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GREG WOOLF ROMA A HISTÓRIA DE UM IMPÉRIO Tradução José Vala Roberto

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GREG WOOLF

ROMAA HISTÓRIA DE UM IMPÉRIO

TraduçãoJosé Vala Roberto

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Índice

Prefácio

1. A História Completa2. Impérios da Mente3. Senhores de Itália4. Ecologia Imperial5. Hegemonia Mediterrânica6. Escravatura e Império7. Crise8. Às Ordens do Céu?9. Os Generais

10. O Prazer do Império11. Os Imperadores12. Os Recursos do Império13. Guerra14. Identidades Imperiais15. Recuperação e Queda16. Um Império Cristão17. Decadência18. O Passado e o Futuro Romanos

NotasLista de IlustraçõesLista de MapasNotas sobre Futuras LeiturasBibliografiaGlossárioCréditos FotográficosÍndice Remissivo

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Prefácio

Todas as histórias de Roma são histórias de império. A ascensão ao poder, a prolongada paz e o ainda mais prolongado declínio formam em conjunto o cenário de todas as histórias contadas sobre os roma-nos. Contudo, o meu assunto é o próprio império. Como se desen-volveu? O que lhe permitiu resistir às derrotas e capitalizar com as vitórias? Porque teve Roma sucesso quando os seus rivais falharam? Como conseguiu o império sobreviver às crises, como logrou proteger--se e repor a estabilidade após as caóticas campanhas de conquista? Como conseguiu o império coordenar os grandes fluxos de riqueza e as populações de que dependia? Como evoluiu para enfrentar novas necessidades e novas ameaças? Porque vacilou, recuperou o seu equi-líbrio e depois se contraiu sob uma série de golpes militares até vol-tar a ser, mais uma vez, uma cidade-estado? Que tecnologias e que circunstâncias tornaram possíveis a criação e a manutenção de um império, naquele local e momento precisos? Que instituições, costu-mes e crenças se adaptavam a Roma para este papel? E que efeito teve a realidade do império em todas as crenças, costumes e instituições com os quais o mundo fora conquistado? Que papel desempenhou o acaso nos seus sucessos e nos seus fracassos?

O longo arco que se estende desde um amontoado de aldeias, na margem do rio Tibre, até uma cidade medieval, no estreito do Bós-foro, que sonha com antigas glórias dura um milénio e meio. Contar essa história num único volume é talvez um empreendimento insen-sato, mas sem dúvida estimulante. Talvez, entre os muitos períodos do passado em que possamos pensar e que deram forma ao nosso mundo, a história de Roma não tenha para nós um especial apelo. Mas enquanto estudante senti-me fascinado por estudar algo tão vasto, uma entidade que se propagou ao longo de tanto tempo e tanto

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PREFÁCIO

espaço. O que poderá ter sustentado um empreendimento humano concebido em tão larga escala? Como pôde algo de humano perdurar tanto tempo? As experiências do nosso próprio mundo mudam com uma velocidade extraordinária. Gerações anteriores, confiantes na perenidade dos seus próprios impérios e na marcha ininterrupta do progresso, sentiram-se fascinadas pelo declínio e queda de Roma. Para nós é a sua longevidade que prende a imaginação. O meu próprio fascínio não diminuiu desde os meus tempos de estudante. Mesmo hoje, o mundo romano ainda me parece, por vezes, uma grande caixa de areia onde posso brincar, ou então um enorme laboratório histó-rico em que todo o tipo de entidades e processos há muito vividos podem ser estudados. Neste aspeto, a história de Roma é como a astronomia, não se podem conceber nem realizar novas experiên-cias, mas há uma massa vasta de fenómenos que é possível observar através de minúsculos pacotes de informação residual, e as forças e acontecimentos cataclísmicos que formaram o universo observável podem ser reconstruídos. Tal como os astrónomos, os historiadores da Antiguidade procuram padrões e procuram explicá-los. Este livro é uma tentativa de o fazer em relação aos que observei.

O Império Romano convida à metáfora. Os antigos usavam fre-quentemente uma analogia biológica: cada império ou estado teve a sua juventude, a sua maturidade e a sua velhice. Um historiador moderno usou a metáfora do morcego-vampiro, vendo o império como o meio através do qual os romanos sugavam a vida aos camponeses e escra-vos de cujo trabalho o império dependia. Quanto a mim, o Império Romano não se assemelha muito a uma entidade orgânica, a não ser que seja uma epidemia que contamina toda a população hospedeira, esgotando as energias dos infetados até se extinguir. Creio que as ana-logias com as ciências naturais captam melhor o padrão do império. O Império Romano foi como uma grande maré que arrastou consigo ondas sucessivas de mais e mais água antes de dissipar a sua energia. Ou então foi uma avalancha, que começou pequena, foi crescendo com os fragmentos de neve e de rocha que arrastava, e depois voltou a diminuir ao chegar ao sopé da encosta. Ambas as metáforas captam a noção de um grande padrão que começa pequeno, arrasta consigo mais matéria e mais energia, e depois se dissipa. Este padrão – o império – move-se

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PREFÁCIO

no tempo, e durante alguns momentos arrasta outros padrões, até se dissipar ou ser absorvido por movimentos maiores. O império cresce, nem sempre sem problemas, domina durante algum tempo e depois cai. Um antigo vice-reitor de St. Andrews sugeriu que eu penso este assunto como se fosse um fenómeno de ressonância, o estabeleci-mento gradual de um padrão de vibração através de uma vasta massa de pessoas e coisas que acaba por perder coerência e se fragmenta em padrões mais pequenos. Isto parece captar com precisão a emergência de uma ordem imperial e da sua subsequente dissipação. A essência do império é a asserção de um grande padrão à custa de outros mais pequenos. Esse padrão é caracteristicamente menos igualitário e mais hierárquico do que a realidade anterior. Novos níveis de complexidade significam que alguns dos mais ricos ficam mais ricos, alguns dos pobres são submetidos a uma disciplina mais severa, embora a mobilidade social estimulada pelo império compreenda a existência de vencedores e vencidos em todos os níveis. Materialmente o padrão do império envolve movimentos regulares de pessoas e bens, grandes fluxos de impostos e mercadorias. Essas rotinas de movimento são agora refle-tidas pelos vestígios de estradas e portos, o esqueleto fossilizado que outrora sustentou a matéria mole do império humano. Tenho pro- curado dar atenção à matéria sólida, mas uma das alegrias da história de Roma é a de que também podemos escutar as vozes de tantos que nela participaram ativamente. Tenho tentado, da mesma forma, captar e relatar as suas perceções do império.

Ao escrever este livro procurei manter em mente esta noção de que o império é um movimento através do tempo histórico, não um conjunto fixo de instituições. Quase no fim da minha história, em Bizâncio, tudo está mudado. Os romanos falam grego em vez de latim, a capital é agora numa antiga província conquistada e os bár-baros governam na velha cidade de Roma, que tem um novo deus, novos costumes e uma nova noção do seu passado e do seu futuro. Um mundo de cidades transformou-se (novamente) num mundo gover-nado por uma só cidade. Istambul deriva afinal da expressão medieval grega eis ten Polin, «dentro da cidade». Porém, ainda era Roma.

Ainda assim, algumas instituições foram, no decorrer de longos períodos, absolutamente decisivas para a longa história do império,

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PREFÁCIO

e de muitas formas o mundo, dentro do qual o poder romano se propagara e depois contraíra, era estável. Procurei captar esta combi-nação de evolução constante com estabilidade estrutural prolongada, alternando capítulos que avançam com a história com outros que me permitem recuar por um momento – como que fora do tempo – e salientar algo que tenha um significado perene. Os leitores aten-tos irão notar, tal como eu, que esta divisão não tem sustentação. Mas, ocasionalmente, os historiadores têm de fazer concessões ao seu material. Outra concessão ao meu material é a das listas de datas fundamentais que precede os capítulos ímpares: a jornada dos roma-nos foi tão complexa quanto longa e, como seguimos no lugar de passageiro, o peculiar mapa de estradas pode, por vezes, ser útil.

As metáforas são um tipo de inspiração. O mesmo sucede com a comparação. Este livro não é um exercício sistemático de história comparativa, confrontando Roma com outros impérios antigos (ou até modernos). A comparação é um método interessante, mas é extraor-dinariamente difícil dadas as lacunas no nosso conhecimento sobre os antigos impérios e o inconveniente de que de um império para outro as lacunas não são as mesmas. Mas o meu raciocínio é baseado na reflexão sobre outros impérios, por vezes procurando descobrir uma tendência, mais frequentemente como forma de discernir o que é invulgar ou até único sobre o caso romano. As leituras amplas e variadas ajudam, mas tenho perfeita consciência do quanto aprendi ao participar em conferências e encontros nos quais especialistas em outras disciplinas generosamente partilharam o seu conhecimento. De tantas dessas ocasiões, gostaria de salientar uma conferência orga-nizada por Susan Alcock, Terry D’Altroy, Kathy Morrison e Carla Sinopoli, em Las Mijas, em 1997, generosamente patrocinada pela Fundação Wenner-Gren – que pela primeira vez me deu a ideia para este projeto – e também toda a série de workshops dedicada ao estudo comparativo de impérios, organizada com uma energia extraordinária por Peter Fibiger Bang, com o patrocínio da Fundação Europeia para a Ciência, ao abrigo da Ação 36 da Cost European Cooperation in Science and Technology, «Tributary Empires Compared».

O meu entendimento baseia-se também, evidentemente, na pesquisa desenvolvida por outros numerosos historiadores de Roma.

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PREFÁCIO

É impossível agradecer a todos aqueles cujos trabalhos foram para mim inspirações ou guias essenciais, ou ambos. Este livro não é a história completa de Roma, mas a exploração do tema império. Não obstante, o império é de tal modo essencial na história de Roma que precisei de me basear num grande número de obras publicadas para o escrever. Nas notas e sugestões para Futuras Leituras, procurei indicar apenas algumas às quais devo especial reconhecimento e tentei acima de tudo referir trabalhos recentes, uma vez que possuímos hoje excelentes sín-teses de estudos anteriores e a pesquisa neste campo conhece agora um desenvolvimento extremamente rápido. Grande parte deste livro foi escrita em St. Andrews, durante uma licença generosamente patroci-nada pelo Leverhulme Trust. Mas partes dele foram esboçadas na uni-camp, São Paulo, onde fui professor convidado, no início de 2011, por iniciativa de Pedro Paulo Funari. O primeiro rascunho foi completado mais tarde, naquele mesmo ano, no Max Weber Kolleg, da Universi-dade de Erfurt, onde Jörg Rüpke foi (uma vez mais) o meu anfitrião.

Muitos outros contribuíram para que fosse possível escrever este livro. Gostaria de agradecer especialmente à minha agente Georgina Capel, pelo encorajamento e muito mais; a Stefan Vranka e Matthew Cotton, da Oxford University Press, pela sua paciência, aconselha-mento e entusiasmo; a Stefan, mais uma vez, e a Nate Rosenstein, pelos comentários detalhados sobre um primeiro esboço que me pou-param muitos erros e tornaram muito mais agradável a leitura deste livro; a Emma Barber, Emmanuelle Peri e Jackie Pritchard, em Oxford, pela sua ajuda nas várias fases da produção; à minha família, pela tolerância e pelas chamadas à realidade. Esta não é, evidentemente, a minha primeira tentativa para explicar os padrões mais importantes que estão na origem da história imperial de Roma. A leitura e a refle-xão são muito boas, mas todos os professores sabem que o verdadeiro teste ao entendimento está em conseguir ou não explanar uma ideia a alguém. Os historiadores profissionais procuram normalmente fazer explanações uns aos outros, mas já sabemos muito e, enquanto ouvin-tes e críticos, somos frequentemente demasiado bondosos. Qualquer aptidão que tenha adquirido nesse campo devo-a a sucessivas gerações de estudantes em Cambridge e Leicester, Oxford e St. Andrews. Por esta razão este livro lhes é dedicado, com os meus agradecimentos.

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DATAS FUNDAMENTAIS NO CAPÍTULO I

753 a.C. Data tradicional da fundação de Roma.509 a.C. Data tradicional da expulsão dos reis e da fundação da repú- blica romana.264 a.C. Pirro invade a Itália, mas não consegue quebrar a hegemonia romana.216 a.C. Batalha de Canas. A maior derrota de Roma às mãos de Aníbal.146 a.C. Cartago e Corinto são pilhadas pelos exércitos romanos.88 a.C. Sula marcha sobre Roma e proclama-se ditador.44 a.C. Júlio César é assassinado nos idos de março.31 a.C. A batalha de Áccio põe fim às guerras civis da república. Iní- cio convencionado do Império Romano ou principado.14 d.C. Morte de Augusto e ascensão de Tibério.117 d.C. Morte de Trajano marca a maior extensão do Império Romano212 d.C. Caracala concede a cidadania à maioria dos habitantes do império.235–284 d.C. «A Anarquia», um período prolongado de crise militar.284–305 d.C. Reinado de Diocleciano. Início convencionado do Império Romano Tardio.306–337 d.C. Reinado de Constantino.313 d.C. Édito de Milão (ou da Tolerância), de Constantino.361–363 d.C. Juliano não consegue restaurar o culto dos deuses ancestrais378 d.C. Batalha de Adrianópolis. O Império do Ocidente é derrotado pelos godos.476 d.C. O último imperador do Oriente é deposto pelos ostrogodos527–565 d.C. Justiniano procura reconquistar o Ocidente.636 d.C. Os exércitos árabes derrotam as forças romanas em Jarmuque711 d.C. Os árabes cruzam o estreito de Gibraltar e invadem a Hispânia visigótica.

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A HISTÓRIA COMPLETA

Honras sobre o que sucedeu antes da fundação da cidade, ou

enquanto estava a ser fundada, são mais adequadas à ficção poética

do que a registos fidedignos da história.

(Tito Lívio, do prefácio de Da Fundação da Cidade)

A história de Roma é longa. Este capítulo vai contá-la – a uma veloci-dade perigosamente vertiginosa –, tocando apenas nos pontos culmi-nantes de uma história de um milénio e meio de anos de ascensão e queda. Pretende-se que seja como um planeador de rotas para o livro, ou um conjunto de imagens de satélite obtidas a longos intervalos, para orientação do leitor.

Se já conhece o padrão do passado romano, sinta-se livre para passar à frente.

Se não, desfrute a viagem!

Os Reis e a República Livre

Os romanos deste período histórico acreditavam que a sua cidade tinha sido fundada por Rómulo, numa data correspondente ao nosso ano 753 a.C. Rómulo foi o primeiro de sete reis. Os primeiros tiveram honras de progenitores fundadores e os últimos foram desacreditados

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A HISTÓRIA COMPLETA

como tiranos. O último dos reis, Tarquínio, o Soberbo, acabaria por ser expulso de Roma e seria fundada a república na data que se con-vencionou ser 509 a.C. Depois de Eneias e de Rómulo, este aconteci-mento foi algo semelhante à terceira fundação de Roma. O seu herói foi Bruto. Quando Júlio César se proclamou ditador vitalício, quase 500 anos mais tarde, foi na base das estátuas deste primeiro Bruto que foram escritas frases a apelar ao seu descendente que pegasse em armas e matasse o tirano.

Todos os relatos do período do reino de Roma que nos chegaram têm esta característica mítica. Nenhum deles foi escrito antes de pas-sarem no mínimo três séculos sobre a fundação da república. Roma, nos finais do século VI, era ignorada pelos gregos, que só começariam a escrever a sua própria história passado um século. Todavia, é bastante provável que os romanos tenham vivido em monarquia. Outras cida-des mediterrânicas tiveram monarcas no período arcaico, incluindo numerosas urbes da Etrúria, ao norte de Roma. Muitas das institui-ções posteriores de Roma parecem entender-se melhor se explicadas como relíquias de um estado monárquico: havia uma casa sagrada no fórum chamada a Regia, que era a casa do sacerdote supremo, o pontifex maximus. O funcionário que organizava as eleições, se hou-vesse um interregno entre magistrados, era o interrex. Mas poucos dos pormenores que nos chegaram são merecedores de confiança. Os reis eram recordados como fundadores de partes específicas do estado romano. Rómulo criou a cidade e povoou-a; primeiro, decla-rando-a um asilo para criminosos e, depois, organizando o rapto de sabinas em massa para obter mulheres para os seus seguidores. Numa, o segundo rei, inventou a religião romana. Sérvio Túlio organizou o exército, as tribos, criou o censo, etc. As histórias sobre os últimos governantes recordam sobretudo as lendas que se contavam sobre tiranos em todo o antigo território mediterrânico: eram governantes arrogantes e cruéis, predadores sexuais, e a pais fortes sucederam filhos fracos. Acusações deste género eram comuns nas repúblicas aristocráticas do mundo mediterrânico primitivo e representam a emergência de novas éticas de conduta civil. Os romanos também recordavam os seus últimos reis como estrangeiros, especificamente como etruscos. As histórias sobre reis contribuíram para a crónica do

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A HISTÓRIA COMPLETA

que era fundamental e único em Roma, pelo menos na mente dos que as contavam e as ouviam. O nosso único controlo sobre estes mitos é arqueológico.

O período republicano durou cerca de cinco séculos, desde o início do século VI até ao último século a.C. Foi mais tarde recordado como uma era de liberdade e piedade. Aqueles que gozavam dessa liberdade eram os ricos, especialmente as famílias aristocráticas, que, juntas, monopolizavam o aparelho político e a liderança religiosa. A nostalgia dos seus herdeiros fantasiou toda a história daquele período. Algumas famílias – a gens Cornélia (de Cornélio Cipião) acima de todas, mais tarde a gens Cicília (de Cecílio Metelo) – foram tão bem-sucedidas que efetivamente chegaram a dominar o estado, tal como os Médicis dominaram a Florença renascentista. Mas a fonte da sua riqueza era muito diferente. Os que lideraram as conquistas de Roma no mundo mediterrânico trouxeram de volta tesouros com os quais puderam embelezar a cidade, dinheiro com que compraram ou ocuparam terras e escravos com os quais puderam cultivá-las. Roma, como muitas das cidades da Antiguidade, dependia de cida-dãos-soldados. De início, muitos deles eram camponeses que se jun-tavam às campanhas organizadas, em períodos de relativa acalmia, no ano agrícola. Muitos deles lucraram com a conquista e aqueles que viviam suficientemente perto da cidade tinham alguma influência nas assembleias políticas que elegiam os dirigentes de Roma e tomavam as decisões mais importantes, como entrar ou não em guerra. Mas Roma nunca esteve perto do tipo de democracia criado na Atenas clássica, em que os ricos eram obrigados a encobrir as suas riquezas e a gastar parte delas em projetos públicos. Em Roma, o poder permaneceu nas mãos de uns poucos. As magistraturas duravam apenas um ano, mas os antigos magistrados tinham lugar vitalício num conselho, o Senado, que efetivamente dirigia o governo, a legislação, o culto do estado e a política externa. Como conseguiu a aristocracia republi-cana manter-se tão dominante é uma das grandes interrogações da história de Roma. Terá sido a instituição da clientela que minou a sociedade romana? Ou a autoridade religiosa proveniente das fun-ções sacerdotais? Houve outras cidades que enfrentaram revoluções quando aristocratas descontentes fizeram erguer o povo contra os

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A HISTÓRIA COMPLETA

seus rivais. Entre os nobres romanos havia tanta rivalidade como em qualquer aristocracia, mas de algum modo conseguiram conter as lutas internas até ao fim da república. Quanto a contenção ruiu, o seu mundo desmoronou-se.

A república foi também a época em que Roma se transformou de cidade-estado da Península Itálica em potência liderante no antigo mundo mediterrânico. A monarquia terá deixado Roma relativa-mente poderosa. A escala das muralhas, a provável dimensão da população, mas, acima de tudo, os primeiros êxitos militares sugerem que Roma era já, cerca de 500 a.C., uma das cidades politicamente mais poderosas da Itália Central. As histórias dos primeiros séculos é nebulosa, mas no início do século III a.C., a influência de Roma estendia-se através de toda a Península Itálica. As colónias pontua-vam locais estratégicos nos Apeninos e na costa tirrena, ao mesmo tempo que novas vias se abriam à comunicação com o Adriático. Ao longo dos séculos III e IV, Roma viu-se envolvida em combate em todas as frentes: com os galos, no Norte, os gregos, no Sul, e vários povos de Itália, nas montanhas dos Abruzos e nas planícies áridas do Mezzogiorno. Na década de 70 do século III, atraiu a atenção do rei Pirro, do Épiro, que cruzou o Adriático com um grande exército. Roma seria por ele derrotada em diversas batalhas, mas sobreviveu à guerra. No final daquele século, os romanos tinham vencido duas longas guerras (Púnicas) com a cidade fenícia de Cartago. A primeira (264–241 a.C.) foi maioritariamente uma batalha naval com a qual Roma ocuparia a Sicília e se tornaria senhora das cidades gregas e púnicas na ilha, bem como dos povos sicilianos indígenas do interior. A Segunda Guerra Púnica (218–201) foi travada na Hispânia e em África, bem como na própria Península Itálica. Aníbal atravessou os Alpes, em 217 a.C., e no ano seguinte infligiu a Roma uma aterra-dora derrota, na batalha de Canas. Mas não aproveitou a sua vanta-gem e permaneceu no Sul de Itália até 203, momento em que teve de regressar a África para enfrentar o exército de Cipião Africano. A derrota de Aníbal em Zama, no ano seguinte, marcou o fim do poder cartaginês. Durante o século II a.C., os exércitos romanos continuaram a sua progressão. Derrotaram e conquistaram os gran-des reinos macedónicos do Oriente, governados pelos herdeiros

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A HISTÓRIA COMPLETA

de Alexandre Magno. Cartago e a antiga cidade de Corinto foram ambas arrasadas, em 146 a.C. Os exércitos romanos derrotaram as tribos gálicas a norte e a sul dos Alpes, travaram a guerra na Meseta Ibérica e resistiram às invasões germânicas. A cidade conheceu um crescimento progressivo, foi dotada de aquedutos, basílicas e outros monumentos pagos com os espólios da guerra. Os ricos ficaram mais ricos e os exércitos de cidadãos começaram a passar cada vez mais tempo longe da sua terra natal.

Os romanos dos períodos mais tardios imaginavam que no seu auge a república era um sistema harmonioso, no qual as ambições dos poderosos eram guiadas pela sensatez do Senado, com o apoio de um povo deferente. A ruína da república foi atribuída (de diferentes for-mas) à luxúria e à arrogância trazida pelo império. Segundo o antigo historiador romano Marco Veleio Patérculo:

O primeiro Cipião abriu caminho para o domínio de Roma, o segundo abriu as portas à luxúria.1

Outros historiadores escolheram pontos críticos diferentes, mas o padrão de uma ascensão virtuosa seguido por uma queda brutal foi um lugar-comum. A verdade é mais complexa. Os conflitos sociais de diversa índole sucederam-se ao longo da história de Roma, mas a violência urbana e as guerras civis que tiveram início nos finais do século II a.C. conheceram uma escala nova. O último século da República Livre foi sem dúvida o período de maior expansão terri-torial, no qual a cultura intelectual e a literatura romana adotaram a sua forma clássica, e também um período de 100 anos de sangrenta guerra civil. Os conflitos entre os romanos e os seus aliados ítalos combinaram-se com as lutas sociais entre os pobres (ou aqueles que afirmavam representá-los) e os poderosos. As tradicionais rivalidades entre aristocratas aumentaram substancialmente com os lucros do imperialismo. Os políticos recrutaram inicialmente bandos e depois exércitos para combaterem pelos seus territórios.

Gerou-se um ciclo de retorno destrutivo entre as rivalidades internas e a agressiva manutenção da guerra no exterior. Os generais pensavam a curto prazo, sempre atentos às oportunidades quando

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regressavam. Correram riscos impressionantes, atacaram vizinhos de Roma sem autorização do Senado ou do povo, alienaram territórios conquistados para serem explorados pelos seus aliados políticos e pouca atenção deram à segurança de Roma a longo prazo. Permitiu- -se que aliados estrangeiros de lealdade duvidosa construíssem bases enormes e poderosas nas fronteiras. Os romanos eram odiados nas províncias. O ponto mais baixo foi atingido quando Mitríades, rei do Ponto – um antigo aliado romano cujo poder fora criado por Roma e cujas ações progressivamente mais agressivas tinham sido ignoradas por um Senado preocupado com os assuntos internos –, invadiu a Ásia Menor ocidental controlada pelos romanos. À ordem de Mitríades, 10 000 ítalos foram chacinados nas cidades gregas da província. Roma perdeu temporariamente o controlo de todos os territórios a leste do Adriático. Esta foi apenas mais uma oportunidade para os generais romanos. O comando do exército foi inicialmente entregue a Sula para posteriormente lhe ser retirado, mas o general recusou resignar e em vez disso fez marchar os seus soldados sobre Roma. Correu sangue no fórum, Sula conseguiu o que queria e, depois de organizar Roma como lhe convinha, partiu para leste, onde saqueou Atenas, antes de regressar para de novo invadir Roma. Proclamou-se ditador vitalício e publicou uma lista de inimigos políticos «proscritos». Qualquer um cujo nome estivesse na lista podia ser liquidado impunemente e as suas propriedades confiscadas. Sula foi um modelo para todos os generais que se lhe seguiram, incluindo o seu correligionário Pompeu, o seu inimigo César e os que vieram depois de César, incluindo o futuro imperador Augusto. Todos eles conseguiram grandes exércitos para guerras no exterior e acabaram por usá-los em campanhas nas províncias em que se combatiam entre si, ao mesmo tempo que em Roma gastavam dinheiro para construir fações políticas e grandes monumentos.

O conflito chegaria ao fim na batalha de Áccio, em 31 a.C., com a derrota de Marco António e Cleópatra às mãos de Otávio, herdeiro de César, mais tarde apelidado de Augusto, numa tentativa consciente de fazer a história da guerra civil (e com ela conseguir a liberdade aristocrática e o poder do povo).

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O Principado do Império

O longo reinado do primeiro imperador, Augusto – falecido em 14 d.C. – é o fulcro da história de Roma. Antes dele houve a repú-blica; depois dela, apenas imperadores. Os 300 anos que se seguiram são conhecidos como o principado do império, após o Senado ter concedido a Otávio o título de príncipe (princeps).

Em grande medida, a forma como Augusto governou Roma foi na realidade a continuidade das principais ideias da história republi-cana e era assim que Augusto queria que fosse vista. Logo que a sua posição em Roma ficou segura e os exércitos da guerra civil foram maioritariamente desmobilizados, Augusto envolveu-se em campa-nhas de conquista e de obras públicas numa escala que ultrapas-sou as realizações de Pompeu e de César. Sob o seu consentimento, Roma dominou o Mediterrâneo através de uma rede de províncias e alianças. Mas a guerra civil e as rivalidades aristocráticas tinham originado muitos conflitos para além da região, que permaneciam por resolver. Augusto estendeu a governação direta de Roma através de meia Europa até aos rios Reno e Danúbio, fixou fronteiras e fez a paz com o Império Persa. Aquando da morte de Júlio César, muitos projetos de construção de edifícios tinham sido iniciados, mas ainda não estavam terminados. Augusto completou-os e decidiu lançar mais alguns novos, transformando o Campo de Marte numa espécie de parque temático monumental e expropriando o monte Palatino para construir um complexo de residências e templos imperiais, donde provém o termo palácio.

De forma menos ostensiva, Augusto conseguiu tornar o estado civil romano à prova de guerra. A complexidade bastante simbó-lica de expedientes governamentais e fiscais impostos por sucessivos generais conquistadores transformou-se num sistema mais comum de governo provincial. Roma tinha agora fundos financeiros totalmente dedicados ao exército, que lhe permitiam manter tropas regulares e profissionais. Aos membros das aristocracias romanas e itálicas foram dados papéis de governadores e de comandantes militares na nova ordem. Mas o dinheiro e a lealdade dos soldados foram firmemente mantidos nas mãos de Augusto. Augusto, não o povo nem certamente

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o Senado, decidia agora quais os aristocratas que deviam ocupar as magistraturas e os postos sacerdotais. Na verdade, todas as decisões importantes eram agora tomadas na corte imperial. À medida que perdiam poder, o povo e o Senado de Roma começaram a receber maiores honras, mas bustos e estátuas de Augusto eram visíveis por toda a parte, retratando-o como general, como sacerdote e como deus. Ele e os seus descendentes eram objeto de culto em todas as cidades e províncias, lado a lado com as divindades ancestrais e domésticas, bem como pelos soldados nos acampamentos.

A verdadeira marca do sucesso de Augusto foi ele ter sido capaz de passar muitos dos seus poderes para uma série de sucessores. Roma conseguiu evitar a guerra civil durante 100 anos após Áccio. Nem todos os sucessores imediatos de Augusto foram igualmente dotados: um (Calígula) foi assassinado e outro (Nero) suicidou-se por julgar ter perdido o controlo do império. Mas, com algumas modi-ficações, o sistema sobreviveu. O conflito entre generais só estalou, após o desastroso reinado de Nero, apenas porque nenhum membro da família deste sobrevivera para dar um novo imperador a Roma. A guerra prolongou-se durante menos de dois anos (69–70 d.C.) e o vencedor, Vespasiano, congeminou uma restauração muito ao estilo de Augusto. O império sofreu um abalo, mas permaneceu incólume. Sem qualquer instituição formal de uma nova constituição ou título, o imperador tinha-se tornado efetivamente no chefe do governo do estado romano. Os indivíduos fracos e incompetentes não podiam agora desacreditar o sistema e não há qualquer sinal de que alguém tivesse desejado passar sem os imperadores. Quando Calígula foi assassinado, em 41 d.C., o Senado debateu brevemente um regresso à república, mas passou mais tempo a pensar num possível sucessor. Enquanto decorria o debate, a Guarda Pretoriana descobriu Cláu-dio, o tio de Calígula, escondido atrás de uma cortina, no palácio, e nomeou-o imperador. A partir deste ponto, a questão foi sempre: quem devia ser imperador?

E os imperadores sucederam-se. A dinastia Flaviana gover-nou durante a parte final do século I d.C. As novas guerras de con-quista vieram adicionar a Britânia e partes do Sudoeste da Germâ-nia ao império, os reinos tributários foram engolidos e as fronteiras

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fortificadas. Uma série de fóruns imperiais proliferou desde o velho Capitólio republicano até ao vale do Coliseu. Gradualmente a cidade adquiriu os aparatos de uma capital imperial. O assassínio, em 96 d.C., de Flávio Domiciano abalou o sistema, mas muito menos do que a morte de Nero. Durante o segundo século, verificou-se uma série de longos reinados de diversos imperadores num império relativamente estável. Trajano (98–117) conduziu guerras de conquista a norte do Danúbio e na região que hoje corresponde sensivelmente ao Iraque. O seu sucessor, Adriano (117–138), viajou extensamente pelo impé-rio. Os imperadores tornaram-se mais abertamente monárquicos e dinásticos, especialmente fora de Roma, onde não precisavam de se preocupar com as sensibilidades senatoriais. Emergiu uma corte itine-rante, em que os favoritos e as concubinas competiam por influência, os eruditos e os poetas eram considerados e os prefeitos da Guarda Pretoriana agiam como grão-vizires. As comunidades provinciais enviavam correntes de embaixadores para descobrir o imperador onde quer que ele estivesse. Podiam encontrar Adriano nas margens do Nilo ou a supervisionar a construção da grande muralha que atraves-sava o Norte da Britânia, a ajudar a planear o seu novo grande templo de Vénus, frente ao Coliseu, a fazer um discurso aos soldados em parada, em África, ou a descansar no seu enorme palácio, no Tivoli, ou na sua amada Atenas, o império era governado onde quer que o imperador pudesse estar.

Nos seus primórdios, o Império Romano era um mundo de paz. A guerra era menor em escala e os imperadores raramente sentiam dificuldade em restringi-la às suas fronteiras. A economia e a popu-lação registavam crescimento. O número de romanos aumentava à medida que a cidadania era concedida a aristocratas provinciais, antigos soldados e escravos libertos: segundo um édito do início do século III, do imperador Caracala (198–217), quase todos tinham direitos civis. Subitamente, a lei romana abraçava todos. O jurista Ulpiano escrevia, no rescaldo deste espetacular conjunto de benefí-cios imperiais, que os testamentos deviam ser válidos em qualquer língua, celta ou siríaco tanto como em grego e latim. Os estilos de vida romanos foram largamente adotados e as novas técnicas da arqui-tetura e de fabrico disseminaram-se pelas províncias. Os ricos, em

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particular, decoravam as suas espetaculares mansões com mármo-res importados e ofereciam grandes edifícios às suas cidades natais. A partilha da cultura dos banhos, da educação, da alimentação, emergiu nas cidades do império. Até os mais pobres assistiam aos combates de gladiadores, a caças às feras (venatio), festivais atléti-cos e outras cerimónias, frequentemente centradas na casa imperial. O início do século III d.C. marcou o apogeu do urbanismo antigo. Sem dúvida alguma que havia zonas do império em que nove em cada dez pessoas ainda viviam no campo. Mas na Itália Central e na Anatólia Ocidental, no Norte de África, na Síria e no Egito, prova-velmente 30 por cento da população vivia em cidades e grandes vilas. Muitos dos monumentos do Império Romano, que hoje tanto nos impressionam quando viajamos pelas suas antigas províncias, foram construídos neste período. A conquista da Dácia por Diocleciano foi a última expansão permanente para o império. As guerras continua-ram a travar-se ao longo do século II, mas geralmente nas condições do imperador. Os imperadores, bem como as elites locais, tiveram aparentemente uma relativa prosperidade, embora não seja claro até que ponto isso resultou de crescimento genuíno ou da concentração da propriedade em cada vez menos mãos.

As condições alteraram-se por volta da passagem do século II para o século III d.C.

Pouco antes do ano 200 no Ocidente e pouco antes do ano 250 nas outras regiões, a construção urbana entrou em declínio. A partir deste momento não se edificaram novos teatros ou anfiteatros, o número de placas de sinalização cai a pique e as dedicatórias dos tem-plos parecem diminuir. Pelo menos algumas cidades começaram a ver reduzir as suas dimensões, mais uma vez especialmente no Ocidente. Entretanto, as guerras na fronteira setentrional pareciam ter consu-mido mais tempo e mais recursos do imperador. Este panorama terá tido início já durante o reinado de Marco Aurélio, quando a guerra contra os marcomanos do médio Danúbio se fez sentir quase conti-nuamente entre 166 e 180. Uma nova vaga de guerra civil seguiu-se ao assassínio de Cómodo, filho de Marco Aurélio, em 192. A luta entre os generais provinciais foi uma reposição do que sucedera após o suicídio de Nero, e a dinastia Severa emergente governou Roma

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de 193 a 235 de forma bastante tradicional. Mas o renascimento do Império Persa sob a dinastia Sassânida, no início do século III, colocou o exército (e o tesouro) sob nova pressão. No seculo e meio seguinte, o império foi sujeito a sucessivas guerras no Danúbio e no Reno e sofreu violentos assaltos aos seus territórios, que resultariam no saque de cidades como Atenas e Tarragona, que em 300 anos quase não tinham visto um soldado e tiveram de resistir às ofensivas persas e lidar com secessões que, durante algum tempo, dividiram o império em três territórios separados.

Muitos dos imperadores resistiram apenas alguns anos, alguns apenas alguns meses, poucos morreram nos seus leitos. Progressiva-mente passaram a ser oriundos de meios militares e as suas ligações com Roma e o Senado tornaram-se ainda mais ténues. A recuperação militar começou na década de 60 de 200, mas o império só voltou a ser um todo unificado cerca do fim do século. O longo reinado de Diocleciano, declarado imperador em 284 e tendo abdicado em 305, marca a sobrevivência do império.

O Império Romano Tardio

No início do século IV, o mundo romano era muito diferente. As cida-des, em algumas regiões, tinham voltado às dimensões de diminutos circuitos dentro de muralhas construídas apressadamente a partir de monumentos arruinados. Alguns dos territórios mais recentemente conquistados haviam sido abandonados. Em Roma, o Senado ainda existia, mas os seus membros já não tinham grande papel na gover-nação ou no comando militar. O império seguia uma nova religião, o cristianismo, e uma nova capital, Constantinopla, com o seu próprio Senado, as suas próprias sete colinas e o seu próprio palácio imperial. O império tinha também uma nova moeda, com a qual se pagavam impostos mais elevados do que nunca, precisava de sustentar exér-citos maiores e uma burocracia crescente. Havia agora um colégio que podia chegar a quatro imperadores em qualquer momento, os seniores, intitulados como Augustos, e os juniores, como Césares. Cada um tinha a sua própria corte e concentrava-se numa região

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diferente do império, mas especialmente nas fronteiras setentrional e oriental. A partir desse período, os imperadores tiveram de man-ter vigília constante sobre os bárbaros e gerir a difícil relação com o império rival da Pérsia.

A história da Pérsia neste período decorre em muitos aspetos em paralelo com a de Roma. Sapor II, o rei dos reis persas (309–379), criou um império profundamente centralizado, no qual a burocracia veio substituir as baronias quase feudais que frequentemente mal reconheciam a autoridade dos reis partos. O Império Persa também tinha uma religião estatal, o zoroastrismo. Ao longo do período final da Antiguidade a fronteira quase não sofreu alterações. Ambos os impérios tinham de lidar com minorias religiosas e príncipes pode-rosos. As guerras eram frequentes e algumas cidades mudavam regu-larmente de mãos dentro de uma grande zona de fronteira, que se estendia da Arménia ao Norte e ao longo da Síria até ao mundo árabe. Mas houve também períodos de relativa acalmia, e os mercadores, missionários, espiões e emissários movimentavam-se perfeitamente entre os dois impérios irmãos. Esta situação durou até ao século VII quando as conquistas árabes derrubaram o Império Sassânida e quase também o Império Romano.

Escrever a história do império tardio revelou-se sempre difícil. De início, o problema residia nos pontos de vista rivais de pagãos e cristãos, depois de Constantino I (306–337) ter substituído a perseguição pela tolerância e de posteriormente ter começado a patrocinar a Igreja em grande escala. Todos os seus sucessores foram cristãos exceto Juliano, que procurou reverter a reforma de Cons-tantino durante o seu breve reinado (361–363). No final do século, a tolerância geral fora substituída por ataques aos templos politeís-tas e os imperadores dedicavam cada vez mais energia ao combate contra a heresia. Sobreviveram politeístas suficientemente influentes para culpar a nova religião pelos desastres do século V. As nossas fontes históricas encontram-se amargamente divididas. Depois, há o problema da retrospeção. Como podemos ignorar o facto de a perda das províncias da Dácia, de Trajano, ter sido apenas a primeira de muitas perdas de território, que viram a Britânia e o Norte da Gália escaparem-se ao controlo romano, em meados do século V, e

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a substituição do último imperador por uma série de reis bárbaros antes de 500?

Não obstante, o século IV foi em alguns sentidos uma era de otimismo que conheceu alguma recuperação da vida intelectual, muita construção (embora agora de igrejas e palácios em vez dos monumentos tradicionais da cidade clássica) e, no Oriente, alguma efetiva prosperidade. Mesmo quando um grande grupo de ostro-godos foi autorizado a atravessar o Danúbio, em 376, os romanos podiam ainda lembrar-se razoavelmente de outros povos estabele-cidos no interior do império como aliados. Mas a derrota do exér-cito oriental pelos godos em 378, na batalha de Adrianópolis, pôs em movimento um conjunto de migrações e manobras diplomá-ticas que no espaço de um século conduziram à perda total do Ocidente. Desde o início do século V, novos grupos começaram a entrar no império, procurando a sua própria parcela de terra como «convidados» de Roma, e talvez a segurança face aos seus próprios inimigos, como era o caso dos ferozes hunos. A própria cidade de Roma foi saqueada duas vezes; a primeira pelos godos, em 410, e depois, pelos vândalos, em 455. O último imperador no Ocidente foi deposto em 476, embora na época talvez isso não parecesse um ponto de viragem. Cerca de 500, os vândalos dominavam um reino baseado em Cartago, os visigodos e os suevos controlavam a Hispânia e a Gália, os burgúndios e os francos, o resto do que hoje é a França, e um rei ostrogodo reinava na anterior capital imperial de Milão. Os imperadores do Oriente – atingidos pela bancarrota, sem um exército e preocupados com a Pérsia – foram obrigados a aquiescer. De igual modo, as elites romanas ficaram, de certo modo, retidas atrás das linhas inimigas. Durante algumas gerações, os bispos e intelectuais romanos serviram os novos reis do Ocidente, ajudando a criar sociedades nas quais romanos e bárbaros dividiam os papéis e a riqueza. Os vestígios arqueológicos provam bastante claramente que o comércio no Mediterrâneo não foi severamente atingido e, em certas zonas, a vida urbana e até a literatura latina conheceram alguma prosperidade. Os governantes destes reinos eram cristãos (embora aos olhos dos bispos romanos do Oriente fossem maioritariamente heréticos arianos). Muitos procuraram

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preservar elementos da civilização romana, reconstruindo até os seus monumentos e contraindo matrimónios com membros das suas famílias aristocráticas. Muitos dependiam dos burocratas romanos para gerir os complexos sistemas fiscais que tinham herdado, preser-vando os seus bandos de guerreiros como um exército para defender as suas conquistas. Os seus reis viviam em palácios romanos nas maiores cidades dos seus reinos, emitiam moeda com legendas em latim, concebiam códigos de leis e, inclusivamente, alguns assistiam aos combates de gladiadores.

Posteriormente, no início do século VI, o Império Romano do Ocidente contra-atacou. Durante o reinado de Justiniano (527– –565), os seus generais arrebataram África aos vândalos e mantive-ram uma longa e devastadora guerra ao longo de toda a Itália, que culminaria com o fim do reinado ostrogodo. A Hispânia visigótica foi invadida. Em Constantinopla, foram lançados grandes projetos de construção, um enorme código de leis civis romanas foi insti-tuído e concretizaram-se reformas administrativas (as queixas de um velho burocrata, João, o Lídio, mostram como a nova burocracia, criada por Diocleciano e Constantino, era então olhada pelos seus membros como um conjunto de instituições antigas e veneráveis!). Durante uma geração, o Império Romano mediterrânico pareceu ter renascido. Depois, voltou a falir. Os lombardos invadiram a Itália, os francos expandiram o seu poderio e, à exceção de uma testa-de- -ponte em torno de Ravena, o território romano ficara confinado ao Norte de África e à Sicília. Entretanto, os imperadores estavam de novo envolvidos em guerra com a Pérsia. O imperador persa Cos-roes II voltou a atravessar a fronteira síria e desta vez conquistou Jerusalém. As forças persas assaltaram o Norte pela Anatólia e o Sudoeste rumo ao Egito, onde Alexandria viria a cair, em 619. Os imperadores pouco podiam fazer porque a invasão coincidiu com a dos ávaros por noroeste. Constantinopla, cercada por ambos os lados, podia ter caído em 626. Um novo imperador, Heráclio, con-seguiu negociar com os ávaros, derrotar os persas e levar a guerra até às suas capitais, no Sul da Mesopotâmia. Humilhado pela derrota, Cosroes seria assassinado, em 628. Heráclio triunfaria em Jerusalém e Constantinopla.

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E então o mundo mudou. Entre os muitos povos arrastados para o longo conflito romano-persa estavam as tribos da Península Arábica. Durante o processo, tinham conseguido desenvolver uma experiência militar considerável e o conhecimento de ambos os lados, mas foi o movimento religioso iniciado pelo profeta Maomé que os galvanizaria para a ação concertada. Na batalha de Yarmouk, em 636, as forçss romanas sofreram uma devastadora derrota. Em 642, Egito, Síria e Palestina estavam sob domínio árabe e jamais seriam recuperados. O império tinha encolhido até um terço da sua dimensão, um estado balcânico com território na Anatólia Ocidental e algumas remotas províncias ocidentais, a maioria das quais perderia à medida que os exércitos árabes avançaram para ocidente, através do Norte de África, e para norte, pela Hispânia, e também à medida que se assenhoravam do mar. Isolada do Egito, a população urbana de Constantinopla caiu a pique. Os persas não tiveram tanta sorte. Também eles sofreram uma derrota devastadora, em 636, em Cadésia. A sua capital, Ctesi-fonte, foi ocupada no ano seguinte. O que restava do seu exército foi destruído, em 642, na batalha de Nahavand e o seu último imperador pereceria durante a fuga, em 651.

Fixar o fim do Império Romano não é fácil. Certamente que os imperadores que defenderam Constantinopla quando os árabes a cercaram, em 717, se consideravam romanos. O mesmo se passou com os seus sucessores até Constantinopla acabar por sucumbir, não aos árabes, mas aos turcos, no século XV. Não temos de concordar com eles, mas qualquer outra data que selecionemos é arbitrária. Grande parte das civilizações romana e persa sobreviveu à conquista árabe. As cidades da Síria floresceram sob o califado e os sistemas de impostos de Cosroes II tiveram uma segunda vida no Irão, tal como os dos romanos nos reinos bárbaros do Ocidente. Carlos Magno sonhou ser imperador romano e, no ano 800, o seu sonho tornou-se realidade numa cerimónia realizada, em Roma, pelo Papa Leão III. Terá Bizâncio especial direito a ser mais herdeira de Roma do que o cristianismo ocidental ou o islão medieval? Não tenho a certeza disso, e assim, para mim, a história do Império Romano acaba aqui.

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A HISTÓRIA COMPLETA

Futuras Leituras

Existem muitas e excelentes narrativas sobre a história de Roma. Apresento seguidamente a minha pequena lista de preferências. Duas muito boas e recen-tes são The Birth of Classical Europe (Londres, 2010), de Simon Price e Peter Thonemann, e The Inheritance of Rome, de Chris Wickham (Londres, 2009), respetivamente o primeiro e o segundo volumes de Penguin History of Europe. Dois excelentes guias para a história social e económica de pelo menos parte do período são The Roman Empire: Economy, Society, Culture (Londres, 1987), de Peter Garnsey e Richard Saller, e The Evolution of the Late Antique World (Cambridge, 2001), de Peter Garnsey e Caroline Humfress. The Roman Repu-blic (Londres, ed. rev. 1992), de Michael Crawford, é um modelo de como a história de Roma pode e deve ser escrita, argumentativamente e com base em todo e qualquer tipo de provas arqueológicas, moedas e inscrições de documentos contemporâneos e literatura posterior.

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IMPÉRIOS DA MENTE

Depois, Rómulo, orgulhoso sob o manto dourado da loba que o ama-

mentou, assegurará o futuro do povo e erguerá as muralhas de Marte

e pelo seu próprio nome os chamará de romanos. Não imponho fron-

teiras aos seus domínios, nem termo à sua governação, dei-lhes um

império sem fim. E até a acerba Juno, que agora inunda de medo a

terra, o mar e o céu, deles pensará melhor e a meu lado velará pelos

romanos, senhores do mundo, o povo da toga. Assim o decreto.

(Virgílio, Eneida, 1.275–83)

O império enfeitiçou a imaginação romana. Também a nossa. Qual-quer estudo sobre a Roma antiga, seja sobre os seus poemas de amor ou festivais, a sua arte monumental ou os hábitos familiares, invoca hoje o império como um – por vezes como o – contexto crucial. Mas nem sempre o que os romanos entendiam e nós entendemos como «império» é coincidente. Este capítulo explora alguns dos diferentes entendimentos enredados no coração das nossas histórias de Roma.

Um Povo Imperial

Por vezes parece que o império estava inscrito no ADN romano. Os romanos do período clássico acreditavam definitivamente em algo

II

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semelhante. Quando os poetas épicos ou historiadores imaginaram os primeiros tempos da história da cidade, pintaram-nos como se estivessem já predestinados para a grandeza. O advento do império é o tema central da Eneida, um grande poema épico escrito por Virgílio na corte de Augusto.1 A epígrafe deste capítulo foi retirada da profe-cia de Júpiter sobre a futura grandeza de Roma, que se encontra quase no início daquele poema épico. Se de início foi concebido para servir as necessidades políticas imediatas do poeta e do seu patrono, teve posteriormente uma influência muito maior. A Eneida foi o ponto de partida da educação em Itália e nas províncias ocidentais para os séculos vindouros. Ocupou um lugar na cultura romana comparável ao que a Declaração da Independência e a Constituição têm nos Estados Unidos, ou ao de Shakespeare, na Grã-Bretanha. Constantemente citados e imediatamente reconhecíveis, os versos da Eneida são até omnipresentes na forma de grafitos por todo o império. Muitos pro-vêm do primeiro livro do poema épico, o que sugere que a maioria dos alunos não chegou muito longe na sua leitura. Mas os filhos dos notá-veis das províncias terão lido os famosos versos de Júpiter enquanto se esforçavam para aprender latim, e durante o processo aprenderam também o que significava ser romano.

A Eneida não relata a história da ascensão ao poder de Augusto, nem sequer da conquista da Itália e do Mediterrâneo por Roma. Em vez disso, a ação da história é situada na era heroica, o período que se seguiu ao das duas grandes epopeias de Homero, Ilíada e Odisseia. Conta-nos como o príncipe Eneias conduziu um bando de refugiados das ruínas em chamas de Troia, depois de esta ter sido saqueada pelos gregos. Os primeiros seis livros acompanham as progressivas deambu-lações rumo ao Ocidente, conduzidos pelo medo e depois arrastados pelo destino para um estranho (e estranhamente moderno) mundo novo. Monstros, nativos hostis e deuses em fúria procuram frustrar a sua jornada. Depois, surgem tentações pelo caminho. Nenhum lugar é mais atrativo do que Cartago, que os troianos vão encontrar em cons-trução e governada por Dido, a bela rainha fenícia, e outros refugiados do Mediterrâneo Oriental. Claro que Dido e Eneias se apaixonam e o seu amor é, evidentemente, amaldiçoado: afinal, trata-se de uma epopeia e não de um romance, embora Eneias demore algum tempo

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a disso tomar consciência. Porque os deuses têm um plano, e o plano é Roma, Eneias conduz os seus homens, o seu pai e o seu filho, e os objetos de culto sagrado de Troia, até à costa do Lácio, na Itália Cen-tral. Aí, a guerra, a profecia e o matrimónio acabarão por lhes permitir estabelecerem-se na cidade de Alba Longa, donde o descendente afastado de Eneias – Rómulo – partirá para descobrir a cidade.

Eneias era filho de uma deusa, Vénus, adorada em Roma como Vénus Genetrix, Vénus a nossa Mãe. Júlio César decidiu erguer-lhe um templo no coração do novo fórum, que pagou com o espólio das guerras da Gália. Depois do seu assassínio, o seu herdeiro, o futuro imperador Augusto, concluiria o projeto. O templo foi terminado pouco antes de a Eneida ter sido escrita.

Fig. 1. Estátua de Augusto de Prima Porta exposta no Braccio Nuovo, ala nova do Museo Chiaramonti, Museus do Vaticano, Roma, Itália

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Estes dois trabalhos monumentais marcam estádios de evolução no processo através do qual foi criada uma única versão autorizada da história de Roma, a partir de uma massa de conhecimentos contra-ditórios. Uma das suas razões determinantes foi a passagem de uma forma de governo republicana para uma monarquia. Muitos conheci-mentos estavam ligados a determinadas famílias, mas naquele tempo havia uma que dominava a cidade. Júlio César, bem como Augusto, afirmava ser descendente direto de Eneias e de Vénus. Uma outra razão foi o facto de os historiadores romanos estarem apenas no iní-cio da construção de uma cronologia fiável do seu próprio passado. Os eruditos da última geração da República Livre, incluindo Varrão, Nepos e Ático, amigos de Cícero, tinham trabalhado arduamente para estabelecer uma correlação entre os acontecimentos na tradição romana e os meridianos estabelecidos pelos historiadores gregos. As suas conclusões – embora frequentemente baseadas naquilo que nos parecem argumentos bastante frágeis – nunca foram verdadeiramente postas em causa na Antiguidade. Era mais importante Roma ter uma história genuína e unânime do que ter a verdadeira. Augusto estava igualmente preocupado em fixar o passado. O historiador Tito Lívio recorda laconicamente como o próprio Augusto se empenhou na pesquisa da história antiga para estabelecer que nenhum oficial subor-dinado poderia receber a honra excecional da spolia opima, atribuível apenas a um general que matasse o seu oponente em duelo.2 Menos controversas foram as grandes placas de bronze criadas para registar os fasti, a exata sequência de cônsules desde o começo da repú-blica até à atualidade. Os cônsules eram o par de magistrados anuais a partir do qual cada ano era tradicionalmente designado. César e Augusto promoveram pesquisas para a fixação de um calendário e publicaram-no.3

Fixado pela epopeia de Homero no final da era heroica, Eneias vivera muito antes de poder encontrar a cidade de Roma. Eruditos gregos calcularam a data da queda de Troia em 1183 a.C., enquanto a da fundação de Roma foi calculada em 753 a.C., o que significava um lapso importante. Mas a epopeia de Virgílio concedeu a Eneias várias visões do futuro – ou seja, do presente de Virgílio – como uma era imperial, na qual, sob o governo de Augusto, os romanos dominariam

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o mundo de acordo com as sentenças de Júpiter. Bastante impres-sionante é a descida ao inferno, onde o pai de Eneias lhe mostra os grandes heróis romanos da história, que aguardam o seu nascimento, e lhe dá pistas sobre os seus destinos. Eneias viaja também até ao Tibre para visitar o local onde surgirá a cidade de Roma, ainda um idílio pastoral povoado por outros refugiados do Oriente, desta vez gregos da Arcádia, que lhe contam a história de como Hércules passara por aquele mesmo local e ali derrotara o aterrador monstro Caco. Virgílio urdiu as muitas lendas da antiga Roma para delas fazer uma narrativa que só podia culminar em Augusto.

A fundação da própria cidade de Roma foi deixada a um dos descendentes de Eneias, Rómulo, que, tal como o seu irmão Remo, era filho de uma princesa da linhagem de Eneias e também do deus Marte, oferecendo assim convenientemente aos romanos um segundo imperador divino. Quando Augusto construiu os seus próprios fórum e templo dedicou este último a Marte e colocou imagens de Vénus, Marte e Júlio César (agora também um deus) no frontão do templo.4

Tito Lívio, que escreveu as suas obras não muito depois de Virgílio, abriu a sua história Da Fundação da Cidade com a declaração de que, se havia alguma nação com o direito de reivindicar a descendência de Marte, o deus da guerra, essa nação era Roma.5 Os romanos encon-travam nos mitos da Roma antiga mais do que a simples justificação para a grandeza do seu tempo. A história de como Rómulo assassinou Remo porque este ousou pisar a muralha que o irmão acabara de construir para a nova cidade, era entendida como um sinal de que também a guerra civil estava escrita no espírito romano. A Roma de Augusto encontrava-se, afinal, a recuperar de quase um século de guerras civis. Quando Virgílio descreve o levantamento dos africa-nos contra Dido depois de esta escolher um príncipe estrangeiro, o ataque dos povos itálicos aos troianos quando Eneias ganha a mão da princesa local, ou quando Tito Lívio conta como Rómulo rapta as mulheres e as filhas do reino vizinho das Sabinas e as entrega aos seus seguidores, podemos ver como os romanos procuravam uma explicação para as suas aparentemente arreigadas tradições de vio-lência.6 Essa tenebrosa procura decorre lado a lado com as repetidas narrativas do quanto custara a fundar o estado romano e a cumprir

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o destino divino da cidade. As atrocidades do período final da repú-blica – com os seus tumultos, linchamentos e assassínios políticos a sangue-frio – devem ter tornado impossível contar uma história convincente de Roma que não fosse em termos de sucessivos atos de heroísmo e piedade.

A Transformação em Império

Os mitos do passado profundo foram-se acumulando com o tempo e, evidentemente, reescritos à medida que o Império Romano crescia. Se compararmos histórias como estas com as dos mitos de outras cidades do antigo Mediterrâneo, torna-se imediatamente claro que muitos dos costumes de Roma não eram assim tão invulgares. Um surpreendente número de cidades afirmava descender de refugia-dos gregos ou troianos.7 Presumivelmente isso devia-se ao facto de a epopeia de Homero ter enorme prestígio e de se conhecer tão pouco sobre os primórdios do primeiro milénio a.C. Outras cidades afirmavam descender de heróis errantes, especialmente Hércules, mas também de Odisseu (ou Ulisses), Perseu, Antenor e outros. Muitas das colónias gregas clamavam possuir aprovação divina para se apropriarem de territórios e os expropriarem aos seus anteriores habitantes. Essa aprovação podia assumir a forma de sinais, oráculos ou acontecimentos miraculosos. Muitas prestavam culto aos seus fundadores, tal como os romanos veneravam Rómulo sob o nome de Quirino. Princípios violentos, batalhas com os povos indígenas e casa-mentos entre os invasores e as mulheres nativas são também carac-terísticas permanentes.8 Até o órfão que se transforma em vencedor conheceu diversos exemplos paralelos. Provavelmente estes eram os elementos fundamentais das primeiras versões das lendas sobre a origem de Roma. Só numa fase posterior as profecias começaram a incluir o domínio do mundo e as lendas a explorar o lado mais negro da natureza romana.

Infelizmente, sabemos muito pouco sobre o que os romanos pen-savam acerca de si mesmos antes de se tornarem uma potência impe-rial. A primeira literatura latina surgiu em finais do século III a.C.9

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Nessa época, Roma era sem dúvida a maior potência na bacia do Mediterrâneo Ocidental e há gerações que dominava a Península Itálica. Os primeiros historiadores romanos, Quinto Fábio Pictor, que escreveu em grego, e Catão, o Velho, que escreveu em latim, começa-ram desde logo a explicar como Roma conquistara Cartago. Quinto Fábio Pictor participara na guerra contra os galos do Norte da Itália, em finais do século III, e integrou a delegação de senadores seniores que visitaram o oráculo de Delfos, na Grécia, em busca de conse-lho, após a grande vitória de Aníbal em Canas, no ano de 216 a.C. Catão (234–149 a.C.) assistiu à derrota de Aníbal e também partici-pou nas primeiras guerras contra os grandes reinos do Mediterrâneo Oriental. A sua obra Origens foi fruto da profunda pesquisa em estu-dos gregos de informações sobre a pré-história dos povos de Itália. A maior parte do conhecimento que reuniu deverá ter sido sobre lendas de fundação semelhantes às de Roma. Os primeiros historiadores gregos do período clássico pouco sabiam sobre Roma, mas pouco do que tinham para dizer sobreviveu. Roma parece assim saltar para a história completamente organizada como uma potência imperial, espetacularmente agressiva, com instituições bem desenvolvidas para sobreviver a derrotas ocasionais e converter as vitórias militares num domínio político duradouro.10

Os romanos deste período sentiam já a sua história como uma ascensão para a grandeza. Um contemporâneo de Catão, Quinto Énio (239–169 a.C.), escreveu um poema épico que era, com efeito, a história de Roma desde o início até ao seu próprio tempo. Intitulava--se Anais, e foi a base do ensino nos últimos tempos da república, tal como Eneida o foi durante o império. Cícero era um admirador da obra, mas até aos nossos dias sobreviveram apenas alguns fragmentos. Apesar disso, temos uma boa noção do enredo de Énio. Os primeiros três livros contam a história de Roma desde a queda de Troia, atraves-sam a fundação da cidade e a governação dos sete reis até à criação da república. Depois, seguem-se 12 livros que relatam as guerras de Roma contra outras comunidades itálicas; contra Pirro, rei da Mace-dónia; contra Cartago, culminando na conquista de cidades gregas em Itália e na Sicília. Seguem-se as primeiras guerras na Hispânia e as que se travaram nos Balcãs, durante o início do século II a.C., contra

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os grandes reinos do Oriente. Énio produz ainda mais três volumes que descrevem as vitórias do seu patrono, o general Marco Fúlvio Nobilior, a quem acompanhara na campanha no Norte dos Balcãs, em 189–188 a.C. No seu regresso, Nobilior mandou erigir um grande templo no Campo de Marte, dedicado a Hércules e às musas. Um modelo dos fasti de Augusto foi também aí exposto. Assim, desde sempre a guerra e a poesia andaram de mãos dadas e a história de Roma era a história do imperialismo romano. O poder romano foi ampliado, guerra justa após guerra justa, até que a sequência completa acabou por ser encarada como aprovada pelos deuses de Roma.11 Nunca se podiam considerar como garantidas as suas aprovações, mas através de repetidos atos de devoção o povo romano conservava o mandato divino. Triunfo após triunfo, o apoio dos deuses era pro-clamado.12 E enquanto estas histórias e epopeias (e também dramas, embora poucas tenham sobrevivido) eram escritas, a cidade enchia-se de templos à vitória, muitos prometidos durante as batalhas e fun-dados com os espólios doados por cada um dos generais, os mesmos que decoravam as suas casas com troféus.

Isto dá-nos então um sentido romano de império. O domínio de um povo, o povo da toga, sobre aqueles a quem tinham vencido na guerra: um domínio aprovado pelos deuses de Roma como uma marca da sua preferência por um povo que era incomparavelmente devoto. Só no último século da república os romanos encontraram meios de descrever a grande entidade política que tinham criado.13 O nosso termo «império» deriva da palavra latina imperium. O seu significado fundamental era «autoridade» e até ao fim da república este permaneceu o seu sentido primário. Só mais tarde, no tempo de Júlio César, a palavra imperator (a raiz do nosso «imperador») passou a significar simplesmente um general, alguém investido de autoridade.

Os soldados no campo de batalha podiam gritar o título após um combate como forma de honrar o seu comandante. Imperium era um poder a prazo e pessoal, que lhe era concedido com ritos solenes pelo tempo que durava uma campanha. O regresso à cidade, o que tinha de cumprir, se quisesse celebrar um triunfo, traduzia a renún-cia a este poder. Um significado que a palavra imperium só viria a adquirir muito tarde neste processo foi o da totalidade do território