéia, netos do apóstolo Judas, e últimos descendentes da família de Jesus. Interrogados pelo imperador se eram descendentes de Davi, responderam que sim. - E que bens vocês possuem? - Temos, os dois juntos, um terreno de 100 metros, de onde retiramos o suficiente para viver e pagar o imposto. Após dizerem isto, aqueles descendentes de Davi mostraram as mãos calejadas pelo trabalho. Domiciano interrogou-os sobre o reinado de Cristo, o divino parente deles. Responderam que seu reinado não era deste mundo, e que Jesus só o inauguraria no dia em que voltasse sobre a terra para julgar os vivos e os mortos. Domiciano riu, fez pouco caso deles e os despediu concluindo que não passavam de dois pobres coitados.

Porém, logo Domiciano descobriu que a "seita dos cristãos" tinha outros líderes. Descobriu também que o último e o mais querido discípulo de Jesus ainda existia em Éfeso. Imediatamente Domiciano deu ordem para que João comparecesse à sua presença em Roma.

João é chamado à presença do imperador

Após ser interrogado por Domiciano e não negar a Cristo, dizem que João foi condenado primeiro a beber veneno em uma taça.

Em seguida ele foi condenado a ser mergulhado em uma caldeira fervendo. Esse gênero de suplício não era desconhecido, e a história dos mártires nos mostra vários cristãos sendo

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mergulhados em caldeiras. No centro de todas as termas, mesmo nos grandes banheiros particulares, havia uma grande bacia de formato circular chamada caldarium, rodeada de grades, dentro da qual estava colocado um reservatório de água incessantemente aquecida por chamas subterrâneas que lhe abrasavam os lados. "A temperatura dentro daquele reservatório era tão grande, diz Sêneca em uma de suas cartas, que poder-se-ia condenar a ser queimado vivo algum grande criminoso." Naquele dia, o grande criminoso era João!

A chegada de João em Roma no ano 92, nos confins do século apostólico de que ele era a última e augusta testemunha, é certamente um dos fatos mais importantes da história da Igreja. Era o fim daquela grandeza suprema da Igreja em sua primeira fase, a fase apostólica, já consolidada vinte e oito anos antes pelo sangue glorioso de Pedro e Paulo, que haviam sido executados naquela cidade. João, que havia partilhado com eles o apostolado, achava que ia agora partilhar o túmulo.

Naquela época principalmente, Roma estava cheia de judeus. Introduzida na cidade há quase dois séculos, a colônia judaica tinha-se espalhado em todas as regiões urbanas onde se dividia em várias tribos, diferindo entre si pelas opiniões e costumes.

Mas a opressão sob o jugo de Domiciano havia tornado todos os judeus iguais. Para qualquer lado que João olhasse, via imediatamente a imagem da escravidão de sua pátria. No centro da cidade feria-lhe a vista o arco do triunfo de Tito, erguido em memória da destruição de Jerusalém, debaixo do qual ainda hoje os judeus patriotas recusam-se passar. Bem perto, via-se o vasto anfiteatro dos Flávios, onde seus antigos irmãos judeus traba-lhavam acorrentados, e onde seus irmãos cristãos deviam em breve descer para testemunhar sua fidelidade a Cristo e morrer.

No entanto, aqueles mesmos homens que em breve seriam levados ao martírio eram o seu consolo diante da ruína irremediável da pátria, mostrando-lhe a jovem e grande pátria cristã que estava se erguendo mais próspera do que nunca. E seria o próprio João que lhes acenderia a esperança quanto à sobrevivência do Evangelho de Jesus Cristo através dele, João, a última e maior testemunha do Salvador. E por aí é fácil imaginar com que ardor o abraçaram aqueles herdeiros do Evangelho e futuros cidadãos do céu! À frente daquele rebanho estava o pas-

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tor Clemente. Ele havia seguido Paulo; Pedro deixara-o encarregado de seu rebanho; e ninguém mais apto do que aquele antigo filósofo para combater as seitas da filosofia que ele mesmo em pessoa praticara.

Clemente havia sido solidamente instruído no Evangelho, no tempo em que fora discípulo dos apóstolos.

Em torno dele estavam as melhores e maiores almas daquele lugar e daquele tempo. Com ele estava Hermas, que naquele mesmo ano acabara de redigir o seu livro O Pastor, do qual uma cópia havia sido enviada a Clemente, e onde estava escrito: "Eis que está próxima uma grande tribulação. Felizes daqueles que perseverarem e que não negarem sua fé! O Senhor jurou por seu Filho: Aquele que negar seu Filho será impedido para sempre de usufruir da vida eterna!”

Portanto, o exército dos santos estava em armas, mutilado mais invencível, quando seu líder mais antigo apareceu, o último veterano do grupo apostólico, que vinha encorajá-lo a novos combates. Eram os combates da fé, da verdade e da liberdade em Cristo contra a iniqüidade. "Aqueles cristãos, conforme observou um historiador antigo, velhos, meninos, mulheres e moças, que iam ser levados para os leões, eram as únicas criaturas que resistiam a uma tirania diante da qual tudo se curvava. Não conspiravam; deixavam-se ferir pelos donos do mundo, pela mão dos carrascos e dos soldados".

Obedeciam às leis tanto quanto lhes permitia a consciência, mas no dia em que lhes ordenavam negar a Cristo e queimar um grão de incenso diante da imagem do imperador, então, sem ódio, sem violência, fosse o imperador bom ou mau, recusavam-se, e o amor e a fidelidade a Jesus Cristo continuavam preservados.

Foi sem dúvida à divindade do imperador que ordenaram a João que ele sacrificasse. Naquele tempo, Domiciano acabava de deificar a si mesmo; tinha mandado colocar sua estátua nos santuários mais veneráveis;e ordenado que seus ministros o declarassem Deus; e milhares de animais passaram a ser imolados naqueles altares. Todo e qualquer escrito público, assim como qualquer discurso devia ter como cabeçalho as palavras: "Assim o ordena o nosso Senhor e Deus Domiciano". Diante daquele paralelo sacrílego entre o diabólico Domiciano e

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o divino Jesus, fácil é imaginar qual foi a resposta de João. O apóstolo negou-se a ajoelhar-se diante da estátua e a queimar-lhe incenso; foi condenado, e preparou-se, com o coração radiante, para uma morte que há muito ele esperava: morrer por não negar a fé no seu amado e grandioso Jesus.

O lugar tradicional da execução foi a Porta Latina, ou mais exatamente o espaço então livre mas que seria posteriormente ocupado pela porta que Marco Aurélio mandara construir, na extremidade oriental de Roma, na via Appia, e um pouco abaixo do monumento dos Cipiões. Perto dali Domiciano tinha sua vila imperial, onde mandara construir sua morada predileta, pedindo àquele belíssimo lugar o repouso da alma que não é concedido aos maus.

Historiadores dizem que o imperador em pessoa assistiu ao suplício. A morte de um homem era um espetáculo de que raramente Domiciano se privava, conta Suetônio. Além do mais ele, que achava prazer nas habilidosas prestidigitações de Apolônio de Tiana, talvez esperasse ver aquele sacerdote vindo do Oriente realizar algum milagre que divertisse por alguns momentos sua vida de tirano cheia de tédio.

Conta-se que o juiz começou por cortar os cabelos compridos que João usava à moda de Nazaré. A lei romana ordenava também que os condenados à morte fossem primeiramente chicoteados pelos carrascos. Só depois dessa flagelação é que eram executados. João havia sido condenado a ser mergulhado em um barril com azeite fervendo, ou simplesmente em água fervendo, conforme explica Gregório de Nisa.

Não teria sido a este banho que o divino Mestre se referira quando perguntara a João se ele poderia participar do batismo de suas dores? (Mateus 20.22)

Porém, para espanto dos ímpios e júbilo dos cristãos, João não morreu. Segundo a descrição de Clemente, "a caldeira ardente e fumegante tornou-se subitamente em suave orvalho." Todas as ordens do pretor, toda a cólera dos carrascos foi incapaz de fazer acender de novo a fornalha; e, como uma águia, João saiu do seio das chamas remoçado e renovado.

Isto ocorreu no ano 92, no décimo primeiro ano do reinado de Domiciano.

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Se para ganhar o céu só bastasse um dia, uma hora decisiva e um único esforço, nem que fosse um esforço supremo, sobre-humano, todos os santos responderiam que seria comprar a felicidade por um preço muito barato. Porém, assim como está determinado para alguns sofrer com paciência e na obscuridade; carregar sem murmúrio o peso dos muitos dias e anos comuns e iguais; beber o cálice, não de uma só vez, mas lentamente, gota a gota, com todo o seu amargor; e, quando se sentir consumido pelo ardor do combate, permanecer fiel no posto, isto também é ser provado.

João foi condenado a viver. Mas não ficou em Roma. Domiciano não suportaria saber que bem perto dele estava alguém que o superava espiritual e moralmente. Além do mais, todo réu poupado de morte era enviado para as fronteiras do império. João não voltou para Éfeso. Levaram-no exilado para a ilha de Patmos. Vamos segui-lo até lá.

João é exilado em Patmos

Seria difícil encontrar no arquipélago um rochedo mais triste e sombrio do que a ilha na qual João foi exilado. Quando se navegava do antigo porto de Éfeso pelo mar Egeu, a 100 Km desse porto avistava-se, como que saindo do seio das águas uma grande cadeia de rochedos vulcânicos, partida ao meio e ligada por um istmo estreito. Era a ilha de Patmos. Antes que o período que João passou exilado nela a tornasse imortal, ela era totalmente ignorada pelos geógrafos, cartógrafos e historiadores.

No entanto, havia ali uma civilização antiga, cujos vestígios podem ser vistos ainda hoje. Atualmente Patmos pertence à Grécia. Tem vinte e oito quilômetros quadrados e uma população de 2.720 habitantes (censo de 1990). No centro, no lugar mais estreito da ilha, numa profunda enseada protegida pelas montanhas, podem ser vistos ainda pedaços de colunas do mais puro mármore branco, fincados na praia, servindo para amarrar as canoas dos pescadores e as escunas dos mercadores vindos de Anatólia. Era ali o porto chamado Phora ou Pthora, onde João desembarcou. Perto do porto, nas primeiras encostas da montanha, foram encontrados despojos antigos: fragmentos de

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louça de barro, telhas velhas espalhadas nas pastagens, grandes blocos disformes de mármore, esculturas quase apagadas, adaptadas às muralhas de um recinto onde os pastores guardavam os rebanhos durante a noite.

Era isto que tinha restado das antigas construções de Patmos, onde antigamente uma população de doze a treze mil homens fazia o comércio com o Oriente, com a Grécia e as ilhas. No ponto mais alto da ilha, que os gregos chamam até hoje de "a montanha do castelo", vê-se ainda belas ruínas ciclópicas, e os primeiros alicerces de um antigo edifício que foi talvez um templo, torres abatidas e inúmeros fragmentos enterrados hoje sob espessas moitas. Ali tinha havido uma fortaleza, no centro da qual um rochedo talhado em forma de base semicircular devia ter tido outrora no seu cume um farol ou uma estátua. Junte-se ainda a estes monumentos destruídos um templo de Diana, e naquele templo, uma estátua consagrada a Hecate pela filha do médico Glauco, sacerdotisa de Artemis, e faremos uma idéia do que encontrou em Patmos o exilado de Domiciano, o apóstolo João.

Naquele tempo, as montanhas estavam cobertas de florestas, e hoje ainda se pode ver o leito dos rios que, descendo, refrescavam os vales. Hoje, uma torrente chamada Naro-Mili deixa correr, apenas no verão, um ligeiro fio d'água sobre um leito pedregoso. Algumas finas oliveiras, umas trinta amoreiras, outras tantas figueiras, raros limoeiros, pinheiros, alfarrobeiras, alguns carvalhos, e uns vinte ciprestes, substituem as antigas florestas.

Um antigo cristão que visitou a ilha 100 anos após a morte de João, assim a descreveu: "Patmos estava diante de mim banhada pelos primeiros raios da manhã. De vez em quando um tronco de oliveira quebrava a monotonia de uma paisagem semeada de numerosos rochedos... O mar estava calmo como um túmulo; e dir-se-ia que Patmos ali repousava como um navio adormecido no meio do mar... João é o pensamento que enche a ilha toda! Esta ilha pertence-lhe, é o seu santuário. Até as pedras falam dele; ele está vivo em todos os corações.”

Para ali foi conduzido o apóstolo a fim de sofrer a pena do degredo. Alguns antigos autores afirmam que João foi ali forçado a trabalhar nas minas.

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Porém, isso não o impediu de trabalhar pela salvação dos habitantes da ilha. As narrativas tradicionais que falam do apostolado de João na ilha do degredo mostram o apóstolo pregando, batizando, estabelecendo por toda a parte em torno de si o império do amor e da verdade. Todos os passos do homem de Deus deixaram marcas nas montanhas da ilha.

Pelas antigas narrativas conservadas sobre Patmos, vemos que as conversões multiplicaram-se, o rochedo viu florescer as mais belas virtudes, e ainda hoje Patmos considera seu maior título de glória ter tido a honra de conhecer o Evangelho dos próprios lábios de João. Deus, porém, reservara ao apóstolo que acabava de sacrificar-lhe tudo, uma consolação de ordem mais elevada. Desde o dia de sua eleição, João ouvira o Mestre anunciar a Natanael o que ele registrou no primeiro capítulo de seu Evangelho:

E disse-lhe: na verdade, na verdade vos digo que, daqui em diante, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subirem e descerem sobre o Filho do Homem. (João 1.51)

Essa promessa ia ser cumprida na vida de João ali em Patmos. Os mistérios do Apocalipse vão-se desenrolar diante de nossos olhos.

CAPÍTULO 18 - O APOCALIPSE DE JOÃO

Foi em Patmos que João teve a célebre visão do Apocalipse:

Ali estava a luz verdadeira, que alumia a todo o homem que vem ao mundo, estava no mundo, e o mundo foi feito por ele e o mundo não o conheceu. (João 1.9-10)

Era a voz solene das revelações divinas. Chegamos agora, portanto, ao ponto mais maravilhoso de nossa história. Foi ali que João viu o mistério do Reino dos céus.

A Revelação de Jesus Cristo. Tudo corresponde a esse belo título. Apesar de esse livro divino ser tão profundo, lendo-o, têm-se uma impressão tão suave e ao mesmo tempo tão grandiosa da majestade de Deus, aparecem ali idéias tão elevadas do

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mistério de Jesus Cristo, alcança-se um reconhecimento tão grande do que está reservado ao povo que Jesus resgatou com seu sangue, há imagens tão grandiosas de suas vitórias e de seu reinado eterno, que são capazes de arrebatar o céu e a terra.

Todas as belezas da Escritura estão espalhadas naquele livro. Tudo que se encontra de mais tocante, de mais vivo, de mais majestoso na lei e nos profetas, recebem nas páginas desse livro um novo brilho, e desfilam diante de nossos olhos para nos encher com as graças e consolações de todos os séculos... Se todos os homens inspirados por Deus tivessem reunido e trazido tudo o que têm de mais rico, de maior, não poderiam ter composto um quadro mais belo em que podemos imaginar a glória de Jesus Cristo como esse de Apocalipse; e podemos dizer que, para escrever este livro admirável, João recebeu a inspiração de todos os profetas.

Em suas páginas, temos a ventura de ouvir e ver agir Jesus Cristo ressuscitado. O Apocalipse é o Evangelho de Jesus Cristo ressuscitado, e mostra Jesus exercendo a onipotência que seu Pai lhe deu no céu e sobre a terra.

A alegria de ver e ouvir a seu Mestre glorioso foi para S. João o gozo antecipado do que ele ia alcançar no céu. Havia mais de quarenta anos que vivia unicamente por ele e para ele, mas vivia longe dele. O Senhor havia dito: "Eu quero que ele fique até que eu venha". (João 21.22). João havia ficado, João esperava sempre, mas o amigo não chegava. Que suplício! Aquele que mais amava o Mestre estava esperando mais do que os outros o dia em que teria a ventura de ver o Senhor face a face, tal qual ele é em sua Glória.

Mas Jesus o consolou. Paulo já tivera a ventura de ver o Mestre reinando gloriosamente no terceiro céu. Agora aquele céu abria-se para João. E ali ele reconheceu Jesus! Era o Cristo! Que glória! Que alegria poder contemplá-lo. Não era mais o supliciado, era o Príncipe, o Rei da Glória. A descrição que João faz do Senhor Jesus é inigualável:

E virei-me para ver quem falava comigo. E, virando-me, vi sete castiçais de ouro; e, no meio dos sete castiçais, um semelhante ao Filho do Homem vestido até aos pés de uma veste comprida e cingido pelo peito com um cinto de ouro. E a sua cabeça e cabelos

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eram brancos como lã branca, como a neve, e os olhos, como chama de fogo; e os seus pés, semelhantes a latão reluzentes, como se tivesse sido refinado numa fornalha; e a sua voz, como a voz de muitas águas. E ele tinha na sua destra sete estrelas; e da sua boca saía uma aguda espada de dois fios; e o seu rosto era como o sol, quando na sua força resplan-dece. E eu, quando o vi, caí aos seus pés como morto; e ele pôs sobre mim a sua destra, dizendo-me: Não temas; eu sou o Primeiro e o Ultimo e o que vive; fui morto, mas eis aqui estou vivo para todo o sempre. Amém! E tenho as chaves da morte e do inferno. (Apocalipse 1.12-18)

A face de Jesus cintilava como o brilho do sol do meio dia; beleza sempre antiga e sempre nova, alfa e ômega, princípio e fim. Só a eternidade será capaz de nos dar uma idéia da alegria que foi para João poder ver outra vez o rosto do Senhor amado, o único digno de ser amado. Aquele que João vira morrer numa cruz mostrava-se agora triunfante em seu Reino dos céus:

O Apocalipse é ainda, em muitos lugares, um livro fechado com sete selos; contém tantos mistérios quantas palavras, e por muito tempo ainda estes mistérios serão motivo de discussão entre os doutores e os teólogos. João teve a visão do Apocalipse no momento em que a estrela de Roma parecia lançar o seu maior brilho. Nenhum olhar mortal podia avistar Alarico e seus bárbaros, que futuramente atacariam Roma; João os vê.

O profeta deixou longe, atrás de si, os dois maiores historiadores romanos, dos quais um deles já morrera e o outro se elevava à uma reputação sem igual! Tito Lívio contara o passado de sua pátria celebrando-lhe as glórias; Tácito pintava o século presente desvendando-lhe os vícios. Maior do que ambos, João, o exilado de Patmos, era o historiador do futuro; e de seu rochedo solitário, lançando contra a Roma de Domiciano sentenças incontestáveis, ele anunciava o fim da "cidade eter-na".

Aquela moderna Babilônia, aquela cidade que erguia suas sete colunas ilustres, como sete cabeças soberbas, aquela mãe cheia de impurezas e de luxúria, revestida de púrpura como convém às rainhas, trazendo escrito na fronte um nome misterioso, rica pelo ouro do mundo, coberta de pedrarias,

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segurando a taça da orgia, embriagada com o sangue dos mártires e dos santos, enfim, a grande cidade que possuía o império dos reis da terra, não havia dúvida que era mesmo Roma; é a história lamentável de sua queda que o exilado de Patmos havia profetizado quando, três séculos antes, bradara com força:

E outro anjo seguiu, dizendo: Caiu! Caiu Babilônia, aquela grande cidade que a todas as nações deu a beber do vinho da ira da sua prostituição! (Apocalipse 14.8)

Os visigodos encarregam-se de cumprir à risca a profecia de João. Durante a destruição de Roma, houve cristãos que, horrorizados com os pecados e temendo as desgraças daquela Roma infiel, saíram de suas casas e embarcaram em navios de onde puderam ver as chamas que devoravam as casas da cidade maldita. Uns fugiram para a África, e ali acharam Agostinho, que meditava sobre o livro A Cidade de Deus. Este livro não era senão a história do cumprimento de Apocalipse, e o de-senvolvimento eloqüente da política divina.

Outros refugiaram-se junto de Jerônimo que, escondido e orando em sua gruta de Belém, comentava as lúgubres Visões de Ezequiel. Ouvindo-os contar os desastres da pátria, Jerônimo recordou-se das palavras do apóstolo inspirado, e, deixando de lado seu profeta, exclamou como o anjo do Apocalipse: "Está consumado! Babilônia caiu; tomaram Roma, saquearam-na, está destruída pelo fogo e tornou-se a sepultura de seus próprios filhos. A luz paga do universo apagou-se, a cabeça do império foi cortada; foi o mundo inteiro que acabou com uma cidade.”

Em Apocalipse João também profetizou a ruína do império de Satanás, e o verdadeiro estabelecimento do reinado de Jesus Cristo e de sua Igreja.

Jesus havia dito:

Agora, é o juízo deste mundo; agora, será expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. (João 12.31-32)

O cumprimento daquela palavra do Senhor Jesus, tão cuidadosamente anotada por João, é o assunto inteiro do Apocalipse. Vêem-se ali os combates do demônio e de seus anjos

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contra a Igreja recente. Mas seus esforços serão inúteis, seus ardis descobertos; o dragão será acorrentado, o príncipe deste mundo será vencido; o demônio e a Besta, assim como o falso profeta, serão lançados num lago de fogo e de enxofre, para serem atormentados pelos séculos dos séculos. (Apocalipse 20.10)

Mas o triunfo supremo da Igreja não é deste mundo. Numa última parte do livro são desvendadas as glórias da eternidade depois das glórias do tempo. Pela terceira vez abriu-se o céu para João. Não se tratava mais da Igreja da Ásia nem do império romano: o último ato do drama da história humana se desenrolará no seio de Deus:

E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles e será o seu Deus. E Deus limpará de seus olhos toda lágrima e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor, porque já as primeiras coisas são passadas. E o que estava sentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E disse-me: Escreve, porque estas palavras são verdadeiras e fiéis, e disse-me mais:

Está cumprido; Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim. A quem quer que tiver sede, de graça lhe darei da fonte da água da vida. Quem vencer herdará todas as coisas, e eu serei seu Deus, e ele será meu filho. (Apocalipse 21.1-7)

A nova Jerusalém levanta-se do deserto, brilhante de claridade; o Rio da Vida ali corre, puro como o cristal; enquanto aqui embaixo andamos ao encontro da morte, a árvore da vida dá sombra às nações que ela alimenta com sua vida que renasce sem cessar. Não há mais noites nem mais trevas: o próprio sol não tem função nenhuma naquele lugar de imortal esplendor, que o próprio Deus enche de luz e do qual é ele o centro. E o esplendor da beleza radiante, da pureza sem mácula; nada

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manchado poderia entrar naquele lugar, onde não há espaço para o mal. O tempo já não existe, e o reino dos salvos não terá fim.

A visão de João fez desaparecer tudo o que antes se dissera sobre a vida eterna. Havia quatro mil anos que sonhávamos com o céu. Todos os olhares para lá se erguiam; mas não o podendo ver, os homens formaram juízos incompletos, muitas vezes errôneos:

Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem são as que Deus preparou para os que o amam. (1 Coríntios 2.9)

Porém o Apocalipse revelou esta plenitude perfeita onde o homem e Deus se encontrarão numa convivência indissolúvel e eterna.

O verdadeiro céu, o céu descrito por João, abrir-se-á aos maiores e aos mais numerosos vencedores; ali as coroas serão o prêmio da santidade. Até agora as paixões, as rivalidades e, portanto, os sofrimentos da terra seguiam as almas pagãs em seu triste céu; porém, aos corações, que se dessedentam nas fontes perenes do Cordeiro e de Deus, nada os entristece. Lá não penetra nem a morte nem a separação, e o amor de Deus por seus filhos que reinarão com ele durará tanto quanto Deus durar.

Assim será a beleza, a unidade, a imensidade, a eternidade da morada viva que a Escritura chama de a Jerusalém celestial. Ela brilha com a luz do Cordeiro, conforme comenta João. Jesus é este Cordeiro imolado desde o princípio do mundo. Outrora o cordeiro era a vítima figurada que os judeus comiam no banquete da Páscoa. Depois ele passou a ser aquele Cordeiro que João encontrou nas margens do Jordão. No céu ele será o Cordeiro glorificado, triunfando no altar eterno onde o cantam todas as línguas.

Depois desta visão João não se demorou muito na ilha de Patmos. Notícias vindas de Roma o informaram de que Domiciano acabava de expiar seus crimes a 15 de Setembro do ano de 96. Soube-se ao mesmo tempo da exaltação de Nerva como novo imperador, do qual um dos primeiros atos foi chamar os banidos, os condenados por causa de impiedade.

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João deixou Patmos. Disse adeus aos habitantes da ilha que muito o amavam, e voltou para Éfeso. Estivera ausente daquela cidade, exilado, durante dois anos.

CAPÍTULO 19 - O RETORNO DE JOÃO A ÉFESO

A morte de Timóteo

Foi no ano de 97 que o apóstolo pôde tornar a ver a Igreja de Éfeso, onde todos esperavam a felicidade e o benefício de sua volta. Aquela comunidade cristã acabava de sofrer um grande desgosto. Naquele mesmo ano morrera gloriosamente o pastor Timóteo, o discípulo de Paulo e companheiro de João. O apóstolo, que deixara "aquele bom soldado de Cristo" no mais terrível combate contra a heresia e a idolatria, não ignorava o perigo que ele corria. De sua ilha solitária, João vira e denunciara, no Apocalipse, as abominações e o que era o pior dos contágios para o rebanho: o da volúpia. Porém, elogiando as grandes obras, o trabalho e a paciência do anjo de Éfeso, João falou dos males que ele havia de suportar pelo nome de Jesus Cristo, e previa que contra ele fariam represálias mortais.

Não se enganava. Logo depois dos terremotos que a sacudiram até os alicerces, viu-se a louca cidade de Éfeso entreter-se, sobre os túmulos recém-fechados e as ruínas ainda fumegantes, com as pompas orgíacas de sua deusa e de seus deuses. A mais célebre daquelas festas era uma passeata anual, chamada Catagógia, espécie de bacanal que lembrava os mais monstruosos excessos de Biblos e de Corinto. Ali se via uma multidão, ébria de vinho e de lascívia, armada de pedaços de paus, levando as imagens de seus deuses, lambuzada ou mascarada, percorrendo os principais quarteirões da cidade, cantando versos obscenos, atacando imprudentemente os homens e as mulheres, sem poupar violências, muitas vezes mortais que o culto da divindade justificava.

Continuavam a misturar a esses gritos delirantes injúrias grosseiras contra Jesus Cristo e os cristãos. Timóteo não podia admitir semelhantes ultrajes, e, indignado, não lhe sendo possível mais conter-se, dizem as Atas de seu martírio que ele

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atirou-se corajosamente á frente daquele ímpio cortejo, protestando, em nome de Jesus Cristo, contra aquelas blasfêmias. Isto era o mesmo que entregar-se à morte. Sua atitude enfureceu o cortejo de devassos. Derrubaram-no a pedradas, e depois o pisotearam. Não era preciso tanto para acabar com um homem de constituição fraca e que desde a muito levava uma vida muito difícil.

Timóteo obteve a coroa da vida eterna. Ainda respirava quando seus discípulos o levaram à montanha próxima, onde ele expirou no meio das orações deles. Isto ocorreu no começo do ano de 97, segundo ano do reinado de Nerva.

Porém bastou a chegada de João para consolar todas aquelas tristezas. Toda a Ásia cristã comoveu-se com sua volta. Uma vez livre, ele não tardou em recomeçar a carreira de apóstolo naquela região, feliz por todos reconhecerem nele o confessor e o quase mártir da fé que vinha pregar. A antigüidade conservou a lembrança da obra missionária de João no seio da cristandade. Ele pregava, orientava, orava pelos enfermos, es-crevia epístolas, visitava as igrejas, uma após outra, combatendo os erros, corrigindo os costumes, fortalecendo os fracos, falando em toda parte sobre o Senhor com quem ele convivera e com quem esperava se encontrar na Glória a qualquer momento.

Foi nesta última época da vida de João que ele escreveu as suas duas últimas epístolas canônicas.

A primeira delas é dirigida "à eleita". Alguns acham que este seria o título coletivo de uma igreja. Outros acham que João teria dirigido esta carta a uma cristã caridosa, conforme tudo dá a entender. Essa senhora tinha filhos (v.1) e sobrinhos (v.13)

Numa epístola dirigida a uma família, todas as famílias podem achar a regra de seus deveres.

A carta faz lembrar pela linguagem e pela doutrina a primeira epístola de João. O apóstolo dá a si mesmo o nome de velho, de ancião ou sacerdote, conforme o significado desses nomes em grego. Além disso, as freqüentes repetições dentro desta cartinha revelam que foi escrita por alguém naquela idade suprema da vida, que tudo reduz à unidade de uma idéia soberana que se deve sempre repetir. Para João o amor é a última palavra de tudo.

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Já vimos aparecer nesta história o nome de Gaio. Três personagens têm este nome nos documentos da história da igreja. Um era da Macedônia; o outro era da cidade de Derbe. Mas este de quem vamos tratar é Gaio, o coríntio, citado duas vezes por Paulo em suas epístolãs. (Romanos 16.23; 1 Coríntios 1.14)

Gaio distinguia-se por sua caridade que o tornava abençoado nas novas igrejas da Ásia Menor. Sua hospitalidade regozijava o coração de todos os irmãos. Naquela terra ser hospitaleiro não era novidade. Herodoto e Homero a haviam louvado. Mas o cristianismo, restabelecendo-a, a elevara à uma dignidade sobre-humana, fazendo ver no hóspede a própria imagem de Deus. Paulo já havia escrito em Romanos 12.13:

Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade.

E o autor da carta aos Hebreus reforçara: Não vos esqueçais da hospitalidade, porque, por ela, alguns, não o sabendo, hospedaram anjos. Tiago o Menor, dirigindo a Ásia a sua epístola universal, onde transpira a alma ardente do amigo de João, disse:

Meus irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas. Porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com vestes preciosas, e entrar também algum pobre com sórdida vestimenta, e atentardes para o que traz a veste preciosa e lhe disserdes: assenta-te tu aqui, num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé ou assentado abaixo do meu estrado, porventura não fizeste distin-ção dentro de vós mesmos e não vos fizestes juizes de maus pensamentos? Ouvi, meus amados irmãos. Porventura, não escolheu Deus aos pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que amam? (Tiago 2.1-5)

O amor e a hospitalidade de Gaio eram exercidos especialmente com os missionários que iam espalhar bem longe a verdade cristã. A maior parte — diz Eusébio — dos discípulos apostólicos, tendo distribuído seus bens aos pobres, iam aos países longínquos pregar o Evangelho de Jesus. Ali fundavam

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igrejas, instalavam pastores, e o povo, escutando suas palavras, abraçava o culto do verdadeiro Deus.

Tendo recebido gratuitamente, esses pobres de Jesus Cristo queriam dar gratuitamente. Por isso a hospitalidade proporcionava aos pregadores, de distância em distância, tetos hospitaleiros onde achavam abrigo, assistência e alimento. Em nada eles queriam ser pesados aos pagãos, de quem a igreja só queria ganhar as almas.

João soube que assim era a casa de Gaio, o coríntio. A terceira de suas epístolas foi escrita com o fim de felicitá-lo.

Mas o inimigo esforçava-se por semear o joio naquelas igrejas recém-fundadas. O final da Terceira Epístola de João denunciava com tristeza um foco de discórdia na Igreja onde Gaio praticava suas virtudes. Um tal Diótrefes ali lançara a desordem por ambição. Aquele "filho de Júpiter", conforme significava o seu nome, rebelde à autoridade do venerável apóstolo, não o poupava em suas pregações. Recusava-se ao dever da hospitalidade, agindo mesmo contra os que recebiam os irmãos e ousando até expulsá-los da igreja. Aquele era o primeiro e triste exemplo do farisaísmo egoísta e duro, preocupado com a prepotência, subordinando tudo a si, e parecendo ignorar que consagrar-se a Deus equivalia a dedicar-se aos homens.

Beda e os intérpretes mais autorizados dizem que foi em Corinto que existiu a residência de Gaio e o foco da dissidência denunciada por João. Naquela época Clemente Romano também escreveu sobre o caso ocorrido em Corinto, para cuja igreja João havia enviado sua carta: "Soprou a revolta e dali saíram as invejas, as discórdias, o tumulto, as lutas, o avassalamento. Os pequenos se levantaram contra os grandes; os de baixa esfera levantaram-se contra os homens de dignidade; os ignorantes contra os sábios; os moços contra os velhos. A dignidade pastoral foi disputada. Os apóstolos o haviam predito; mas saibamos respeitar os líderes que eles próprios escolheram. Por que dilacerarmos os membros do Senhor?”

O apóstolo concluiu sua Terceira Epístola com um elogio a Demétrio, outro cristão fiel e hospitaleiro.

Depois, como tinha feito com a eleita, ele promete vir:

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Espero, porém, ver-te brevemente, e falaremos de boca a boca. (3 João 14)

CAPÍTULO 20 - A ESCOLA DE JOÃO

Sua morte

João, o amigo mais próximo de Jesus, tornara-se a luz da Ásia. "Convinha — escreveu um grande estudioso do passado — que a Igreja tivesse em algum lugar um facho resplandecente que permanecesse aceso e esclarecesse as dúvidas dos fiéis, até a Igreja tomar sua forma definitiva e adquirir sua total consistência. João foi essa luz. Ele brilhou como a lua naquelas noites de profundas trevas, funcionando como o satélite do Sol da Justiça".

Graças à sua permanência prolongada e luminosa no centro da Igreja do primeiro século, João pôde reunir um grupo de discípulos que ouviram sua pregação, viram seu inflexível e agudo exemplo e tomaram posse da unção que ele colocara sobre cada um. Foram esses homens que transmitiram a mensagem do Evangelho às longínquas cidades do Oriente e do Ocidente.

Eles formaram o que se chamou de a escola de João. Essa escola era numerosa. Os nomes de muitos dos que a freqüentaram são hoje desconhecidos. Só a eternidade os revelará. Porém, outros se tornaram conhecidos pelo brilho de suas virtudes, de sua pregação e de suas obras. O ministério desses discípulos lançou sobre o mundo uma intensa luz, como reflexo da luz que João recebera daquele que um dia dissera:

Eu sou a luz do mundo. (João 8.12)

A história desses discípulos lançou uma última luz como reflexo de tudo o que eles haviam aprendido com o velho apóstolo.

Inácio e Policarpo ocupam um lugar de destaque nesta escola.

Inácio tornou-se o mais conhecido de todos. Alguns

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historiadores supõem que ele tenha sido o menino que o Senhor colocara no meio dos apóstolos, dizendo-lhes : "Portanto, aquele que se tornar humilde como este menino, esse é o maior no reino dos céus", Mateus 18.4. Vamos encontrá-lo agora bispo de Antioquia, seguindo os passos de João, e recebendo a doutrina e direção diretamente do apóstolo.

Antioquia era na Ásia a rival de Éfeso. A beleza de seus edifícios, sua numerosa população, seu extenso comércio, o gosto e o culto das artes faziam-na a terceira cidade do império. Era também a cidade de costumes dissolutos e prazeres infames, velados pelas sombras dos bosques de Dafne, que celebravam as festas de Astarté e os mistérios de Adônis.

Os últimos amigos de João

Deus, que é especialista em realizar milagres, escolhera aquela cidade perversa para torná-la uma metrópole da fé. Os fiéis se haviam multiplicado mais do que em qualquer outra cidade da Ásia, e pela primeira vez tinham tomado o nome de cristãos. Inácio, uma vez bispo, dera ao culto cristão um brilho que atraíra os próprios gregos, porém compatível com a simplicidade dos próprios princípios cristãos. Conta-se que Inácio, transportado certa vez por uma visão ao seio das melodias dos anjos, ensinou depois à Igreja de Antioquia essa música celeste. Começaram então a ressoar os hinos puros nos lugares desonrados pelas canções delirantes das sacerdotisas sírias.

Se não nos é possível hoje saber os assuntos que foram tratados nas freqüentes conversas de Inácio com João, ao menos as lições do apóstolo deixaram nas cartas autênticas do mártir sinais evidentes. São impressões inflamadas de zelo, amor e fé.

Não é somente a doutrina de João que transborda nas cartas de Inácio às Igrejas da Ásia, mas também seu amor a Deus. Estas Igrejas são as mesmas onde João espalhou a unção de Jesus Cristo: Éfeso, Esmirna, Magnésia, Trales, Filadélfia, a própria Roma. Inácio, tal qual o apóstolo João, foi levado a Roma para ali sofrer o martírio. Foi acorrentado; dez soldados, que ele chamava de dez leopardos, torturavam-no dia e noite. Assim ele

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foi arrastado até o pretório de Trajano. Mas a esperança da morte consolava-o de tudo. "Agora é que comecei a ser um verdadeiro discípulo, dizia ele; meu espírito agora vai ao encontro daquele que morreu na cruz.”

Inácio queria ser moído pelos dentes das feras, como o trigo, a fim de se tornar o pão de Jesus Cristo. Ele comparava a sua morte à um pôr do sol que precede o raiar maravilhoso de um dia divino. Este lindo dia raiou para Inácio. Suas últimas palavras foram: "O ferro e a cruz, os ossos quebrados, a violência dos animais ferozes, os membros partidos e todo corpo espedaçado, sofra eu todos estes males, contanto que alcance a Morada do meu Senhor".

Inácio encontrou-se no glorioso caminho que o levava ao martírio com um outro discípulo de João, Policarpo de Esmirna. A ele João havia dito: "Permanece firme em Deus como sobre um rochedo. Vela como um atleta de Deus. O prêmio do combate é a incorruptibilidade e a imortalidade. Fica firme na verdade como a bigorna que se bate. A prova de um grande atleta é ser batido e vencer". Por sua vez, Policarpo dizia aos filipenses: "Recebestes de Inácio este modelo de fidelidade, carregado de correntes sagradas, que são os diamantes dos verdadeiros eleitos de Deus.”

Esmirna e Éfeso eram vizinhos. Policarpo foi discípulo assíduo de João, e, segundo Irineu, guardou a lembrança de seus ensinamentos durante toda a sua vida.

Inácio, passando por Ermirna, viu Policarpo e abraçou santamente aquele irmão que não devia tardar a segui-lo no martírio. "Assim possamos nos reunir um dia em Deus!" Polycarpo foi fiel ao encontro. Sabe-se que Marco Aurélio, não podendo obrigá-lo a blasfemar contra o Deus a quem ele servira há oitenta e seis anos, condenou-o às chamas. Papias, bispo de Hierápolis também é incluído entre os discípulos de João. Papias não foi só discípulo do apóstolo, como também escreveu o que João lhe ditou; serviu de secretário na composição do Quarto Evangelho.

Papias era eloqüente. Tinha aquela beleza de estilo e de palavra que é um dom do gênio grego, e que fazia Jerônimo desesperar de fazer uma tradução latina digna dos escritos de Papias.

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Essencialmente curioso dos fatos da tradição, chegado aos fins do século apostólico, e como um dos últimos ecos da testemunha contemporânea de Jesus Cristo, Papias, não satisfeito com o que soubera através de João, seu primeiro mestre, informou-se também junto daqueles que tinham ouvido a palavra dos apóstolos, apanhando assim "as migalhas da mesa dos Evangelhos". Cinco livros, que ele chamou Exposição das Palavras do Senhor Jesus Cristo, foram os frutos dessas pesquisas. Deles quase nada nos restou. Cristo não quis deixar viver outra exposição de sua palavra a não ser a dos quatro evangelistas.

Irineu leva a mesma herança à terra da Gália. Nascido cerca de vinte anos depois da morte do apóstolo João, ele se tornará o vínculo entre os tempos apostólicos e o período de propagação do Evangelho. Repetirá tudo o que aprendeu com Policarpo, discípulo de João. Eis a carta que ele escreveu a um discípulo de Policarpo, Florino:

"Eu te vi na minha mocidade na Ásia Menor, junto de Policarpo. Como então procuravas a sua aprovação! Lembro-me daqueles tempos antigos melhor do que da hora atual; porque as experiências que adquirimos na infância crescem com nossa alma, identificadas com ela. Poderia dizer o lugar onde se assentava o bem-aventurado Policarpo quando nos ensinava, seus hábitos, seus gestos, suas pregações ao povo. Contava-nos como vivera com João e com os outros discípulos, que tinham visto o Senhor. Lembrava-se de suas palavras, de tudo que guardara com relação a Cristo, seus milagres, sua doutrina. Policarpo contava tudo isto conforme as Escrituras, tendo-o ouvido daqueles que haviam visto o Senhor com seus próprios olhos, o Verbo da vida. E, pela misericórdia de Deus, eu tudo ouvia com atenção, não o anotando no papel, mas gravando em meu coração; e por esta mesma misericórdia lembro-me e o medito constantemente.”

O impacto do cristianismo

Naquela época, graças à influência do Evangelho, o amor do homem para com o homem penetrara os espíritos. Um filósofo como Sêneca falava em amar o gênero humano. Plínio, o

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jovem, um advogado, começava a colocar o dever acima da pátria. Epíteto pregava a primitiva e grande unidade de todos os homens em uma só família, tendo Deus como pai. O gênero austero de Juvenal se enternecia para nos dizer (grande novidade!) que, se temos uma alma, era para nos amarmos muito uns aos outros. Crisóstomo nos dizia que "todos os homens formavam juntos uma mesma cidade, uma comunidade de irmãos debaixo da autoridade de Deus." Ora, cada um desses filósofos, escritores, oradores — e isto está provado — tinham visto os cristãos de perto. Um sopro do Evangelho tinha passado sobre aqueles espíritos, mesmo os mais severos.

Uma revolução análoga passava a ser vista nos costumes. A vingança, que tinha sido a delícia das almas magnânimas, foi tratada por Juvenal como volúpia dos corações fracos e dos espíritos estreitos. No terreno social, o escravo estava se tornando um homem livre; o cativeiro abrandara-se e eis que, pela primeira vez, discutia-se sobre a liberdade. Pensava-se nos operários, honrava-se o trabalho, incentivava-se a honestidade conjugai, e os príncipes ocupavam-se em fundar orfanatos para as crianças. Era o triunfo de Cristo.

O Evangelho chegava publicamente ao mundo. Do Cenáculo à rua, da loja à escola, do cubículo do escravo ao quarto do seu senhor, da casa ao foro, do foro ao senado. A Palavra de Deus subia até o Palácio imperial, onde chegava muitas vezes mutilada e inexata; mas chegava.

Agora João podia morrer. Último guardião do testamento de Jesus, ele via agora despontar a exaltação da mensagem de amor e salvação que o Mestre amado pregara ao mundo.

Um de seus discípulos conta que João, não podendo, por causa da idade avançada, ir à assembléia dos santos, fazia-se carregar, e ali não cessava de repetir estas palavras:

"Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros." Desejariam que ele dissesse alguma coisa mais, porém ele voltava sempre ao seu discurso: "Amai-vos uns aos outros. É o mandamento do Senhor; se o cumprirdes, nada mais é preciso.”

A morte de João foi suave e sem dor. Finalmente o Senhor viera buscá-lo para que ele ficasse eternamente junto do Mestre e de todos os demais que haviam partido antes dele. Era o ano 104 da Era Cristã, o 7º. do reinado de Trajano. João estava com

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100 anos de idade. Foi sepultado em Éfeso.

Uma última visita a Patmos

Diante da costa da Jônia, outrora tão célebre por suas riquezas e hoje pelas ruínas de tantas cidades importantes — Mileto, Prieno, Éfeso — vê-se um grupo de ilhotas, de rochedos quase sem nome, na maior parte desertos, espalhados no mar Egeu, entre Cós e Samos. Dentre estas pequenas ilhas uma se tornou célebre: é Patmos.

A única maneira de ir-se a Patmos hoje é sempre a mesma desde os tempos do apóstolo João. Aluga-se em Micom, antigo porto onde ficava Éfeso, uma pequena embarcação mais ou menos coberta, tripulada por quatro ou cinco homens, e corajosamente o viajante se entrega aos perigos de uma travessia que pode durar até seis horas.

A ilha de Patmos é apenas um ponto perdido no mar imenso. Nela se destacam grandes rochas negras amontoadas, inteiramente estéreis. Na praia e nos vales internos, apesar de desprovidos de arvoredo, vê-se algum verdor. Mas aquele verdor não é produzido pelas pastagens ou pelas muitas árvores que outrora existiam ali, e sim pelas inúteis samambaias que nascem espontaneamente. O que se vê mais? Apertadas umas contra ou-tras, mil e duzentas casinhas mostram seus terraços de uma brancura deslumbrante, onde mulheres e crianças conversam e brincam. Mais para o interior da ilha vêem-se pequenas cabanas de pastores construídas com galhos de pinheiro, estábulos cobertos com palhas de coqueiro dentro dos quais pastam carneiros magros, cinqüenta barcas ancoradas no porto silencioso — eis toda a ilha de Patmos em sua austera pobreza.

Mas levantemos os olhos. Foi aqui que um homem chamado João teve as mais extraordinárias visões que um ser humano já teve. Fitemos além dessa terra árida e desses sinistros rochedos. Que esplendor! Que luz! Quantas ilhas, quantos continentes alcançados pelo Evangelho que ele escreveu, por suas cartas, pelo livro de Apocalipse! Quantas multidões de almas alcançarão a eternidade com Deus graças ao que semeou o exilado de Patmos! Quantas vozes estarão louvando ao Senhor “juntas

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como a areia da praia" naquele mar sem limites da eternidade, por terem sido alcançadas por alguma dessas sementes!

Uma névoa diáfana, mas que não tira dos objetos a sua nitidez, une todos os contornos daquela paisagem e mistura uniformemente aquele céu, aquele mar, aquelas ilhas. O céu é azul, o mar é azul, as ilhas são azuis. Porém às vezes as ilhas tornam-se vaporosas, Patmos mostra-se sombria, o mar torna-se escuro, e no horizonte o céu claro torna-se pálido, quase cinzento. Ali João, o apóstolo do amor, o exilado por ter permanecido fiel a Jesus Cristo, teve suas visões apocalípticas. Ali ele ouviu a voz de Deus. Ali ele viu os céus abertos.

* * *

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CANTO SOBRE AS ÁGUAS DA ILHA

José Santiago Naud

Eu, poeta, profeta, biógrafo de Jesus Cristo, João,

Quero dizer aos homens

Como o mar se espraia na ilha

E é linda a moldura do céu sobre os rochedos.

Eu, solitário, homem hebreu, peregrino, Boanerges,

Quero contar às mulheres

Como o trovão é doce

E é delícia o caminho que o raio traça nos céus.

Eu, habitante de Patmos, homem ancião, vidente, Apóstolo,

Quero suplicar às crianças,

Como as crianças são,

E pedir-lhes a conservação de sua humildade sem véus.

Eu que sou todos, dentro do Amor que sofro,

E sou sábio, sob a luz do Paracleto,

E sou santo, pelo sangue de Cristo,

Quero dizer que não vos desespereis,

Homens de rede sem peixe,

E que compreendais o vento, navegantes sem rumo,

E que vos perdôo, doentes, ao me arrancardes da ilha,

Para que gema convosco.

Eu, João Boanerges, Apóstolo,

Biógrafo de Jesus Cristo.