Rodrigode Mudrovitsch - Desentrincheiramento da Jurisdição Constitucional

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  • 7/24/2019 Rodrigode Mudrovitsch - Desentrincheiramento da Jurisdio Constitucional

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    Universidade de Braslia UnB

    Faculdade de DireitoCurso de Mestrado

    DESENTRINCHEIRAMENTO DA JURISDIO CONSTITUCIONAL

    Autor: Rodrigo de Bittencourt MudrovitschOrientador: Professor Dr. Gilmar Ferreira Mendes

    Dissertao de mestrado em Direito.

    Maro

    2013

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    Dissertao apresentada Faculdade de Direito da Universidade de Braslia como

    requisito para a obteno do Grau de Mestre em Direito.

    Orientador: Professor Dr. Gilmar Ferreira Mendes

    Composio da Banca:

    Professor Dr. Gilmar Ferreira Mendes (orientador) Universidade de Braslia

    Professor Titular Marcelo Neves Universidade de Braslia

    Professor Titular Trcio Sampaio Ferraz Jnior Universidade de So Paulo

    Professor Dr. Juliano Zaiden BenvindoUniversidade de Braslia (suplente)

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    Para Mariana, os meus pais e Jlia.

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    Agradecimentos

    Esta dissertao resulta de extenso trabalho de pesquisa que contou com o auxlio de diversas

    pessoas.

    Inicialmente, devo agradecer minha noiva Mariana, pelo fundamental apoio em todas as

    esferas da minha vida. Sem a sua companhia eu jamais teria conseguido ultrapassar as

    dificuldades de conciliar o meu interesse acadmico com o exerccio da advocacia. Com

    segurana, foi a sua presena durante todo o processo de produo do trabalho, de forma

    paciente, amorosa e companheira, o principal alicerce de sustentao do resultado final.

    minha me, devo agradecer primeiramente pela inspirao para o surgimento da minha

    paixo pelos estudos. O privilgio de acompanhar a sua notvel carreira acadmica, marcadapor extrema seriedade e dedicao pesquisa, foi a razo do meu interesse pela ps-

    graduao. Alm disso, jamais poderei retribuir altura todo o suporte que recebi para a

    conduo dos meus estudos.

    Agradeo tambm ao meu pai, que sempre esteve perto de mim, independentemente da

    distncia fsica. O seu incentivo tambm foi essencial para a elaborao do trabalho.

    minha irm Jlia, eu agradeo pela simples razo da sua existncia.

    Ao meu orientador, Professor Gilmar Ferreira Mendes, agradeo profundamente por todo oapoio concedido. Todas as qualidades acadmicas que esse trabalho eventualmente tenha

    decorrem diretamente do aprendizado que tive como seu aluno.

    Devo agradecer tambm ao Professor Henrique Fagundes Filho, que foi o primeiro

    responsvel, na minha poca de graduao perante a Universidade de Braslia, pelo

    surgimento do meu interesse pelo aprofundamento terico. Serei sempre grato pelo auxlio

    recebido nessa fase.

    Agradeo, ainda, aos meus amigos-irmos Raphael Marcelino de Almeida Nunes, AlexandreVitorino Silva e Francisco Schertel Mendes, pela parceria que foi decisiva para a concluso

    do trabalho.

    Agradeo, tambm, s sugestes dos colegas Rodrigo Kaufmann, Jorge Octvio Lavocat

    Galvo e Gustavo Teixeira Gonet Branco.

    Por fim, devo agradecer Faculdade de Direito da Universidade de Braslia pelo espao

    concedido ao meu trabalho de pesquisa. Agradeo ao corpo docente pelas valiosas lies de

    direito constitucional, em especial aos Professores Marcelo Neves, Ana Frazo, Marcus Faro

    de Castro e Juliano Zaiden Benvindo. Agradeo, tambm, a todos os integrantes dos grupos

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    de pesquisa sobre Jurisdio Constitucional e Direitos Fundamentais e Experimentalismo

    Institucional. As discusses nos encontros das manhs de sbado foram decisivas para a

    formao da opinio que hoje possuo sobre o direito constitucional.

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    Resumo

    O problema real que a presente dissertao objetiva enfrentar o sufocamento imaginativo do

    direito constitucional brasileiro atual. A partir de leitura prpria da teoria do

    experimentalismo institucional, que representa o produto mais valioso da obra de Roberto

    Mangabeira Unger, ser defendido que insuficiente afirmar, como a regra no Brasil, que a

    ausncia de legitimidade poltica das Cortes Constitucionais pode ser suprida apenas

    argumentativamente. Ser afirmada, assim, a ingenuidade da crena dominante no direito

    constitucional brasileiro de que possvel superar a tenso entre constitucionalismo e

    democracia apenas a partir de sofisticaes interminveis de teorias de interpretao

    normativa. Nesse sentido, a dissertao propor o desentrincheiramento por completo dajurisdio constitucional, para que o instituto ganhe plasticidade imaginativa contextualizada.

    Com isso, ser possvel compreender que no existem regras gerais de funcionamento das

    Cortes Constitucionais e de interpretao de normas. Alm disso, ficar claro que necessrio

    substituir o critrio da racionalidade pelo da utilidade no debate relacionado aos limites

    democrticos da jurisdio constitucional. Por fim, no que diz respeito democracia

    brasileira, ser defendido que a agenda atual da teoria constitucional no tem desempenhado

    papel relevante para propiciar os avanos democrticos necessrios ao pas. O foco ser ademonstrao de que constitui problema relevante da democracia brasileira atual a ausncia

    de arenas de dissenso na sociedade civil. A peculiaridade dessa patologia social que o seu

    enfrentamento depende de efetivos experimentalismos democrticos que no podem ser

    realizados a partir da jurisdio constitucional ou por exclusivo intermdio dela. O caminho

    que ser proposto passa pela reviso da poltica brasileira atual de laissez-fairecom relao

    promoo social da cidadania.

    Palavras-chave: Pragmatismo radical. Experimentalismo institucional. Poltica.

    Jurisdio constitucional.

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    Abstract

    This dissertation confronts the lack of imagination on the current Brazilian constitutional law.

    From a particular way of understanding Ungers theory of the institutional experimentalism,

    the dissertation affirms the insufficiency of the statement that the democratic legitimacy of

    Constitutional Courts can be acquired simply by legal argumentation. It argues the

    insufficiency of that the dominant belief of the current Brazilian constitutional law on the

    possibility of overcoming the conflict between democracy and constitutionalism exclusively

    by the sophistication of normative theories. It proposes the complete disentrenchment of the

    institute of judicial review, in search of conceptualized imaginative plasticity. Therewith, the

    dissertation suggests the conclusion that it is not possible to establish general rules forConstitutional Courts and interpretation of constitutional norms. Furthermore, the dissertation

    proposes the necessity of substituting the criteria of rationality for the criteria of utility on the

    debate of the democratic legitimacy of judicial review. Finally, regarding the Brazilian

    democracy, the dissertation argues that the current Brazilian constitutional theory has not been

    able to create the conditions for the democratic development of the country. In this sense, it

    demonstrates that the absence of dissent arenas on the Brazilian civil society is an important

    democratic pathology which cannot be overcome exclusively by the exercise of judicialreview. The dissertation proposes a solution based upon the overcoming of the current

    Brazilian laissez-fairepolicy regarding the promotion of the democratic citizenship.

    Keywords: Radical pragmatism. Institutional experimentalism. Politics. Judicial review.

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    SUMRIO

    Introduo...............................................................................................................................10

    1. - As bases do experimentalismo institucional...........................................................13

    1.1- Apresentao.............................................................................................................13

    1.2- A sociedade artefato humano................................................................................16

    1.3- Tudo poltica...........................................................................................................23

    1.4- Guinada contra a anlise jurdica racionalizadora...............................................28

    1.5- Anlise jurdica como instrumento de experimentalismo institucional...............39

    1.6- Fecho..........................................................................................................................48

    2. - Desentrincheiramento da jurisdio constitucional..............................................51

    2.1- Apresentao.............................................................................................................51

    2.2- Pensar a jurisdio constitucional significa no pensar apenas na jurisdio

    constitucional...............................................................................................................53

    2.3- Pensar a jurisdio constitucional significa desentrincheir-la por completo....59

    2.4- H padres gerais de conduta para Cortes Constitucionais?...............................66

    2.5- Fecho..........................................................................................................................77

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    3. - Retrato do Brasil: ausncia de arenas de dissenso moral na sociedade civil.......80

    3.1- Apresentao.............................................................................................................80

    3.2- Ponto de partida........................................................................................................82

    3.3- Esferas pblicas polticas como arenas do dissenso moral....................................84

    3.4- O caso brasileiro........................................................................................................86

    3.5

    - Da solidariedade espontnea para a solidariedade forada: superao da

    poltica de laissez-fair e estatal quanto cidadania democrtica............................97

    3.6- Fecho........................................................................................................................102

    Concluso...............................................................................................................................104

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    INTRODUO

    O fascinante projeto radical apresentado por Roberto Mangabeira Unger na obra

    Politics1objetiva reduzir o contraste que existe entre a natureza humana e as suas condies

    extrnsecas. Esse o ponto de partida no apenas de Politics, como de todas as obras

    subsequentes de Unger. O autor deixa claro que o seu propsito, diferentemente de atingir

    qualquer meta filosfica de resgate da intersubjetividade, efetivamente tornar as sociedades

    mais sensveisao que dentro de ns rejeita decididamente esses experimentos limitados em

    humanidade e afirma que eles no so suficientes (2001, p. 37).

    A presente dissertao deve ser lida como parte integrante dessa empreitada

    intelectual. Evidentemente que de maneira modesta, busca-se participar da "campanhaterica" iniciada em Politics, em ateno ao chamado feito pelo prprio Unger na parte

    introdutria da obra2(2001, p. 31).

    A partir de leitura prpria da teoria do experimentalismo institucional desenvolvida

    por Unger, o problema real que a dissertao procurar enfrentar o sufocamento do

    constitucionalismo brasileiro decorrente da sua obsesso com o papel dos juzes. Ser

    defendido que representa verdadeiro bloqueio para o avano da anlise jurdica no pas o fato

    de a doutrina constitucional brasileira dominante ter depositado nas mos do SupremoTribunal Federal todas as suas esperanas para obteno de progresso democrtico. Ser visto,

    a esse respeito, que insuficiente (a) singelamente afirmar que os magistrados adquirem

    legitimidade poltica atravs da argumentao e (b) acreditar que a tenso entre

    constitucionalismo e democracia ser superada apenas com base em sofisticaes incessantes

    de teorias de interpretao de normas.

    Ser defendida, nesse sentido, a necessidade de desentrincheiramento da jurisdio

    constitucional. Essa proposta almeja atingir dois objetivos suplementares: (a) conferir aoinstituto do judicial review plasticidade imaginativa contextualizada e (b) propiciar o

    1Obra principal do autor que composta por trs volumes: False NecessityAnti-necessitarian social theory in the serviceof radical democracy, Social Theory - Its situation and its task e Plasticity into PowerComparative-historical studieson the institutional conditions of economic and military success.2 A motivao terica da presente dissertao o seguinte trecho de Politics: O ultimo objetivo desta introduo convocar o leitor a participar da campanha terica que este trabalho inicia. Poltica se prope a executar um programapara o qual no existe modelo pronto de discurso. Muda o sentido de termos e problemas retirados de outros corpos depensamento inspirado por outras intenes. Pesquisa muitas disciplinas, mas impe sua pesquisa uma ordem que nenhuma

    linguagem reconhece como sua. medida que avana, vai desenvolvendo uma linguagem ajustada sua viso. Quando aargumentao se tornar confusa ou obscura, quando eu tropear, ajudem-me. Examinem o objetivo descrito neste livro erevisem o que afirmo luz do que quero (2001, p. 31).

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    surgimento de nova agenda no direito constitucional brasileiro dedicada ao estudo do que

    existe fora do mbito daquilo que pode ser produzido pelos magistrados.

    O trabalho est dividido em trs partes, em conformidade com a delimitao temtica

    acima apresentada.

    A primeira parte cuidar da explicitao do sentido do experimentalismo institucional

    e do enfrentamento das principais crticas dirigidas a essa teoria no mbito do direito

    constitucional. A inteno, assim, ser delinear claramente quais so os pressupostos jurdicos

    e filosficos que sustentam as anlises conduzidas nas partes subsequentes do trabalho. Para

    tanto, a parte inaugural do estudo:

    (a) apresentar os postulados filosficos do pensamento de Unger, que podem ser

    resumidos ao reconhecimento de que, se a sociedade artefato humano,inescapavelmente tudo poltica;

    (b) explicitar os fundamentos da crtica dirigida pelo experimentalismo

    institucional ao mtodo dominante de pensamento do direito constitucional

    na atualidade; e

    (c) delinear os contornos da proposta de reforjamento da anlise jurdica como

    instrumento de experimentalismo institucional.

    A partir da viso da anlise jurdica construda na primeira parte, ser desenvolvido,na segunda etapa do trabalho, o sentido da afirmao de que necessrio desentrincheirar o

    instituto da jurisdio constitucional. Ser defendido, assim, que:

    (a) relevante que a anlise jurdica abandone a sua fixao com a jurisdio

    constitucional e compreenda que o direito pode se tornar uma ferramenta

    muito mais poderosa quando supera o pensamento de que o magistrado o

    seu agente primrio;

    (b)

    Cortes Constitucionais no so inerentes s democracias, de modo que a suaconformao deve sempre ser pautada a partir das necessidades polticas

    reais de determinada sociedade; e

    (c) inexistem regras gerais de conduta para as Cortes Constitucionais em relao

    aos seus mtodos de funcionamento, s suas estratgias polticas de

    sobrevivncia e s tcnicas de deciso e de interpretao de normas

    utilizadas no exerccio da jurisdio constitucional.

    Uma vez delimitados os significados da temtica que motivou a investigao, a parte

    final do trabalho ser voltada apresentao de perspectiva de anlise do estgio atual da

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    democracia brasileira que exemplifica a relevncia da proposta terica do trabalho. O foco

    ser a defesa de que:

    (a) a ausncia de arenas de dissenso na sociedade civil se transformou em

    patologia democrtica relevante no Brasil aps o encerramento das crises

    econmicas e polticas que marcaram as dcadas de 1980 e 1990;

    (b) o enfrentamento desse problema depende de experimentalismos institucionais

    completamente alheios jurisdio constitucional; e

    (c) o abandono da atual poltica estatal brasileira de laissez-faire com relao

    promoo de cidadania constitui caminho eficaz para o surgimento de

    maior interesse da populao brasileira pela poltica cotidiana.

    A partir desse estudo, a parte derradeira do trabalho objetivar no apenas sugerir novaagenda de pensamento para o direito constitucional no que diz respeito ao problema do

    arrefecimento da atividade poltica transformativa no Brasil recente, como tambm reforar a

    importncia do desentrincheiramento da jurisdio constitucional.

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    1. - As bases do experimentalismo institucional

    1.1- Apresentao

    A primeira parte da dissertao ser dedicada explicitao das bases tericas do

    experimentalismo institucional, que representa o mais valioso produto da extensa obra de

    Unger. Sero abordadas, com grau de detalhamento inexistente na doutrina brasileira 3, as

    bases filosficas da teoria e as suas consequncias para o direito constitucional. Alm disso,

    com o escopo de justificar tambm comparativamente a viso escolhida como adequada para

    sustentar teoricamente o trabalho, sero (a) rebatidas as crticas mais relevantes realizadas ao

    experimentalismo institucional e, ainda, (b) apresentadas vises prprias a respeito doprincipal elemento faltante para que a energizao democrtica proposta pela teoria no

    aparente ser apenas distante iluso imaginada. Ficar claro, assim, que a adeso da dissertao

    aos pressupostos tericos do experimentalismo institucional quase irrestrita, o que no

    significa que o pensamento crtico a respeito da matria no tenha sido exaustivo.

    No ser objeto de anlise, tanto na primeira parte como ao longo de todo o trabalho, o

    contedo das propostas de novos arranjos institucionais e democrticos que Unger apresenta

    em obras como Politics, Democracia realizada, A Reinveno do Livre-comrcio, Oque a Esquerda Deve Propor e O Direito e o Futuro da Democracia. Isso porque no

    interessa dissertao o mrito, mas, paradoxalmente, o pressuposto terico4 dos futuros

    alternativos imaginados por Unger.

    Conforme ficar claro, a ausncia de foco nas hipteses de futuro imaginadas por

    Unger no deve ser vista, em hiptese alguma, como concordncia com a conhecida crtica de

    Jeremy Waldron no sentido de que quando Unger se volta imaginao institucional de

    alternativas sociais, a discusso se torna area e bastante desconectada com o que, ainda

    3 No Brasil, a anlise crtica da obra de Unger escassa. Merecem destaque: (i) o estudo do significado democrtico doexperimentalismo institucional realizado por Carlos Svio Teixeira, no artigo Experimentalismo e Democracia em Unger,(2010, pp. 45-69); e (ii) a anlise das teses concebidas por Unger a partir das premissas do experimentalismo institucionalapresentada por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, na obra Democracia Radical e Experimentalismo Institucional(2008).4 equivoco dizer que no h teoria sustentando o experimentalismo institucional. Unger assumidamente se diz contra e afavor da teoria. Utiliza, ao mesmo tempo , a teorizao excessiva e o seu oposto. Faz, alis, questo de deixar bem claroque no possvel prescindir da teoria. O arsenal terico, contudo, deve abrir o espao conceitual dentro do qual nspodemos desenvolver prticas libertadoras enquanto resistimos tentao de diminu-las ou desvi-las. Isso porque,segundo Unger, se ns no tivermos ideias gerais sobre o que o pragmatismo radical requer, continuaremos a nos apoiar,implicitamente, sobre o resduo de algumas ideias gerais que o pragmatismo, na verdade, busca subverter. Para Unger,assim, a utilizao de teoria representa uma concesso inevitvel, porm perigosa, uma vez que pode fazer o estranhoparecer natural, mesmo quando for feita para fazer o natural parecer estranho, limitando o desejo que ela buscavafortalecer (2004b, pp. lvii-lviii).

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    que plausivelmente, pode ser visto como habilidades legais diferenciadas (1998, pp. 521-

    523). Na parte final do ensaio em que essa afirmao foi apresentada, Waldron afirmou ser

    inconvincente a proposta ungeriana de que a anlise jurdica seja catalisadora da mudana

    institucional na sociedade, repetindo crtica que havia sido feita anteriormente por Cass

    Sunstein ao contedo de Politics (1990). Para ambos os autores, o mximo que poderia se

    esperar da anlise jurdica em termos de experimentalismo institucional seria o

    constitucionalismo cosmopolita tmido (Waldron, 1998, p. 527; Sunstein, 2009, pp. 188-209).

    Ser defendido, ao final da parte inaugural da dissertao, que a anlise comparada defendida

    por Waldron e Sunstein, alm de sequer constituir verdadeiro cosmopolitismo constitucional,

    j que despreza a verdadeira superao de fronteiras no pensamento jurdico, representa

    apenas afirmao da tese da convergncia que aniquila a imaginao institucional.Assim, a ausncia de enfrentamento crtico dos futuros hipotticos criados por Unger

    deve ser vista como consequncia direta de uma razo apenas: o atendimento convocao

    feita pelo prprio autor para a participao em campanha terica que no possui discurso pr-

    modelado e que, justamente por isso, deve dar origem a propostas radicalmente distintas.

    O objetivo da primeira parte, como dito, explicitar, nos campos filosfico e jurdico,

    as bases tericas do experimentalismo institucional, que pressuposto para o

    desenvolvimento das partes subsequentes da dissertao. No percurso, os motivos da escolhado experimentalismo institucional como ponto de apoio sero naturalmente explicitados.

    Neste momento, cabe apenas antecipar que, aplicado ao direito constitucional, o

    experimentalismo institucional possui resultados avassaladores. A mudana ocorre desde os

    objetivos iniciais do jurista. Abandona-se a busca pela serenidade decorrente do papel de

    terapeuta social auto-atribudo. Em contrapartida, adota-se, como pontos de partida da anlise

    jurdica, (a) a incontinncia imaginativa propiciada pela viso romntica do direito

    preconizada pela teoria do pragmatismo radical, (b) a percepo de que errada a tentativa deanalisar retrospectivamente polticas congeladas em busca de nicas respostas corretas

    supostamente inerentes a uma ordem latente transcendental ao contexto em que todos os

    intrpretes fatalmente se inserem, e (c) o inconformismo com a tendncia do ser humano

    apatia.

    A primeira parte da dissertao est dividida em quatro itens. Nos dois primeiros,

    sero analisados os postulados filosficos bsicos do experimentalismo institucional, que so:

    (a) a sociedade artefato humano e (b) tudo poltica. Nos itens finais, sero apresentadas (a)

    as principais crticas do experimentalismo institucional ao mtodo dominante de pensamento

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    do direito na atualidade, denominado de anlise jurdica racionalizadora, e (b) a proposta de

    reforjamento da anlise jurdica como instrumento de experimentalismo institucional voltado

    acelerao democrtica.

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    1.2 - A sociedade artefato humano

    Na multicitada e arrojada obra "Politics", Unger defende a realizao de projetos de

    democracia radical, a partir do desenvolvimento de teorias sociais construtivas. O autor leva

    ao extremo a ideia de que a sociedade artefato humano e no o resultado de suposta ordem

    natural oculta. Para Unger, assim, a histria humana no est sujeita a mandamentos divinos

    e as pessoas podem imaginar e criar a sociedade conforme o seu livre arbtrio (2001, p. 17-

    25).

    Nesse tocante, o pensamento de Unger no original. Conforme reconhece Richard

    Rorty, h mais de duzentos anos se generalizou a percepo de que a verdade no podia ser

    descoberta, mas produzida. A Revoluo Francesa deixou clara a prescindibilidade de todasas instituies at ento tidas como inerentes s sociedades da poca. Generalizou-se a

    percepo de que as questes mais relevantes da natureza humana no seriam mais

    respondidas pela filosofia ou pela cincia, mas pela arte e pela poltica. O foco dos tericos se

    tornou o alinhamento com a utopia e a inovao. A contingncia, assim, passou a ser regra

    tanto para a linguagem5, como para identidade6e para comunidade7(2007a, p. 25).

    5

    A contingncia da linguagem assim definida por Rorty: Dizer que a verdade no est dada simplesmente dizer que,onde no h frases, no h verdade, que as frases so componentes das lnguas humanas, e que as lnguas humanas socriaes humanas. A verdade no pode estar dada no pode existir independentemente da mente humana porque asfrases no podem existir dessa maneira, ou estar a. O mundo existe, mas no as descries do mundo. S as descries domundo podem ser verdadeiras ou falsas. (...) Assim como no devemos buscar dentro de ns critrios de deciso sobre essasquestes, no devemos busc-los no mundo. (...) A tentao de procurar critrios uma espcie da tentao mais geral depensar no mundo, ou no eu humano, como possuidor de uma natureza intrnseca, uma essncia. (...) Enquanto acharmos queexiste uma relao chamada de adaptao ao mundo ou expresso da verdadeira natureza do eu, da qual osvocabulrios-como-totalidades possam ser dotados ou carentes, continuaremos na busca filosfica de um critrio que nosdiga que vocabulrios tm essa caracterstica desejvel. A sada, para Rorty, evitar o reducionismo e o expansionismo. Osvocabulrios devem ser tratados como ferramentas alternativas e no como peas de um quebra-cabea (2007a, pp. 28-38).6Friedrich Nietzsche foi o primeiro a sugerir explicitamente que a ideia de conhecer a verdade fosse abandonada (1954). Averdade, para Nietzsche, seria apenas um exrcito mvel de metforas, de modo que a ideia inteira de representar a

    realidade por meio da linguagem e, portanto, de descobrir um contexto nico para todas as vidas humanas, devia serabandonada. Nietzsche esperava que ao nos apercebermos de que o mundo verdadeiro de Pla to era apenas uma fbula,buscaramos consolo, na hora da morte, no no havermos transcendido a condio de animais, porm no sermos o tipopeculiar de animal agonizante que, por ter-se descrito em seus prprios termos, havia criado a si mesmo.Mais exatamente,esse animal teria criado a nica parte importante dele mesmo, por construir sua prpria mente (2007a, p. 63). Para Rorty,ao abandonar a concepo tradicional de verdade, Nietzsche no abandonou a ideia de descobrir as causas de sermos oque somos. Nietzsche rejeitou apenas a ideia de que esse rastreamento fosse um processo de descoberta, uma vez que,ao chegarmos a esse tipo de autoconhecimento, no passamos a conhecer uma verdade que existiu ali (ou aqui) desdesempre. Assim, o processo de autoconhecimento (ou autocriao) se torna idntico ao processo de inventar uma novalinguagem isto , de elaborar novas metforas (2007a, p. 64). Rorty no admite, contudo, que tenha sido Nietzsche oponto de partida para a criao do pragmatismo pelos norte-americanos (2007b, p. 915). Para Rorty, Nietzsche no foi oinspirador das propostas de William James e John Dewey e, alm disso, foi extremamente vacilante em relao ao seuprprio projeto de rompimento com a metafsica. Segundo Rorty, todos os trs [autores] queriam a interrupo dopensamento metafsico a respeito de questes como a natureza da realidade e a natureza dos seres humanos. Contudo,James e Dewey se saram melhor do que Nietzsche na formulao de uma perspectiva antimetafsica coerente. Rorty, alis, bastante taxativo ao afirmar que os pragmatistas americanos fizeram consistentemente aquilo que Nietzsche fez apenasocasional e parcialmente: eles abandonaram o propsito positivista de elevar a cincia a patamar superior ao restante dacultura humana (2007b, p. 916).

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    exatamente a contingncia que Unger aplica s instituies sociais a partir de

    Politics. Unger radicaliza a afirmao de Rorty de que preciso ver as constelaes de

    foras causais que produziram o discurso sobre o DNA ou o Big Bang como consentneas s

    foras causais que produziram o discurso sobre a secularizao ou o capitalismo tardio,

    uma vez que essas vrias constelaes so os fatores aleatrios que transformaram algumas

    coisase no outrasem temas de conversa para ns, que tornaram possveis e importantes

    alguns projetose no outros (2007a, p. 46-47).

    extremamente elogiosa, por conseguinte, a afirmao de Rorty de que Unger se

    enquadra na categoria dos poetas romnticos8 (1991, p. 282). Para Rorty, Unger vive na

    fantasia, que o local em que os romnticos deveriam viver; o seu viver a a razo porque

    eles e os seus confusos, utpicos, no cientficos e pequeno-burgueses seguidores podem,ocasionalmente, tornar o futuro atual melhor para o resto de ns (1991, p. 286). Com essa

    descrio, Rorty objetivou diferenciar Unger daquilo que denominou de escola do

    ressentimento, a qual, na sua viso, seria formada por serenos desconstrutivistas profissionais

    de teorias sociais com averso imaginao.

    A preferncia de Rorty pelos romancistas decorre do seu repdio aos filsofos

    profissionais. Rorty acredita que a contingncia somente pode ser apreciada e enfrentada

    pelos poetas. Aos filsofos, restaria o fardo da busca pela inexistente nica descrioverdadeira da condio humana (2007a, p. 65). No soa estranha, portanto, a afirmao de

    Rorty de que a esperana da sociedade se apoia na imaginao romntica de autores como

    Unger, que mostra que os ricos, gordos e cansados Norte-americanos [devem] voltar atrs

    aos tempos em que a [sua] democracia era mais nova e mais fraca quando Pittsburgh era

    to nova, promissora e problemtica como So Paulo hoje9(1991, p. 279).

    De fato, Unger faz exatamente o que Rorty constata e elogia: orienta a sua teoria em

    direo ao futuro e no ao passado que representa mera poltica congelada. Reside a a

    7Segundo Rorty, o vocabulrio do racionalismo iluminista, apesar de ter sido essencial nos primrdios da democracialiberal, tornou-se um empecilho preservao e ao progresso das sociedades democrticas (...), o vocabulrio (...) que giraem torno de ideias de metfora e autocriao e no de verdade, racionalidade e obrigao moral, presta-se melhor paraesse fim. Rorty no pretende dizer, com isso, que as vises contingenciais da linguagem e da identidade podem fornecer osfundamentos da filosofia. Para o autor, a prpria ideia de fundamento filosfico [que] desaparece quando desaparece ofundamento do Iluminismo. As esperanas da comunidade, portanto, devem ser reformuladas (...) de um modo noracionalista e no universalista, o qual assemelha-se mais a remobiliar uma casa do que a escor-la ou pr barricadas aseu redor (2007a, p. 90).8Outros autores utilizaram a mesma expresso, de maneira negativa, para descrever a obra de Unger. Stephen Holmes, emforte (e equivocada) critica, tambm descreve Unger como romancista poltico(1983).9 So ainda mais irnicas, nos dias atuais, as afirmaes feitas por Rorty na dcada de 1980 de que os filsofos norte-

    americanos deveriam voltar os olhos para o Brasil ou para outras economias semelhantes e que se existe esperana, elareside no Terceiro Mundo, pois o Hemisfrio Sul poder concebivelmente, daqui a uma gerao, vir em socorro doHemisfrio Norte (1991, p. 279-284).

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    diferena principal entre Unger e outros autores que se intitulam pragmatistas. Unger critica a

    tendncia moderna dos cientistas sociais de construir uma cincia da histria e de bloquear o

    avano contnuo inerente ideia de que a sociedade artefato humano. Para o autor, grande

    parte da filosofia poltica especulativa de hoje acaba, em retrospecto, por dar um brilho

    metafsico s prticas fiscais compensatrias da socialdemocracia estabelecidaatravs de

    um reformismo pessimista, ctico quanto a alternativas institucionais e resignado a medidas

    compensatrias (2004a, p. 14).

    A proposta de Unger, na contramo dessa tendncia, retira das instituies sociais a

    sua falsa aura de necessidade10. Unger busca demonstrar a existncia de falsas necessidades

    das sociedades em relao aos seus contextos formadores, objetivando desentrincheir-los e

    conferir-lhes plasticidade (2004b, pp. xxxi e xxxvii). Assim, os focos de Unger,especificamente a partir de Politics, so (a) levar ao extremo a ideia de que a sociedade

    produto da imaginao humana, de modo que tudo, nesse sentido, poltica e (b) apresentar

    propostas de energizao da democracia e de fortalecimento da humanidade.

    Surgem como adversrios naturais desse projeto os contramovimentos que Unger

    denomina de (a) fetichismo estrutural e institucional e (b) tese da convergncia. O primeiro,

    no seu aspecto institucional, definido como crena de que concepes institucionais

    abstratas teriam expresso natural nica. Na sua faceta estrutural, representa a negao dapossibilidade de que a qualidade doa instituies sociais seja alterada. A tese da convergncia,

    por seu turno, significa a tendncia majoritria de se afirmar que a evoluo do mundo deve

    ser entendida como a aproximao, por tentativa e erro, s nicas formas institucionais que se

    mostraram capazes de gerar prosperidade. a difuso da noo de convergncia, segundo

    Unger, que d respeitabilidade pseudocientfica ao fetichismo estrutural e institucional

    (2004a, pp. 17-19).

    A tese da convergncia representa, assim, a interrupo do pensamento social ehistrico inaugurado com a Revoluo Francesa. a inverso de tudo aquilo que representou

    o reconhecimento de que a verdade era produzida. Assim, para Unger, e aqui reside o ponto

    em relao ao qual a sua obra realmente adquire contornos de originalidade, necessrio que

    se prossiga com a compreenso de sociedade como artefato que foi interrompida com o

    10 A descrio de Zhiyuan Cui precisa a respeito desse aspecto da obra de Unger: Unger rejeita a teoria social deestrutura profunda e a cincia social positivista, mas no um niilista. Preserva o primeiro momento da teoria de

    estrutura profundaa distino entre contexto formador e rotinas formadas mas rejeita os outros dois movimentosaclassificao de cada contexto formador sob um tipo reproduzvel e indivisvel e a busca de leis gerais que governem essestipos (2001, p. 13).

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    projeto neoliberal11. O neoliberalismo representa, na compreenso de Unger, alm de uma

    ideia abstrata de convergncia, o empecilho mais ameaador ao experimentalismo

    democrtico (2004a, p. 19).

    A crtica de Unger ao neoliberalismo no significa que a sua teoria seja esquerdista. O

    prprio autor se define como supraliberal. A sua oposio ao Consenso de Washington

    exatamente em razo da percepo de que se trataria de um consenso imutvel. O autor no

    admite, portanto, a assuno corriqueira de que o neoliberalismo representou o pice da

    convergncia s melhores prticas possveis nas diversas democracias mundiais. A sua viso

    mais simples: o neoliberalismo representou apenas mais um acontecimento poltico

    envolvendo compromissos, concesses e reaes. No haveria, assim, motivos para

    racionaliz-lo retrospectivamente, mas apenas para reconhecer a sua singularidade, a suacontingncia, a sua estranheza e, acima de tudo, a sua suscetibilidade reinveno (2004b,

    p. xl). O apego messinico ao neoliberalismo seria, assim, mero louvor a polticas congeladas.

    A mesma ideia aplicada por Unger a diversas outras instituies sociais 12 e ao

    prprio texto constitucional norte-americano, o qual, segundo o autor, seria tratado como

    espcie de arranjo permanente e imutvel. Exemplo disso, para Unger, seria o fato de que os

    americanos, sempre que desejam modificar o seu texto constitucional, preferem faz-lo a

    partir de teorias interpretativas do que por intermdio da poltica (2004b, p. xli).As consequncias das teses da convergncia e do fetichismo institucional e estrutural

    so dramticas para a democracia13. Primeiro, porque trabalham com a meta conservadora de

    desacelerar a atividade poltica. Segundo, porque a aplicao irrestrita de ambas faria com que

    diferenas entre democracias fossem esvaziadas e identidades coletivas de cada nao

    anuladas por prticas e instituies desenhadas para os pases mais influentes. Terceiro,

    porque essas teses relegam a momentos mgicos de crise a ocasional reinveno da

    11Unger assim define o projeto neoliberal: O neoliberalismo o programa de estabilizao macroeconmica sem prejuzodos credores internos e externos do Estado; de liberalizao, entendida mais estreitamente como a aceitao daconcorrncia internacional e a integrao no sistema de comrcio mundial, e mais amplamente como a reproduo dodireito tradicional dos contratos e de propriedade do Ocidente; de privatizao, significando a retirada do Estado daproduo e, no lugar disso, sua dedicao a responsabilidades sociais; e do desenvolvimento de redes de segurana sociaiscriadas para compensar, retrospectivamente, os efeitos desniveladores e desestabilizadores da atividade de mercado(2004a, p. 19-20).12A definio de Unger para o conjunto das instituies sociais que formam as democracias modernas, como no poderia serdiferente, a seguinte: O que ns temos ao redor de ns no um sistema fundado de acordo com um plano racional.No uma mquina construda de acordo com um projeto em relao ao qual tivemos acesso apenas por providncia divina. apenas um arranjo institucional e ideolgico, uma parcial e temporria interrupo da disputa, um compromisso no apenasentre grupos de interesse mas tambm entre grupos de interesse e possibilidades coletivas, seguido de uma srie de pequenascrises e ajustes menores, e repleto de contradies escondidas e oportunidades transformadoras (2004a, pp. 19-20).13Segundo Unger, em afirmao forte, a convergncia institucional mundial representa, ao mesmo tempo, um erro e ummal. Isso porque, para o autor, a humanidade deve continuar a experimentar diferentes formas de vida, vestindo cada umadelas com diferentes arranjos institucionais (2004a, p. 20).

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    democracia atravs da poltica. Por fim, e principalmente, porque o poder do homem de

    refazer as sociedades sempre vai alm de tudo o j que existiu anteriormente no mundo (2001,

    p. 41; 2004a, pp. 32-33; 2004b, pp. xli-lxx).

    Por consequncia, fica bastante claro que o resultado do enfraquecimento da poltica,

    do aniquilamento das diferenas socioculturais e do abandono do experimentalismo

    democrtico a priso do homem s ideias inovadoras que eventualmente estiverem ao seu

    alcance no momento da oportunidade transformadora.

    A sada, segundo o experimentalismo institucional proposto por Unger, , ao mesmo

    tempo, (a) compreender que o homem no se esgota em seus contextos institucional e

    sociocultural; e (b) exercitar o pensamento contnuo da sociedade como mecanismo de busca

    pela superao dos limites da realidade atual. O ponto de partida escolhido por Unger a lutapelo engrandecimento da condio humana14. Para isso, necessrio moldar as instituies

    sociais e os discursos do homem para que representem convites imaginao, ao invs de

    fortalezas naturais de autoridade. sobre esse ponto, alis, que gira o eixo central do projeto

    de democracia radical do experimentalismo institucional: combinar a ausncia de limites da

    mente humana com a contnua reforma da sociedade, das instituies, das prticas e dos

    discursos. A busca pela reduo do contraste inerente coexistncia da natureza infinita da

    mente com a condio finita da existncia humana. A imaginao institucional, nesse sentido,precisa ser contnua para que tenha condies de antecipar as crises (2004b, pp. xlvi-lvi).

    Diminuir o intervalo entre as rotinas que reproduzem a vida social e as revolues

    atravs das quais as inovaes ocorrem, conseguintemente, aparece como meta clara da

    proposta de acelerao democrtica do experimentalismo institucional (2001, p. 29, 2004a, p.

    32 e 2004b, p. xxi). Segundo esse propsito, a meta de desentrincheiramento dos contextos

    formadores da vida social diretamente vinculada ao aumento da autonomia do ser humano.

    O abandono do fetichismo, que torna inquestionveis as instituies sociais, permite que avida em sociedade ocorra sem que as limitaes naturais do contexto tornem o ser humano

    completamente finito.

    A pecha niilista costuma ser impingida teoria do experimentalismo institucional. No

    mbito do direito, Holmes (1983), Sunstein (1990) e Waldron (1998) se manifestaram nesse

    14Ao longo da sua obra, Unger identifica quatro falhas na condio humana: a mortalidade, a impossibilidade de resoluodo enigma da existncia do homem e do universo segundo Unger, o fundamento do pensamento humano desprovido defundamento e inteiramente assentado em pressuposies, a insaciabilidadepois o homem, para Unger, demanda o infinitodo finito e a tendncia humana ao prprio rebaixamento o ser humano, segundo Unger, desperdia a sua vida com

    compromissos insignificantes; a rotina faz com que o homem morra diariamente inmeras pequenas mortes. A quarta falhada natureza humana difere das demais por ser, em certa medida, passvel de superao. Esse fato o ponto de partida detodas as teorias imaginadas por Unger (2011).

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    sentido. Todos, conforme ser abordado em tpico subsequente destinado exclusivamente s

    consequncias do experimentalismo institucional para a anlise jurdica, formularam crticas

    claramente equivocadas, pautadas em compreenses limitadas da teoria. A tese do

    experimentalismo institucional, proposta por Unger a partir de Politics, embora seja

    assumidamente incompatvel com a cincia social positivista e com as teorias sociais

    clssicas, no pode ser taxada de niilista. Como bom pragmatista, Unger no rejeita

    totalmente o contexto e reconhece claramente que, de acordo com a concepo de histria

    intelectual empregada [pelo experimentalismo institucional], os materiais para uma viso

    alternativa mtodos, ideias e observaes interpretadas j esto disponveis, apesar de

    em forma bruta, fragmentada e distorcida (2001, pp. 27-30).

    A rotina de imaginao proposta pelo experimentalismo institucional no permite,assim, que, tendo quebrado o arcabouo sociocultural em que esto inseridas, as pessoas

    simplesmente continuem fora de qualquer outro contexto. Unger reconhece que isso seria um

    paradoxo e que, portanto, a quebra de contextos sempre ser excepcional e transitria (2001,

    p. 41). Nesse sentido, em momento algum Unger prope a transcendncia total do ser humano

    ou da teoria em relao ao ambiente. A proposta do experimentalismo institucional , apenas,

    reduzir a dependncia da sociedade em relao aos contextos formadores.

    Unger se autodefine, assim, como pragmatista-radical que rejeita a ideia domesticadade pragmatismo que domina a filosofia poltica atual. Trs princpios, segundo Unger, so

    compartilhados pelas verses domesticada e radicalizada do pragmatismo: (a) a

    impossibilidade de determinao da compreenso social a partir da representao

    individualizada e desinteressada dos fatos sociais, uma vez que a experincia humana

    multifacetada e as ideias do homem so naturalmente recheadas de pressuposies que

    impedem a existncia de um superespao de auto-observao; (b) a impossibilidade de

    distino entre o mtodo pelo qual o homem organiza as suas ideias e o contedo dessasideias propriamente ditas; e (c) a noo de que a sociedade criada pela histria coletiva

    humana, de modo que no existe possibilidade de elaborao de julgamentos isentos sobre a

    realidade (2004b, p. xlix-li).

    O primeiro e o terceiro princpios, conjugados, trazem consigo o seguinte difcil

    questionamento: como o homem pode corrigir e melhorar o seu contexto deliberadamente e

    com alguma certeza a respeito da correo das suas escolhas? A partir da resposta dada

    pergunta, Unger diferencia as verses relativista e objetivista do pragmatismo domesticado. A

    primeira nega que seja possvel a criao de bases contrafactuais que permitam ao homem

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    criticar e refazer as formas institucionais da sociedade. O mximo que o homem poderia fazer

    seria torcer para ter sorte nos momentos de crise em que as escolhas se tornam imperiosas. A

    segunda verso acredita que todo contexto aberto a correes graduais, que levaro

    convergncia, por tentativa e erro, s melhores prticas institucionais possveis. A tese de

    convergncia representa, para Unger, a principal variante da verso objetivista do

    pragmatismo domesticado (2004b, p. l-li).

    A principal diferena entre as verses domesticada e radical do pragmatismo a

    presena, na ltima, de conexo entre a condio infinita da natureza humana e a necessidade

    de contnuo pensamento sobre a reforma das instituies sociais e dos seus discursos. Atravs

    da imaginao, o pragmatismo radical v a possibilidade de sempre examinar o atual segundo

    a perspectiva do possvel.Dessa maneira, a resposta dada pelo pragmatismo radical ao questionamento como o

    homem pode corrigir e melhorar o seu contexto deliberadamente e com alguma certeza a

    respeito da correo das suas escolhas? difere significativamente das anteriores. Para o

    pragmatista radical, a resposta :

    Ns no podemos saber com certeza. Tudo o que ns podemos fazer (...) continuar

    avanando enquanto nada do que ns encontrarmos a respeito das cincias naturais ou

    sociais deixar claro que: no, isso no pode ser(2004b, p. lv).

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    1.3- Tudo poltica

    A compreenso da proposta do experimentalismo institucional de radicalizao da

    ideia de sociedade como artefato faz com que fique bastante simples a aquiescncia com o

    segundo postulado da teoria: tudo poltica (2004c, pp. 151-169). Como visto no tpico

    anterior, a empreitada intelectual lanada por Unger a partir de Politicstraduz teoria social

    anti-necessitria que rejeita as tradies sociais da(s) (a) cincia social positivista, a qual

    assume como irrelevante o contraste entre estruturas institucionais e rotina e (b) teorias sociais

    de estrutura profunda (especialmente o marxismo), as quais aceitam essa distino, mas

    submetem-na a premissas metafsicas que restringem em demasia a possibilidade de

    mudanas. O experimentalismo institucional, ao mesmo tempo em que busca preservar oinstante da distino entre estrutura e rotina, generaliza radicalmente o momento da mudana.

    Assim, quando se depara com a alegao de que determinadas instituies sociais refletem o

    alcance de ordens transcendentes inflexveis, o experimentalismo institucional reconhece que

    no, isso no passa de poltica15(2001, pp. 31-57).

    O slogan tudo poltica, nesse sentido, atesta a compreenso de que a atividade de

    concepo da sociedade no segue manuais previamente redigidos. Fica claro, com isso, que o

    experimentalismo institucional rejeita o caminho comumente aceito pelas teorias sociaisclssicas de tentar racionalizar o compromisso passado atravs da prtica de congelamento da

    poltica. O experimentalismo institucional de Unger, como reconhecido por Rorty, tem os

    seus olhos no futuro e foca a sua teoria na criao de novas formas de vida social, ciente de

    que mais tarde haver tempo suficiente para os tericos explicarem como esta criao foi

    possvel e porque foi uma coisa boa (1991, pp. 290-291).

    Por evidente, ao mirar o futuro, Unger assume que criaes oriundas de exerccios de

    experimentalismo institucional tambm representaro mera poltica e no a ltima palavra emtermos de arcabouo social.

    A acelerao democrtica proposta pelo experimentalismo institucional representa,

    assim, a energizao das atividades polticas cotidianas em sentido amplo e a superao das

    15Em Politics, Unger utiliza duas acepes do termo poltica: uma mais estreita e outra mais ampla. A primeira representao conflito pelo domnio e uso do poder governamental. O sentido mais amplo significa o conflito em torno dos termos dasnossas relaes prticas e de paixo de uns com os outros e em torno de todos os recursos e premissas que possaminfluenciar esses termos, sendo que a poltica de governo apenas um caso especial de poltica nesse sentido mais amplo.O slogan tudo poltica opera com a acepo mais ampla de poltica, que se funde no conceito de feitura da sociedade.(2001, p. 32). Nesse sentido, a poltica, conforme Marcus Faro de Castro, ao contrrio da filosofia, sempre pertenceu ao

    domnio da prtica, do particular, do varivel e do contingente (...) sempre foi prudencial, ligada ao mundo do efmero, docircunstancialmente condicionado, do particular e acidental, permanecendo distante do mundo filosfico das verdadeseternas e abstratas, do mundo do universal e do absoluto (2004, p. 17).

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    tentativas tericas de transformar contingncia em razo. O slogan tudo poltica possui

    vieses prospectivo e retrospectivo. Consiste, ao mesmo tempo, em (a) no transcendentalizar

    o passado e (b) mover para o futuro os olhares tericos do presente.

    No todo tipo de poltica em sentido lato, contudo, que interessa meta de

    acelerao democrtica. Dois tipos so claramente diferenciados por Unger em Politics: (a)

    a poltica excepcional e revolucionria que gera mudanas institucionais e geralmente

    conduzida por lderes que conseguem energizar maiorias em momentos especiais de crise

    democrtica; e (b) a poltica normal e marginal de ajustes redistributivos entre polticos

    profissionais e grupos de interesse geralmente representativos de parcelas minoritrias das

    populaes. O experimentalismo institucional almeja a criao de um terceiro tipo de poltica,

    que seria transformativa e livre da iluso de que qualquer transformao profunda nasociedade demandaria a substituio do capitalismo pelo socialismo. A poltica transformativa

    dispensaria o desastre como pressuposto da mudana e objetivaria rearranjar, gradualmente,

    as instituies e os discursos sociais. A imaginao institucional, assim, seria a chave da

    transformao (2004b, pp. xxv-xxviii).

    Com isso, possvel dizer que, ao defender a familiarizao da sociedade com a

    poltica transformativa, o experimentalismo institucional efetivamente justifica o seu slogan

    de que qualquer ordem institucionalizada em determinada organizao social (a) representamera poltica, (b) nunca significa o resultado inevitvel das foras da natureza ou a

    transcendncia em relao ao contexto que a perpassa, e, principalmente (c) sempre pode ser

    repaginada.

    A aplicao do slogan tudo poltica pressupe, portanto, a energizao da atividade

    poltica que atualmente se encontra adormecida na maioria das democracias16. O caminho

    incontornvel para que isso ocorra, segundo o experimentalismo institucional, a criao de

    elevados nveis de engajamento poltico e de organizao nas sociedades civis (2004b, pp.xciii e lix-lx).

    Antes de abordar as consequncias da aplicao dos pressupostos tericos da presente

    dissertao ao direito, necessrio explicitar dois pontos relacionados ao experimentalismo

    institucional que ainda no foram delineados e que podem ser sintetizados a partir dos

    seguintes questionamentos:

    (a) J que, como visto na parte anterior do presente item, a resposta

    proposta pelo pragmatismo radical pergunta como o homem pode

    16Ser visto na terceira parte da dissertao que esse exatamente o caso da democracia brasileira.

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    corrigir e melhorar o seu contexto deliberadamente e com alguma

    certeza a respeito da correo das suas escolhas? ns no

    podemos saber com certeza, seriapossvel obter alguma segurana

    de que a adeso ao experimentalismo institucional no daria ensejo a

    surpresas polticas desagradveis?

    (b) Quais seriam os caminhos propostos pelo experimentalismo

    institucional para a transio do estado de dormncia atual das democracias

    mundiais para estgio de plena acelerao democrtica imaginativa no qual os

    futuros alternativos imaginados em Politics e O Direito e o Futuro da

    Democracia seriam realizveis?

    A primeira indagao a mais crtica, embora o seu enfrentamento, segundo a visodo presente trabalho, demande apenas repetir resposta bastante singela j dada por Rorty. De

    fato, bastante comum encontrar crticas obra de Unger, tais como as feitas por Holmes

    (1983) e Sunstein (1990), no sentido de que o slogan tudo poltica possui repercusses

    perigosas decorrentes do abandono de qualquer pretenso racionalista. Nesse sentido,

    fundamental que se perceba, conforme destaca Rorty, que a noo de mtodos

    argumentativos no relevante para a situao na qual nada de conhecido resulta e na qual

    as pessoas esto desesperadamente (...) procura de algo (1991, pp. 296-297). O slogantudo poltica significa, assim, que o filsofo profissional no possui o condo de antecipar a

    histria. No ser a teorizao pela teorizao que permitir sociedade separar os bons dos

    maus futuros.

    A segunda pergunta exige explicao mais detalhada. Em introduo feita por ocasio

    do lanamento de nova edio de Politics, Unger reconheceu que dois desenvolvimentos

    relevantes a respeito da sua teoria ainda precisavam ser feitos. O primeiro diz respeito

    explicitao de que as propostas contidas em Politics (a) no representam a ltima palavraem termos de futuro alternativo e, portanto, (b) demandam conexo com as especificidades de

    cada sociedade. Isso porque Politics representa conjunto de propostas alternativas para a

    humanidade que necessariamente precisa ser reinventado luz das realidades nacionais

    (2004b, p. cix). O segundo desenvolvimento relacionado ausncia, na edio inicial de

    Politics, de programa transicional entre o estgio das sociedades atuais e o momento da

    democracia energizada preconizado pelo experimentalismo institucional. Unger admitiu que

    Politics no trouxeesse roteiro. Tentou justificar-se, contudo, afirmando singelamente que

    pensamento programtico msica e no arquitetura (2004, pp. lxxv/lxxii).

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    Ainda assim, Unger optou por esboar programa de transio da dormncia

    democrtica rumo acelerao imaginativa do experimentalismo institucional. Esse roteiro

    funcionaria de maneira limitada por no levar em considerao peculiaridades locais de

    sociedades particulares. Ainda assim, ao menos genericamente, o programa buscou conferir

    norte de trabalho maioria das democracias atuais.

    Cinco plataformas do programa de transio foram apresentadas: (i) a garantia de que

    governos possuam elementos humanos e financeiros aptos a permitir a emancipao

    econmica e intelectual dos cidados comuns17; (ii) o comprometimento desses governos (e de

    toda a sociedade) com o fortalecimento das dotaes econmicas e intelectuais dos cidados

    comuns18; (iii) a democratizao da economia de mercado19; (iv) o comprometimento maior do

    governo com democracia energizada que conte com mais expresso poltica popular eencoraje a prtica mais frequente de reformas institucionais20; e (v) a organizao da

    sociedade civil21.

    17 Segundo Unger, o papel do governo na primeira plataforma do programa de transio seria conceder populaoeducao e meios econmicos que permitam o autodesenvolvimento independente e a cooperao entre as pessoas. (...) Essegoverno faz mais do que investir nas garantias econmicas e nas capacidades educacionais do seu povo. Ele tambm servecomo parceiro ocasional de uma multido de aspirantes a empresrios. (...) Esse governo gozaria de elevado nvel detributao e investiria em fazer com que pessoas se tornem pessoas (2004b, pp. lxxix/lxxx).18As dotaes econmicas dos cidados seriam garantidas atravs de contas sociais, que seriam compostas de recursos que

    poderiam ser sacados pelo indivduo em momentos relevantes da sua vida, tais como: incio da educao superior,matrimnio, aquisio de moradia ou incio de projeto empresarial. Com isso, os indivduos poderiam, para Unger, sair deposies de conjugao e submisso. A emancipao intelectual daria complemento s dotaes financeiras. Para tanto, serianecessrio, segundo Unger, revisitar completamente o contedo e o propsito do ensino. A tarefa da escola deveria passar aser resgatar a criana do seu mundo, dando a ele os meios intelectuais para compreender e julgar o mundo . Desde ocomeo, o ensino deveria ser guiado de acordo com o princpio central da imaginao, que consiste em penetrar no atualreinventando-o luz do possvel (2004b, pp. lxxxii-lxxxv).19A fundamentao dessa terceira plataforma transicional a compreenso de que ns podemos e devemos reorganizar aeconomia de mercado, ao invs de meramente regular ou compensar os seus resultados desiguais atravs de distribuiesretrospectivas (2004b, p. lxxxvi).20Segundo Unger, aps o fracasso verificado pelas democracias europeias no sculo XX, que dedicaram a primeira metadedo sculo a se exterminarem mutuamente e a segunda metade a afogarem as suas mgoas com gastos e consumo , essasmesmas democracias se colocaram aos cuidados de polticas burocratas que ensinaram a doutrina perigosa de que apoltica deve se tornar pequena para que os indivduos se tornem grandes. Nesse mundo, segundo Unger, tudo o que

    possui potencial para a mudana est trancafiado na imaginao individual. A superao desse momento de dormnciademocrtica, assim, depende do aumento de temperatura da poltica, que pode ocorrer mediante o engajamento de grandesmassas de pessoas em preocupaes cvicas e atividades polticas. Isso porque a energizao democrtica e poltica ,para Unger, depende da manuteno da sociedade em um elevado nvel de organizao cvica. O programa transicional,portanto, deve incluir iniciativas que aumentem o engajamento poltico das populaes, tais como o voto obrigatrio (comopraticado no Brasil), o financiamento pblico de campanhas (que, ao contrrio do que costumam pregar, j existe na prticano Brasil); o livre acesso dos partidos e das entidades de classe aos meios de comunicao, eleies antecipadas quepoderiam ser convocadas por qualquer dos poderes e mais hipteses de plebiscitos e referendos. Com isso, segundo Unger,seria possvel reverter a lgica poltica do sistema presidencialista, de modo a torn-lo em caminho para a acelerao dapoltica e no para a sua diminuio (2004b, pp. xci-xcvi).21Para Unger, a intensificao do engajamento cvico das populaes e o surgimento de novas formas de participao diretada sociedade civil na poltica so insuficientes se a sociedade civil continuar desorganizada ou organizada de maneiramuito desigual (2004b, p. xcvi). Consoante Unger, abandonar as exigncias organizacionais da sociedade civil aosinstrumentos tradicionais do direito privado significa resignar-se organizao marcadamente desigual, j que osmecanismos facilitadores do contrato sero usados por aqueles que, em certo sentido, j so organizados . Uma daspossveis solues, conforme Unger, seria que a sociedade civil adquirisse elementos de uma organizao de direitopblico, criando normas e redes de vida em grupo fora do Estado, paralelas ao Estado e inteiramente livres de influnciaou tutela estatal (2004a, pp. 29-30).

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    O projeto transicional acima sintetizado visto por Unger como um dos possveis

    primeiros passos rumo ao que poderia se transformar em caminho de cumulativas reformas

    institucionais nos arranjos entrincheirados em diversas democracias atuais. O pressuposto da

    transio, segundo Unger, seria a improvvel aliana entre trs classes de pessoas que hoje

    desempenham importantes papis nas democracias: (a) a classe pobre, geralmente

    estigmatizada; (b) a classe mdia trabalhadora; e (c) os profissionais dos setores de vanguarda

    da economia (2004b, p. ci). Essa aliana improvvel justamente porque depende de

    elemento que dificilmente poder ser imposto por qualquer arranjo institucional: a

    solidariedade22.

    Independentemente dessa constatao, interessante notar que no h qualquer

    meno, nesse programa transicional, s Cortes Constitucionais ou ao Poder Judicirio comoum todo. Em nenhum momento dito por Unger que os pilares da plataforma de transio

    seriam robustecidos mediante a efetivao jurisdicional de direitos fundamentais. Ao revs,

    Unger radicalmente contrrio definio abstrata de contedos de direitos fundamentais que

    poderiam ser titularizados por todos de maneira transcendental ao contexto (2004b, p. cv;

    2001, p. 355-382). Alm disso, Unger tambm no demonstra qualquer esperana de que

    Cortes Constitucionais poderiam ser as responsveis por criar o engajamento poltico faltante

    sociedade civil desorganizada ou, principalmente, o sentimento de solidariedade que necessrio para a organizao e subsequente energizao social.

    Qual , ento, a viso do experimentalismo institucional sobre o papel do direito nesse

    caminho de acelerao democrtica? Os dois prximos tpicos do primeiro captulo da

    dissertao sero exclusivamente dedicados a responder essa pergunta. No primeiro, sero

    apresentadas as crticas de Unger s teorias constitucionais dominantes. No segundo, ser

    delineada a proposta de reforjamento da anlise jurdica como ferramenta de

    experimentalismo institucional.

    22Possveis alternativas institucionais para o surgimento de solidariedade forada sero discutidas com maior detalhamentono item 3.2.3 da dissertao. No presente momento, necessrio mencionar, apenas, que seria extremamente relevante que ascincias sociais focassem as suas energias na criao de formas institucionais de educao sentimental massificada dosindivduos. Por educao sentimental, deve-se entender, conforme preconizado por Rorty, o tipo de educao [que] deixa as

    pessoas diferentes suficientemente familiarizadas umas com as outras, de modo que elas se sentem menos tentadas a pensarque aquelas que so diferentes delas so apenas semi-humanas. O objetivo da educao sentimental, nesse sentido, expandir a referncia dos termos nosso tipo de gente e gente como ns (2005, p. 211).

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    1.4- Guinada contra a anlise jurdica racionalizadora

    Como visto anteriormente, diferentemente do que fazem alguns autores da escola do

    pragmatismo domesticado, como Richard Posner (1998)23, Unger no ataca a teoria em si

    mesma. Ao contrrio, reconhece a indispensabilidade da teorizao, ao mesmo tempo em que

    admite os riscos de enfraquecimento imaginativo que dela decorrem. Assim, especificamente

    no direito, a guinada contra a teoria proposta por autores da linhagem de Posner d lugar, na

    obra de Unger, ao que se pode chamar de virada contra a anlise jurdica racionalizadora24.

    Unger prope que a anlise jurdica seja reforjada como instrumento de experimentalismo

    institucional (2004a, pp. 159-160). Com isso, encontra lugar inovador para a teoria, fugindo

    aos extremos equivocadamente defendidos na pouco enriquecedora discusso travada entreRonald Dworkin e Posner (1997; 1998) sobre a questo.

    Na obra O Direito e o Futuro da Democracia, Unger traz para o campo jurdico o

    seu conceito de sociedade artefato humano e o seu slogan de que tudo poltica, objetivando

    fazer com que a anlise jurdica se torne poderosa ferramenta de experimentalismo

    institucional. As consequncias dessa proposta so avassaladoras em relao a diversos

    lugares-comuns da teoria jurdica contempornea, notadamente no mbito do direito

    constitucional. Unger faz com que se torne impossvel evadir-se concluso de que osfetichismos estrutural e institucional e a tese da convergncia operam restritivamente de

    maneira cotidiana em relao ao desenvolvimento da atividade jurdica atual.

    A anlise do direito especialmente a teoria constitucional , segundo Unger,

    encontra-se hoje limitada estratgia superficial de enfrentamento do problema relacionado

    ao modo de assegurar as condies prticas do gozo efetivo de direitos, consistente

    exclusivamente na manuteno das estruturas institucionais atuais e no estudo das suas

    consequncias prticas. A anlise jurdica no trabalha com uma possvel segunda estratgia,que operaria segundo a lgica de pensamento imaginativo das estruturas institucionais em

    direes alternativas, por intermdio de experimentalismo (2004a, pp. 41-44).

    23A meno negativa ao pensamento de Posner, no presente trecho da dissertao, no deve ser lida como manifestao dedesprestgio valiosa obra do autor como um todo. Pelo contrrio, a obra de Posner extremamente relevante para opensamento do direito constitucional, a despeito de muito pouco estudada no Brasil. absolutamente correto o elogio deRorty no sentido de que Posner representa para o direito constitucional o que John Dewey significa para a filosofia. Tambmso corretas, contudo, as fortes crticas realizadas por Rorty a Posner em seguida ao elogio (2007b).24Por racionalismo, Unger entende: ideia de que podemos ter um fundamento de justificao e crtica das formas de vidaem sociedade, e que desenvolvemos esse fundamento por ponderao, que produz critrios de julgamento que atravessamtradies, culturas e sociedades (2004a, p. 207).

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    Para que se possa falar em completude da anlise jurdica, para Unger, esses dois

    momentos estratgicos devem ser necessariamente cumulativos, no seguinte sentido:

    Assim, o avano em direoao reconhecimento da essncia emprica e revogvel dosdireitos de escolha deve ser apenas o primeiro passo num movimento constitudo de dois

    passos. O segundo passo, seguido de perto pelo primeiro, seria a imaginao jurdica de

    pluralismos alternativos: a explorao, pela discusso programtica ou pela reforma

    experimental, de uma sequencia ou outra de mudana estrutural. Cada sequencia

    redefiniria os direitos e os interesses e ideais a que eles servem, ao mesmo tempo em que

    os realizaria mais efetivamente (2004a, p. 44).

    O desenvolvimento interrompido da anlise jurdica, verificado por Unger em todo o

    pensamento do direito na atualidade, seria marcado pela limitao da teoria e da doutrina ao

    primeiro passo.

    Inicialmente, cumpre destacar que fica claro, a partir da anlise do trecho acima

    transcrito da obra O Direito e o Futuro da Democracia, que, semelhantemente ao que fez

    com a teoria poltica, Unger no opera em bases niilistas em relao ao direito. Novamente, o

    experimentalismo institucional aplicado por Unger ao direito no rejeita totalmente o contexto

    e no permite que a analise jurdica, tendo quebrado o ambiente em que se insere, livremente

    permanea fora de qualquer outra espcie de amarra. Assim como em Politics, Unger no

    prope a transcendncia total ao ambiente. Sua proposta limita-se a reduzir a dependncia em

    relao aos contextos formadores. No por outro motivo, alis, que Unger encerra a obra O

    Direito e o Futuro a Democracia da seguinte maneira:

    Nossos interesses permanecem pregados cruz de nossas estruturas. No podemos

    realizar nossos interesses e ideais mais plenamente, nem redefini-los mais

    profundamente, at que aprendamos a refazer e a reimaginar nossas estruturas mais

    livremente.

    A histria no nos dar essa liberdade. Devemos conquist-la no aqui e agorado detalhe jurdico, do constrangimento econmico e das preconcepes que anestesiam.

    No a conquistaremos se continuarmos a professar uma cincia da sociedade que reduz o

    possvel ao real e um discurso sobre o direito que unge o poder com piedade. verdade

    que no podemos ser visionrios at que nos tornemos realistas. verdade tambm que

    para nos tornamos realistas devemos nos transformar em visionrios (2004a, p. 228).

    Unger aplica ao contexto, nesse trecho, o mesmo raciocnio que emprega em relao

    teoria. Como visto anteriormente, Unger utiliza ao mesmo tempo a teorizao excessiva e o

    seu oposto para que o arsenal terico no faa o estranho parecer natural, mas o natural

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    parecer estranho (2004b, pp. lvii-lviii). Exatamente o mesmo raciocnio empregado por

    Unger em relao anlise jurdica.

    O principal exemplo do desenvolvimento interrompido da anlise jurdica apontado

    por Unger relacionado s discusses travadas a respeito da jurisdicionalizao de polticas

    pblicas. O problema fundamental nessa discusso a dificuldade de entender os limites da

    sua aplicao. Isso porque, de acordo com Unger, em passagem que, embora destinada

    anlise do problema nos Estados Unidos, perfeitamente aplicvel ao Brasil, a partir do

    momento em que comeamos a mexer com organizaes relativamente perifricas, como

    prises e hospcios, (...) por que no continuar at alcanar empresas e organizaes

    burocrticas, famlias e governos locais?. De toda sorte, ainda que no se considere essa

    discusso e que se admita a limitao do alcance da interveno judicial em polticas pblicasaos campos perifricos atualmente discutidos, a percepo que falta na anlise jurdica desse

    problema justamente a de que, assim como os juzes, nenhum outro elemento do Estado

    atual suficientemente adequado, em virtude de capacidade prtica ou de interveno

    poltica, para empreender o trabalho de reconstruo estrutural ou episdica (2004a, p. 49).

    A melhor soluo, assim, seria que a anlise jurdica se abrisse para o

    experimentalismo institucional. O caminho imaginado por Unger, nesse sentido, seria a

    criao de novo agente: outro rgo do governo, um outro poder do Estado, concebido,eleito e dotado de recursos com o encargo expresso de conduzir essa tarefa inconfundvel de

    garantia de direitos (2004a, p. 49). Para isso, contudo, conforme j destacado, seria

    necessrio que a anlise jurdica completasse a passagem do primeiro (insistncia na

    efetividade do gozo de direitos) para o segundo passo (reimaginao e reconstruo

    institucional)25.

    A pobreza do pensamento jurdico atual, que no se limita a esse exemplo episdico,

    atribuda por Unger a um especfico momento especial da histria poltica moderna: o acertosocialdemocrata que definiu as condies e os limites dentro dos quais seria admissvel a

    defesa dos interesses de grupos organizados representativos de maiorias ou minorias (2004a,

    p. 52). Mais uma vez, cabe destacar que essa afirmao no revela viso negativista de Unger

    em relao soluo proposta pelo chamado Consenso de Washington e muito menos

    25No campo do controle jurisdicional de polticas pblicas, justamente a circunscrio da anlise jurdica ao primeiro passoque impede o surgimento de novas propostas de enfrentamento estrutural do assunto e que faz com que o pensamentojurdico fique adstrito aos pobres, embora no completamente desnecessrios, conceitos de reserva do possvel, mnimoexistencial, ncleo essencial, entre outros. Embora no seja objeto da presente dissertao analisar detidamente o problema

    da jurisdicionalizao de polticas pblicas, cabe destacar, a respeito da critica ora apresentada, que constitui bom exemplo deanlise a obra Weak Courts, Strong Rights, de Mark Tushnet (2008), justamente por apresentar sugestes de alteraoinstitucional e no simplesmente sofisticaes tericas de conceitos estticos.

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    representa indcio de que o experimentalismo institucional seja esquerdista. Como visto, a

    teoria de Unger supraliberal. A crtica ao fenmeno histrico em questo voltada

    equivocada percepo geral de que se trataria de consensoimutvel. Novamente, vale dizer

    que, para Unger, o neoliberalismo significou simples acontecimento poltico contingente. O

    erro reside na sua racionalizao retrospectiva, que tambm opera srios efeitos no mbito da

    anlise jurdica, notadamente no que diz respeito ao direito constitucional26.

    A consequncia do acerto socialdemocrata para o direito constitucional, portanto, seria

    a incapacidade de a anlise jurdica passar do primeiro momento (cuidado com o gozo dos

    direitos) para a etapa do experimentalismo institucional. Unger denomina essa anlise jurdica

    empobrecida de anlise jurdica racionalizadora (2004a, p. 53)27, a qual, segundo o autor,

    gozaria atualmente de grande e crescente influncia [n]o espao imaginativo em que aselites do judicirio e as elites acadmicas e profissionais do direito discutem o direito e

    desenvolvem seu conhecimento prtico e aplicado (2004a, p. 55). A sua principal

    caracterstica seria a busca por representar grandes pedaos do direito como expresses,

    conquanto expresses imperfeitas, de conjuntos ligados de polticas pblicas e princpios

    (2004a, p. 54). O principal diferencial da anlise jurdica racionalizadora seria a ingnua

    suposio de que os ideais de polticas pblicas e princpios, independentemente do seu

    contedo, seriam inerentes ao direito e deveriam apenas ser explicitados por intrpretesdevidamente capacitados e motivados.

    26Essa critica fica bastante clara a partir da anlise do seguinte trecho da obra O Direito e o Futuro da Democracia: Asrazes mais importantes para a interrupo do desenvolvimento do pensamento jurdico se encontram na histria polticamoderna. No obstante, a simples atribuio dos limites do pensamento jurdico contemporneo aos constrangimentos sobrea transformao poltica dos contextos sociais insuficiente, como explicao, por vrios motivos. (...) no obstanteverdade que, como qualquer arranjo institucional, o acerto socialdemocrata importou a renncia a um campo maior deconflito e controvrsia. Os governos nacionais conquistaram o poder e a autoridade para administrar a economia emsentido contrrio ao dos ciclos econmicos, para reequilibrar, mediante polticas fiscais de transferncia, os efeitos

    desniveladores do crescimento econmico e para tomar as iniciativas de investimento que pareciam necessrias lucratividade. Por outro lado, contudo, tiveram que renunciar ameaa de reorganizar radicalmente o sistema de produoe troca e de, por esse meio, reformular a distribuio primria da riqueza e da renda na sociedade. A recusa da anlisejurdica em passar da preocupao com o gozo de direitos para a perseguio de mudana institucional pode simplesmenteparecer a contrapartida jurdica da recusa do acordo socialdemocrata a um conflito mais amplo. O papel do reformadorjurdico prtico seria o de continuar e terminar o trabalho inacabado da reforma socialdemocrata. A tarefa do pensador dodireito seria a de desenvolver uma teoria do direito que, mais livre da devoo do sculo XIX a um sistema de direitopredeterminado, fizesse justia s promessas socialdemocratas. Desse ngulo, a renncia em passar do tema do gozo efetivode direitos para a prtica da crtica institucional parece ser uma consequncia da renncia a um experimentalismoinstitucional mais amplo. Tal renncia constituiu uma condio essencial do acerto socialdemocrata.(2004a, pp. 51-52).27Para Unger, em clara aplicao ao mbito do direito dos seus postulados de que a sociedade artefato humano e que tudo poltica, no existe tal coisa como o raciocnio jurdicouma parte imutvel de um corpo imaginrio de formas deinvestigao e discurso, dotado de um ncleo permanente de alcance e mtodo. O que temos so apenas estruturasinstitucionais historicamente localizadas e discusses historicamente localizadas.No faz sentido perguntar Que a anlisejurdica? como se o discurso (dos profissionais do direito) a respeito do direito tivesse uma essncia imutvel. Ao lidar comesse discurso, o que podemos corretamente perguntar Sob que forma recebemos e no que devemos transform -lo?. Nestelivro, sustento que hoje podemos e devemos transform-lo num dilogo continuado sobre nossas estruturas. (2004a, pp. 53-54).

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    O mtodo mais importante utilizado pela anlise jurdica racionalizadora para

    interromper o pensamento do direito , segundo Unger, a resignao ao j mencionado

    fenmeno do fetichismo institucional. No mbito jurdico, o fenmeno em questo descreve

    as instituies, os discursos e as prticas atuais como as nicas formas possveis aps o crivo

    da histria. A prtica da anlise jurdica racionalizadora consiste, portanto, justamente em

    racionalizar retrospectivamente polticas congeladas. O exerccio contnuo desse mtodo gera

    a inibio do direito para atividades de experimentalismo institucional. Assim como ocorre

    em relao poltica, consoante j mencionado anteriormente, a imaginao democrtica

    somente teria espao no mbito do direito, segundo o mtodo da anlise jurdica

    racionalizadora, em momentos mgicos e especiais de crise.

    A anlise jurdica racionalizadora ignora, contudo, que, mesmo no primeiro momentodo pensamento do direitocomo o caso da ausncia de concretizao dos direitos sociais no

    Brasilas principais razes de frustao do gozo pleno de direitos positivados podem residir

    justamente na impossibilidade de concretizao de prticas que no podem ser alcanadas

    segundo as regras do arcabouo institucional e normativo vigente.

    Quatro razes negativas principais, assim, so identificadas por Unger como

    fundamentos da anlise jurdica racionalizadora: (a) o preconceito contra a analogia

    irrefletida; (b) a crena na necessidade de defesa de determinado sistema de direitos; (c) oprojeto poltico do reformismo progressista pessimista e (iv) a obsesso com o papel

    dominante do juiz (2004a, pp. 80-147).

    O preconceito contra a analogia revela a pressuposio, da anlise jurdica

    racionalizadora, de que existiria um modo coerente e claro de se pensar sobre o direito que

    poderia ser alcanado se o jurista apenas se dispusesse a refletir longamente. O seu inimigo

    principal, portanto, seria o exerccio irrefletido da analogia por parte do jurista28. A

    necessidade de clareza do pensamento sobre o direito imporia, segundo a anlise jurdicaracionalizadora, a obrigatoriedade de abandono da analogia. A analogia seria, para a anlise

    jurdica racionalizadora, mera forma incipiente de raciocnio, o que o engatinhar representa

    para o andar (2004a, p. 81).

    Para Unger, esse preconceito contra a analogia revela a equivocada presuno de

    racionalidade dos padres da anlise jurdica. Representa, assim, a completa e equivocada

    desconsiderao de que os postulados a sociedade artefato humano e tudo poltica se

    28 O mtodo da analogia assim descrito por Unger: grande parte dos raciocnios de advogados em muitas tradiesjurdicas confere um papel central comparao e distino analgicas, prendendo-se ao fundo de costume e deprecedente e se recusando a subir a escada da abstrao, da generalizao e do sistema (2004a, p. 80)

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    aplicam totalmente ao direito. Alm disso, segundo Unger, o desmerecimento da analogia

    significa clara ignorncia histrica dos defensores da anlise jurdica racionalizadora, uma vez

    que:

    Mesmo na histria mundial da doutrina jurdica, as formas analgicas ou glossatoriais de

    raciocnio exerceram muito mais influncia, e em perodos mais contnuos, do que as

    abstraes em busca de princpios dos juristas sistemticos ou racionalistas. Com

    frequncia, o grupo da analogia teve um sentimento seguro de sua superioridade no

    embate com o grupo da racionalizao. Assim, por exemplo, os ltimos defensores da

    jurisprudncia republicana romana menosprezaram a racionalizao jurdica como a

    corrupo, pela fora dupla do racionalismo grego e da dominao burocrtica, de um

    ofcio elevado e mais sutil. Os realistas e os ps-realistas jurdicos americanos fizeram o

    mesmo quando idealizaram o common law como produto de um raciocnio

    contextualizado e experimental que fez a abstrao jurdica parecer intelectualmente

    fechada.(...) A incongruncia do desprezo pela analogia se torna ainda mais evidente

    quando lembramos que o estilo analgico de pensamento serviu como veculo mais

    influente na histria de ideias sobre esprito e personalidade no Ocidente: o entendimento,

    nas religies semitas monotestas do judasmo, do cristianismo e islamismo, da relao

    entre Deus e a humanidade por analogia s relaes entre as pessoas (2004a, p. 83).

    Unger vai mais alm e afirma que, alm de no representar mtodo constante na

    experincia histrica mundial, a represso contra o juzo analgico no pensamento jurdico

    desembocaria, se conseguisse ser alcanada, numa desumanizao radical do direito: um

    mtodo para as pessoas e outro para as regras(2004a, p. 84).

    A justificativa comumente empregada pelos defensores da anlise jurdica

    racionalizadora para justificar o banimento do raciocnio analgico o j mencionado receio

    de que o abandono da abstrao possa permitir a abolio de valores relevantes, geralmente

    identificados com os compromissos de manter o Estado de Direito e determinado sistema de

    direitos. Conforme j visto anteriormente, esse argumento o mesmo utilizado por aqueles

    que criticam a resposta proposta pelo pragmatismo radical pergunta como o homem pode

    corrigir e melhorar o seu contexto deliberadamente e com alguma certeza a respeito da

    correo das suas escolhas?.

    O argumento de que o slogan tudo poltica possui repercusses perigosas decorrentes

    do abandono de qualquer pretenso racionalista, como j mencionado, no resiste

    constatao de Rorty no sentido de que o que a histria poltica no pode ensinar, a filosofia

    tambm no (1991, pp. 296-297). Isso porque, como j mencionado, no possuem os

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    filsofos profissionais e os especialistas em anlise jurdica racionalizadora o poder de

    antever a histria. No por outro motivo, alis, que os pragmatistas no aceitam a ingnua

    ideia de que seria a evoluo da teoria jurdica o caminho apto a evitar que Cortes

    Constitucionais proferissem novas decises catastrficas como Dred Scott (Rorty, 1989-1990,

    p. 1.818).

    De toda sorte, justamente a hipottica necessidade de que a sociedade se autoimunize

    racionalisticamente contra futuros indesejados que fundamenta, consoante Unger, a segunda

    raiz da anlise jurdica racionalizadora, qual seja: a defesa do Estado de Direito e de

    determinado sistema de direitos. Supe a anlise jurdica racionalizadora que a adeso ao

    mtodo analgico no teria a capacidade de manter as pessoas seguras em relao aos seus

    direitos, uma vez que, se a lista de fins pertinentes aberta, e se o mtodo de raciocnio no-cumulativo, o fundamento para a crtica de qualquer comparao ou distino analgica

    permanecer sempre frgil, de modo que o analogista ser capaz de escapar ileso fazendo

    tudo o que quiser fazer(2004a, p. 85).

    Repetindo o que Rorty disse em relao aos limites da filosofia e tambm explicitando

    o que naturalmente decorre dos seus postulados a sociedade artefato humano e tudo

    poltica, Unger combate o medo contra o resultado da analogia afirmando que, se a analogia

    no capaz de conter a arbitrariedade, tambm no o , por outro lado, a disposio deconsiderar o raciocnio jurdico como um substituto para o conflito ideolgico contnuo na

    sociedade (2004a, p. 86). Alis, caso a crena da anlise jurdica racionalizadora no sistema

    de direitos realmente significasse o que os seus defensores imaginam, a consequncia seria a

    inadmissvel a ideologizao do direito. Isso porque independentemente do contedo das leis

    editadas pelas Casas Legislativas, os especialistas em anlise jurdica racionalizadora seriam

    capazes de livremente reinvent-las, sob o pretexto de reinterpret-las. Com efeito, se

    realmente o sentido da democracia fosse descobrir a forma transcendental racional ideal devida, conforme preconiza a anlise jurdica racionalizadora, o papel das instituies

    representativas atuais seria extremamente reduzido, quase irrelevante.

    Para Unger, o conflito ideolgico contnuo na sociedade deve ser reconhecido pela

    anlise jurdica e precisa ser estimulado atravs da acelerao da poltica. Assim, a

    discricionariedade do intrprete ou do julgador que decorre da adoo do mtodo analgico

    pragmatista deve ser entendida como inevitvel. Alis, representaria ingenuidade esperar que

    a aplicao da anlise jurdica racionalizadora neutralizasse as arbitrariedades no direito, uma

    vez que toda prtica de anlise jurdica concede alguma espcie de liberdade ao intrprete. A

  • 7/24/2019 Rodrigode Mudrovitsch - Desentrincheiramento da Jurisdio Constitucional

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    pretenso do jurista, contudo, no deve ser a racionalizao retrospectiva dos conflitos

    polticos permanentes na forma de princpios e polticas pblicas. A sada no ancorar por

    cima a anlise jurdica a partir de abstraes contrafactuais pretensamente universais. O

    experimentalismo institucional proposto por Unger prefere o atrelamento do direito por baixo,

    a analogias contextualizadas. A voz da razo, nesse sentido, no deve ser vista como

    mecanismo apto a permitir a reordenao da confuso poltica pelo direito. O risco decorrente

    dessa racionalizao jurdica seria exatamente travestir o aperfeioamento reconstrutivo

    ideologizado sob a forma interpretao fiel (2004a, pp. 90-91)29.

    Nesse tocante, as consequncias da anlise jurdica r