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R o m a i n a sua tentativa é incompre- endida. Conhecendo de perto os in- telectuais franceses, imediata- mente o chocam e o afastam a venalidade, o pretenclosismo e o vazio destes. E' reagindo contra esta feira de vaidades que funda, com Péguy e Sua- res, seus amigos de infância, os «Cadernos de Quinzena*, onde combate, pelo exemplo, por uma cultura independente e por um espírito livre. Isto é o que se lê em «Jean Orlstophe», esse extraordiná- rio romance duma consciência e duma época, um dos mais vivos documentos sobre um mundo em ebulição. «Jean Christophe» é a bio- grafia dum jovem alemão, um músico de talento, que é obri- gado a sair da Alemanha vin- Movo encontro Je e a França «...estive sempre em mar- cha, e espero parar na morte.» ROMAIN ROLLAND Raras vezes como em Ro- main Rolland pcderá encon- trar-se u m a tão profunda identidade entre um homem e a sua época. E' êle mesmo quem o descobre ao aíirmar- nos, no prólogo aos «Quinze anos de combate»: «O eu de que vos conto a evolução não me pertence; é o do nosso tempo». De facto, a sua evo- lução marca perfeitamente a evolução da mentalidade eu- ropeia do fim do século XIX e do ccimêço do século XX; di-lo a sua obra numa pri- meira impressão, que mais se enraíza após uma leitura aten- ta. Dí-lo a sua obra porque vida e obra se enlaçam num só corpo; pensamento e acção são para Romain Rolland in- separáveis, relação flefeniria nesta magnifica síntese: «todo o pensamento que não age ou é um aborto ou uma traição». E é de tal modo sanguínea a relação entre a vida do ar- tista e a sua obra—«escrever, para mim, é respirar, é viver» —que esta é a melhor biogra- fia e aquela a melhor obra e o melhor exemplo. Romain Rolland nasceu, a 29 de Janeiro de 1866, na Bor- gonha, em Clamecy, uma pe- quena cidade tranquilamente debruçada nas águas dos ca- nais, cmde se reflecte uma vi- da calma. A sua família per- tence à pequena burguezia: o pai é duma dessas famílias que amassaram a Revolução de 89 com o seu sangue; a mãi des- cende duma família de janse- nistas, de quem herda o espí- rito investigador de Port- Royal. Na vida do homem re- flectir -se-áo sempre a calma tranquila dos canais de Cla- mecy; de seus pais herdará o amor da liberdade e o amor cristão pelos semelhantes, que se unhão numa síntese admi- rável. E' a mãi, fina sensibilidade de artista, quem Inicia, ainda na primeira infância, a sua educação musical. Enoontrani- do, por acaso, em sua casa, um álbum de música alemã, em 'breve a música de Beethoven e Mozart enche toda a sua alma de criança. E' também nesta altura que encontra Shakespeare e a poesia toma, ao lado da música, um lugar no seu amor. Estes encontros, que noutros casos seriam fortuitos, têm na vida de Romain Rolland uma presença continua: é a música de Beethoven e de Mozart que lhe ensina a amar e a compre- ender a alma alemã e gera no seu espírito a criação do ad- mirável Jean Christophe, mú- sico alemão. Wagner é para Rolland a união das suas duas artes, a música e a poesia e, por isso, se toma um dos seus compa- nheiros de caminho. A suges- tão de Wagner, criador do drama lírico musicai, é tão forte que uma das suas pri- meiras tentativas no campo artístico foi a composição de temas melódicos, baseada no ciclo das lendas francesas. Vai para Paris, onde fre- quenta o liceu. E' então que tema contacto cem Tolstoi, outro des seus mestres, que nesta altura influenciava toda uma juventude europeia. Num período de crise, provocado justamente por um livro de Tolstoi, «Que devemos fazer?», em que a música e arte são consideradas pura sensualida- de, escreve ao apóstolo de Ia,s- maia-Poliana uma carta em que lhe transmite todo o seu sofrimento e angustiosa dúvi- da. A resposta inesperada de Tolítoi causa na sua alma um frémito de entusiaismo e tem uma influência decisiva na saia vida. Estes amigos de sua infân- cia e adolescência teTão uma presença real em toda a sua existência guiando a sua acção e amparando as suas Ideias. Após um curso brilhante na Escola Normal vai como bol- seiro para Roma. Ai conhece a nobre alemã Malwida ven Meysenburg, espirito Inquieto que conhecera intimamente os grandes homens do século e para quem as línguas euro- peias não tinham segredos. E' amparado em Malwida Mey- senburg que entra na idade viril e é então que compreen- de a história como uma dis- ciplina viva. De volta a França é nomea- do professor de história da música, primeiro na Escola Normal e depois na Sorbonne. A sua tese sobre história da ópera e os estudos que publica sobre música antiga e moder- na dão-lhe justo renome como musicólogo. Intervém no caso Dreylfus ciheigiamido a representar -se uma peça sua, «les loups», apresentada por Jaurés e as- sistiria por Zofla, mas retlra-se no fim quando o processo co- meça a tomar um ar de «feire sur la place». «O teatro do povo» é uma iniciativa que toma pelo revi- goramenrto do teatro e pela volta ao convívio do povo, mas Quando se ergue perante nós, a figura de Romain Rol- land comove-nos com a diver- sidade dos aspectos que a re- vestem. O músico, o historia- dor, o romancista, o drama- turgo, o critico de arte, o en- saísta, o moralista, o político, o poeta—'têm o seu lugar nes- ta prodigiosa actividade. A esta universalidade os ma's es- clarecidos ajuntem' ainda o amigo infatigável, o corres- pondente fiel e generoso, o co- ração terno, facilmente emo- cionável, o conselheiro secreto de tantas almas sem norte, o espirito ao mesmo tempo o mais actual e o mais inaotual de todos os espíritos vivos. A correspondência de Romain Rolland e os seus cadernos se- rão um dia o grande espelho da nossa época. Não viveremos o bastante para aproveitarmos esta revelação. Ela prepara aos nossos filhos uma surpreza patética. Eles verão reílectir- se aí o que o nosso mundo teve de mais alto e de mais baixo. Não há hoje individua- lidade marcante, ldiéa original, sistema novo que não tenham tido a oportunidade de se ofe- recer ã atenção deste olhar azul, tão terno e tão Impiedo- so. Cada um, por sua vez, terá imprimido o seu traço nesta consciência escaldante e gla- cial. E esta imagem, apenas deformada às vezes pela pai- xão, será produzida perante a história como um depoimento fulminante. Saber-se Há (mais tarde que papel terá desempe- nhado o solitário de Vllleneu- ve, nessa pequena casa—sim- ples dependência de um edifí- cio calcinado—onde êle vive. Os orientais costumam distin- guir duas Europas, a nossa e «a de Romain Rolland». Pro- curando um árbitro para con- flitos seculares entre duas re- públicas, os sul-americanos dirigiram-se a êle. Dizem-nos as pessoas viajadas que os li- vros mais lidos na Europa cen- tral e oriental são os seus e que não há cidade, por mais pequena que seja, onde a sua obra não seja conhecida e dis- cutida. Não se sabe o que de- ve prender-nos principalmente a atenção: se a devoção que de toda a parte se eleva por êste homem, se o rude bom senso e a penetrante ironia com que êle sabe afastar os excessos e desencorajar o dis- cípulo que se sente em cada admirador. Assim, este movi- mento, de que êle se tomou expontaneamente, Involunta- riamente o centro, revela um outTO aspecto da sua persona- lidade, o menos frequentemen- te discernido e citado e, con- tudo, o essencial talvez,—sen- do aquele pelo qual êle reflec- te a mais profunda angústia da nossa época. Se eu dissesse que a guerra se Inscreveu por um desvio brusco no desenvolvimento ins- tintivo e expontâneo de Ro- main Rolland, todas as nossos recordações protestariam. Por- que tudo fala de unidade nes- te edifício. Contudo, se eu procurasse explicar Romain Rolland como o faria um cri- tico literário, e como eu expli- caria qualquer escritor cotado de Franiça ou de Inglaterra, pelas próprias leis do seu de- senvolvimento estético, sem atribuir ao choque moral da guerra uma importância de primeiro plano, eu negar-me- ia a mim mesmo a compreen'- são das formas e das direc- ções tomadas pela sua activi- dade. Digamos então que a sua pessoa oferecia uma su- perfície particularmente sen- sível a êste choque. Antes de 1914, êle encarnava à maravi- lha a grande burguesia fran- cesa liberal, a sua preocupa- ção de alta cultura, a sua de- licadeza, o seu calor, o seu afinamento, o seu amor da independência, o seu raciona- sol nascente R o l l a n d do viver em Paris. Uma alma forte que luta contra todas as contrariedades, todas as desi- lusões e mesmo com a traição, couraçado com um amor viril e uma fé inquebrantáveis; um autista que vive na sua arte em comunhão cc-m os homens. Em França, conhece Jean Christophe, Olivler,' figura ple- na de ternura e duma Ironia simultaneamente doce e amar- Romain lisimo apaixonado, o seu cris- tianismo tolerante. O idealis- mo de Romain Rolland apoia- va-se sobre três pilares que são, fundamentalmente, os do pensamento laico francês do século XIX: liberdade, honra, pátria. Tratando-se dele, ajun- tava a arte. Pela sua necessi- dade de liberdade unla-se aos esforços mais antigos desta burguesia, tais como se mani- festavam sem interrupção, desde as Comunas da Idade Média até à Revolução de 1830 e ao caso Dreyfus. Pelo seu culto da honra, inscrevia-se na linhagem de Vigny e acei- tava em herança o imenso ca- pital do pessimismo que a agonia das religiões legava às almas elevadas. Patriota, era-o à maneira grande dos Eniciclo- pedistas, dos Convencionistas, de Lamartlne, de Mlchelet, de todos aqueles para quem a pá- tria foi o trampolim de onde se salta para a humanidade. Velo a guerra. Ela destruiu su- cessivamente cada um dos quatro pilares—a pátria, a honra, a liberdade e a arte— e, destrulndo-os, revelou a to- dos os olhos o que se tinha feito. A primeira não era mais do que um ídolo ciumento, in- tolerante, — simples manto lançado sobre as combinações da política e da finança. A se- gunda era uma palavra sono- ra, graças à qual morriam es- toicamente, face a face, por motivos análogos, os filhos de uma mesma civilização; uma força vazia, imóvel, sem eficá- cia contra o cinismo dum mundo governado pela lei do egoísmo. A terceira é apenas o resíduo de uma grande morta. Hoje assuisltadlçaimente refu- giada nalguns direitos políti- cos medíocres, e preguiçosos, ela não alimenta, sob os no- mes de individualismo e libe- ralismo, mais do que uma es- pécie de anarquismo pequeno- burguês, composto de medo, ga. Eis os dois caminhes da íoinmação de Romain Rolland: um, Jean Christophe, ama a vida e a liberdade e o seu per- fil tem a marca dos músiico.s aleimãls que tanta influência exerceram sobre o artista; o outro. OUvier, vem tocada de todo o amor cristão que Rol- land recebeu de sua mãi e de Tolstoi. A última parte do li- vro é um documento vivo sô- U o 11 a n J desconfiança e de um retrai- mento resmungão perante as servidões necessárias. A quarta é uma mulher fácil que tanto dança para o herol, como para o tirano. Esta quádrupla frac- tura slmbollsou-a Romain Rol- land numa grande obra, numa obra essencial: Liliãi. Em França, a hora heróica do combate peio laicismo não é mais do que uma recorda- ção. Continuando o jogo dos vexamesinhos quotidianos, alimento da política de cape- linha—católicos e livres pen- sadores deslizam, em compa- nhia, até ao relaxamento in- telectual e moral. A observân- cia estrita acabou, num e nou- tro campo. Santo Afonso de Llguori não triunfa apenas na igreja. O golpe que expulsou os últimos gallcanos do clero, tem a sua exacta contrapar- tida na casa vizinha. Houve sempre, em França, uma cor- rente subterrânea de almas exigentes, corajosas, indomá- veis, leais, um pouco sombrias. São a minoria. Mas a história francesa não se faz nem se compreende sem elas. O calvi- nismo, o jansenismo, o galica- nismo, a Convenção, encontra- ram nelas as suas forças prin- cipais. Romain Rolland deu em certas partes de Jean- Christophe uma descrição du- radoira dessas almas. Durante a guerra, esta elite moral en- controu o emprego das suas energias no sacrifíio de que ela está sempre ávida. Pol ela que forneceu os mais belos exemplos das virtudes silen- ciosas, dos verdadeiros heroís- mos, que evitam a ênfase e o romantismo, no front como na rectaguarda, na família como na cidade. Foi taimbém esta elite a mais rudemente atin- gida pela morte, pelas novas condições da vida pela podri- dão do após-guerra. Dizimada, (Continua na pâalna imediata) bre a sociedade do seu tempo, e o seu nojo é tanto que Jean Christophe tem um único de- sejo: passar através da multi- dão para se refugiar no «so- nho da arte». Jean Christophe acredita sinceramente na for- ça do espírito e é pela força do seu império que se coloca «au dessus de la melée». Rebenta ?. Guerra—Romain Rolland nega-se terminanite- imente a colaborar no que lhe parece um atentado contra a humanidade. Acusado de trai- dor, mal compreendido, mes- mo pelos seus amigos de on- tsim, reíugia-se na Suiça, don- de apeia para todos pela com- preensão e pela paz. Seguetm- no alguns intelectuais de vá- rios países. Em 1915 a sua obTa, já bas- terlte vasta,—publicara os 8 primeiros volumes de Jean Christophe, algumas biografias e obras de teatro—merece o Prémio Nobel. Termina a guerra, 1919, e lnlcla-se uma nova fase na vida deste gianide escritor: os Intelectuais que haviam erigi- do um Credo nas forças do es- pirito encontram-se desampa- rados nas circunstâncias dessa data. «Viver, era preciso viver. Viver por todo o preço! Res- taiurar-se-iam em seguida as razões de viver, os valores eternos!...». E' em Março de 1919 que Rcmain Rolland pu- blica a célebre «Declaração da Independência do espirito» as- sinada por seiscentos intelec- tuais de vários países. Enga- nia-sé porém ao pensar que o papel dos intelectuais é o de manter aquela independência, o de guiar cs exércitos, e é ainda êle quem mais tarde o denuncia: «ela não tardou a mostrar o seu vazio e a sua vaidade»; «esta independência era a do Pilatos, que lava as mãos do sangue do justo, ain- da que injustamente conde- nado». E m 1920 aparece «Cleram- bault», que é a recusa do es- pírito à fatalidade da violên- cia—O um contra todos (pri- meiro titulo do livro—«a cons- ciência livre qu se .sacrifica à sua liberdade». Vem depois a sua grande controvérsia com Henri Bar- basse—1921-22—na «Claure» e «L'art Obre». A propósito, diz hoje Romain Rolland: «Bar- busse tem completamente ra- zão quando denuncia o desin- teresse dos chamados cam- plões da liberdade do espirito, pela realidade social»; e ain- da, «B. podia ter-me respon- dido que a Initervenção da vio- lência não é mais do que um detalhe». Por volta de—1922-27—toma contacto com o movimento hindu e pensa adaptá-lo às ocindições europeias. Publica uma biografia de Gandhi e um outro volume, «Jovem índia». Trava relações pessoais cem Gandhi, Tagore e outros diri- gentes do movimento naciona- lista da índia. Compreeride-se facilmente a sedução que êste movimento exerceu sobre Ro- main Rolland, s.e atendermos a que êle mantinha ainda uma cofianca segura nas «forças espirituais», elemento primor- dial de resistência passiva, processo dos braços caídos, té- tica aconselhada por Gandhi. Entretanto Romain Rolland não perde contacto com as perspectivas europeias e pode aíliimar-.se que não existe ma- nifestação de caracter huma- nista em que não intervenha. Pouco a pouco as realidades do mundo impõem-se à sua maneira de ver, o que lhe per- mite escrever em 1935, em 'iQuinze anos de combate»: «Jamais direi o bastante da aversão que me inspira a ido- latria do Espírito em abstra- cto, que o desenraiza do solo donde tema a vida, e ao mes- mo tempo que dos riscos e das responsabilidades, o priva da seiva potente sem a qual não pa.ssa duma larva desgostan- te». E' a sua vida de plena dedi- cação e amor do homem que lhe dita estas palavras: «E agora, quando olho atrás de mim a longa estrada dos meus setenta anos, vejo, cem uma claridade de que não tinira consciência, o pensamento que foi sempre o meu guia duran- te esta peregrinação. O duplo pensamento fundamentei: O primeiro é a comunhão com todos os vivoa, o sentimento profundo e permanente da unidade do género humano através das idades, das raças e das nações. O segundo é a indivisibilida- de do pensamento e da ac- ção. Por mais penetrado que eu estivesse, desde a infância, das fontes da alma, da poesia e da música, nunca admiti o Isolamento na contemplação e no orgulho da torre de mar- fim. Desprezo a arte pela arte e o pensamento enrolado em si como uma serpente que es- mei a sua refeição. O pensa- mento é um rio que sai das entrainhas da terra. Nunca as suas raízes serão mais profun- das. Mas uma vez saído daí, o rio em marcha deve abrir o seu largo caminho através das planícies e dos montes, ba- nhando e fecundando a terra. Todo o pensamento que não age ou é um aborto ou uma traição.» JOAQUIM NAMORADO por J. R. BLOCH sal nascente nove mmm \m'»m\m»m-t\mmatmu muniu a,m»i i

Romain Rolland - dspace.uevora.pt · Romain a sua tentativa é incompre endida. Conhecendo de perto os in telectuais franceses, imediata mente o chocam e o afastam a venalidade, o

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Page 1: Romain Rolland - dspace.uevora.pt · Romain a sua tentativa é incompre endida. Conhecendo de perto os in telectuais franceses, imediata mente o chocam e o afastam a venalidade, o

R o m a i n a sua tentativa é incompre­endida.

Conhecendo de perto os in­telectuais franceses, imediata­mente o chocam e o afastam a venalidade, o pretenclosismo e o vazio destes. E' reagindo contra esta feira de vaidades que funda, com Péguy e Sua­res, seus amigos de infância, os «Cadernos de Quinzena*, onde combate, pelo exemplo,

por uma cultura independente e por um espírito livre.

Isto é o que se lê em «Jean Orlstophe», esse extraordiná­rio romance duma consciência e duma época, um dos mais vivos documentos sobre um mundo em ebulição.

«Jean Christophe» é a bio­grafia dum jovem alemão, um músico de talento, que é obri­gado a sair da Alemanha vin-

Movo encontro Je • e a França

«...estive sempre em mar­cha, e espero só parar na morte.»

ROMAIN ROLLAND

Raras vezes como em Ro­main Rolland pcderá encon­trar-se u m a tão profunda identidade entre um homem e a sua época. E' êle mesmo quem o descobre ao aíirmar-nos, no prólogo aos «Quinze anos de combate»: «O eu de que vos conto a evolução não me pertence; é o do nosso tempo». De facto, a sua evo­lução marca perfeitamente a evolução da mentalidade eu­ropeia do fim do século XIX e do ccimêço do século XX; di-lo a sua obra numa pri­meira impressão, que mais se enraíza após uma leitura aten­ta. Dí-lo a sua obra porque vida e obra se enlaçam num só corpo; pensamento e acção são para Romain Rolland in­separáveis, relação flefeniria nesta magnifica síntese: «todo o pensamento que não age ou é um aborto ou uma traição». E é de tal modo sanguínea a relação entre a vida do ar­tista e a sua obra—«escrever, para mim, é respirar, é viver» —que esta é a melhor biogra­fia e aquela a melhor obra e o melhor exemplo.

Romain Rolland nasceu, a 29 de Janeiro de 1866, na Bor­gonha, em Clamecy, uma pe­quena cidade tranquilamente debruçada nas águas dos ca­nais, cmde se reflecte uma vi­da calma. A sua família per­tence à pequena burguezia: o pai é duma dessas famílias que amassaram a Revolução de 89 com o seu sangue; a mãi des­cende duma família de janse-nistas, de quem herda o espí­rito investigador de Port-Royal. Na vida do homem re­flectir -se-áo sempre a calma tranquila dos canais de Cla­mecy; de seus pais herdará o amor da liberdade e o amor cristão pelos semelhantes, que se unhão numa síntese admi­rável.

E' a mãi, fina sensibilidade de artista, quem Inicia, ainda na primeira infância, a sua educação musical. Enoontrani-do, por acaso, em sua casa, um álbum de música alemã, em 'breve a música de Beethoven e Mozart enche toda a sua alma de criança. E' também nesta altura que encontra Shakespeare e a poesia toma, ao lado da música, um lugar no seu amor.

Estes encontros, que noutros casos seriam fortuitos, têm na vida de Romain Rolland uma

presença continua: é a música de Beethoven e de Mozart que lhe ensina a amar e a compre­ender a alma alemã e gera no seu espírito a criação do ad­mirável Jean Christophe, mú­sico alemão.

Wagner é para Rolland a união das suas duas artes, a música e a poesia e, por isso, se toma um dos seus compa­nheiros de caminho. A suges­tão de Wagner, criador do drama lírico musicai, é tão forte que uma das suas pri­meiras tentativas no campo artístico foi a composição de temas melódicos, baseada no ciclo das lendas francesas.

Vai para Paris, onde fre­quenta o liceu. E' então que tema contacto cem Tolstoi, outro des seus mestres, que nesta altura influenciava toda uma juventude europeia. Num período de crise, provocado justamente por um livro de Tolstoi, «Que devemos fazer?», em que a música e arte são consideradas pura sensualida­de, escreve ao apóstolo de Ia,s-maia-Poliana uma carta em que lhe transmite todo o seu sofrimento e angustiosa dúvi­da. A resposta inesperada de Tolítoi causa na sua alma um frémito de entusiaismo e tem uma influência decisiva na saia vida.

Estes amigos de sua infân­cia e adolescência teTão uma presença real em toda a sua existência guiando a sua acção e amparando as suas Ideias.

Após um curso brilhante na Escola Normal vai como bol­seiro para Roma. Ai conhece a nobre alemã Malwida ven Meysenburg, espirito Inquieto que conhecera intimamente os grandes homens do século e para quem as línguas euro­peias não tinham segredos. E' amparado em Malwida Mey­senburg que entra na idade viril e é então que compreen­de a história como uma dis­ciplina viva.

De volta a França é nomea­do professor de história da música, primeiro na Escola Normal e depois na Sorbonne. A sua tese sobre história da ópera e os estudos que publica sobre música antiga e moder­na dão-lhe justo renome como musicólogo.

Intervém no caso Dreylfus ciheigiamido a representar -se uma peça sua, «les loups», apresentada por Jaurés e as­sistiria por Zofla, mas retlra-se no fim quando o processo co­meça a tomar um ar de «feire sur la place».

«O teatro do povo» é uma iniciativa que toma pelo revi-goramenrto do teatro e pela volta ao convívio do povo, mas

Quando se ergue perante nós, a figura de Romain Rol­land comove-nos com a diver­sidade dos aspectos que a re­vestem. O músico, o historia­dor, o romancista, o drama­turgo, o critico de arte, o en­saísta, o moralista, o político, o poeta—'têm o seu lugar nes­ta prodigiosa actividade. A esta universalidade os ma's es­clarecidos ajuntem' ainda o amigo infatigável, o corres­pondente fiel e generoso, o co­ração terno, facilmente emo-cionável, o conselheiro secreto de tantas almas sem norte, o espirito ao mesmo tempo o mais actual e o mais inaotual de todos os espíritos vivos. A correspondência de Romain Rolland e os seus cadernos se­rão um dia o grande espelho da nossa época. Não viveremos o bastante para aproveitarmos esta revelação. Ela prepara aos nossos filhos uma surpreza patética. Eles verão reílectir-se aí o que o nosso mundo teve de mais alto e de mais baixo. Não há hoje individua­lidade marcante, ldiéa original, sistema novo que não tenham tido a oportunidade de se ofe­recer ã atenção deste olhar azul, tão terno e tão Impiedo­so. Cada um, por sua vez, terá imprimido o seu traço nesta consciência escaldante e gla­cial. E esta imagem, apenas deformada às vezes pela pai­xão, será produzida perante a história como um depoimento fulminante. Saber-se Há (mais tarde que papel terá desempe­nhado o solitário de Vllleneu-ve, nessa pequena casa—sim­ples dependência de um edifí­cio calcinado—onde êle vive. Os orientais costumam distin­guir duas Europas, a nossa e «a de Romain Rolland». Pro­curando um árbitro para con­flitos seculares entre duas re­públicas, os sul-americanos dirigiram-se a êle. Dizem-nos as pessoas viajadas que os li­

vros mais lidos na Europa cen­tral e oriental são os seus e que não há cidade, por mais pequena que seja, onde a sua obra não seja conhecida e dis­cutida. Não se sabe o que de­ve prender-nos principalmente a atenção: se a devoção que de toda a parte se eleva por êste homem, se o rude bom senso e a penetrante ironia com que êle sabe afastar os excessos e desencorajar o dis­cípulo que se sente em cada admirador. Assim, este movi­mento, de que êle se tomou expontaneamente, Involunta­riamente o centro, revela um outTO aspecto da sua persona­lidade, o menos frequentemen­te discernido e citado e, con­tudo, o essencial talvez,—sen­do aquele pelo qual êle reflec­te a mais profunda angústia da nossa época.

Se eu dissesse que a guerra se Inscreveu por um desvio brusco no desenvolvimento ins­tintivo e expontâneo de Ro­main Rolland, todas as nossos recordações protestariam. Por­que tudo fala de unidade nes­te edifício. Contudo, se eu procurasse explicar Romain Rolland como o faria um cri­tico literário, e como eu expli­caria qualquer escritor cotado de Franiça ou de Inglaterra, pelas próprias leis do seu de­senvolvimento estético, sem atribuir ao choque moral da guerra uma importância de primeiro plano, eu negar-me­ia a mim mesmo a compreen'-são das formas e das direc­ções tomadas pela sua activi­dade. Digamos então que a sua pessoa oferecia uma su­perfície particularmente sen­sível a êste choque. Antes de 1914, êle encarnava à maravi­lha a grande burguesia fran­cesa liberal, a sua preocupa­ção de alta cultura, a sua de­licadeza, o seu calor, o seu afinamento, o seu amor da independência, o seu raciona-

sol nascente

R o l l a n d do viver em Paris. Uma alma forte que luta contra todas as contrariedades, todas as desi­lusões e mesmo com a traição, couraçado com um amor viril e uma fé inquebrantáveis; um autista que vive na sua arte em comunhão cc-m os homens. Em França, conhece Jean Christophe, Olivler,' figura ple­na de ternura e duma Ironia simultaneamente doce e amar-

Romain lisimo apaixonado, o seu cris­tianismo tolerante. O idealis­mo de Romain Rolland apoia-va-se sobre três pilares que são, fundamentalmente, os do pensamento laico francês do século XIX: liberdade, honra, pátria. Tratando-se dele, ajun­tava a arte. Pela sua necessi­dade de liberdade unla-se aos esforços mais antigos desta burguesia, tais como se mani­festavam s e m interrupção, desde as Comunas da Idade Média até à Revolução de 1830 e ao caso Dreyfus. Pelo seu culto da honra, inscrevia-se na linhagem de Vigny e acei­tava em herança o imenso ca­pital do pessimismo que a agonia das religiões legava às almas elevadas. Patriota, era-o à maneira grande dos Eniciclo-pedistas, dos Convencionistas, de Lamartlne, de Mlchelet, de todos aqueles para quem a pá­tria foi o trampolim de onde se salta para a humanidade. Velo a guerra. Ela destruiu su­cessivamente cada um dos quatro pilares—a pátria, a honra, a liberdade e a arte— e, destrulndo-os, revelou a to­dos os olhos o que se tinha feito. A primeira não era mais do que um ídolo ciumento, in­tolerante, — simples m a n t o lançado sobre as combinações da política e da finança. A se­gunda era uma palavra sono­ra, graças à qual morriam es­toicamente, face a face, por motivos análogos, os filhos de uma mesma civilização; uma força vazia, imóvel, sem eficá­cia contra o cinismo dum mundo governado pela lei do egoísmo. A terceira é apenas o resíduo de uma grande morta. Hoje assuisltadlçaimente refu­giada nalguns direitos políti­cos medíocres, e preguiçosos, ela não alimenta, sob os no­mes de individualismo e libe­ralismo, mais do que uma es­pécie de anarquismo pequeno-burguês, composto de medo,

ga. Eis os dois caminhes da íoinmação de Romain Rolland: um, Jean Christophe, ama a vida e a liberdade e o seu per­fil tem a marca dos músiico.s aleimãls que tanta influência exerceram sobre o artista; o outro. OUvier, vem tocada de todo o amor cristão que Rol­land recebeu de sua mãi e de Tolstoi. A última parte do li­vro é um documento vivo sô-

U o 11 a n J desconfiança e de um retrai­mento resmungão perante as servidões necessárias. A quarta é uma mulher fácil que tanto dança para o herol, como para o tirano. Esta quádrupla frac­tura slmbollsou-a Romain Rol­land numa grande obra, numa obra essencial: Liliãi.

Em França, a hora heróica do combate peio laicismo não é mais do que uma recorda­ção. Continuando o jogo dos vexamesinhos quotidianos, — alimento da política de cape­linha—católicos e livres pen­sadores deslizam, em compa­nhia, até ao relaxamento in­telectual e moral. A observân­cia estrita acabou, num e nou­tro campo. Santo Afonso de Llguori não triunfa apenas na igreja. O golpe que expulsou os últimos gallcanos do clero, tem a sua exacta contrapar­tida na casa vizinha. Houve sempre, em França, uma cor­rente subterrânea de almas exigentes, corajosas, indomá­veis, leais, um pouco sombrias. São a minoria. Mas a história francesa não se faz nem se compreende sem elas. O calvi-nismo, o jansenismo, o galica-nismo, a Convenção, encontra­ram nelas as suas forças prin­cipais. Romain Rolland deu em certas partes de Jean-Christophe uma descrição du­radoira dessas almas. Durante a guerra, esta elite moral en­controu o emprego das suas energias no sacrifíio de que ela está sempre ávida. Pol ela que forneceu os mais belos exemplos das virtudes silen­ciosas, dos verdadeiros heroís­mos, que evitam a ênfase e o romantismo, no front como na rectaguarda, na família como na cidade. Foi taimbém esta elite a mais rudemente atin­gida pela morte, pelas novas condições da vida pela podri­dão do após-guerra. Dizimada,

(Continua na pâalna imediata)

bre a sociedade do seu tempo, e o seu nojo é tanto que Jean Christophe tem um único de­sejo: passar através da multi­dão para se refugiar no «so­nho da arte». Jean Christophe acredita sinceramente na for­ça do espírito e é pela força do seu império que se coloca «au dessus de la melée».

Rebenta ?. Guerra—Romain Rolland nega-se terminanite-imente a colaborar no que lhe parece um atentado contra a humanidade. Acusado de trai­dor, mal compreendido, mes­mo pelos seus amigos de on-tsim, reíugia-se na Suiça, don­de apeia para todos pela com­preensão e pela paz. Seguetm-no alguns intelectuais de vá­rios países.

Em 1915 a sua obTa, já bas-terlte vasta,—publicara os 8 primeiros volumes de Jean Christophe, algumas biografias e obras de teatro—merece o Prémio Nobel.

Termina a guerra, 1919, e lnlcla-se uma nova fase na vida deste gianide escritor: os Intelectuais que haviam erigi­do um Credo nas forças do es­pirito encontram-se desampa­rados nas circunstâncias dessa data. «Viver, era preciso viver. Viver por todo o preço! Res-taiurar-se-iam em seguida as razões de viver, os valores eternos!...». E' em Março de 1919 que Rcmain Rolland pu­blica a célebre «Declaração da Independência do espirito» as­sinada por seiscentos intelec­tuais de vários países. Enga-nia-sé porém ao pensar que o papel dos intelectuais é o de manter aquela independência, o de guiar cs exércitos, e é ainda êle quem mais tarde o denuncia: «ela não tardou a mostrar o seu vazio e a sua vaidade»; «esta independência era a do Pilatos, que lava as mãos do sangue do justo, ain­da que injustamente conde­nado».

E m 1920 aparece «Cleram-bault», que é a recusa do es­pírito à fatalidade da violên­cia—O um contra todos (pri­meiro titulo do livro—«a cons­ciência livre qu se .sacrifica à sua liberdade».

Vem depois a sua grande controvérsia com Henri Bar­basse—1921-22—na «Claure» e «L'art Obre». A propósito, diz hoje Romain Rolland: «Bar-busse tem completamente ra­zão quando denuncia o desin­teresse dos chamados cam-plões da liberdade do espirito, pela realidade social»; e ain­da, «B. podia ter-me respon­dido que a Initervenção da vio­lência não é mais do que um detalhe».

Por volta de—1922-27—toma contacto com o movimento

hindu e pensa adaptá-lo às ocindições europeias. Publica uma biografia de Gandhi e um outro volume, «Jovem índia». Trava relações pessoais cem Gandhi, Tagore e outros diri­gentes do movimento naciona­lista da índia. Compreeride-se facilmente a sedução que êste movimento exerceu sobre Ro­main Rolland, s.e atendermos a que êle mantinha ainda uma cofianca segura nas «forças espirituais», elemento primor­dial de resistência passiva, processo dos braços caídos, té­tica aconselhada por Gandhi.

Entretanto Romain Rolland não perde contacto com as perspectivas europeias e pode aíliimar-.se que não existe ma­nifestação de caracter huma­nista em que não intervenha.

Pouco a pouco as realidades do mundo impõem-se à sua maneira de ver, o que lhe per­mite escrever em 1935, em 'iQuinze anos de combate»: «Jamais direi o bastante da aversão que me inspira a ido­latria do Espírito em abstra­cto, que o desenraiza do solo donde tema a vida, e ao mes­mo tempo que dos riscos e das responsabilidades, o priva da seiva potente sem a qual não pa.ssa duma larva desgostan-te».

E' a sua vida de plena dedi­cação e amor do homem que lhe dita estas palavras: «E agora, quando olho atrás de mim a longa estrada dos meus setenta anos, vejo, cem uma claridade de que não tinira consciência, o pensamento que foi sempre o meu guia duran­te esta peregrinação. O duplo pensamento fundamentei: O primeiro é a comunhão com todos os vivoa, o sentimento profundo e permanente da unidade do género humano através das idades, das raças e das nações.

O segundo é a indivisibilida­de do pensamento e da ac­ção. Por mais penetrado que eu estivesse, desde a infância, das fontes da alma, da poesia e da música, nunca admiti o Isolamento na contemplação e no orgulho da torre de mar­fim. Desprezo a arte pela arte e o pensamento enrolado em si como uma serpente que es-mei a sua refeição. O pensa­mento é um rio que sai das entrainhas da terra. Nunca as suas raízes serão mais profun­das. Mas uma vez saído daí, o rio em marcha deve abrir o seu largo caminho através das planícies e dos montes, ba­nhando e fecundando a terra. Todo o pensamento que não age ou é um aborto ou uma traição.»

JOAQUIM NAMORADO

por J. R. BLOCH

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