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Sinopse Começado a rodar a uns meses do fim da Segunda Guerra Mundial (os Aliados tinham acabado de expulsar os nazis da cidade de Roma), Roma, Cidade Aberta é uma das obras-primas de Rossellini, pioneira do que viria a chamar-se o neo-realismo italiano. É uma história de resistência contra a ocupação nazi, rodada em cenários reais. Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), líder da Resistência italiana, é descoberto pelos nazis. Procura ajuda em casa do amigo Francesco (Francesco Grandjacquet), mas é a noiva deste, Pina (Anna Magnani) que o vai ajudar, avisando o padre Don Pietro Pellegrini (Aldo Fabrizi) que Giorgio tem de deixar a cidade imediatamente. Anna Magnani tornou-se uma estrela de cinema internacional com esta fabulosa e comovedora interpretação de uma mulher grávida e solteira que é apanhada pelo fervilhar dos acontecimentos no dia do seu casamento. Roma, Cidade Aberta recebeu o Grande Prémio do Festival de Cannes em 1946 e Sergio Amidei e Federico Fellini, que escreveram o guião, foram nomeados para o Óscar de Melhor Argumento em 1947. O filme, que mantém o seu poder emocional, teve, na altura, o efeito de uma “bomba” (e por cá também, muitos anos mais tarde, em 1973, numa memorável sessão na Fundação Gulbenkian — ver texto em baixo —, que João Bénard da Costa descreveu como “a mais inesquecível sessão de cinema da [sua] vida”, quando o próprio Rossellini ali o apresentou, “fintando” a censura, e se ouviram gritos de “Viva a Liberdade”). Festival de Cannes, 1946 — Grande Prémio Óscares, 1947 — Nomeação para Melhor Argumento ROMA, CIDADE ABERTA um filme de Roberto Rossellini com Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero, Francesco Grandjacquet Versão Digital Restaurada | Itália, 1945, P & B, 1h40 | M/12 «Foi a 17 de Fevereiro de 1945 que Rossellini começou a rodagem de Roma città aperta. A princípio deveria ser apenas um documentário sobre a vida do abade Don Morosini, fuzilado pelos Alemães durante a ocupação. O filme acabou por ser feito nas piores condições financeiras e técnicas. Como nada mais havia, por assim dizer, que material de fotografia profissional, Rossellini comprou rolos de película de 35mm a fotógrafos de rua, que os utilizavam nas suas Leica; e como não havia dinheiro para a revelação, não pôde ver os rushes durante a rodagem. Ficou, por conseguinte, limitado às takes que tinham sido bem conseguidas. […] Em Roma città aperta, Rossellini atinge um notável domínio a nível da sua descrição. Isso fica a dever-se, por um lado, à excelente qualidade dos actores que, nessa altura, eram perfeitos desconhecidos (Anna Magnani e Aldo Fabrizi, sobretudo) e, por outro lado, pelo facto de cada pormenor de mise-en-scène ter a sua importância: Roma città aperta não conta apenas uma história, que é suporte da acção (a perseguição a Manfredi e a sua detenção), mas, ao mesmo tempo, uma dúzia de outras histórias.» Rudolph Thome Rossellini em Lisboa «17 de Novembro de 1973 foi a noite da mais memorável sessão de cinema do meu filme da vida. Nunca tive outra igual e duvido que venha a ter. Passou-se, ou fixou-se, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e o filme projectado na tela chama-se Roma città aperta. Roberto Rossellini realizara-o 28 anos antes dessa noite. Foi nessa noite que se inaugurou o primeiro de 31 ciclos de cinema que nestes 16 anos tiveram lugar naquela sala […] Com [Henri] Langlois discuti o arranque dos ciclos, ideia para que logo tive o seu incondicional apoio. E fez-se rápido consenso sobre Rossellini.[…] Langlois prometera-me que convenceria Rossellini a vir. E Rossellini veio. À época, o anúncio deste ciclo foi uma festa. [...] Quando Rossellini chegou à Gulbenkian, não cabia na sala um alfinete. [...] Não se ouviu uma mosca durante os 100 minutos de projecção do filme [...] Quando apareceu na tela a palavra “fim”, a sala levantou- se em peso para a maior ovação de que me recordo em sessões de cinema. No palco, Rossellini “com uma emoção que não disfarçava, mas também não exibia”, como escreveu Helena Vaz da Silva no dia seguinte, esperou 10 minutos (não exagero) antes de conseguir agradecer. 10 minutos em que os “bravos” deram lugar a distintíssimos brados do género: “Abaixo o fascismo” ou “Liberdade, liberdade”. [...] à saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará. [...] Rossellini estava espantadíssimo. O filme tinha tido acolhimentos desses, mas em 45 ou 46, no fim da guerra e do fascismo em Itália. Vinte e oito anos depois que “aquilo” ainda funcionasse assim, parecia-lhe da “Todos os caminhos levam a Roma, Cidade Aberta.Jean-Luc Godard Roma città aperta

ROMA, CIDADE ABERTA · de Roma, do ponto de vista germânico, encenando, com semelhante economia de sentidos e de meios, a devastação moral de um mundo em ruínas.» Mário Jorge

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Page 1: ROMA, CIDADE ABERTA · de Roma, do ponto de vista germânico, encenando, com semelhante economia de sentidos e de meios, a devastação moral de um mundo em ruínas.» Mário Jorge

SinopseComeçado a rodar a uns meses do fim da Segunda Guerra Mundial (os Aliados tinham acabado de expulsar os nazisda cidade de Roma), Roma, Cidade Aberta é uma dasobras-primas de Rossellini, pioneira do que viria a chamar-se o neo-realismo italiano.É uma história de resistência contra a ocupação nazi, rodada em cenários reais.Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), líder da Resistência italiana, é descoberto pelos nazis. Procura ajuda em casa do amigo Francesco (Francesco Grandjacquet), mas é a noiva deste, Pina (Anna Magnani) que o vai ajudar, avisando o padre Don Pietro Pellegrini (Aldo Fabrizi) que Giorgio tem de deixar a cidade imediatamente.Anna Magnani tornou-se uma estrela de cinema internacional com esta fabulosa e comovedora interpretação de uma mulher grávida e solteira que é apanhada pelo fervilhardos acontecimentos no dia do seu casamento. Roma, Cidade Aberta recebeu o Grande Prémio do Festival de Cannes em 1946 e Sergio Amidei e Federico Fellini, que escreveram o guião, foram nomeados para o Óscar de Melhor Argumento em 1947.O filme, que mantém o seu poder emocional, teve, na altura, o efeito de uma “bomba” (e por cá também, muitos anos mais tarde, em 1973, numa memorável sessão na Fundação Gulbenkian — ver texto em baixo —, que João Bénardda Costa descreveu como “a mais inesquecível sessão de cinema da [sua] vida”, quando o próprio Rossellini ali o apresentou, “fintando” a censura, e se ouviram gritosde “Viva a Liberdade”).

Festival de Cannes, 1946 — Grande PrémioÓscares, 1947 — Nomeação para Melhor Argumento

ROMA, CIDADE ABERTAum filme de Roberto Rossellinicom Anna Magnani, Aldo Fabrizi, Marcello Pagliero,Francesco GrandjacquetVersão Digital Restaurada | Itália, 1945, P & B, 1h40 | M/12

«Foi a 17 de Fevereiro de 1945 que Rossellini começou a rodagem de Roma città aperta. A princípio deveria ser apenas um documentário sobre a vida do abade Don Morosini, fuzilado pelos Alemães durante a ocupação. O filme acabou por ser feito nas piores condições financeiras e técnicas. Como nada mais havia, por assim dizer, que material de fotografia profissional, Rossellini comprou rolos de película de 35mm a fotógrafos de rua, que os utilizavam nas suas Leica; e como não havia dinheiro para a revelação, não pôde ver os rushes durante a rodagem. Ficou, por conseguinte, limitado às takes que tinham sido bem conseguidas.[…]Em Roma città aperta, Rossellini atinge um notável domínio a nível da sua descrição. Isso fica a dever-se, por um lado, à excelente qualidade dos actores que, nessa altura, eram perfeitos desconhecidos (Anna Magnani e Aldo Fabrizi, sobretudo) e, por outro lado, pelo facto de cada pormenor de mise-en-scène ter a sua importância: Roma città aperta não conta apenas uma história, que é suporte da acção (a perseguição a Manfredi e a sua detenção), mas, ao mesmo tempo, uma dúzia de outras histórias.»Rudolph Thome

Rossellini em Lisboa

«17 de Novembro de 1973 foi a noite da mais memorável sessão de cinema do meu filme da vida. Nunca tive outra igual e duvido que venha a ter. Passou-se, ou fixou-se, no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian e o filme projectado na tela chama-se Roma città aperta. Roberto Rossellini realizara-o 28 anos antes dessa noite.Foi nessa noite que se inaugurou o primeiro de 31 ciclos de cinema que nestes 16 anos tiveram lugar naquela sala […] Com [Henri] Langlois discuti o arranque dos ciclos, ideia para que logo tive o seu incondicional apoio. E fez-se rápido consenso sobre Rossellini.[…] Langlois prometera-me que convenceria Rossellini a vir. E Rossellini veio.À época, o anúncio deste ciclo foi uma festa.[...] Quando Rossellini chegou à Gulbenkian, não cabia na sala um alfinete. [...] Não se ouviu uma mosca durante os 100 minutos de projecção do filme [...]Quando apareceu na tela a palavra “fim”, a sala levantou-se em peso para a maior ovação de que me recordo em sessões de cinema. No palco, Rossellini “com uma emoção que não disfarçava, mas também não exibia”, como escreveu Helena Vaz da Silva no dia seguinte, esperou 10 minutos (não exagero) antes de conseguir agradecer. 10 minutos em que os “bravos” deram lugar a distintíssimos brados do género: “Abaixo o fascismo” ou “Liberdade, liberdade”. [...] à saída, as pessoas abraçavam-se e muitas choravam. Quem não esteve lá nunca imaginará. [...] Rossellini estava espantadíssimo. O filme tinha tido acolhimentos desses, mas em 45 ou 46, no fim da guerra e do fascismo em Itália. Vinte e oito anos depois que “aquilo” ainda funcionasse assim, parecia-lhe da

“Todos os caminhos levam a Roma, Cidade Aberta.”Jean-Luc Godard

Roma città aperta

Page 2: ROMA, CIDADE ABERTA · de Roma, do ponto de vista germânico, encenando, com semelhante economia de sentidos e de meios, a devastação moral de um mundo em ruínas.» Mário Jorge

«De qualquer modo, Roma, Cidade Aberta assume-se como o corte definitivo, como uma espécie de manifesto da estética do pós-guerra: um cinema pobre, rodado em cenários naturais, iluminados com os parcos recursos que restavam, com som directo e uma mistura revolucionária de actores (o fabuloso Aldo Fabrizi, no padre, cujo fuzilamento final ficará como uma das imagens maiores do cinema, e o carisma inigualável da ainda jovem Anna Magnani) e não-actores, visando apreender o real sem quaisquer embelezamentos, nem glamorosas caricaturas de personagens. Apelo emocional à resistência política e belíssimo fresco de uma Itália devastada pelo fascismo e pela ocupação alemã, que se seguira à queda de Mussolini, o filme permanece inalterado, com a mesma força da estreia, olhar novo e revigorante, a virar o cinema de pernas para o ar. Ao seu lado, numa espécie de tríptico, avultam ainda Paisà (1946), a dar forma ao tão influente filme de sketches, crónica de uma resistência medida e fragmentação desmesurada do olhar fílmico, bem como Alemanha, Ano Zero (1947), contraponto de Roma, do ponto de vista germânico, encenando, com semelhante economia de sentidos e de meios, a devastação moral de um mundo em ruínas.»Mário Jorge Torres, Público

«[…] basta ver o trabalho de mise-en-scène de interiores, em particular a significância dada à luz e às sombras, para se perceber a enorme mestria do cineasta.»Jorge Leitão Ramos, Expresso

“Ricordati, Fabrizio, non si può mica vivere senza Rossellini.”(“Lembra-te, Fabrizio, não se pode viver sem Rossellini.”)

Prima della rivoluzione / Antes da Revolução,de Bernardo Bertolucci

ordem do inexplicável. “Que país era este?” Lá lhe expliquei como pude. Foi então que Langlois, mais frio, me disse que o país podia ser assim ou assado, mas dentro de bem pouco tempo muitas coisas se iriam passar aqui. Habituado, há vinte anos, a frases dessas, respondi-lhe com enorme cepticismo. Alguns meses depois, a seguir ao 25 de Abril, lembrei-me desse comentário e perguntei-lhe por que é que ele tinha dito aquilo, como é que tinha adivinhado. “Sabe, — ripostou-me — o cinema mudo ensinou-me a ver muito. Não foi a algazarra que me impressionou, mas as caras das pessoas. As caras dos maus e as caras dos bons.” E repetiu a rir-se: “Le cinéma muet, le cinéma muet”.Às vezes lembro-me disso e em comícios ou manifestações tiro o som à televisão, ou esforço-me por tapar os ouvidos. Langlois tinha razão.»João Bénard da Costa, Os Filmes da Minha Vida,Os Meus Filmes da Vida, Assírio & Alvim

Depoimento de Anna Magnani

«Roma, Cidade Aberta foi o filme mais importante da minha vida. Não houve ensaio da cena da morte. Com Rossellini nunca se ensaiava: filmava-se, é tudo. Ele sabia que depois de preparado o ambiente, eu arrancava. Durante o tiroteio, depois de ter passado a porta principal, de repente vi coisas já vistas... coisas que me mergulharam no tempo em que os alemães, em Roma, levavam os jovens à força. Porque era o próprio povo que estava contra as paredes. E os alemães eram alemães vindos de um campo de prisioneiros. De repente, eu já não estava em mim. Isto é, eu era a personagem. Sim, Rossellini tinha preparado a rua de uma forma extraordinária.As mulheres empalideceram ao ouvir, de novo, os nazis a falarem uns com os outros. E isso transmitiu-me a angústia que se vê no ecrã. Foi terrível. Não esperava uma emoção tal.»in Anna Magnani, col. cinéma/ singulier, dir. Jean-Loup Passek,Centre Georges Pompidou

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