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Romance de uma Rainha - ebook espirita...VI - O vampiro Epílogo Primeira Parte Deir-El-Bahari NOTA DO ORIGINAL FRANCÊS - Deir-El-Bahari deve ser considerado na classe daqueles que,

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RomancedeumaRainha(LareineHatasou)

WeraKrijanowskaiaPeloEspíritoJ.W.Rochester

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ÍNDICEPrimeiraParte:Deir-el-Bahari

I-AfestadoNilo

II-Obanidoesuairmã

III-Amúmiadadaempenhor

IV-Napesquisadaverdade

V-NeithnotemplodeHator

VI-Opríncipehiteno

VII-Abracro

VIII-Sargonnopaláciodarainha

IX-NúpciaselutonoEgito

X-Rainhaemãe

XI-NovidadesemcasadeTuaá

XII-EmBouto

SegundaParte:ObruxodeMênfis

I-Arosavermelha

II-Asaventurasdocolarencantado

III-Opaláciodoenfeitiçador

IV-Horemsebeoseufeiticeiro

V-Obeijomortal

VI-OsprojetosdeNeftis

VII-Hatasusobaaçãodofeitiço

VIII-OenfeitiçadoremTebas

IX-FrutosdaestadadeHoremsebemTebas

TerceiraParte:Neithempoderdofeiticeiro

I-Antigosconhecidos

II-Aspesquisas

III-Aconjura

IV-NeitheHoremseb

V-Ofuturo

VI-Derradeirosdiasdepoderio

VII-AmortedeSargon

VIII-Derradeirasvítimas

IX-Hartatef

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QuartaParte:Asvítimasseagrupam

I-Obruxoempoderdassombrasvingativas

II-Ojulgamento

III-Últimashorasdocondenado

IV-ObruxoreviveemMena

V-AfestadoNilo

VI-Ovampiro

Epílogo

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PrimeiraParteDeir-El-Bahari

NOTA DO ORIGINAL FRANCÊS - Deir-El-Bahari deve ser considerado na classe daqueles que, fora de Tebas, não seencontraempartealgumaeemqualquerépoca.SeHatasunelenãoperpetuoutudoquantofezduranteoseureinado,essetemploestáparaelaquantoRamesseumestáparaRamsésII(queerigiunotabilíssimostemplos).Talmonumentoapresentaumconjuntoúnico,sem.similarexemplonoEgito,construídoquefoiemformadeterraçossuperpostos,comumaaléiadeesfingesprecedendo-o.ForcaéconviremqueDeir-El-Bahariconstituibemestranhomonumentoeemnadaseassemelhaaumtemploegípcio:todasashipótesesconcordandoemqueaconstruçãoemterraçosfoiadotadaparautilizaradisposiçãonaturaldoterrenoeparaeconomizarenormestrabalhosficamcomprovadamenteanuladas,tendo-seemvistaqueoutrostemplos,maioresainda,foramerguidosemterrenosmaisescarpados,earocharesolutamenteaplainadaparaconverter-seem plano horizontal. O extraordinário conjunto de Deir-El-Bahari permanece um enigma. Houve nele influênciaestrangeira?Aqualdospaíses,entãoconhecidosdoEgito,setomouaidéiaaplicadaneleexclusivamente?Aépocaaqueremontamos,comosTutmés,tornaquaseimpossívelarespostaataisperguntas,esónosresta,aguardandoasoluçãodoproblema,olharomonumentonograudeexceçãoeacidenteúnicoemtodaavidaarquitetônicadoEgito.

(ExtraídodeDeir-El-BaJiari,porMariette.)

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I

AFESTADONILOQualumraiodesol,ohomemsurgenaTerraparaespalharluzmomentâneanasuaenganosasuperfícieedesaparece,qualraiodesol,semdeixarvestígio.

ROCHESTER

Os reinados dos Faraós da 18ª dinastia representam uma das mais brilhantes épocas daHistóriadoVelhoEgito.AexpulsãodosHyksos(1),auniãodasduasmetadesdoreinosobumcetroúnicoeascampanhasvitoriosasdessesempreendedoresecavalheirescossoberanoshaviamdadonovosurtoàsartes,àsciênciaseàindústria.AÁsia,conquistadaeconstituídatributáriadosFaraós,traziatesourosdesconhecidosatéentão,introduzindocomelesgrandesrefinamentosnoscostumeseexorbitanteluxo.

(1)HYKSOS - ou reis pastores, chefes de tribos nômades de árabes ou fenícios, cananeus,migrantesquehabitaramasmargens do grande rio Eufrates, invadiram o Egito, no ano 2310 antes do Cristo, e fundaram a 17ª dinastia. Satatis,primeiro dos soberanos Hyksos, estabeleceu-se em Mênfis, onde reinou cerca de dois decênios. Seus sucessoresmantiveram-senopoderporperíodoalémdedoisséculos,masforamafinalrechaçadospelosFaraóstebanos,noano2050antesdoCristo,aproximadamente,queseapossaramdePelúsio,apraçadearmasdosexpulsos.Eramchamadosimpurospelosegípcios(epítetoqueseestendiaaoshitenos,que,segundoacomplicadaHistóriadovelhoEgito,estiveram,entreagentedaÁsiaMenor,estabelecidosnoEufrates,àépocaemqueTutmésIalifezvitoriosascampanhas,emconsequênciadasquaishouveprisioneirosqueinfluírampoderosamenteemalgunsdosimportantesacontecimentosdoreinadodarainhaHatasu).

RelevanotarqueoshistoriadoreseruditosnãosimplificaramparaHatasuonomedesteFaraófeminino,poisoverdadeiroébemmaiscomplicado:Hatshopsuitu(Maspero)Ha’tcftepsut(Oncken),Hat-shepsut(Ad.Erman),etc.CesarCantu(traduçãoportuguesa) é quem registra a simplificação Hatasu. Os Hyksos, no seu domínio, infligiram aos egípcios espantososmassacres,pilharamedestruíramquantolhesfoipossível,inclusivetemplos,impondoaosconquistadosbárbaroregímendeopressõeseviolências.

Nodiaemquecomeçaanossanarrativa,amaiorealegreanimaçãodominavanas ruasdeTebas.AantigaCapital,ampliadaeaformoseadaporTutmés I,paidossoberanosdeentão,haviasido ornada com os seus mais belos enfeites; em todas as portas das casas, pintadas de vistosascores,balouçavamguirlandasdeverdesfolhagens;floresengalanavamasbalaustradasdostelhadosplanoseenroscavamemtornodosmastrosfincadosàfrentedospalácios;portodapartemúsicaecantares;amultidãojubilosa,emtrajesfestivos,atravancavaasruas.

Festejava-sea festadorioNilo,doqualaságuas fecundantes transbordavam, inundandooscamposressequidos,prometendoassimumanofértiledeabundantescolheitas.

Àsbordasdo rio sagrado comprimia-se amolehumanamais compacta, adensando-se aindamais,deminutoaminuto,pressionando-separamaioraproximaçãoaumalargaescadariadepedra,junto da qual estava amarrada grande barca, dourada e embandeirada, com enorme séquito deoutras embarcações, também ricas e elegantes, ainda que, no momento, estivessem ocupadasunicamentepelosrespectivosremadores.

Nãodistantedessecentrodecuriosidadeeatençãohaviaumasegundadescida,privativasemdúvidadanobrezaedeoutraspersonalidadesdistintas,por issoque,ao términodosdegraus, segrupavam as embarcações mais belas e engalanadas. Precisamente em tal momento, um amplobarcoempavesado,ostentandoàproaumaflordelótusdourada,aproximava-secélereaoimpulsoderemeirosnegros,vestindotúnicasbrancasebonéslistrados.

Sobre um dos bancos, cobertos de valiosos tapetes, estava sentado um jovem de elevadaestatura, esbelto e vigoroso, cujo rosto bronzeado era regular, mas em cujos lábios finos, olhossombrios e profundos, se denunciavam tenacidade, dureza e paixões concentradas. Ricamentevestido,umcolardeourolhefaziaváriasvoltasemtornodopescoço,e,nocintofenicianoquelhecontornavaotalhe,umpunhaldecabolavrado.Quandoobarcoseavizinhoudodesembarcadouro,ergueu-seojoveme,punhoapoiadonoquadril,começouaexaminarosquechegavamesepremiamnaescada.Nesseinstante,deumcarroquesedetiveranamargemdoriosaltoujovemoficialque,atirandoasrédeasaocondutor,desceuosdegrausacorrer.

—Bom dia, Hartatef — exclamou em voz clara e alegre —, podes dar-me um lugar no teu

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barco?

— Sem dúvida, com prazer; mas, eu te julgava de serviço — respondeu Hartatef, com umapertodemãoaorecém-vindo.

—Libertei-meparaestarcontigoeesperoquenãoseassinaleaminhaausêncianocortejo—disse,rindo,ooficial.

— Estou de acordo. Mas, e os teus parentes, Mena? Já é mais do que tempo de tomarcolocação.Vês,Hatasu(queosdeusesaprotejam!)vaichegar,osbatedoresjádesviamaturbaparaabrirpassagemaocortejo.

—Quando deixei a casa, Pair e os rapazes já estavam trajados, mas as senhoras pareciamintermináveisnosseusarranjos.Aesserespeito,sãoincorrigíveis.

—ENeith(2),estábem?

(2)NEITH-deusaegípcia,deintricadaligaçãoeiconografia.FilhaemulherdeKneffemãedeFta,tambémcomumenteconsideradamulheremãedeFré,ealgumasvezesconfundidacomBouto;pintavam-naoracomcabeçadeleãoeovelha,orahumana,eoutrasvezescomasas,calcandoaospésaserpenteApof.Tinham-napordeusadasabedoriaeprotetoradasartes. Julga-sequedaNeithdosegípciososgregos fizeramasuaMinerva.EraadeusadeSais,Baixo-Egito,ondetinhatemplo(eassimtambémemBubastiseoutroscentros),epersonificavaoprincipiofemininodaNatureza.Inscriçõesdavam-lheadenominaçãodemãe.Hámuitasoutraseváriasapresentaçõesdostípicosdestadeusa.Muitosdosnomesdequese

serviuRochestertêmraízeshistóricas,religiosasounão:Satatis,Sargon,Antef,Neftis,Horemseb(Hor’em’heb),eoutros,usadospeloautor,foramnomesdereis,príncipes,deuses(detemplosoudomésticos),etc.Serialongoexplicaraorigemdecadaum,pormuitonumerososeentrelaçadoscomoutros.(Ad.Erman,LaReligiondes'Egyptiens,ed.Payot,Paris,1937,págs.53epassim.)

—Vicejanteebelaqualumarosa,oquepoderásconstatar,poisei-laquechega,comSatati—respondeuMena,apontandocomamãoduaselegantes liteirasqueseviamconduzidasquaseemcarreira.

Comoqueeletrizado,Hartatefsaltoudobarcoecorreuaoencontrodasliteiras,queentãosedetinham.Daprimeiradelas,desceulestamenteumhomemquarentão,seguidodedoisrapazinhos,de14e10deidade;nasegunda,estavamsentadasduasmulheres,sendoqueumaaparentava35deidadeecujoinsignificanterostoespelhavagrandedoçura,enquantoofulgorsorrateiroemauqueporvezesselheirradiavadosolhospardos,embaciadoseàflordasórbitas,desmentiaaaparentebondade.Vestia-secomestudadasimplicidadeeapenasalgumas jóiasdealtopreçodenunciavamhierarquia social e riqueza. A jovem a seu lado mostrava escassos 14 de idade. Talhe franzino,membros delicados, tez ligeiramente brunida, de admirável brancura, seus grandes olhos negroschamejantes, dando realce ao rosto arredondado, atestavam que voluntariosa e apaixonada almaanimava aquele corpo quase infantil. Trajava totalmente de branco; largodiadema incrustado deesmeraldas sustentava a opulenta cabeleira negra, e um colar, cinto e braceletes, também deesmeraldas,completavamseusenfeites.

—Bomdia,Satati;bomdia,Neith—disseHartatef,ajudandoambasnadescida,esimulandonãoperceberorictodesdenhosodeNeithaocorresponderàsaudação.

—Atrasamo-nos um pouco e te fizemos esperar-nos porque fomos forçadas a um desvio decaminho,dadoocongestionamentodo trânsitonas ruas—explicouSatati, subindoparaobarco,ondesentoupróximadoesposo,Pair.

Hartatefapressurou-seapóselee,sempediroconsentimentodeNeith,queaseguiaimediata,ergueuestanosbraçoseadepôsnobancoondeeledeviasentar-se.

—Detestoquemeprestemserviçosnãosolicitados—disseajovem,descontenteeerguendo-se.Vousentar-meentreAssaeBeba.

— Não te entregues a caprichos agora, nem faças excursões que nos possam fazer virar aembarcação—repreendeuPair.Olha,arainhavaichegar.

Hartatefparecianãoterouvido;sentou-seaoladodeNeitheordenouaosremadores:

—Vamos!

Nessemomento,houvetumulto.Todososolharessevoltaramparaamargemdorioegritosestrepitososabafaramquaisquerruídos:sobreaescadariaapareceuoiníciodocortejo.Sacerdotes,

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dignitários e oficiais desciam em perfeita ordem e instalavam-se nas embarcações, formandosemicírculoemredordaquesedestinavaàsoberana.Aseguir,cintilandoaoSol,surgiuumaliteiraaberta,douradaemarchetada,comoqueemergindodeumaflorestadelequesdeplumaseestofosencimados em hastes douradas também. Sobre esse trono, apoiado aos ombros de 12 homens,sentava-seHatasu,aousada filhadeTutmés I,aquelaque,amãos firmes, sehaviaapossadodasrédeasdogoverno,concedendoaseuirmão,TutmésII(3),apenasumasituaçãoassazsubalterna.

(3)TUTMESII-erairmãoeesposodeHatasu.Nafamíliadosreiseramuitocomumtalcostumedecasarirmãos,afimdemelhorconservaro"sanguedivino”dosoberano;enasfamíliastambémseadmitiaessainstituição,quaseconsuetudinária.

NaCivilisationÉgyptienne,deErman-Ranke,podeler-se:“Ocasamentoentreirmãoeirmãera,porassimdizer,aregranoEgito dos Ptolomeus e dos romanos... e sob o imperadorCommodus, dois terços dos cidadãos da cidade deArsinoeestavamnessecaso.”(Ed.Payot,1952,pág.209.)

Arainha,aindajovem,eradelgadaedecompleiçãomediana;seubelorosto,detezmorena,traços regulares, era severo e arrogante; a boca, de cantos contraídos, ajudava a exprimirdesmesuradoorgulho;mas,ocaráter todoparticulardasua fisionomiasintetizava-senosgrandesolhosnegros,deumbrilhomagnéticodifícildesuportar.Orachamejantedeenergiaeaudácia,oraimpenetrávelegélido,seuestranhoolharagiasubjugantesobrequemfixava.

Trajando túnica branca, ricamente bordada, manto de púrpura preso às espáduas porpresilhasdeouro,ostentavanacabeçaaduplacoroadossoberanosdoNilo,enadestraempunhavao cetro e o látego, insígnias da autoridade suprema. A liteira deteve-se próxima da escadaria. Arainha, descendo-a, tomou lugar na embarcação, na cadeira que lhe era destinada, sob dossel,movimentando-se,emseguida,ocortejopelorio,emdireçãoaotemplodeAmon.

Entre as barcas que tinham colocação no séquito real contava-se a de Hartatef, na qualreinavacalma,porissoqueaversátilNeithreadquiriraobomhumoreexaminava,cominteresse,osinumeráveisbarcosqueenxameavamoNilo,permutandosaudaçõesacadainstantecomaspessoasdoseuconhecimento.Meioafastadadovizinhodelugar,parecianãoconcederamínimaatençãoàpalestra deste com Pair e Mena, embora, em verdade, não perdesse uma única palavra de talconversação.

—Enquantopermanecerdesnotemplo,tereinecessidadedevosdeixar,meusamigos—diziaHartatef—,porque,sabeis,foitrazidadomarumapartedosnaviosqueHatasufezconstruir,paralongínquaexpediçãoaopaísdoPoun(4)queelaprojeta,oquetambémnãoignorais.Hoje,depoisdacerimônia,desejainspecionarpessoalmenteessafrota,ealidevorecebê-la.

(4)PUNAouPUANIT-Aexpediçãofoilevadaaefeito,segundorefereMaspero,naHistóriaantigadospovosdoOriento.(Ed.Hachette,1917,pág.232.)

— Forçoso é confessar que a nossa rainha (os deuses lhe conservem vida longa!) é bemextraordinária mulher. Que planos idealiza! Com que ousadia adota as idéias novas, do que dátestemunhootúmuloquefezconstruir,obedecendoatraçadoemabsolutodiferentedaquelesqueos deuses e o uso consagraram — disse Pair, cuja fisionomia, de natural um tanto simplória,exteriorizavaprofundaadmiração.

—Oh!Sim!Eisummonumentoquetemfeitoamargaraosnossossacerdotesearquitetos—comentouHartatef,comrisadaestridenteeseca—,masoFaraóHatasu(osdeuseslhedêemglóriaesaúde)édotadodeumavontadeanteaqualémistercurvar-seousumir,eaconstruçãoavançadetalmaneira,sobadireçãodeSemnut,queestaráembreveterminada.

—Diz-sequeTutmésIIestámuitomal,esuamortenãopodetardarmuito—replicouPair—,eestoucuriosodesaberoquearainhafaráentão:deixaránoexíliodeBoutooufaráregressaromoçocujodireitoaotronoéindiscutível?Sim,porqueeleéofilhodofalecidorei.

—São questões, meu bom Pair, das quais não nos convém tratar; aos deuses e aos nossossoberanos, seus representantes, cabe decidir — interpôs Satati, com adocicada voz. Diz-me,Hartatef, é possível irmos, mais tarde, depois da rainha, ver os navios por ela inspecionados?Afirmamquesãodedimensõeseacabamentojamaisvistospornós.

— Sem dúvida; podeis. Vossa hierarquia vos dá esse direito, e a benevolência que HatasudispensasempreaNeithimpõeaestaodeverdeaguardarapassagemdarainhaesaudá-la.

Umligeirochoqueointerrompeuefezvoltaracabeça:umagrandebarca,repletademoços,esbarraranasua,encostando-adepontaaponta.Apertosdemãoesaudaçõesforampermutadosdeumaeoutraparte.

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—SalveabelaNeith—exclamouumjovemfardado.

E,pegandoumbraçadodelindasflores,deumacorbelhapróxima,asarremessouaospésdasaudada.

—Agradecida,Keniamun,erecebeemtrocadetuaodorantehomenagem—respondeuNeith,sorrindobenevolente.

E,destacandoumarosadeentreasquelheornavamacintura,atirou-aaomilitar.

OssupercíliosdeHartateffranziramaessegesto,esombriofulgorcomoqueseirradioudosseusolhos.

—Avançaimaisdepressa,ouperderemosanossacolocação—gritouele,imperiosamente.

Impulsionado pelos músculos vigorosos dos remadores, o barco saltou nas águas com talimpetuosidadequefoiabalroarumoutro,maisfracamenteequipado,oqual,pretendendomudardedireção, fazia volta lentamente, apresentando flanco. Gritos femininos soaram, mas o alarme foirápido,elogoseviuquenobarcoatingidohaviaduasmulheresexcessivamenteenfeitadas,sendoumajovem,deformasopulentas,cujosolhosnegrosecabelodeumruivocordefogolhefixavamumabelezamuipicante;aoutra,idosa,magraefanada,porémimpandodepretensõeserivalizandonosatavioscomamoçacompanheira.

—Salve, e escusas, à nobreTuaá e à sua filha,Nefert—disseHartatef, saudando as duasmulheres, aliás muito conhecidas em Tebas, por isso que sua casa era centro de reunião damocidadealegredoEgito.

Pertencendo a uma nobre e dinheirosa estirpe, suas festas eram afamadas; mas, a condutaleviana de ambas, que haviam desde algum tempo desprezado preconceitos, isolaram-nas dassenhorasqueaparentamvirtude,ciosasdaaltasociedade.

— Só podemos considerar feliz o pequeno acidente que nos proporcionou o prazer desteencontroeahonradesaudarailustreSatatieabelaNeith.

Satati retribuiu a saudação da velha senhora e permutou com ela algumas expressõesbenevolentes.AesposadePaireramuitotoleranteemrelaçãoadefeitosalheios.Semsearriscar,embora,àfrequênciaostensivadepessoasquepoderiamcomprometê-laanteasamigasnobres,elavisitava,matinalmente,semostentação,detemposa tempos,acasadeTuaá,para inteirar-sedosmexericos escandalosos da corte e da cidade, dos quais mãe e filha eram sabedoras sem rival.Enquantoasduasfalavam,NeferttrocaracomMenaalguns“olharesassassinos”,eomoçooficial,evidentementesensívelaosencantosdessabeldadetifonista(5),reparousúbitoqueestavasentadoemmuitopoucoespaço,epediulicençaparapassaraobarcodeTuaá,oquelhefoigraciosamenteconcedido.Commaliciososorrir,HartatefordenouamanobradeencostarenquantoNeith,depoisdedardejarfuriosoolharaoirmão,voltou-sedecostasecomeçouaconversarcomAssaeBeba,osfilhosdeSatati.

(5)TYPHON-monstruosodeusegípcio,que,sendoconsideradooprincipiodomaledaesterilidade,bemmerecia teradevoçãodasmulheresdeviverdisfarcadamentedissoluto,dotipodeNefert.

Terminadasascerimôniasreligiosas,Hatasudespediupartedoséquitoefoiteraoportoondese achavam ancorados os navios que desejava visitar, e onde Hartatef já aguardava a soberana.EntreaspessoasquesehaviamagregadoàcomitivarealestavamSatatieNeith.AesposadePairfruíabenevolênciatodaparticulardarainha,favorquedatavadelongotempo.Desdequandoaindavivo Tutmés I, Satati havia seguido Hatasu, que acompanhava o pai em expedição às regiões doNaharein (paíspróximodoEufrates) edurante essa viagemaprincesa, ainda solteira, por ela seinteressaraeacobriradefavoreseconstanteamparo.

Quando terminou a inspeção, a contentoda rainha, esta, dispondo-se a reembarcar, avistouNeith e Satati postadas à sua passagem, de modo a serem percebidas. Hatasu se detevesubitamente,fixandonajovemseubrilhanteolhar,comindefinívelexpressão.

—Aproxima-te,Neith—convidouela,emtombondosoeestendendo-lheamão.

A jovem ajoelhou, ruborizada de júbilo, e beijou respeitosa a delicada mão morena dasoberana.MuitosolharesinvejososconvergiramsobreNeith,anteoexcepcionalfavor,massomenteHartatef foi quem notou que o olhar da rainha se desviou da jovem pesaroso, e que, mesmodistanciando-se, esse olhar, pensativo e como que velado, obstinadamente buscava distinguir, veraindaajovemporentreamultidão.

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Enquantogritoseaclamaçõesacompanhavamoséquito realde retomoaopalácio,e todaaTebasseentregavaaoprazereàalegria,umpequenobateiquecruzavanoriodesdeoamanhecerseguia, à força de remos, para a extremidade oposta da cidade, onde se situava o bairro dosestrangeiros. A pequena embarcação era impulsionada por dois vigorosos negros, enquanto umaterceira personagem, envolta em escuro manto, estava sentada à proa, absorta em pensamentos.Chegados ao término, o desconhecido saltou para a terra e deu dois anéis de prata(6) aosremadores, recomendando que ali o viessem aguardar tão logo anoitecesse. Em seguida,embuçando-se no manto, ingressou corajosamente no dédalo de ruelas estreitas e tortuosashabitadas por pelotiqueiros, músicos, dançarinas, alcoiceiras e outra população heterogênea,encurraladanesserecantoevitadopelaspessoashonestas.Entretanto,esselocal,habitualmentetãoruidosoeanimado,estavanessemomentosilenciosoedeserto,poisosseusmoradoresespalhavam-senas ruasepraçasdeTebas,para tomara suaparteproveitosada festa.Apenas,aquieacolá,eramvistospretosvelhosoualgumadecrépitasentadosàportadacasa,emsentinelaàmoradiadosausentes.

(6)DOISANÉISDEPRATA-dadoodesconhecimentodasignificaçãodealgunsvocábulosusadosnastransações,édifícilexplicar o mecanismo dos pagamentos na desaparecida Tebas. Não havia sistema, propriamente dito, monetário. Aaquisição de utilidades e o pagamento de serviços eram feitos com determinada quantidades de metal, mas tambémmediantepermutadeobjetos,comestíveisecoisasúteis.Aoqueparece,sóasclasseselevadasdispunhamdeouro,prataeobjetos preciosos, para remunerai p adquirir. Para o povo, a unidade-base, fixadora do preço, era uma peca de cobre,chamadaDeben,pesando91gramas.Umarés valia120debens,um Jumento40;mas, opagamentodesses120debensfazia-se,porexemplo,assim:25representadosporumbastãocomincrustações;10poroutrabengalamaissimples;10por11quartas(bilhasoucântaros)deazeite,etc., inclusivepapiroseoutrospertencesparaescrever,calculadosemdebens.Umapele,nãotrabalhada,2debens;curtida,paraservirdeescudonopeito,5debens.Nasvendasempúblico (espéciefeiras),haviaoarbítriodaspermutas:umbolodoce–pagocomumcolareumpardesandálias;umvendedordelegumesaceitavapormoedadoiscolares;porumaporçãodecebolas,quelheserviriaderefeição,umclienteofereciaumabanoepequenocesto.Aoquesepresume,osanéiseramumaformadefundirosmetaisempequenasporções,constituindoumequivalente do que chamaríamos “moeda divisionária”, para módicos pagamentos, e de formato cômodo de conduzir,enfiadosemhastesecordéis.(CivilisationÊgyptienne,op.cit.,pág.662.)

O estrangeiro parecia perfeitamente familiarizado com a topografia local, porque, semperguntaraninguémquantoaoseurumo,atravessouaquelaconfusãodeconstruçõesarruinadas,edepoisimergiuemextensaruaconstituídadejardinsmurados,àdireitaeesquerda,diantedeumdos quais, melhor cuidado que os demais, parou e fez soar repetidas vezes a campainha dechamada,postaempequenaportaembutidanomuro.Quasesemdemora,a testagrisalhadeumpretovelhoapareceunopostigo.

—Abredepressa,Ri;soueu—disseovisitante.

Teveohomemumaexclamaçãodealegriaedesurpresa.

—Tuaqui,senhor,queventura!—falou,abrindoaporta.

—Bomdia,velho;comoestáasenhora?Estáemcasa?

—Simsenhor,deveencontrar-senoterraço.

—Muitobem,Ri.Retornaaoteuposto;ireisóatélá—concluiuorecém-vindo.

Emseguida,apassosprecipitados,caminhouparaumacasaespaçosaeelegante,cercadadeárvoresseculares,atravessouumvestíbulo,algunsaposentos,subiuporumaescadaemespiraledeteve-senoingressodeamploterraçoornadodearbustosraros.Numleitoderepouso(7),costasvoltadasparaaentrada,estavaumasenhora,que,emboravisivelmenteidosa,conservavavestígiosdaadmirávelbelezaquepossuíranajuventude.Encanecidacabeleira,masaindaespessaeanelada,emoldura-lhe o rosto bronzeado, de traços regulares e fortes; em seus olhos negros brilhavaminteligênciaeenergiajuvenil.

(7)LEITODEREPOUSO-Pequenacama,estreita,muitobaixa,nãoservindoparadormir.

—Avó,eis-meaqui—disseorecém-chegado,atirandoaochãoomantoeobonéraiado.

Viu-seentãoqueeraumadolescente,dealtura inferioràmediana,membrosextremamentefinoseágeis,denotando,apesardisso,forçamuscularacimadocomum.Todaasuapersonalidadeporejavavigoreenergia;doisolhosgrandes,negros,cintilantesdeorgulhoeaudácia,animavamumrostoregular,aoqualosorrisodomomentoemprestavaestranhoeinesperadoencanto.Aochamadodessavozmetálica,avelhasenhoraergueu-secomoqueeletrizadaeestendeuosbraçosaojovem.

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—Enfim te revejo, meu bem-amado Tutmés — redizia ela, prodigalizando-lhe carícias. Nãomaisesperavatalfelicidadenestavida.E,sabendoqueteesperavam,tremipelatuavinda.

—Sim,oGrandeSacerdotechamou-me,etivedecorreroperigodedeixaromeuexílio.Alémdisso,desejava rever-te, avó, e tambémreverTebas.Nãopodesavaliar o terrível sentimentoqueoprimeocoraçãodeumbanido—acrescentou,erguendo-se,facesincendidasepassandoasmãosnacabeleirafartaeanelada.

— Vai, Tanafi, e prepara uma refeição para o nosso jovem senhor; ele está exaurido pelaviagem — ordenou a matrona a uma antiga escrava que, empunhando um abano, se achavaacocoradajuntodomóvel.

Logoqueaservaseausentou,aanciãabraçouoneto,beijando-onafronte.

—Crêsquesofressozinho?—perguntou.

—Não;seiquemeamas;mas,podescompreendero tormentodequem,sentindo-se jovem,ativo,destinado—pordireito—amandar,tenhadeviveresquecido,emumdesertoinsalubre?

ETutmésassestouviolentomurrosobreamesa,virandoumacaixetacheiadegarrafinhasdevidro,querolaramparaosolo.

—Calma-te,meu filho— recomendou,baixandoa voz.Ouve: oSumoSacerdote tirouo teuhoróscopo,easestrelasrevelaramclaramentequeserásumgrandeFaraó,cujaglóriaeclipsaráadeHatasuetornaráteunomeimortal.Porminhavez,fiztambémexperiências(sabesquesouhábilnessesmistérios)etodostepressagiamgrandefuturo.Porisso,hávinteequatromeses,nanoitesagrada em que o Nilo transbordou, e quando todas as forças da Natureza fundiram-se parafertilizaraterra,planteiduasárvores,damesmaaltura,designandoumacomoteunomeeaoutracomodeHatasu.Cadadia,euasregueierego,proferindoaspalavrasconsagradas.Aprincípio,cresceram iguais,poréma tuadepois seavantajou,namedidadaminhamãoaberta, enquantoaoutraenfraqueceeseestiola,oqueé indíciocertoda tuavitória.Tempaciência,pois; teu irmãoestáirremediavelmenteenfermo,e,semorrer,Hatasudeveráchamar-teapartilhardotrono,devezquetodoocleroestácontigo.Mas,eisaquiTanafiqueanunciaarefeição.Vemrefazertuasforças,meufilho,dasquaisbemnecessitas.

Ergueu-se,eTutmésacompanhou-asilenciosoaumasalatérrea,ondetomouassentojuntodeopíparamesa.Apóshavercomidoebebidocomótimoapetite,ojovemapoiouoscotovelosàmesa,edeuasasamudasquimeras.

—OndeequandovereioGrandeSacerdotedeAmon?—indagousubitamente.

—Tu verás aqui, esta noite, Ranseneb, ajudante e confidente do Sumo Sacerdote, que nãopodevir,pessoalmente,temerosodedespertaratenção.Hatasudesconfiadele,efazvigiartodasassuasatividades.Tutambém...nãoéconvenientequeteexponhasaserIdentificado,ouaencontrosperigosos,vistohavereurecebidoavisodoSumoSacerdote,recomendandoaguardaresaquioseuenviado,enãoteexibiresnasruas.

IrônicosorrisofranziuoslábiosdeTutmés.

—CreioqueobomservidordeAmontemeencontrosperigosos,maisporeledoquepormim,porexemplo,comaminhailustreirmã,dearterrivelmentedecidido,tantoquantopudeavaliarhoje,quandotomeiparte,nodesfile—acrescentou,comvolubilidade.

— Como ousaste cometer semelhante imprudência? — exclamou a avó, assustada. Queloucura,Tutmés!SeHartateftereconhecesse!...

—Não temas coisa alguma, avó; eu estava num barco de pescador, e vestido com a maiorsimplicidade. Ninguém reparou em mim. Agora, se me permites, vou dormir um pouco, poisnecessitoteracabeçadescansadaparaconversarcomRanseneb.

A velha senhora imediatamente o guiou a aposento contíguo, onde Tutmés se instalou numleitoeadormeceulogo,naqueledespreocupadosonodamocidade.

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II

OBANIDOESUAIRMÃAlgumashorasmaistarde,noiteplena,osomdacampainhaanunciounovovisitante,e,poucos

minutosdepois,Tanafiguiavaaoaposentodesuasenhoraumhomemdeelevadaestatura,envoltoemmanto,comcapuz,decorescura.

—Boanoite,Ísis;queosdeusesteabençoem—disseàmatrona,queosaudavarespeitosa.Vejo,comprazer,estaresdeboasaúde,equeavelhicenãotemaçãosobreti.Mas,ondeseachaonossojovemabutre?Chegou?

—Sim.Dormeumpouco, repousandodas fadigasda viagem,porém, virá aqui.Enquanto oaguardas,senta-te,Ranseneb,eaceitaestecopodevinho.

O sacerdote, desembaraçando-se do manto, sentou-se. Era homem idoso, rosto magro eengelhado; o crânio, raspado, reluzia com o tom do marfim amarelado; a testa curta, lábiosdelgados, denotavam vontade tenaz; os olhos, claros e impassíveis, espelhavam a calmasuperioridadedoshomensafeitosa lernasalmaseadominá-las.Não tivera tempodeesvaziarocopo, e já era aberta a porta para dar passagem a Tutmés, que se aproximou, saudando-o. Osacerdote,erguendo-se,estendeu-lheasduasmãos.

—Deixaqueteadmireeabençoe, filhodeumgranderei,esperançaesalvaçãodoEgito—disseele,comrespeitosabenevolência.

Ojovempríncipesuportou,semseperturbar,oolharescrutadorqueoenvolveuinteiramente,eporsuavezmergulhouoolharardentenosolhosdointerlocutor.

—Sim—disseRanseneb,apósinstantesdesilêncio—,tuéspequenodeestatura,mas,leionos teus olhos a virilidade da tua alma, e que Tutmés pode muito bem vir a ser Tutmés III, o“grande”Faraó.Eagora,príncipe,prestaouvidoatentoaomuitoquetenhoparatedizer,eaqueosmomentossãopreciosos.

Sentaram-se os três, e o sacerdote expôs rapidamente o estado do País, as queixas dospoderosos e principalmente as do clero contra a rainha que, aparentando honrá-los, anulava emverdadeainfluênciadeles,enãoadmitiaoutroquereralémdoseudesoberana.

— Assim — prosseguiu — ela se obstina, apesar da opinião dos mais sábios e veneráveispadres, em construir, para ela e Tutmés II, um túmulo cujo traçado contraria todas as regrassagradasinstituídaspelosdeuses.

Ransenebcontraiuasmãos,eumrelâmpagoderancorcintilouemseusolhos.

—Paramodelo,elaescolheuconstruçõesdeumpovo impuroevencido,e,nãoencontrandoemnósajudanteszelososdoseuplanoímpio,tiroudolodoumhomemnulo,Semnut,eoelevouàsculminâncias das honrarias e da sua confiança, e agora esse dócil Instrumento da sua ação dáordensaosgrandesdoreino,fundesomasloucasnessagigantescaconstrução,e,malgradotodososobstáculos,aceleraoacabamento.

—Mas—indagouTutmés,queescutaraatentamente—,querazãopodeinspiraraHatasutalpredileção pela arquitetura e costumes desse povo vencido, do qual ela própria pôde apreciar afraqueza e a indignidade? Ela acompanhou nosso pai nessa campanha guerreira e assistiu aodesbaratodos reisdopaísdeNaharein.Comopodeela, tãoorgulhosaeenérgica,prezaralgumacoisaquevenhadosvencidos?

O padre pigarreou e, olhos semi-fechados, pareceu absorvido, por alguns momentos, emprofundascogitações.

— Hum! — respondeu, enfim — essa predileção é sem dúvida estranho mistério, dado ocaráterdarainha,emaisestranhoaindaéqueoseufavorpeloshitenos(8)dataprecisamentedetalcampanhaguerreira.Desdeentão,elaprocuraamenizarasortedosprisioneirosecolocaalgunsnacasa real, e, a partir da sua ascensão ao poder absoluto, começou a construção do seu “menou”(túmulo),ondedesejasersepultadacomTutmésII,sarcófagoquetemaoposiçãodoclerodetodooEgitoeainquietudedopovo,quevê,comdesconfiança,nessesepulcroummonumentoestrangeiro.Todososolharessevoltamparaatuapessoa,príncipe,tuésaesperançadopaís,porissoqueorei

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estágravementeenfermo.Emboraarainha,quejamaisviveuemboaharmoniacomoseuesposoeirmão,pareçadeploraro fimprováveldessehomemfracoe inativo,queeladomina inteiramente,apenaselaoassistecuidadosamente,eafastoutodososmédicosdotemplodeAmon,paradaraodoente remédios preparados pelo hiteno Tiglat. Isto constitui uma nova e grave ofensa à nossacasta,equenospõeemmãospossantesarmas,poispodemosespalharentreopovoqueelarepeleaassistênciadossábios,paraqueoreimorramaisdepressaepossaficarsozinhanotrono.

(8)HITENOS-TutmésouTutmósisI,genitordeHatasu,excursionouguerreiramenteaolongodoEufratesesubmeteuaodomíniomuitosdospovosdaÁsiaMenor,aliestabelecidos,cuja identidade -minuciosaeexata -oshistoriadores jamaisconseguiramfirmar.Pareceforadedúvida,porém,queentreessagenteestavamoshitites(KhatiKheta),mescladeváriosramossemíticos,maisoumenosnômades(deSom,filhodeNoé-“Gênese",cap.X,21-31).DaivieramprisioneirosSurgon,Tadar, Abracro e outras personagens do romance. No seu depoimento, ante os juizes, Horemseb aponta a cidade deGargamlsh,comotendosidoteatrodabatalhafinalcontraoshitenos.Estagrandecidadeerapraticamenteumacapital.

Tutmésestrondouemriso,aumentadopelossemblantespasmadosdosacerdoteedaavó.Porfim,dominando-se,falou:

— A despeito deminhas queixas, devo convir em que Hatasu temmais espírito do que osoutros,poisestábempróximadaverdade,quandosupõequeospadresdesejariamdesembaraçar-sedeumhomemquenãolhesservedearrimo,enquantoasseguraaelaumreinadopacífico;queosremédiosdossacerdotesdeAmonbempoderiamajudaravacânciadolugarquemereservaisjuntodela.Jurariaquedessespressupostosseoriginaoinsuperávelrancorcomquemepersegue.Talvezseuinstintolheinspireaidéiadeque,umavezelevadoaotrono,aelacaibaavezdeceder,eeunãoadmitaoutraalémdaminhaprópriavontade.

—Excetoadosdeusesedaquelesservidoresquetehajamcolocadonessetrono—observouosacerdote,comolharaceradoesignificativo.

—Semdúvida,nãosetratadesses—corrigiuTutmés,baixandoosolhos.AAmoneaosseusservidoresmostrareisempreobediência.

—Permanecefielaessesprincípios,meufilho,etureinarásgloriosamentesobreoreinodeteusprogenitores.Agora—concluiuRanseneb—,étempodetornaraomomentodahorapresente.

Baixandoavoz,expôsoplanodeaçãoquesepropunhaseguir,combinoucomopríncipeosmelhoresmeiosdemantercomelecomunicaçõesconsecutivasqueo trouxessemaocorrentedosacontecimentos de Tebas, ficando por fim decidido que Tutmés regressaria a Bouto, alipermanecendotranquilo,atéqueoSumoSacerdoteoadvertissedehaverchegadoomomentodeagir.Terminadaagraveconferência,osdoishomensergueram-se.

—É tempode partir, avó. Antes do amanhecer devo estar longe deTebas—disse Tutmés,ajeitandoacapae repondonacabeçaogrosseiroboné listrado,que lhedavaaaparênciadeumoperário.

—Vai,meufilhoquerido,equeosdeusesteprotejamotrajeto—disseÍsisabraçando-o.Vaiesêcauteloso;aagitaçãoétãograndehoje!

—Ficasossegada,avó;tenhoumbarcoàminhaesperaquemeconduziráànecrópole;meuscavaloseofielescravoquemeacompanhaestãoescondidosnacasadovelhoSagarta,cujopequenoposto de observação se encontra não distante das novas construções de Hatasu. O lugar, assazdeserto,eaescuridãodanoitebastamparaquenãotemasqualquerencontroperigoso.

À porta da casa, Tutmés despediu-se do sacerdote e, a passos apressados, rumou para asbordasdoNilo.Oquarteirãodosestrangeiroshaviaretomadojáumtantodoseuhabitualaspecto,e, transitando perto de um dos alcoices situados não distantes do rio, escutou cantorias,acompanhadasmusicalmenteporumalaúdeeosapateardedançadores.Detendo-se,sobrecenhosfranzidos,aumentouaatençãoaosruidososecosdaalegriabarulhenta.

—Queaborrecimento—murmuroucomdespeito—,nãopoderdivertir-meumpouco,e terobrigaçãodefugir,comosefosseumcriminoso!

E,natempestadedeseuspensamentos,nãosefixaraemque,desdeasaídadacasadeIsis,dois vultos o seguiam silenciosamente, deslizando à sombra dos prédios. Mais próximo do rio,procurouemvãooseubarco;apesardaanimaçãoquepredominavaaindasobreotodo,essapartedas sagradas águas, sulcadas de barcos dotados de luminárias, estava totalmente deserta. Umsomenteera visto, amarradoaumsicômoro,no fundodoqual estavaestendidoumhomem, cominconfundíveisindíciosdeembriaguez,aroncarfortemente.

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—Olá, marujo — gritou Tutmés, aplicando-lhe vigoroso pontapé —, queres conduzir-me àmargemoposta?Desembebeda-te,eutedareicincoanéisdeprata.

Erguendo-seeesfregandoosolhos,ohomemrespondeu:

—Oh! De bom grado eu ganharia tal soma; não ouso, porém, deixar o local, porquemeuspatrõespodemchegardeummomentoparaoutro.

Exatamentenessaocasião,doisvultos,encobertospelascapas,aproximaram-serápidos.Umdeles,pequenoefranzino,parecendoadolescente,subiusilenciosamenteparaobarcoesentou-seno banco do fundo; o segundo fixou um olhar escrutador em Tutmés e, em seguida, falou,polidamente:

—Vejo,estrangeiro,quenãopudesteencontrarembarcação; talvez tepossaserútil.Vamosatravessarorio;mas,seogironãoémuitogrande,euteconduzireidebomgradoaoteudestino.

— Eu te agradeço, nobre desconhecido, a generosa oferta — respondeu Tutmés muitosatisfeito—eaceito,ecomtantomaioralegriaporqueonossotrajetoéidêntico:tambémvouparaaoutramargem,àcidadedosmortos.

Tapandoorostocomacapa,opríncipetomoulugaraoladododesconhecido,queparecianãomuitocomunicativo,pois,duranteatravessia,nãopronuncioupalavra.Bemdepressaapareceram,iluminados pelos clarões da Lua que surgira, os gigantescos templos e outras construções danecrópoledeTebas.

—Ondequeresquetedeixe?—perguntouoquedirigiaobarco.NósvamosatéondecomeçaaaléiadasesculturasqueconduzaonovotúmuloemconstruçãopelanossailustreFaraóHatasu.

—Nessecasodescereiconvosco—respondeTutmés.

Tãologoobarcosedeteveeostrêsocupantesdesceramparaaterra,opríncipeiafalar,paraagradecer a condução, quando o menor dos dois incógnitos lhe pousou a mão sobre o braço,acrescentando:

—Desejava falar-te alguns instantes, sem testemunhas, estrangeiro. Tranquiliza-te, porém,porquenãotedetereimuitotempodistanciadodosbonscorcéisqueteaguardam,semdúvidaparateconduziremaoutroslugares—terminouele,emvozvibranteemetálica.

Tutmés estremeceu e, involuntariamente, suamão apertou o cabo damachadinha presa aocinto.

— Não compreendo que um desconhecido haja algo de grave a confiar-me — objetou opríncipe.Mas,acabasdemeprestarumfavor,eeunãoqueroacreditarsejasmeuinimigo,antesdeteouvir.Agrada-tesubiraoladodomonumentofuneráriodenossasoberana?Ali,estaremosasós.

Ojovemincógnitoinclinouacabeçaemsinaldeassentimentoecaminhou,àfrente,norumodaconstrução,queaLuailuminava,dandofantásticosaspectosàoriginalarquiteturadedimensõesjá gigantescas.Chegado à aléia, atravancada de blocos e de esculturas emparte já postas sobreseuspedestais,odesconhecidoparou.

—Não sei seminhapresença será agradável, Tutmés, tendo em vista quenão pertenço aonúmerodos teusamigosdo templodeAmon—disseele, com ligeira ironia,atirandopara trásocapuzquelheencobriaasfeições.

Opríncipeemitiuumgritosufocado.

—Hatasu!Tuaqui!Tumeespionasentão?

—Eutevigio,comoédomeudireito—respondeuorgulhosamentearainha.Deresto,nãoésmuitoprudente,poiseu te reconhecihoje,duranteodesfile.Podia termandadoprender-te,mas,preferi interrogar-te diretamente:Que vens fazer aqui?Como ousaste deixarBouto?Quem tal tepermitiu?

—Eumesmo—respondeuTutmés,recuandoumpassoecruzandoosbraços.Comquedireitotumeexilas?Eusoufilhodeteupai,talqualtuéstambém,esouumhomem!

—Filhoilegítimo,nascidodeobscuraconcubina—murmurouHatasu,cujoolhardeslizoucomglacialdesdémsobreorostosubitamentepálidodoirmão.

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UmestremecimentoderaivasacudiuocorpodeTutmés.

—Quantoaomotivodaminhavindaaqui—dissecomvozsofreada,reveladoradesentimentorecalcado—,nãomeconvémfalardoassuntonestemomento;mas,umdiaatuacuriosidadeseráplenamentesatisfeita,euteprometo,econhecerásentãoosintuitosdaminhavinda.

— Não tenho necessidade de esperar, pois direi imediatamente esses fins — respondeu arainha. Foste chamado pelo Sumo Sacerdote de Amon, para conversar sobre os meios de teassegurar a vacânciado trono, ameu lado, após amortedeTutmés II; eu, porém, te juro (e elaergueu a mão crispada): é tão certo que esse monumento nos sobre existirá e dirá aos séculosfuturos da minha glória e do meu poder, quanto é certo que terás de passar por cima do meucadáverantesdesubirosdegrausdotrono.

—Poiseupassareiporcimado teucadáver,porqueestou fartodeexílio,e,enquantoviver,nãorenunciareiaosmeusdireitos—afirmouenergicamenteojovem.

Osolharesdosdoisirmãossecruzaramqualduaschamasdevoradoras,comoquemedindoasmútuasforças.

—Adivinhei,pois,comacerto:foiparateabrircaminhoaotronoqueospadresatiraramsobreoreiummortalmalefício—disseHatasu,falandocomlentidão.

— Acusa abertamente os padres, e mata-me em seguida— respondeu Tutmés, em tom dedesafio.Mas,nãoousarásnemumanemoutracoisa,porqueopovo,queamaosservidoresdosseusdeuses, exigirá as provas da acusação; e contemporizarás para não atrair sobre tua cabeça aresponsabilidadedasuspeitadehaveresassassinadoteusdoisirmãosparareinarsozinha.Calma-te,porém,porque,poragora,euteobedeçoevoltoparaomeuexílio.

Hatasurecolocouocapuzedisse,emtomsombrio:

—Nãomeprovoques à provadoquepossa ousar, porque omando supremoainda repousaunicamenteemminhamão,eopovodoEgitopoderiabempreferirafilhalegítimadarainhaAamésaobastardogeradodocaprichodeumFaraó.Apenasemumpontotensrazão:eurepiloaidéiadetematar,nãoportemer,esimporquesoumuitopoderosaparanecessitarrecorreraumassassínio.

E, sem aguardar qualquer resposta, voltou costas e rumou para a saída da aléia. Tutméspermaneceuimóveldurantealgunsmomentos,mergulhadoemseuspensamentos.

—Apesardetudo,mulherorgulhosa,deveráspartilharotronocomigo—murmurouporfim.E,então,euerguereimonumentosquesuperpassarãoosteus,emgrandezaemagnificência.

A rainha regressara ao barco. Dois oficiais, que haviam vigilado ocultos à sombra dasconstruções,seguiram-na,e,pegandoosremosquejaziamnosbancos,moveramaembarcaçãoparaamargemopostadorio.Trintaminutosdepois,atracaramjuntodepequenaescada,meloocultaporespessas folhagensdos jardins imensos,osquais,dessa face,envolviama residência real.Hatasusaltoulepidamentesobreosdegrauseembrenhou-seemsombriaaléia.Umdosoficiaiseoprimeiroremadorseguiram-na,enquantoooutroseretiravacomaembarcação.Chegandojuntodaportaquedavaacessoaumaaladopalácio,arainha,voltando-se,disse:

—Nãonecessitomaisdeti,Semnut;podesretirar-tecomHui.

Semprestaratençãoàssaudaçõesdosdoishomens,retiroudocintoumachave,comaqualabriu pequena porta, e, a passos rápidos e leves, percorreu corredores e escadas, Inteiramentedesertos;abriuumasegundaporta,e,erguendopesadoreposteiroqueadissimulava,penetrouemampla câmara debilmente iluminada por uma lâmpada. Ao fundo do recinto, sobre um estrado,coberto de peles de leões, estava elevado um leito circundado de ricos panos e junto do qualdormitavavelhaescrava,comatestaapoiadanoprimeirodegrau.Hatasu,depoisdeatiraromantosobre uma cadeira, aproximando-se da adormecida, tocou com o pé a serva, a qual, erguendo-sesobressaltada,prosternou-seaoreconhecerarainha.

—Depressa,Ama,ergue-teevaibuscarminhasroupas femininas.Nãochamesninguém; tusozinhamevestirás.

Enquantoaescravaaajudavasilenciosamenteaajeitaraamplaealvatúnica,acolchetavaocintoelhecolocavanacabeçadeaneladoscabeloslargafaixa,subitamenteHatasuindagou:

—Minhaausênciafoinotada?Oreiperguntoupormim?

—Não,realsenhora,nadaaconteceudurantetuaausência—respondeuavelha.Orei(queos

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deuses o bendigam!) dormiu, creio eu, e o velho Tiglat, de acordo com as tuas ordens, não lheabandonouacabeceira.Mas,nãoqueresturepousarumpouco,oupermitirquetesirvaumcopodevinho?Estáspálida,eparecestãofatigada!...

—Não,minhafielAma,nãoestoufatigada,equeroIrverorei—respondeu,envolvendo-seemamplovéutransparentequeaescravalhedeu.

Atravessandomuitassalas,repletasdemulheres,arainharumouporextensagaleria,naqualvelavamsentinelas,aosaposentosdoirmão.Doisoficiais,imóveis,semelhandoestátuas,erguerampesadoreposteirodeespessotecidofenício,eelaentrounacâmaradorei,mobiliadacomomaiorfausto.Sobreumleitodeouromaciçoestavaestendidoumjovem,pálidoeemagrecido,mergulhadoemprofundosono.Àcabeceira, sentado,umvelhodebarbasbrancas,que lestamenteseergueu,braçoscruzadosnopeito,ecurvouemreverência.Hatasu, inclinando-sesobreTutmés,examinouatentamenteseus traçosexauridos.Apósalguns instantesde tal contemplação, reergueuobusto,suspirando.

—Então,Tiglat,quedizesdoestadodorei?—inquiriuela,fazendosinalaovelhoparasegui-laaooutroextremodoaposento.

—Porenquanto,oFaraóestámelhor,ehaureforçasnosono;mas,nãopossoocultar,ilustrerainha,quenãodevescrernumrestabelecimentocompletodorei.Nemmesmoeuseiporquantotempoosdeusespermitirãoquelheconserveavida.

Hatasu silenciou.Despedido comumgesto, o velho retomou lugar à cabeceira do enfermo,enquantoelasedeixavacairnumacadeira,entregueapenososerecônditospensamentos.Ohomemdébileinativoque,nominalmente,comelapartilhavadotronoiamorrer.Maisdeumavezhouveradesinteligências entre ambos, mas, ainda assim, ela o lamentava, porque, desaparecendo o rei,ficariaabertoumvastocampoàsintrigasdosinimigos.Sabiaque,paramantervagoolugardeixadopelomorto,eramistersustentarencarniçadalutacontraadversários,queeladesprezavaporseremmaleáveisdecarátereastutos,equesetornavammaistemíveis,porque,despindo-sedequalquerescrúpulo,eles,ospadres,arregimentariamsobsuasleisaturbarudequelhesveneravaafunçãodeintermediáriosentreopovoeadivindade.Eoadversárioquelheopunham,essejovemTutmés,queeladesdenhosamenteexilara(agorahavia,empessoa,verificado)eradetêmperabemdiversadaquelequejaziasobreoleito,tornando-seassimalutadeigualparaigual.

Agitadapornervosa Impaciência, ergueu-se, sentindoqueo ambientedaquele aposento lheparecia pesado e sufocante.Na sala contígua, uma escada em espiral conduzia a pequena torre,acimadoníveldopalácio.Subiu-acelerementeechegouaumterraço,noparapeitodoqualapoiouos braços. O ar puro e refrescante da noite refrigerou-lhe a abrasada fronte e desafogou o seiooprimido.Da altura onde se achava, admirável paisagem se descortinava: a seus pés estendia-seTebas adormecida, com os seus palácios, templos e jardins; o Nilo, transbordado, rodeava qualtoalha cintilante a imensa capital, e, lá, distante, na margem oposta do rio, alçava-se colossalmonumento,apoiadonasrochasdouradasqueocircundavam:eraotúmuloquehaviaconstruído,apesardetodososobstáculos,adespeitodaoposiçãoestreitaerotineiradeumaorgulhosacasta,Inimigadequalquer inovação.O sentimentodo orgulho satisfeito e a consciência do seupoderioinflamaram o coração daquela mulher ambiciosa e ávida de mando; a nuvem que lhe haviaobscurecidoafrontedissipou-se,eindomávelenergialuziunosseusolhosnegros.

— País bendito dos deuses — murmurou ela —, enquanto eu viva for, jamais outra mãoempunhará teu cetro; teu trono vale uma batalha,mesmo pondo a vida em jogo. Que os deusesdecidamaquemdarãoavitória.ATutmésouamim?

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III

AMÚMIADADAEMPENHOREm uma das mais belas ruas de Tebas havia elegante casa, pintada a cores vistosas. Dois

grandesmastros,anteaportadoprédio,comprovavamahierarquiaeariquezadoseuproprietário,queeraonobrePair,doqualfizemosconhecimentoporocasiãodafestadoNilo.Naparteposteriordacasa,via-seumjardimdemédiaextensão,muitocuidadoe fartoemflores.Algunsdiasdepoisdosacontecimentosnarradosnocapítuloprecedente,reencontramosPair,aesposaesuabelapupilaNeithreunidosempequenasalacontíguaaojardim,cujaverduraluxuriantesemostravaporentreas grades que serviam de apoio a um dos lados domuro deixado em aberto. A conversação eratempestuosa,porquePairdeixaraa cadeiraondeestivera sentadoegritava,gesticulandocomosbraços:

—TãocertoéoNilotransbordarcadaano,quantoécertoqueserásesposadeHartatef,quete adora e ao qual eu, teu tutor, e teu irmão, Mena, acolhemos favoravelmente o pedido decasamentocontigo.

—Não! Jamais!EudetestoHartatef—exclamouNeith, olhos flamejantes.ÉKeniamunqueprefiro,eserácomelequemecasarei!

Foradesi,bateusobreamesacomolequedeplumasquetinhanamão.

— A essemendigo, que tem por únicos haveres a espada e o boné, desejas tu esposar!—exclamouPair,erguendoosbraçoseosolhosparaoalto.EporelerepelesHartatef,Imensamentericoecujaaliançaacrescentarátantobrilhoànossacasa?Felizmente,estamosaquiparaimpedirasloucuras de uma criança que não quer compreender coisa alguma; e eu, teu tutor, declaro quedesposarásHartatef.Hojemesmo,duranteofestim,euosapresentareiumaooutronaqualidadedenoivos;inútilé,pois,teirritarespararesistiraresolução“irrevogavelmente”assentada.

E,passandoamãopelorostopurpureado,voltou-separaSatati,queestavajuntodamesadetrabalhosmanuaisfemininosetudoouvirasilenciosamente:

—Tenhodesair—disse—,encarrego-te,porém,deacalmarestacriançaedefazê-laouviravozdarazão.

Satatiergueu-secompresteza,e,comdulçurososorrisoaemoldurar-lheorosto,aproximou-sedajovem,cujotalheflexívelabraçouternamente.

—Neith,minhaquerida, calma-tee crêemnossaafeição,quevisaapenasà tua felicidade.Serás tão pouco razoável, para preferir um homem nulo e obscuro, como é Keniamun, ao ricoHartatef, que possui omais belo palácio de Tebas, ocupa um posto elevado e frui a proteção deHatasu? Com ele brilhante porvir te aguarda, sem esquecer que é um belo homem, e te amaapaixonadamente.

—Deixa-me!—explodiuNeith,repelindo-acomraiva.DetestoHartatef,desdenhoseuamor,enão posso compreender por que deva ser sua esposa. Somos bastante ricos sem o seu ouro; e aproteçãodeHatasupodeelevarKeniamuntãoaltoquantoHartatef.Ireiajoelhar-meantearainha,queétãobondosaparamim,eelasaberálivrar-medeumcasamentoquemedespertahorror!

UmanuvemdeinquietudesombreouporinstantesafacehipócritadeSatati;mas,dominando-se,pegouamigavelmenteamãodajovem,paraacrescentar:

—Minha cara Neith, asseguro-te que tal iniciativa, além de inconveniente, não modificarácoisaalguma,porquenãoháquereconsiderarnestadecisão.Agora,acalma-te,etratadetevestir,poisémaisdoquetempodecuidaresdatua“toilette”,e,senãoteagradaoalindar-teparaoteunoivo,procuraserbelaparaKeniamun,quetambémassistiráaobanquete.

— Decerto! Não quero absolutamente agradar a Hartatef, e se Pair ousar a prometidaapresentaçãonaqualidadedemeunoivo,fareiescândalo,declarando,àfacedetodos,queorecuso.Depois,apelareiparaarainha,esóàsuadecisãoobedecerei.

Erguendo-searrebatadamente,retiroucomviolênciaamãoqueSatatilhepegaraesaiu,comtalímpeto,queesbarrouatodaforçacomumhomemqueentrava.E,semmesmovoltaracabeça,continuouandandoparaosseusaposentos.

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—É a urgência de esposarHartatef que dá um tão delicioso humor aNeith?— perguntouMena,arir.

—Justamente—respondeuSatati,acomodando-senumsofá.

Mena pegou uma cadeira, e, curvando-se para Satati, ciciou, fixando-lhe um olhar audaz eincendido:

—Comoestásformosa,hoje.Dealgumtempoaestaparte,descubroemtiencantossemprenovos.Devodizer-teporque?

Umsorrisoplenodedoçurailuminouosemblantedajovemmulher.

— Vais acrescentar alguma loucura — disse ela, apoiando sua bem cuidada mão sobre oslábiosdeMena.QuediriaPairseteouvisse?

—Ouseelefazer-seciumentoeeuoobrigareiacalarbemdepressa—exclamouooficial.Eubemseiaquemeledáternosnomesepresenteiapreciosasjóias.

IntensoruborcoloriuasfacesdeSatati.

—TudizesIsso,Mena,mas,poderiasdar-meprovasdaacusação?

—Não,não, issoestáabaixode ti; quis apenasdar-teaentenderquepagariasumadívida,concedendo-meteuscarinhos.Dize-meantesoquetetornoutãoinquietaquandocheguei.

—Neithpreocupa-me—disseSatati,contendoacustoasuaciumentacuriosidade—,porque,completamente enraivecida, não quer ouvir falar emHartatef, ameaça fazer escândalo e, caso aimpeçamdedesposarKeniamun,irqueixar-seàrainha.

—Ah!ah!E tal ameaçapodedesassossegar-te?—exclamouMena.Tranquiliza-te.A rainhatemmais o que atender no momento do que prestar atenção a lamúrias de moça. A doença deTutméseasintrigasdospadresafavordoexiladodeBoutodão-lhebastantesnósadesatar.

—Tudoissoéverdade;apesardetaisrazões,estouconvencidadequeHatasuacharávagaresparaescutarNeitheprestaráouvidoàssuasqueixasedesejos.Nãomenosprezesumperigocujaextensãonãopodesmedir.

Oolharquesecundouestaspalavrasteveodomdeconvencersubitamenteooficial.

—Mas—obtemperouele,tornando-sesério—querazãopodeinspiraraHatasutalpredileçãoporminhairmã?Desconfio,dehámuito,queNeithestáligadaaalgumestranhomistério,doqualtutensconhecimento,Satati.Temconfiançaemmimedize-meaverdade.

Inclinou-secarinhosoparaelaepremiuoslábiosnaespáduanuadajovemmulher.

—Não,não,tuteenganas,Mena.Quemistériopoderiaestarligadoàtuairmã?Nemimaginessemelhantescoisas.Eagoradeixa-me,porqueprecisovestir-meparaarecepção.

Menaergueu-seimediatamente,despedindo-se:

—Atélogo,então.Enquantoisso,vouembuscadeNeith,paraacalmá-la,porque,nasuafúria,écapazdeofenderHartatefdemaneirairremediável,enemousopensarnoquepoderiaresultardetalprocedimento.

ApósumacenodeassentimentodeSatati,o jovemseguiuparaosaposentoshabitadospelairmã, e, quandoum instantedepois ergueuo tapizque serviadeporta eprojetouoolharparaointerior,convenceu-sedequeachegadadeummediadoreraoportuníssima.Aocentrodoaposento,Neith, de pé, faces incendidas, olhos faiscantes, repelia obstinadamente asmãos das servas quetentavamvesti-la,ereplicavaraivosaàssúplicasdeumavelhaaiaquerepetia,quasechorosa:

— Senhorazinha querida, sol dos meus olhos, permite que eu te vista; não desejas maisencantartodososolhares?Vêestaguirlanda,comoficarábememteusnegroscabelos!

—Não quero uma guirlanda que tenha de oferecer a essemonstro, e nemme vestirei!—gritouNeith,rejeitandoasfloresearrancandoumcolarquelhehaviamacolchetadoaopescoçoecujas pérolas se espalharamno chão.O lequepartido, a túnica empedaços e floresmachucadasjuncandoosoalho,davamprovadequeacaprichosabeldadenãopoupavaseusatavios.

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Semqualquerdemora,Menacaminhouparaela.

—Bomdia,Neith—exclamoualegremente,pegando-lheambasasmãos,quelevouaoslábios,dandoassimensejoàsserviçaisdeajustaremocintoecolocaremfloresnacabeçadajovem.—Tués encantadora assim — prosseguiu ele, retendo-lhe vigorosamente presas as mãos — e, semcontradita,amaiorbelezadeTebas.Vamos,aquieta-te,econversemosumpouco.

— Deixa-me, Mena, és conivente com os meus inimigos e queres a minha desgraça —respondeuela,tentandodesprenderasmãos.—Desditosaquesou;ninguémassumeaminhadefesacontraessehomemodioso,que,apesardomeudesprezoedaminharepulsa,meperseguecomoseu amor, e soube converter todos a seu favor! Se vens falar-me a seu respeito, vai-te! (Ela oempurrou,então).Nãoqueroouvirmaisnada,nãoqueroenfeitar-me,nãoosaudareinaqualidadedenoivo,edefender-me-ei,euprópria,contraesseentedetestável.

A chegada de Satati interrompeu as explosões de Neith. Trazia precioso cofrezinho quedepositousobreumadasmesas,próximodajovem.

—Olha,caprichosa,issoqueteenviaoteunoivo,entreoscestoscheiosdeestofos,perfumeseoutrostesourosqueficaramnagaleria—disse,abrindootampodocofrezinhoefazendofaiscaraosolhosdajovemumadmiráveladereçodepérolasesafiras.

Semembargodafúria,Neithdesceuoolharsobreasjóiaseexaminou,comasegurançadeconhecedoraqueera,oamplodiadema,osbraceletesecolartríplice,cujovalordeviaserenorme.

—Oh!Ésoberbo!—murmurouela,involuntariamente.

—Essas jóias são dignas de uma rainha, e farão com que te invejem, quando as usares—acrescentouSatati,fazendosinalaumaservaparaquetrouxesseoespelho.

Depois,pegouocolare,apoiando-onopescoçodajovem,disse:

—Olhaquantoésbela!

Os olhos de Neith começaram a brilhar; deixou, sem resistência, que lhe acolchetassem ocolar,enfiouelamesmaosbraceleteseolhoutudocomsatisfação.

—Confessoqueestasjóiasmeficammenosmal—disse,ajeitandocoquetementeasvoltasdocolar—,mas,nãoéparaHartatefquemeadorno,porqueeuoabomino.

—Issoélácontigo;emtodocaso,porém,tulhedeverásumsucesso,emhomenagemaoqualtu lhepodesdemonstrarhojeumpoucodepolidez.Depois,veremos.Vem,Mena,Pair te reclamaparaajudá-loemalgunsarranjos,enquantoeuvoutratardeminha“toilette”.

—Comoterminarátudoisso—ponderouMena,comumtrejeito,quandochegaramàgaleria.

—Esperamosqueterminebem.Asjóiasproduziramoefeitoqueeudelasespereitirar—disseSatati, fazendo sinal às escravas para que levassem a Neith os grandes cestos cheios de panosbordados.

Umahoradepois,ricaliteira,precedidadelacaioseportadoresdeabanos,parouanteaporta,ornadadeflores,dopaláciodePair.Hartatefdesceudaliteirae,guiadopelomordomo,rumouparauma sala de recepções, ao limiar da qual Satati e omarido o receberam com amaior e cordialsatisfação.

—MeubomHartatef, comoagradecer os soberbospresentesquemeenviaste!Vê, já estouusandooadereço—disseSatati.

—Considero-mefelizemcontribuirdealgummodopararealçaraformosuradaamávelmãeadotivademinhafuturaesposa,eéstuquemmehonrasaceitandoasdádivasdaqueleque,apartirdehoje, euoespero, será teuparente.Mas, ondeestáNeith?—acrescentouo recém-vindocomindagadorolhar.

—Neithestánoterraço,arrufada,enósnãoconseguimostrazê-laaqui—falouPair,que,sobumolharrecriminativodaconsorte,calou,cedendo-lheapalavra.

—Tusabes,meucaroHartatef,que,nasuajuvenil idadeeinexperiênciadavida,Neithnãocompreendea felicidadeque lhevem;elaobedeceacaprichosehistóriasextravagantes.Mas, setiveresumpoucodepaciência,tudoissopassará,e,àmedidaqueelamelhorteconhecer,apreciarádevidamenteoteuamor.

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—Não tenho disso a menor dúvida, e saberei suportar um pouco de frieza — respondeuimpassivelmente Hartatef. — Tendo assegurados o vosso consentimento e apoio, basta; minhasincera afeição fará o resto. Agora, vou para junto de minha noiva, apresentar-lhe as devidashomenagens.

Comandarimpaciente,atravessouváriassalas,ondeescravos,sobadireçãodeMena,davamosúltimosretoquesaospreparativosdofestim,subiuaescadacobertadeesteirasqueconduziaaoterraço.Sobreoúltimodegrauparou,eseuapaixonadoolharpousousobreNeith,que,apoiadanoparapeito e absorta em seus pensamentos, não se apercebeu da chegada deHartatef. Para este,jamais a jovem parecera tão fascinante, malgrado a expressão irada, de desespero que lhesombreavaosemblante.Alvatúnicadesenhava-lheotalheesbelto;nopescoçoebraçosbrilhavamasjóiasdesafira.Reconhecendoessasjóias,indefinívelsorrisodeironiapairounoslábiosdojovemegípcio.

—Orochedodasmulheres—murmurouele,falandoasipróprio—adorna-secomasjóiasdosseusmortaisinimigos!

Depois,dominando-seimediatamente,aproximou-se,edisse,inclinando-sereverente:

—Teuhumildeescravotesaúda,minhabelaprometida,eesperaqueteusrosadoslábioslheconcedamumsorrisoeumapalavradeboaacolhida.

Aosomdestavozmetálica,Neithvoltou-se,estremecendo.

—Esperasmuito,Hartatef.Paraoamigoeupoderiaconcederumsorrisoeumaboapalavra;paraonoivoque,contraminhavontade,querdesposar-me,euguardoapenasdesprezoeaversão.Tuas riquezas podem tentar meus parentes: a mim, não. Renuncia-me, pois, Hartatef, e não meforcesarepetirdiantedetodosoqueteestoudizendoagora:nãoquerosertuaesposa.

—Tuquererás,porqueteutioetutormeprometeuatuamão;tulhedevesobediência,eeunão sou homem que suporte afrontas pacientemente. Tenho a convicção de que me vais seguir,tranquila,àsaladofestimeconfirmaraosconvidadosquetumeescolhesparamarido.

—Quem julgas tuque eu sou?Acaso escravadePair, paraque ele disponhademima seutalante?—exclamouNeith,olhoscoruscantes.Desçamoseeu tevoumostrar imediatamentequenãotemoatuacólera,nemadomeutio.

Elaprocurouencaminhar-separaaescada,masHartatef,pegando-lheumbraço,fê-ladeter-se.

—Antesdequalquerresolução,deixaquetepergunte:estás informadadosassuntosdetuafamília? — interrogou ele com a voz vibrante. — Sabes que Mena penhorou(9) o cadáverembalsamado(múmia)deteupai,pordez“talentosdeBabilônia?”(10)Adatadoresgateaproxima-se eMena está sem recursos para fazer a amortização; prometi, por isso, saldar a dívida, pararesguardar a honra da família à qual vou pertencer. Semantiveres tua recusa, considerar-me-eidesligadodocompromissoedequalquerdiscriçãosobreoassuntoque,afinal,bemdepressaestaránodomíniopúblico.Escolhe!

(9)‘‘Uma lei,deque falaHeródoto,autorizavaoegípcioaobterempréstimos,dandoempenhoramúmiadogenitor.Ocredorficavadonodotúmulosemdireitoderemoção.Seodevedornãosatisfaziaadívida,ficavaprivadodesepultura,eosfilhos,herdeirosdodébito, incidiamnamesmapenalidade, casonãosaldassemopenhor.A importânciaehonraqueosegípciosdavamàsepulturalevavamosdevedoresaosmaioressacrifíciosparanãoincorreremnessaespéciedemaldiçãoeterna.”(Martin,LesCivilisationsPrimitivesenOrient,ed.Didier,Paris,1861,pág.505.)

(10)10TALENTOSDABABILÔNIA-Os“talentos”dequefalaaBíblia,desdeoseulivroinicial,“Gênese",comescalasporCrônicas,Juizes,Zacarias,Esdras,EsteratéoNovoTestamento,EvangelhodeMateus,ebemassimosdoEgito,Babilôniae Grécia, mais ou menos contemporâneos, variavam na sua expressão quantitativa, pois, não tendo valor monetárioespecífico,oscilavamnopesodorespectivometal.ODicionáriodaBíblia,deW.W.Rand,vocáb.-Talento,mencionaqueoáticocomumequivaliaa82esterlinos;ojudeucorrespondendoa3.000cicloseestesa50centavoscada,orçavapor1.500pesos americanos (?). Heródoto, nos Nove Livros da História, indicando as subdivisões equivalentes, dá, no livro I, aotalento-de-ouro,ático,opesoaproximadode26quilos,eno livroIII,aotalentobabilônico,ovaloraproximadode1.200cruzeiroscadaum.Essacifra(12.000cruzeiros),paraaépoca,deviaserenorme.

Comosefosseatingidaporumraio,Neithcambaleouecaiusentadasobreumacadeira,comasensaçãodequeacabeçalhegiravaemreviravoltas.Seaterrívelnotíciafosseverdadeira(eeladetalnãoduvidava),todaasuafamíliaestavaameaçadadeopróbrio.Naopiniãodosegípcios,darempenhoramúmiadeumantepassadoeramuitopoucohonroso,mas,nãoresgataressatãosagrada

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cauçãoconstituíaIrremediáveldesonra.Paraela,Neith,eramesmoimpossívelconfiarsuaafliçãoàrainha. Poderia a soberana manter qualquer benevolência para com uma família tão poucorecomendável?Oh!Hartatefhaviacalculadobem,emsuaorgulhosarigidez,queajovemprefeririasacrificarasuafelicidadeàhonra.

—Então,Neith,queresdar-metuamãoenofestimconsiderar-meteunoivo?—perguntouele,que,braçoscruzados,seencostaranoparapeito,ecujoolharperquiridorhaviaobservadotodasasemoçõesqueseexteriorizavamnorostoexpressivodajovem.

Commelancólicoaspecto,Neithestendeu-lheamão,edeixou-seconduziràgrandesalaondeosconvidadosjáestavamreunidoseanteosquaisasuachegadacausousensação.

Dentro em pouco, todos tomavam lugar àmesa.Mena ficou defronte da irmã, que evitavaolharparaele,cujadespreocupadaalacridadelhecausavadesgostoerevolta;ecomeçavamesmoaaborreceresseirmãoperdulário,quenãolhehaviasequerconfessadoaverdade,forçando-aaouvi-la da boca do detestado Hartatef, e afinal a sujeitava a pagar, com o sacrifício de sua vida,vergonhosasloucuras.

Neith sabia queMena era um boêmio em cujasmãos o dinheiro escoava a jorro, que faziadívidas;mas,sabendo-semuitorica,jamaissupôsqueoirmãotivessenecessidadededescerataisexpedientes.ApobrejovemIgnoravaquePair,oirmãomaismoçodeseugenitor,eraumperduláriotão desenfreado quanto Mena e seu fiel companheiro nas excursões noturnas pelas casas dascortesãsdeTebasepelasarapucasondesecultivavaessejogodeazarqueseperpetuouaténossosdias sobonomede“mora”(11).Desdemuito, osdoishomens tinhamsolapadoasbasesdas suasgrandes riquezas, emaisdeumavezhaviamrecorridoàbolsadeHartatef, que, inacessívelparatodos,somenteaelesdoisnadanegava.

(11JOGODAMORA-Porincrívelquepareça,essejogoéomesmodenossosdias,típico,porassimdizer,dosItalianos.Osparceirosestiramumdeterminadonúmerodededos,eganhaoquetiveracertadocomototalexatodosdedosenristados.

NãodistantedeMenaestava localizadoKeniamun,cujosnegrosolhosnãosedesfitavamdosemblantepálidoeabatidodeNeith.Quesignificavaaquelaemoçãodajovem,equepressagiavaasua vinda comHartatef, cuja vizinhança de novo se lhe dava?Desdemuito tempo, o oficial faziaassíduacorteàirmãdeMenaepensavadesposá-la,supondo-aherdeirarica,poisobomKeniamungostava tantodemulheresevinhoquantoocamaradaMena,emboranãomaispossuíssevestígiosequerdepequenaherança legadaporparentesseus.Asreflexõesdooficial foraminterrompidasporPair,que,empunhandoumataçacheia,exclamoujubilosamente:

—Carosamigoseconvivas,tenhoafelicidadedevosanunciarqueestaéumafestadefamília:celebramosonoivadodeminhasobrinhaquerida.Etu,Neith

— ajuntou, voltando-se para ela, sorridente —, designa, por tua própria voz, aos nossoshóspedes,opreferidodoteucoração.

Os olhares todos se concentraram em Neith, cujo palor e silêncio obstinado começaram adespertar atenção, ainda que ninguém suspeitasse fosse ela violentada em sua escolha. Porinstantes,permaneceu imóvel;umtom lívidocobriu-lheas faces,mas,comoquehipnotizadapeloameaçador olhar de Hartatef, ergueu-se, desprendeu a guirlanda que lhe ornava os cabelos e acolocou,semivoltando-se,sobreacabeçadonoivo.Depois,exauridapelosobre-humanoesforçoquefizeraparadominararaivaquelherefervianoíntimo,caiunacadeira.

Exclamações e cumprimentos estrugiram de todos os lados; os fâmulos, azafamados,apressavam-se a reencher as taças quando esvaziadas; a animação e a jovialidade dos convivasaumentavamde instantepara instante,eatingiramoaugequandoHartatef seergueu.Depoisdeagradecerosbonsvotosque lhehaviamsidoendereçados,convidou todosospresentesparaoitodiasdefestasconsecutivascomasquaispretendiasolenizarseumatrimônio,tãologoterminassemosarranjosqueestavamsendorealizadosnopalácioporelerecentementeconstruídonomaisbelobairrodeTebas.

Somente Keniamun não tomava parte no contentamento geral. Ao anúncio do noivado,pousara,subitamentepálido,ocopocheio,efitaraNeithcomolharpovoadodeespantoedecólera.A suspeita de algum misterioso constrangimento sobre a vontade da jovem ganhou maioresproporções, porque as suas assiduidades junto de Neith haviam sido sempre bem acolhidas porSatati e porMena, e a própriaNeith havia prometido desposá-lo. Se de bom grado, agora, derapreferênciaaoricaçoHartatef,porqueaquelapalidez,apenosaemoção,osilêncioobstinado?Elanãohaviaencontradoumaúnicapalavraderespostaparaagradecerocorodeparabéns.

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Mas, não estava sozinho o oficial naquelas reflexões, e se a polidez dos convivas não lhespermitiaassinalaraestranhacondutadanoiva,osolharesadmiradosecuriosos,sorrisosequívocos,emesmocomentáriosemvozbaixaerampermutadoscadavezmaisfreqüentes,poisacuriosidadeindiscretanãoéapanágiodosséculosmodernos.Esta florescia jábemdesenvolvidanasociedadedosantigosegípcios,eéeternamentelamentávelqueMoisésnãotenhaacrescentadoaosseusdezmandamentosumdécimoprimeiro,noqual,emnomedeJeová,proibisseacuriosidadeindiscretaebemassimosmexericosqueaacompanham,eameaçassecomacóleradoEternoasbisbilhoteirasdetodosostempos,queconsideramseudeveraprofundaro“porquê”detudoquesefaz.Asboastebanas,reunidasemtomodamesadePair,começavamaabrasar-sedeimpaciênciaparaconheceras razões que tornavam Neith assim tão taciturna e tão pouco satisfeita ante a perspectiva dedesposaroáureoHartatef,queamaiorpartedassolteiraspresentesteriaaceitosempestanejar,edasquaisalgumashaviammesmotentadofisgaressebrilhantepartido.

Satati e Mena tinham observado, com inquietude sempre em aumento, esses indíciosveementesdesuspeitosacuriosidade;amaneirapelaqualNeith sedobravaaosdesejosdos seusestava longede satisfazeraambos;perguntavama sipróprios, com igualdesassossego,porqualmeioHartatefhaviatãorapidamentequebradoarevoltaeateimosiadeNeith,aomesmotempoquelhe provocara o evidente desespero. Foi para uma, e outro um verdadeiro alívio quando, enfim,todosdeixaramamesa.

Imediatamente, numeroso grupo de mulheres rodeou a noiva, inquirindo sobre a data docasamento,aomesmotempoqueacumulavamdereiteradasfelicitaçõespordesposarumhomemtãobelo,tãoricoetãoaltamentecolocado.Comavozapenasinteligível,Neithalegavaqueocaloreaemoçãolhehaviamesgotadoasforças,eporissoimperiosolheeraretirar-separarepousarumpouco.Satati,queaobservavasobressaltada,previu,pelavermelhidãosúbitadorostoepelotremordoslábios,queNeithestavapróximadeumacrisenervosa.Porisso,aproximou-serapidamentedajoveme,abraçando-lheobusto,disse,comadocicadoefingidosorriso:

— A alegria e o desgosto são iguais para exaurir. Recordo as múltiplas emoções que meagitaram, quandome fiz noiva,mas, sobre a nossa queridaNeith, que é tão sensível, tudo atuaduplamente.Vem,querida,vemrepousarumpouco.

E celeremente a conduziu ao terraço, deserto nesse momento, visto que os convidadosestavamdispersospelassalas,enquantoajuventudeacorreraaojardim,ondesedistraíacomváriosjogos.

LogoqueNeithchegouaoterraço,repeliuSatatieprorrompeuemamargopranto.Aesposade Pair compreendeu a inutilidade de quaisquer palavras de consolação, que só lhe poderiamacarretarumarepulsapoucodelicada.Porisso,desceusemperdadetempo,persuadidatambémdequeasolitudeeraomelhorcalmanteparaNeith,sem,entretanto,deixardemartelaropensamentoem busca das razões que poderiam ter transformado a pertinácia, revelada de manhã, naquelasubmissão desesperada. Mas, eis que perpassou pela mente, qual relâmpago, a idéia de queHartateflhehouvessefaladodamúmiadadaempenhor.Asemelhantesuspeita,empalideceu,poisconsideravatalrevelaçãoumagraveimprudência,devezqueNeithdeviaignorarportodosempretãoescandalosatransação.

Atravessandorapidamenteumasalaondenãohavianinguém,avistouKeniamun,que,segundolhepareceu,seencaminhavaparaasaída.DesejandoevitardesagradávelexplicaçãocomaqueleaquemelaencheradevãsesperançasarespeitodeNeith,Satatitratoudeatingirumgabineteondenumerosas mulheres conversavam ruidosamente. Enganara-se, porém. O oficial não cogitava deabandonarafesta,oquepoderiachamaratenção;ninguémdeviainteirar-sedoquantolheferiraaperdadeNeith,opensamentodequeelaohaviapreteridopelasriquezasdeHartatef,queeletantodetestava.Emverdade,eleiaembuscadeumrecantosolitárioondepudessecoordenarasidéiasecalmara raivaque lheestuavanopeito.CompreendiaagoraporqueMenaoevitaranosúltimostempos;mas,dapartedeNeith,jamaispoderiasuporsemelhanteperfídia.Eelanuncalhepareceratãobela,nemmaisdesejável,eeracomraivaqueconfessavaasimesmoamaracriaturaespiritualquasetantoquantoosoberbodoteque lheatribuía.Maquinalmente,porassimdizer,encaminhouseuspassosparaoeirado,quesupunhadeserto,eonde,comindizívelespanto,viuNeithestendidasobremóvel de repouso, chorando amargamente. Constatando o desgosto damulher amada, seuulceradocoraçãosentiualívio.

—Neith!—exclamouele—chorassobreatuatraição,oujádeplorasosúbitoamorqueasriquezasdeHartatefemtifizeramnascer?

Ajovem,erguendoacabeça,estendeu-lheambasasmãos,edissecomamargura:

—Secrêsqueodesposopelafortuna,muitomalmeconheces.

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Keniamun,cruzandoosbraçosàalturadopeito,replicou,comirritação:

—Eporqueoaceitas,então?Quempodeconstranger-teaisso?Mortosteuspais,oteuirmãonãotemtaldireito;choras,parecesdesesperadae,noentanto,faltasàpalavradadaamim.Senãoé amor, foi a ambição que te levou a aceitar esse homem?Responde, explica-te,Neith, ou eu teodiareiedesprezarei,porquepormeracupidezprendes-teaumauniãoqueterepugna,efazesdomeuamorumbrinquedo!

Anteesselibelo,cessaramimediatamenteaslágrimasdeNeith,eseusnegrosolhospassaramabrilhar.

— Eu te juro, Keniamun, que terrível circunstância me força a desposar esse homem quedetesto.Aindaestamanhãlutei,combatipelaminhaliberdade.Porquecedinãomeperguntes:nãomeé permitido dizê-lo. Podes ter certeza, porém, dequenenhumdosmotivos por ti suspeitadosinfluiunaminhadecisão.

—Não,não,issonãomebasta.Nãosedizaumhomemaquemseprometeucasamento:“Euvosatraiçoeiporgraves razões.”Não,aindaumavez!Énecessárioexplicação,exigem-seprovas.Aquele a quem amas, e que te ama, tem direito á tua confiança; ele saberá calar, se tanto forpreciso, mas, também poderá talvez encontrar uma solução, onde, no teu desgosto, julgas tudoperdido.

Impressionadapelajustezadosargumentos,Neithiapossivelmenterevelaraverdade,quandoMena,escarlatederaiva,Irrompeunoterraço.InformadoporSatatidasuspeitaquetivera,MenacorreuaHartatef,esteconfirmoutudo,semseincomodardequesomenteanotíciadopenhordamúmiativessetidoopoderdequebrararesistênciadajovem.Inquietoepreocupado,decidirafalarImediatamenteàIrmã;mas,aosubiraescada,reconheceraavozdeKeniamuneouviraasúltimaspalavrasdeste.Osanguecongestionara-lheacabeça.Seaquelachorosalouquinhafossedesvendarosegredo,quempoderiamedirasconsequênciasdousoquedetalfizesseKeniamun,pretendenterecusado? Keniamun era muito querido na sociedade, benquisto principalmente pelas mulheres,graçasà suagalanteria e ao seu talento.Senhor,pois, de tal arma,poderia arruinara reputaçãodele,Mena,evingar-sedaafrontarecebida.Presadetemorefervendoderaiva,precipitou-separaoterraço,e,colocando-sejuntodeNeith,comoqueparaprotegê-la,exclamouemtomarrogante:

—Porqueatormentasminha irmã? Jávisteaquemeladeupreferência,equantoàsrazõesdestacombinaçãodefamília,nenhuminteressepodemterparaumestranho.

—Não sou um estranho paraNeith— contestouKeniamun, também fremente de cólera. Eumavezqueelasilenciasobreascausasdesta“combinação”defamília,éatiqueeuinterrogo,etume deves resposta, pois de ti obtive promessa damão de tua irmã. Recorda-te de que pedi tuapalavradenãoentravaresmeusprojetos,edeque,arir,tumedisseste:“Euojuro!Eporqueeuosembaraçaria!Queme importasabercomquemNeithsecasará?”Segundoparece,depois,ocasotornou-semenos indiferente, e eu te intimo a explicar semdemora por que preferisteHartatef amim,eemquedeixodeserumpartidohonroso.

OsemblantedeMenatomaraumaexpressãodeglacialimpertinência.

—Éslouco,aoqueparece—dissedesdenhoso—,pedindoexplicaçõessobreassuntoqueemabsoluto não te diz respeito. É muito simples compreender que, tratando-se de fixar a situaçãodefinitivadeumajovem,nãosecogitedecriancices.Hartateféimensamenterico(olhaestecolardesafirasepérolas,valendoumafortuna,quehojeeleofertouàmulherdesuaescolha);ocupaumcargo tão acima do teu, que a própria Neith compreendeu não se poder recusar semelhantepretendente.Contenta-tecomestaexplicaçãoeacalma-te.

Neith acompanhara de olhos cintilantes a altercação entre os dois homens e, à derradeiratiradadoirmão,orostoenrubescera.

—Queousastudizer,miserávelmentiroso,parasalvarahonraàqualmesacrifico?Paratedemonstrarovalorquedouaospresentesdessehomemodioso,olha!(ENeitharrancouocolarcomtal violência, que os elos se romperam e espalharam no solo.) Acredita-me, Keniamun —acrescentou, fremindo de indignação — eu me sacrifico, mas, não por dinheiro; despreza-me sequiseres,senãotepossodizermaisdoqueouviste.

— Eu te acredito e te lamento. Quanto aMena, não o importunareimais, e guardarei boalembrançadestahoradeexplicação.Voltou-seesaiu.

Ficandoasós,Menafalouraivosoàirmã:

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— Insensata, tu nos perderás a todos; quem sabe as suspeitas que tuas extravagânciasinspiraram a esse intrigante? Buscará incriminar minha conduta. E, depois, este colar... Pode-seassimdestruirtãopreciosajóia?QuediráHartatef?

—Oqueelequiserdizer.Etu,apanhaosrestosdajóiae junta-osaopreçoquetepagarampelamúmiadonossopai,filhodesnaturado,desonradanossafamília—disseNeithcomdesprezo.

Menahaviarecobradooseuaprumo.

—Ouvindo-te,crer-se-iaquefuioúnicoapenhorá-la—respondeu,cruzandoosbraços.Pairconscientementemeajudou.Talveznãohouvéssemosidotãolonge,semoloucoamordeHartatefporti;mas,parateobter,elepagacomalegria;resgatamosamúmia,semdespenderum“aneldeprata”,etutetornasteaomesmotempoumadasmulheresmaisricasemaisaltamentecolocadasdeTebas.Eis,de fato,umagrandedesgraça,eporumanegociaçãotãosimplesevantajosa fazesescândalo sobre escândalo! Toma sentido! Todos poderão julgar que com esses gritos pretendesdesculpar-tedepreferirumricaçoaessemendigoKeniamun,eodescréditorecairásobretimesma.

Neith não deu resposta a tanto excesso de imprudência; uma pungente angústia, umasensaçãodeinsulamentoedeabandonoconstringia-lheopeitocomoqueadiluir-lheocoração.Bemconheciaainsensibilidadeegoístadoirmão;aindanãolharevelara,porém,assimtãobrutalmente.Até então, ela, Neith, que se sentira uma órfã cujo futuro e ventura a ninguém interessavam;desavergonhadamentetraficavamcomela,qualsefazcomumaescrava,e,concluídaatransação,deviasubmeter-seoudesonrar-se juntamentecomosseus.Comoqueemsonho,dirigiu-separaaescada,enquantoMena imediatamente seagachavaparaapanharcuidadosoospedaçosdocolar,atéomenordoselos.

Imersa nos pensamentos, caminhou para os seus aposentos, evitando as salas ondepermaneciamosconvidados;mas,aoentrarnagaleria,encontrouHartatef,queabuscava.Ojovemegípcio, compercuciente olhar, notou logo o desaparecimentodo colar quehoras antes ornava opescoçodafuturaesposa.

—Aondevais,minhabelanoiva—indagou,curvando-separaajovem.Porqueestástãopálidaequebrantada,Neith?Eondedeixasteoadornoquetraziashápouco?Éacasomuitopesado?

—Simenão.Tuencontrarásospedaçosespalhadossobreaslousasdoterraço;euoarranquei—prosseguiuelaemvozsurda—,porqueMenameacusou,empresençadeKeniamun,demehavervendido a ti por esse colar e pelas tuas riquezas. Então, para provar o apreço que dou às tuasprendas,fizempedaçosocolar,erepito,diretamenteati,queprefiroterumavíboraenroscadanopescoçoemvezdastuaspérolasesafiras.

Hartatefmeneouacabeça.

—Mena é um tolo, e tu erras em dar valor a suas tagarelices e estragar por isso um tãoprecioso objeto.De resto, tem conserto o colar, e eu possuo outros nãomenos belos, queusarásquando houver abrandado a tua cólera; tu os usarás — insistiu, ao ver que Neith movianegativamenteacabeça—,porquetodamulherdesejaserbelaeparaserbelaénecessárioalindar-se; tu te enfeitarás, pois, para te achares formosa, tu própria, quando não para o esposo queabominas.

—Paraquandomarcasteocasamento?—interrompeubruscamenteela.

—Daquiatrêsluas,apartirdehoje,meupalácioestaráemcondiçõesdetereceber.

— Está bem, mas, até essa data nefasta, eu te rogo me poupes da tua presença; querorepousarefruirosderradeirosdiasdaminhaliberdade.Nãotecansesemvirver-meeemremeterpresentes:eunãoquerocoisaalgumadeti.

—Tuserásrazoável,Neith:nãosepodesernoivadurantetrêsluas,semverofuturomarido.Não te importunarei,mas, virei aqui, enviar-te-ei floresepresentes,paraquenãomeacusemdeavarento.Omundonãosaberá—continuouimperturbávelmenteHartatef—quantomecustascaro(o resgatedamúmiademeusogronãoénenhumabagatela),mas,devesserbastanteequânime,paramepermitiroprazerdeavistarminhalindanoiva.

Neithvoltou-lhecostas,semdarresposta,esaiu.

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IV

NAPESQUISADAVERDADESemmaispensarno“quesedirá”,Keniamundeixara imediatamenteopaláciodePair.Ódio

surdo, violento desejo de vingança lhe intumescia todo o ser; mas, antes de qualquerempreendimento,eraindispensávelconheceraverdadesobreasrazõesquetinhamdeterminadoasúbitadecisãodeNeith.QueespéciededeslealdadecometeraMenaqueauniãodesuairmãcomHartatefpudesseremediar?Desejavavivamenteissodescobrir;mas,comoconsegui-lo?Derepente,umaidéialheacudiu(eporquetalnãolheocorreraantes?).

“Ela”devesabertudo,epordinheirotrairiaossegredosdoprópriodeusOsíris.

Comíntimosorrisodesatisfação,destacoudesuasvestesumalamardeouroincrustadoefê-lodeslizarnocinto;dirigiu-seaçodadamenteparaasbordasdoNilo,ondealugouumbarco,comordemdeconduzi-loaumarrabaldedistante,situadopróximodoquarteirãodosestrangeiros,nasimediaçõesdoqualresidiaapessoacomquemia falar.Quandoobarcochegou,Keniamunsaltoulestamente, e, tendo ordenado ao remador aguardar seu regresso, internou-se em estreita ruadebruadadepequenosjardinscercadosdemurosemruínaedecasasestragadas.

Apósalgunsminutosdemarcha,penetrouemumpátio,aotérminodoqualseelevavagrandeconstruçãodemurosfendidos.Gritosecânticos,umcaosdetimbresrústicosedissonantessaíamdointerior.Semdaratençãoaessevozearsuspeito,Keniamunentrouporumvestíbulodecolunascarunchosasem longaevasta sala iluminada (emborahouvessesolpleno)por tochas fixadasnasparedes,ecujaespessafumaradajáhaviarecobertootetocomumacamadadefuligem.Emtornode mesas, várias em tamanho e rodeadas de bancos e escabelos de madeira, aglomerava-severdadeira multidão de soldados, marítimos, obreiros e outra gentalha, comendo e bebendo emgrosseirospratosecoposdelouçaedemadeira.Mulheresvestidasdeouropéisfanadosabancavam-seentreoshomens,ealgumas,derostosafogueados,pareciamébriasecantavamagoelassoltas.Nocentrodasala,duasbailarinas,magrasemeiodespidas,dançavamaosacordesdeumalaúde,enquantoduasoutras,acocoradasnosolo,acompanhavamamúsica,batendopalmas.

Bem no fundo, sobre um estrado de dois degraus, enfileiravam-se muitos e diversosaparadoressobrecarregadosdasmaisvariadasprovisões,alémdeduasmesascobertasdeânforasede copos. Entre essas duas mesas, sentada numa poltrona, conservava-se a dona doestabelecimento,supervisionando,comenérgicosolhares,seusturbulentosvisitanteseosescravosque circulavam no meio dos grupos, servindo a cerveja, o vinho e as frutas pedidas. Era ummulherão,deamplíssimasespáduas,pernasebraçosrobustos,comumpescoçotaurino.Seurosto,regular, afetava um ar de bonomia, desmentindo dois olhos grandes, negros, sorrateiros,penetrantes, encimados de sobrancelhas densas e ligadas; nariz em bico de águia, maxilaresproeminentes, boca rasgada, dentes brancos e agudos, davam-lhe a semelhança de um animalcarnívoro.Estavavestidacomumasaiadelistrasvistosas,fechadanaalturadosrinsporumcintodecobre;umcolardemissangasornava-lheotorso,edasorelhaspendiamargolasdeexageradasproporções,causandoadmiraçãosuportassemasorelhastalpeso.

Empunhavaumcurtobastão comoqual batia rudementenos escravosque lheparecessemmuitolentos,paralhesestimularaagilidade.

À presença de um oficial, desagradável agitação pareceu manifestar-se entre osfrequentadores do bordel: os gritos e as cantorias cessaram, e muitos soldados deslizaram àsemelhançadeenguiasparaosrecantosmaissombrios;mas,fingindonãoseaperceberdasensaçãodasuaentrada,Keniamuncaminhoudiretoparaoestrado.

— Bom dia, Hanofer — cumprimentou ele. Desejava falar-te por alguns instantes, semtestemunhas.Podesatender-mesemdemora?

— Sem dúvida, meu senhor, estou às tuas ordens — acedeu a estalajadeira, saudando,obsequiosa.Tu,Beki,cuidaparaquetudomarchebemduranteaminhaausência—gritouentãoaumavelhamulher,quelavavacoposnumaselha.

Emseguida,abriuumaportaao fundoeconduziuooficial,atravésdegaleriaaberta,aumpavilhãobastantebemconservado,àsombradesicômoros.

— Que tens a dizer-me, nobre Keniamun? — começou ela, oferecendo uma cadeira aovisitante.Aquiestamosaoabrigodeorelhasindiscretas.Mas,porqueviestepelaentradacomum,e

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nãopelaoutra,enahoraqueconheces?

— Não queria encontrar outros, e necessitava falar-te sem tardança — contestou ele,sentando-se e fazendo gesto de recusa do copo com vinho que lhe era oferecido. Não te tomareimuitotempo,esepuderessatisfazerminhacuriosidade,quantoaomotivopeloqualHartatefforçouPairalheconcederNeithemcasamento,euteoferecereiestealamarqueestásvendo.

Apesardequarentona,umclarãociumentofulgurounosolhosdeHanofer.

—Serápossívelqueele insistana louca idéiadedesposarNeith,queodetesta?—explodiuela,rubradecólera.Nãoestarásenganado,Keniamun?

—Acertezaétãocerta,quehojemesmofoicelebradopublicamenteonoivado.Oestranho,porém, é que ainda pela manhã Neith o recusara energicamente, e que, segundo confessou emprantos,foiparasalvarahonradasuafamíliaqueconsentiunocasamento.Pergunto:querelaçãopoderáexistirentreHartatefeahonradafamíliadePair?Eisoquedesejavasaber,equemmelhordoque tu,minhaboaHanofer,poderáestar informada,pelanotória influênciaqueexerces sobreHartatef?—concluiu,rindo,ooficial.

Enquanto ele falava, a mulher examinara e avaliara o peso do alamar, na mão, e seu olharespelharaacupidezmescladaainfernalmaldade.

—Vouexplicar-teoenigma—disseela,comumgargalharrudeegrosseiro.OnobreMena,para atender suas loucas despesas, deu em penhor a múmia do pai, e para o resgate vendeu apequenaaHartatef,esseasnoalbardado,quedecertoprometeudaros“deztalentosbabilônicos”queMenaprecisaparasaldaradívida.Queoutrolheemprestariatalsoma?

Keniamunempalideceradurantearevelação.

—PobreNeith!—murmurou.Agoracompreendooteusacrifício.Nãotepossoresgatar,masvingar-te-ei.EseHartateftiverteucorpo,amimpertenceráteucoração.Ergueu-se,despedindo-se:Agradecido,eatéàvista,Hanofer.Guardaessaprendaemlembrançadoserviçoquemeprestaste.

—Euo fizdeboa-vontade.Eporque teocultaroatodessagentebastantebaixa,que,nãosatisfeitadepenhorarocorpodeumparentepróximo,vendeumacriançasemdefesa?Talvezque,tornadopúblicoesseconchavo,sedesfaçaporsimesmo—rematouela,comsorrateiroolhar.

Asúltimaspalavrasdaartificiosamegeracaíramemterreno fértil,emprestandomaisnítidaformaaosíntimosdesejosdeKeniamun.Sobumaaparênciadoce,alegreeamável,eleescondiaumcaráterambiciosoevingativoaoexcesso.SuapobrezajamaislhepareceraobstáculoparadesposarNeith,apesardarivalidadedoargentárioHartatef.

Tersidopostoàmargem,qualmóvel inútil,depoisdeencorajadonosseusprojetos, ferira-omortalmente.

Assim,vingar-see tornarpúblicoemtodaaTebasadesonradeMenaeraseuúnicodesejo.Mas,porondecomeçaraferi-lomaisdolorosamente?Seuespírito,sutileintrigante,bemdepressatraçou-lhe o caminho a seguir para consecução do seu intuito. Sabia, desde alguns meses, estarMena fazendo assídua corte a uma jovem viúva, muito rica, com a qual pretendia casar.Frequentandocomcertaassiduidadeesse lar,Keniamuneramuitobenquistoali, graçasaos seustalentosmundanosegalanteria;conheciabemaviuvinha,mimadaecaprichosa,enãoignoravaqueaformosaRoanterafútil,ciumentae,semembargoderica,muitoeconômica.Bastavaabrir-lheosolhos para os gostos dissipadores de Mena e para os amores com Nefert (a filha de Tuaá), paradestruir as probabilidades de êxito acariciadas por Mena com relação à viuvinha. E, se a fizesseconhecedora da história da múmia dada em penhor, podia contar que a novidade entraria noconhecimentodetodaaTebas,semquetalocomprometesse,sepedissesegredoaRoant.

Satisfeitíssimo com a idéia, e decidido a agir sem perda de tempo, Keniamun retomou aembarcação;eporquea residênciadaviúvaestivesse situadaàbeira-rio,nãodistantedopalácioreal, ordenou ao marujo conduzi-lo para ali, certo de a encontrar, por saber que Roant estavaindisposta,malqueaimpediradecompareceraofestimemcasadePair.Comoprevira,foirecebido,e um escravo o guiou para o terraço, sombreado de árvores e ornado de plantas raras, onde seencontravaadonadacasa.

Roant era uma formosa e jovem mulher de 22 primaveras aproximadamente, alta, esbelta,muito morena, mas de tez pálida e amarelada, de cabelos admiráveis, grandes olhos vivos eespirituais,bocapurpurinacomosefossedecoral,formandoumconjuntodeformosuraexcitante.Naquela ocasião, porém, o seu todo mostrava fadiga e preocupação. Uma compressa de água

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aromatizadalhecircundavaafronte.

—Quebonsventos teconduzem,Keniamun?Eupensavaestaresno festimdePair—disse,soerguendo-seno leitode repousoeestendendo-lheamão.Senta-tee sêbem-vindo; tuapalestradivertidaeinteressantemedistrairá,afastandooespíritomalfazejoquemeobsidiaemefazdoente.Mas,quevejo?Estáspálidoetriste.Quetens?Houvecontrariedadesnosteusserviços?

—Não,boaeamávelRoant,minhasobrigaçõesnãomedãocuidados;mas,tensrazão,estoutriste; os ruídos de uma festa são me odiosos, e não sabendo onde levar os dissabores do meucoração,vimaqui,ondesemprefuicumuladodebondade,naesperançadequeapalestracomumacriaturadeespíritoedesentimento,qualtués,Roant,constituaomelhorremédioparadarcalmaeequilíbrioaosmeuspensamentos.

—Fizestebememvir,eficasautorizadoacontarsemprecomaminhaamizade—disseabelaviúva, com amável sorrir. Mas, para que eu te ajude eficazmente a conquistar a desejada calma,confia-meoteupesar,Keniamun,dize-meoqueteaflige,eeuprometoserdiscretaejamaisabusardatuaconfiança.

—Eu te conheço assaz, Roant, para dispensar semelhante promessa — respondeu ele, comprofundosuspiro.—Mas,poderáscompreender-me,tu,queéstãoaltiva,tãobela,aospésdequemsuspiram os homens mais ilustres de Tebas? Poderás compartir os sofrimentos de um desditosoamor,deumcoraçãoulceradoedesdenhado?

Roantcoroufortemente.

— Tu te enganas, Keniamun; compreendo perfeitamente teus sentimentos; meu coraçãotambémestáatormentado,eeuseiqueconfidenciardesgostostrazalívio.Fala,pois,francamente;éoouvidodaamizade,deumaconfidentequeteescuta.Entretanto,admiro-medequeterefirasaamor desdenhado: sei que amas Neith, e ela parecia bem acolher teu afeto. Terá acaso traídoperfidamenteteuamor?

—“Ela”,não!Essanobreepuracriançanãocompreendeomal—respondeuooficial,comarsombrio.Neithama-meeé incapazdeumabaixa traição;mas,outrosquenãose incomodamempraticarvilezas,atosquenãosepoderiamesperardehomensdacastaprivilegiada,parasalvarem-sedeumdescrédito,venderamainocentecriança.

Roant atirou para o chão a pele de pantera que lhe cobria os pés, e sentou-se. Na suafisionomiarefletiam-securiosidadeeinquietude.

— Rogo-te, Keniamun, dizer tudo sem restrições. De que indignidades falas tu, e quem aspraticou?Essascoisasconvémsejamreveladas.

—Umavezquetesolidarizastantocomomeudesgosto—disseele,fingindo-sedespercebidodaagitaçãodasua interlocutora—,não tenhomaisrazãodeocultaraverdade.OpaideMenaeNeith, falecidohápouco tempo, legouaamboscolossal fortuna;mas,Pair, seu irmãomaismoço,sempre foi dissipador incorrigível, de modo que, nomeado tutor de Neith, e muito ligado aosobrinho, a quem jamais contrariou em seus maus pendores, não se priva de coisa alguma, etransformou-se num dos maiores libertinos e perdulários de Tebas. Não existe no bairro dosestrangeiros nenhum bordel, nenhuma casa mal afamada onde esses dois homens não hajamdesperdiçado somas loucas, no jogo e no deboche. Já omito a escandalosa ligação de Mena comNefert,afilhadeTuaá.Oquelhecustaessadesavergonhadacriatura,quedevorariaoEgitosetalestivesse ao seu alcance, é incalculável. Compreendes que semelhantes excessos terminaram porsolaparasólidafortunadofinadoMena.Paraenfrentarembaraçosemanterofaustodacasa,Menaencontrouapenasorecursodefazerpenhordamúmiadopaiaumusurárioporenormequantia,e,parasaldaressadívidavergonhosa,imaginouumexpedientenãomenosengenhoso.

Duranteanarrativa, lívidopalor invadirao rostoda viúva; seusolhos cintilavameasmãostremiamnervosamente.Fingindo,porém,nãohaverreparadonessasexteriorizaçõesdacóleraquevieraprovocar,Keniamunrecomeçou:

—NeithinspiroudecertoaHartatefumapaixãotenacíssimaeprofundaparaqueesseavarose decidisse ao inopinado sacrifício de resgatar a múmia do velho Mena. Os detalhes da ignóbiltransaçãoeuosdesconheço.Semprerepelidopelajovem,queoexecra,Hartatefdirigiu-seaMena,eestevendeuairmãpelopreçodoresgatedamúmia.Colocadanaterrívelalternativadeaceitaroajusteoudesonrar-secomtodaafamília,adesditosacriançatevedeceder,eforamsolenizadososesponsais, no intuito de impedir um recuo por parte da noiva. Era de ver Neith no festim! Seutristonho desespero contrastava estranhamente com o bom humor dos dois patifes, que, parapagamento de libertinagens, sacrificaram a parenta. Mena, principalmente, alvorotava-me o

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coração:transbordavadetriunfoedeinsolência,evangloriava-sesoberbamentedequecelebrariabrevementeseuconsórciocomumadasmaisbelasmulheresdeTebas,loucadeamorporeleequeinsiste para abreviar esse venturoso dia. Bem desejaria saber a quem ele fazia alusão, mas,infelizmente...

UmaexclamaçãodeRoant,quesaltaradeondeestava, facesafogueadas,punhoscrispados,interrompeuonarrador.

—Essementirosoinsolente—gritouela,foradesi—aludeamim,naatrevidagabolice!Nãoteoculto,Keniamun,queelemeagradou,eeuencorajeisuasassiduidades;mas,nãotendominhapalavraainda,jámedesconsideraassimantetodos!Alémdisto,sabiaeuacasoquesetratavadeumsacrílego,quepenhorouamúmiadopaievendeuapobreirmã?

Com a exímia naturalidade que faria inveja a um ator nosso contemporâneo, Keniamunsimulouestarpetrificadodesurpresa.

—Tu,Roant!Eradetiqueousavafalartãoimprudentemente!—exclamouele,erguendo-seepegandoasmãosdajovemmulher.Perdoa-mehavercontadoissoetercausadotantaaflição;juroqueignoravatudo,enemmesmohaverdesconfiadoquetãodelicadaeespiritualmulher,qualtués,pudesseamarumhomemestúpido,brutaledepravadodoníveldeMena.Aindaumavez,perdoa-meporhavercedidoàminhamágoaedizer-tecoisastãopungentes.Mas,podiaadivinhar?

—Falasemperdão,quandoacabasdemeprestarassinaladoserviço?—interrompeuRoant,sentando-sedenovo,aindatrêmula.Nãoolvidareijamaisquemeabristeosolhosarespeitodessehomem desonesto, que se gaba das minhas benevolências, sem ter de mim qualquer respostadecisiva,ecujavidaprivadaéumtecidodehorrores!Oh!Qualteriasidoomeufuturo!Reconheçoagoraqueumespíritoimpuromeobscureceu,eperguntocomopudeamarMena,eporelerepelirduramentehomensdemérito,qual,entreoutros,ovossochefeChnumhotep!...

—TurepelisteChnumhotep?Entãoerraste,minhaboaRoant—disseKeniamun.Releva-meafraqueza;mas,anossaelevadaconversaçãodehojefogeàsregrascomuns.Nossochefeéhomemleal e bom, estimado de todos; nosso Faraó Hatasu o protege, e, recentemente, ainda lhe fez adádiva de soberba vinha. É um partido digno de ti, e creio ser muito fácil reparar o erro quecometestesobainfluênciadeumespíritoimpuro.Chnumhotepama-teapaixonadamente,euosei,eoverdadeiroamorjamaisérancoroso.Autoriza-me,pois,adizer-lhequeestásindispostadesaúde,e que o avistarias com satisfação; ele virá, e terá por grande honraria conduzir ao seu solitáriopaláciotãobelaevirtuosaconsorte.

—Tensrazão,Keniamun,devocasar-meparapôrumparadeiroaosditosescandalososqueasgabolicesdeMenavãosuscitaremtomodemim.DizeaChnumhotepqueserábemacolhido,vindovisitar-me.Mas,apenasIsso,entendes?

—Quejuízofazesdemim?Seriaincapazdetecomprometer!

— Muito bem! Se o teu chefe ainda me ama, eu o aceitarei por esposo, e organizarei umfestim, no qual se tomará público esse noivado, sob o nariz de Mena. Será minha desforra aobanquetedehoje.

— Eis uma soberba idéia, digna de mulher de espírito — exclamou Keniamun, rindodesabaladamente.Mas,parasercompletaaidealvingança,émisteracolherMenademodoigualaode até aqui, não trair tua cólera, e, quando, com a sua presunção habitual, ele esperar serproclamadoteunoivo,tupronunciarásonomedeChnumhotep.

Depoisdeanimadaconversação,nodecorrerdaqualocasamentodeNeith,osatosdeMena,dignosdeforca,eosassuntosdochefedosguardasforamtratadosafundo,osdoisnovosamigossepararam-se,eKeniamunreentrouemcasaplenamentesatisfeitocomosresultadosdasuatarde.Faltavaaindaprevenirseuchefedoaspectofavorávelqueseusamorestomavam;mas,teriaissodeser adiado para o dia seguinte, pois Chnumhotep estava de serviço em palácio, onde lhe cabiacomandar a guarda de vigilância noturna aos aposentos de Hatasu. Ao alvorecer, ergueu-seKeniamunefoiaopalácio,aumadasalasondeficavamsituadasascasernas,havendonoprimeiroandaraposentosreservadosaosoficiaiseaochefe,quenãopermaneciamconstantementeali.

Chnumhotep, ainda moço, dormia sempre em palácio, repousando da vigília, e quandoKeniamun foi levado ao seu aposento encontrou o chefe instalado à mesa, em face de copiosodesjejum. Era homem de 34 de idade, grande, delgado e musculoso; seus traços, acentuados,denotavamenergia,seuolhardeáguia,seusmovimentosbruscoseprecisosrevelavamoindivíduoacostumadoaocomando.Avistandoojovemoficial,ergueu-seeperguntou,benevolamente:

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—Aconteceualgoimprevisto,paraquemevenhasprocurartãomatinalmente?

Keniamunsaudouochefe,acrescentando:

—Desejofalar-teasós,Chnumhotep,mas,anotíciaquetetragonãoconcerneaoserviço,eserá,segundoespero,muitoagradávelaosteusouvidos:trata-sedanobreRoant.

Súbito rubor invadiuas facesbronzeadasdochefedasguardas.Comumgesto,ordenouaoescravoretirar-se,e,conduzindoKeniamunàmesa,fê-losentar-se.

—Tala—convidou,alcançando-lheumcopocheiodevinho.

—Passeiatardedeontememcasadanobreviúva,e,nodecursodaconversaçãoprovocadapor um grande desgosto que tive, Roant falou em ti, lamentando que evites a sua residência, eautorizoudizer-tequeestáenfermaeseriasensívelprazeratuavisita.Compreendesoquesignificaepressagiasemelhanteconvite—concluiuKeniamun,cominterpretativosorriso.

—És,emverdade,mensageirodeboanotícia,eeuaretribuirei,podes ficarcertodisso!—exclamouChnumhotep,olhosbrilhantesdecontentamento.Mas,nãomefalestãomisteriosamente.Que relação pode existir entre o teu desgosto e a rápida mudança de Roant em meu favor? Elaparecia completamente subjugada por esse asno Mena, que Ra confunda! Eu contava receber oanúnciodoseucasamento,etuvenstrazer-meavidaeaesperança.Quecircunstânciadesenganouajovemsenhora?Vamos!Sêfranco,eeutejuro,sobpalavradehonra,guardarsegredo.

—Semeasseguras tuapalavradehonradenãodivulgaraninguémoquevais ouvir, direitudoquantosepassou,anteseduranteaminhaconversaçãocomRoant.

E Keniamun narrou sucintamente, sem omissões, a história do noivado de Neith, da múmiaempenhada,e,porfim,avisitaàformosaviúva.

— Tu compreendes — terminou ele — que, ao saber tais coisas, se achou curada da suapropensãoparaMena,econvencidadequesóumespírito impuropôdeobscurecê-laaopontodepreferi-lo a um homem estimável e leal qual tu és. Se, pois — acrescentou ela —, o nobreChnumhotepaindameama,eu seria feliz emrepararmeuserrospara comele, aceitando-oparaesposo;porém,dize-lheapenasquemedaráprazer,vindovisitar-me.

— Hoje mesmo irei a sua casa, e espero que não me faça aguardar por muito tempo afelicidade — disse Chnumhotep, radioso. — Mas, quem teria pensado que Mena fosse um talcanalha!Puh!...—fezele,cuspindovigorosamente.Eisumquenãosepoderáconsiderarroubado,quandoosdeusesdecidiremrevivanocorpodeumsuíno.Ati,Keniamun,agradecido,aindaumavez.Contobemdepressadar-teprovasdequeaminhagratidãonãoéumapalavravã.Poragora,bebecomigoumcopodevinho,àsaúdedamaisformosamulherdeTebas.

Quando,meiahoramais tarde,Keniamundeixoua caserna,umsorrisomaldosoe satisfeitopairavaemseuslábios.

—Ah!nobreMena,murmurou—,eupremiareituainsolência,emaisdeumavezrecordarásessefestimnoqualmetratastecomtãodesprezantedesdém!

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V

NEITHNOTEMPLODEHATOREranoiteainda,masoclarãopálidoda luzea frescaviração sopradado rio anunciavama

proximidadedamanhã,quandoumaliteirafechada,conduzidaporquatronegros,deixouopaláciode Pair e rumou, através de ruas quietas e solitárias da Capital, ao templo de Hator. Na liteiraestavamNeitheumavelhaservaqueaacompanhavasempre.Ajovem,pálidaesombria,tinhaosolhosúmidose fixosnovácuo,parecendonadaveremtudoquea rodeava.Quebrantadaporsualuta íntima, ia haurir força e consolação aos pés da possante deusa, protetora do amor e dafelicidadeconjugal,acujocultosehaviaparticularmentededicadodesdeainfância.Chegadaanteas vastas construções do templo, às quais as sombras da noite emprestavam dimensões maiscolossais, a liteira parou. Velho guardião, que estava sentado junto à porta, aproximou-se compresteza,mas,reconhecendoajovem,visitanteassíduadotemplo,fezrespeitosareverência.

—Venhoorar;deixa-meentrarimediatamente,Chamus—pediuela,estendendo-lheum“aneldeprata”.

O velho, muito contente, precedeu-a até à entrada do templo no qual ela ingressou,juntamentecomafielcompanheira.Nagaleriaconfinanteaosantuário,Neithdeteve-se.Erguendoovéu,ajoelhoue,elevandoosbraçosparaaimagemdadeusa,implorou,emfervorosaprece.Todaaamarguraque,desdetrêsdias,estavaacumuladaemseuseiodesbordounessemomento;soluçosconvulsivos sacudiram-lhe o peito e torrente de lágrimas Inundou-lhe as faces. Absorta em suaoração e tristes pensamentos, Neith não suspeitou que um homem, escondido pelas sombras dagaleria,observava-acominteresseecompaixão.Essapersonagem,cujavestimentabrancaecabeçaraspadacaracterizavamumsacerdote,apoiavaosbraços,cruzadosaumacoluna,eseusolhosnãosedesviavamdajovem,iluminadapeloclarãovacilantedeumalâmpadasuspensaaoteto.

—Quempoderáser?—interrogouasimesmoopadre.Tãojovem,tãobelaetãodesesperada!Talvezhajaperdidoumenteamadoeeuapossaconsolar.

Lentamente, sem ruído, o sacerdote aproximou-se da jovem egípciana e, dentro em pouco,estavapordetrásdela,depé.Pôde-seentãoverqueeramoço,dealtotalhe,feiçõesadmiravelmentebelas, rosto pálido, olhos aveludados, boca finamente modelada, exprimindo no todo profundamelancolia. Permaneceu primeiramente imóvel, contemplando, num misto de curiosidade eadmiração,alindacriaturaajoelhadajuntodele.Depois,curvando-separaafrente,delevetocou-lhe a espádua. Neith estremeceu e voltou o olhar. Por um instante fixou, como que fascinada, ocalmoesuaverostoquesecurvaraparaela,edepoismurmurou:

—És tuumdesses celestesmensageirosdeHator, queadeusameenvia, tocadapelomeudesespero?

—Souumdossimplesservidoresdapotentedeusa,ligadoaestetemplo,ummortaligualati,jovem—respondeuopadreemvozmelodiosaevelada.—Aoveroteupranto,aproximei-meparateperguntarseépossívelaliviarteudesgosto.

Neithouviuavidamente,escrutandocomoolharcadatraçodessesemblantequelhepareciaestranhamenteconhecido.Ondehaviaelavistoessesolhosprofundosesonhadores,escutadoessetimbreharmoniosoque faziavibrarcada fibradesuaalma?Amemóriaemudecia;mas,potenteedesconhecidasensaçãofaziarefluirtodoosangueaocoração,inspirando-lhepelojovemsacerdoteumaconfiança,umanecessidadedeseexpandirjamaisporelaexperimentada.Soboimpulsodetalsentimento,exclamou,estendendo-lheosbraços:

—ServidordeHator,sim,euteconfiarei tudoquemeoprimeocoração,e teuconselhomeesclarecerá.Antes,porém,ouvequemeusou.Neithémeunome.SoufilhadeMena,oconselheirodoFaraóTutmésI,queoacompanhouemtodasassuascampanhasequedavaordensnocampoenastendasdorei.Desdesuamorte,vivo,comumirmão,sobotetodemeutioPair,doqualtalvezhajasouvidofalar,poiseleéchefedasequipagensdopalácio.

Em sintéticas palavras,Neith expôs sua vida passada, a história damúmia empenhada e osacrifíciodelaexigidoparasalvaçãodahonradafamília.Eterminou:

—Pelamemóriademeupai,devoesposaressehomemdetestado,mas,tereiminhadesforra.

Seusolhoscintilavam.OmoçosacerdoteouviraNeithcomsofreadointeresse.

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—Grande é a provação que os deuses te impõem, nobre filha de Mena — falou ele comgravidade.— Devo dizer-te, porém, que o sacrifício só é aceito pelos Imortais quando oferecidocompleto.Oódionãodevesermescladoaesseatosagrado,queéomatrimônio.

Comaforçadafé,entusiásticaepersuasiva,expôsàjovemagrandezaqueexistenosacrifícioporoutrem,acalma,asatisfaçãoquesehaurenoexercíciodeumarígidavirtude.Mas,Neithnãopensava,nessemomento,emKeniamun,nemnofuturomarido;elaapenasviao jovempadrequelhe falava, escutando somente a sua voz vibrante e harmoniosa; o sentido de suas palavrasdeslizava-lhenosouvidossemdeixartraços;enlevadapelopresenteinstante,opassadoeoporvirhaviamesmaecidoparaela.

Sempreentretidosno falar,ambosseaproximaramdaportadesaída,eumraiodesol,queveiocomoquebrincarnasoleira,fezestremeceromoçosacerdote.

—Raseergue;devodizerasprimeirasoraçõesdamanhã.Tu,nobreNeith,regressaaoteular,oraecumpreoteudever.Adivindadetefortalecerá.Atéàvista.

Saudando-acomumacenodemão,desapareceunasombra.Neithbaixouovéuechamouavelha serva. Como que em sonho, subiu para a liteira. Faces escaldantes, coração batendodesordenado,todasassuasfaculdadesmentaisconcentravam-senestepensamento:

—Ondevieuestehomemestranhoesedutor;ondeequandotornareiavê-lo?Oh!seelemeamasse!—exclamou,involuntariamente.

Intensocalorsubiu-lheàfronte,eolhouparaaservacomumolhardevergonhaesobressalto;mas, a boa velhanada compreendera, nem se aperceberade coisa alguma.De resto, quanto suasenhorazinhaadoradafizesseeraperfeitoaosolhosdaexcelenteBeki,eacimadetodacrítica.Deregressoaopalácio,Neithafastoutodosefoiparaoleito.Queriasonharplenamente.

E,dessediaemdiante,umnovovivercomeçouparaajovem:suaraivaparacomHartatefeassimoamoraKeniamunestavam,umaeoutro,encobertos.Indiferenteatudoquantoarodeava,absorvia-seemquimerassemfim,vivendonummundodefantasia,cujocentroeobjetoúnicoeraomoçosacerdotedotemplodeHator.Nemporisso,emsuaingenuidade,Neithseaperceberadequeviolento afeto lhe subjugara o coração, e, de boa-fé, continuava a deplorar a fatalidade que aseparavadeKeniamun.

Satatiaobservavadesconfiadamente,sempoderatinarcomacausadessainusitadamudança,dessaamávelindiferençaquevierasubstituiroscaprichos,osacessosdecóleradaversátilNeith.

Certamanhã, quando se ausentaraSatati, para fazerumadessasdeslouváveis visitas, ondecolhiaosmexericosdacidade,aliteiradeRoantchegouaopaláciodePair.

Desdediasantes,ajovemviúvaestavanoivadeChnumhotep,graçasàengenhosaintervençãodeKeniamun.Ochefedasguardasnãoperdera tempo:carregandoumacorbelhadasmais lindasflores, fora informar-se da saúde de Roant, e agradavelmente recebido. A viuvinha dedicara-se,nessaprimeiravisita,a fazeracomparaçãoentreMenaeo seusuperiormilitar,e, contra todaaexpectativa, o resultado pendera para o lado do chefe das guardas. Os traços característicos, ogarbomarcial,oolharfogosoeenérgicodeChnumhotepaelapareceraminfinitamentesuperioresàbelezaefeminadaeaosolhosarrogantesenãomenossorrateirosdeMena.Poroutrolado,afortunadojovemcomandanteigualava-seàsua,eahierarquiaasseguravabrilhanteposiçãonacorte.

—Decididamente, eu estava louca e cega— pensava Roant, dirigindo ao seu adorador umsorrisodosmaisencorajadores.

Graças a tão boas disposições da parte de ambos, uma explicação decisiva não tardou, e ochefe das guardas chegou ao ápice dos seus votos de amor. Depois do beijo de noiva, Roantconfessou ao futuro esposo que Mena muito a atormentara com os seus caprichos e ciúmes,desconfiadodarivalidadedoseuchefe,eque,nãoousandodirigir-seaele,a fizeravítimadasuaraiva,perseguindo-acomsuspeitasepretensões.Alémdisso,comprometera-acomgabolices.Parapunir todas essas açõesmás, desejava ela, por sua vez, fazer-lhe afronta pública, deixando-o nailusãodequeelaoamava,esomentenobanquetedeclararonomedoescolhidodoseucoração.Assim, rogou ao noivo guardar segredo absoluto até a data da festa. O bom Chnumhotep,sinceramenteenamorado,aquiesceuatudo,eessetestemunhodeadoração,acondescendênciaaosseuspropósitos,contrastandotãoagradavelmentecomopesadojugodoamordeMena,encheramdesinceroagradecimentoocoraçãodeRoantparacomofuturoesposo.

Em sua felicidade, ela teve amaior e afetuosa piedade por Neith, a infortunada vítima darapacidade do irmão e de Pair, e resolveu ligar-se a ela, no intuito de facilitar à jovem avistar

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Keniamunetrocarpalavrasdeafetocomohomemdoqualaseparavamtãoindignamente.

Emconsequênciadetaisprojetos,RoantforapessoalmenteàcasadePairconvidarafamíliapara o primeiro festim que celebrava depois da morte do primeiro marido. Para adormecerdefinitivamentequalquerdesconfiançaporpartedeMenaefortalecersuasesperanças,elaenviara-lhe, nessa manhã, tabuinhas que apresentavam um convite assim redigido: “Tendo-me decididorealizarafestadehátantodesejadapormeusamigos,abandonooluto,pararenasceremumavidanova.Nãofaltarás,euoespero,aessareunião,econtoqueestarásameulado.”

Como se a sorte quisesse favorecer seus intuitos, encontrouNeith sozinha em casa. SatatisaíraemvisitaeMenaePairparaassuasobrigaçõesoficiais.Pelaprimeiravez,asduasmoças,quemui pouco se conheciam, puderam palestrar sem embaraços, e as preliminares da viúvaconquistaram prontamente a simpatia de Neith, que, sentindo-se isolada no seu atual estado dealma,desejavaterumaconfidenteamiga.Aconvivênciadosseustornara-seodiosa,desdequandoseconvenceradequeforaporelestorpementesacrificadaàsuarapacidadeegoísta,edeque,poroutrolado,aprudenteeastuciosaSatatiaisolaradeadquiriraamizadedejovensdasuaidade.Aesposa de Pair não pensara na inopinada visita de Roant, e muito menos previra que estreitaamizaderesultariadetalencontro.Apósumahoradeconversação,cadavezmaisanimadaecordial,Roantconvidouajovemirpassarcomelaatardedosegundodia,eNeith,queconsideravaaviúvafuturacunhada,eansiavaporfugiràconvivênciadeSatati,aceitou,comsatisfação;edespediram-secomumbeijofraternal.

A hora convencionada, Neith compareceu ao palácio de Roant, onde foi acolhida a braçosabertos. Depois de ligeira merenda, as duas novéis amigas encaminharam-se ao jardim, einstalaram-seempequenopavilhãodefrenteparaoNilo.Maciçosderosaseacáciasenvolviamafrágilconstrução,mantendoagradávelpenumbraeespargindoodeliciosoaromadasfloresabertasàsfrescasemanaçõesdorio.

—Aquipodemos repousarepalestrar semreservas—disseRoant, atraindoNeithparaumleito de repouso recoberto de almofadas.—Vamos, ergue a cabeça e atira para longe as tristesquimeras,Neith.Sofroaoverumacriaturajovem,bela,dignadeventura,qualtués,sobopesodeaflita tristeza. Abre-me teu coração, pobre criança. Para facilitar tuas confidências, dir-te-ei queconheçoasverdadeirasrazõesdoteucasamentoedoteugenerososacrifício.

—Tusabes,dequemodo?Quemtedisse?—interrogou,comasfacespurpúreas.

—Como e por quem nãome é permitido revelar,mas, podes ficar tranquila, porque o teusegredotambémmeésagrado,eoquetedissefoiparaabrirapossibilidadedeteconsolar,edetefazerexaminarosbonsaspectosdoinevitávelacontecimento.Primeiramente,tutetornasumadasmulheres mais ricas de Tebas; invejar-te-ão o luxo; todas aquelas que pretenderam Hartatefmirrarão de despeito. Tais triunfos têm encantos que apreciarás, quando conheceres melhor asociedade.Alémdisso,teumaridoausentar-se-ámuitasvezes,nãoraroporsemanasinteiras,oqueteproporcionarágrande liberdade.E, então, quem teproibiráde visitar tuas amigas, e, emcasadessasamigas,encontraroteupreferido?SeiqueamasKeniamun,oquemeparecemuitonatural,poiséumhomematraenteeperfeitamentedignodatuaafeição.

Neithouviaenrubescidaeemocionada;profundarugafizera-seentreossupercílios.

—Mas—balbuciouela,emvozincerta—,quediriaHartatef,setalviesseasaber?Eunãolhejureiamore fidelidade,écerto;oconstante temordesersurpreendidaqualum ladrãoé,porém,vergonhoso!E,depois,quedireitopossoterdeamarKeniamun,seelenãopodesermeuesposo?

Aviúvateveumaexpansãoderiso.

—Aindaés“muito” ingênua, infantil,Neith.Depoisdecasada,mudarásdeopinião,e tenhocertezadequeinúmerasvezesvirásvisitar-me,mantendo,semescrúpulo,palestrascomKeniamun.Deresto,dir-te-eiquesóse“deve”amorefidelidadeàqueleescolhidolivremente;umhomemque“tecompra”sómereceteudesprezo.Mas,deixemosissoagora,edize-me:éscapazdeguardarumsegredodeamiga?

— Sim, decerto! Quem julgas que sou? Se me confiares alguma coisa, juro calar,principalmenteanteosmeus,porquenãoosestimo.

—Émelhorassim,emuitoapropósito,poisconcerneaoteuirmão—disseRoant,abraçandoternamente a jovem. — Ouve então: estou noiva de Chnumhotep, mas, antes da festa próxima,ninguémdevesaberdetalnoivado.

Neithtevebruscomovimentodesurpresa.

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—Que dizes!Não éMena o teu escolhido? Compreendo agora por que deve ele ignorar anovidade—ajuntouNeith,comirônicosorriso.

—Sim,euquerofazer-lhepagarsuasarrogânciasetodasasmortificaçõesquemefezsofrercomosseuscaprichoseseuciúme.Nãomeparecemaldadequelheinflijaestaásperalição.

—Tereicuidadoesereimudaqual'umtúmulo;elecolheoquesemeou,oindignoquefezdosmeusesponsaisodiamaishorríveldaminhaexistência!...

EoformosoolhardeNeithteveumaexpressãodesatisfaçãorancorosaecruel,queninguémjulgariapossívelemseuinfantilsemblante.AlegreexclamaçãodeRoantinterrompeuapalestra:

—Reparaquehóspedesagradáveisosdeusesnostrazem:ChnumhotepeKeniamun!

Ergueu-separa saudaros recém-vindos, e emseguidaanimadaconversaçãoestabeleceu-se,paraaqualNeithescassamentecontribuiu.Oraruborizando,oraempalidecendo,elabaixavaoolharemostravaestarpoucoàvontade.Roant,queaobservava,levantou-seefezsinalaonoivoparaqueaacompanhasse.

—Desejotuaopinião,Chnumhotep,arespeitodedetalhesnasaladofestim.Vem!Evós,meuscaros, enquanto isso, fazei um passeio no jardim. Keniamun, tu serás responsável se a minhaamiguinhaentediar-se!

Saudando-osamistosamente,ausentou-secomochefedasguardas,eKeniamunnãoesperourepetiçãodoconvite;pegandoNeithpelamão,levou-aparaojardim.Ali,asós,sobassombrasdeumaaléiacopada,ooficialenlaçoucomobraçootalheesbeltodajovemelheimprimiunoslábiosapaixonadobeijo.

—Neith,minhabem-amada, tuapalideze tua tristezadizem,maisdoquepalavras, quantosofres com a nossa separação. Apesar de tudo, sou ditoso por saber que não foi infidelidade docoração,esimabnegadosacrifícioomóveldatuaconduta;euteamotantoquantoteadmiro,enãorenunciareiati,apesarmesmodoteumatrimôniocomHartatef.Elemerouboutuamãocomumavilintriga,mas,oteucoraçãomeficou.Repetequemeamas,Neith;nãorecusesessebálsamoaomeuulceradocoração.

Ajovembaixouacabeça.Équeentreambosvieraerigir-seopálidoebelosemblante,deolhossonhadores,domoçosacerdotedeHator.Mas,repelindoatentadoravisão,eladisserapidamente:

—Semdúvida,todososmeussentimentostepertencem.Queoutropoderiaeuamar?

Esforçando-seporseralegreedespreocupada,Neithprosseguiuopasseio.Elapróprianãosecompreendia,eterminouconvencendo-sedequeoseuestranhoestadodealmaeraprovenientedoamorcontrariado,equeacompanhiadeKeniamunrestabelecer-lhe-iaoequilíbrio.Abandonou-se,pois,semrestrições,aoencantodaconversação;escutou,comcertasatisfaçãodeamorpróprio,osprotestos apaixonados e os projetos de futuro do jovem oficial; o pensamento de pagar cominfidelidadesaperfídiadeHartatefnãolhepareceutãorepelente,e,quandoreencontraramRoant,Neithhaviarecuperadosuaalacridadeeassaudáveiscores.

Afinal, chegou o dia da festa em casa de Roant, e desde muito cedoMena cuidou da sua“toilette” comespecialmeticulosidade.Não lhepassoupelamentequalquer remota suposiçãodequeaviúvahouvessemudadodeplanosaseurespeito.Nessapresunção,acreditou-seirresistível,ehaviamesmo,atéentão,hesitadoemligar-sedefinitivamenteaela,naesperançadedepararmelhorpartido. A beleza e a riqueza de Roant haviam-no agora decidido, e vestia-se com todo o luxoexigível ao herói da festa. Por ummomento, tivera idéia de se fazer amuado e faltar ao festim,punindoassimaviúvaporteridoinutilmenteporduasvezesprocurá-laemcasa.Daprimeiravez,disseram-lhequeelaforaàcidadeparacompras;dasegunda,queelaforaàcidadedosmortos,paraoferecersacrifíciossobreasepulturadofinadomarido.(Queteriaditoele,sesoubesseque,aoserassim despedido, a sua pretendida noiva escarnecia dele, tendo ao lado Chnumhotep?) Mena,porém, não podia prever semelhante traição, e, tranquilizado pela lembrança das tabuinhas, doconvitepessoalmente feitoaosseusedasafabilidadesdaviúvaparaNeith, renunciouaqualquerrusgaeenvioumesmofloreseperfumesaRoant.

Antesdesubirparaasliteiras,afamíliaapareceuaospoucos.Primeiro,Satati;depois,Mena.ElaexibiaosoberbocolardoadoporHartatefemtrocadosbonsofícios,eescutou,comagradávelsorrir,asfelicitaçõesexageradasqueMenalhedirigiuporsuabeleza.Neithveioemúltimo,e,aodeparar com o irmão, ricamente trajado e com a fisionomia regozijada de orgulhosa satisfação,apertouoslábioseencobriu,portrásdoleque,umsorrisoplenodemordazironia.

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—Tunãoterásacabeçatãoerguida,aoregresso,penhoradordemúmia!—pensouela,comalegriamalsã,enquantoMenaentravasozinhoparauma liteiradouradaeenfeitadade flores,deestiloparaosnoivos.

QuandoafamíliadePair fezentradanagrandesala,considerávelnúmerodeconvidadosaliestavareunido.

Avistando Chnumhotep por detrás da cadeira de Roant, de pé, conversando animadamentecom a viúva, Mena franziu os supercílios; mas, o sedutor sorriso com que ela acompanhou omovimentode lheestenderamão,aalegriaquepareceu irradiaraovê-lo, restabeleceramneleobomhumor.Aguirlandadepurpúreasfloresqueornavaafrontedaviuvinhabemdepressapassariapara a dele,Mena, e, comamulher, o esplêndidopalácio, as terras, as vinhas, os rebanhos e osescravos passariam também à sua propriedade. Por sua fisionomia triunfante, muitos dosconvidadosacreditaramsereleopreferido,epor issoo felicitaram,ameiavoz,parabénsaceitoscomumajactânciaquenãopermitiadúvidasarespeitodasuavitória.Efetivamente,julgava-seeleno ápice dos seus desejos: a Irmã casada com o rico Hartatef; ele, o esposo de Roant. Quedeslumbrantefuturodeluxo,deprazeres,deprodigalidadesdesenfreadas!

EnquantoMenaseentregavaaessesamenosprojetos,RoantcolocaraseubraçonodeNeitheadistanciaradeHartatef,que,frio,reservadoearrogantequalsemostravasempre,mantivera-se,atéentão,juntodanoiva.

—Tunãoestásdescontente,nãoéverdade?portehaverprivadodacompanhiadoteufuturo—disse a rir. Estou incumbida de te entregar semdemora esta rosa enviadaporKeniamun, quedesejariavê-laemteuscabelosduranteobanquete.

— Ao lado dos diamantes de Hartatef, isso seria muito cômico — objetou Neith comzombeteiro sorriso, prendendo a flor entre os pingentes do rico diadema.Quanto és boa, Roant!Apesardetudo,deploroquenãovenhasserminhairmã.

—Nãolamentescoisaalguma,porquenemsempreoslaçosconsanguíneoscriamaverdadeiraafeição,etubemoexperimentaste.EusouesereituaIrmãpelocoração,edistoeutedareiprovas.Poragora,queroprevenir-tedequefarás,aindahoje,conhecimentocomumIrmãomeu,queviveu,comosabes,emMênfis.DesdeháalgumassemanasretornouaTebas,mas,rarasvezessal.

Nãopode,entretanto,recusarassistiràfestadestedia,eeudesejosituá-loateulado.Tuéstãojovial,tãoespiritual!TratadedistrairealegrarumpoucoessepobreRoma.

—Com certeza, com toda a certeza! Farei todo o possível, principalmente porque issomedispensarádeolharparaafacetaciturnadeHartatef—exclamouNeith.—Mas,porqueteuirmãoétriste?Estáenfermo?

— Não. É muito infeliz no lar! Sua mulher tem um caráter verdadeiramente infernal —respondeu Roant, suspirando. É ciumenta; suspeita-o sempre e espiona-o demaneira revoltante.Semembargodo seu excelente caráter,Roma está fatigado,moído por essas cenas e escândalosperpétuos,eseNoferuraestivessepresenteeunãomearriscariaafazê-losentar-sejuntodomaislindorostodeTebas.Felizmente,amaldosamulherestáadoentadaenãopôdesair.Mas...silêncio;ei-lo.

Neith voltou o rosto para a direção designada, e seu coração cessou de pulsar: no homemvestidodebrancoqueseencaminhavaparaela,acabavadereconheceroidealdosseussonhos,omoço sacerdote de Hator. Ele era, pois, o irmão de sua amiga, o esposo dessa Noferura, cujorepugnanteretratoacabaradeescutar.UmatempestadedepensamentostumultuososturbilhonounoespíritodeNeith;ouviaapenasaspalavrasdeRoant,fazendoaapresentaçãodorecém-vindo,ealgumas frases pronunciadas pelo padre, que deixou de aludir sequer ao primeiro encontro deambosnotemplo.

Oanúnciodorepastoqueestavaàmesaveiointerrompertodasasconversações,eamultidãodos convivas encaminhou-se para a sala da festa, onde Mena logo se achegou àquela queconsideravasuanoiva.Semmesmosolicitardelicadapermissão, instalou-se juntodela,eviu,comdesagradávelpasmo,Chnumhotepassenhorear-sedacadeiraaooutroladodeRoant.Sombreou-se-lheorosto,mas,afatuidadefezdesapareceroespanto.

—Éematençãoamimqueelaassimdistingueomeuchefe,eparaquenãomeguarderancorpelaminhavitória—pensouele,mergulhandonasdelíciasdarefeição.

Keniamun, sentado defronte a Neith, observava com surpresa seu aspecto preocupado edistraído.ElenãoimaginavaqueNeithfaziaosmaioresesforçosporparecercalma,equeosmais

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estranhossentimentos,entreosquaispredominavaumarepugnânciaciumentacontraaabominávelNoferura,tornavam-nadesinteressadaportodooambiente.

—Ela terá tidoalgumacenadesagradávelcomessedemôniodoHartatef—pensoueleporfim.Depois,concentrouaatençãoparaacenaquesedeviadardeummomentoparaoutro.

Aanimaçãoda festaatingiraseucúmulo,quandoRoantelevousua taçaepronunciouestaspalavras:

—Meuscarosconvidadoseamigos,aproveitoestareuniãoparavosdarconhecimentodeumacircunstânciaqueencheminhaalmadealegriaepõefimaolutoque,durantemaisdevinteequatromeses, cobria de sombras esta casa. Tendo rendido ao meu esposo, tornado Osíris, todas asreverênciasmerecidas;tendohonradosuamemóriaperanteaposteridade,pordádivasesacrifíciosdignosdesuaclasseeméritos,que,espero, rejubilarãosuaalmanamansãodos Imortais,decidicasarsegundavez,e,porestesinal,euvosapontooesposodeminhaescolha.

Ergueu-see retiroudacabeçaaguirlanda.Mena jásepreparava,comamável sorriso,parainclinarafronteelevantarataça,quandoRoant,voltando-lhecostassubitamente,pousouasfloressobreafrontedeChnumhotep,queigualmenteseergueuepegou-lheamão.

—Eisaqui—acrescentouela—aquelequeamo,evosapresentopormeufuturoconsorte.Emseunomeenomeu, a todos convido, caros amigos aqui reunidos, para, dentrode três semanas,festejaremnossomatrimônio.

Osilêncioeaestupefaçãoseguiram-seàspalavrasdeRoant.Todoshaviampensadoemoutronome, e aqueles convivas que tinhamvistoMena chegar triunfalmentecom o cortejo de noivadoestavamconfiantesnassuassuposições.Apesardisso,sendoChnumhotepmuitomaisestimadonasociedade do que o rival repelido, a vitória excitou geral satisfação, e aclamações,mescladas deparabéns, ecoaram em honra dos futuros nubentes. Com alegria malsã, Neith e Keniamunestudavam o semblante desconcertado e aparvalhado deMena, que, boca aberta, olhos parados,pareciaduvidardosseusprópriosouvidos.

—Ah!birbanteestúpidoebrutal,saldeiagoraosteusultrajesdodiadenoivadodeNeith!—pensouKeniamun,permutandocomajovemumolhardesanhasatisfeita.

Mena, entretanto, estava longe de possuir o sangue-frio e o tato que lhe teriampoupado ametadedosolhareszombeteirosedoscolóquiosaceradosdasmás-línguas.Tãologorecebeuosensodefalareagir,ergueu-se,entornouataçaerepeliuacadeiracomtalviolência,queelaroloucomestrépitoatéaomeiodasala,e,voltandocostasatodos,saiu,descoradodefúria.Irritadocomtalprocedimento,ochefedasguardasquisprecipitar-sesobreMena,mas,Roant,pegando-lheobraço,disse,emvozbastantealtaparaqueopróprioMenaouvisse:

—Rogo-te,Chnumhotep,deixa-opartiremeditarnacruel liçãoque lheacabodedar,equelheensinará, talvez, a sermaisprudenteno futuroemenosenfatuadode simesmo.Quantoa ti,creioqueésbastantefelizparaquetevinguesdeumimbecil.

Uma explosão de risadas acolheu essas palavras. Chnumhotep sentou-se de novo, bemhumorado, enquantoMena se retirava, espumando de raiva, na liteira ornada de flores. A festaretomouseucursocomalegriamaiorainda.

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VI

OPRÍNCIPEHITENOÀmargemdoNilo,naparteonde terminavamentãoosextremos terrenoseconstruçõesdo

templodeAmon,erguia-se,sobreumaescarpaartificial,pequenopaláciorodeadodevastosjardins.Adespeitodesuasdimensõesassazrestritas,eraumaesplêndidahabitação, instaladacomtodooluxodaépoca.Doladodarua,doisgrandesmastros,comaspontasrecobertasdecobreeornadasdebandeirolas,anunciavamaostranseuntesquesetratavadamoradadeumgrão-senhor;doladodorio,vastoterraçoocupavaumapartedafachada.Esteterraço,construídobemàbordadotalude,comunicavacomorioporumaescadadepedra,daqualosúltimosdegrausmergulhavamnaáguaeaopédaqualestavaamarradaeleganteepequenabarcadeproadourada;aoaltodaescada,duasesfingesdegranito rosa semelhavamsentinelasvigilandoadescida.Providodeumabalaustrada,estavaadornadodeplantasrarasearbustosdegrandesdimensões,plantadosemselhasdeterraedemadeira,formandopequenosbosquetessombreadoseodorantes.

Àhoraemqueocalordodiacomeçaacederaumagradávelfrescor,àsombradeumdessesbosquetes,umhomem,moçodevinteequatroavinteecincodeidade,estavaestiradonumleitoderepouso,emposiçãopreguiçosaedescuidada.Aoalcancedamão,haviapequenamesadealabastro,compésdebronzetrabalhado,sobreaqualestavamumaânforacomvinho,umataçaeumcestocheiodefrutas.Doisescravos,acocoradosnosextremosdoleitoderepouso,abanavamseusenhorcomgrandes lequesdeplumas.Eraumbelorapaz, franzinoedetalhemédio;seurosto,magroealongado, era mais claro do que o comum nos egípcios, porém animado por grandes olhospenetrantes,encimadospor sobrecenhosnegroseespessos;aboca,decantosdescidos,exprimiaorgulhoedureza,eemseuolharpassavaporvezes(quandonãosejulgavaobservado)algumacoisadefalso,detaciturnoedesorrateiro,quealteravaaharmoniadestesemblanteairoso.Vestiaapenasumlargoaventaldeestofofenício,bordadodeouronafrenteecobrindoosquadris.Sobreotorsonuvia-seumquádruplocolarformadodeplacasdeouroesmaltadas,eum“claft”(espéciedecapuzegípcio)listradodebrancoepúrpura,ornando-lheafrontedeumafaixadepedrarias,recobria-lheacabeça.

OpersonagemqueacabamosdedescrevereraSargon,príncipehiteno,feitoprisioneiroaindameninopeloreiTutmésI,quandodavitoriosacampanhaempreendidanasmargensdoEufrates(12).Orei,seupai,foramortoduranteabatalha,porémalgunsmembrosdafamíliahaviamcaídovivosnasmãosdovencedor,eentreelesSargon,contandoentãodoislustrosdeidade,aproximadamente.Commilharesdeoutrosprisioneiros,omeninoforalevadoparaTebas,mas,abondadedeHatasuohaviadestacadoda turbaedadoposiçãocondignada suaorigemreal.A jovemprincesaexercia,contudo, por sua energia e espírito precoce, a maior influência sobre o genitor, e usara dessaascendência para fazer dar ao pequeno príncipe uma educação real, e para aligeirar a sorte demuitosprisioneiroshitenos,dosquaisalguns foramcolocadosnasuacasapalaciana.Aconstanteproteçãodarainha,dadaaSargon,jamaisforadesmentida:estabelecera,desuaprópriabolsa,umadotaçãodepríncipeedoara-lheopalácioonderesidia.Poroutrolado,subvencionavalargamente,dosseusrecursosparticulares,osprazeresemesmoasfantasiasdomoço,quedesfrutavanacorteexcepcional posição. Sem exercer, é certo, nenhum cargo oficial, aparecia em todas as festas noséquitodarainha,eeraadmitidoaprestarserviçosdehonraqueaetiquetareservavaaospríncipese aliados da casa real, isso apesar do surdo descontentamento despertado por essas distinções,revoltantes e arbitrárias aos olhos dos egípcios, para os quais um prisioneiro cessava de ser umhomem,qualquerquefossesuacategoriaanterior.

(12)FoinestacampanhaqueHatasuconheceuNaromath,decujossecretosamoresnasceuNeith.

Sentia ele a inimizade secreta despertada pela sua situação privilegiada, ou conservava nofundodocoraçãoódioerancorcontraopovovitoriosoedestruidordasuaraça?AverdadeéqueSargon não parecia feliz: sombrio, pouco sociável, não cultivando intimidade com os grandesegípcios,viviaretirado, indiferente,emseupalácio,entretidoemleroucaçar,ouaindaengolfadoemsonhos,durantehoras,noterraço,oretirofavorito.Nessedia,estavaeleestirado,pormaisdeuma hora, com o olhar fixo no rio, contemplando, com intercalado interesse ou indiferença, ascentenas de embarcações de toda espécie que se movimentavam em todos os rumos. Eraverdadeiramente um quadro de animação, variado, bem digno de reter os olhares: por entre aspesadasbarcas,ajoujadasdetodososprodutosdoAlto-Egito,ouencimadasdegaiolasdemadeira,nasquaisbailaemugiaogado,avançandolentamente,eleganteseligeirasembarcaçõescruzavamemtodosossentidos,entretendoincessantecomunicaçãoentreasduasmetadesdacidade.

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Pequeno barco, movido por um remador que se distinguia do conjunto, dirigindo-serapidamenteparaoterraço,atraiulogoaatençãodeSargon,quesoergueuobustoparadistinguirmelhor,pondoamãoacimadosolhosparaatenuaroexcessodeluz:umhomemfardado,tendoàcabeçaumcapacete,estavasentadonobancodobarco.

—Olha!ÉKeniamun,ojovialeamávelrapaz—murmurouele,comumsorriso.Mas,porqueviráemgrandeuniforme?

Precisamentenesseminuto,obarcoacosta,omoçooficialsaltaparaosdegrause,emrápidospassos,chegaaoterraço.

—Venhoemincumbência,príncipeSargon—disse,inclinando-se—,anunciar-teque,dentrodeumahora,anossagloriosarainha (aquemosdeusesconcedamglóriaesaúde!)virárepousarnesteterraçodafadigadasuaexcursão.Mandou-meprevenir-te.

Aoanúnciodorecadoreal,opríncipeerguera-se,paraouvi-lodepé.

—Grandeéomeu júbiloporhavera imortal filhadeRa(13) resolvidohonrarmeuhumildetetocomasuapresença—disseopríncipe,inclinando-seporsuavez..Eondeestáarainha?

(13)Segundoo“direitodivino”daépoca,oFaraóeradescendentedodeus-sol(Ra).

— Inspeciona neste momento as construções do seu futuro túmulo, e acaba de visitar asoficinasondeestãosendoesculpidasasesfingesdestinadasáavenidaqueprecederá“menou”.(14)

(14)Nestearruinadotúmulo,certoexcursionistaviuasInscriçõesreferentesàrainhaHatshepsut,cujamúmiasupõesejaumadasquealiseencontramainda.(Olbued,DiáriodeunviajeaEgtpto,Paris,1928,págs.129-30.)

— Agradecido pela boa notícia, Keniamun, e também pela tua visita, ainda que não sejaespontânea—acrescentouopríncipeapertandoamãodooficial.Tumenegligencias,mas, vindoque foste, sêmil vezes bem-vindo. Senta-te, e conversemos até a chegadada rainha. Permite-meapenasdaralgumasordens.Bateupalmasechamou:Chnum!

Umvelhoescravoapareceupressuroso.

— Faz levar este vinho e estas frutas, e prepara outros refrigerantes. Junto dos arbustosfloridos,estendeesteirasepõeacadeirareal;servosdevemestaratentosaoprimeirochamado.

Depois,sentando-sejuntodovisitante,continuoufalandoalegremente:

—Conversemos, enquanto isso. Conta-me as novidades e os mexericos da cidade. Sei queestásperfeitamenteinformadodetudoqueocorre,enquantoeuestoudesterrado.Dehámuitonãotenhosaídodecasa,eminhaindisposiçãonemmepermitiuassistiràfestadoNilo.

—Oh!Novidadesnão faltam!—disseKeniamun,quese libertaradocapaceteedaespada.Nãosei,noentanto,oquetedistrairá,porquefrequentaspoucaspessoas,eninguémteinteressa,noque,aliás,erras,poisassimteprivasdehorasbemalegresedivertidas.

— Tens razão, mas, que queres tu? Sinto-me pouco à vontade entre todos esses que sãoamigos e compatriotas teus, enquanto “eu” sou para eles um estrangeiro. Apesar de tudo, contasempre;conheçomeiomundoegostodeestaraocorrentedosacontecimentos.MenaafinalsefeznoivodeRoant?ÉverdadequeHartatefdesposaapequenaNeith,sobreaqualcreioalimentavasprojetosiguais?

— Com relação a Roant, há uma soberba história: anteontem, contratou casamento comChnumhotep,eMenarecebeunissoumaliçãoquetãocedonãoseesquecerá.NoqueconcerneaNeith,étudoverdade.Oh!Sargon,sequisesses,poderiastirardomeucoraçãoumpesoimenso,etalvezsalvarnossafelicidade,porqueNeithcorrespondeaomeuamor.

Maliciososorrisoenrugouoslábiosdojovemhiteno.

—Bah!Denovoumamorfataloprimeteucoração?Tuésincorrigível,Keniamun.Podealguémafligir-se por uma bagatela? Segue meu exemplo: ama as mulheres como se ama flores, frutos,vinhos;usa-as,semteprenderesaelas,aessesentespérfidoseversáteis.Nãopossocompreenderque,porsuacausa,alguémpercaosonoeoapetite.

—Expressas-teassim,Sargon,porqueoverdadeiroamoraindanãotocouoteucoração.Mas,atuahorachegarátambém!

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—Épossível,emborapoucoprovável.Eagora,paraquetepossaserútil,precisoestarbeminformado.Narra,pois,acomeçarpeloepisódiodeRoant.

—DevoprincipiarpelahistóriadonoivadodeNeith,doqualodeRoantfoidesdobramento—ponderouKeniamun,inclinando-separaopríncipe.

E, sucintamente, expôs os acontecimentos relativos aos dois noivados, semmesmo omitir oepisódiodamúmiaempenhada.

— Desejas então que exerça influência junto de Hatasu, para deslocar Hartatef e ficaressenhordasituação?—interrogouSargon,sorrindo.

—QueriaunicamentequeinformassesarainhadeestarNeithsendoforçadaadesposarumhomemque lhe é antipático.Nossa soberana sempredemonstrougrandebondadeaNeith, eporissoalibertarátalvezdeodiosolaço,forjadoporumatransaçãovergonhosa.

—Eli te prometo fazer todo o possível para inteirá-la da verdade.Hartatef é homem assazdesagradável,eserialástimaqueNeithcaísseemsuasmãos.Essapequenainspira-meinteresse,eissoporumarazãomuitoextraordinária,adeparecençacomomeufinadoirmão,Naromath.

— Tinhas um irmão, com o qual Neith se parece? — perguntou Keniamun, em cuja alma,astuciosaeintrigante,estranhopensamentohaviasurgido.

—Sim,um irmãoquemorreuduranteoregressodovossoexército.Era filhodeoutramãe,mas,recordo-medeleperfeitamente,e,alémdisso,tenhooseubustoestatuário.Noteiporacasoasemelhança de Neith com ele, no templo, há vinte meses mais ou menos, e essa parecençaimpressionou-me:exatamenteomesmoperfil,osmesmostraços,apenasmaisfinosedelicados.

Gritosquesoavamnaregiãodorioatraíramaatençãodosdoisinterlocutores,epuseramfimàpalestra.Keniamunreafivelouaespadaepôsocapacete,enquantoSargonfaziarápidainspeçãonos preparativos determinados. Em frente da descida, as lajes estavam recobertas de elegantesesteirastrançadas,aocentrodasquaisforacolocadaumacadeira,comespaldaremcobrelavrado,aoaltodeumestradodemadeirapintadadevermelho;sobrepequenamesa,igualmentedecobre,viam-se um açafate cheio dosmais belos frutos, um púcaro de ouro e um copo domesmometaladmiravelmentecinzeladoeincrustadodepedrarias.Tendoconstatadoaperfeitaordemdetudo,opríncipe,seguidodeKeniamun,desceuaescadariaesedetevenoúltimodegrau,aguardandoarealvisita.

NaconfusãodeembarcaçõesquejuncavamoNiloforaabertoobliquamenteumimprovisadocanal,eneste,voandonodorsodaságuas,avançavaextensobarcoimpulsionadoporoitoremeiros.Aproa,bastanteelevada,terminavaporduasserpentesesculpidas,encimadasdeumabutredeasasestendidas.Sobreumbanco,recobertocompeledeleão,estavasentadaHatasu,quecorrespondiacomligeiroacenodemãoàsaclamaçõesdossúditos;portrás,depé,doisoficiais,demachadinhaaoombro; à frente, Semnut; duasmulheres sentadas no fundo do barco.Um instantemais tarde, aembarcação encostou, e Hatasu desceu, respondendo com benevolente sorriso à saudação dopríncipe.Semnuteasmulheres seguirama soberanaao terraço, enquantoKeniamuneosoutrosoficiaissepostavamnosdegraus.

— Venho reprimendar-te, Sargon, por teu excessivo gosto de retiro — disse Hatasu, apóshaver-se instalado na cadeira que lhe fora reservada. Raramente és visto nas grandes festas ecerimônias públicas. Por que foges da sociedade? A alacridade e as distrações são apanágio dajuventude;aosvelhoseaosreisincumbemaspreocupaçõeseolaborincessante.

—Tens razão.Não são preocupações e trabalhos queme impedemde fruir a vida; por teufavor,minhasoberanaebenfeitora,souohomemmaislivredoEgito,ecolhosemhaversemeado;sinto-me, porém, mais feliz quando em devaneios neste terraço. Mas, divina filha de Ra, possopretenderqueaceitesumrefrigerantedasmãosdoteuservidor?

—Dá-meumpoucodevinhoeumadestasapetitosasfrutasquetentamosolhoseopaladar.Tambémeuamoeste terraço, e a vistaquedaqui sedescortina, a animação febril e ruidosaquereinasobreoriosagrado,éa imagemdaminhavidaagitadapelasresponsabilidadesdogoverno.Alémdisto,acidadedosmortoseaaléiadasesfingesqueprecedeomeufuturotúmulolembram-meacalmadasmoradassubterrâneasonderepousareiemOsíris,findososlaboresdaexistência.

ElaaceitouocopoqueSargon,ajoelhado,lheapresentara,eneleumedeceuoslábios,semprefixandoorio,comdistraídoepensativoolhar.

—Eisalialgumasdasminhasboasegipcianasquegostamdefruirafrescura—disseHatasu,

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após momentos de silêncio, designando com a mão uma ornamentada barca onde havia duasmulheres.

— Posso, minha real senhora, identificar as duas passeantes — interveio Semnut. — É aembarcaçãodePair,econduzsemdúvidaNeitheSatati.

—Vêmmuitoapropósito—dissea rainha.Desdeháalgunsdias tencionochamarSatati,aquem tenho algo a dizer, e só os afazeres mo têm impedido. Vou fazê-lo em seguida. Mandemalguémfazeraproximaroseubarco.

Um dos oficiais tomou imediatamente o barquinho de Sargon, e, com algumas vigorosasremadas, aproximou-se da barca de Pair. Satati já havia notado a embarcação real junto daescadaria, e, sem que pudesse explicar omotivo, a ordem de aproximar-se causou-lhe vagomal-estar.

—Avizinha-te,Neith—chamouarainha,saudandocomamãoasduasqueseprosternavam—,esenta-teaíaosmeuspés.Mas,quevejo!Estáspálidaeemagrecida,epareces tristedemaisparaumanoivafeliz.Quetefalta,pequena?

E a rainha deslizou a mão pelos negros e lustrosos cabelos da jovem, que enrubescera ebaixaraoolhar.Hatasunãoinsistiu,eencetouconversaçãocomSemnuteSargon;mas,aotermodequinze minutos, ergueu-se, e, aproximando-se da balaustrada, chamou Neith e disse-lhebondosamente:

—Aquiestamosasós;dize-me,comfranqueza,minhafilha,sefoideplenoagradoaescolhaquefizeste,deHartatef,paraesposo.Tuoamas?

Neithergueuparaarainhaunsolhosobscurecidospelaslágrimaseorostotomadodeardenterubor. Oh! se ela pudesse confiar tudo à sua real protetora, cujo olhar, habitualmente frio ealtanado,desciaparaelacomtantaIndulgentebondade!Mas,podiaelaconfessaraimundacondutadosseus,atrairparaacabeçadePaireMenaadesonraeadesgraça?

—Minhafamíliaodeseja,esemdúvidaissoseráparameubem—balbuciou,emvozabafada.

Hatasucontemplou-acomumlongoeperquiridorolhar.Depois,voltando-se,ordenou:

— Segue-me, Satati, tenho de falar-te, e tu também, Semnut. A ti, Sargon, confio Neith:procuradistraí-laomelhorquepossas.

Hatasu deixou o terraço, e, através de salas desertas, caminhou para um pequeno recintointerior, formando jardim, onde se sentou num banco, entregando-se a pensamentos decertodesagradáveis,porquefundarugaseformouemsuafronte.Apósumsilêncio,quepareceueternoparaSatati,arainhaergueuacabeçae,olhandofirmeeprofundamenteainterlocutora,disse:

—ComoseexplicaquetuePairtenhamousadonoivarNeithcomHartatef,semqueeuparaIssodesse autorização formal?Sabesque essa criança vos foi confiada emmomentobemduro edifícilparamim;mas,nãoesqueçaisqueeuresolvo,pormimmesma,tudoquantolhedizrespeito,equeelanãoéumserdependentedevós,aquempossais influenciartalvezparasatisfazervossosegoísticosdesígnios.

—Minharealsenhora,nóscogitamosapenasdobemdeNeith,eaprometemosaumhomemdoqualSemnutpodecertificarasexcelentesqualidades—tartamudeouSatati,deolhosbaixos.

—SatatiePair falaram-medetalprojeto,eécertoqueaprecioHartatef,ativoe inteligentefuncionário, de Inatacável reputação. Alémdisso, é Imensamente rico, de ilustre origem, nãomeparecendo,portanto,indignodetãoaltaaliança—disseSemnutcalmamente.

—Tudoissoéverdade,eeunãodesejariaofenderumnobreegípcioefielsúdito,opondo-meaesse casamento; mas, era dever de Satati apresentar-me antes a pequena para que eu ainterrogasse previamente. Neith está abatida, empalideceu nestes últimos tempos, e quando ainterpelei sobreseestavasatisfeitacomaescolha,elamedeurespostaevasivaeperturbada.Euqueroquetenhavagarderefletirededesfrutaraindaasualiberdadedecriança.Direi,euprópria,a Hartatef que o matrimônio não será celebrado antes de doze luas. Estás ouvindo minhadeliberação, Satati, e prestarás atenção para que tudo esteja de acordo com a minha vontade.ReceberásumaquantiaparaoenxovaldeNeith.Tu,Semnut,irásprocurar-meamanhãcedo,parareceber minhas ordens concernentes ao dote que lhe concederei, de meus haveres particulares.Agora,podeisretirar-vos,eaguardarquevosreencontreláfora.

Ficandoa sósno terraço,por issoqueosoficiaispoetadosnaescadarianãoospodiamver,

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Sargon e Neith permaneceram por instantes silenciosos, examinando-se reciprocamente. Eles seconheciam de algum tempo, é certo, e tinham-se avistado muitas vezes, mas, quase sempre, notemploounasreuniõesoficiais,ondenãohaviamprestadoatençãoumaooutro,eemcasadePairojovemhitenonãoapareciamaisdeumaouduasvezesporano, istoporquePaireMenalheeramantipáticos. Pela primeira vez, Sargon olhou a jovem com verdadeiro interesse, e achou que erasedutora.Estiveraelecegoapontodenãonotarmelhoraquelapenetrantebeleza,formasesbeltas,quase etéreas, radioso sorriso? Nenhuma das filhas de Tebas jamais lhe causara tão estranhaimpressão;seucoraçãobatiamaiscélere,e,procurandopersuadira jovemdeprovarasfrutasaliexpostas,ele,enquantofalava,absorvia-senacontemplaçãodoslevesegraciososmovimentos,nostraçosmutáveisdeNeith.

—Não,muitoagradecida.Precisamenteantesdesair,eumeservidefrutas,demodoquenãotenhoapetite—disseNeith,cujosnegrosolhosesquadrinhavamcuriosamenteasalacontíguaaoterraço.—Mostra-meantesoteupalácio,porquedehámuitodesejavapercorrê-lo.Dizemqueaquitensacumuladastãobelascoisas!

—Comprazer,emboratemerosodequefiquedesencantada.Vem;tuprópriajulgarás.

Pegando-lheamão,eleaconduziuao interior.Mostrou-lhesoberbacoleçãodearmas,vasosraros, jóiasdiversas, e, porúltimo,umpequeno símio,que sedivertia fazendoasmaisestranhascabriolasemumrecintocheiodearbustosodorantes.

—Oh! que belas flores— exclamouNeith, avistando uma cesta cheia de rosas e de outrasfloresraras.

—Queres tecerumaguirlandaparaornar teus cabelos?—perguntouSargon, aproximandogalantementeumacadeira.

—Oh!semdúvida,seopermites—agradeceuNeith,querecobraraseubrilhantehumor.

Epassouaentreteceraguirlandaparaaqualopríncipeescolhiaasflores,deixando-secadavezmaissubjugarpelofascínioestranhoqueajovemexerciasobreele.

—Porquemeolhascomtantaatenção?—interrogoubruscamenteamoça,que,erguendoacabeça,encontraraoardenteolhardeSargon.

—É que constato, com surpresa sempre crescente, a tua pasmosa semelhança com omeuirmão,Naromath!

—Ondeestáoteuirmão?Jamaisouvifalarnele—respondeuajovem,admirada.

Sargonsuspiroutristemente.

—Morreu.Perigosamenteferidonodecursodeumagrandebatalha,caiuvivoempoderdosegípcios. Impressionado sem dúvida pela sua bravura, Tutmés Imandou cuidá-lo e o tratou comesguardo,e,quandoalgunsmesesdepoisfoitomadadeassaltoacidadeaondemeupaimeenviara,juntamentecomminhamãe,arainhaHatasuobtevefosseeucolocadojuntodele,sobaguardadeSemnut,quevelava igualmentepormim.Poucodepois,duranteosítiodenossaderradeirapraçaforte, meu irmão caiu enfermo, acometido de febremaligna, segundo se disse, e morreu.Muitochoreiporele.

—Eécomesseirmãoquemeachasparecida?—indagouNeith,curiosamente.

—Sim,esedesejasconvencer-tepelosteusprópriosolhos,vemaomeuaposento,ondetenhoumbustodele,mandadoesculturarporSemnut,poucoantesdodesenlacemortal.

Neithcolocouvivamenteaguirlandasobreacabeça,e,desembaraçando-sedocesto,seguiuSargonapequenogabinetecontíguoaoquartodedormir.Lá,rodeadodearbustosemflor,estava,encimandoumpedestaldegranito,aestátua,quasedetamanhonatural,deumjovemsentado,comamachadinhanamão,cobertocomumcapacetepontudo,deestranhoformato.OrostodeNeitherarealmenteareprodução,emminiatura,dostraçosdaestátua.

—QuebeloerateuIrmão,equebondadesedesenhanoseusemblante!—exclamouNeith,entusiasmada.Creioque lheteriaamor,sevivesseeleainda;desejariaabraçá-lo,aessegrandeenobreguerreiro—acrescentou,tentandoerguer-senapontadospezinhos,sematingir,porém,seupropósito,poralcançarapenasosjoelhosdaescultura.

—Espera,eutevouajudar—disseSargon,arir.

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Esuspendeuajovem,aproximando-adacabeçadaestátua.Rindoelatambém,comesserisosadioeargentinoquelheerapeculiar,Neithapoiouasmãosnasespáduasdoguerreiroepousouoscarminadoslábiosnabocadealabastro.Nemum,nemoutrodosdoisreparouqueaguarda-portadelã,quemascaravaaentradadelongoeescurocorredor,foraerguidaeHatasusurgiranopórtico,Àvista da estranha cena, deteve-se, e indefinível expressão de amor e de melancolia velou porinstantesseustraçosseverosearrogantes.

—Quefazeisaqui?—indagou,dominando-seimediatamente.

Aosommetálicodavoz,Sargonvoltou-sebruscamente,comvisívelconstrangimento,erepôsNeithnochão.

—Neith—respondeuele—quisporforçaabraçarobustodeNaromath,quelheagradouaopontodeconfessarquelheconsagrariaamor,sevivofosse.Eporquenãopudessealcançaraalturadaboca,euaergui.

Um sorriso grave e benevolente iluminou a fisionomiada rainha, e seu olhar concentrou-secomforça,poralgunssegundos,norostodaescultura.Depois,atraindoparasiajovem,beijou-anafronte.Felizeconfusadetalhonraria,Neithdeixou-secairdejoelhosepremiuoslábiosnamãodasuaprotetora,queafezlevantar-secombondosogesto.

—Teucoraçãofoibeminspirado,minhafilha;amaeadmirasempreaqueledequemoacasotedeuos traços, pois foi umherói tãobravoquantogeneroso.Mas, voltemospara juntodomeuséquito,porquenãopossodemorar-memaistempo.Orei,enfermo,exigemeuscuidados.

Seguidadocasaldejovens,voltouaoterraço,e,apósbenevolentesdespedidas,reembarcou.

Quandoosvisitantesdesapareceramnabruma,Satatisuspirou,visivelmentealiviada,edisseque também precisava voltar a casa, onde haveria inquietação pela prolongada ausência.Despedindo-se de Sargon, Neith retirou dos cabelos a guirlanda, e pediu fosse colocada sobre afrontedeNaromath,pedidoqueopríncipe,risonho,prometeucumprir.

Mas, ao ficar sozinho, deixou-se cair no leito de repouso, abandonando-se a um caudal depensamentostumultuosos.AlembrançadeNeithnãoodeixara;asedutoraimagemreverberava-seanteseuespírito,fascinando-ocadavezmais,tornando-seaumentativamentedesejada.Umasúbitaresoluçãoraiouemseuviolentocoração.

—EunãoacedereiaHartatef,nemaKeniamun.Éamimquedevepertencer—murmuroudeolhoscintilantes—eHatasunãomanegará,porquemaisdeumavezdissequedesejavaaminhafelicidade. Apenas, preciso inventar alguma coisa para aniquilar Hartatef ou torná-la impossívelpara ele, e isso por intermédio de Keniamun, que imaginará estar trabalhando em seu própriobenefício.Amanhãmandareiemsuaprocura.Quantoàmúmiaempenhada,silenciareiparacomarainha,atéquechegueaoportunidadededesmascararMenaePair.

Namanhãseguinte,Sargonenviou tabuinhasaKeniamun,convidando-oavir falar-lhe, semdemora, sobre o assunto que havia sido tratado entre ambos;mas, o oficial, estando de serviço,somente no outro dia ao da visita real pôde apresentar-se no palácio do príncipe hiteno. Sargonrecebeu-ocomsimuladabenevolência,porque, interiormente, jádetestavaKeniamun,homemqueousava amar Neith e se considerava retribuído. Surdo ciúme estrincava o coração do príncipe.Quandoooficialseinstaloueosservossaíramdorecinto,Sargon,inclinadoparaovisitante,disse:

— Anteontem mesmo, pude cumprir minha promessa de falar a Hatasu; mas, com grandepesar meu, respondeu-me ser impossível, sem razão plausível, ofender um alto funcionário, umhomem geralmente acatado, opondo-se a essematrimônio. Neith não confessou coisa alguma daviolênciaexercidasobreela,emboraarainhaatenhainterrogadodiretamente.Vergonha,piedade,outemor?Elasilenciou,eSuaMajestadeteráconcluídodissoqueahistóriadamúmiabempodesercalúniaforjicadapelosinimigosdeMenaedeHartatef,eeste,querendosacrificarumafortunapararesgatarahonradeumantepassado,revela-seperfeitamentelouvávelegeneroso.“Somenteprovasirrecusáveis de qualquer des.-lealdade, acrescentou ela, poderãodecidir-me a recusar-lheNeith.”Assim, pois, meu caro Keniamun, se desejas atingir teus fins — terminou Sargon, com afetadaindiferença—éindispensáveldescobriresnopassadoounavidaprivadaatualdeHartatefalgumavilania,ouentãoimaginaalgoqueoesmagueearruínenoconceitodarainha.

—Euteagradeço,príncipe,ograndeserviçoquenosprestaste,equejáproduziuseusfrutos,conformeoprovacertanotíciaquemedeuChnumhotepestamanhã.Ontem,àtarde,Hartateffoichamado pela rainha, que lhe disse ter resolvido uma espera de doze luas para realização docasamento.Graçasàtuagenerosaproteção,temosganhotempo,enãoduvidodequeencontrareiqualquercircunstânciacomprometedoraparaHartatef,poisoseupapelnapenhoradamúmiame

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parece suspeito, e não é em vão que ele mantém relações com Smenkara, o mais rapace dosusuráriosdeTebas,ecomarespectivamulher,Hanofer,chacaldesaias,dequeméamante.

—Euteauguroplenoêxito,erogomeconservesaocorrentedastuasdescobertas.Hartatefmeéantipático,por seuestúpidoorgulho,eéverdadeiramenteextraordinárioque tãosoberboericopersonagementretenharelaçõescomumusurárioeumaalcoviteira.

Apósaretiradadooficial,Sargonreclinou-senoleitoderepousoemurmurou,comsatisfeitosorriso:

—Tudomarchaàsmaravilhas.Bempronto,Hartatef, tereipagoa insolênciademe fazeressentirque,ateusolhos,souapenasumprisioneiro injustamentearrancadoàescravidão!Eagorairei,qualquerdia,visitarPair.

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VII

ABRACROReentrandoemcasa,Keniamunenclausurou-se,proibindoaquemquerquefosseperturbá-lo.

Pensou seriamente no que lhe havia dito Sargon: era preciso destruir Hartatef, e isso o maisdepressa possível, porque o desejo de desposar Neith havia aumentado consideravelmente nocoraçãodooficial,desdequandosouberadaparecençadajovemcomofalecidopríncipeNaromath.Qualumclarão, tombaraemsuaalmaastuciosaa suspeitadeque talvezumsecreto laço ligasseNeithàsuarealprotetora.Setalsuposiçãofosseverdadeira,aquelequedesposasseNeithpoderiaatingiropináculodashonrariaseriquezas,perspectivadeverastentadoraparaumhomempobreeávido de gozos. Mas, como desembaraçar-se de Hartatef, prontamente, de maneira decisiva?Absorvido, rosto congestionado, percorria o aposento a passos impacientes, quando,inopinadamente,bateunatestaeemseusolhosfulgurouumraiodeesperançaedetriunfo:

— Por que não me ocorreu desde logo lembrar-me de Abracro? —murmurou ele. — Essapoderosamagaajudar-me-ácomumremédioouconselho.

Transbordantedeimpaciência,Keniamunresolveunãoadiardeumahorasequersuavisitaàcélebrefeiticeira,ledorade“buena-dicha”edeitadoradesorte,queresidia,nosconfinsdeTebas,numprédioisolado,masdegrandefrequênciaporpartedemulherescuriosasdoporvir,demaridosciumentosenamoradosaflitos.Tendoreunidoemelegantecaixetaalgunsobjetosdevalor,ooficialfezatrelarseucarroeseguiu,acompanhadodevelhoefielescravo,aobairrodistanteondemoravaAbracro. Antes de imergir no dédalo de ruas sujas e estreitas que conduziam à habitação dafeiticeira, Keniamun desceu, recomendou ao servo que o aguardasse ali e prosseguiu o caminhopedestremente.

Depois de vinte minutos de marcha, atingiu pequena praça deserta, circundada de casasestragadas.De umdos lados, havia extensomuro, alto, por trás do qual se divisavampalmeiras,acácias e sicômoros de grande jardim; pequena porta, com um disco de metal que servia parachamar,davaacessoao interior.Keniamunpegouomartelinhoqueencimavaocírculometálicoedeucomelediscretogolpe.Conheciaosusosdacasa,poisnãoeraaprimeiravezquerecorriaaospréstimosdeAbracro.Aderradeiravibraçãodobronzenãoseextinguiraainda,eaportaeraaberta.Ovisitantepenetrouemsombriaaléiaquelevavaapequenaconstruçãoquaseescondidanaespessafolhagem.

—Bomdia,Hapi;tuapatroaestávisível?—indagouKeniamun,dandoum“aneldeprata”aoanãocorcundaquefechavacuidadosamenteaporta.

—Sim,meusenhor,apenasterásdeaguardarumpouco,porqueelaestáatendendoaoutroconsulente;mas,segue-me;euteavisareiquandolhepossasfalar.

E conduziu o oficial a pequeno gabinete próximo da entrada, retirando-se logo. Keniamun,ficandosó,refletiuaindaumavezsobreaconversaqueiaterequantoàmelhormaneiradeobteroquedesejava.Conseguiriaatrairàsuacausaaestranhaemalafamadamulher,cujoespíritoastutoeinventivo tantoconhecia?Apesardo renomequeadquiriraemTebas,nadadepositivo se sabiaarespeitodaorigemdeAbracro,quesurgiranaCapitalpoucodepoisdoretornotriunfaldeTutmésIdasuacampanhanasmargensdoEufrates,epessoasbeminformadassuspeitavamfosseelaumaprisioneirahitena, liberadagraçasàproteçãodeHatasu,cujapredileçãopor todosessesmíserosvencidosconstituíainesgotávelorigemparaaIndignaçãodosbravospatriotasegípcios.

Narrava-se, por fato verdadeiro, que uma prediçãomaravilhosa, feita por Abracro à jovemrainha,trouxera-lheadádivadoprédioondemoravaemaisahonrariadeserainda,detemposemtempos,chamadaaopalácio.Aclientelada feiticeiraeraenorme,devidoaosdonsde talentoqueacumulava, pois, além de predizer o futuro, deitar sortes e compor filtros infalíveis, possuíamisteriosos conhecimentos de medicina, com os quais operava milagres em casos nos quais aciênciaoficialsedeclaravaImpotente.

As reflexões de Keniamun foram interrompidas pelo gebo Hapi, que veio anunciar estarAbracroàsuadisposição,e,uminstantemaistarde,ocorcundaergueuumacortinadecouroparafranquearaooficialoingressonosantuáriodafeiticeira.

Era um grande aposento, quase escuro, pois uma lâmpada fumarenta postada no meio dorecinto, numa pétrea mesa, espalhava baça e tremeluzente claridade. Próxima de tal mesa de

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granito,estavasentadavelhuscamulher,vestindotúnicabranca,cabeçacobertacomumcapacetede listrasmulticoloridas,pordebaixodoqualalgumasencanecidasmechasdecabelopendiamnatesta.Orosto,magroeanguloso,eradepalidezamarelentaeemseusolhos,pardosepenetrantes,reluzia um misto de manha, crueldade e presunção refreada. Sobre os joelhos da adivinhadora,dormia, roncandoruidosamente,umgatopreto,parecendodeébano;umsegundobichano, ruivo,estavainstaladonoespaldardacadeira.

—Saúdo-te, sábiaAbracro!—disseKeniamun, aproximando-se vivamente—epeçoaceitesestasbagatelasquetetrouxeemofertadeboas-vindas.

Amulher, indicando-lhe comamãouma cadeira, e abrindo a caixeta, examinou comperitoolharopesadobracelete,ofrascoincrustado,cheiodepreciosaessência,eoamuletoornadocomumrubisuspensoemfinacorrentedeouro.Satisfeitosorrisoalegrou-lheorosto.

—Agradecida,rapaz;tuaatençãomedeleita,porquedehámuitodesejavaumamuletoigualaeste. Mas, dize o que te traz aqui: sê franco e não temas coisa alguma. Qualquer que seja tuaaflição,avelhaAbracrosaberáremediá-la.

Keniamunnarrousucintamenteoassuntoqueolevaraali,eprometeufartaretribuição,seelaencontrasseummeiodedesconsiderarHartatefesepará-lodeNeith.AonomedeHartatef,avelha,queescutaraatentamente,teveumrisinhoseco.

—Sabestu,Keniamun,quemeraovisitantequeteantecedeu?Hartatef,queexigiaumfiltro,parafazer-seamarporNeith.

—Etulhodeste?—exclamouKeniamun,comoquesaltandodacadeira.

—Não,porquenãotenhooseusangueeodapequenaparamisturar.Mas,depoisfalaremosnisso. Senta-te de novo, e escuta. Tenho queixas contra Hartatef, que, apesar da sua riqueza, éavarento e só se deixa rapinar pela miserável amásia, Hanofer, essa velha presunçosa, feroz nociúme, que o espiona, e que lhe tomou um colar a mim destinado. Rouba-me clientes, ousandovangloriar-se de que conhece melhor do que eu o futuro e os segredos da Natureza. Eu lhesrevidarei,aambos,eoperdidoaminhasmãosretornará—acrescentou,crispandoospunhos.—Agora,antesdetedarmeusconselhos,deixa-me,Keniamun,predizeroporvir,porqueaslinhasdatuafrontepressagiamumaexistênciamovimentadaeinteressante.

Aindaquefervilhandointeriormentedeimpaciência,ojovemoficialapressou-seemaquiescer,comgratidão.

Abracro,então,acendeucarvões sobreuma trípode,quecolocouemcimadamesa.Depois,retiroudeescondidonicho,ocultoporumacortina,umcopocheiodeturvolíquidoeumalatacomcertopó,doqualdeitoumuitaspitadasnofogo.Emseguida,bebeunocopoefezKeniamunbebertambém alguns goles. Pegou-lhe a mão e imobilizou-se. Decorridos alguns minutos de silêncio,interrompidoapenaspelocrepitardoscarvõesacesos,avelha,quesecurvaraparaotripé,retesouocorpo,quepareciafrioerígido,tendoosolhosdesmedidamenteabertos,parados,semqualquerexpressão. Com um gesto maquinai, pegou tabuinhas, e nelas escreveu com extraordináriaceleridade. O ruído destas, ao caírem no solo, fez cessar o torpor. Apanhando-as, leu o queescrevera,e,depois,meneandoacabeça,dissecomvisívelestranheza:

—Coisas bem singulares foram aqui reveladas. Em primeiro lugar, conseguiremos destruirHartatef;apesardisso,nãodesposarásamulherqueamas;aquelequedeixaste,antesdeviresaqui,seráseumarido.Tuteverás,emseguida,complicadoemformidávelintrigasangrenta,commuitasvítimas,daqualseráeixoumpoderososobrecujafronteserefleteasombrada“uraeus”(16),etupróprio serás o propulsor da roda que deve arrasar esse gigante. Se permaneceresinquebrantavelmentefielaonossograndeFaraóHatasu,escaparásatodososperigos,eterminaráscasandocomumalindaericamulher.

(16)URAEUS-Serpentenaja,temidoofídiovenenosíssimo,usado,emreproduçãoemourosobreafrentedodiademareal,comosendosímbolosagradodotemorourespeitoquedevemterossúditosdoseusoberano.

Penosa impressão comprimiu o coração de Keniamun. O pensamento de que procurariamatraí-loaopartidodoexiladoTutméscruzou-lhepelamente,qualrelâmpago.Mas,seriacrívelqueSargondesposariaNeith?

—Eu te agradeço, boa Abracro,mas tu deves ver que aminha fidelidade à nossa gloriosarainha terminará com aminha vida. E, agora, dize de quemodo destruirei Hartatef e quanto teficareidevendo,depoisdeterissoconseguido.

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—Nãoteestabeleçopreço,porqueésgeneroso,etumepagarássegundoosmeusserviços.Agora,ouve: já tedissequeelemepediuum filtrodeamor,equeelenãopossuias substânciasnecessárias para fabricar o filtro.Mas, existe um sangue que pode substituir o deNeith: é o docarneiro sagrado do templo de Amon. SeHartatef, com a própriamão,matar o animal sagrado,arrancar-lheocoraçãoetrouxerumvasocheiodessesangue,teráoamordeNeith.

— Ele jamais praticará tão espantoso sacrilégio — balbuciou Keniamun, sacudido por umarrepiodesupersticiosotemor.

—Amimcabeimpeli-loaarriscar-se.Tudevesvigiá-lo,daroalarmenomomentodecisivoesurpreendê-loemflagrante.

—Isso é fácil, porque tenho um primo entre os sacerdotes guardiães do carneiro sagrado.Dize-mesomenteahora,evelareiparaquesejaapanhado.

—Advertir-te-ei,quandofortempo.Nãoempreendas,noentanto,coisaalgumaantesdetal,epromete-me ainda isto: não darás o alarme antes de o crime estar consumado; tu me trarás ocoraçãodocarneiro.

Nessaocasião,trêsligeiraspancadasforamdadasnaporta.

— Tens de deixar-me, Keniamun, porque um novo visitante me reclama — disseprecipitadamenteAbracro.Tranquiliza-te,porém,porquenãonegligenciareiosteusinteresses.Atébreve.

Quandoojovemoficialsaiu,expressãodejúbiloedevitóriailuminouosemblantedavelha:

—Enfim!—murmurouela—tereiocoraçãodocarneirosagrado,nascidonosrebanhosdeTutméseporeledoadoaotemplodeAmon.Agora,tenhocerteza:Hatasuvencerá,elecairá!

Comocoraçãoimpandodesatisfaçãoedebrilhantesesperanças,Keniamunretomouocarro.OefeitodaprediçãodeAbracroempalideceraantearadiosapossibilidadededestruirHartatef,eisso de modo tão radical, que mesmo o seu rancor e vingança não seriam jamais de temer. Apossibilidade de um casamento entre Sargon e Neith ele a repeliu, considerando-a fantasia vã,porquenuncaopríncipedemonstraraterpelajovemomenorinteresse.Alémdisso,Neithoamava,eeraoprincipal.Ocalorcomeçavaatornar-seasfixiante,eKeniamun,que,nasuaimpaciência,seesqueceradoalmoço,sentiuentãooestômagorevoltar-secontraodesacostumadojejum.Chicoteouoscavalos,nointuitodechegarmaisdepressa,porém,àvistadeumagrandeebelacasa,pintadadeazulevermelho,fezquemudassesubitamentedeintenção:

—VoupediralmoçoàformosaNoferura—murmurouele.Devo-lheumavisita,ebemassimaRoma,e elaé tãoprestativaparaosoficiaisdeHatasu!... (um frívoloe cínico sorrisopassouporseuslábios).Essedeverdepolidezdar-me-áopípararefeiçãoealegrepalestra.

Parouocarroedesceu,recomendandoaoescravovoltarparacasa,semoesperar,edirigiu-seaoprédio.Comoseoestivesseaguardando,adonadacasaestavavisível,easervaguiou-oaumterraço sombreado, circundado de moitas odorantes e de grandes árvores, que mantinham noambiente agradável frescor. Junto de apropriada mesa, em cima da qual estavam dispersos osutensílios para trabalhos femininos, achava-se uma jovem de dezenove primaverasaproximadamente,reclinadanumleitoderepouso,deixando-seabanarporumapreta.Erabela,altae esbelta, tipo algo semítico; mas, apesar da regularidade dos traços, do brilho dos olhos e dotransparente viço da tez polida, o semblante de Noferura carecia inteiramente de encanto; umaexpressãodurae sensual espelhava-se-lhenaboca, eoarentediadoedescontente, ea suaposedescuidada,nãocontribuíamparaproduziragradávelimpressão.PercebendoKeniamun,ergueu-se,estirousemmodososbraçospejadosdepulseiras,e,despedindoapreta,atraiuooficiaiparaseulado.

—Sêbem-vindo,Keniamun;osdeusestetrazemparadistrairumpoucoomeuabandonoeomeutédio—disseela,pondoamãonoombrodomilitar.

Keniamundepôsoslábiosnessamão,emergulhouardenteolharnosolhosdajovemmulher.

—Tu,galanteNoferura,tu,abeladasbelas,tuseriasabandonada?Euemuitosoutros,tuosabes,aspiramosaumsorrisodosteuslábios,enãopediríamosmaisdoquealegrartuashorasdesolitude.

—Adulador!—respondeuelaencostando-secomarsatisfeito.Mas,vejoqueestásencalorado.Queresumcopodevinhoparaterefrigerares?

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—Nãorecusoumcopodevinhodetuasmãos,eatémesmo...

— Compreendo — interrompeu, rindo —, tens fome e sede, e algo de substancial não terepugnará.

Bateu palmas e ordenou à escrava que acorreu fazer servir o necessário. Pouco depois, ooficialsentava-seàmesa,antecopiosoalmoço,bastanteaumentadodeumapalestra,cadavezmaispicanteeanimada.Noferuraestavadomelhorhumor;seusnegrosolhoscintilavam,e,velandoparaqueocopodovisitantenãoficassevazio,deixou-sepersuadirdepartilharváriasvezesdessecopocomele.

—FelizRoma!Quevidadedelíciasosdeuseslheconcederam—suspirouKeniamun,quandoos serviçais retiravam os restos da refeição. Mas, por que não se vê teu marido? Ainda nãoregressoudotemplo?

— Ele voltará para o repasto da noite; mas, para mim, esse regresso equivale ao de umaperfeitamúmiaentrandoemcasa—respondeudesdenhosamente.ÉohomemmaisapáticoemaistediosoqueaTerracriou,enãoconstituideleiteosersuamulher.Todoomeusangueserevolta,quandopensoneleeocomparoaosdemaishomens,aChnumhotep,porexemplo:cadagesto,cadaolhardochefedasguardasprovamoamorquevotaaRoant,enquantoRoma,quedormeemplenodia, não compreende nada dos sentimentos passionais, nem teve jamais olhos para sua mulher.Possofalar-lhedeamorquantoquiser,porqueelenempareceentender.

—Então, deves escutar palavras de afeto de outros—disseKeniamun, comatrevido olhar.Deixa-mefalaretuveráscomooseifazer,ecomoestoudisposto.

—Fala; eu amo o somda tua voz— respondeuNoferura, comolhar e sorriso provocantes.Somente não te olvides de que sou casada e de que devo sempre algum respeito a esse ingratoRoma.

—Aticabeinterromper-mecasoavanceparalongedemais,poissabesquantoédifícilapagarachamadepoisdeacesa—murmurouooficial,enlaçando-lheotalheepousando-lhenabocaumardentebeijo.

Ajovemnãoresistiumaiseretribuiuobeijo.

— Tu és um agradável hóspede, Keniamun. Vem visitar-me mais vezes, pela manhã, econversaremosàmaneiradehoje.Romajamaisregressaantes...

Interrompeu-se bruscamente, desprendendo-se dos braços de Keniamun num salto, facesincendidas. O oficial também se endireitou embaraçado, porque, ao fundo da aléia, acabava desurgiraaltafiguradojovemsacerdotedeHator,vestidodebranco.Caminhavadecabeçabaixaecomoqueperdidonosseuspensamentos.Teriaelevistoacenainterrompidacomasuaaparição?Estaperguntaagitavaigualmenteaambasaspersonagensdaaventara.Mas,Noferuranãohesitoupor muito tempo: correu ao encontro do marido, atirou-se impetuosamente ao seu pescoço,cobrindo-odebeijos.

—PorOsíris!Eisamulherdecidida.Senãoestivessebemdesperto,seriaburladoeupróprio—pensouKeniamun,maravilhado.

Comgestocalmo,masirresistível,Romadesembaraçou-sedosbraçosdamulhereaproximou-se do militar, a quem saudou com benevolência. Encontrando o olhar límpido e leal do moçosacerdote,Keniamunfoiinvadidoporumsentimentodevergonhainterior,equisdespedir-se;Roma,porém,reteve-oeoconvidoutãocordialmenteparaojantardanoite,queooficialnãopôderecusar.Bemdepressa,osdoishomensencetaramanimadaeinteressanteconversação,porissoqueRomaera ótimapalestra quandoqueria, eKeniamun o era sempre, por natureza e hábito.Discorrendoalegrementequantoàsnovidadesda corte eda cidade,Keniamunobservavaosdonosda casa, àsocapa,econvenceu-sebemdepressadequeo jovemsacerdotetinhaparaaesposaumafriezaacusto dissimulada. Aos seus olhares incendidos, às carícias que ela tentava, ele opunha umaindiferençagélida, quasede repulsão, e somentequandoela se ausentavado terraçoparecia elerespirar à vontade. Quanto a Noferura, experimentava indescritível agitação: faces afogueadas,dentescravadosnolábioinferior,elafixavacompaixãonãodisfarçadaobelorostodomarido,e,àindiferença de Roma, excitava-se a um ponto que dificilmente podia dominar em presença deestranhos.

KeniamunhaviamuitasvezesouvidoRoantelogiaroexcelentecaráterdoirmão,suabondade,sua indulgência. Que lhe havia feito, pois, a jovem esposa para que ele mostrasse por ela essaindiferença, tocando as raias da aversão? Ela o amava apaixonadamente, era visível, e o favor

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concedido a ele, Keniamun, ou a outros, constituía quiçá uma consolação de suas decepçõesconjugais. Roma teria surpreendido a cena daquele dia? Teria visto a mulher nos braços deKeniamun?Estesentia-secontrafeito,e intimamente jurounãoprosseguirnaquelaaventura,pois,além de não faltarem em Tebasmulheres bonitas, tinha nomomento de regular e supervisionarassuntosmuitomaisgraves.Terminadaarefeição,ergueu-separadespedir-se.

—Atébreve,Keniamun;àhoradorepastonoturnoestousempreemcasa.Vem,pois,se“me”pretendesver,econversaremos—disseRoma,comumfinosorriso.

Àsfacesdooficialsubiuumfluxodesangue.

Tãologoocasalficouasós,Noferurasaltoudacadeira,arrancouocolar,e,enfiandoasduasmãosnaespessacabeleira,gritoucomavozestranguladapelaraiva:

— Homem miserável e indigno, marido sem coração, como ousas tratar-me com tanta erevoltantegelidezempresençadeumestranho,desseKeniamun,queespalharáemtodaacidadeoquanto soudesprezadaemmeupróprio lar, e cobertadeultrajespor aqueleque temodeverdeamar-me?

Soluços convulsivos impediram-na de continuar; deixou-se cair na cadeira, chorando esapateando. Sem dúvida o moço sacerdote estava habituado às cenas desse gênero, pois nãomostrou aperceber-se do estado da mulher. Levantou-se, sem responder palavra, reajustou sualongavestimentabranca,e,apanhandodesobreamesaumrolodepapiros,rumouparaaportadesaída. À vista de tal atitude, Noferura atirou-se a ele, qual ave de rapina, e agarrou-lhe um dosbraços.

— Roma, não te retires, ouve-me, eu não posso suportar a tua indiferença! — imploroudeslizando até enlaçar-lhe os joelhos. Sou tuamulher, amo-te, e “tu deves” corresponder aomeuamor.Tuensinasessedeveraopovo,nãotensodireitodeorepelirdetimesmo.

Vivoruborcobriuorostodopadre.Comgestobruscoedeiniludíveldesgosto,desembaraçou-sedosbraçosdamulher,recuandoalgunspassos.

—Quantas vezes já tedisse,Noferura,que tuasodiosas cenasnão servemparanada?Nãocreio no amor de uma esposa que posso sempre encontrar nos braços de outro homem, comoaconteceu hoje com esse oficial. Não guardo rancor contra Keniamun, porque é a mulher quemergueabarreiraentreelaeohomem,eosteussentimentosnãosãodeamor,esimbrutalpaixãoqueteéinspiradaportodosermasculino,sejaquemfor,tenhaonomequetiver.Vamos!Levanta-teecessadechorar—acrescentoumaisbondoso.Tratadesuportaro inevitável,comumpoucodedignidade. Sabes que foste tu própria quemme repeliu, pela tua conduta indigna, tuas traiçõescontínuas;nãomais teestimo,nempossoreviverumsentimentodeamorcompletamenteextinto.Eu te lamento por seres tão má e tão cheia de paixões impuras; suporto-te junto de mim,concedendo-te a posição de dona da casa, custeio largamente tuas roupas e teus prazeres...Contenta-te com isso e não me tires meu último repouso, ou então serei obrigado a retirar-metotalmenteparaotemplo.

NotandoqueNoferuraselevantarabanhadaempranto,apoiando-sevacilanteaumacoluna,eleseaproximou,edisse,com.sinceracompaixão:

—Corrige-te,Noferura,etalvezeupossavencerarepulsacausadapeloteuprocedimento.

Elelheestendeuamão,masamulherarepeliu,comviolência,presadenovoacessodefúria,esaiu.

Roma sentou-se junto da mesa, pousando nela os braços, e abismou-se em sombriospensamentos.

— Oh! Por que os deuses cruéis me ligaram a semelhante criatura? — murmurouamargamente. Por que vi eu tão tarde Neith, a pura e nobre criança? Ela teria feito a minhafelicidade.

Não suspeitando coisa alguma da armadilha que lhe estava sendo preparada, Hartatefpensava,maisdoquenunca,embuscarofiltroquedeveriaafinalsubmeterocoraçãorebeldedanoiva.OpensamentodequeNeithamavaumoutroesporeavaseuciúme;a indiferençada jovemparacomele,bonitoerico, feriaseuorgulho,eoadiamentodomatrimônio, impostoporHatasu,enchia-odecóleraedeumimprecisotemordoporvir,apesardeestarsenhordasituação,umavezque a múmia ainda não fora resgatada, e Pair e Mena continuavam por isso sob sua absolutadependência.

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Cincoou seisdiasdepoisdasúltimasocorrências já referidas, todaa famíliadePairestavareunidanojardim,apósarefeiçãodatarde,refeiçãodaqualHartatefparticipara.Satatieomaridopasseavam,palestrando,pelojardim,enquantoMenaeseusprimosjogavamapéla.HartatefestavaapoiadoaumacolunadoterraçoeobservavaNeith,comolharsombrio,aqual,sentadanoúltimodegrau,brincavadistraidamentecomumcãozinho,parecendo teresquecidoapresençadonoivo.De fato, os pensamentos da moça estavam para longe. Pensava em Roma, cuja lembrança aperseguia. Ao lembrar que Noferura tornava-o desgraçado, revoltava-se. Com febril ciúme, eladeseja conhecer essamulher que tão pouco aproveitava da felicidade que lhe coubera. Já tiveraímpetos de fazer mil perguntas a Roant, mas, quando se encontravam juntas, invencível pudorfechava-lhe a boca.Absorvida por essa luta recôndita, a jovem tornara-se apática; a presença deHartatef deixava-a indiferente; a de Keniamun incomodava-a, e para ele não mais encontravapalavrasdeamor;atémesmooadiamentodomatrimôniomuitopoucoarejubilara:ohomemquedesejariaparaesposoeracasado!Desdequeestenãolhepodiapertencer,queimportavaoresto?

Nesse momento, um servo, esbaforido, chegou ao terraço para anunciar que a liteira dopríncipe Sargon havia chegado à porta do palácio. Todos permutaram um olhar de surpresa. Opríncipehiteno era visita rara, aparecia apenas emocasiões excepcionais.Assim, a suapresençainesperadadeterminavacompreensívelestupefação.Semembargo,oprotegidodarainhadeviaseracolhido com asmaiores considerações, a despeito dos íntimos sentimentos que nutrissem a seurespeito.Mena foi o primeiro a atirar para o lado sua bola e correr para casa, seguido de Pair.Hartatefnão semoveu.A seusolhos,Sargoncontinuava sendooescravoprisioneiro, subtraídoàsuasorteporumcaprichodemulher,enquantoele,Hartatef,considerava-senobree ilustre,bemdistanciado do homem sem pátria e sem liberdade que ousava ainda cobrir-se com o título depríncipe.

Neith e Satatimal haviam tido tempo de reajustar um pouco a vestimenta, quando Sargonapareceu, acompanhado de Pair e Mena. Saudou as senhoras com a maior afabilidade, mas, àimperceptívelsaudaçãodeHartatef,osanguesubiu-lheàsfaces.Comfaiscanteolhar,mediudealtoa baixo o orgulhoso egípcio. Depois, voltando-se bruscamente, pegou a mão de Neith, a quemconduziuparaojardim,ondetodostomaramassentoempequenobosqueguarnecidodecadeiras.

Animadaconversaçãofoiestabelecida.Comespantoemal-estarprogressivos,Neithreparouqueofervorosoolhardopríncipenãoadeixava,equeelenãoescondiaaardenteadmiraçãodequeelaeraalvo,nemodesejodelheseragradável.Intensoruborcarminou-lheasfaces,e,nãosabendodequemodoencobrirapreocupação,Neithrecostou-senacadeira,queixando-sedecalor,e,comumgesto,chamouumaescravaparaabaná-la.Sargon levantou-se,e, tomandoo lequedamãodaserva,curvando-senoespaldardacadeiradajovem,começouelepróprioaabaná-la,acompanhandoapequenatarefadeolharesemesmodepalavrascujosentidonãodeixaramdúvidas.Umasensaçãode incômodo constrangimento invadiu os donos da casa, ante aquela atitude, sendoqueHartatefdificilmente dominava a raiva, tanto assim que, sem dizer palavra, nem mesmo de despedida,abandonouopalácio.

Neith pensou sufocar. O olhar incendido de Sargon parecia que a queimava. Essa paixãoaberta,queaenvolviaqualeflúviode fogo, inspirava-lhe temoreaversão,eelanãocompreendianadadaquelesúbitoamor.Nãosecontendomais,respiraçãoopressa,afastoubruscamenteamãoeo leque, e, alegando que o calor lhe causara repentina indisposição, saltou da cadeira, facesvermelhas,edisseternecessidadedesairdali.EvitandooolhardeSargon,saudou-oefugiu.Poucodepois,ojovemhitenodespediu-se,convidandoPaireMenaalheretribuíremavisita.

Fervendo de raiva, sobrancelhas franzidas, veias do pescoço intumescidas à grossura decordas,HartatefdeixaraopaláciodePair.

—Istoprecisaterumfim—rosnouentredentes.—Aqualquerpreçoqueseja,Abracrodeveencontrar o filtro queme tornará amado porNeith, e, se além do filtro, destruir essemiserávelescravohiteno,eulhepagareiemouroopesodocadáverdele.Tipoimundoeimpuro,queousas,sobosolhosdeumnobreegípcio,vircortejar-lheanoiva,resgataráscomavidatalatrevimento!

Era noite fechada quandoHartatef se apresentou à casa de Abracro. A feiticeira recebeu-ocomdemonstraçõesdegrandealegria,edisseestaraprestando-separamandarchamá-loporhaverencontrado o meio por ele desejado. No entanto, inteirado da parte que lhe incumbia, eleestremeceudesupersticiosohorroredemedo.Matarocarneirosagradodo templodeAmoneranão só um sacrilégio punido comamaior severidade pelas leis,mas tambémum crime que nemmesmoamorteresgatava,e,acimadetudo,umatodificílimoderealizar,porqueoanimalsagradoestavanoâmbitodotemplo,e,durantetodoodia,padreseservidoresocircundavam.

—Que queres tu? A felicidade não se conquista facilmente, e o coração deNeith vale umperigo,quenãoé tãograndeassim,seagirescomardilecautela— insinuouAbracro,notandoa

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hesitação. Deves apressar-te, pois li nos astros que um potente e imprevisto rival impedirá ocaminhoetevencerá,casonãoteantecipes,ganhandooamordeNeith.

Taispalavras,quelhepareciamconfirmarasúbitarivalidadedeSargon,aguçaraociúmedeHartatefa talponto,que lheobscureceramarazãoeaprudência,e fizeramquebruscamentesedecidisseatentaraaventura.Satisfeitíssima,Abracrobateu-lhenoombro.

—Emboahora!Enãoduvidodequetuaardilezaebravuratedarãoavitória.Agedenoite,porqueoanimalévigiadoaessashorasporalgunsguardiãesmeioadormecidos,e,paraquenãodespertemmuito a propósito, toma este frasco. Algumas gotas do seu conteúdo, derramadas nochão,produzememanaçõesentorpecentestãofortes,quetumesmoprecisasdeverasapressar-teemfazer a tarefa com rapidez, e fugir. Tem cuidado de te preparar um refúgio, e, uma vez fora doâmbitodotemplo,quemprovaráserestuomatador?

Em seguida, acertaram ainda alguns detalhes, fixando para daí a dois dias a execução docrime. Depois, separaram-se. E, logo que Hartatef partiu, Abracro expediu Hapi para levartabuinhasaKeniamun,instruindo-odoqueacabavadesercombinado.Ooficialesfregouasmãos,eporquefossedemasiadotardeparairaotemplo,cujasportasjádeviamestarfechadas,escreveuaoprimoQuagabu,convidando-oaprocurá-losemdemora,erecomendouaoescravolevaropapiroaodestino,tãologoamanhecesse.

Nodiaseguinte,opadreveiofalaraKeniamun.Eramoço,magroepálido,testacurtaeolharvesgo;algodesonso,defalsoemau,dir-se-ia,emanavadasuapersonalidade.

—Queresfazertuafortuna,Quagabu,eganharcadaanoumsacode“anéisdeouro’’igualaesteaqui?—perguntouKeniamunaqueima-roupa,depoisdehaveremambossaboreadoumcopodevinhoeafastadoosservos.

Osolhosdoprimofixaram-secomavidezselvagemnosacocheiodeouro.

—Queénecessáriofazer?—indagouopadre,simplesmente,masemvozrouca.

— Ajudar-me a destruir um homem que me embaraça e impede meu casamento com umajovemimensamenterica.

Eooficialexpôs,demodoabreviado,oassunto,semnomearorival.ParadesapontamentoeraivadeKeniamun,opadreeprimofranziuatesta,e,apósreflexão,declarousermuitoarriscadaatarefa para imiscuir-se. Confundido e ansioso, Keniamun ensaiou persuadi-lo, aumentando arecompensa, porém nada conseguiu, até que, no calor da argumentação, pronunciou o nome deHartatef.

—ÉaHartatefquetudesejasperder?—perguntouQuagabu,comoqueeletrizado.Tudeviasterdito issodesde logo.Eu teajudarei, fica tranquilo, eninguémpode fazê-lomelhordoqueeu,porque sou um dos guardiães do carneiro sagrado, e tomarei cuidado para que omiserável sejacolhido.

—Tensalgumdébitoasaldarcomele?—indagouooficial,admirado.

Umfulgorvenenosojorroudosolhosdopadre.

—Sim,umassuntoparticularcujosdetalhesnãointeressamaninguém.Bastasaberesqueteajudareiapuniroinsolente.

Naconversaçãoqueseseguiu,Quagabuinstruiuoprimorelativamenteàdisposição internadotemplo,aolugarondeseachavaoanimalsagradoeaopontodeondesedeviaespreitarHartatef,quesemdúvidatomarainformaçõesantesdetentaraaventura,eescolheriaopercursomaisfácilediretoparapenetrarnorecintosagrado.

QuaseàmesmahoraemqueQuagabueseuprimotramavamaperdadeHartatef,este,cheiodeesperançadevencer,tinhaidoàcasadoseuconfidenteefielinstrumento,Smenkara,paralheconfiaroseuprojetoepedirconselhos.Osdoishomensestavamsozinhosemumaposentoisolado,porqueHanoferpermaneciaemseupostonoalbergue,supervisionandooturbulentopúblicodasuabaiúca. Smenkara, o temido usurário de Tebas, era um corpulento homem, quinquagenário, deaspectoenganadoresensual.Traziaporúnicovestuárioumaventalde linhoesandáliasdepalhatrançada. Sentado intencionalmente entre a porta e a janela abertas, expunha à corrente de arrefrescanteocrâniocalvoeseusenormesmembros.Atezeradeumbistrequasenegro,contraaqual contrastavam estranhamente dois pequenos olhos de um cinzento-azulado, brilhantes deastúcia. Na ocasião, estava ocupado em traçar a carvão uma espécie de plano sobre amesa de

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madeirabranca,próximodaqualHartateftomaraassento.

— Repito-te: tentas um louco sacrilégio, que te perderá — disse, com ar preocupado edescontente.Nãoterástempodeconquistarocoraçãodessalevianajovemquandofortuaesposa?

—Eesperarqueessemiserávelescravoassíriomafurte,sobasminhasvistas!—murmurouHartatef, dentes cerrados. Não tentes dissuadir-me, Smenkara: quero ser amado imediatamente;mas,agradeçoteuconselho.Ocaminhoporessaportaencobertaétãocurtoquesuprimeametadedorisco.Queventurateresconservadoestachave!

—Guardo sempre as coisas úteis. Se esse velhaco Quagabu soubesse para que serve estachave,queelemedeupensandoqueeuqueriarealmentefurtarumpoucodoestrumedocarneirosagrado,egraçasàqualfizevadiralindacantora,rianoiva,quetantoteagradou!...ha!ha!ha!Émuitomelhor,deresto,queQuagabuignorequemlheroubouasuabeldade,etambémteuprojetodeagora...Elepoderiarepresentarummaujeito.

—Desdequenadasabe,éinútilpreocupar-mecomele—disseHartatef,levantando-se.Voltoparacasa,pararepousareestarlépidoestanoite.

—Até à vista— respondeuSmenkara, reconduzindo-o. E umúltimo conselho: se por acasofalharesogolpeetiveresdefugir,vemaqui,porquetenhoesconderijosimpenetráveis,ondeestarásabrigadoatéquepossasaparecer.

—Muitoagradecido,emboraesperepoderprescindirdessatuaajuda.

Anoitechegara,umadessasnoitesnegras,semluar,dentrodasquaisdificilmentesepercebeoqueocorreadoispassosdedistância.A imensaCapitalestavamergulhadanosilênciodosono.NinguémdivisouHartatefquando,envoltoemescuromanto,cabeçaprotegidaporumcapuz,deixouo palácio por uma saída disfarçada, e caminhou rapidamente em direção ao templo de Amon. Amorada do grande deus protetor de Tebas ocupava terrenos imensos, encerrando em seu âmbitotemplos, jardins, dependências para alojamento dos padres, cantoras do deus e inumeráveisservidores.Emruadeserta,quecosteavapartedoconjunto,Hartatefdeteve-se,tiroudocintoumachave,abriuaportadissimuladanamuralhaedesapareceunointerior.Imediatamente,umhomem,acocorado em uma cavidade do lado oposto da rua, saiu da sombra e veio colocar-se junto dapequenaporta.EraKeniamunque,haviaduashoras,espreitavaaquelelocal.Espichouavidamenteacabeçaparaescutarmelhor,mas,tudopermaneciacalmoesilencioso.Umtempo,quelhepareceueterno,decorreu,quando,subitamente,soaramgritosagudoseumabafadorumordetumulto,depassosedevozes.Nomesmoinstante,apequenaportafoiabertaeumhomemporelaseprecipitoupara rua, em pulos que lembravam um cervo no bosque. Mas, Keniamun velava, e, precedendoHartatef, aplicou a este um cambapé que o fez cair, atracando-se com ele, em luta silenciosa edesesperada.

A iminência do perigo, porém, redobrou as forças de Hartatef, e já vozes rumorosas seavizinhavam e archotes emitiam luz próxima, quando ele, por sobre-humano esforço, conseguiudesvencilhar-se dos braços do adversário, e, deixando-lhe nas mãos o manto ao qual este seaferrara,endireitou-seedesapareceu,qualduende,nacurvadeumaruela.

Quase simultaneamente, homens, empunhando archotes, invadiram a rua: eram padres eservidores do templo, os quais rodearam Keniamun, que, ofegante da luta, relatou passarcasualmente no local quando ouviu gritos e notou umhomem fugindo do interior do templo. Porjulgar que se tratava de um ladrão, procurou prendê-lo, e, com indizível pasmo, à luz emboraescassadastochas,reconheceraHartatef,queconseguiralibertar-seefugir,deixando-lhenasmãosapenasomanto.

Gritos de cólera e de indignação; servos correram pela cidade para dar alarme e tentar aprisãodoculpado;outrospesquisaramoterreno,ondefoiencontradaumafacaensanguentada,decabo ricamente lavrado, enquanto um jovem sacerdote narrava a Keniamun ter sido cometidohorrívelcrimenotemplo,convidandoooficialaprestarseudepoimentoanteoSumoSacerdote.

Quando Keniamun e seus acompanhantes penetraram na saia que servia de estábulo aocarneiro de Amon, o recinto estava cheio de gente. O Grande Sacerdote, rodeado de profetas eanciães,achava-sedepé,juntodoanimalsagrado,quejaziadegoladosobreaslajes,peitoaberto,coração arrancado. Dolorosamente agitados, todos escutavam a narração de Quagabu, um dosguardiãesdocarneiro.Havia feitoa rondanoturna,acompanhadodeumvelho servidor, eambosviramdistintamenteHartateffugirdolocaldocrime,sempoderemalcançá-lo,porém.OdepoimentodeKeniamun,corroborante,foiigualmentereduzidoatermoporumdosescribas,equandoooficialdeixouo templo, atroantepelos clamores egritosde desespero, satisfeito sorriso pairava-lhe noslábios,poisorivaldetestadoestavadefinitivamentedestruídoenenhumobstáculolheembaraçavaa

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estradaqueolevavaaNeitheàfortuna.

Rápido, qual cervo perseguido pelamatilha,Hartatef dirigira sua disparada para a casa deSmenkara,alipenetraraporumaaberturadoseuconhecimento;mas,exaustodeforças,atirou-seàcadeiramaispróximaqueencontrou.Ousurárioesuamulherestavamdespertos,discutindo,eosrostos inflamadosearranhadosatestavamqueaaltercaçãochegaraaviasdefato.Àvistadoseuprotetor,assimtãotranstornadoeesvaído,acalmaramimediatamente,eumsimplesolharbastouaSmenkaraparacompreenderquetudoestavaperdido.PegandoumbraçodeHartatef,murmurou:

—Depressa;segue-me.Éprecisoesconder-teemlugarseguro.

Amparandoorecém-vindo,quemalsesustinhanaspernastrêmulas,eprecedidoporHanofer,queempunhavaumalâmpada,Smenkaraseguiuatravésdenumerososcorredoresparaumavastacâmaraisoladaeescura,queserviadeguarda-móveiseondeestavamempilhadososmaisdiversosobjetos. Num ângulo, via-se enorme caixa repleta de utensílios de jardinagem; mas, apesar deaparentementemuitopesada,Smenkarasemmuitoesforçoaremoveu:depois,levantouumalçapãoe descobriu pequena escada de pedra tocando o solo. Desceram os três, atravessarammais umcorredorabobadado, confinantecomumaadegaassazespaçosa.QuandoSmenkaraacendeuumatocha fixada no muro, pôde ver-se que o misterioso refúgio estava mobiliado com uma camarecobertacompelesdecarneiro,mesa,algunsescabeloseumaespéciedebufetedeprateleiras,sobreasquaishavialouçaeumaânfora.EnquantoSmenkaraenchiadevinhoumcopodegrés,eantes de o apresentar aHartatef,Hanofer tomou assento emumescabelo, pousou a lâmpadanamesaedisseaeste,nummistodepiedadeedeironiamotejadora:

—Porenquanto,estás foradeperigo,mas,nuncamepassoupela idéiaqueesteretiro,queconcedemos aos que têm desentendimentos com as leis, e pagam bem, viesse servir de asilo aoilustre e poderoso Hartatef. Aconteceu, todavia, e admiro a justiça dos deuses que puniram teudesvairado amor por essa Neith, e tua ingratidão e infidelidade para comigo. Se me houvessesconfiadotudo,emvezdetramar,pordetrásdemim,comesteimbecilSmenkara,euteriaajudadoteuprojeto,semquecometessesumcrimeinaudito.

Hartatefnãorespondeu.PegandoocopoquelheeraoferecidoporSmenkara,esvaziou-ocomavidez,depoisenxugouafronteinundadadesuor,edisse,comenrouquecidavoz:

—Creio ter sido identificadoporQuagabu e tambémpor essemiserávelKeniamun, o qual,encontrando-setãoa.propósitojuntodapequenaporta,deixasuporquealinãoestavaporacaso.Mas,antesquesedetermineeseocupeaminhacasa,paradevassa,esperoquetu,Smenkara,meprestes um serviço pelo qual serás recompensado. Corre sem demora até lá, entra pela entradasecreta,queconhecesedaqualachaveéesta.Penetranasaletacontíguaaoquartodedormiredograndecofredemadeiraodorífera,encostadoàparede,àdireita,retiraumacaixetacinzeladaedoissacos.LevacontigoteuescravoAnúbis,porqueossacossãopesados,etraze-metudoaqui.

Smenkara,queescutaraatento,prometeucumprirfielmenteaincumbência,esaiusemmaisdetença,acompanhadodamulher,quecorreraadespertarAnúbis,enquantoaquelesemuniadeummantoescuroepunhaaocintocompridaelargafacadedoisgumes.Ficandosó,Hartatefpousouoscotovelosnamesa.Suaalma,voluntariosaesoberba,sofrianestemomentomiltorturas.Nãopodiaduvidar: fora vítima de uma conjura habilmente articulada e caíra feito louco na armadilha,destruindo seu porvir e perdendo Neith para todo o sempre. Mas, quem haveria tramado econduzidoaintriga?SargonouKeniamun?

As reflexões foram interrompidaspelo regressodeHanofer, que traziaumaaveassada,umcestinhocheiodeapetitosospãezinhoseumacobertaricamentebordada.Tendo-selibertadodoquetrouxera, sem que Hartatef mostrasse haver prestado atenção, ela o abraçou com os robustosbraços e lhe deu na face sonoro beijo. Apesar da raiva interior que o excruciava, ele sofreusilenciosoascarícias,poisnãoousavarepelireirritarabrutaleapaixonadamulher,acujamercêvirtualmenteestava.Apenasseesticouepegoumaquinalmenteumdospãezinhos.

—Sim,meurapaz,comeereparatuasforçaseteuânimo—disseela.Nemtudoestáperdidoainda;estássalvoeemabrigo;quandooprimeirofuroreasanhadaperseguiçãoabrandarem,nósdeliberaremosparatefazerpartir.Comotempo,creioeu,comdádivas,poder-se-áobteroperdãodotemplo,alémdoquetenspoderososamigoseSemnutteprotege,ele,cujosconselhostêmtantovalorparaHatasu.

— Hatasu não se imiscuirá nesse assunto, porque luta ela própria contra os padres —respondeuele,comressentimentoeamargura.

—Naturalmenteissonãoseráamanhã;éprecisoterpaciência,eporquenãoaterás,tu,umavez que me tens, meu querido?... — disse ela ainda, com risinho chocarreiro. Não sou tão bela

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quantoNeith,mas,meuamorémaissólidoesemantémbomemtodasascircunstânciasdavida;viveremosaqui,àsemelhançadedoisenamorados;euteprotegerei,e,ànoite,iráscomigorespirarasbrisasdoNilo.Nãodesesperes,pois.E,agora,adeus,dormeerepousa,porquetensnecessidadedisso.

Saiuefechoucuidadosamenteaporta.

Anotíciado insólitocrimeperpetradono templocorreraemTebascom incrível rapidez.Osprimeirosclarõesdosolnascentedouravamapenasascurvasdohorizonte,ejáoGrandeSacerdote,abatido,vestesdespedaçadas,estavafazendoseurelatoàrainha,que,pasmaerevoltada,deraasmaisseverasordenseprometeraavultadarecompensaaquemaprisionasseoculpado.Dopalácio,anova voara, qual seta, de bairro em bairro, despertando nos grandes lares e nas choupanas umassombro misturado de indignação; surdo movimento de alvoroço reinava nas ruas, e compactamassapopularcongestionavaasvizinhançasdo templodeAmon,atroandoosaresdeclamoresevociferações.

Entretanto, osmais interessados,Neith e Satati, ainda não tinhamconhecimento dos fatos.PaireMena,ausentesdesdecedoparaosdeveresprofissionais,nãohaviamregressado,eSatati,algoindisposta,dormiaainda.Neithterminarasuaalimentaçãomatinal,esonhavapreguiçosamenteno terraço, quando a nutriz lhe apareceu, atarantada, anunciando que Keniamun pedia para lhefalar imediatamente, pois trazia uma notícia damais alta importância. Neith ergueu-se, pálida etremente. Que teria ocorrido para que o oficial viesse procurá-la assim? Deu ordem para fazerentrarovisitante,emaltevetempodeenvolver-seemlongovéu,quandoapareceuKeniamun.

Distanciandocomimperiosogestoanutrizeumasegundaescrava,ojovemoficialcorreuparaNeith,olhosfulgentes,e,pegando-lheasduasmãos,falou,vibrante:

—Estás livre,minhaadorada;nenhumobstáculo se opõeagoraànossaunião, se teuamorpermanecefielamim!

—Quedizestu!?EHartatef?—balbuciouNeith.

—Elenãopodemaisserteuesposo,aindaquenãoestivessedesaparecido.Escutaoquesepassou.

ErapidamentereferiuosacontecimentosnotemplodeAmon.

—Tucompreendes—rematouele—quesemelhantecriminosonãomaispodeestender-teamão;mas,eulutareicomesperançasnovasdeteconquistar.Tuopermites?

Neithhaviaescutadoanarraçãoduvidandodo testemunhodosseusouvidos;mas,aalegriatransbordantedorostoagradáveldooficial,oamorqueespelhavanosolhos,deram-lheaprovadeque não era um sonho. Com a rapidez do pensamento, refletiu que, não podendo Roma ser seumarido,ela,desposandoKeniamun,preferidoentretodosequeaamavaapaixonadamente,criavaparasiumfuturotranquilo,aomesmotempoquesedesembaraçavadeSatati,dePairedeMena,queeladetestava,desdequandosouberadaignóbiltransaçãonaqualafizeramvítima.OresultadodoraciocíniofoiapoiaralindafrontenoombrodeKeniamun,aodizerafetuosamente:

—Sim,meubomKeniamun,euterepito,delivrevontade,quesereituaesposa,searainhamo permitir. E porque não te seja fácil uma aproximação com ela, eu mesma suplicarei a suaautorização.ElaéboaparamimquantoopróprioHator;nãorecusará,eviveremosditosos,apesardainfamecondutadeMenaquedissipouminhafortuna.Soube,deSemnut,quearainhamedota,eque terras, vinhas e grandes rebanhos me estão destinados. Assim, na primeira oportunidade,implorareideSuaMajestadeautorizaranossaunião.

UmclarãodejúbilojorroudosolhosdeKeniamun.AtraindoNeithaseubraços,elelhedeuumlongo beijo. Enfim, chegava ao cimo dos seus anelos, e diante do seu espírito desdobrava-se umporvirderiqueza,degozosedegrandeza.

—E,agora,adeus,minhaquerida;asobrigaçõeschamam-me—disse,erguendo-sevivamente.Eujádeviaestarempalácio,mas,antesdetudo,quisver-te.

Ficandosó,Neithpasseouno terraço,presade febril agitação;agora, imensoalíviopareciahaverdescarregadoseucoraçãodeumpesodemontanha.Hartatefestavaapagadodesuavida;oinsolenteecruelmoçoforadestruído,tornadopó,emconsequênciadoseuprópriocrime.Mas,quecausa poderia tê-lo arrastado a cometer esse sacrilégio inconcebível? Ela não compreendia essemistério. Depois, pensou em seu noivado com Keniamun, e uma sensação de calma, uma docequietude invadira-lheaalma.Certo,elenãoexerciasobreelao fascínioestranho,não lhedavaa

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felicidadeembriagadoraqueexperimentavanapresençadeRoma,mas,sentia-sebempertodele,eo jovem oficial assemelhava-se como que a um refúgio, um, muro que a resguardaria do olharincendidoesinistrodopríncipeassírio.AlembrançadeSargonedapaixãofogosaqueleraemseusolhoseraumaperseguiçãocomparávelapesadelo;elanãooabominavacegamente,tantoquantoaHartatef,porém,opríncipeinfundia-lhemedo,seuamordeviaserterrível,epareceuque,nocaso,elanãoteriaarmasparacombatê-locomohaviacombatidoHartatef.

A chegada de Satati veio interromper as reflexões da jovem. Pálida e abatida, ela descaiunuma cadeira e, em expressões entrecortadas, narrou o atentado sangrento contra o carneirosagrado.

—Estamosperdidos—concluiuela,retorcendoasmãos—,porqueHartatefaindanãofezoresgatedamúmiadeteupai.

Neithempalideceu,mas,reagindoporumesforçodevontade,respondeu:

—Nãodesesperes;sei,porSemnut,quearainhamedestinaumdoteconsiderável.Tratadeconseguirumaaudiência,eeusuplicareiaHatasuquemepermitadesposarKeniamun.Logoqueentremosnapossedafortuna,pagarei,etudoestaráterminado!

Satatimeneoutristementeacabeça.

—Teumaridonãopermitirájamaisfundirassimteushaveres;alémdeque,duvidomuitoqueHatasu queira conceder tua mão a um oficial principiante da sua guarda, sem fortuna e semhierarquia.Eladesejaráunir-teaalgumpoderosoeilustrepersonagem,equiçámesmoopríncipeSargonpretendameter-senalista...Seusolharesdeanteontemfazempensarnisso.

—Ah!tambémnotastequemedevoravacomosolhos?—exclamouNeith,comopressãonavoz.Oh!possaHatorguardar-mecontraele.Esseassíriomeinfundemedo,seuamormegela!

—Não te sobressaltes inutilmente assim; as nossas suposições podem ser errôneas, e esseselvagem, que jamais mostrou interesse por alguém, talvez haja obedecido ao impulso de umcaprichotransitório.Mas,eisaquiPaireteuirmão.Quenostrarãoeles?

Osdoishomensmostravamestarinquietoseperturbados.

— Venho da casa de Smenkara — começou dizendo Pair. O maroto mostrou-se bastantetratável;mas, não compreendo a estranha condiçãoquenos impôs: enquantoNeith se conservarsolteira,calareieesperarei.Nodiaemquecasar,reclamareiasomadevida.

Semprestaratençãoaoespantodasduasmulheres,Menaexclamou:

— Eu acho a condição muito cômoda; é evidente que, por uma cláusula tão simples, parasalvaguardar nossa honra, ela não se casará. Mas, esse Hartatef foi um canalha! Em lugar deliquidar sem tardança um assunto tão sagrado, que é o resgate de um morto, ele adiou, sob opretextodereunircapitais,edepoisseenredaemsacrílegamorte!

—Foiapanhado?perguntouSatati.

—Não;continuainincontrolavel,edariaminhamãoaocorte,seSmenkaraesuamegeranãopudessem dizer onde ele se acha, embora em vão lhe hajam varejado a casa, desde a adegasubterrâneaàságuas-furtadas.

— Talvez se suicidasse, para fugir à sorte horrenda que o espera — aventou Neith, cominsegurotimbredevoz.

—Nãosejastola—chacoteouMena.EleconfianaproteçãodeSemnut.Mas,apropósito:nomomento emque deixei o palácio, ali chegouSargon e pediu a Semnut lhe obtivesse imediata esecretaaudiênciadarainha.Fiqueicuriosoporsaberoassuntoque...

Achegadadeumaescrava,queveiotrazeraSatatitabuinhasvindasdopaláciorealporumexpresso, interrompeu a frase. Amensagem era de Semnut, determinando laconicamente que, aumadeterminadahora,estavamSatatieNeithchamadasacomparecerantearainha.

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VIII

SARGONNOPALACIODARAINHAA solicitação de Sargon, rogando ser recebido para lhe dirigir um pedido da mais alta

importância,surpreendeuvivamentearainha.Jamais,atéentão,osombrioesilenciosopríncipelhehaviapedidocoisaalguma,nemmanifestadoambiçãoouinteresseemqualquernegócio.Nuncalhefora necessário perdoar uma dessas leviandades que os nobres egípcios cultivavam comfrequência... Que poderia ele desejar?... Deu ordem para que o levassem à sua presença,imediatamente, decidida a aceder ao pedido, se fosse humanamente possível, porque, além domotivo íntimo que a fazia proteger todos os hitenos, ela estimava Sargon e queria que eleencontrasseàsmargensdoNiloasventurasqueperderanasvizinhasbordasdoEufrates.

ApesardaconfiançaquelheInspiravaabenevolênciajamaisdesmentidadarainha,ocoraçãodeSargonbatiaviolentamentequandoumoficialdasguardasafastouapesadacortina,bordadadeazul e ouro, que vedava o gabinete de trabalho onde estava Hatasu. Era um recinto de médiaextensão,comumafaceparaoterraço;asparedeseramrecobertasdetapeçariaseaslajestambémtinhamtapeçariaseesteirasmulticoloridas.Diantedaentradadoterraço,viam-seelegantemesadecedro, com gavetas, e uma poltrona de espaldar colocada em cima de grande estrado dourado.Curvadasobreamesa,atopetadadetabuinhaserolos,arainhaliaumpapiroaberto;mas,aoleveruído dos passos do jovem hiteno, voltou o busto, e com um gestomandou que se aproximasse.Sargonprosternou-se,beijandoochão.

—Ergue-teesenta-te.

Hatasudesignou-lheumtamboretedemarfimcolocadopróximo,e juntodoqualumgrandelebreiroseestirava,fazendosoarotríplicecolardeouroquetinhaaopescoço.

—Poderosasoberana,permite-merogardejoelhosumagraçadaqualdependeafelicidadedaminhavida—murmurou.

—Euteouvireide igualmodo,sentadonesse tamborete—dissearainha,comencorajadorsorriso,plenodebenevolência.Deixa-teestar,edizequepossofazerparaomaismodestodosmeussúditos! Sabes que almejo fazer-te venturoso; mas, és tão estranho, Sargon! Parece que nem ashonrarias,nemasmulherestetentam.

Súbitoruborcoloriuasfacespálidasdopríncipe.

—Minhasoberanaegenerosaprotetora,tuapotentemãogarantiuo infortunadoprisioneirocontraahumilhaçãoeamiséria;tuavontadepodetambémconcederafelicidadecompleta,dando-meamulherqueamodetodaaminhaalma.Dá-meNeithparaesposa.Desdeatardedetuavisita,suaimageminvadiumeucoração,enãopossoviversemavisãodorostoencantadorquerefleteostraçosdomeupobreirmãoNaromath.Obeijoquedeunaestátuaenfeitiçouminhaalma.Neithestálivre;ocrimedeHartatefrompeuoseucompromisso.

Ao tom daquela voz vibrante de paixão recalcada e à vista daquele olhar cintilante queespelhavam os tumultuosos sentimentos do jovem hiteno, uma expressão de surpresa econtentamentodesenhou-senosemblantedarainha.

—AmasNeith,edesejasdesposá-la?Muitobem!Euaconcedodeboa-vontadeao irmãodeNaromath. Apenas, reveste-te de paciência, pois é mister deixar a ela o tempo de acalmar-se eesqueceronoivoqueacabadeperder.

Olhosfaiscantes,Sargondeixouotamboreteeveiodenovoajoelhar-sejuntodapoltrona.

—Rainha,Neithnãonecessitaolvidarumhomemqueelasempreexecroueoqualforçaram-naaaceitar,parasalvarahonradosseus.

—Quedizes tu?ForçaramNeith?—exclamoubruscamenteHatasu,comas faces invadidasporumfluxodesangue.Fala,querosabertudo!—concluiuImperiosamente.

Inundadodesatisfaçãoíntima,SargondesdobrouumquadrofieldavidadissipadaeimoraldePairedeMena,dasprodigalidadesdesenfreadasqueoshaviamlevadoacontrairdívidascolossais,dando em penhor a múmia do velho Mena, e, finalizando, descreveu a vergonhosa transaçãoconcluídacomHartatef,daqualopreçoforaNeith,contraavontadedesta.

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—Queabominação!—gritouarainha,trementedecólera.MeupobreMena,essenobreefielservidor,distinguidojápormeufinadopai,tendoagoraseusrestosentreguesporessesinfamesaumusurário!ESatati,aodiosacriatura,ousasilenciarsobresemelhantecrime,eatormentarNeith,aabnegadacriançaquesilenciosamentesesacrificou!Oh!aquemãosfuiconfiarminha...

Interrompeu-se,eprosseguiudepoisdecurtosilêncio:

— Tu, porém, Sargon, concedendo-te sua mão, juras-me que a amarás fielmente, que aprotegerásdurantetodaatuavida,equeafarásditosa?Bem,teuolharémaiseloquentedoqueuma promessa; recebe também meu compromisso: Neith será tua esposa, e ainda hoje eu lhecomunicarei minha decisão. E tu, prepara o teu palácio para amanhã, porque, à tarde, ireipessoalmente levar tuanoiva, e, ante a imagemdaqueledequemelapossui os traços, e aoqualjureiproteger-te,juntareiasmãosdeambos.

Frementedeventura,Sargoncurvouocorpoequisbeijarodegraudoestradosobreoqualassentavaacadeirareal;mas,Hatasuestendeu-lheamão:

— Estamos sós — acrescentou, com melancólico sorrir, enquanto o príncipe premia osescaldanteslábiosnosafiladosdedosdasoberana.

Sozinha,Hatasuapoiouosbraçosea frontenasmãos, supercílioscontraídos,eassim ficouporminutos.Depois,pegandoumadasbolinhasdeouroqueenchiampequenacaixasobreamesa,atirou-aparadentrodeumvasodeprataqueencimavacinzeladabase,aoseulado.Aosomvibranteeprolongadoqueretiniuemseguida,ocamaristadeserviçoacudiusemdemora.

—FaçamchamarSemnutimediatamente—ordenouela.

Quinzeminutesdepois,ohomemdasuaconfiançaapareceu,e,obedecendoàordem,instalou-se no tamborete de marfim. E, nessa posição, ouviu, com progressivo pasmo, a narrativa que arainhalhefez,deacordocomasrevelaçõesdeSargon.

— Fui avisado dos comentários a respeito dos desperdícios de Pair e do sobrinho; jamaispensei, porém, quepudessemdescer tãobaixo—disseSemnut,meneando a cabeça.EHartatef,essedesvairadocriminoso,chafurdar-seemsemelhantetransação!

—Sim,éindigno,eosdeusesopuniram,deixando-opraticaresseatentadoparaoqual,aliás,nãoencontroexplicaçãoplausível—concluiuHatasu,pensativa.

—Minharealsenhora,permiteateuescravoalvitrarumaidéia,epune-me,casotedesagrade— começou Semnut, depois de um minuto de meditação. Parece-me que a imensa fortuna deHartatef,ebemassimosoberbopalácioqueterminaradeconstruirreverterão,dedireito,paraanoiva,edevemseracrescidosaodotequedestinasbrevementeànobreNeith.

—Teuconselhoésempresábio,fielSemnut,evemapropósitoporquevoucasarNeithcomopríncipeSargon.Semembargo,édeequidadequeotemplodeAmonrecebaumaIndenizaçãopelaofensa feita ao deus, e, em tal intenção, determino seja o terço de todos os bens de Hartatefofertadoaotemplo,eorestojuntarásaodote.Alémdisso,Semnut,mandachamaramanhãcedoousurário,eresgata,domeutesouro,amúmiadeMena,cujoKa(perispíritoentreosegípcios)devesentir-seextremamenteaflitopeloultrajeperpetradocontraoseuenvoltóriomortal.Tufarássentirao sórdido agiota que, embora a lei autorize tais transações, eu desaprovo esse modo dedesmoralizaçãoedeajudaaocusteiodeloucuras,aexpensasdoquehádemaissagrado.Dize-lheque, salvo tornar-semais comedido, eu o farei procurar nova profissão nos estaleiros daEtiópia.Agora,meu fiel, podes ir, e providencia para que Satati eNeith estejam aqui após a refeição datarde.

Ahoraindicada,asduasmulheresapresentaram-seempalácio,Satati,vagamenteinquieta,eNeith,jubilosaporhavertãodepressaencontradooportunidadedefazersuarogativaàrainha.Umadas damas de serviço recebeu-as na antecâmara real, e pediu à esposa de Pair aguardasse ali,enquantoconduziaNeithaoquartodedormirdeHatasu.Arainhaestavasó,reclinadanumleitoderepouso, parecendo inteiramente absorta em pensamentos desagradáveis; mas, ao avistar Neith,sorriue fez sinalparaaproximar-se, e,quandoa jovem,contentee ruborizada,ajoelhou juntodoleito,tirou-lheogorrodacabeçae,comacariciantemovimento,alisou-lheosbelosebemcuidadoscabelos,dizendo,bondosa:

—Porquenãomeconfessaste,louquinha,quedesposavasHartatefcontraavontade?Vamos!Não tremas, nembaixes a cabeça; eu te perdôo a falta de franqueza; não foi para ralhar que techamei, e sim para te anunciar uma grande felicidade. Hoje, o príncipe Sargon veio pedir-meconsentimentoparatefazersuaesposa;eulheconcedituamão.

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—Sargon!—exclamouNeith,enroxando-sedeemoçãoeassombro.

—Sim.Agrada-teouinspira-terepugnância?—indagouHatasu,surpreendida.

— Não. Eu mal o conheço; mas, tal pensamento me assusta — balbuciou a moça todafremente.

—Issonãoénada—dissearainhacomálacresorriso.Essesustopassarádepressa,eemboranãooamesainda,virásaamá-lo,porqueébom,belo,cultoeteamaapaixonadamente.Tuaindanãosabesoqueéamor,Neith,eporissotealarmas.Tunãotensdenominaçãoparaessesentimento,nemcriasteaimagemdoqueseráteuporvir.Poisbem,eutedigo:seráSargonohomemquetefaráfeliz;seráseubraçoumescudo,seucoraçãoteuescravo.Isentosdepreocupações,vivereisnobelopaláciodeHartatef,queanexeiaoteudote,juntamentecomumapartedosseushaveres.Assimserealizaumdesejoquesemprealimenteiemminhaalma.

Neith inclinoua fronte,coraçãocontraído,cabeçapesada,comumvagoterroroprimindo-a,fazendofaltar-lhecoragemparapôrobjeçõesàvontadedagrandesoberana,queelaamavaetemiaaomesmo tempo,edizer: “Nãoqueroohomemqueescolheste;prefiroumobscuro soldado,queteusolhosjamaisnotaramporentreamultidãoqueterodeia.”

—Teu desejo,minha rainha e benfeitora, é sagrado paramim; eu te obedeço e desposareiSargon—murmurouela.

—Não terásmotivo para lamentar teu gesto— respondeuHatasu, com um clarão radiosoemergindodosnegrosolhos. (Absorvidapelospensamentos íntimos,passaradespercebidaao seureparoalutarecônditadeNeith.)Amanhã,minhafilha,eupessoalmenteteconduzireiaopaláciodoteufuturomarido,e,parafestejaronoivado,faço-tepresentedeumavestimentaedeumadornousadospormim.Possamessesobjetos,quereceberáshojeainda,trazerventuras!

AlegriaeorgulhoarrebatarammomentaneamenteasapreensõesnocoraçãoversátildeNeith,e,comosolhosbrilhando,agradeceuàrainha,aqual,nãomenossatisfeita,abeijounafronte,emdespedida.

Penetrando, à sua vez, na câmara real,Satati prosternou-se ebeijouo chão com respeito ehumildade.Depois,aoverquenenhumsinaldebenevolêncialheindicavalevantar-se,permaneceuajoelhada, enquanto um colorido amarelo terroso invadia seu rosto bistre. Um simples olhar àrainha,quecaminhavavivamentedeumaooutroladodoaposento,deu-lheaconvicçãodequeumatempestade avizinhava-se. Sobrancelhas franzidas e cruzadas sobre uma ruga na testa pálida, asfinasnarinas fremindo,abocaexprimindoadurezaglacialquea caracterizavanosmomentosdecólera,taleraoaspectodarainha.

— Serva infiel e ingrata — disse Hatasu em voz irritada, detendo-se bruscamente — queousaste fazer? Violentaste e vendeste aomiserávelHartatef a criança que te confiei, e isso paracobrir as infâmias de dois homens sem brio nem honra, que não recuaram ante o sacrilégio depenhorar o corpo do seu parente!Que são Pair eMena paraNeith? Servos que devembeijar aspegadas dos seus passos e respeitar por ordens cada um dos seus caprichos. Esqueceste que tepaguei para cuidar dela, e não para traficar com ela, como se negocia uma escrava?Ou, na tuacriminosapetulância, supuseste que a verdade jamais chegaria aosmeus ouvidos, e quepor issonuncatepedissecontasdatuaconduta!Responde!...Etremeanteaminhajustacólera!

Sacudidaqualfolhaenrodilhadapelaventania,Satatirecaiuprosternada,ecomoquepregadaaosolopeloolharqueafulminava.Depois,arrastou-separajuntodarainha,quesemantinhadepé,olhoscoruscantes,eergueuparaelaosbraçossúplices:

—Filha de Ra, tão grande e poderosa quanto ele, sei o que teu sopro é bastante paramedestruir,qualoventododesertoaçoitandooarbusto;seiqueteuolharpodereduzir-meacinzas...Souculpada,mas,emlembrançadopassado,dahoraemquemeconfiasteacriança,doamoredoscuidadosmaternaisquedediquei aNeithdesdeanascença, sê clemente,perdoa-meessa falta, aúnica,edeixa-medizerarazãodosacontecimentos.

Apercebendo-sedequeoolhardarainhaestavaabrandado,prosseguiu,maiscorajosamente:

—Pair eMena IgnoramaorigemdeNeith, e, semmeconsultar,dispuseramdela, comosefosseverdadeiraparenta.Quandosoubeaverdade,avergonhaeoreceiodeatrairodesprezosobrea fronte de meu marido e de meus filhos reduziram-me ao silêncio. Por outro lado, influiu opensamentodequeHartatef,belo,rico,nobreeapaixonado,daria,nofinaldascontas,afelicidadeaNeith.

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Hatasunãorespondeu.Umriode reminiscênciasdocesepungentesvieradesaguaremsuamemória. O apelo ao passado, que Satati evocara, havia subitamente despertado nela todos ossentimentossopitadosdoúnicotempoemquehaviafruídoosdireitosdocoração,dosonhodeamor,embriagante e fugitivo, que passara qual tempestade sobre sua orgulhosa alma. Neith, a vivaimagem daquele que deixara indelével cunho no coração da jovem soberana, parecia-lhe apersonificaçãodesseoásisdecalmaedeventura,noqualesqueceraaambição,duranteoqualaáspera luta com seus irmãos e clero, pela coroa e pelo poder, não tinha lacerado sua alma. Elareviveuahoraemqueconfiaraafilhaaessamulherlívidaeprosternada...Esuacólerafundiu-se.

— Levanta-te, Satati; por esta vez, estás perdoada. Hoje é dia de júbilo paramim, porquetrouxearealizaçãodeumsecretoanelo,aoqualjáhaviarenunciado.SargonvaidesposarNeith,etalalegriamepredispõeàclemência.EmmemóriadeMena,cujasombraaflitaesvoaçasemdúvidaemtornodoseuultrajadocorpo,quero,porestavez,salvar-vosdaruína.Semnut,comrecursosdomeutesouro,resgataráamúmiadomeufielservidoresaldaráasdívidasdePairedeMena.Estesdeverão mencionar seus débitos; mas, não devem contar, de ora em diante, com a minhaindulgência,esimcorrigirem-semuitoseriamente,poisnãodesejoqueosgrandesdomeuserviçodêemexemplodeexcessosdetodaordemededesprezopelosantepassados.Sealgumaindignidadenova chegar aomeuconhecimento,Pair serádestituídodo cargoe exiladodeTebas, com todaafamília. Quanto a Mena, vou mandá-lo comandar algum destacamento estacionado em fortalezadistante,nasminasdepedrasazuis,paraqueasolidãolhedêjuízo.Transmite-lhesisto.

Satati de novo se prosternou, balbuciando palavras de gratidão; seu corpo tremianervosamente.

—Ergue-tee sossega—disseHatasuabrandada.Agoraescuta: amanhãconduzireiNeithàcasadoseufuturoconsorte,Tuatrarásàhoradarefeiçãodatarde,eparaissoeulhefaçodádivade uma vestimenta de bisso bordada de fios de ouro e pérolas, a qual farás lhe seja entregueimediatamenteporintermédiodaencarregadadomeuguarda-roupa,jáinformadadocaso.Dá-meagoraessacaixetaqueestápróximadomeuleito.

Sataticumpriuaordem,eHatasu,abrindoocofrezinho,retirouumcolardeincalculávelvalor,trabalhado em estilo diferente do das jóias egípcias. Era uma grande fita de ouro incrustada derubiseornadaembaixodeampla franjadepérolas.A rainhacontemploupor instantesa jóia,e,depois,guardando-adenovo,entregouacaixetaaSatati.

—EntregaistoaNeith,epossaelasentir-setãofelizquantoeuaousá-lapelaprimeiravez!

Nodia imediato,amaioranimaçãoreinavadesdecedonopaláciodopríncipeSargon.Este,alegreebemdisposto,comojamaisforavisto,superintendiapessoalmenteosaprestosdafesta.Portodaparte,erampregadastapeçarias,estendiam-seesteiras,pendiam-seguirlandasebandeirolas;no terraço, e bem assim na sala contígua, preparavam-se refrigerantes em preciosas baixelas. AchegadadeKeniamunveioafastarSargondasuaazáfama.

—Agradecidoporteresvindo—disse,saudandoooficialelevando-oparaoquartodedormir.

—Recebiastabuinhasaoregressardoserviço,evimcorrendo,curiosodesaberoquetensadizer-me.Mas,quefestavaicelebrar-seemtuacasa,paraquetudoestejaassimtumultuado?

—Vaissaber,eesperoque,apesardacomunicação,nãofiquesmeuinimigo—disseSargon,erguendo a tapeçaria da entrada do aposento e aproximando Keniamun de vasta mesasobrecarregadadeobjetospreciosos.Olha!Tudoissotepertence.

Omilitar recuousurpreso,eoolharpassou,comassombro,pelospratos, copos,ânforasdeouroeprata,caixetarepletadejóiasegrandebaciacheia,atéosbordos,deanéisdeouro.

— Tu te divertes comigo, príncipe Sargon — conseguiu dizer afinal. — Como poderia eumerecersemelhantedádivadatuaparte?Oquevejoaquirepresentaumafortuna!

—Oh! tua terásmerecidopelopenosodesgostoque tevouanunciar,e tambémporqueseiqueastuasfinançasestãoemruína,etudesejascasar...Poisbem!Oqueestánestamesaaplainaráas coisas, e mulheres belas não faltam em Tebas. Apenas, deverás renunciar a Neith. Eu estouapaixonadoporela,comumapaixãojamaisconhecidapormimequemedevora.Porisso,supliqueiaHatasuquemaconcedesseporesposa,earainhaaquiesceu,eaindahojeaprópriasoberanavirátrazer-meanoiva.Épararecebê-lasqueseenfeitaomeupalácio.

Keniamunouviuatônito:Neithdenovoperdida,ecomelaofuturodegrandezaederiquezaquesonhara.Amesarepresentavacompensaçãoridícula,comparadaatalfracasso.Umvermelho,em tomdecobre, lhe invadiuo rosto, e a raiva interior foi tanta, queesqueceu todaa reservae

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habitualprudência.

— Tu te equivocas, príncipe Sargon— disse em voz sofreada—, e não te posso vender ocoração que me pertence, pelo preço que essa mesa representa. Ontem, pela manhã, Neithassegurou-meseuamor,prometeuserminhaesposa,edeu-meobeijodenoivado.Se,ateujuízo,umaordemrealsupretudoisso,rogaàrainha,umavezquedeuordemaNeithparacasarcontigo,quetambémdêordemaNeithparaqueteame.Acrescentareiaindaqueécovardiatrairumhomemnaboa-fé,efurtar-lheamulherqueoama.

Voltou-searrebatadamente,esaiu,semprestarouvidoaSargon,que,rubroderaiva,procuroudetê-lo.

No primeiromomento, o príncipe foi presa de intensa cólera;mas, ao refletir que o oficiallamentariamaistardeaviolênciadaatitudequeassumira,acalmou-se-lhearaiva.Ordenoufossemlevadosàcasadorivalos tesourosque lhedoara,e,quandoalgumashorasmais tarde,ocortejoreal,conduzindoNeith,chegouaopalácio,Sargonolvidaradetodoaexistênciadooficial.

AnuviadoeraosemblantedeHatasu;asaúdedoreiseuesposoinspirava-lhenovostemores,e, dominada por graves pensamentos, não prestou atenção à palidez da noiva e ao aspecto dedescoroçoadaresignação.Apesardisso,arainhatestemunhouaSargonamabilíssimabenevolência,aceitou os refrigerantes, bebendo à saúde dos noivos, e uniu as mãos de ambos, lembrando aopríncipequeeleera,anteosdeuseseela,oresponsávelpelafelicidadedajovem.Depois,falandoaNeith,disseque,pelaobediênciaefielamor,deviafazeramaiorventuradomarido.E,tendoaindaconversado com todos e concedido a cada um palavras de favor, Hatasu regressou à corte,ordenando, porém, a Satati permanecesse junto de Neith e procurasse facilitar aos noivosoportunidadedeumapalestraasós,afimdetravaremmelhorconhecimentomútuo.

Depoisdaretiradadarainha,Sargon,queferviadeimpaciênciaparaficarasóscomafuturaesposa,propôsaNeithmostrar-lheojardim,e,obtidoassentimento,pegou-lheamãoeaconduziu.De início, passearam, conversando calmamente, e Neith, que em tudo reparava atenta, nãopercebeuoruborintensoquesubiaaorostodeSargon,ebemassimoardordevorantedoolharqueafixava.Inopinadamente,eleenlaçouotalheflexíveldeNeith,e,comprimindo-adeencontroasi,comímpetodemasiado,cobriu-lhedesôfregosbeijosasfaceseasmãos.Oataqueforatãoinsólito,queamoça,tomadadeimprevisto,nãoresistiu.Muda,comoquepetrificada,elapensouasfixiar-sede desgosto e de susto, tolhida a respiração, sentindo a semelhança de um ferro em brasa aqueimar-lheoslábios,parecendo-lhequeosdoisolhos,faiscantesdeselvagempaixão,mergulhadosnosseus,eramdeanimalbravio.

Comdébilgrito,tentou,emvão,libertar-sedocinturãodeferroqueaafivelavaaessepeitoofegante;mas,desúbito,apresençadeespíritolheveio,seudelicadocorposeinteiriçou,qualbarrade aço, e, repelindo Sargon, desenvencilhou-se com tal energia, que ele recuou alguns passos,desequilibrado, enquanto ela teria caído ao solo, se não houvesse providencialmente esbarradonumaárvore,àqualseapoiou,lábiosfrementes,mãosestendidas,comopararevidarumsegundoassalto.

—Que significa isto,Neith?Detestas-me?— inquiriuSargon, compalidez rival da sua alvatúnica,feridonoorgulho,comocorposacudidopornervososestremecimentos.

Neithpassouamãosobreafrontebanhadadegélidosuor.

—EuteabominareimaisdoqueexecreiHartatef,seousarestentartocar-medemodoigualaodehápouco—respondeucomavozreprimida.Tuapaixãodesenfreadagelaecausahorror.Desejosuportar tuaafeição edesposar-te,mas, deves tratar-me comdoçura e reserva, porquemesmoomiserávelHartatefassimofazia,compreendendoqueamulhernãosetomadeassalte.Etuquemepedisteàrainha,semsequerprevenir-me,contenta-tecomaminhasubmissãoàordemdasoberana,sem nenhum direito a semelhantes violências. Sabias que amo outro homem, e, sem escrúpulo,passaste por cima dessa circunstância. Contenta-te, pois, com a promessa da rainha, que podemandar-mecasarcomopríncipeSargon,porém,jamaisqueoame.Eumavezquefataldestinomesepara daquele que meu coração preferiu, pouco importa com quem haja de casar. Por tiexperimentoapenasindiferença,e,senãoqueresqueteabomine,guarda-tebemdemeatemorizarcomexcessosdeumsentimentoaoqualnãocorrespondo.

Cabeçaemfogo,respiraçãoarquejante,olhosinjetadosdesangue,Sargonfixavaajovem,que,cada vez mais calma e mais fremente de orgulho e firme resolução, mostrava-lhe a conduta dafuturaesposaparacomele.

—Neith,tumepagarásestahora!—vociferou,comentonaçãorouca—evelareiparaqueteuamorseextingaporfaltadeobjetivo:destruireiKeniamun,essevermedochãoqueousaintrometer-

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senomeucaminho.Queroquemeames,etumeamarás,apesardetudo,porquesóeutenhodireitoaessesentimento.

Parou sufocado, boca espumando. Palor cadavérico substituíra o vermelho das faces. Neitholhava, nummisto de horror e compaixão, os traços descompostos domancebo.Aproximando-se,pousou-lheamãosobreobraço:

—Tornaati,Sargon.Nãoguardorancorporhaveresforçadoqueeufossetuanoiva;aceitoteu amor, tua proteção, e quero ser uma esposa submissa e devotada. Apenas não exijas umsentimentoquenãotepossodar;contenta-tecomaminhaamizadeesêbomparamim.NãoodeiesnempersigasKeniamun,porqueéparamimumsimplesamigo,enadapercorenunciandoaele.Ohomem que amo com as forças todas da minha alma está separado de mim por um abismointransponível,quetu,nemcriaturaalgumanomundo,jamaissaberáquemseja.Acalma-te,pois,e,semeamasverdadeiramente,sêbom,enãomeamedrontesmais,conformeofizestehápouco.

Sua voz foi ficando alterada, e, apoiando a cabeça no ombro do príncipe, prorrompeu empranto. Sargon estremeceu, e, dir-se-ia, despertou de um sonho. A despeito do abalo moral quevinha de sofrer e atingia o ápice na desolante revelação de Neith, declarando amar umdesconhecido;as lágrimasdamulheramada,ocontactodasuacabeleirasuavementeperfumada,reagiram sobre o homem, qual um calmante. Com hesitante gesto, passou o braço em torno dajovemelhepousounafronteoslábiosfriosetrêmulos.Emseguida,endireitando-se,disse,emvozsurda:

—Voltemosaoterraço;osnossoshóspedesesperam-nos.

Neith enxugou os olhos e lhe estendeu a mão. E, quando reapareceram aos convidadosreunidos, ambos haviam reconquistado bastante calma para não despertar atenção. Sargonprocurouosgruposmasculinos,dispensandoànoivaaatençãoprotocolar,e, somentequandoelarumouparaaliteira,deregressoacasa,teveatitudemaisafetuosa,abraçando-a.Seusolhos,então,emitiramcentelhasdevorantesquepareciamenvolveremchamasajovem.Neith,sobaaçãodetalolhar,empalideceu;mas,forçandoumsorriso,retribuiuobeijodonoivo.

Nenhumapalavrafoiproferidaporambasasmulheresemseuretorno.Aochegarem,porém,Satatidisse,emvozbaixa:

—Depoisdetedespires,afastaasservas,porquedesejofalarcontigo.

Neithfezsinaldeassentimentoe,meiahoradepois,ambasdenovoseencontraramasós,nodormitóriodeNeith.Sentando-sejuntoàjovemque,emseucompridoealvovestuáriodenoite,seprostrava,pálidaedesfigurada,emumapoltrona,Satatipegou-lheamão.

— Em primeiro lugar, deixa-me anunciar-te uma boa notícia: todos os nossos apurosfinanceirosestãosolucionados.Arainha,emlembrançadeteupai,resgatouamúmiaeregularizouas dívidas de Pair e de teu irmão. Sob esse ponto de vista, estamos salvos,mas, outra coisameinquieta:astuasrelaçõescomoassírio,cujapaixãoviolentapodetornar-sefatalati.Sêprudente,Neith,nãolhemostrestãoabertamentetuaindiferença,poiselenãoéigualaHartatef,que,apesardosdefeitos,semostravaindulgentecontigo,eteconsideravaqualumacriança,eporissonãoseofendia por nenhum dos teus caprichos... Sargon fará pagar caro teus maus tratos; seu amordesdenhadopodetransformar-seemódio,e,então,essehomemseráimplacávelcontigo.Evita,pois,minhafilha,irritá-lo,e,deixaquetediga,temoqueohajasmelindradoirremediavelmente.Quandovoltoudo jardim, tinhaumaexpressãoestranha,e surpreendi seuolhar fixando-tecomrancorosoódio,quemeassustou.Confessa-meoqueocorreuentrevós.

MalgradoadesconfiançaeainimizadesecretaqueexperimentavaporSatati,Neithsentiuquedessavezelatinharazãonosconselhos,visivelmenteditadosporumaboaintenção.

—Tensrazão,Satati—respondeu,suspirando—,mas,receioqueteubomconselhocheguemuitotarde.

Enarrouacenadesenroladaentreelaeopríncipenoterraço.

—Eisoqueélamentáveledifícildereparar—disseSatati,preocupadamente.Mas,enãooesqueças jamais:sesobrevieroutracenagravecomopríncipe,avisa-me imediatamente,a fimdequeeuacomuniqueaHatasu.Arainhateamaevelaporti,tantoquantoaprópriadeusaHator,enenhum perigo poderá atingir-te se ela o souber; o seu socorro potente seguir-te-á aonde fores,porquesecretolaçovosprende.Pensanisto,Neith,enãotraiasestesegredo.

Depoisdaretiradadosconvivas,Sargonreentraraemcasaviolentamenteagitado.Arrancando

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as jóias que o adornavam, afastou os escravos, e, qual tigre enjaulado, caminhou pelo quarto dedormir.Queterríveldesgostoterminaraaquelatarde,queesperarafosseumadasmaisbelasdasuaexistência!Tiveraamãodamulheramada,mas,nãooseuafeto,eele,oaltaneiro,odesdenhosoquesemprezombaradoamordasmulheres,aliestava,porsuavez,desdenhado,repelidoporessamoça adorada com insensata paixão. À lembrança da dureza com que lhe proibira aproximar-sedela,dandocursoplenoaos seus sentimentosparacomele;à recordaçãoda repulsacomquesedesprenderadeseusbraçoserepeliraosbeijos,umatempestadededesespero,deraivaimpotentee de sede de vingança desencadeava-se na alma do jovem hiteno. Esses férvidos sentimentos,trabalhando-o intimamente, provocavam roucos soluços, enquanto mil fantásticos projetosrevoluteavamnoseupensamentosuperexcitado;nãoadmitiasertolerado,esimsercorrespondidonomesmograudo seu amor. Por fim, quebrantadopela torturamoral e pelo esgotamento físico,Sargonatirou-separaoleitoeadormeceunumsonopesadoefebril.

Ignorandotudoquantoocorrianoexterior,exceçãofeitaderarasnotíciasqueseusguardiãeslhetransmitiam,Hartatefcontinuavavivendonohomiziosubterrâneo,quesóabandonavaànoite,pararespirarumpoucodaaurafrescadasmargensdoNilo.Odesencorajamentoeafadigahaviam-se apossado do pobre homem; todos os seus sentimentos estavam amortecidos, e a atmosferapesadaemalsãnaqualviviaatuava-lhedemododesastrososobreosnervoseasaúde.Sabia,porinformaçãodeHanofer,queoprocuravamencarniçadamente;mas,nãolhedisseramqueamúmiadovelhoMenaforaresgatada,nemqueNeithcontrataracasarcomSargon.

Ao saber do chamado à presença de Semnut, Smenkara aterrorizou-se quase a perder ossentidos,e,aoencaminhar-separaaaudiência,recordoueruminoualembrançadalongasériedecrimeseaçõesilegaisacumuladosemseuviver,eperguntavaaelepróprio,comangústia,qualdasinfâmiaspraticadasteriaquiçátranspiradoeatraídoaatençãodopoderosoministrodeHatasu.

Cientedeque se tratavado resgatedamúmia,acalmou-se;mas, as severaseameaçadoraspalavrasdeSemnut,quelhedisseestarele,Smenkara,sobasvistasdapunição,eque,aoprimeirodelito,seriaenviadoaodegredo,deixaram-lheumpesosobreocoraçãoeumaindefinidainquietudequantoaofuturo.

Certanoite,aproximadamentequinzediasdepois,Hanofereseumarido,tendoterminadodefazer contas dos labores, dispunham-se a dormir, quando reiteradas batidas soaram na porta dodomicílio particular. Espantado e inquieto, Smenkara correu a verificar do que se tratava, a verquemousavaapresentar-seemhoratãoimprópria.

— Abre, ou algo de mau pode acontecer-te por isso — respondeu uma voz imperiosa, aomesmotempoquenovogolpesoounaporta.

Intimidado, o usurário abriu e deu passagem a um homem de elevada estatura, e tãoimpenetrávelmenteenvoltonumacapaescura,decapuz,queimpossívelsetornavadistinguiralgodafisionomiaoudotraje.Aoconstatarqueovisitanteestavasó,Smenkarareadquiriuacalma.

—Quemequerestu?Equemés,paraousaresperturbar-measemelhantehora?

O incógnito,quehaviacuidadosamente fechadoaporta,voltou-se,e,desembaraçando-sedacapa,descobriuumcompridohábitobrancoearaspadacabeçadepadre.

—Ranseneb!—exclamouSmenkara,recuando,bocaescancarada,comoseestivesseanteumfantasma.Depois,ajoelhando,beijouochão,dizendoemseguida:

—Queosdeusesbendigameprotejamcadaumdosteuspassos,grandeservidordeAmon,edizeoqueteconduzaomeuhumildeteto.

—Ergue-te—disseosacerdote—eleva-meparaumrecintoondeeupossafalar,semriscodeserespionado.

Ousuráriolevantou-seeconduziuRansenebàsalacontígua,ondeHanoferoacolheucomasmaioresdemonstraçõesdehumildadeerespeito.

—Guia-me aonde estáHartatef, que, eu o sei, se esconde aqui; preciso falar-lhe—disse opadresempreâmbulo.

Inseguroeassustado,ocasalquisnegar;mas,Ransenebprosseguiu,dominandoaamboscomaceradoolhar.

—Nãomintam;Hartateffoivisto;ele,todasasnoites,vairespirarnasbordasdoNilo,sobasescorasdavelhaescadaabandonadadobairroestrangeiro; foiobservadoeseguido.Enada teria

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sidotãofácilquantoprendê-lo,láouaqui,fazendocercarvossabaiúcapelosguardasdotemplo;nósnão queremos, porém, a morte de Hartatef. Leva-me imediatamente à sua presença; e depoisaguarda,aqui,queeuhajaterminadodelhefalar.

Semretrucarmaisnada,SmenkaraeamulherguiaramRansenebaoesconderijoeajudaram-noadesceraescadadepedra.

—Dá-mealâmpadaevoltaparaaguardaresmeuregresso,ouquetechame—disseopadre.

—Senhor,eleestáarmadoepodecrer-seperdido.Deixaiqueoprevina.

—Seja!Precede-meedize-lhequeumapessoavemfalar-lhe—consentiuosacerdote.

Aoverseucúmplicechegarcomaluzeouvindo-oanunciaravindadeumvisitante,Hartatefergueu-se, sobressaltado, do seu grabato; mas, apercebendo Ranseneb, empalideceu e pegounervosamenteocabodeumafacaquetraziapresaaocinto.

—Tranquiliza-te;nãovenhonaqualidadedeinimigo—disseopadre,sentando-seefazendosinalaoagiotapararetirar-se—poisnãoédifícilcompreenderqueconheceroteurefúgioequivaleàtuaprisão.Mas,nestesúltimostempos,soubemosdemuitascoisas,e,porisso,otemplonãotemnecessidadedatuamorte,esimdosteusserviços.

Umaexpressãodepasmoincréduloesboçou-senoemagrecidosemblantedeHartatef.

—Emquepodeummiseráveldaminhaespécieserviraomaispotentedosdeuses,que tãoloucamenteofendeu?

—Écertoqueteucrimeseriainaudito,sehouvessegerminadoemtuaalma;mas,nóstemosrazõesparacrerquea tua insanapaixãoporumabelamulher foi exploradapara te forçaraumdelito,cujametainconfessáveleramuitodiferentedaquelaaquevisavas:ocoraçãoversátildeumaadolescente.NãofoiporinstigaçãodeAbracroqueagiste?

—Sim;prometera-meumfiltroinfalível—balbuciouHartatef,enrubescendoatéàtesta.

Opadresorriu.

—Abracroéumahitena.QuevalemparaelaosdeusesdoEgito?Elaédevotadaàrainha,queprotege esses impuros, e, versada na magia, quis destruir o animal sagrado, oferta de Tutmés,tirado dos seus rebanhos, e também com isso destruir as probabilidades de Tutmés ascender aotrono.Comessesintuitos,elaprojetousobretiummalefício,um“mau-olhado”queobscureceuteuraciocínio;mas,osdeusesviramaverdade,eteperdoam.Jáfostebastantepunido,perdendoatuahierarquiasocialeoshaveres,dosquaisarainhaofertouaotemploumaparcelaínfima.Orestantedetuasriquezas,ebemassimoteunovopalácio,ela,aconselhodeSemnut,acresceuaodotedeNeith,essamisteriosa filhadeMena,queHatasuprotegeeadora,equeacabade fazernoivadeSargon,ovencidohiteno,porelatratadoehonorificadonoestalãodepríncipeegípcio.

Qual um bravio animal ferido, Hartatef saltou quase na ponta dos pés, emitindo um gritorouco,enquantoseapoiavavacilanteàparede.Seusolhospareciamapagados,eocorpo,flexívelenervoso,tremiacomoseestivessesobojugodeviolentafebremaligna.NeithnoivadeSargon!Eassuasprópriasriquezasatiradasàsmãosdorival,emquemnotaraa fulminantepaixãoporaquelaque ele,Hartatef, considerava supremobem!...Que catástrofe! Seus punhos crispados diziamdoinfernal ciúme e da raiva que lhe calcinavam o coração qual ferro em brasa. O padre haviaobservado,comolharsatisfeito,alutamoraldodesgraçado;compreendiaqueoamorferidoforjava-lhealiuminstrumentodócil.Eesperavaemsilêncio.Porfim,Hartatefvoltouparajuntodamesa.

—NadamaistenhoparadaraAmoneàvingança,alémdaminhavida.Podemdispordela—disseele,passandoamãonoscabelosesparsos.

—Estábem.Senta-tenesteescabelo,porqueteuestadodesaúdeéanormal.Voudizer-te,embreves palavras, a situação e as ordens que oSumoSacerdote te transmite pormeu intermédio.SabesqueonossoFaraóHatasu,apesardoespíritocomoqualRaaenriqueceu,estápossuídadeuma influência impura, ofendendo aos deuses na pessoa dos seus servidores. A construção dotúmulo,contrariando todasas regrassagradas,é reprovável;essa reproduçãodemonumentosdeumpovoinferiorevencidoconstituiumaafrontaaosdeuses,aossacerdoteseaopovodoEgito.Nãocontente com isso, e ajudadapelos conselhosdohomemquedonada ela elevou aopináculo dashonrarias,aindaacresceacintes.Éassimqueentregao tratamentodeTutmésaTiglat,ohiteno,retirandoaosmédicosdacastadossacerdotesumprivilégioque,atéaqui,ninguémjamaisousoudisputar-lhes.Elaquereráagoraprolongarosdiasdomarido,querepeliuedetestoudesdequando

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tevedeodesposar,porémqueédócilinstrumentoemsuasmãoseservedeescudocontraTutmésIII,queestendeávidasmãosparaaherançaaquetemdireito.Apesardetudo,oFaraómorrerábemdepressa,seusdiasestãocontados,eénossodevergarantirosdireitosdessefilhoderei,oqual,por parte de seu avô, o marido da velha Isis, pertence à nossa casta e ao qual inculcamos ossentimentosdepiedademaisconvenientesaumsoberano.Mas,arainhaprevêtudoisso:exilou-oemBouto,edesdequeTutmésveioaTebas,porocasiãodafestadoNilo(elaosoube),éguardadotãoseveramentequeimpossívelsetornaqualqueraproximação.Aguarniçãofoiduplicada,escravosestúpidos, funcionários obscuros foram colocados no seu serviço, e Antef, o comandante dafortaleza,éummoçoaparentadodeSemnut,ladino,vigilanteedevotadoaHatasuemcorpoealma.Nenhum de nós, ou pessoas conhecidas, pode apropinquar-se do príncipe; mas, um servidorinstruído, inteligente e hábil, poderá deslizar até junto dele e transmitir-lhe mensagensindispensáveis. Foi a ti que escolhemos para essa missão. Bem disfarçado, tu serás posto, naqualidadedeescriba,notemplodeOuazit,emBouto,eninguémteprocuraráentreosservidoresdodeus; Antef não te conhece, e, sem levantar suspeitas, poderás servir de nosso enviado e deintermediáriodopríncipe.

—Servirei fielmenteTutmés,enãorecuareiantenadaqueajudeadestruirHatasu,quemeroubou a noiva e o patrimônio para doá-los aomeu rival— tartamudeouHartatef, com indizívelríctusderaivaquelhecontraiuafisionomia.Dize-mesomente,sacerdotedeAmon,quandoecomodevopartir,equalmensagemdevotransmitiraopríncipe.

—Compareceamanhãànoitenolocalondeerasvisto,ealiestaráumbarcotripuladopordoishomens,umdosquais,escribadotemplo,dir-te-á:Amon,eturesponderás:Ouazit,eosseguirás.Conduzir-te-ão a lugar seguro, onde passarás pelas purificações indispensáveis para que possaspenetraremrecintosanto.Depoispartirásmunidodetodasasinstruçõesnecessárias.

—SereipontualefareiremeterumdisfarceporSmenkara.

—Apropósito: tensconfiançanoonzenárioenamulher?Podecontar-secomeles,pagandobem?—interrogouRanseneb,queseergueraparapartir.

—Respondoporambos.

—Então,faze-lhescompreenderquepodemangariarboasgratificações,prestandoserviçosaAmon. Eles devem sondar sutilmente a opinião da populaça a respeito da construção do túmuloestrangeiro,sobreSemnut,ecomreferênciaàsituaçãodopequenoTutmésapósamorteprevistado pai reinante. Eles devem espalhar, discretamente, o boato de que a rainha desafia os deuses,despreza os conselhos dos sacerdotes, e quer desfazer-se dos dois irmãos para dominar sozinha.Enfim, não devem perder de vista homens empreendedores, que tenham influência sobre seussemelhantes,afimdepoderem,naocasiãooportuna,pô-losàfrentedeumasedição.

—Assimseráfeito.

Opadresaudoucomacenodemãoesaiu.

AdestruiçãodetodasassuasesperançasforaumterrívelgolpeparaKeniamun.Noprimeiromomento,airachegaraaoauge,equeriatirarsangrentavingançadeSargon.Parapensaremtal,àvontade, pedira e obtivera de Chnumhotep licença por alguns dias, e partira para uma pequenapropriedadequepossuíanosarredoresdeTebas.Mas,àmedidaquenosilêncioenasolitude lhereveio o sangue-frio, compreendeu que lutar com o príncipe era tão difícil quanto perigoso; que,pobre e dependente deuns e outros, devia curvar a cerviz, e suportar a injustiça, salvo correr orisco de represálias que podiam destruí-lo. Fazendo coração endurecido, tomou a resolução deesconderamágoasofrida;riscardocoraçãooamordeNeith,porémmantercomelarelaçõesdeamizadequelheseriamúteis.Reentrandoemcasa,encontrouosricospresentesqueSargonhaviaremetido,adespeitodarecusa,e, recalcandoodesejodeatirar todosaquelesobjetosna facedoinsolentedoador,escreveualgumaspalavrasdeagradecimento.

“Guardoapreciosadádiva—escreviaele—nograudelembrançadatuabenevolênciaeporprova de que desculpas as expressões irritadas saídas do meu coração ferido, e jamais porindenizaçãopelamulherqueamoequemetomaste.Areflexãofez-mecompreenderqueumpobreoficial,qualeusou,nãopoderivalizarcomumilustrepríncipe,equetensmaisdireitodepossuirNeith,quefoicriada,porsuabeleza,paraornarumpalácio.”

Oportadordetalmissivatrouxe,paraseuespanto,umarespostadopríncipeassimredigida:“AindaumavezKeniamun,confessoqueerreiemtearrebataramulhercujocoraçãojulgaspossuir;mas,apaixãofazegoístas.Vemvisitar-me;tenhoimperiosanecessidadedetefalar.”

Muitointrigado,KeniamunfoinodiaseguinteàcasadeSargon,queorecebeunoterraço,seu

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retiropredileto.Ojovemhitenohaviaemagrecidoeestavapálido;seusolhosbrilhavamcomfulgorfebril.RecebeuKeniamuncordialmente.Equandooinstalounumacadeirademarfimaseuladoelheserviuumcopodevinho,disse,fixandoooficial,comprofundoeestranhoolhar:

—Queroanunciar-te,Keniamun,umacoisaqueadoçaráteupesarecalmaráociúmeinspiradopelaminhafelicidade.TuteacreditasamadoporNeith,nãoéverdade?

—Sim;elamesmamodisse,prometendodesposar-menamanhãdodiaemquefostepedi-laàrainha.

—Oh!duplicidadefeminina,podemacasoosdeusessondá-la?—disseSargon,comumrisobreve e estridente. Deixa-me dizer-te, Keniamun, que te equívocas. Na tarde do nosso noivado,Neith declarou-me não sentir por ti outro sentimento que a amizade, e que lhe é indiferentedesposar um outro, “visto que— acrescentou ela— amo de todas as forças daminha alma umhomem ao qual não posso pertencer e do qual ninguém jamais saberá o nome. Não é, pois,Keniamunquemeimpededeteamar,Sargon!”

Ojovemoficialficoudebocaaberta,emudecidodeespanto.Doispensamentosturbilhonavamemseucérebro:Neithnãooamava, eSargon,onoivo, confidenciava-lhe isso...Porquê?E tinharazãodeadmirar-se:osombrioevingativoassírionãoteriadecertoconfiadoaoseurivaloultrajesofrido, o desprezo do seu amor demonstrado por Neith, se um selvagem desejo de conhecer omortalpreferidopelajovemnãohouvesseabsorvidoasuaalma.Mas,parasatisfazeraesseanseio,tinhanecessidadedeKeniamun,porissoque,taciturnoedesconfiado,haviaevitadoquantopossívela convivência da sociedade, onde se sentia malvisto e desdenhosamente tolerado entre osorgulhososvencedoresedestruidoresdasuaraça,equesórespeitavamnoprisioneirosempostos,sempátria, o protegido da rainha. Tal reserva tornara-o estranho aomovimento daCapital, e daprópriaNeithelenãosabianada,ignorandooslugaresquefrequentava,comquemconvivia,equemlhepoderiamerecerapreferência.

Keniamun,queeraacolhidoem todasas rodas,queconhecia todaagente,deviaajudá-loadescobrir esse rival incógnito. Excitado pela descoberta de haver sido ele também enganado,espicaçadopelociúme,ooficialdescobririaaverdade,e,então,Sargonencontrariasemdemoraaoportunidade de destruir silenciosamente o indesejável homem que lhe murava o caminho dafelicidade. Seu amorporNeith aumentara estranhamente depois da penosa cena, durante a qualforarepelidotãocruamente,emboraesseamorestivessemescladoeenvenenadodesurdaraiva,deardente sede de vingança. Possuí-la,mesmo contra a vontade dela, e fazê-la pagar, pormeio decruéishumilhações,oquelhefizera,taleraopensamentoúnicodeSargon.

Esmaecidaaprimeira impressãodeespanto,Keniamun refletira, e rapidamentepassaraemrevista todos os mancebos que Neith poderia ter encontrado. Nenhum, estava certíssimo, eraperigoso a seu julgar; mas, subitamente, um novo pensamento o iluminou. Sem dúvida, algumaexplicaçãohouveraentreambos,eSargonexigiradeNeitharenúnciadoamordeKeniamun,eajovem, ante a fúria e o tigrino ciúme do príncipe, recorrera a esse estratagema, para subtrair ohomemamadoàsperseguições,etalvezaoassassínio.UmolharsobreorostosombriodeSargon,aexpressão cruel do olhar, o tremornervosoque trabalhava seus lábios, confirmarama suposição,que se guardoumuito bemde externar. Erguendo-se, fez pequeno giro no terraço, e veio depoispostar-seanteSargon:

—Devocrer,poisqueouvistedaprópriabocadeNeith,queelanãotemamorpormim...Poisbem(efranziuossobrecenhos),euencontrareiaquelequetãomisteriosamentedeslizouparaoseucoração e saberei que espécie de abismo os separa, salvo se, por uma coqueteria feminina, quisfazer-semaisdesejadaporti.

—Teriasidoummaucálculo,porquenãosouhomemqueespereporumanoiva,enquantoelasonhacomumdesconhecido.Mas,deixemosisso.Tenhonecessidadedeacalmar-meededistrair-me,e,nessaintenção,peçomeconduzasàcasadeTuaá,cujafilha,dizem,éencantadora,eondesereúnenumerosasociedade.

— Oh! Tuaá sentir-se-á feliz em te acolher em sua casa, e, se isso te convém, eu teapresentareilá,dentroempouco.TuaáeNefertdãoumadesuasruidosasfestas,eterásamelhoroportunidadedefazerconhecimentocomelasedetedivertires.

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IX

NUPCIASELUTONOEGITOMultassemanasdecorreram.AépocafixadapelarainhaparaocasamentodeNeitheSargon

aproximava-se, mas, esse detalhe particular desaparecia na expectativa ansiosa e na subterrâneainquietude excitadas em todo o Egito pela perspectiva de graves ocorrências .políticas que sepreparavam.AsaúdedeTutmés IIpioravacadadiaepróximoestavaomomentoemqueodébilFaraó,dominadoesubjugadoporsuarealeenérgicaesposa,deixariavagoolugarqueocupavanotrono.Todospressentiamqueaambiciosaealtivamulher,emcujasmãosfirmesestavamasrédeasdoEstado,nãodesejaria,por segundavez,partilharopoder;mas, tambémse sabiaqueo jovemexilado Tutmés era sustentado por um grande partido, que se arregimentava entre o clero e osgrandesegípcios,sendoqueospadresnãopodiamperdoaraindependênciadeespíritodeHatasu,eos segundos o haver a rainha colocado acima deles um homem, Semnut, saído do anonimato, donada.Emcompensação,arainhaeramuitoqueridapelagentehumilde,àqualasuaadministração,sábiaepacífica,asseguravatranquilidadeefavoreciaocomércio.Alémdisso,asuaorigem,defilhalegítimademãequetinhaestirperealenga(eassimoesposo),dehonrariasdivinas,envolviam-naemumaauréolaqueconstituíapoderosaégide.Contudo,asrevoluções,asintrigaspalacianaseaslutasfratricidasnãoeramignoradasnopaís,emaisdeumcoraçãoseconfrangiadetemoresanteopensamentodecruentos sucessosquepoderiamsurgirem futuropróximo.NopartidodeTutmésimperavamódios,porqueHatasutomavamedidasdeprecauçãodemonstrativasdeperfeitosangue-frioeresolução,asquaistornavamquaseimpossívelqualquertentativadeapossar-sedapessoadopretendente,indispensávelparaprovocarumarebelião,quandodamortedeTutmésII.

A guarnição de Bouto fora duplicada; as tropas etíopes que a compunham estavam sob asordens de oficiais fiéis; o comandante da praça, Antef, homem vigilante e hábil, velava sobre opríncipecomocuidadoquesedispensaaumprisioneiro;sentinelasguardavamtodasassaídasdopalácio, e uma escolta numerosa e bem armada acompanhava Tutmés ao passeio permitido.Somenteno templo, onde iaexercer cultoaosdeuses,podiamospadres,no santuário (noqual àescoltaeravedadopenetrar),transmitir-lhenotíciasdeTebas,conselhoseconsolações.

Enquantoessesgravesacontecimentosabsorviamaatençãodarainhaede todooEgito,osdoisnoivoscontinuavamvivendoemsituaçãocadavezmaisfalsaecontrafeita,eaproximidadedocasamentodespertavanocoraçãodeNeithumaansiedademisturadadedesespero.Sargon,écerto,nãolhedavanovomotivoparaqueixasdaviolênciadesuapaixão.Aocontrário,evitavaIssoquantopossível;mas,emtalexageradareserva,Neithpercebiaumarecalcadaraiva,umásperodesejodehumilhá-la, pela negligência e pelas dissipações a que se entregava ostensivamente. O outrorataciturnoemisantropojovemtransformara-seemassíduofrequentadordacasadeTuaá,cortejandoNefert,aqueminundavadejóias,despendendoouroamancheias,ecompareciaaosmaussítiosdeTebas,deonde,pormaisdeumavez,oconduziraminteiramenteébrio.Êqueeletentavaafogar,emtodososexcessos,afogosapaixãoquelhesubjugavaoser,emborainutilmente,porqueaimagemda noiva, em toda a auréola da sua pura e senhoril formosura, perseguia-o nos desmandos dasorgiasenaentorpecênciadoálcool.Alternativasdefúriadesesperadaedemornaapatiareagiamnocivamente em sua saúde e caráter. Neith estava informada da conduta repreensível do noivo;todavia,jamaislheesboçavaqualquerreprimenda,eacolhia-o,nasrarasvisitas,comumacalmaeindulgente bondade, ignorando que tal benevolência ainda mais irritava Sargon, porque ainterpretavanograudehumilhanteindiferença.

Certo dia em que Neith se achava em casa de Roant, esta já esposa de Chnumhotep, alichegouKeniamun.Fixandocominteresseecuriosidadeajovem,querarasvezesavistaradepoisdonoivadocomopríncipe,constatouqueNeithmudaramuitonaquelassemanasdecorridas.Apalidezdorostoemagrecidofaziarealçarmaisotamanhodosolhos;mas,aexpressãoderesignadatristezaespelhada no semblante aveludava-o, emprestando um novo encanto aos seus traços móbiles.Notando o olhar atento do oficial, Roant suspeitou desejasse ele palestrar a sós com a jovem, eretirou-se,apretextodeordensadar.

Pelaprimeiravez,depoisquelhecomunicaraocrimedeHartatef,Keniamunachava-seasóscomanoivadeSargon.Curvando-sevivamenteparaela,pegou-lheamãoedisseemocionado:

—Éverdadeoquemedisseopríncipe,amaresumdesconhecido,equedeixeideseroteupreferido?

A jovem enrubesceu, e, elidindo a primeira interrogação, contestou, erguendo para ele umúmidoolhar:

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—Istonãoéverdade;tuésmuitoparamim,Keniamun;umamigo,umirmão,quemeinspiratanta simpatia quanto confiança. De boa-vontade eu teria sido tua esposa; mas, os deuses semdúvidaseopuseramànossaunião,pois,porsegundavez,separaram-nos.Sêmeuamigo;estoutãoisolada!Desconfiodosmeusparentes;minhasorteestánavontadedeoutrem.Sargoné-meodioso,seuamorinspira-meterrore,euopressinto,seráfatalparamim.

Suavoztremeu,ealgumascálidaslágrimasdesceram-lhepelasfaces.

Apesar do egoísmo e da vaidade que endureciam o coração de Keniamun, sentiu afetuosacompaixãoporessapobrecriança,aparentementecumuladadetodosos favoresterrestres,e,emrealidade,tãodesditosa,vítimademilintrigas.Sentando-sejuntodela,eleaatraiuasi.

—MinhapobreNeith,contasemprecomigo,comdevotadaamizade.Nãoduvidodequeamesalguém, mas, por isso, não guardarei ressentimento, porque ninguém é soberano do seu própriocoração,etuasorteébemcruel,porqueseresposadeSargonépoucoinvejável.Deixa-metambémagradecer-te a corajosa confissão que fizeste a esse homem, para afastar de mim seu ódio e seuciúme;aprecioteusacrifício,enãooesquecereinunca.Setiveresnecessidadedeumconselho,deumdefensor,chama-meesereiportidecorpoealma.

Sem responder, Neith apoiou a fronte no ombro do oficial, e pranto copioso jorrou de seusolhos.Afinal,elaserefezelheapertouamão.

—Agradecida,Keniamun.Seeu temerumperigo,chamareipor ti.Agora,deixa-me fazer-teum pedido: aceita uma lembrança que trouxe para que Roant a fizesse chegar ao teu poder,recordação de mim. Os deuses conduziram-te aqui, para que eu tivesse a alegria de fazerdiretamenteaentrega.

Ergueu-se e apanhou de sobre um móvel delicada caixinha, ricamente lavrada, na qual seencontravamnumerosasjóiasdeelevadopreço.

—Aceitaisto,etambémoqueRoantteenviarádeminhaparte.Recebitantascoisaspreciosasdarainha,etambémdoshaveresdeHartatef,quetedesejariadoarumaparte.Outrarogativa:jura-meque, se te encontraresalgumdia emembaraços, seráamimque recorrerás.Sereiditosaemacudiraumamigo.

—Neith—disseKeniamun,seriamenteemocionadoeatingidopelagenerosidadedamoça—comoagradecer-te?Tumedoasriquezas,maspossoeuaceitá-las?

—De uma irmã e amiga tudo podes aceitar. Bem desejaria, casando contigo, livrar-te parasempredasmesquinhaspreocupaçõesdedinheiro,porque,eusei,nãoésrico,edifícilsetornaviverpresoàsexigênciasdatuacondição.Deixa-merepartircontigoumpoucodesteouroquepossuoemtantaabundância.

Olhosumedecidos,ooficialpegouasduasmãosdeNeitheasbeijou.

—Agradecido,Neith;aceitoastuasdádivas,e,senecessário,oteuauxílioamigo.Euperdiemtiamelhoremaisbeladasmulheres;estouconvencido,porém,dequeconservarásparamimumlugarnoteucoração,esereifelizcomisso.Nãomerecusesoquetevoupedir;deixaqueteabraceumaderradeiravez,comosefosseumadeusaopassado,umselodonossopactodeamizade.

Semhesitar,a jovemcolocouamãosobreaespáduadooficiale lheofereceuospurpurinoslábios. Agitado pelos mais diversos sentimentos, Keniamun a estreitou em seus braços e lheimprimiunabocaumbeijo.Depois,voltando-sebruscamente,quisretirar-se.

—Keniamun!Tuesquecesacaixeta—gritouNeith.

Ele atendeu precipitadamente, e, apoderando-se do pequeno tesouro, sem mais se voltar,correuparaforadacasa.

Ficandosozinha,Neithreclinou-senumleitoderepousoecobriuorostocomasmãos.Porque—pensavaelacomamargor—odestino,quelherecusavaRoma,tambémlhearrancavaKeniamun,queaamavatãosinceramenteeaté lheperdoavaoamoraoutrohomem,contentando-seapenascom a sua amizade, feliz com um cantinho em seu coração? Ele também a abraçara, e ela nãosentiraomedomescladodehorrorquelhecausaraobeijoescaldantedeSargon,oolharcoruscantecomosefossedefogo.Depois,opensamentovoouparaohomemqueadoravaepertenciaaessaNoferura,quenãoofaziaventuroso.Ódio,ciúmeedesesperoinvadiramocoraçãoapaixonadodeNeith,ecomtalviolência,queeladesatouemsoluços,dizendoquaseemvozalta:

—Roma!Roma!Porquetevieu?

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Umsuspiroabafadoatingiuseuouvidonesse instante,ea fezestremecer.Ergueuobustoeemitiuumgrito:adoispassos,apoiadoaumacoluneta,estava,depé,ojovemsacerdotedeHator.Talvezdevidoàcanícula,nãovestiaocompridohábitobranco,esimotrajecostumeirodosnobresegípcios: túnicabranca,curta,umcolardeduplasvoltaseogorro. Imóvel,qualbelaestátua,elefixavaNeithcomestranhoolharsemparecerapercebidodaagitaçãodamoça,que,surpreendidadeimproviso,tremiadepejoedereceiodehavertraídoosegredodocoraçãoanteopróprioqueelaamava. Parecia-lhe que Roma deveria ler o recôndito de sua alma e rir talvez da jovem que lhesuspiravaonometão imprudentemente.Aestanovasuposição,todoosanguelheafluiuaorosto;ergueu-se como de um salto, e, passando qual flecha por diante de Roma, precipitou-se para ojardim, no intuito de refugiar-se ali, até que o sacerdote se retirasse, e também porque, nessemomento,afiguradohomemamadoselhetornaraodiosa.Mas,antesquepudesseatingirasombraespessadossicômoros,sentiuquealguémlhepegavaumbraçoeadetinha.

—Porquemefoges,Neith?Acalma-te—disseRoma,fixando-anumfulgenteolhar.

A emoção da jovem fora, porém, demasiado forte para os nervos superexcitados pelosdesgostosdosúltimos tempos,eaindapelarecenteentrevistacomooficial;acabeça tonteou,osouvidoszumbiramepareceuquetombavarodopiandoemumsorvedouroescuro.Quandoreabriuosolhos,estavadeitadanumbancodepedraencobertoàsombradeumcaniçal,comacabeçanopeitodosacerdote,cuja respiraçãoagitadaelapercebia.Constatandoquerecuperaraossentidos, fê-lasentar-se,ajudando-acomumbraçoaequilibrar-se.

—Neith — disse ele com bondade —, tu estás enferma, tua agitação, sem motivo, o prova;precisas acalmar-te, olhar mais tranquilamente o futuro, que te reserva felicidade. Disseste queHartatefteeraabominável,eosdeusestelivraramdele,etederamparaesposoumhomemmoço,belo,queteamaesaberáfazer-teventurosa.Porqueessaslágrimas?Elasprovamqueexisteumadissonância em tua alma, e que não amas nenhum desses seres a quem podes desposarlegitimamente.Mas,acredita-me,Neith,desejaroquenãoépossívelobternãodáfelicidade;sóocumprimentodosteusdeverespreencheráovácuodetuaalma.Nãoolhesàdireitaeàesquerda;trataderetribuiroafetodoteuesposo,eapazvoltaráaoteuespírito;oteuviverdecasadadar-te-ánovas alegrias, júbilos sagrados, quando fores mãe, e sobre o pequeno ser que os Imortais teconfiarãoconcentrarástodososteuspensamentos,esorrirásentãodosteusdevaneiosinfantis.

Neithlevantou-se,comasfacesescarlates.

— Não fales mais assim, Roma — interrompeu ela com vivacidade. O que dizes respira aplácida virtude, a severa sabedoria da divindade a quem serves; mas, tu não entendes nada dossentimentos apaixonados da alma. Tu me falas de deveres... Acaso o coração cogita de deveres,quandoestásubjugadopelaimagemdeumserúnico?Meucoraçãonãoéovácuoqueimaginas,eleestácheiopelohomemqueamounicamentee...

Umaondadesanguesubiuàsfacesdomoçosacerdote,eoseuserenoolharteveumarápidaevivaflama,aocontemplarostraçostransfiguradosdeNeith,aqualestavalongedesuporquantosetornara irresistível, na perturbação apaixonada que lhe arrebatara o ser e quase arrancara aconfissãodoseuamor.

—Neith!Neith!—sussurrouomoço,emvozvacilante,pegandoambasasmãosdajovem.Nãodigasmais,porquediriasdemasiado,eolamentarias.Nãotenhodireitodeconhecerosmistériosdoteucoração;seiqueoestadoemqueteencontrasfazesqueceraquemfalas,emaistardefugiriasdemim,qualofizestehápouco.

Como que despertando em sobressalto, a moça interrompeu-se, mas, não procurou fugir.Invencível sentimentodevergonhaedesespero lheprendiaospésaochão:aspalavrasdeRomaderam-lheaconvicçãodeque,presoàesposa,eleafizeracalaremtempoaconfissãodeamor,paraevitarahumilhanteresposta—“Nãotepossoamar!”

SeNeithhouvessevistooolhar cheiodedoredepaixãoqueele lhe fixara sobrea cabeçaabaixada, sentiria lenitivo; mas, curvada, sem ousar erguer os olhos, nada viu. Procurando falarmaispróximo,osacerdotemurmurou:

—Neith,compreendotudoquantooprimeteucoração,eninguémmaisardentementedoqueopadredotemplodeHatorrogaráaosdeusespeloteurepousoeventura.

Neithnãosemoveu,nemfalou.E,aoouviroruídodospassosdeRoma,quesedistanciava,deixou-secairsobreobancoedesatouempranto.

—PelosdeusesRaeHator,quefazesaquisozinhaachorar?—perguntouinstantesdepoisa

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vozargentinadeRoant.PenseiqueestavascomKeniamun,mas,aoperceberqueseausentara,vimprocurar-te, e encontrei Roma que fugia com singular semblante deste bosquezinho onde venhoencontrar-teemsoluços...Tivestealgumarusgacomele?

Neith, soerguendo-se, enlaçou o pescoço da amiga, que se curvou para ela, e chorou aindamais.

—Vamos,sossega,econfessaoqueaconteceu—disseRoant—atraindo-acarinhosamenteaoseio. Sabes que te amo como se fosses minha irmã caçula e que tudo quanto me disseres serásepultado em meu coração. Sê franca, sem restrições. Tiveste algum desentendimento comKeniamun,oumeuirmãoteofendeu?Notoquemudoumuitodesdeháalgumtempo,e,deteulado,queevitasfalaraseurespeito,eagoramepareceutranstornado.Queháentreambos?

—Oh!Roant,quemeimportaKeniamun?Quantoateuirmão,éumhomemtãopuro,tãobom,que,longedeofender,sofrecomosaflitos.Suaagitaçãofoicausadaporminhaterrívelimprudência.Sómefaltouconfessar-lheoquetenhoocultadomesmoati:amoRomaapaixonadamente!Eele,tãovirtuosoetãosevero,estavasemdúvidaperturbadocomaminhafaltadecompostura.Mas,deixa-medizertudo.

E narrou rapidamente o acontecido. O formoso semblante de Roant pareceu por instantespetrificadodeespanto;aconsequência,porém, foique,emuma francaecordial risada,deudoisgrandesbeijosnasfacesdeNeith.

— Tu amas o meu bravo Roma! Eis que te fazes ainda mais querida do meu coração.Tranquiliza-te,porém,minhapequena.Não foiumaconfissão tãoacariciadoraqueoperturbou,edarei um dedo a cortar se, fugindo, ele pensou na tua dignidade conforme supões. Em verdade,arreceou-se da própria debilidade, porque tu és muito linda para que ele fique insensível,principalmente sabendo-se amado. Asseguro-te que meu irmão é feito da mesma pasta frágil detodos os homens, sujeito a um amor proibido e a todos os enlevos. Só o seu olhar espelha tantavirtude!Alémdomais,adetestávelesposatemsobreeleopesodeumrochedo.

—Eporquecasoucomela?

—Ah!Isso foiumaloucurade juventude,oqueconfirmaquantoacabodetedizer.Roma,eassimtodososhomens,podedeixar-seprenderatolicesirreparáveis,quedeploraemseguida.Porisso,ei-loligadoaessamulher,inferioraelepelonascimento,àqualnãomaisama,enemmesmopodeestimar,porqueNoferuraédemuisuspeitavirtudeedecaráterInsuportável.

—Mas,umavezqueeleaamou—falouNeithsuspirando—dize-me,Roant,elaémuitomaisbonitadoqueeu?

—Não,não, tués,semparalelo,mais formosa,eelanão temgraça.Calma-te,pois,porquetirareialimpoesseassunto,earrancareideRomaaconfissãodaverdade.Seeleestiverconvencidodequeteama,eutedirei,podesficarcertadisso.

—Nãopossocrerquemeame—ciciouNeith.Nãoquisescutaraminhaconfissão;chamouminhaatençãoparamimprópria.Tê-lo-iafeito,separtilhassedosmeussentimentos?

—Paramim, issoprovasomentequantomedo tevedesimesmo.Mas,vem,minhaquerida.Chnumhotepnãotardaachegar,edevofiscalizarospreparativosdojantar.

Caminhando,Neithinsistiuemdizer:

—Ah!quantodesejariaverNoferura!Parecedepropósitoqueeunãoaencontrenuncaemtuacasa.

—Éverdade;semprevosdesencontrais;mas,casoodesejes,convidá-la-eiexpressamente.

Umaserviçal,vindoacorrer,anunciouemvozalta:

—Senhora,senhora,anobreNoferuraestáaí,epedeparatefalaruminstante.

RoantdespediuaservaelevouNeith,apóssi.

—Eisrealizadoteudesejo—dissearir.Mas,quepretenderádemim,aestahora?

Chegando próximo do terraço, encontraram Noferura que caminhava em sua direção. Arecém-vinda exibia grande “toilette”, sobrecarregada de anéis e braceletes; um grande diademaincrustadoderubisprendia-lheosnegroscabelos;acimadatestabalançavaumaflordelótus,ena

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mãotraziaumramalhetedessasflores.

Sem prestar atenção às saudações de Roant, os olhos brilhantes de Noferura firmaram-securiososemNeith,que,pálidaeperturbada,contemplavaamulherdohomemamado.

—Sêbem-vinda,Noferura,e,antesquenossentemos,deixa-meapresentar-teaminhamelhoramiga,Neith,afilhadonobreMena,noivadopríncipeSargon.

—Ah!Éumfelizacaso,queagradeçoaosdeuses.Desdehámuitodesejavaconhecerabelanoivaprotegidadanossarainha.

Astrêsmulheresinstalaram-senoterraço,eNoferuraencetouaexplicaçãodoassuntoqueatrouxera inopinadamente à casa da cunhada, originado de certa mensagem recebida de parentaresidenteemMênfis.Tratava-sedegravequestãoemfavordaqualpediaaintervençãoprotetoradeChnumhotep.

Sem interferirnaconversação,Neithacompanhava,comumacuriosidadeávidaeciumenta,cada movimento da rival. A voz rumorosa de Noferura, seus gestos bruscos e seu atrevido eprovocanteolhardesagradaramsoberanamenteàjovem.Apesardisso,reconheceuqueerabastanteatraente para reconquistar o amor marital, mesmo que o “tivesse perdido”. Um ciúme rancorosocircundouocoraçãodeNeith, infligindo-lheomaisrudesofrimentoqueatéentãoexperimentava.Romaestreitavaessamulhernosbraços;essesvermelhoslábioseleosbeijavaapaixonadamente;atoda hora ela podia estar junto dele, ouvir-lhe a voz, fundir seu olhar nos olhos tão doces, tãofascinadores do moço sacerdote... Por momentos, Neith fechou as pálpebras; dir-se-ia que seasfixiava.

—Nãoqueresficarparaarefeição?Chnumhotepnãodevedemorar,etulhedariasdevivavozoteuassunto—disseRoant.

— Não, não; teu pedido terá mais prestígio para ele. Além disso, passei aqui de relance,porque vou à casa de Tuaá, onde há festa hoje, e nessas festas a gente se diverte sempredeliciosamente.

Umaexpressãodeespantoedesprezoesboçou-senítidanosemblantedeRoant.

—TuvaisàsfestasdeTuaá,mulhertãomalafamadaquantoafilha,Nefert,equesãoevitadasportodasasdanossacondiçãosocial?Admiro-medequeRomatepermitatalconvivência.

Noferurarugiudecólera.

—Eeumeadmirodequecaluniesduasmulherestãoamáveis—gritouelacomesganiçadoacento e agitando as mãos com a violência que lhe era peculiar. Tuaá é uma nobre viúva, rica eindependente, que pode receber quem quiser, e somente a inveja espalha que suas festas e suaconvivênciasãomalafamadas.QuantoaNefert,evitam-naporciúmedesuabeleza,comaqualbempoucasdasnossaspodemrivalizar.Mas,asmulheresquenãotêmatemeroparalelo,frequentam-lheacasacomprazer.

—Principalmente se elas não se arreceiam da sua reputação, e pouco se inquietam com aopiniãodomarido—intercalouRoant,emtommordaz.

—Romanãotemdemeproibir,enãolhepeçolicençaparasair—respondeuNoferura,comos olhos faiscantes. Digo-te francamente que estou farta do seu ciúme, das suas suspeitasperpétuas;nãopossoficartrancadaeternamenteemcasaparaouvircensurasesuportarcenasdezelosferozes.AmoRomaeapreciooamorprofundoquemededica,mas,emtudoémisterhaverlimite,eoamordevetê-los.Eagora,adeus.Tuaámeespera.

Brancaaténoslábios,sacudidaporestremecimentosnervosos,NeithescutaraaexplosãofinaldeNoferura,que,aodespedir-se,firmouolhosperscrutadoreseadmiradosnoaspectodesfiguradodajovem.Logoqueacunhadasaiu,Roant,numtommeioindulgente,meiorisonho,exclamou:

— Minha pobre Neith, não te impressiones assim com as mentiras espalhadas por estaimprudente. Há muito tempo que Roma não se importa com ela. Essa mulher o desonra, fazciumadas,e...

A chegada de Chnumhotep interrompeu a conversação, e, apesar dos rogos do casal, Neithdespediu-seImediatamente.Sufocava.Umsentimentodesconhecido,porématroz,atenazava-lheocoração, e ela ansiava por estar sozinha, para dar livre expansão aos pensamentos tumultuosos.Ante seu espírito turbilhonava Roma, falando de amor a Noferura, e uma fúria dominava-a a talpontoque,seomoçosacerdotelhehouvessechegadoaoalcancedamão,tê-lo-Iamortoasangue-

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frio.Nessanoiteatristejovemnãodormiuumminutosequer.

—EssapobreNeithparece-sebempoucoaumanoivaditosa—disseo chefedasguardas,dirigindo-seaoquartoparadesembaraçar-sedasarmas.Pelomenos,Roant,tuapresentavasoutrafisionomia, dois dias antes do nosso casamento. Hoje, notadamente, Neith estava de todoalquebrada.

—Sim,eeumeespantodequearainha,queaamatanto,sejacegaaohorrorqueestauniãoinfundeaNeith—respondeuRoant,pegandoasarmasdasmãosdomaridoparapô-lassobreummóvel.

—Hum!issonãomeadmiratanto,amim,porquevejoasocupaçõesdarainhaeoscuidadosqueaassoberbam—comentoueleemvozbaixa.OFaraóestánasúltimas,comashorascontadas,oqueébastanteparaomomento,sempermitirrepararemeventualidadesfuturas.

—AcreditasqueospadresconseguirãolevaraotronoopequenoTutmés?

Ochefedasguardasfezummovimentodeombros.

—Édifícildedizer.Sabesqueocleroéumapotência,mas,emtodoocaso,aelescabeojogomais difícil do que o por ocasião da morte de Tutmés I, quando forçaram Hatasu a casar com oirmão, sebemqueopróprio rei a declarouherdeirada coroa.Desta vez, porém, elesnão têmopretendenteaoseualcance,poisopríncipeestábemguardadoemBouto,eHatasuadotoumedidaspara abafar qualquer revolta ostensiva. Existe um exército em Tebas, e provavelmente ninguémtugirá. É compreensível que, no meio de tantas preocupações, a soberana não preste a devidaatençãoaoscaprichosdeNeith.

— Neith não tem tristeza de caprichos. Ah! Chnumhotep, se eu pudesse confiar na tuaabsoluta discrição!... Se me juras manter tumular segredo, eu te revelarei alguma coisa bemcomovedora.

Intrigadocomaagitaçãodaesposa,Chnumhotep fezasmaiscompletaspromessas,e juroudiscrição de sepulcro fechado. Completamente tranquila, então, Roant transmitiu ao marido aconfissãodajovem,confissãoqueaabafava.

ObomChnumhotepdeplorou sinceramente omal-venturado amor da moça, e o não menosdesastradoconsórciodeRoma;mas,osseuspensamentosnãoforammuitoparaalém.Afomeerarealidade, e ele ansiavasentar-se à mesa do almoço. Roant, a seu turno, era trabalhada por umúnicopensamento:remediar,dequalquermodo,adesditadesuaamiga,distanciar,omaispossível,aqueleciúmequeiriadestruiroseurepouso.Feliz,amada,frívola,jamaiscontrariada,nãoadmitiaquesehouvessederenunciaràfelicidade,eachavaquetodososmeiosdeatingirametadeseusdesejoserampermitidoseescusáveis.Assimpensando,nãoconseguiuconciliarosono,nessanoite,eoresultadodesuasreflexõesfoique,seRomacorrespondesseaoamordeNeith,oqueeramaisdoqueprovável,tudopoderiaarranjar-sefelizmente.Adificuldadeinicialeraarrancaraverdadeaessehipócrita,edepoisfazê-loconfessarseussentimentosàprópriaNeith,calmanteparaosciúmesda jovem. Em seguida, ela, a irmã, a amiga, velaria por essa felicidade e lhes proporcionariaencontros, o que compensaria a esposa de Sargon dos tédios de sua união forçada, sem excitarsuspeitasaopríncipe.

A títulodepreliminaresde tãograndesprojetos,escreveu, logoaoamanhecer,umrecadoaRoma, convidando-o afetuosamente a vir vê-la, tão depressa terminasse os afazeres matinais notemplo,porissoquetinhaassuntodamaisaltaimportânciaparalhefalar.JamaisteveRoanttantoaçodamentonasaídadoesposo,quantonaqueledia,porquedesejavaestara sóscomo irmão.Equando este chegou, instalaram-se imediatamente no aposento de vestir; mas, ao pensamento dequepodiamserescutadospelosouvidosindiscretosqueosrodeavam,levouparaoterraçooirmão,sombrioeabsorto,queaseguiuindiferente.Apenassehaviamsentado,umjardineiroquepassavadespertounovostemoresemRoant.

—Não,aquinãopoderemosconversar!—exclamou,saltandodacadeira.

E,pegandoamãodosacerdote,foramparaumpavilhão,isolado,seuretirofavorito.

—TratadeconspiraçãocontraHatasu,oassuntoquemevaisconfiar?— inquiriuRoma,demodoirônico.

Semresponderàpergunta,a irmãapoiouoscotovelosnamesadepedra,eexaminou, comescrutadorolhar,osemblantepálido,anuviadoeabatidodeRoma.

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—Ah!Ah!tambémtuestáspálido,tristonhoedesencorajado?

—Esperoqueoteuchamadonãotenhasidoparaexaminarafrescuradaminhatez—disseoirmão,irritado.Vamosaoqueimporta:quetensadizer-me?

—Quetuéstolo,mas“tolo”defazerpena—respondeuRoantemtomdecomiseração.

Indefinívelsurpresarevelou-serápidanaexpressivafisionomiadopadre;depois,enrubesceufortemente.

—Tuaopiniãonãoé lisonjeira,eperguntoamimmesmosevaleusacrificaraminhamanhãpara ouvir de ti coisa tão banal. Talvez me digas: em que fiz jus a esta expansão de admiraçãofraternal?

—Semdúvida!NãoésertoloimpediraconfissãoqueteiafazerNeith?Porqueagisteassim?Foipornãocorresponderesaoseuamor,ouporquetivestemedodetimesmo?

Romaergueu-sebruscamente,comosolhosfulgurando.

—Quemedizes?Teriaelaaimprudênciadeteconfiarsualoucura?

—Loucura!Naturalmenteéloucuraamarumnéscio,semcoração,igualati.Apobrecriançaéduplamentehumilhadaporsua imprudência,porque,pela tuamaneirade falar,elasupõehavermerecidoteudesprezo,tuacensuraporsuafaltadedignidade...Queseieu!Etutratasassimessainditosaadolescente,tãolindaetãodesventurada!Verdadeiramente,Roma,creioqueestáscego...Não,nãotentesfugir,antesdemeresponderesclaramente—exclamouRoant,agarrandoobraçodoirmãoquesehaviavoltado,comperturbaçãoeenrubescido.

Energicamenteelao fezsentar-sedenovo,e, tomando-lheacabeçaentreasmãos, imergiuseusorridenteeastutoolharnosolhosperturbadosdoIrmão.Depois,abraçando-o,acrescentou:

—Vamos,sêfranco;tusabesquantoteamo,meuirmão!

—Ah!Roant,quemepedestu?—suspirouojovempadre.—Eaqueconduziráaconfissãodomeudesvario?ÉverdadequeamoNeith,desdequando,pelaprimeiravez,meuolharmergulhounos seus olhos límpidos; noite e dia, sua radiosa Imagem me persegue; o ciúme, o desejo de seramadoporelamedevoram;mas,eu,casado,ela,pelavontadedarainha,deveráembrevesdiasseresposa de Sargon. Posso eu, se homem honesto, sacerdote de Hator, encorajar sentimentosproibidose,pelaconfissãodomeuamor,arrebatá-lacompletamenteaseusdeveres?Nãoémelhordeixarqueacreditenaminha reprovaçãoaos seus sentimentos,quenão representacoisaalgumaparamim,eque,feridanoamorpróprioenoorgulho,meesqueçaesetorneesposaamanteefelizcomohomemqueosdeuseslhedestinaram?

Emocionada,vencida,Roant,escutandooirmão,seguiraalutaíntimaentreodevereapaixãoqueseespelhavanobelosemblantedoirmão.

—Neithtemrazão;tuésmelhordoquetodososoutroshomens—murmurouela,encostandoafacenorostodoirmão.Mas,Roma,tuavirtudetorna-seduraecruelparaaminhapobreamiga.Oconsórcio que a espera gela-a de terror e só lhe inspira repulsa, porque o amor de Sargon éImpetuosoedestruidor,qualodeumespíritoimpuro.OafetodeNeithportieociúmearrebatam-lheopoucodeseurepouso,etemmultanecessidadedeserconsoladaefortalecida.Nãoseráteudevercalmaressessentimentostempestuosos,destruiroseuciúme,assegurando-lhequeaamaseestimas?Quemelhorpalavralhesaberárestituirapaz,eguiá-lanaestradadosdeveres?

Corando e empalidecendo, respiração penosa, o moço sacerdote escutara os especiososargumentosdairmã.

—Tumetentas,Roant,emepropõesoImpossível.EunãotenhoocasiãoalgumadeavistarNeithsemtestemunhas.

—Previtudo,e,seobedeceresameuconselho,tuverásNeithnodiadocasamento,duranteafesta. Conheço perfeitamente a disposição do palácio de Sargon que, deves lembrar, já foipropriedadedeSemnut,antesquearainhaodoasseaopríncipe.Muitobem.NotérminodojardimquemargeiaoNiloháumpavilhãoisolado,acessívelpeloladodorioporumaescada.Quandofornoite,tuvirásembarco,rumodessepavilhão,sobodisfarcedepescadoroudeoperário.EutrareiNeithetereisumcolóquiodemeiahora.Tuaacalmaráscomaconfissãodoteuamor,elhefaráscompreenderquesecontentecomessacertezaevivaparaosseusfuturosdeveres.

—Não,não;éumainsânia!—replicou.

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Mas, Roant era engenhosa. Pouco a pouco, demoliu os escrúpulos e as objeções de irmão,excitando habilidosamente todos os seus sentimentos. E, por derradeiro argumento, descreveu atorturamoralexperimentadaporNeithnaocasiãoemqueNoferurasegaboudoamordesenfreadodeRomaedascenasdeciúmequeelelhefazia.

— Noferura ousou isso? — explodiu o padre, erguendo-se, faces afogueadas. Ela teve odesplante de afirmar que a amo, quando sofro com desgosto, sob meu teto, a presença dessadesonesta que me trai? Tens razão, Roant, devo reabilitar-me perante Neith de semelhanteacusação; não quero que suponha seja ela, a pura e nobre criança, preferida por essa criaturadegradada.Preparatudo,Roant.Nanoitedasnúpciaseuestareinopavilhão.

— Felicito-te pela sábia resolução — disse a jovem senhora com alegria. Mas, deves fazeraindaumacoisa:proibirNoferuradefrequentaracasadeTuaáeNefert,poiselaencontraráaliumbelo campoparaas infidelidades, e, emqualquer caso, “tuamulher”deveevitar as reuniõesmalafamadas.

—Euaproibirei—respondeudistraidamente—,nãohoje,porém,porquevouregressaraotemploealipermanecereiatédepoisdeamanhã.Acertezadeseramado,ea impossibilidadedeimpedirqueamulheradoradacaiaempoderdeSargonperturbamminhaalma.

OconsórciodeSargoneNeithfoicelebradoquasecomaspompasdeummatrimôniodacastarealenga.Todosospríncipes,dignitáriosegrandessenhoresdeTebasreuniram-senopaláciodosnubentes,eaprópriarainhacompareceu,apesardaspreocupaçõesedarepugnânciadeseparar-sedoFaraómoribundo.Deresto,Hatasunãodeixavatransparecervestígiosdeíntimainquietude,e,com a graça habitual, saudou os assistentes, felicitou o jovem casal, tomou lugar na poltronaelevadaqueforaespecialmentepostaparaelanamesadofestim.Apenas,nãoreparounapalidezeno abatimento de Neith, nem na extraordinária agitação de Sargon, cujo olhar fogoso não sedesprendiadaesposa,que,olhosbaixos,parecianãoseaperceberdapresençadele.Umaexpressãocadavezmaisduraeamargacontraíaos lábiosdopríncipe;profundosuspiroestufouatúnicadepúrpura fenícia que vestia e fez tinir ligeiramente os cordões de pedrarias que lhe ornavam opescoço. Dominando-se a custo, ergueu a taça para beber à saúde e ao reinado glorioso da realprotetora.

Terminadoobanquete,Hatasuregressouaopaláciocomoséquito,noqualfiguravamSemnuteChnumhotep;mas,aausênciadasoberanadeunovosurtoàalegriadosconvidados, libertosdaetiquetaque suapresença impunha.A animação foi sempre crescente, e os copos sempre cheioscomeçavamaescaldaroscérebros.Amultidãopalradora,animada,álacre,dispersou-sepelassalas,pelovastoterraçoepelosjardins.

Sargon,rodeadopelosconvivas,teveforçosamentedecumprircomamabilidadeosdeveresdedonodacasa;Satatiocupava-secomassenhoras,disfarçando,comasuapolidaanimação,atristezaapáticadeNeith.Anoitedescerarapidamente,semcrepúsculo,comosóiacontecernessepaís,etudo era iluminado com tigelinhas, tochas e alcatrão aceso em vasos, que evolava sua claridadeavermelhada sobre a espessa verdura dos bosquetes. Roant, que espreitava o momento comimpaciência, achou oportunidade, conversando com a noiva, de conduzi-la por uma aléia maisescura.

—Depressa,segue-me—ciciouela—dirigindo-sequaseacorrerparaopavilhão.

Emboraaltamente intrigadaporessacarreiramisteriosa,Neithacompanhou-a,perguntandoaonde a conduzia. Bem depressa chegaram à pequena casa, que era constituída apenas por umacâmarae terraçocomunicandoparaoNilo, eque foraassim feitaporSemnutpara refúgioondepudessetrabalhartranquilamente.

—Esperauminstanteaqui!—disseRoantpenetrandonopavilhão.

Apequenasalaestavamobiliadacomalgumascadeirasemesa,eera iluminada fracamenteporumatocha fixaàparede.Nãohavianinguémali,mas, logoqueRoantchegouao terraço,umhomem,emvestimentadepescador,destacou-sedasombra.

—Éstu,Roma?—indagouela.

—Sim.

—Então,vem;trouxeNeith.

—Ondeestás,Roant?Tenhomedoaqui—diziaNeithnessemesmoinstante.

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Semresponder,levouaamigaparaointeriordopavilhão,murmurando-lhe:

—Permaneceaqui,atéqueeutevenhabuscar.

E,voltandocostas,saiuacorrer.

Atônita, Neith circunvagou um olhar assustado em torno de si; mas, ao avistar Roma, quereconheceuimediatamentesobodisfarce,emitiuabafadogritoecobriuorostocomasmãos.

—Não te atemorizesdemim,minhabem-amada.Vimaqui tedizerqueésparamimmuitomaisdoqueaprópriavida—falouele,abraçando-aamorosamente.

Duvidandodotestemunhodossentidos,Neithergueuosolhos,e,encontrandoosapaixonadosquebuscavamos seus, inaudita felicidade invadiu-lhe a alma; abraçou-seaopescoçodo jovem, euniramoslábiosnumgrande,amorosobeijo.

—Oh!Agorapossotudosuportar—murmurouela.Seiquemeamas,nãomedesprezas,nemmecondenaspormeuamor,equeNoferuranadasignificaemteuviver.

—Neith,eunãoteamobastantecomodeviaamar,poisestouaquicontraavozdodeveredaconsciência—dissecomummistodeventuraedeamargornavoz.TambémoDestinoquemepuniurudemente, porqueme fostedadapor ele epor elemesmo roubadanomesmo Instante, alémdecondenar-meatodasastorturasdociúme,sabendoqueestásentregueaoamorlegítimodeSargon.

—Nãoteatormentesporisso—respondeuNeith,todaradiosa.SuportareiSargon,mas,elenãoteráamínimaparceladomeucoração,porquepensareisempreemti,enosencontraremosemcasadeRoantenotemplo.Tumeconfortaráscomastuaspalavrasdeamoremefortaleceráscomos teus conselhos; em todos os perigos poderei chamar por ti em meu socorro; não terei maisciúmes—terminouela,abraçando-seaojovem.

Roma contemplou-a com adoração. Que linda estava nas vestes de noiva! As jóias de queestava repleta fulgiam na débil claridade, emitindo prismas multicores, e o resplendor dos seusnegrosolhosrivalizavamcomodaspedrarias.

—Tunãoterásciúmes,criançaegoísta,eeu?—disseele,comumsuspiro.

—Éverdade;ecomosuportareiarrancar-medeteusbraçosparasofreroamordeSargon?—exclamou,comasúbitaexaltaçãododesespero.Mata-me,Roma;depoisdestahoradeventura,nãoépreferívelamorteavivercomumhomemquemeéodioso?Eassimnãosofrerásmais.

Aslágrimasimpediram-nadeprosseguir.

—Nunca!Devesviver,Neith,porqueatuaéaminhavida,minhasalvação,minhaesperança.Equemsabeseosdeusesterãopiedadedenósenosunirãoumdia?Esperando,sustentar-nos-emosreciprocamente.

Nesseminuto,lúgubreclamorfez-seouvir,vindodopalácio,espalhando-sepelorio,emgritosagudos.

—Queseráisso?—disseopadrevoltando-se,inquieto.

Efalavaainda,quandoRoantirrompeunopavilhão,lívidaetrêmula.

—UmenviadodeChnumhotepveiotrazeranotíciadamortedoFaraó.Todaafestaterminou;o luto cobre o Egito. Apressa-te em regressar ao templo, Roma, e tu, Neith, vem, para que nãonotematuaausência;osconvidadosvãoretirar-se.

Romadeuumderradeirobeijo emNeith e retornouparaobarco.Asduas jovensmulheresrumaram, correndo, para o palácio, onde a confusão substituíra a alegria dos convivas; comlamentaçõesegritos,senhoreseescravosarrancavamasvestes,punhamterranatestaebatiamnopeito,deplorandoaltamenteodecessodoFaraó.

Quando Neith, um tanto ofegante, se reuniu ao marido, este, de pé, em sala próxima à desaída, despedia-se dos convidados, que se dispersavam rapidamente. Com expressão sombria esuspeitosa, olhou de alto a baixo a esposa, cujo rosto, agora carminado, parecia mostrar-seiluminado por íntima felicidade, e mudara totalmente de expressão. Logo depois, os nubentesficaramasós,e,algunsinstantes,permaneceramdepé,silenciososeperturbados.

—Olutonacionalperturbounossafesta,tristepresságioparaofuturo—disseafinalSargon.

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Os convidados fugiram, escravos e servos estão desorientados... Deixa-me conduzir-te à câmaranupcial;ambostemosnecessidadederepousoapósaazáfamadodia.

Aproximando-se, pegou a mão da esposa; mas, notando que ela estremecia e recuava, umclarãopareceujorrardeseusolhos,eavozselhefezsoturna:

—Não receiesque te importune comdemonstraçõesmuito cálidas; o amor repelidonão sehumilhará diante de ti. Não quiseste meu amor indulgente, escravo da tua beleza... Pois bem;sentirástodaaseveridadedomarido,e,nessacondição,vigiareiparaqueatuapaixãoporumoutronãovenhatocardepertoaminhahonra.

Neith levantou a cabeça com altivez. Satisfação e desafio estavam fundidos no olhar evibravamemsuavoz,quandoreplicou,bruscamente:

—Tantomelhor;tuaraivaépreferívelaoteuamor.Mas,bemtardetepropõesavigiarpelosmeus sentimentos e pelos meus atos... Olha! Minha boca, minhas faces ardem ainda dos beijosdaqueleaquemunicamenteamo;palpitoaindadefelicidade...Mas,osegredoquenosenvolveétãoinsondávelquantoomeuamor,ejamaisalguémsaberáonomedaqueleaquempertençodecorpoealma!

O príncipe ouvira como que petrificado. Cambaleante, recuou um passo, e um gritoenrouquecidolhesaiudopeito.

—Traidora!...—sibilouelenumavozirreconhecível,olhosinjetadosdesangue.Horasdepoisdehaveresjuradofidelidadeanteosdeuses,manchasminhahonra?Morre!!!

Uma lâmina brilhou em suas mãos e fundiu no peito de Neith, que, emitindo um grito,estendeuosbraçosedobroudejoelhos,inundadadesangue,tombandoemseguida.

Comoquedespertando,Sargondeixoucairopunhal,erecuoucomassombro:

—Que fiz?Matei-a!—murmurou,passandoamãopela fronteporejadadegélidosuor.Oh!Neith,porqueminhamãodeviaferir-te?

Eincapazderaciocinar,dechamaralguém,atirou-senumacadeira.Esuaprostraçãotornou-seabsoluta,porquenãoouviuocaminharrápidodosqueseaproximavam,nemoduplogritoqueressoou quase imediato. Mena e Keniamun chegavam ao limiar, contemplando, como queaparvalhados,adesposadaestendidaimóvelnochão,numlagodesangue.

Osdoisrapazeshaviam-seretardado,tratandodeassuntodeserviçocomPair,eiamapanharsuasarmasecapasquandoouviramogritodeNeith.Refeitosdochoque,precipitaram-separaajovem,levantaram-na,auscultando-aansiosamente,parasaberseaindavivia.

—Respiraainda!—disseKeniamun,servindo-seda“echarpe”querodeavaacinturadamoçaparabandagemdaferida.

— É preciso chamar Satati, que não deve ter ido embora, porque desejava despedir-se deNeith—gritouMena.Depressa!ChamemanobresenhoraePair—acrescentou,percebendojuntodaportaosolharesespantadiçosdeumgrupodeescravos,queaumentavaprogressivamente.

Ao mesmo tempo, seu olhar incidiu sobre Sargon, sempre mergulhado em completo torpor.Imediatamenteseuolharsecontraiu,exprimindoummistodefuroreselvagemsatisfação:

—Ah!Estásaí,miserávelassassino—gritou,precipitando-separaopríncipeaquemsafanou,comoseoquisessepartir.

Oinsólitoataquepareceudespertaroagredido.

—Elametraiueeuamatei!—balbuciouele,ensaiandosoltar-sedasmãosdeMena.

Este,porém,maismusculoso,omanteveseguro.

— Traidor que és, acreditas que te permitiram desposar uma nobre filha do Egito, paracaluniá-laprimeiroedepoisassassiná-la?Prestaráscontasàrainhadestecrimeedatuaingratidão.Eisoqueseganhaemfazerdeumescravoumgrandesenhor!Evósoutros,trazeicordas;éprecisoevitarqueestechacalfujaantesquearainhadecidasobreasortedoculpado.

EnquantoamarravamSargon,Satatiapareceu,pálidaetremente,seguidadePair,cujoolhar,poucoespiritual,exprimiaumaalteraçãoquasecômica.

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—Deixem-nolivre,porquenãofugirá—disseela,aoverotratamentoinfligidoaopríncipe.

—Cuida de Neith, porque eu responderei pelo que estou fazendo — respondeu rudementeMena.Crêsque,aoverassassinarminhairmã,façareverênciaaestaserpentetríplice!

ArrastaramSargonparaumaposentodistante,ondeoatiraramqualfardo,ficandoescravosde sentinela à porta. Ajudado por Keniamun, Pair transportou Neith à câmara nupcial, onde foicolocada no leito, para desoprimi-la das roupas e colocação de uma compressa de água fria,enquantoseaguardavaachegadadomédico.

—MeubomKeniamun—pediuSatati, que, descorada,mãos trêmulas, ajudavaas servas atiraroscolaresepesadosadornosdequeestavasobrecarregadaajovem—corre,eutesuplico,embuscadeummédico,edepoisvaiapalácioeprocuraavistar-tecomSemnut,aquemcomunicarásoacontecido, para que a rainha o saiba. “É preciso que Sua Majestade tenha disto conhecimentoimediato.”

—Vouacorrer—aquiesceuooficial,deixandocélereoaposento.

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X

RAINHAEMÃEQuando Keniamun chegou ao palácio real, tudo ali estava em movimento. Um burburinho

semelhanteaodeumacolméiatomavao imensoedifício;as liteirasdosconselheirosedignitárioschegaram incessantemente, por isso que ninguém queria aguardar o amanhecer para apresentarcondolênciasefelicitaçõesaosenhorúnicoqueagoraempunhavaocetrodopoderedistribuíaosbenefícios. Cada um queria demonstrar zelo e devotamento, e mesmo aqueles que não podiamaproximar-se do Faraó, sabiam que a rainha teria conhecimento de suas presenças ali, e não osesqueceria,aelesquevinham,semrestrições,trazersuafidelidadeaospésdaSoberana.

Tebasnãodormianessanoite;opovomovimentava-seemturbaspelasruas,acotovelando-se,espremendo-se nas praças e nas imediações do palácio. Em toda parte, ouviam-se esses gritosagudoseprolongados,cheiosdeestranhoedilacerantedesesperoqueofeláatual,tantoquantoodoantigoEgito,soltaemsinaldedor.Eessesclamoresdiversos,unificando-se,planavam,qualumsógemido,sobreaCapital,aelatrazendocomoqueumecodelutodaPátriaquechoravaoseurei.Semembargo,nãohaviadesordememqualquerparte.Algunstemerosos,outroscomdesconfiançaeraiva interior, todosabriampassagemàspatrulhasdepolíciaeaosdestacamentosdesoldados,que, comandados por oficiais, patrulhavam a cidade em todos os sentidos, dispersando osajuntamentosmuitobarulhentosemantendoseveradisciplina.

Nãosemcusto,Keniamunintroduziu-seatéasante-câmarasreais,queregurgitavamdegente,eassimtodoopalácio.Umcamareirodeserviçodeclarou-lheserdetodoimpossívelfalaraSemnutnomomento,mas,preveni-lo-ia,desdequandoterminasseaaudiênciaqueestavasendoconcedidapelarainhaaumadeputaçãodepadresdosprincipaistemplos.

Hatasu,emverdade,nãohaviatidoummomentoderepouso.Asuanatureza,porém,nervosaeelástica,sustentavaasenergiaseatravessavagloriosamenteaprovação.Regressandodofestimnupcial, encontrara Tutmés agonizante, e sem mesmo desembaraçar-se dos enfeites, velou eamparouomoribundo.Equandooreiexpirou,elaatendeu,comumcertosangue-friosemdúvida,mas sem omissões, a todo o ritual exigido pelos usos e pela etiqueta: gemera, arrancando osadornos,rompendovestes,frontecobertadeterra,cabelosdescidossobreorosto,pronunciandoasorações de estilo e exaltando as lamentações que proclamavam as glórias e virtudes do finadoesposo.

Cumpridos esses deveres, fizera chamar Semnut, depois outros conselheiros, e, ditando atodosordensedisposiçõesquenãodeixavamdúvidaalgumaquantoàsuacalmalucidezdeespírito,demonstrouaenergiaférreacomaqualreuniaemsuasmãostodososfioscondutoresdamáquinagovernamental.Surpresosesubjugados,osdignitáriosretiraram-se,emesmoaqueles,adversários,que no imo eram pelo jovem Tutmés exilados, sentiam ser difícil sacudir o jugo dessa pequeninamão,equenãoarranjariamnadacomafilha,que,outroradesesperadacomamortedopaiadorado,sedeixaravencer,casaredesapossardadignidadesuprema.

Despedindo o Conselho, na intenção de repousar um pouco, veio o anúncio de que umadeputaçãodepadresdosprincipaistemplosdeTebaschegaraapalácio,epediaserrecebida.Aestanova, a rainha ergueu-se qual corcel fogoso que sente o picar da espora. Já os inimigos seapresentavam, com que intuito? Em todo caso, eles não a apanhavam de surpresa, tal comoaconteceraoutrora.Umfluxoderaivasubiu-lheaocoração,àlembrançadesuapassadaderrotaecasamento com aquele que acabava de morrer. Desses tumultuosos sentimentos e lembranças,porém,nãodeixoutransparecervestígio.Calma,determinoufossemintroduzidososaudientesaumsalãoderecepções,ebemassimchamadosSemnuteoutrosconselheirosqueadeviamacompanhar,e,porfim,queChnumhotepmontasseguardaàsentradasdosalãocomoficiaisdeelite.

Graves, impassíveis, os padres acomodaram-se no salão designado. Viam-se ali os sumossacerdotes dos principais templos da Capital, profetas conhecidos e venerados de todos, algunseruditosaindamoços,porémjádistinguidoscoma“penadeabestruz”,sinaldainiciaçãosuperior.Ao lado do Sumo Sacerdote de Amon estava Ranseneb. Todas as fisionomias eram graves e osolharesconcentravam-senaentradaporondedeviaaparecerarainha.

Sem demora, dois oficiais ergueram o pesado reposteiro franjado, e Hatasu penetrou norecinto,seguidadosseusconselheiros.Apassofirme,dirigiu-separaotrono,dealgunsdegraus,ealificoudepé,umadasmãosapoiadanobraçodapoltrona.Àsuaentrada,ospadresprosternaram-se,emitindoumlongogemido.Arainhainclinou-se,elevandoosdoisbraçosemsinaldedor,mas,

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voltando à posição anterior, mirou os audientes com olhar faiscante. Os padres, que se haviamerguido,prosternaram-seporsegundavez,eoSumoSacerdotedeAmonpronunciouestaspalavras:

—TendorendidonossotributodedoredepesaraograndereiqueoEgitoacabadeperder,permite,FaraóHatasu,dispensadoradavidaedagraça,saudemosatuaelevaçãoaotrono.Possamosdeusesconceder-tesaúde,glória, felicidade,econservar-tepormulto temponoamordos teuspovos!

Arainhainclinouacabeçaemsinaldebenevolência.

—Euvosagradeço—respondeu—,nobreseVeneráveisservidoresdosdeuses.Tendesalgumpedidoafazer?Falai;meusouvidosestãoabertosemeucoraçãocheiododesejodevosatender.

AumsinaldoSumoSacerdotedeAmon,Ransenebpassouàfrente.

—FilhadeRa—começouele—,tuasabedoriacompreendeuqueumgravepedidonostrouxe.Possamosdeuses,quetederamtãograndesagacidade, iluminarteucoraçãoeguiartuadecisão,porque justoerazoáveléoquevimosdizer-te!AalmadivinadeTutmés IIacabadereentraremOsíris;anósoutros,osvivos,cabeodeverdelheprepararumasepulturaquedeleitesuasombra,poupando-lhe toda a perturbação e descontentamento. Vimos, pois, perguntar onde te propõesdepositarocorpodoFaraó.Queresconstruirum“menou”dignodoteupoderio,oucolocaramúmianatumbaprovisóriaondeestãoosesquifesdosteusdivinosparentes?

UmanuvemdecontrariedadepassoupelafrontedeHatasu,eumaespéciederelâmpagoluziuemseusolhos.Sentou-se,edisseemvozvibrante:

— Vossa proposição dá lugar a que me espante. Ignorais tanto o que se passa no Egito,veneráveis padres, a ponto de não saberdes que construí na cidade dos mortos um monumentosoberbodestinadoàsepulturademinhafamília?Paralátransportareiosrestosdosmeusparentes;lárepousarámeudivinoesposoTutmésII;ládepositareismeucorpoquandoOsírismechamaraoseusólio.

Sofreadomurmúriocorreuentreospadres,eRansenebexclamou,erguendoosbraços:

— Oh! Rainha! Persistes em santificar esse monumento ímpio, construído contra todas asregrassagradas,abertoàcuriosidadedecadaum,qualumcampodefeira,emvezdeserrodeadodemajestadeedemistério,aexemplodoquecercaadivindade?

—Sim!—exclamouàsuavezoSumoSacerdotedeAmon,homemviolentoefanático.—Sim!ímpioéopensamentodesepultarnossosreisnessemonumento,cópiadasconstruçõesdeumpovoimpuro e vencido. Tudo que vem dos estrangeiros é odioso às divindades do Egito e aos seusservidores, que tu ultrajas, ó Rainha, desprezando as leis sacrossantas das quais somos osintérpretes.Nãoesqueças,Faraó,queésobreosombrosdospadresqueseapóiamsolidamenteostronos.Todosossoberanos, teuspredecessores,oscompreenderame lhesrespeitaramosdireitosde servidores da divindade, que te asseguraram, por sua influência, a submissão dos súditos.Renuncia, pois, nós te suplicamos, Rainha — prosseguiu o irritado velho, de olhos incendidos —renuncia à escolha desse monumento que desaprovamos, que o povo contempla com temor edesconfiança;porque,seinsistires,recusaremosnossoconcurso,enenhumdenósacompanharáatalsepulturareprovadaocorpodeTutmésII.

Profundo silêncio sobreveio a esta impetuosa objurgatória. Os padres permutaram entre siinquietosolhares,porqueaquelaformaldeclaraçãodeguerraultrapassava,asintençõescomuns,ejustamenteo temordoarrebatamentodoSumoSacerdotedeAmonfizera-lhesescolherRansenebparaorador;mas,ofogosofanatismodovelhooarrebatara.

Quantoaoséquitodarainha,todospareciamestátuasdeassombro.

Hatasuescutarasilenciosamenteasaudaciosase insolentespalavrasdopadre,porémasuaexpressivafisionomiaespelharasentimentostumultuososbemcontráriosàcalmaqueexteriorizava.À final ameaça, empalidecera terrivelmente para enrubescer depois, e sua mão se crispara nacabeçadeleopardoqueterminavaobraçodapoltrona.Mas,acólerateveafugazduraçãodeumsegundo,poisosseuslábiosestavamcontraídosnumaexpressãodeorgulhoeteimosia,eosolhos,iluminados por esse estranho e subjugante fulgor que tornava tão difícil suportá-los, dir-se-ia,esmagavamseusinterlocutores.

—Tuaspalavrassãoduras,padredeAmon,easameaçassoammalaosouvidosdeumFaraó—dissoelanasuavozclaraemetálica.Omomentoémalescolhidoparaensaiodequebraraminhavontade.Reconheçovossopoder,masnãootemo;existemnoEgitomuitostemplosquedesejama

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minhaproteçãoepadresque,servindoaosdeuses,permanecemmeusservidoresfiéis.AesseseuchamareiparaconduziraolugarderepousoocorpodeTutmésII.Quantoàscabeçasrebeldesquese levantam ameaçadoras contra a que devem adorar, tenho a força e o “direito” de abatê-las. Avitória,emsemelhanteguerra,écoisaindecisa;mas,(Hatasucurvou-seecorreucomolharasfilasdepadres)eunãodesejoaguerra.Reconheçoqueosservidoresdosdeusessãoosustentáculodotrono, e sou a primeira a homenageá-los e a render-lhes justiça; é apoiada aos fortes ombros docleroquedesejoreinar,porémsenhoraabsolutadopovoqueconduziàvitóriaeàglória.OFaraó,portadordaduplacoroadoAltoeBaixo-Egito,exigedosservidoresdosseusdeusesoexemplodeobediênciaàvontadedoseurei;mas,eucreioque, intérpretesdavontadedosImortais,tendesopoderde tornarpurooqueé impuro,desantificaroqueéreprovado...Pois!Peçoovossoapoio:santificaicomavossabênçãoaconstruçãoquereprovais,eabendiçãoproferidaporvós,emnomedeOsíris,afastarádalitodasassombras.Euconstruío“menou”depedra,mas,vós,santificando-o,criareissuaexistênciaeterna,eopovo,quevêpelosvossosolhos,perderáadesconfiança;elevosaclamaráeeuvosagradecereicomdádivassoberbas,eaosdeusescomsacrifíciosdignosdelesedemim.Aguardovossaresposta!...

Ospadresolharam-seboquiabertos.Nãopodiamdeixarderenderhomenagemàcalmaeaoespíritosutildaquelajovemmulherque,domandoorgulhoeviolência,lhesdavaespeciosamenteummeiodereconciliação,propiciando-lheshonrosaretiradadeondehaviamavançadoemdemasia.Emrealidade,ospadrestemiamlutaaberta,cujobomoumauêxitoeraincerto,comaenérgicafilhadeTutmésI,muitoamadadopoviléu;aconcessãofeitaporelalisonjeava-lhesoorgulho.

—Tuaspalavrassãoverdades,Faraó—respondeuoSumoSacerdote.Temosopoderdetomarpurooqueéimpuro,etuasolicitação,humildeejusta,éagradávelaonossocoraçãoeaosouvidosdosdeuses.Alémdisso,reconhecemosquãograndessomaseotrabalhoimensoconcentradosnessagigantesca construção, a qual, sem nossa solidariedade, não terá valor, por isso que o povo só arespeitarádepoisdanossabênção.Sejafeitosegundoatuavontade,óRainha:conduziremosaoteu“menou” o corpo do teu esposo, e ali levaremos o povo e a bênção dos deuses. Em recompensaaguardamostuaobediênciaeteufavor.

— Uma e outro estão assegurados: imensos serão os sacrifícios que oferecerei aos deusessobremeutúmulo,egrandesasdádivasquerecebereisdaherançadomeurealesposo.Jamais,euoespero,haverámal-entendidosentrenós.

—Agradecemostuaspromessas,poderosafilhadeRa—disseoSumoSacerdotedeAmon—epermite-meesperar tambémqueem teu coraçãonão reste cólerapelaspalavras severasquemeforaminspiradaspelafidelidadeàsvelhasleisdenossosmaiores,pelagrandezadenossosreis.

Arainhasorriu.

—Não guardo nenhum rancor contra o homem sábio e prudente que me viu nascer. Até àalturadotrononenhumaofensatemopoderdesubir.Compreendoque,comoexcessodezelocomquedefendesteosdireitosdosdeuses,honrasosanguedeRaquecorreemminhasveias.Emprovadagraçaedaamizadecomaqualtedistingo,aproxima-te,dignoservidordeAmon-Ra:apartirdehoje,nãoqueroque,diantedemim,toquesochãocomatuafrontevenerável,econcedo-tebeijaropédoteuFaraó.

Novo murmúrio, de orgulhosa satisfação esta vez, circulou entre os padres. Este favorsupremo,concedidoaumdelesemsemelhanteocasião,pareciarealmentecomprovarodesejodarainhadeviveremboaInteligênciacomapoderosacasta,e,desdeentão,oexiladodoBoutodeviaencher-sedepaciência.Cheiodealegriasoberba,oSumoSacerdotedeAmonprosternou-seepôsos lábios nopequeninopédeHatasu;mas, nemele nemos companheiros viramo relâmpagodemordazironia,dedesprezomaligno,queperpassounoslábiosdarainha.

Reingressandonosaposentos,asoberanaestendeu-senumleitoderepousoedespediudamaseservas,proibindoqueaperturbassem.Sentia-seexaurida.Passadosquinzeminutosdeprofundosilêncio, ligeiro ruído fez estremecer a rainha. Apoiando-se num cotovelo, ergueu o busto eapercebeuavelhaserviçal,que,ajoelhada,seinclinavaparaela,olhando-aansiosamente.

—Quedesejas,Ama?Nãomedeixamunsinstantesderepouso?—perguntou,descontente.

Avelhacruzouosbraços,ebateuviolentamenteatestanosolo.

—Perdoa,minharealsenhora;onobreSemnutpedepara te falar imediatamente,eodissecomtalpersistência,queouseivir,apesardatuaproibição.

— Semnut? Está bem. Acende a lâmpada na mesa e manda-o entrar, sozinho, porém —concordouHatasu,passandoamãopelafronteúmida.

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Poucodepois,Semnutentrou.Afisionomiamostravatãofundaedolorosaperturbação,quearainhaexclamou:

—Fala,Semnut!TutmésfugiudeBouto?

—Não,rainha.Anotíciaquetetragovaiferirdolorosamenteteucoração,enãoimplicaemperigoparaoteupoderio.EmBoutoservidoresfiéisvelamsobreopríncipe,mas,aqui,umcrimeIncompreensívelfoipraticado:SargonferiuNeithcomumapunhalada.

Emitindosufocadogrito,Hatasucaiunumacadeira,mas,quaseinstantaneamente,saltoudepé,fremindodecólera,mãoscrispadas:

—Minhadesgraçadafilha!Neithassassinada!Ah!omiserável,escravoingratoqueassimmeretribuiosbenefícios!Queasuacabeçasejaentregueaocarrasco!

AntesqueRasurjadassombras,tenhaelecessadodoviver,taléaminhavontade!

Semnutajoelhou,eergueuamão.

—Seiquejogoavida,desobedecendo-te,Faraó;porém,igualmenteseiquetumemaldiriasseexecutasse tua ordem, sem te recordar que tu não podes vingar a vida da filha de Naromath,matando-lheoirmão,esseirmãoque,expirando,oconfiouàtuamisericórdia.

Hatasuocultouorostonasmãos,eapoiou-se,cambaleante,namesa.Decorridobrevelapso,ergueuorostoeestendeuamãoaSemnut.

— Levanta-te e ouve o agradecimento da tua rainha, fiel e corajoso conselheiro; tu mechamasteàrealidade,etivesterazão:Sargonnãodevemorrer.Mas,quemotivotê-lo-ialevadoaocrime?PareciatertantoamoraNeith!Adesgraçadacriançaviveainda?

—SeiapenasoqueouvideKeniamun,queretardouasaídadepalácio.Ignoraasrazõesdatragédia; mas, quando deixou o palácio de Sargon, a princesa ainda estava viva. Um médico foimandadoparalá.

—Meuespíritoestáemconfusão,mas,euquerovê-la,aindaestanoite,ecertificar-medoseuestado.LastimoqueTiglatestejaenfermoenãopossa ir comigo;mas,pensoqueAbracropossuitambémosegredodeestancarosangueefecharferimentos.Mandasemdemoraumportadordeconfiançaprocurá-la,afimdeque,feitasdiligênciasparaisso,possaestaraquidentrodeumahora.Enquantoisso,providenciaparaqueaminhabarcasejapostajuntodaescadadojardim.Tu,HuieKeniamunacompanhar-me-ão,eantesdoamanhecerestaremosderegresso.Vai!

Hora e meia depois uma embarcação, conduzindo duas mulheres e três homens, atracavasilentenodesembarcadourodopaláciodeSargon.MalhaviaKeniamunpisadoosdegraus,rápido,ehaviaarainhaatingidoapenasoterraço,ejáPaircorriaaprosternar-separareceberasoberana.

Deixaporagoraascerimônias,Pair,econduze-medepressajuntodeNeith.Vive?

—Sim,rainha.UmmédicodeAmondeixou-ahápouco,depoisdebandaraferida.

Oencarregadodasequipagenspalacianaslevantou-seeprecedeurespeitosoasduasmulheresatéàcâmaranupcial,grandeaposento,ricoemtapeçarias,aofundodoqualhaviaumleitodourado,circundado de panos de estofos fenícios. Algumas lâmpadas alimentadas a óleos perfumadosespargiamclaridadefracaevacilante.Noscoxinsdoleito,Neithestavaestendida,esbranquiçadaeimóvelqualmorta.Aovê-la,Hatasuparou,respirandoopressa.Aluzdeumadaslâmpadasincidiasobre o rosto da jovem, e jamais, então, a semelhança com o de Naromath havia impressionadotantoarainha,cujoolharficoucravadonessaparecençaquefaziaressurgiranteelaobelohiteno,oúnicohomemqueforaamadopelasoberbafilhadeTutmésI,comumamorviolento,apaixonado,total,quantooeramtodosossentimentosdesuaorgulhosaalma.

Dominandoaemoção,fezsinalaAbracroparaocupar-secomadoente,eenquantoafeiticeiraabriaumacaixetaquelevaraeexaminavaaferida,Satatiaproximou-sedasoberanaparasaudá-la;mas,Hatasupresumirademasiadodasuaresistência,apósasmúltiplasemoçõesdaquelanoite.Acabeçacedeu,eteriatombado,seSatatinãoahouvesseamparadoefeitosentar-seemumacadeira.Abracroprecipitou-separaela,eambasfizeram-narespiraressênciasaromáticas,aomesmotempoquelhefriccionavamastêmporas,dando-lhedepoisabeberumpoucodevinho.

Dentroempoucoarainhaserefez.

—Nãoénada;um tantodedebilidadeproduzidaporesgotamento; vaipassar.Tu,Abracro,

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volta para junto da doente (a feiticeira obedeceu). Foi verdadeiramente um espírito impuro queconduziuamãodesselouco—murmurou,movendoacabeça.

Emseguida,pediuaSatatiqueprovidenciasseumtripéecarvõesacesos,eimpedisseaquemquer que fosse penetrar ali. A esposa de Pair assegurou não haver perigo de tal, porque, paraocultar a presença da rainha, haviam sido afastados todos os da casa, além de estarem Pair eSemnutvigilantesàentrada.Logodepois,veiootripé.Abracroderramoucertolíquidoespecialnumrecipiente,noqualacrescentou folhasealgumasbagaspretas,e fezamistura fervernasbrasas,acompanhando a ebulição com misteriosas conjurações. Esfriado o líquido, com ele foi lavado oferimento, sobreoqual soprou, aplicando-lheumabandagemuntadadebálsamopastoso, trazidoigualmente na mencionada caixeta. A enferma começou a mover-se, e, quando Abracro lhe fezmassagem nas têmporas e lhe derramou por entre os lábios algumas gotas de avermelhadaessência,reabriuosolhosemplenaconsciência.

—Minharealsenhora,adoentevoltouasietupodesfazer-lheperguntas—anunciouavelha,dirigindo-seàrainha,que,precipite,correuparajuntodeNeith,beijando-anafronte.

—Comotesentes,pobrefilha,ecomoteaconteceuestaincompreensíveldesgraça?

Expressãodereconhecimentoealegria,mescladadetemor,pairounafisionomiadesfeitadamoça.

—Sofromenos,depoisque tevejo,minharealprotetora.Quantoésboa!Mas,dizequemeperdoas;seiqueteafligi;euteconfessareioqueaconteceu;mas...perdoa-me!

Etentoutrazerparajuntodoslábiosamãodarainhaquepegaraumadassuas.

—Tudoeu teperdôo, tudo, filhaquerida.Acalma-te,não teatormentespornenhumacoisa;viveparamim;tenhonecessidadedeveroteuinocenteolharnashoraspenosasdaminhaexistência—ciciouHatasu,emvozbaixa,apenasperceptívelparaNeith.

—Ah!Quantoeuteamo!respondeu,transportadadejúbiloegratidão.

Elanãocompreendiaaemoçãoquetornavaassimtãoindulgenteetãoternaasobranceiraeinabordável soberana; mas, de repente, recordou as palavras de Satati, quando lhe dissera quesecretoeloaligavaàrainha,eentãoumsentimentodequietudeeconfiançanoporvirinundou-lheaalma.

—PoderosafilhadeRa,perdoaàtuaservaousarinterromper-te—veiodizerAbracro—,mas.aenfermatemimperiosanecessidadedesilêncioederepouso.Entretanto,nadatemas;tuavelhaAbracrorespondepelasuavida.Etu,minhasoberana,estásigualmenteexaurida:bebeestevinhoao qual adicionei uma essência fortalecedora que abrandará as palpitações do teu coração e teajudaráadormirearecuperarasenergiasindispensáveisaoslaboresqueteaguardam.

Arainhaingeriuovinhoequasesubitamenteligeiroruborlhecoloriuasfaces.

—Agradecida,Abracro.Semnutenviar-te-ádeminhaparteumaporçãodeanéisdeouro.EtomaIsto,aindaemlembrançadestahoraedoserviçoquemeprestaste.

E retirou do pescoço uma fina corrente de ouro, à qual estava suspenso um soberboescaravelhodeouroeesmeralda,eoestendeuàvelha,cujosolhosreluziramdealegria.

VerificandoqueNeithdormiaumsonoprofundoereparador,Hatasuretirou-sedoaposento,novamenteintegradanosangue-frioenaelasticidadedeespíritoqueacaracterizavam.

—Conduzi-meaondeestáoculpado;queroeumesma inquiri-lo—ordenouaPair,que faziasentinela,juntoaSemnut,nacâmaracontígua.

Paircorreuadistanciarpreviamenteosescravosquemontavamguardaaopríncipe,edepoisguiouasoberanaeseuconselheiroàpequenasala,aindaenfeitadadeguirlandasdeflores,nochãodaqualSargonjaziadepésemãosamarrados.Odesditosomoçonãopareceuaperceber-se,nemmesmover a entradadasnovaspersonagens.A fisionomia tinhaa expressãodepetrificada, numtrismodeiraedesespero;flocosdeespumaescorriamdoscantosdabocacontraída,eatúnicadepúrpura,asjóiasquearecamavamaindacontrastavamtristementecomascordasquelheprendiammãosepés.

— Estás pensando no teu inaudito crime? Que fizeste do jovem ser que te confiei e diziasamar?—interrogouHatasu,severamente.

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Ao timbre daquela voz metálica, o prisioneiro pareceu despertar de um sonho, e pretendeulevantar-se, mas, impedido pelas ligaduras que lhe esmagavam as carnes, recaiu com abafadogemido.Anuviou-seosemblantedarainha.

—Desligai-oeretirai-vos!determinouela,bruscamente.

Comrapidez,osdoishomenscortaramascordasesaíram.Cambaleante,comoseestivesseébrio,Sargonapoiou-seàparede.

— Agora que estamos a sós, responde, ingrato, e confessa: que te levou a esse crimeabominável,comoqualpagasteosmeusbenefícios?

—Seiquesouculpado,enãodevoesperarnadadatuabondade—contestouSargonemvozenrouquecida e sibilante. Não quero mesmo desculpar-me, porque a vida me é odiosa; mas,conheceso sangueardenteque corre emminhas veias equeobscurecemeu raciocínio.Nenhumhomemtoleraráque,aoaproximar-se,plenodeamor,dasuanoiva,sejarepelido,qualserimpuro,nemouvirdamulheramadainsensatamenteestaspalavras:“Chegasmuitotarde,amooutro;vês!Minhasfaces,meuslábiosardemdosbeijosdesseoutroaoqualpertençodecorpoealma!...”

Ecalou,sufocado.

— Estás doido. Podes crer que aquela pura e ingênua criança seja capaz de semelhantetraição?—dissearainhaemtomcolérico.

—Escuta-me,antesdemejulgar—recomeçouSargon.

EnarrousucintamenteaprimeiracenaentreeleeNeith,suaconversaçãocomKeniamun,etudoquantoseseguiraatéaocasamento.

—Convencidodequenãomeamava,nemaooficial—prosseguiuopríncipe—esimaumdesconhecido,difícildeidentificar,permaneciemreservaeobservação.Depoisdatuaretiradadofestim de núpcias, ó Rainha, ela desapareceu. Retido pelos meus convidados, meus olhos aprocuraramemvão,enquantoociúmemeestraçalhavaaalma.SomenteàchegadadanotíciadamortedoFaraó,ecomadispersãodosconvivas,elareapareceu,rostomuitocorado,olhosluzentesde ventura. Impulsionado por meu legítimo zelo, disse-lhe, quando a sós, que não mais aimportunariacomomeuamor,porém,velariapelaminhahonra,eemrespostadeclarouquesaíradosbraçosdomeurival.Umanuvemdesangueobscureceumeusolhos...Comochegouopunhalàsminhas mãos? Como feri a traidora? Não sei. Reconheço-me culpado por haver descido mãovingadorasobreela;mas,quehomem,emtalsituação,agiriadeoutromodo?Esseatofoioimpulsodesesperadodeumcoraçãodestruído.Ameidoidamenteessamulher,àqualoacasodeuostraçosde Naromath; por um sorriso seu, teria sacrificado a minha existência. Tendo-a matado, queromorrertambém;porém,setuésjusta,soberanadoEgito,tumedesculparás.Sejamaisamaste(edizem que amaste de toda tua alma a um homem do meu povo, um desditoso prisioneiro igual amim),devescompreenderosmeussentimentose...

A rainha escutara com espanto e emoção sempre crescentes, e, às últimas palavras,empalidecendoaoauge,curvou-seepôsamãosobreabocadeSargon.

—Cala-te,insensato,enuncarepitasoqueacabasdedizer,sequeresviver.Compreendo-te,enãocondenoaviolênciadosanguequeobumbrouteucérebroeguiouteubraço;mas,repito:nãocreio na falta de Neith. Irritada e imprudente, quanto o são as crianças, ela disse coisas que teferissem o amor próprio. É possível que ame outro, mas, não pertenceu a esse homem, tenho acerteza,eofuturoprovará.Deresto,osdeusespouparam-teaconsumaçãodocrime:Neithvive,erestabelecer-se-á. Acalma, pois, o teu remorso. Convencida, agora, de que em tua companhia elaestarásempreemperigo,fareianularpelospadresoconsórcio,retomandoassimNeith,paradá-laaohomemamado.Tu,livre,escolherásemoutraoportunidade.

Sargondeuumselvagemgritoeapertouacabeçaentreasmãos.

— Manda matar-me antes, porque, enquanto existir, procurarei tirar-lhe a vida, e não adeixareiirparaosbraçosdeumoutro.Mas,eutesuplico,Hatasu,deixa-ma,ejuro,peloquetenhode mais sagrado, pela memória de Naromath, nunca repetir o atentado. As infernais horas queacabamdepassarcuraram-me:culpadaqueseja,porterrívelquesejasuatraição,deixa-ma,enãolhefareimalalgum,porquesemelaéimpossívelviver,meucoraçãoseconsomeeperece.

Ajoelhara, erguendo para a rainha as mãos súplices. Estranhamente emocionada, Hatasuapoiou-seaumacadeira.Denovo,opassadoressuscitavaanteoseuespírito.Sargon,pelostraçosfisionômicos,nãoseassemelhavaaoirmão;otimbredavozera,porém,idêntico,enaexcitaçãodo

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momento, o olhar mostrava alguma coisa do ardor e do encanto do herói hiteno que ela haviaamado.Opresente,osuplicanteajoelhado,aspreocupaçõesqueaabismavam,tudoesmaeceu:viusomente a sala isolada no palácio meio derruído pelo incêndio, onde o irmão, triunfante, haviaestabelecidoseusquartéis,eobeloealtivo jovem,aindapálidoemresultadodosferimentos,queajoelhara,tambémele,anteela,e,nummistoderevoltaedepaixão,haviamurmurado:

—Mandamatar-me,Hatasu,porminhaaudácia;eu,oprisioneiro,ovencido,desonrado,euteamo, orgulhosa filha do conquistador, do destruidor da minha raça, ou, por piedade, dá-me umaarmaparaquemelibertedavidaedestefatalamor.

Emitindoumlongosuspiro,arainhapassouamãopelafronteúmida.

—Levanta-te,desventuradoinsano,eutelamento,efareiquantopossaparatuafelicidade,etrazeratiocoraçãodeNeith.Antes,porém,émistersalvar-teacabeça.Tuconhecesa lei:punecomamortetodoestrangeiroquemataumegípcio,etuatentastecontraavidadeumanobre,tuaprópriaesposa!Enfim,tratareidereparartualoucura.

Fezlevegestodesaudaçãoesaiu.Ficandosó,Sargondeixou-secairnumacadeiraependeuacabeçaentreasmãos,murmurando:

—É certo: segundo as leis do país, sou um condenado à morte, se ela não me salvar. Oh!Neith,aquemearrastouomeuamorporti!Mas,queestranhomistérioligaestarainhaaltaneiraati,quetrazesostraçosdeNaromath?Oh!(ebateunatesta)adivinhoenfim:aproteçãoconstantedeHatasu aos do nosso povo, o “menou” que construiu sob o modelo de nossos palácios, e essaestranha cena em que Naromath moribundo lhe fez jurar proteger-me, e na qual Semnut mearrastoucomele,apesardasminhaslágrimas!Sim,compreendoagora:Neithésuafilha!

ApósdeixarSargon,arainhachamouSemnut,aquem,depoisdenarraraestranhaacusaçãodopríncipe,pediuaofielconselheirotomarasprovidênciasquejulgassemaiseficazesparasalvaroinfortunadomoçodasconsequênciasdocriminosodesvario.Semnutmeneouacabeça,grave:

—Nãoéfácil,realsenhora.Conhecesalei.Seoacontecimentofordivulgado,provavelmentetratarão de prender Sargon, e então não poderás entravar o curso da ação judicial, sem suscitarnovos descontentamentos, que á preferível evitar nas atuais circunstâncias. A meu ver, é precisoocultar o príncipe, fazê-lo evadir e mantê-lo distante, até que a repercussão do caso tenhaabrandado.AnobreNeith,serestabelecida,poderáperdoaraomaridoeimplorarclemência,etudoseacomodará.

—Dedica-te imediatamenteaesseassunto,meu fielSemnut;aprovo teuconselho.Quantoamim,voltoapalácio,pararepousarumpouco.Aomeuacordar,dir-me-ásdoresultado.

Retornando aos aposentos, a rainha acomodou-se e dormiu semdemora, exaustade fadiga.Eraavançadoodiaquandodespertou.Seuprimeiroolharencontrouavelhaserva,que,acocoradajuntodacama,espreitavacadamovimentodasoberana.

—Quefazesaí,Ama?Aconteceualgumacoisa?

—Não,nãopoderosafilhadeRa.Apenas,onobreSemnutesperadesdeháalgumashoras,emtuaantecâmara,cheiode impaciênciaparavererguer-seosoldoEgitoeaquecer-seaosraiosdasuagraça.

—Porquenãomeacordaste?—perguntouarainha,erguendo-secomvivacidade.Depressa,ajuda-meavestir-me.

—Nãomeatreveriaaperturbar-te,porquenãodesteordem—respondeuavelha—eestavastãocansada!SeriaclamorosoqueoFaraónãopudesserepousar,quandooúltimodosaguadeirosdormequantoquer!

Hatasusorriu.AvelhaAma,queaserviadesdeanascença,embalara-anoregaço,adorava-atantoquantoa“meninadosolhos”.Tinha,pois,grandesregalias,epodiadizeroqueninguémmaisousarafazê-lo.

—Tunãocompreendesisso,Ama.Deigualmodoqueosdeusesprotegemasortedosmortais,oFaraódevevelarparaqueosaguadeirosdurmamempaz.Bem,bem.Depressa!Dá-meacapaemandaentrarSemnut.

— Que novas me trazes? — indagou ela, respondendo com uma inclinação de cabeça àsaudaçãodoseuconselheiro,esentando-sejuntodamesadetrabalho.

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—Más,granderainha—respondeuele,erguendo-se.Chegamostarde:Sargonestápreso.

—Ecomopôdeacontecerisso?—indagouHatasu,empalidecendo.

— Tebas não dormiu esta noite. A notícia do assassínio foi espalhada com extraordináriaceleridade.Menagritou-anocorpodasguardasdepalácio;omédicodeAmon,quefezcurativoemNeith,levouanovaaotompio,naocasiãoemqueospadresregressavamdaaudiência,eestesnãoquiseramperderaoportunidadededestruirumdosassírios teusprotegidos, eque sãoparaelesespinhosnocoração.Anovidadecirculouqualflechaarremessada,eumjovemsacerdotedeHator,chamado Roma, demonstrando zelo fanático, alvorotou os demais, e, mal havias saído e eu medispunha a levar Sargon, chegavam os padres, acompanhados de soldados, que o prenderam elevaramparaocárcere.

—Quefazer,agora?Nãopossodeixá-loperecer—dissearainha.

—Sequeresouvirmeuconselho,órainha!nãoentraves,nomomento,ostrâmitesdajustiça;nomomentodecisivo, tu farás tudopara lhesalvaravida.Depois,aliviarás sua situação,atéquetenhasensejodeagraciá-lo.

— Seja assim! E agora deixa-me, Semnut, e que ninguém venha aqui, até que eu chame.Precisoestarsó.

Quandooconselheiroseausentou,Hatasupousouoscotovelosnamesa.

—Oh!Naromath—murmurouentão—,taléodestinodoinditosocujoporvirmeconfiaste!Eleperdeu-seporsuasprópriasmãos,enãoseiselhepossosalvaravida.

Uma ardente lágrima deslizou-lhe na face. Ergueu-se, agitada, e caminhou pelo aposento.Quantaslutasecuidadoslhedavaessedia,quetãoansiosamentedesejara,diaemqueseInstalariasozinhanotronoquelheparecerademasiadoestreito,quandotevedepartilhá-locomTutmésII!Jápouparaavidadessehomemvacilanteepreguiçoso,que,escravodesuavontade,haviadeixadoopodernamãopotenteeaoespíritovirildaesposaeirmã.Nesseinstante,lamentavaaausênciadoamparoegarantiaquerepresentavaparaelaofracoFaraó...Reinavasozinha,écerto,mastambémsozinhateriadecombateroexiladodeBoutoeosdescontentesdoReino,eessepequenoTutmésseria não apenas um adversário digno dela (e o sabia desde a última entrevista), porque, à suasombra,selevantava,qualumsóhomem,acastapoderosadoclerodoEgito,quedesejavavernotronoodiscípulo,instrumentodasuavontade,davontadedessespadresqueelavencera,nessediaprecisamente, e que, porém, não cessariam de sapar subterraneamente seu poderio, e espiaravidamentecadaoportunidadedealcançare ferirarainha,quandomenosnosprotegidosdela,Aesteúltimopensamento, cálido rubor subiu-lhe às faces.Ela, a soberana legítima, filhadadivinaAamés,dobrar-seanteobastardo,cederaesseshomensinsolentes!Nunca!

Hatasueradotadadeumcaráteredeuma têmperadaquelesaquemoperigoaguçaeaosquaisasdificuldadesparecemdarnovasenergias.Comumsorrisodedesafio,elaergueuorgulhosaafronte:

—Tenhoocetro—dissefalandoasimesma—eaminhavontadeserátualei,Egito!Sargonviverá, Tutmés ficará em Bouto, e sereis vós, padres altaneiros, que vos curvareis sob a minhasandália!

MaisdeummêsescoaradepoisdanoitetrágicadamortedeTutmésII.Durantemuitosdiasainda, a vida de Neith pareceu estar por um fio; mas, fosse pela onipotência dos conjuros deAbracro,fosseporqueanaturezajovemteveforçaspararesistiràmorte,averdadeéqueoperigofoi diminuindo, e a convalescença teve início, embora, pelo depauperamento da enferma,prometesseprolongar-sepormuitomaistempo.Paranãoirritarospadres,ummédicodotemplodeAmoncontinuavaatratardeNeith,esomenteànoite,sobomaiorsegredo,Abracrovinhaexaminaraferidaerepetirasconjurações.

Sataticuidavadasobrinhacomgrandedevotamento,enviando,trêsvezespordia,notíciasàrainha, que, indisposta de saúde e muito sobrecarregada de afazeres, não podia sair do palácio.Roant igualmenteacorreraàcabeceiradaamigaeajudavaaesposadePairnasvigílias.Apobresenhora estava torturada de remorsos, e não se perdoava o haver proporcionado a entrevista doRomaeNeith,detãodramáticasconsequências,issoporqueChnumhotepsoubera,porintermédiodeumpadre,parenteporpartematerna,domotivodoatentadodeSargon,ereprovaravivamenteaesposa pela leviandade com a qual induzira em tentação o irmão e a jovem amiga, causando oaniquilamentodopríncipe, quedefinhavanaprisão, e cujo processoprosseguia comencarniçadapressa.

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Descrever os sentimentos de Roma durante essas penosas semanas seria difícil. Maisamargamentedoqueairmã,elesecensuravahavercedidoàtentaçãodeatrair,noprópriodiadoconsórcio com outro, a ingênua criança a seus braços, e, também, pela confissão do seu amor,exaltadoosseussentimentosapontodelevá-laàleviandadequequasepagaracomavida.OSumoSacerdotedeHator,quefizerapartedadeputação,havia,regressando,dadoanotíciadoassassíniodeNeith. Por um Instante,Roma sentíra-se como que esmagado; depois, concentrada raiva, umaacerba repugnânciacontraSargonempolgara-lheo ser.Tinhaconsciênciadehaver respeitadoosdireitosdomarido,limitando-seaamarNeithcomafetoresignadoepuro,tendoapenasocoraçãoda jovem, bem do qual podia ela dispor... E, no entanto, esse bruto, em seus ciúmes, haviaapunhaladoaesposa,poucashorasdepoisdomatrimônio.

Seucoraçãogelava,tudoneleserevoltavaaopensamentodequeNeithpoderiapermanecersobaautoridadedessehomemque,apesardocrimeinaudito,arainhaprotegeriasemdúvida.Nãomostravaasoberanainexplicávelfraquezaparacomessesestrangeiros?Nãohaviaela,adespeitodas murmurações dos nobres, elevado esse prisioneiro hiteno à hierarquia de príncipe? Elacumulara-oderiquezaedehonrarias,elhederaporesposaumadasmaisnobresfilhasdoEgito.Assim,seavidadeNeithdeviacorrerperpétuoperigo,mistersefaziaassegurar-sedadeSargon,antesqueamãorealosubtraísseàjustiça.Movidoporessessentimentos,Romahaviadesenvolvidoenergia e habilidade inusitadas; excitado e amotinado os padres; demonstrado que, depois daderrota relativamente ao túmulo, era indispensável provar a Hatasu que seus protegidos nãopairavamacimadalei,queajustiçadospadrescastigariaainsolênciadofavoritoqueseatreveraatentarcontraavidadeumanobreegípcia.

Tais esforços não resultaram vãos. Sargon foi imediatamente detido e encerrado na prisão.Mas,oprocessoprosseguiu,eantesdacondenaçãoeraesperado,dizia-se,odepoimentodeNeith,semoqualimpossívelsetornavajulgarnitidamenteasituação.Roma,cujonervosismocedera,nãomais se imiscuía no assunto, porém supunha, com razão, que as dilações eram resultado dainfluênciadarainha;ozelodospadrestambémseralentava,e,desdeadistinçãoquelheacordaraHatasu,oSumoSacerdotedeAmonsetornaramaisconciliadoretépidonofanatismopelosdeusesepelojovemexiladoTutmés.

Neithignoravatudoquantoocorria.Emboraemplenaconvalescença,afraquezaeraextrema;permanecia acamada durante horas, sem pronunciar palavra, e o médico proibira perguntas eperturbaçõessobqualquerpretexto.Depoisdotristeacontecimento,Pairetodaafamíliahaviam-seinstalado na vivenda de Sargon. Mena, principalmente, influíra para tal resolução, e presidiu àmudança com presteza e carinho notáveis; persuadira Pair de que estava na obrigação deadministrar os domínios acéfalos e ajudar Satati na direção do lar, até que as vigílias junto daenfermatomassemmenostempo.

Diantedetodos,Menaperoravacomhabilidadesobreaestimaquevotavaà irmãesobreodevotamentodetodaafamília,que,semhesitar,abandonavaseularpróprioparaviveraoladodadoente,velarezelarpeloseuconforto.Semcuidados,oamávelrapazaboletara-senoapartamentodeSargon,vagodesdeadetençãodeste,ehaviarevistadocofresecaixetas,apoderando-sedejóiaseobjetospreciosos,queSatatinãotiveratempodeacautelardebaixodechave.Comsuavefirmeza,anobremulhercolocaraferrolhosefechadurasemtudo,resguardandoprudentementeparaNeithos tesouros acumulados por seu marido, que eram muitos, porque Sargon, poupado e taciturno,mais letrado do que vivedor, pouco despendia do muito que lhe doava Hatasu. Satati, que aindarecordava, com estremecimentos, a terrível cena que tivera com a rainha, queria prevenir umapilhagem que lhe podia acarretar nova reprimenda. Por isso, pôs limites à rapacidade ávida dosobrinho.

Menatevedecontentar-secomossobejosaquepôdedeitarmão,porém,aindaassim,sentia-semuitobemnaatualresidência,e,noíntimodaalma,bendiziaociúmedohiteno,porquecontavareabastecer-sesolidamentecomosrendimentosdosdomíniosadministradosporPair.ApresençadeRoanteradesagradávelaMena,efaziamácaraparaajovemmulher,ostensivamente.Dehámuito,porém,aesquecera,emesmo,nasuapretensãoestúpida,alegrava-sedeestarliberto,podendo,porisso,candidatar-se,comotempo,maisvantajosamente.

Taleraasituaçãonomomentoemqueretomamosanarrativa.

Certamanhã,enquantoSatati (aquemcouberaanoitedevigília)repousava,RoantrenderaaquelajuntodeNeith,quedormiasonoprofundoereparador.Compenaeafeição,contemplavaorostoemagrecidodaamiga,espantandoosinsetosquepodiamperturbá-la.

Afinal,NeithabriuosolhoseestendeuamãoaRoant.

—MinhaboaRoant, comopodereiagradecero teudevotamento?Dentroembreve,espero,

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não terás necessidade de velar junto de mim; sinto-me tão bem, tão forte, que tenho vontade delevantar-me.

—Adiaessedesejopormaisquinzedias,nomínimo—disseRoant,arir.Eparatedistraíres,enquanto esperas, cheira estas rosas que te envia Roma. Ele te suplica que te cuides, e estouconvicta deque, pelas suas incessantes orações, os deuses, importunados, concederam-te a vida,que,emverdade,pareciapresaaumfiodecabelo.

Facespurpureadas,Neithpegouoramoderosaseooprimiunoslábiosenafronte.

—Ah!Sepudessevê-lo—balbuciou.Mas,empalidecendo,dissehesitante:Sargon!...

Eraaprimeiravezque,depoisdanoitedenúpcias,proferiaonomedomarido.

—Calma-te!Sargonvive,porémjamaispoderáfazer-temal.Tusaberásospormenoresmaistarde.Porenquanto,pensaapenasemcoisasagradáveis—disseRoantpegando-lheamão.Tenhoboanotíciaparateanunciar:arainhavirávisitar-tebrevemente.ElaétãoboaparacontigoquantoHator, verdadeiramente, e, com semelhante protetora, não se deve temer coisa alguma. Eu teproporcionareitambémumaentrevistacomRoma.Ficatranquila...

ERoantcontou todosossofrimentosqueo irmãohaviasuportado, tudoquantocomprovavagrandeamor, enotouque, aomencionara rainha, comoqueumasombrapassavapela frontedaconvalescente, e, mais do que tudo, que o amoroso tema era o assunto principal para distraí-laseguramente.

Desdeessedia,aconvalescençadeNeithprogrediurapidamente,easforçaslhevoltavamaolhosvistos.AmparadaporSatatieRoant,reiniciaraocaminhar,e,desdeamanhã,eraconduzidano leito de repouso ao ar livre. Em uma tarde, quando, depois de intensa canícula, sobreveioagradável frescor, Neith estava no terraço, próximo do rio, no sítio exato onde Keniamun vieraoutroraanunciaraopríncipehitenoavisitadasoberana.Tambémagoraelaaguardava,nessedia,avisita de Hatasu, e, ao pensamento deste encontro, um sentimento de vergonha, de temor e deremorso contraía-lhe o coração. A rainha, sem dúvida, pediria contas da sua conduta, exigiria onomedoseuamado,por issoque,decerto,Sargon,para justificar-se, teriaditodasrazõesdoatoviolentopraticado.Equantomaisnissopensava,maisselheobscureciaoolhar.Grandemudançaseoperara na alma de Neith, durante a prolongada enfermidade; os sofrimentos haviam sazonado,desenvolvidosuamentalidadeinfantil,eacriançasefizeramulher.Relembrandoaterrívelnoitedenoivado, odescomposto semblantedeSargon,quea ferira, espumandoe cegode raiva,umavozrecônditaciciava-lhetergravementepecadocontraodesditosomancebo,queaamavacomtodasasforçasdaalma.NasuacóleraImpotente,elaatiraraàfacedoesposouminsultoeumaabominávelmentira.Sentia-semaculada, elaprópria, e, a tal lembrança, afogueado ruborcoloriu-lheo rosto.Suaalmapertenciaaobelosacerdote,eraverdade,mas,orestoforaumainvençãovil,causadoradetãodeploráveisconsequências.QueaconteceraaSargon?Ninguém,inclusiveapalradoraRoant,lhedisseraumapalavra a respeito.Ela conhecia suficientemente as leis, parabemavaliar qual durodestinooaguardava.Talvezarainhalhedissesseaverdade.Comumsuspiro,Neithpassouamãopelafronte,eprocurouafastarostristespensamentos,paraseconcentrarnalembrançadeRomaeno seu amor; mas, também nisso não encontrou encanto sem mistura. Desejava, a toda hora,inebriar-se com a sua voz, com seus olhares amorosos, e, no entanto, ainda não viera uma vezsequer. Roant transmitia-lhe, é certo, ternos recados e flores; mas, constituíam fugaces alegrias;comamargura,lembrava-sedequeRomanãoeralivre,dequeeracasado,esomenteàsemelhançade dois ladrões podiam permutar amor. Para o seu natural, franco e orgulhoso, a situação falsatransformava-seemtortura,edoragudatrespassava-lheocoração,cadavezquepensavanojovempadredeHator.

AentradadeSatati,seguidadePairedosdoisfilhos,deufimaosdevaneiossolitários.Comindiferença afadigada, acompanhou com o olhar os preparativos que se faziam no terraço,supervisionadosporPair,edeixou-seenvolveremamplovéutransparente,cobriuospéscomumapeledeleopardo,eolhouapoltronadecobrelavradoqueforapostajuntodoseuleitoderepousoequedeviaserocupadapelarainha.AvozdePairanunciandoqueumaembarcação,provavelmenteadasoberana,seaproximava,veio interromperumadiscussãoentreAssaeBeba,e todaa família,precedidadeSatati,correuparaaescadadedesembarque,excetoNeith,que,aindaimpossibilitadadeandar,continuouondeestava.

Um barco, muito simples, tripulado por duas mulheres e alguns homens, atracou. A rainhasaltoulestamentenosdegrausesubiu,seguidadeSemnut,dasuacomitivaededoisoficiais.Comalgumaspalavrasbenevolentes,proibiuaPaireaosseusfizessemassaudaçõesdeetiqueta,pornãoviraliemcaráteroficial.Desdequandopisouosolo,seusolhosbrilhantesprocuraramNeith,e,aoseaperceberdequeestatentavaerguer-se,determinou,imperiosamente:

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— Não te levantes, ordeno! E vós outros — falou, dirigindo-se aos demais circunstantes —retirai-vosparaosaposentospróximos.Tu,Satati,vigiaparaquenenhumouvidoindiscretofiqueàescuta.

CompreenderamtodosquearainhatencionavainterrogarasósaesposadeSargon,equaseinstantaneamentesaíramdoterraço,semruído.QuandoopesadoreposteirodesceuàsaídadePair,oúltimoaretirar-se,Hatasuaproximou-sevivamente,eatraindo,comosbraços,sobresiatrêmulaNeith,beijou-lheospálidoslábios.

— Enfim, pobre filha, te revejo quase restabelecida, e restituída à vida, depois do terrívelperigo a que estiveste exposta — disse afetuosamente, enquanto a jovem, desfeita em pranto,pousavaoslábiosnarealmão.Não,nãoqueroverlágrimas—prosseguiu,sentando-seeafagando-lheafronte.Nãoestouaquiparatecensuraresimparafalarcontigodecoraçãoaberto.Aquieta-te,pois, e responde-me com a verdade. Meu coração está aflito, Neith, porque gravíssima acusaçãopesasobreti;mas,sejaoqueforquehajasfeito,confessa-me.Nãotensmãe,Neith.Poisbem:pensaque sou tua mãe, e dize-me tudo, sem restrições, porque sabes que para contigo encontrareiindulgênciaejustificativa.Ésmuitoinexperiente.Etalvezporminhaculpanãotenhaconquistadomaisdatuaconfiança,nemcompreendidoosdiversossentimentosqueagitaramoteucoraçãodecriançaqueés.

—Ah!Tuabondadecomigosemprefoisemlimites—murmurouNeith,comolhardegratidão.Euéqueestivesempreemfalta.Mas...pergunta,minharealbenfeitora,edesvendar-te-eiofundodaminhaalma.

Arainhaapertouamãoqueretinhaentreassuas.

—Sabestuoqueéfeitododesgraçadoinsensatoque,emhoranefasta,teferiu?Estápreso,esua condenação à morte é iminente, porque a lei assim pune mesmo um egípcio assassino, e étriplicementeseveraparaoestrangeiro,paraoinfortunadoprisioneiroquetinhaporsustentáculoaminha proteção e que ousou ferir uma nobre filha do Egito. Mas, é verdade, Neith, o que merespondeuparajustificaroinauditocrime,eoquetambémrespondeuaosjuizes:quesuamulher,desaparecida durante a festa e vinda não se sabe de onde, declarou abertamente ter saído dosbraçosdeumhomemaoqualpertenciadecorpoealma?

Lívida qual espectro, olhos imensamente dilatados, Neith escutara. Às últimas palavras darainha,umfluxodesanguelheavermelhouorosto,queescondeucomasmãos.

—Não,não;issonãoéverdade,nãomecreiasassimtãoimpura,divinafilhadeRa,enãomedesprezespelaabominávelmentiraquedisseaSargon,nointuitodeferi-lo.

—Semprejulgueiassim.Confessa-me,pobrecriança,omotivodetalmentira—dissearainhacomamesmabondade.

Emvozbaixaeentrecortada,Neithnarrouàprotetoraahistóriadosseus ingênuosamorescomKeniamun,depoiscomRoma;afatalidadequeaseparavadojovemsacerdotedeHator,casadocomaperversaNoferura,eporfimasuaternamasinocenteentrevistanodiadasnúpcias.

— Não compreendo, eu própria — disse, finalizando a narrativa —, como pude chegar aproferirfalsidadetãoultrajanteparamim;mas,algumacoisanoolharenotomdevozdeSargonme revoltou, e, então, na minha cólera cega, atirei-lhe em rosto a ofensa, e tive o merecido porhavertãoimprudentementeaçuladooseufuror.

— Sim, minha filha, Sargon acreditou ser atingido nos direitos mais sagrados, e, em taismomentos,todohomemqueamaémaisterríveldoqueumtigrefaminto,errantenodeserto.Queadura lição te sirva para o futuro. És bela, e já despertaste amor em mais de um coração; sêprudente,pois,enãojoguescomapaixãodeumhomem,usandopalavrastãodesarrazoadas,quedestruíramteudesditosomarido,oqual,mesmoconseguindosalvar-lheavida,serácondenadoàsminas e aos estaleiros; e isto basta para compreenderes o erro afrontoso que cometeste comSargon.

—Oh!Nãodesejavaisso—murmurouNeith,trêmula.

Temerosadecomplicaçõescomoestadodaconvalescente,depoisdetaisemoções,arainhaenxugou-lheaslágrimas,edisse,emtomencorajador:

— Tranquiliza-te, minha filha, se me amas e confias na tua rainha, para reparação da tuaimprudência.Grandealegriafoiparamimsaberqueéspuraeinocente,eSargonpagaaviolênciaeloucacegueira.Agoravoudizer-teoquepoderácalmar teus remorsos.A tuaconfissãodiminuia

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culpa de Sargon, e providenciarei para que seja enviado às minas; lá dispensar-lhe-ãocondescendência, e, com o tempo, eu o indultarei e lhe restituirei os bens. Então, Neith, seráchegadoomomentoemquepoderásrepararoterrívelmalcausadoaesseinditosohomem,quandolheacicatasteajustacólera.Pensanisso,ebuscamudaremamizadeoamorqueteinspiraomoçodeHator;eleécasado,eumamormanchadoporumduploadultérionãopodetrazerventura.Seiqueé ásperaa lutapara vencer o coração,mas, crê, o sentimentododever cumpridoé tambémfelicidadeenosasseguraabênçãodosdeuses.

Facesinundadasdepranto,Neithbeijou,fervorosa,asmãosdarainha.

—Fareitudoparaquefiquescontentecomigo.Apenas,perdoa-me.

—Tudoestáperdoadoeesquecido,tranquiliza-te;nãoqueroquechoresmais.Evaisterumasurpresa:sabesoquetetrouxedepalácio?Meucãobranco,quenuncadeixavasdeacariciar.Faço-tepresentedele.

—Comocolar?—perguntouimpensadamenteNeith,cujosolhosbrilharamdeimediato.

Depois,refletindo,enrubesceu.

—Comocolar,éclaro.Dentroempouco,Semnuttraráoanimalzinho—respondeuHatasu,quesorriraàingênuaindagação.Eagora,adeus!Precisoregressaraopalácio.

Neithergueuparaelasuplicanteolhar.

—Eu...eudesejavafazer-teumarogativa.

—Pala,minhafilha.Quepossofazerporti?—disse,sentando-senovamente.

—Quisera ficar sozinhanestepalácio,quemepertencepor tuagenerosidade—disse,comhesitação.Afamíliaquetraficoucomigoedeuempenhoramúmiademeupaié-medesagradável;demonstraram tãopoucoafeto e respeitopelamemóriadodefunto, tanta indiferençapelaminhafelicidade,quenemPair,nemMena,nemmesmoSatatimeinspiramconfiança.Semelessentir-me-eimais livre,eminhasaúdemelhorarádediaparadia;queroeuprópriagerirmeushaveres.Tuconheces, grande rainha, as prodigalidades dos meus parentes... Se ficar à sua mercê, poderiamarruinar-menovamente.

Hatasubaixouafronteelevantou-se.

—Teudesejoéjustoesábio,Neith,eserásatisfeitoimediatamente.

Beijou a fronte da jovem e saiu do terraço. Ao fundo da sala contígua, estavam reunidos oséquitoeosdonosdacasa,aguardandoasordensdasoberana.

—Voltaiparaoterraço,menosPairaquemprecisofalar—determinouela.Tu,Semnut,levaaNeithopresentequelhetrouxe.Mas,ondeestáoanimal?

—Ei-lo—respondeuumdosoficiais, tirandodesobacapaumencantadorgalgobrancodefocinho afilado, cujo pescoço flexível estava ornado de uma coleira de ouro, de duas voltas,incrustadadepedrariasmulticores.

Arainhasentou-senumacadeirademarfim,e,vendo-seasóscomochefedasequipagens,perguntou,fixando-ocomaresescrutadores:

— Quem se incumbe, desde a ausência de Sargon da administração dos seus domínios,rebanhos,vinhodos,etc.?

—Eu,grandefilhadeRa,encarreguei-medagestãodessesbens.

—Lamento,Pair,nãopoderdeixá-laemtuasmãos.ÉsomaispróximoparentedeNeith,mas...(severoolhardesceuaosemblanteempalidecidodoperdulário)nãotenhoamenorconfiançaemtieemMena.Soba tutela de dois penhorantes de múmia, qual sois, ela estaria em risco de perderquanto possui. Vais, pois, entregar tudo nas mãos de Semnut, que escolherá um intendente paraadministraroshaveresdeNeith.Eporqueummsaúdenãomaisexigecuidadosparticulares,tueosteuspodeisdeixaropaláciodeSargon.VossasprópriasriquezasnecessitamdatuaassistênciaedadeSatati.Queosdeusesabençoem,pois,oregressoaoteular.QuantoaNeith,émeudesejoqueseacostumearespondereazelarpelosseusinteresses.

SemprestaramenoratençãoàpalidezeasilenciosaestupefaçãodePair,voltoucostasesaiu.

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OfurordeMena,aoterconhecimentodaordemdarainha,nãotevelimite;Sataticontentou-seemdizer,comexpressãovenenosa:

—Eradeprever.Quemsemeiaseudinheironacasadasmulheresperdidascolhedesprezoedesconfianças.

NenhumdelessuspeitouqueNeithfosseacausadoradaexpulsão.Apesardisso,quando,doisdiasdepois, fizeram a mudança, as despedidas com a convalescente foram gélidas, e até mesmoSatatisemostroureservadanasvisitasaNeith.Estarespirou,aliviada,quandoseviusóafinal.Asenergias voltavam rapidamente Roant mantinha-lhe fiel convivência, e, certa tarde, trouxe umvisitante,cujapresençaconstituíafluidovitalparajovem.QuandoRomaaapertoudeencontroaopeito,murmurouemvozvelada:

—Neith!Enfim,enfimterevejo!

AalegriatrouxeaorostodeNeithtodooseufrescor,aosolhostodooviçodasaúde.

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XI

NOVIDADESEMCASADETUAÁO luto do Egito havia chegado a seu termo. Acompanhada de todo o clero, rodeada das

maioreshonrarias religiosas,amúmiadeTutmés II fora trasladadaparao túmuloconstruídoporHatasu e depositada na câmara sepulcral, cavada na rocha, onde deviam repousar um dia osdespojosmortaisdaesposae irmãdo rei.Nodia seguinteaodagrave cerimônia, a rainha tinhavindo, cercada de inusitada pompa, ao templo de Amon-Ra para sacrificar aos deuses. Depois,regressandoapalácio,apareceraaumajanela,paramentadacomtodososornamentosrealengos,efalaraaopovoque,emmassacompacta,ocupavaapraçaeruasadjacentes.Embrevespalavras,porémdignaseenérgicas,arainhadeclararaque,apesardaamarguracausadapelodecessodorealesposo;semembargododuplofardoquesuportavasobreosombros,dirigindosozinhaoGovernoquepartilharacomofinadomonarca;esperavafirmementeveroEgitoprosperarsobseureinado,emglóriaeriqueza,edesejavaconduziropovoàvitória,seguindooexemplodeseudivinogenitor,ograndeTutmésI.

Aclamações frenéticas acolheram esse discurso, e, mesmo depois de se haver a rainharecolhidoaos seusaposentos, osgritos, votosdeventurae clamoresde júbiloaindaatroavamosares,qualfuracãodeentusiasmos.Afinal,abarulhentaetumultuariamenteagitadamassapopularescooupelasruasdaantigaCapital.

Ànoitedessediacheiodeemoções,umapequenasociedadeseencontravareunidanacasadeTuaáNão se tratava de uma daquelas festas brilhantes e frequentadíssimas, à custa das quais aviúvasetornaracelebrizadaemTebas;otempoforaescassoparaospreparativos,porquepoucosdias antes havia ela regressado do Mênfis, onde se demorara seis semanas, tratando de umasucessão.QuantoaNefert,preencheraotediosoprazodolutonacional,queimpediaqualquerfestaou divertimento, em visita a uma parenta domiciliada emHeliópolis. Logo que se sentiram algorefeitasdas fadigasda viagem,mãee filha, ávidasdenotícias emexericosda corte e da cidade,convidaramalgunsíntimos.

Umadezenadehomensemulheres,entreasquaissecontavamMena,NoferuraeKeniamun,estavareunida no terraço, ornamentado de flores. Vastamesa atulhada de carnes frias, vinhos efrutas fora posta ao centro dos convivas, que se serviram à larga. Os escravos haviam sidoafastados,paraqueasconversaçõesfosseminteiramenteàvontade.Noextremodamesasentava-seTuaá, vestindo de amarelo franjado do púrpura, cabelos tingidos e atafulhados de jóias, facespintadas, falando,estridenteeemrequebros, comumvelhomilitar, comandantedaguarniçãodeTebas,quealendaacusavadehaversidooprimeiroafazercairemtentaçãoavirtuosaTuaá,entãojovemeformosamulher,poucoenamoradadeumricoevilãomarido.

Do ladooposto, juntodeMena,Nefert retorcia-sepreguiçosamentenoespaldarda cadeira,mastigando um bolo, e dandomedíocre atenção, quer às olhadelas, quer aos olhares fogosos dovizinho.Eraumabelacriatura, formasvoluptuosaseadmiráveis,àqualocontrasteda tezbistre,comcabelosfortementeavermelhados,davaumtommuitooriginal.Trajavaumasalatufada,verdeebranca,eumaespéciedecamisademangascurtas,detecidotransparente,merecedordonomede"fiosdear”,nãolheescondendonadadosencantos;pescoço,braçosetornozelosatestadosdejóias.

Haviamsidotratadosa fundoodiscursodeHatasueos funeraisdorei; tinha-sepairadodariquezadobarcofunerário,doesplendordascerimôniasreligiosasedaafluênciaenormedepadresàconsagraçãodonovotúmulo.

—O desfile foi verdadeiramente sem fim — comentou uma das mulheres —, como nuncapenseiver.Eospadres tanto trovejaramcontraomonumento,semdúvidaumpoucoestranho!Eagoraacudiramemmassaparabenzê-loenelesepultarTutmésII.

—Seissoteadmira,Herneka,ésbemingênua—dissearirummoço,oficial—,porqueprovaque o querer e o poder são “dois” e, uma vez que cederam, ocultaram o fracasso sofrido emostraramumexcessodezelo.Oh!Hatasuémulherquesabequerere,oqueémais,imporassuasdecisões. Suponho que Tutmés III esperará algum tempo antes de trocar o exílio de Bouto pelametadedotrono!

—Tambémcreio—intercalouNefert.OGrandeSacerdotedeAmonparecehaverarrefecidodepoisquearainhalheconcedeuofavordobeija-pé.

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—Enãosedevedeixardefazerusodetalhonraria,semprequeseofereçaocasiãoparatal—agregouasorrirocomandantedeTebas.

—Semprearainhaétãobondosaquantoenérgicaefielàquelesaquemprotege;elasalvouavidadeSargon,apesardetudo,emandaram-noapenasaosestaleiros—disseKeniamun.

—Sim,paraissotambémopezinhocontribuiu—comentou,maligno,ovelhooficial.Ohitenosalvouavida,apesardocrime,inominávelparaumestrangeiro,efoicondenadonãoaosestaleiros,esimàsminas,deonderegressaráindultadoemaisgloriosodoquenunca,podejurar-se.Amanhã,comoutrossentenciados,partiráparaaEtiópia;acolunajádeviaestaremcaminho,mas,paraqueosoficiaisesoldadosdaescoltapudessemassistiraosfunerais,foiadiadaapartida.

—Eis um caso extraordinário, cujo fundo verdadeiro desejaria conhecer— exclamou Tuaá.PobreSargon!

Eu o lamento, apesar de tudo; era um belo rapaz, e tão delicado... E ter de Ir para osestaleiros...Éhorrível!Mas,quemotivostê-lo-iamlevadoaocrime?Sabemostodosquenãosemataamulher,horasdepoisdocasamento,porqualquerbagatela.

—Estouconvencidadequehouveinfidelidadenocaso,equeabelaprotegidadonossoFaraónão6 tão inocentequanto semostra—chacoteouNoferura. Tais descobertas tornam os homenscomoquedanados.

—Noferura o sabe por experiência— intercaloumaldosamenteKeniamun. Paramim, creiofirmemente,houveapenasentreambosummal-entendido.

—Hum!Terrívelmal-entendido—disseTuaá,meneandoacabeça.Vamos,Mena,fala,elucida-nossobrearealidade.Devessaberaverdadesobretuairmã.

OInterpeladoempertigou-secomgravidade.

—Émistérioimpenetrável,conhecidoexclusivamentepelarainhaepeloGrandeSacerdotedeAmon...E...quantoàsminhasconjeturas,nãomeconsiderocomdireitodedivulgá-las.

—Deixa-o,mãe,poisbemsabesqueMenaadoraomistério,e,paradiscrição,nãotemrival.Recorda como guardou o segredo de Chnumhotep, antes do noivado de Roant — dissedisplicentementeNefert,fitando,comironiamotejadora,orostosubitamentecoradodooficial.

Olhosgirandonasórbitas, lábios trêmulosderaiva,porqueasgargalhadasprovocadaspeloremoquedeNefertoexasperaram,Menapreparavaenérgica resposta,quandoTuaá,desejosadeevitarincidentes,disse,comautoridade:

—BastadefalarnestecasoenasdemaishistóriasdeTebas.Deixai,meusamigos,contar-vos,a meu turno, uma coisa assaz interessante, que ouvi cm Mênfis e que concerne ao príncipeHoremseb,parentedafamíliarealequeconheceis,aomenosdenome.

—Horemseb,ofilhodabelaAnaitis?perguntouovelhocomandante.QuefazeleemMênfis?Hábemmaisdeumlustroquenãoaparecenacorte,eestácompletamenteesquecido. Jáemsuaúltimaestada,papagueava-sedediversasbizarriasdoseucaráter.Deveorçarporvinteesetedeidade.

—Oh!Éumhomemdetodoextraordinário,esuavidaummistérioqueinteressatodaagenteemMênfis—exclamouTuaá,comanimação.Queroexatamenterepetiroqueouvi,aessepropósito.Há quase um decênio, começou, após amorte do genitor, a adquirir todos os terrenos e jardinscircunvizinhosdeseupalácio,principalmenteàmargemdoNilo.Segundosediz,tãoimensoespaçofoi transformadoemumúnico jardim,providodedois lagos; tantoquantopodeoolharabranger,percebe-secomoqueumaflorestadepalmeiras,sicômoros,umaverdadeiraconfusãodeverdura.Otodoécercadoporummuromuitoalto,comduassaídasconhecidas,sendoumaparaacidadeeoutraparaorio,servidaestaporescadaladeadadeesfinges.Aoladodaescada,existeumaespéciede abrigo de pedra que comunica também com o interior e onde se acha uma barca à qual voureferir-medentroempouco.Duranteodia,absolutosilêncioparecereinarnahabitação,lembrandoumafortalezaadormecida,eopróprioHoremsebnãoaparece.Outrora,eravistopelomenostrêsouquatrovezesporano,naocasiãodasgrandesfestasreligiosas,ouparaoferecersacrifíciossobreasepulturadopai;mas,desdeháanoemeio,negligencioumesmoestesdeveres,esóànoitepodeseravistado,quandopasseianoNilo,emumaembarcação,verdadeiramaravilha,edetalriqueza,queexcedeadausadanotransportedeHatasu. Imaginai,meusamigos,umbarcomuitogrande,inteiramente dourado, com os rebordos guarnecidos de uma faixa de marfim Incrustada depedrarias,fazendooefeitodepreciosocolarpostoemredor;aproarepresentaumaesfingealada,

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queparecefundidaemouroepratamaciça,ecujacabeçaéprovavelmenteoca,porqueasórbitasdosolhosaparentamemitirclarõesvermelhos,provavelmentedelanternas.Doisgrandesfaróisvãoacesos atrás da embarcação.No interior, o navio é forrado de preciosos estofos e, sob umpálio,Horemseb em pessoa se reclina sobre almofadas, e seu olhar trespassa qual flama aqueles quecruzamcomasuabarca,movidaporoitoremadores,surdos-mudos,segundosediz.

— Tu narras como se houvesses visto tudo Isso exclamouNoferura, que escutara de olhoscintilantes.

—Semdúvida que vi a barca e o “mágico", conforme é designado emMênfis— confirmouTuaá,comsatisfação.Econfessotambémquenãofoisemalgumadificuldade.

— Então, narra tudo com pormenores — exigiram várias vozes, porque todos haviamacompanhadocuriosamenteadescriçãodaviúva,aliáslisonjeadapeloInteressequedespertara.

—Vistoassimodesejardes,meusamigos,vourelatar,comosdetalhes,oquantoobserveieouvi—aquiesceuTuaá,sorrindo.Paraisso,porém,tenhodocomeçardeumpoucomaislonge.

SabeistodosquetivedepartirinopinadamenteparaMênfis,ondeamortedeumirmãoeasformalidadesdaconsequenteherançareclamavamaminhapresença.Foiumprocessocomplicado,no qual tive de lutar contra a má-vontade de vários primos, e, nos primeiros tempos, essesembaraços absorveram-me totalmente a atenção, a boa Noferura dera-me uma carta derecomendação a um seu parente, sob cujo teto reside a irmã, Neftis, mais nova, e o excelentehomemfoiparamimgrandeesteioevaliosoconselheiro.Porseuintermédio,fizconhecimentocomaltofuncionário,onobrePsametich,cujaproteçãomeajudouatudoliquidarrapidamente,ecomafamíliadoqualmeligueiapontodeseralirecebidaqualpróximaparenta.Certatarde,cercadeoitodiasantesdomeuregresso,Psametichesuaconsorteconvidaram-meaumpasseiopeloNilo,oqueaceiteicomprazer.Aopassar juntodeummuroimenso,pordetrásdoqualhaviaumaflorestadeverdura,pergunteiqueeratalsítio.

— “Por detrás desse muro está o palácio do príncipe Horemseb, o “mágico” de Mênfis,conformeopovoobatizou—respondeuo interrogado,sorrindo.Essaescadaornadadeesfinges,que vês, é uma das saídas da encantada habitação, e só se abre quando Horemseb faz noturnopasseio no rio, e somente então pode ser visto o homem a respeito do qual correm tantas eestranhashistórias.

—“Pediaomeuamigonarrasseoquesabia,pois,emborativesseeuprópriaouvidoalgodemisteriosocomreferênciaaopríncipe,julgavaexistirnissoexageroscriadospelosmexeriqueiros.

—“Éindubitávelqueseinventammuitascoisas,eselevaàcontadeHoremsebtudoquantoacontecedeinexplicávelemMênfis,ecujaexistênciaelemesmoignora—observouPsametich—,masogêneroestranhodavidadopríncipedálugaratodosessesboatos.Éforadedúvidaexistirnahabitaçãoumsilênciosuspeitoduranteodia,equeànoite(dizem)aliseouvemcantoriasecomoque um abafado ruído de festas. O velhoHapzefaá, o homem-procurador do príncipe, vem fazercomprasacompanhadodeescravosmudos,quesórespondememitindosonsininteligíveis;compraescravos, sem limite,depreferência surdos-mudosebemassimmeninasdedezeonzede idade,metendo toda essa gente no palácio, sem que jamais reapareça, nem se saiba o que foi feito dequalquerdosseuscomponentes.Dessacircunstância têmsidodeduzidasenormidades,e,quando,háalgumtempo,desapareceuumcélebrecantoreharpista,edepoisumourivesafamado,emaisumescultorassazconhecido,eque,apesardosesforçosdasautoridades,nenhumtraçodeles foiencontrado,orumorpúblicodecidiuquehaviamdesaparecidonacasadeHoremseb.Mas,porquenenhum indício veemente corroborava tais suspeitas, os casos ficaram limitados a suposiçõesapenas.Noanotransato,sobreveioumfatoverdadeiramenteestranhoepropícioadesconfianças:umaescrava,moça,nascidadeprisioneiradeguerra,deviaservendidaporseusenhor,vítimadeaperturaspecuniárias,eHapzefaá,discretoquantoumtúmulo,aadquirira,nãoconstandodepoismais nada a seu respeito. No entanto, por acaso, cujos pormenores desconheço, a dita escravaconseguiufugirdopalácio,eretornouàcasadosantigossenhores.Éfácilconjeturardequemodofoielainterrogada;comenormeespantodetodos,porém,declaroununcateravistadoohomemdequemtratavam.Narrouque,juntamentecommuitasoutrascompanheiras,habitavaumaconstruçãosituada emenormepátio fechado; queumhomem, vestidodebranco, costumava vir ensiná-las acantareatocarharpa,e,aalgumas,adançar.Muitasvezes,ànoite,preferencialmentenasdeluar,as dançarinas eram vestidas de tecidos ligeiros, enfeitadas de colares e de diademas de ouro, eassimbailavamcomjovens,tambémfaustosamentetrajados,sobreumtabuleiroderelvas,emredorde tripés, dos quais se evolavam aromas encantadores, ou às bordas de um lago iluminado portochas,enquantoascantoras,paraexecuçãodasuaparte,eramcolocadasnasárvores,ocultaspelafolhagem.Mas,comquefimtinhamlugartaiscânticosedanças,ignorava.Dosupremosenhordopaláciojamaisaperceberamasombrasequer,efalavamapenasaovelhodebranco,queasinstruía;

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osescravosqueasserviameramsurdos-mudos.Calcula-seo interessedespertadopelanarrativa;mas,nodiaimediatoaodavoltaaoantigodomicílio,amoçaescravafoiencontradamorta.Qualacausa?Nuncasesoube.

“Podeis figurar-vos, meus amigos, a impressão que me produziu a narração de Psametich.Fervendo de curiosidade, deliberei fazer o impossível para avistar esse homem extraordinário,embora Psametich buscasse dissuadir-me de meus propósitos, por ele classificados de loucura,assegurando-me que Horemseb traz desgraça, e que eu não encontraria remadores que searriscassem ao “mau-olhado”. Eu estava, porém, resolvida e devotada ao desejo de ir avante.Quando falei a Neftis, esta fortaleceumeu projeto, e até prometeu acompanhar-me. Resolvemosentão agir em segredo, para evitar falatórios e empecilhos. Contratei um barco e dois possantesremeiros, semmedodecoisaalguma,osquaisasseguraramque, sendo luacheia,quasecerto setornava encontrar o príncipe, o qual, em plenilúnio, jamais faltava ao seu passeio. Anoitecendo,embarcamos,Neftiseeu,eseguimos.Tuairmã,minhacaraNoferura,estavacheiadejovialidade,ealindadaaencantar.

“Tomacuidado!—disseeu.Seagradaresao“mágico”,estarásperdida!

“Riuloucamente,dizendonadatemer,equepropositadamentesehaviaenfeitadoassim,paradespertaraatençãodopríncipe,dandocomissomaisfacilidadeparaexaminá-lo.Oargumentoeravalioso,eprosseguimosnossorumo,alegres,emboracomexpectativa impaciente.Súbito,umdosremadorescurvou-seedisse:

“Olhai,nobresenhora,ei-lo!

“Ao mesmo tempo, ele e o companheiro agacharam-se, e, abrigados pelas bordas daembarcação,estenderamosdedosindicadoremínimo,noconhecidogestoparaneutralizaro“mau-olhado”.Eu teria achadograçanisso, senãomeencontrasse empolgada, pois amisteriosabarcaaproximava-se celeremente. Já os olhos avermelhados da esfinge coloravam as águas de um tomsanguíneoefaziamcintilaraspedrariasdocolarquelheornamentavaopescoço,epoucodepoisobarco do príncipe nos alcançou, raspando quase as bordas do nosso... Toda a minha alma seconcentrounosolhos,taloestranhoemaravilhosodoquevi.Semembargo,minhaatençãorecaiuno personagem, estirado imóvel sobre almofadas. Eu já o avistara, em Tebas, havia dois lustros,quandoaquiestiveracomogenitor,mas,decertonãooreconheceria:oadolescente,magroeumtanto débil, transmudara-se num homem de beleza surpreendente, de formas admiráveis,extremidades finas, longas, porém atléticas, rosto soberbo, embora de beleza sinistra, olharcoruscante,quedavaarrepios.Vestiacurtoaventalbordadoapedrarias,etraziagorroornadonafrentedeumdiadema.Colarebraceletes,quenãotivetempodeminúciar,chispavamnopescoçoenosbraços.Eramudoqualumaestátua,eapenasseusterríveisolhospareciamviver;mas,eisquederepenteumestranhosorriso lheentreabriuaboca,deixandover,porentrecarminados lábios,dentes rivaisdepérolas.Depois, retiroudocintoumarosaqueestavapresa,eaarremessouaosjoelhosdeNeftis,que,pálida,olhosdesmedidamenteabertos,nodobrava,totalmenteembevecida,aponto de esquecer-se de apanhar a flor. Um minuto mais, e a barca havia passado, e ganhadodistância,comarapidezdoclarãoSóentãoNeftistornouasi,exclamandotriunfal:

“Olha,Tuaá!Horemsebatirou-meumarosavermelha,masdiferentedetodasasnossasrosas,emaravilhosaquantooétudoquedelevem.Queperfumeexala!Queseráisto?Estátodamolhada!

“Curvei-meparaarosa,cujoaromaeraemverdadesufocante;nãomeagradando,porém,osodoresagressivos,edevidotambémàminhaemoção,aquelecheiro fez-memal,edurantemuitosdiassofriatordoamento»,doresnacabeçaenopeito,esenticomoquefogonosangue.”

—Talvezfosseo“mau-olhado”enãoaemanaçãodarosaqueassimagitouoteusangue.Éstãosensívelàbeleza,Tuaá—intercaloumaliciosoocomandante.

Aviúvaaplicou-lhevigorosotapanascostas.

—Estás envelhecendo,Neitotep, e o ciúme contra tudo que é joveme formoso recende decada uma de tuas palavras. O mais provável é que o delicado de minha natureza a torne tãoimpressionável.Neftis,quecheiravaassiduamenteaflor,nãosequeixavadecoisaalguma,quandodiasdepoismedespedi,eatémeconfessouconservararosaemlembrançadeHoremseb.

Houverisosediscussõesaindaporalgumtempoapropósitodasextravagânciasdo“mágico”deMênfis,eagradecimentosàdonadacasapelainteressantehistória.Depois,aconversaçãotomounovoshorizontes,atéqueumnovovisitantefezesqueceroprimitivotema.

Algumas horas antes da reunião em casa de Tuaá, Neith e Roant estavam reunidas noaposento particular de Neith, em animada palestra. A esposa de Sargon parecia completamente

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restabelecida.Nessaocasião,porém,umavermelhidãofebrilcobria-lheasfaceseprofundarugaseformaraentreassobrancelhas,alémdavisívelexpressãodecóleraedeobstinaçãoquebrilhavaemseusolhos.

—Roma tem idéiasmuito bizarras, e não compreendo que se aventure a pedir semelhantecoisa—disseela,comoslábiostremendonervosamente.ÉcomoseexigissedetiperdãoaMenaporhaveresamadoaChnumhotep.

RoantpassouobraçoemtornodacinturadeNeith,e,atraindo-aasi,abraçou-a.

— Vamos! Calma-te e falemos razoavelmente. Tua comparação inicialmente não vale nada,porque, escolhendo Chnumhotep, não feri o amor próprio deMena: sua liberdade e posição nãosofreram.Sargon está destruído, e o coraçãogeneroso e honesto deRoma sofremil remorsos; asorte do desgraçado pesa sobre ele como se, pessoalmente, houvesse cometido o crime; suaconsciência censura-lhe semcessaro ter sidocausada terrível ferida,da ruínaedocativeirodeSargon.Ontemaindamedisse:

— Os deuses punem sempre, quando nos desviamos do caminho dos deveres. Se eupermanecessefirme,ehouvesseocultadodeNeithomeuculposoamor,nãoteriaelacorridoesseperigomortal,eoinfortunadoSargonevitariasuaterrívelsorte.

—PobreRoma,erroneamenteeleseatormenta;eusouaculpadaúnica;elenãotemmáculapelomeuamor—disseNeith.Entretanto,admiro-medequetantolamenteSargoneselastimedemehaverdadooseuafeto.Elechamaaistoamar-me?—acrescentou,comimediatodespeito.Eunãoprevi queSargonme ferisse na sua raiva; o que lhe disse foi para desembaraçar-medele, epoupar aRomaum justificado ciúme.Agora posso estar convencida de que omeu amor émuitomaiordoqueodelepormim.

—Não;ésinjusta.Quetesolicitaele?Irverporalgunsinstantesoinditosocondenado,dizer-lhealgumaspalavrasdeconsolação,paraapagardeseucoraçãoohorrívelefalsopensamentodequepertencesaoutro.Amanhã,oscondenadospartemparaostrabalhosforçados,ebempoucosdelá voltarão vivos. Podes ter coração bastante duro para recusar algumas expressões afetivas aoinfortunadoqueaceitasteparaesposo?Vamos!Sêbondosa,acedeàsúplicadeRoma;Ireicontigo,edepoisseguirásparaminhacasa,ondepassaremosu tarde juntas,ecomalguémmaisquevenhaagradecer-tecalorosamentehaveraliviadoseucoraçãodeumremorso.

Neithdescansouafrontenoombrodaamigaerompeuempranto.

—Estábem:irei!—murmurouela,enfim.Mas,comochegaremosatéjuntodele?Épermitidoveroscondenados?

— Não te inquietes por isso: hoje há licença, a quantos o desejem, de dizer adeus aoscondenados. Por outro lado, Chnumhotep, que está no conhecimento do segredo, deu-merecomendação para o chefe das prisões, o qual é seu amigo, e nos guiará sem dificuldade, semindagações,deixando-nosasós.Protege-tecomespessovéu,eeufareiomesmo;iremosnaminhaliteiraatéaocanto,e,delá,andandoatéàprisão,incógnitas.

Duas horas mais tarde, ambas, trajando com simplicidade e protegidas por longos véus,apresentaram-seàportariadaprisãoprivativadosdeportadoseaentradadaqualsoldadosetíopesmontavamguarda.Chamadoporumdestes,ooficialdeserviçoveloinformarsidoquepretendiamasvisitantes.Rápidoolhardemonstrou-lhe tratar-sedepessoasdedistinção,o,quandoRoant lhedeualerastabuinhasescritasquetraziaeendereçadasaocomandodaprisão,eleassaudoucomdeferência,esaiuprestamente.Depoisdeumaesperaquepareceuinterminávelaambas,ooficialregressou,convidando-asasegui-lo.

—Vossasolicitaçãoéatendida—disseele,olhando-ascuriosamente.

Atravessadopequenopátio inicial,cheiodesoldados,depoisumcorredordeserto,estreitoeescuro,desembocaramemoutropátio,vastoerodeadodemuroselevadíssimos.Nestaespéciedetapada,cercadeduzentascriaturasestavamdispersasemgrupos,vendo-sehomensdecorrentespresas ao tornozelo ou algemados em pares, sentados ou deitados no chão, tendo em redormulheresecrianças,membrosdafamíliadeportadaporinteiro.

Talmassadesereshumanos,macilentos,quasenus,espelhavanorostoaexpressãodetristedesespero ou de apatia vizinha do embrutecimento. Sentinelas vigilantes, providas de bastões ourelhos,circulavamporentreosgrupos,batendonaquelescondenadosque lhespareciammerecercorrigenda,atémesmonascrianças,quandoestasgritavam.

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Trêmulaseperturbadas,Roantesuaamigaprocuraram,comoolhar,Sargonnomeiodessaturmadedesgraçados,porém,ooficialbeirouumdosmurosnoqualabriamváriasportasbaixas,e,próximodaúltima,parou.Manobrandooferrolhoexterior,deuentradaàsduasmulheresemumacélulameioabertanoteto.Bemaofundo,via-seummontãodepalha,àguisade leito,e,ao ladooposto,sobregrandepedra,servindodeassento,umhomem,noqualdificilmentesereconheceriaoeleganteeaprumadopríncipeSargon.Umacorrente,ligadaàparede,estavafixadaaumdospés;umpedaçodetecidogrosseirocingia-lheosrins;meiovoltadodecostasparaaentrada,pousavaacabeçacontraapedranua,enãopareciavernemouvir.

Petrificada, mãos convulsivamente premidas contra o seio, Neith arrimou-se a Roant,enquantoooficialseaproximavadoprisioneiro.

—Háquemtequeiraver,Sargon—avisou, tocando-lhe levementenoombro.Evoltando-separa Roant: Deixo-vos com o prisioneiro, nobres senhoras; fico, porém, ao alcance de qualquerchamado,casonecessiteisdemim.

Sargon voltara o rosto e fixava com o olhar sombrio as duas mulheres veladas. Estavaindizivelmente transformado: facesencovadas;olhos, fundosnasórbitas, fuzilavamsemelhantesacarvõesacesos;indefinívelexpressãodeamargura,deraivaedeirrisãodesimesmocontraía-lheaboca.

—Quemsoisequepretendeisdemim?—perguntoubrusco.

Neithtirouovéu,e,avançandoparaele,mãospostas,disse,comangústiaelágrimasnavoz:

—Sargon,perdoatodoomalquetecausei.

Avistandoaesposaeouvindo-lheavoz,o infortunadohomemdeuumsalto,equisatirar-sesobreela;mas,retesadopelacorrente,teriatombado,senãohouvesseidodeencontroàparede.

—Queviestefazeraqui,traidora?Rejubilar-tecomomeuinfortúnio?—rugiu,porentreumrirsecoodesesperado.Achasteummomentoparasairdosbraçosdoteuamanteedistrairosolhoscomaminhaimpotênciaeescarnecerdeminhahumilhação?Oh!Nãoestaresaoalcancedasminhasmãos, criatura depravada, lodo da minha vida e da minha honra, para afogar-te qual serpentevenenosa!—concluiunumaraivasúbita,lábiosespumandoepunhoscrispados.

Neithrecuou,mãosestendidas;seuslábios,trementes,recusavam-seàfala.Roantaproximou-se,corajosa.

—Enganas-te,Sargon,supondoqueNeithvelozombardetuadesgraça:opesareoremorsoguiaramnaaqui;odesejodeconfessaraverdadeecalmarteujustoressentimento.

—Sim, Sargon— exclamou ela, interrompendo a amiga— vim dizer-te a verdade: nãomedeves desprezar, porque não maculei tua honra, não te traí, como te disse então. Mentiindignamente:tuaarrogância,tuasduraspalavrastornaram-mecolérica,equisferir-teedistanciar-tedemim,mas,jamaisdescitãobaixo.Acredita,Sargon,eperdoaafataliraquetearruinou.Agoracompreendominhaterrívelfalta...

Opranto impediu-adeprosseguir.Opríncipeescutara fremente,olhosconcentradosnela,eante aquele rosto lavado de lágrimas, em face daquele olhar ansioso e cheio demudas súplicas,reacendeuoapaixonadoamorqueelalheinspiraraeumexcessodedesgraçaadormentara.

—Neith,dizesaverdade?—perguntouemvozquebrantada.Nãofuitorpementeatraiçoado?

—Não, não! Por que viria eu ao teu cárcereparamentir?Foi o remorsoqueme impeliu adizer-teaverdade,eutojuroporHator,pelosjuizesdeAmenti.

Tal vibração de sinceridade vibrava na voz da esposa, que as dúvidas de Sargon sedesvaneceram.Indizívelarrependimentodehaverdestruídoloucamentesuaprópriavidainvadiu-oentão,e,recaindopesadamentesobreapedra,premiunovamenteacabeçadeencontroàparede,enquanto convulsivos soluços lhe sacudiam o corpo. Por instantes Neith contemplou-o, fremindoqualfolhaagitadapelabrisa.Queforafeito,embrevessemanas,doairosopríncipehiteno?

Arruinado,degradado,acorrentado,condenadoatrabalhosforçados,sobosquaissucumbiammesmoosmaisrobustos,voltariaelevivo?Mereceratudoisso,emtrocadoapaixonadoamorquevotara a ela? Intolerável remorso segredava aNeith haver pecado horrivelmente em sua levianacólera,excitandoociúmeeaspaixõesdessehomematéàperdição.Écertoquetalnãodesejara.Uma onda de compaixão e de pesar invadiu o impressionável coração da jovem mulher, e,esquecendo o perigo de um inesperado ímpeto de raiva do prisioneiro, precipitou-se para ele,

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ajoelhouelhepousouaspequeninasmãosnosbraços.

—Sargon,Sargon,perdoa,enãodesesperesdofuturo.OfavordeHatasuétãoimensoquantooseupoder;elasalvou-teavida,edisse-mequeatenuarátuasortee,naprimeiraoportunidade,teindultará, restituindo-te fortuna e posição. Tem coragem e espera da bondade dos deuses e darainha...Equandoretornares,então,procurareireparartodoomalquetefiz.

Aestaspalavras,queerguiamaosolhosdoprisioneiroumporvirdeventuraeamor,rancorecólerafundiram-se.

—Neith!—murmurou,dobrando-separaaesposa,eapertando-lhefebrilmenteasmãozinhas—jurasesperar-mefiel,equemeretomarásparaesposo,seeuvoltaralgumdia?

— Sim, juro— prometeu Neith, com exaltação. Que Hator, ouvindomeu compromisso, mecastigue,seeufaltaraele.

UmclarãoderadiosaalegriajorroudosolhosdeSargoneiluminouseuemagrecidorosto.

— Que os deuses te bendigam mil vezes por estas palavras, minha adorada Neith. Tuapromessaserámeuesteionotrabalhodasminas,abrisaderefrigériosobosraiosescaldantesdosoldodeserto...Comalembrançadestahora,tereiforça,coragem,esperançaeresignação.

Com impulso de amor e reconhecimento, atraiu Neith de encontro ao peito e lhe deuapaixonadobeijo.Destavez,ajovemrecebeusemaversãoascarícias;afetuosapiedadetrabalhavaseucoração,e,sobainfluênciadetalsentimento,correspondeu-lheaobeijo,beijoque—aidele!—pagavaporbemaltocusto.

Nessemomento,ooficialentreabriuaporta,mas,àvistadoestranhogrupo,ereconhecendoNeith, retirou-se rapidamente. Vexada e descontente com a interrupção, Roant aproximou-sevivamentedeNeith,fê-laerguer-seelherepôsovéu.Trocadasexpressõesafetuosasdedespedidas,retiraram-seambas.Oencarceradoficouasós,porémnãomaischeiodedesesperoerevoltacontraos homens e os Imortais; ventura infinita transbordava em sua alma; a esperança, a enganadoranamorada do homem, fez esquecer o presente e lhe encheu a masmorra de radioso quadro defuturo.

Silenciosamente, as duas amigas retomaram a liteira, absorvida cada uma nos seuspensamentos.Mas,porqueasemoçõesexperimentadasexcediamaspossibilidadesderesistênciadoseu organismo, Neith, ao chegar em casa de Roant, perdeu os sentidos. Com ternura maternal,Roant dispensoumil cuidados à, convalescente, e,quando tornou a si, fê-la deitar, e só a deixouquando a viu entregue a reparador e tranquilo sono.Dirigindo-se ao terraço, para repouso ao arlivre,encontrouoirmão,quealiaaguardava.

—Eentão?...—inquiriu,sentando-sejuntodairmã.

RoantnarroucomminúciasosesforçosdespendidosparaconvenceraamigadequedeviairaocárceredeSargon,edepoisasocorrênciasdaentrevistadestecomaesposa.AoouvirquantoàpromessadeNeith, sombreou-se a fisionomiadomoço sacerdote.Ergueu-se e caminhouagitado:ciúme,cólera,pesar lutavamnele,eessecombatedesentimentosnocoraçãoespelhava-se-lhenoexpressivo rosto. Mas, bem depressa a alma generosa e pura de Roma triunfou sobre os mausimpulsos,ecensurou-seporinvejaraodesventuradorivalumaesperançatalvezjamaisrealizável...efelicitou-seporhaveraliviadoasuaafliçãomoral.

—PossoverNeith?—indagou,voltandoparaairmã.

—Estádormindo;porém,nãoimporta,vem!

Um momento depois, Roma curvava-se sobre o leito onde Neith, estendida, dormiaprofundamente.E,comosehouvessesentidoofluidodoamorosoolharpousadosobreela,ajovemestremeceu,ereabriuaspálpebras.

Encontrandooaveludado,carinhosoeapaixonadoolhar,quepossuíaodomdeextinguirtodasastempestadesdesuaalma,Neithsorriueergueuasduasmãosaojovemsacerdote.

—Fizoquedesejavas,Roma!

—Agistemuitobem—respondeuele,comforça.

—Sabes também (e seus lábios tremeram)que,porassimdizer, renunciei a ti, prometendorecebermeumarido,se,indultadoporHatasu,recuperarhaveresehierarquia?

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ObrilhanteolhardeRomaimergiunodeNeith,plenodeamoreconvicção:

—Não,Neith,nadanos farárenunciarumaooutro,porquenossoamor, isentodequalquermácula,éagradávelaosdeusese independentedosnossosdeveres.Tupermanecerásalegriadosmeusolhos,osernoqualconcentrotodaafelicidadedeminhaalma.Eu,enquantoviver,sereioteuamigo afetuoso, indulgente, fiel, teu conselheiro, teu sustentáculo nas horas aflitas. Esse laço deafeição desinteressada os direitos de Sargon não poderão cortar. Quanto à tua promessa, sómecabe repetir: agistemuito bem.Omatrimônio é coisa sagrada, e teu devermanda reparares, namedidade tuas forças,o terrívelmalcausadoa teuesposo.Amim,que fui involuntáriacausadadesgraça,incumbeodeverdeteampararnasboasegenerosasresoluções.

Com lágrimasnosolhos,Neithpassouobraçopelopescoçodo jovemecomprimiua frontecontraoseupeito.

—Tu, sim,ésgenerosoebomqualumdeus;enquantomeamareseserviresdeguia, sereifelizecheiadecoragem.

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XII

EMBOUTOEm uma planície baixa e pantanosa, bastante distanciada de outros centros habitados e

dificilmenteacessívelpormotivodosmauscaminhos,estavasituadaacidadedeBouto,regiãodeexílioparaaspersonagens incômodas, de refúgioparaosdesejososde fugir ànotoriedade, e, aotempo,residênciadojovemirmãodarainhaHatasu.

Àépocadenossanarrativa,acidadeerapoucoextensa,cercadademuroefosso,comaspectodepraçaforte.Aocentro,sobremontículoartificial,elevava-seumpalacete,construídodemadeirae tijolos. Os dois pavimentos da habitação, pintada de vermelho berrante, destacavam-sevigorosamenteacimadaverduradegrandejardimquearodeava.

Vastopátioestavacheiodesoldados,grupadosemtornodeumpoço,observandoosescravosquecirculavamemtodasasdireções.Haviasentinelaspostadasemtodasassaídas,nasescadaseaténasportasdeumavastasala,aocentrodaqualdoishomensestavamsentadosjuntodeopíparamesa,servidapornumerososescravos,solícitosemreencheroscopossemprequeesvaziados.Umdosconvivaserajovem,detalhemédio,ecujafisionomiarevelavafranquezaeenergia;mas,seusolhos pardos, calmos e profundos, desferiam por vezes olhadela perscrutadora e cautelosa,demonstrando que, sob a máscara hipócrita, se ocultava muita sutileza, astúcia e ambição. TalpersonagemeraAntef, o comandantedeBouto, o fiel instrumentodeSemnut,queguindavacomdesabrida vigilância opreciosoeperigosoprisioneiroque lheestava confiado.Traziaumsimplescolardeouro;largafacaenfiadanocinto,e,sobretamboreteaoalcancedamão,jaziamseuboné,acapa e pequena machadinha com cabo de marfim. Comendo com excelente apetite, observavadisfarçadamente o jovem príncipe banido, que lhe ficava fronteiro, cujo olhar, inteligente e belo,estava sombreado como que por uma nuvem de tempestade. Profunda rugamarcava-lhe o entresupercílios, e surda irritação se lhe podia divisar nos olhos. Visivelmente preocupado, cotovelosapoiadosnamesa,nãoseserviadosalimentospostosàsuafrente,limitando-seabebercontinuadasporçõesdevinho.Súbito,empurrouospratosquelheestavampróximos,eergueu-se.

—Mandaprepararasmontarias,Antef;querorespirarumpoucodearedistrair-mecomumlongopasseio—disseemtombreve.

Antef,quelheimitaraogestoimediatamente,inclinou-se,respeitoso.

—Príncipe,lamentonãopoderobedecer-te,porqueordemsuperior,oriundadeTebas,proíbe-mesairdosmurosdeBouto.Tudoquantotepossaagradaroudivertir,dentrodoslimitesdacidade,porei sem demora à tua disposição; para além disso, porém, nada posso. Lamento despertar tuacólera,mas,diantedeumaordemreal,compreenderásqueumsubalternodaminhacondiçãotemdeobedecer,sobpenadearriscardoidamenteaprópriacabeça.

Sombreou-seosemblantedeTutmés;fuzilaramseusolhos.Dominandocomesforçoaraivaeotremordoslábios,disse,desdenhoso:

—QueRamepreservearriscar tuacabeça, tãopreciosaparaaminhadivina irmãeparaomiserável escravo que ela tirou do lodo para dele fazer seu conselheiro. Preparemminha liteira,paraeuiraotemploordenouaumescravo.

Depois,voltandocostasaAntef,penetrounumaposentocontíguo.Sufocava,e,ficandoasós,entregou-seaumdesvairadoacessodefúria,sapateandoerangendoosdentes.

-—Sortemaldita—disse a simesmo, atirando-se numa cadeira—, saber que o trono estávago,eapodreceraqui,prisioneiro,enquantoumasimples“mulher”empunhaocetro!Mas,espera!(ecrispouospunhosfechados)Quandosubiraopoder,eutearrasareiHatasu,atieaosteusfiéisservidores,comosefazcomasvíboras!

Aentradadevelhoescravoetíope,quelhetraziaumacapaeogorro,fezqueserefizessedeatitude.Silencioso,vestiu-seedesceuaopátio,ondeoaguardavaAntef,emuniformedeserviço,euma liteira aberta, sustentada aos ombros de seis vigorosos homens. Quando o príncipe tomoulugar, o oficial sentou-se a seu lado, e o pequeno cortejo andou, rodeado e seguido de umdestacamentodesoldados,precedendo-obatedoresqueabriamcaminhoàliteira,vistoqueaturbaaumentava a todo instante. A população da pequena cidade abandonava o trabalho para olharcuriosamenteobanidopríncipe.Sombrioemudo,Tutmésnãodescerrouabocaemtodootrajeto,eapenas o nervoso tremor dos lábios comprovava que o íntimo vendaval continuava desencadeado

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nele. Quando chegaram ao templo, o Sumo Sacerdote, avisado por um dos batedores, recebeu,acompanhadodealgunsprofetas,oilustrevisitante,àentrada.

—Sedebem-vindonacasadodeus—disse,cumprimentando-o.

—Eutesaúdo,venerávelpadre—respondeuTutmés,saltandodaliteira.Querosacrificaraodeus, e espero (voltou-se para Antef, medindo-o com olhar de irônico desprezo) que a ordemsuprema,vindadeTebas,nãoordenelevaresaosteussoberanosasprecesqueeu,aqui,endereceaosImortais.

LigeiroruborcoloriuasfacesdocomandantedeBouto.

—Tenhoapenasumsoberano—respondeu—,oFaraóRa-Ma-Ka,queosdeusesconservemecubramdeglória!E seaordemrecebidaa teu respeitonãoprescrevesejamditasaoalcancedemeusouvidos,exigequeatuapessoa,mesmonotemplo,fiquesobminhavista.

E, com imperturbável calma, seguiu Tutmés e os padres até uma sala que precedia osantuário,ondelheeravedadopenetrar,eaíseencostouaumacoluna.Estavaseguríssimodequeoprisioneironãofugiria,porissoquesoldadoshaviamcercadootemploeimpedidotodasassaídas.

Quando ficou, enfim, fora das vistas do seu guardião, Tutmés sentou-se na mais próximacadeira,ecomprimiuopeitocomambasasmãos.Airainsensataquelhefervianocoraçãotirava-lhe toda presença de espírito e domínio sobre simesmo. Por ummomento, o Sumo Sacerdote ocontemplou, com interesse e compaixão. Era um homem já idoso, de aspecto ascético, olharpenetranteeespiritual.Passandoamãosobreaespáduadojovem,disse,emvozbaixaepersuasiva:

—Coragem,meu filho;paciência,perseverançae impériosobre timesmo, são trêsgrandesvirtudes indispensáveis aos reis. Ocupa o teu infortúnio atual em adquiri-las. De resto, não tensmotivoparadesesperar;amigosdevotadosvelamporteusinteressesetrabalhamativamenteparaareconquistadolugarquetecabe;osastrostepredizemumgloriosoreinado...Ésadolescenteainda,plenodesaúdeedeenergias;olhaoteuporvirconfiante,eseguecomsubmissãoocaminhoqueteestátraçadopelosImortais!

Tutméssuspiroufundamente.

—Cadaumadetuaspalavras,venerávelpadre,respirasabedoriaeverdade;mas,apaciênciaeasubmissãosãotãodifíceisdeadquirir!...

—Quantomaiscustoso,maislouvávelemeritóriocontestouopadrecomumsorriso.Eagoraerguencabeça,meufilho,porquevaisouvirnotíciasdoTebas.OmensageiroquenosanunciouamortedoFaraóteu irmão,equehaviaretornadocomatuamensagemparaRanseneb,regressouestanoite.Vieste,pois,muitoapropósitohoje:queroapresentar-teessehomemqueumaestranhafatalidadeligouaonossopartidoequeteseráfielservidor,porquedetestaarainhaeéseuinimigopessoal.

—Porquemotivo?—perguntouTutmés,cominteresse.

— Dar-te-ei pormenores em outra ocasião. Em resumo: é um homem de grande nobreza,chamadoHartatef, que ocupava elevado posto. Impelido por abominável trama a inaudito crime,deveriamorrer,porém,"nós”oocultamosesalvamos.Eporquearainhalhehajatomadoanoivaeos haveres, para transferi-los ao rival, ele a odeia mortalmente, e por isso nos serve com umaatividadeeumadestrezaacimadetodoolouvor.Escribadotemplo,circulalivrementeentreTebaseBouto,fazcompraseconduzmensagenssemdespertarsuspeitasdosespiõesreais.

—Chama,eutepeço,essehomem,peloqualtãovivointeressemeinspiraste.

OSumoSacerdoteabriuumaportaencobertanaparede,edissealgumaspalavrasameiavoz.Logoemseguida,foidenovoabertaaporta,eumhomemdealtotalheentrouesedeteve,depoisdesaudar.Traziaasvestesdeescribae,nacabeça,grossaeenormecabeleiraquelheescondiaatesta;sua tezeraquasenegra,qualadeumetíope,eseusolhos,pequenos,acerados,brilhavamcomsombriofulgor.

—Aproxima-te, Ameni— disse o padre em voz baixa— e repete ao príncipe o que viste eouvisteemTebas.

Orecém-vindoinclinou-se,esucintamente,aindaquesemomitirdetalhesimportantes,narroutodososacontecimentossobrevindos,asprovidênciasadotadaspelasoberana,osfuneraisdoFaraó,aconsagraçãodonovomonumentofunerário,eporfimodiscursodeHatasufeitoaopovo,quandoderegressodasoleneprocissãoaotemplo.

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—Vedesó,estaboaHatasu!Quercarregarsozinhasobreosombrosoduplopesodogoverno—disseTutmés,comrisinhomotejador.Tratarei,omaisdepressapossível,de repartir comelaofardomuitopesadoparaasuafrágilconstituição.PorOsíriseRa!ÉverdadeiramenteummilagreparaosdeuseseummistérioparaoshomensqueesseFaraódesaias,quenãoreconhecenomundooutravontadealémdasua,dobreaaltivanobrezadoEgito,sobadireçãodeummiserávelaldeãodalaiadeSemnut,ecurveaoseupoderioapossanteclassedospadres,levando-osaconsagrarummonumentoquedesaprovaramequeconstituiverdadeiroescárnioatodasasleissagradas.

OSumoSacerdoteenrubesceufortemente,suassobrancelhasfranziram.

—Éverdadequearainhagovernaemandacomumaaudáciaeorgulhoextraordinários,epormuitas razões, e no interesse mesmo da tua causa, o clero teve de ceder momentaneamente econsagrar o ímpiomonumento, que é ultraje aos deuses, qual o é qualquer inovação. Os padresdobraram-se,comodizes,porém,semaprovar,nemesqueceroqueérepreensível.Eficasabendo,meufilho,queumtronosóésólidoquandosustentadopelosservidoresdosdeuses,equeoorgulhoeafaltadeconsideraçãoparacomessesrepresentantesdadivindadedestroemumreimaisdoqueumabatalhaperdida.

—Sealgumdiachegarao trono,recordarei tuaspalavras—exclamouTutmés,comoolharbrilhando.Aosdeuseseaosseusservidoresrendereiashonrasaquetêmjus;partilhareicomelesosfrutosdecadavitória,e,quantomaismeengrandeceretornarpoderoso,maisvaliososserãoosmonumentosqueerguereiparaimortalizaraminhaglóriaeomeuagradecimentoaosImortais.

— Eles te ouvem, e darão ao teu reinado glória imperecível. Um deus me inspira e meconfirmaoquepredizemosastros:TutmésIII,Tutmés—oGrande,eclipsarátodososFaraósquereinaram no Egito. Durante muito tempo, até aos confins da velhice, a dupla coroa cingirá tuafronte:conduzirásteussoldadosdevitóriaemvitória,eomundoconquistadoporátesourosateuspéseosreissobtuassandálias.

Exaltaçãoproféticapareciahaverempolgadoo sacerdote.Mãosestendidasparaopríncipe,rostoincendido,oolharextático,pareciamergulharnasprofundezasignotasdoporvir.Comemoçãoe temor supersticioso, Tutmés havia escutado essas palavras pronunciadas em voz vibrante econvencida,ecalmocontentamento,inquebrantávelféemfuturodegrandezaepoderiotransbordouseujovemcoração.Nessemomentosentia-seforte,paciente,tolerante.

—Possamtuaspalavrasconfirmar-se,etudoqueprometisercentuplicado—dissecomolharfaiscante e estendendo ambas as mãos ao sacerdote. Agora, adeus! Não quero permanecerdemasiadotempoaqui;mas,regressocalmoeconsolado.Tu,Ameni,continuaservindo-mecomzeloeprudência;saberei,logoqueconquisteopostoquemeédevido,vingarosultrajesquesofresteerestituir-teamulhertuaamada.

— Velarei e trabalharei por ti, príncipe, igual a um cão fiel, eu o juro pelaminha sede devingança!respondeuoescriba,comumacurvatura.

QuandoTutméssubiuà liteira,Antefassinalou,surpreso,aexpressãodecontentamento,deorgulho e de triunfo, espelhada na fisionomia do exilado. Em vão deu tratos ao intelecto paraadivinharascausasdetalmudança,atémesmoseospadreslhehaviamtransmitidoalgunsdetalhesdos funerais doFaraó, quanto ao triunfo retumbante deHatasu e sua vitória sobre os padres naquestãodotúmulo,noqueteriaelebemprecáriosmotivosparasatisfação.

Reentrandoemcasa,Tutmésreteveoseuguardião,e,sobpretextodepalestrar,divertiu-seemcriticar,demaneiramordaz,arainha,suapredileçãopelosestrangeiros,suasímpiasinovações,enfim, a escolha de seus conselheiros e servidores, os quais em vez de serem, de acordo com ocostume, membros da primeira nobreza do Egito, recrutavam-se entre a gente da mais baixaorigem.

Antef compreendeuperfeitamenteque o príncipeprocurava feri-lo, denegrindo suahumildeorigemeseuparentescocomSemnut.Apesardisso,suportouessesataquessempestanejar,nãosedesviando,poruminstantesequer,darespeitosareservaquejulgavadeveraoilustrebanido.

ConstatandoquesuasperversidadesproduziamtãoescassoefeitonoânimodogovernadordeBouto, e não conseguiam fazê-lo perder a calma, Tutmés calou e dirigiu um olhar perquiridor epensativoaorostopálido,porémimpassível,domoçooficial.

—Emverdade—pensouopríncipe—esterapazémaishábildoqueeujulgava;contraria-meomenospossível;nuncamefazsentirqueosenhoraquiéele;enãorespondeaosmeusataques.Seráque,norecessodaalma,crêconsigamospadrescolocar-menotrono,etemequeeu,atingindo

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o poder, lhe faça pagar caro as insolências passadas? De fato, se assim acontecesse, o pobrecomandantedeBoutoficariaemdifícilsituaçãoanteseuFaraó.

Denaturalcáusticoechasqueador,Tutmésachouextremamentecômicaestaúltimahipótese,de tal modo, que desatou em gargalhadas, que aumentaram ao ver o ar embasbacado do seucompanheiro.Derepente,ergueu-seeassestouvigorosaeamigávelpalmadanascostasdeAntef.

—Tués,defato,umrapaznotável—disse,aindarindo—esabessair,comadmiraçãominha,dadifícilmissãoqueteincumbe.Verdade!Quiseratertuasantacalma,porquecompreendoquetuaposiçãoentremimeminhadivinairmãépoucoinvejável.

— Se compreendes isso, príncipe, por que nãomemostras a generosidade que deve ser oapanágioderolparaumsoldadofielàsuasenha?—respondeuAntef,comlevetomdecensura.

—Tensrazão,eerrei fazendo-tevítimadomeumauhumor—contestouopríncipecomumtrejeito.Mas, sedesejasses compreenderqueeuestourode tédio; se aomenosmeaproximassesalgumajovemparadistrair-me,avidaseriamaissuportável.Nãoamasnenhuma,tu?

—Amoesouamado,príncipe—disseAntef,sorrindo.TenhoemMênfisumanoivaqueesperodesposarnoanovindouro.

—Ébelaedeboafamíliaerica?

—Chama-seNeftis,temcatorzedeidade,eé,parameugosto,deadmirávelformosura.ViveemMênfis,nacasadeumparentematerno,muitoricoesemfilhos;masasuabelezavalemaisdoqueariqueza—acrescentou,comorgulho.

—Tudoissoémuitobelo,Antef,ealmejosejasfelizdentroembrevenosbraçosdatuaNeftis;mas,“eu”nãotenhoproveitoalgum,suspirou.Euterogo:consegue-meumajovembela;éomeioúnicodemeconservarobomhumor.

Antefriu.

—Tenhoumaidéia,quetratareidepôremexecução...Daráresultado?Nãosei!

— Silêncio, silêncio, Antef. Uma pequena aventura de amor, conhecida de nós dois, não asaberáotronodoFaraóHatasu,queosdeusesconservemecubramdeglória!—exclamouTutmés,arir.Eagoravamosaojardim; jogaremosabola—acrescentou,encaminhando-separaaescada,alegreedescuidadoqualumescolaremférias!

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SegundaParte

OBruxodeMênfis

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I

AROSAVERMELHAA alma é uma luz velada. Quando a descuidam, esmaece e se extingue; mas,alimentadacomosantoóleodoamor,iluminaquallâmpadaimortal.

HERMES

Era noite. A calma e o silêncio invadiam pouco a pouco as ruas de Mênfis; o ruído e omovimento que desde o alvorecer enchiam a cidade imensa, qual o zumbido de uma colméia,extinguia-se;asegundaCapitaldoEgitomergulhavanosonoparahaurirasforçasindispensáveisàfebrilatividadequedeveriarenascercomosprimeirosraiosdeRa,saindovitoriosodaescuridão.ALuailuminavacomsuaveluzasedificaçõesoriginaisdacidadeantiga,osenormestemplos,ascasasmulticoloridas, derramando-se na superfície polida do Nilo e sobre as barcas retardadas que osulcavam.

Em grande e belo prédio, situado numa das mais animadas ruas, tudo parecia silencioso;senhoreseservosrepousavamfatigados,eapenasempequenadependênciadosegundopavimentoaindacintilavadébilluz.Esseaposento,doqualajanelaabriaparaumpátioplantadodepalmeirase sicômoros, eramobiliado com simplicidade, segundopermitia julgar a luz de pequena lâmpadaalimentadaaóleo,postanamesapróximadoleito.Sobreumtamboretejuntodajanela,sentava-seumajovem,deesplêndidabeleza,imersaemprofundodevaneio.

OprédioondeorapenetramospertenciaaHor,homemricoeestimado,possuidordevastosvinhedos,cujoprodutocomerciava.AjovemsonhadoraerasuasobrinhaNeftis,airmãdeNoferura,maismoçadoqueesta,eviviasobotetodotio,desdeamortedosgenitores.AmãedeNeftisforairmã caçula de Hor, nascida de uma prisioneira de guerra, que o pai de Noferura desposara emsegundas núpcias. Por isso, decerto, Neftis não se parecia com a irmã paterna, tipo da belezaegípcia,tezbistreeolhosnegros.MaisbaixadoqueNoferura,maisdelicadaeelegantedeformas,Neftiseradebrancura fosca, semelhanteàcordomarfim;espessoscabelos,de ruivodourado,aenvolviam no momento, qual um chale ondulado, dando ao seu rosto regular e fino umaoriginalidade toda particular; olhos grandes, verde-escuros, fosforescentes qual os dois felinos;apáticaeindiferentenoscursoshabituaisdaexistência,seuolharsetornavacautelosoeferoz,qualodotigre,quandoaspaixõesouacóleradespertavamnela.

Aquimera,quenesseinstantelheafastavaosono,deviaserpenosa,porquefebrilruborlhetomaraasfaceseumarespiraçãocustosaerefreadamoviaseupeitoebraços,estesenlaçadosemtornodos joelhos, a tremeremnervosamente.De repente, levantou-se, atiroupara trás os cachosmacioselustrososdaamplacabeleira,e,erguendoasmãos,murmurouangustiada:

—Que fazer?Deuses imortais,que fazer?Nãopossomais suportareste sofrimentoquemedevora.Oh!Seumavezaomenospudessevê-lo,seriafelizerecobrariaosossego—disse,cobrindoorostocomasmãos,eprorrompendoemconvulsivopranto.Noiteedia,suaimagemmepersegue,seuolharmeatraiequeima,qualchamadevorante;emmeusono,creiodivisá-lo,curvando-sesobremim,e,seplenadealegriaqueroprendê-lo,desperto,e,compreendendotersonhado,meucoraçãopareceestalar!

Apoiou a fronte na parede. Depois, de súbito, correu para pequena mesa, que lhe serviadecertoparaarranjosda“toilette”,poiseraprovidadeespelhometálico,pente,potinhosdepomadaealgunsfrascosdeônixealabastro.

Empurrandoderoldãoessesobjetostodos,pegouumacaixinha,abriu-a,edesobdiferentesjóiasretirouumcolardeplacasquadradaseesmaltadasdevermelhoeazul,presasporanéisumasàs outras. A central, ornada de pingentes, foi aberta com a pressão dos dedos e mostrou umacavidadenaqualhaviafanadarosa,queexalavaaindaumodorfortíssimo.Neftisacocorou-sepertodoleito,aoqualapoiouascostas,e,olharvoltadoparaoobjeto,aspirouavidamenteocheirosuaveeentorpecentequeseevolavadamurchaflor,quebemdepressasaturouoambientedoaposento.Atermodebreveinstante,asmãostombaramsobreosjoelhoseafronteabateuparaobeiraidoleito.Parecia aturdida, mas, as faces queimavam e algo de estranho lhe sacudia o corpo. Esse torporduroupouco,eavítima,recuperando-sedepronto,fechouomedalhão,quefoirepostonacaixinha,ecaminhouagitadamentenoaposento.

— Nunca poderei casar com Antef, esse “ninguém”, perdido entre a multidão das

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mediocridadesiguaisaele—sussurrouasimesmaajovem.Horemseb!Horemseb!BeloqualOsíris,misterioso e esplêndidoqual umdeus, é a ti somenteque amo, a ti quedesejo rever, a ti desejopertencer!Mas,ondeencontrar-te,seésvisívelapenasànoite?Nãosei;mas,“terádeser”,euoquero.

Parou,apertandocomasmãosafrontelatejante,olhosfosforescentesnasombra,qualosdeumapantera.Enroscadasobresiprópria, lembrava,nessaposição,pelagraçaondulantedosseusmembrosefulvosreflexosdacabeleira,aquelaprincesadodeserto,quando,retesandoosmúsculosde aço, prepara o salto à presa. Subitamente, estremeceu e abafado grito de júbilo saiu-lhe doslábios:

—Achei!Enfim,enfim,eu teencontrarei,Horemseb!Loucaque fui,pornãohaverpensadoistodesdelogo.

Radiosaeumtantoacalmada,amoçadeitou-se,edormiuumpesadoeinquietosono.Nodiaseguinte,apenasnascidooSol,Neftisdespertou,vestiu-seaçodadamenteedesceuàsalaondesuatia, Setat, esposa de Hor, estava atarefada na distribuição das tarefas cotidianas às mulheresescravas.

—Minhaboatia—dissea jovemabraçando-a—,casonãovejasnisto inconveniente,queriapassaralgumashorasemcasadavelhaAsnath.Dehámuitoelamepedeensinarasuasempregadasamaneiradetecerquetuadotas,etumesmatensváriosobjetosparalheenviar.

—Éverdade;queromandar-lheumapeçadeestofo,vinhoedoispatos,porqueaminhapobreevelhaprimanãoganhamuitocomotráficodosanimaisqueservemaossacrifíciosdagentepobre—respondeuabondosaSetat.Fizeste-merecordar,apropósito,quedepoisdeamanhãéaniversáriodamortedomarido,eelaseráfelizemsacrificarumpatoverdadeiro.Aprovoteupasseio;apenasnãoseiseopoderásfazerhoje,poisHorestáengarrafandovinho,etalveznãopossadispensarumescravoparateacompanharecarregarascoisas.

—Oh!tia,nãoémisterdistrairumdoshomenspara isso.LevareiAnúbis.Nãote inquietes,casovolteumpoucotarde,porquevoupassarodiacomAsnath,mas,àtardinha,visitareiNekebet,eelasempremeprendepormuitotempo.

—Bem,bem;vai,ediverte-tecomAnúbis;nadatensatemer,disseatiaasorrir.

Lépidaecontente,Neftiscorreuaolocaldacriadagem,e,ali,empequenohangar,alcançouumjovemescravo,ocupadoemmoergrãoempequenomoinhomovidomanualmente.Otrabalhoeralento e não irrepreensível, porque o executante era cego e só pelo tato orientava o seu labor.ReconhecendoopisardeNeftis,Anúbislevantou-secomafisionomiaradiante.Eraumjovemnúbio,comaproximadosquatrolustrosdeidade,flexívelebemproporcionado,cujosolhosnegrostraiamacegueiraapenaspelasuaabsolutafaltadeexpressão.Cegodenascença,foraeducadojuntamentecomNeftiseNoferura,e,apósamortedosseuspais,Hor,cedendoaosrogosdasobrinha,haviaacolhido no lar o jovem escravo, pouco útil, aliás, sendo aproveitado mais pela protetora, empequenastarefas, inclusivenacasa,queocegopercorriacomasegurançadeumvidente.Anúbisadoravaa suaantiga companheiradebrinquedos, consagrando-lheumdevotamentode cão fiel eobedecendo-lhetambémcegamente.Ànotíciadequeiadeixarotediosotrabalho,paraacompanhá-laàmetrópole,encheudecontentamentoojovemrapaz.

Duas horas mais tarde, ambos deixaram a casa. Anúbis carregando pequeno saco de pano,uma ânfora cheia de vinho e dois patos às costas, aos quais haviam sido ligados os bicos paraimpedirograsnar.Neftis,queiaàfrente,carregavaumcestinhocomfrutossecoseumfrascodeóleo cheiroso, e guiava Anúbis com o auxílio de um cordel amarrado ao braço. Bem depressaatingiramoNilo,contrataramumbarco,paraodiatodo,e,tendopagooajustadopreço,instalaram-secomasprovisões.NeftistomoucontadolemeeAnúbisdosremos,fazendoavançarcomrapidezaembarcação.

—Otempoestáconvidandoafazerumpasseioantesdeatracar—disseajovem.

E logodepois o barcodeslizava à vistadomurodopaláciodopríncipeHoremseb.Coraçãoacelerado, faces afogueadas, Neftis fixou a encantada habitação onde residia, frio, invisível eindiferente a tudo, o bruxo de Mênfis, o herói de mil histórias fantásticas, de milhar de lendas.Palácioejardimjaziamemsilêncio;omaisleveruídonãoseelevavapordetrásdamaciçamuralha;tudo parecia adormecido, mesmo as esfinges de pedra, da escada, em cujos derradeiros degrausbatiamasmaretasdoNilo.

— Felizes aqueles que te podem ver, servir, ainda que sendo o último dos escravos —murmurouNeftis,comprofundosuspiro.

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O dia pareceu interminável à jovem. A alegria e as mil afabilidades da pobre Asnath, ou agarrulicedaamiga,nadapôdedistraí-la;seupensamentoestavafixonumpontoúnico;aesperançadereverHoremseb. JáeranoitequandoreembarcouemcompanhiadeAnúbis,edenovoo lemeguiouobarcoparaorumodopalácio.Chegadoàvistadaescadariadasesfinges,mandoucessarasremadas.

—Temosdeparar.Longa filadeembarcaçõescarregadas interceptamapassagemdorio,epoderíamossoçobrarouenredar-nos—disseela.

O ceguinho meneou a cabeça em sinal de assentimento. Suspendeu os remos, e aguardoutranquilamenteaordemderecomeçaraviagem.Febrilmenteagitada,Neftisfixouaescadaria.SeHoremsebfizessenessanoiteseupasseio,deviasairouentrarporali,ou,napiordasconjeturas,não distante desse posto de observação escolhido pela aturdida jovem. O acaso favoreceu seusprojetos,e,dezminutosdecorridos,doabrigodepedrasaiuabarcamaravilhosa,ornamentadaeiluminadaconformecostumavaser,eatracouaosdegraus.

Quasenomesmominuto,aportaenquadradanomuroabriu,numerososhomens,empunhandoarchotes, surgiram e enfileiraram-se na escadaria, e, depois, um personagem, sozinho, desceu einstalou-sesobodossel.Adistânciaemqueseachava,amoçanãopodiadistinguirasfeiçõesdessehomem; mas, à luz dos archotes, percebeu que era alto, delgado, vestido de branco, e que jóiasfalseavamemseupescoço,braçosetesta.Palpitante,malrespirando,curvou-separadiante,olharobstinadamentecravadonadeslumbranteembarcaçãoque,dir-se-ia,voavanaságuas.Jádistinguia,à luzvermelhados faróis, o rosto impassíveldopríncipe,quandoo incendidoolhardestepousounela.Novamenteestranhosorrisoentreabriuos lábiosdeHoremseb,e,erguendoamão,pareceufazerlevesinalaumhomem,depépoucoatrás.Imediatamente,obarcomudouadireção,paraodoceguinho.Semdemora,tocaram-seasbordas,eodeHoremsebparou.

O coração de Neftis cessou de palpitar. Horemseb erguera o busto e se inclinara para ela,estendendo-lheamão,enquanto lhe fundianosolhosumolharprofundoe incendiário.Comoquefascinada,ajovempousouasuanaquelamãofina,porémgélida,queareteve,puxando-a.Incapazde raciocinar, de emitir um grito, hipnotizada pelo flâmeo olhar do príncipe e pelo aromaentorpecentequeseevolavadele,Neftisabandonou-seàatração.Comoemsonho,sentiuquedoisbraçosasuspendiamecolocavamaospésdofeiticeirosenhor,sobreosjoelhosdoqualsuacabeçadescaiupesadamente.

—Neftis!Neftis!Vamosesbarraralgumaembarcação;estououvindoruídoderemos!gritouAnúbis,inquieto.

Mas,jáabarcamisteriosaretomavaseucaminhoedesaparecia,comarapidezdeflecha,noabrigodepedra,cujosamplosbatentesfecharam.Nãorecebendoresposta,Anúbischamousegundavez;depoistateouparatocarnasvestesdasenhora,quesupunhaadormecida.Constatandoquenãohaviamaisninguémnobarco,deudesesperadogrito,e,pegandoosremos,impeliuaembarcaçãoàstontas, gritando sempre, obcecado pela necessidade de informar os senhores da inexplicáveldesgraça. Os clamores do cego e os ziguezagues estrambóticos do barco atraíram a atenção dospescadores,algunsdosquaisabordaram-no.

Escutando-lhe a narrativa incoerente, da qual apenas entenderam o nome do seu senhor,levaram-noàcasadeHor,aquemodesaparecimentodasobrinhamergulhounumcompreensíveldesespero. Em vão, ele e Setat interrogaram Anúbis: o pobre cego pôde apenas repetir que lhepareceraaperceberapassagemdeoutraembarcaçãojuntodasua,eque,aoprocurarNeftis,estahaviadesaparecido.Perderam-seemconjeturas:erainadmissívelqueajovemdeixassedegritarouresistirseaudaciosoraptofossetentado;igualmente,sehouvessecaídoaorio,obarcoaludidoteriatentadoumsocorroperceptívelaAnúbis.Mas,coisaalguma,nenhumindícioqueservissedepistaàverdade.Todasaspesquisaseprovidências tentadasporHoresuaesposa foram infrutíferas,eadesapariçãodeNeftisficousobimpenetrávelvéu.

Imensamenteaflitos,HoreSetatenviarammensagemaAntefeaNoferura,comunicando-lhesatristenova,etambémnointuitodepediràsobrinhaviessepassaralgumtempoemMênfis,paralhes dar consolo. Noferura não teve dificuldade em obter de Roma a permissão para visitar osparentes e passar um mês com eles. O moço sacerdote sentia-se feliz em desembaraçar-se damulher,dosciúmesecenas,eatédapresença,maisodiosacadadia.

Aperdadairmãfoiumrudegolpeparaela,poisaamavasinceramente;perdiacomelaasuamelhor amiga, a confidente, a quem contava, sem restrições, todos os desenganos e desgostos.Apesar dos instintos frívolos e Inconsequentes, Noferura sentia-se profundamente isolada edesditosa.AadmirávelbelezadeRomainspirava-lhetenazeviolentapaixão,esporeadamaisaindacomafriezadosacerdote.Suasprimeirasinfidelidadestinhamtidoporalvodespertarociúmedo

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marido,e,obtendoresultadointeiramentecontrárioataldesígnio,sentia-setoleradaacusto;vendooesposocadavezmaisindiferenteedesgostoso,fugindodelaedacasa,procuroudistrair-secomaventurasamorosaseaatordoarseumal-aventuradoamoremfestasedistraçõesdetodogênero.Roant,quesempredesaprovaraomatrimôniodoirmão,nadaeraparaNoferura,queainvejava,nariquezaenahierarquia,e,maisquetudo,noamordeChnumhotep.

Triste,comocoraçãocheiodesaudadedairmã,assimtãomisteriosamentemorta,NoferuraretornouaTebas,ao seudeserto lar.Conformecostume,Romaestavaausente.Emborahouvesseanunciadoseuregresso,elenãoaesperara,efoicomsurdarevoltaqueajovemmulherpenetrouemseuaposentoeassistiuàdesembalagemdoquetrouxera.Entreascoisas,encontrouacaixinhacomasjóiasdeNeftisequeSetatlhehaviadoado,àvésperadapartida,pararecordaçãodamorta.Depossedacaixinha,passouaoquartodedormireexaminouoconteúdo.Olhoslacrimosos,retirouanéis, amuletos, fivelas e outros objetos miúdos, com os quais Neftis se enfeitava; em seguidavieramalgunsbraceletes,um fiodepérolase,afinal,umcolar formadodeplacasesmaltadas,doqualseevolavaumfortemassuaveperfume.

—Ei-lo!—exclamouela,comsurpresa.Éestecolarqueexalao incomparávelodorquemeferiuoolfatodesdequandoabriacaixinha.DeondeNeftisteriaobtidoesteextraordinárioperfume?Lembraodarosaedeoutraflorquenãopossoprecisar...

Echeirouavidamenteotentadoraroma...

— Guardarei tudo isto para restituir à minha irmã, se algum dia reaparecer, o que possoesperar,devezquenãofoiencontradooseucorpo.Mas,estecolarvouusá-lo,emrecordaçãodela,enãousareioutro;lembro-medequepertenceuàminhaboamadrasta,eoperfumequeirradiaétãoagradável!...

E acolchetou o colar no pescoço, repondo na caixinha todas as outras jóias, que fechou eguardounummóvel.Emseguida,foiparaoterraçoeestirou-senumleitoderepouso,porsentir-sefatigadaepresadesonolência.Porsuaordem,umapretavelhapostouaoalcancedesuamãoumabebidarefrigerante,retirando-se.Noferurafechouosolhos;qualquercoisadeestranhosepassavacom ela; um calor escaldante parecia percorrer-lhe as veias, despertando-lhe pensamentosamorosos...Mas,nãoeraemRomaqueelessefirmavam.AoriginalnarrativadeTuaáturbilhonavaemseu cérebro, eparecia-lhedivisar amaravilhosabarcado feiticeirodeMênfisdeslizar ao seuencontro, e um homem, cujo semblante era incerto, mas cujo olhar a queimava e atraíasimultaneamente,curvava-separaela.Umsentimentodeamorselvagemeimpetuosoimpelia-apuniessedesconhecido;elaestendia-lheosbraços,paratrazê-loasi,mas,permanecia inatingível...E,exausta,anelante,apobremulherexperimentavadoragudanocoração,suspendendoarespiração,edepoispareciadespenhar-senumsorvedouroemchamas.

Noferura repousava assim por mais de uma hora, quando Roma regressou. Tendo sidoinformadopelosserviçaisdequeamulhervoltaradeMênfis,encaminhou-seaoterraço.Aoverquedormia, deteve-se próximo, e, apoiando-se a uma coluna, contemplou com ressentimento essaconsorte que só lhe inspirava desprezo e repugnância, e que, qual inamovível obstáculo, lheobstruía. o caminho à felicidade, separando-o de Neith, a quem adorava. Entretanto, o mal-estarvisíveldeNoferuraterminoupor lheatrairaatenção:orostopurpureado,arespiraçãoopressaecomoquecominterrupções,ossobressaltosnervososquelhesacudiamocorpo,fizeram-nojulgarestivesse ela enferma. E, entendido em medicina, qual o eram todos os padres, aproximou-se,curvando-sesobreamulher.Umodorsuaveeentorpecente lheperpassoupelo rosto,mas,a issonãoprestouatenção,preocupadoapenascomoestadodesaúdedaesposa.OlhavaaindaNoferura,quandoexperimentouligeiroatordoamento,eumfluxodesanguelhesubiuàcabeça,fazendoquelhepulsasseviolentamenteocoração.

—Quantoébela!—pensou—equantosoueuloucoemamenosprezar.

Quase inconsciente, curvou-se mais ainda e colou os lábios à entreaberta boca da mulheradormecida. Esta, reabriu os olhos, e, com um débil grito, abraçou o marido. Dessa vez, não arepeliu, conforme fazia sempre, e, comamenteaturdida, suportou todasas carícias apaixonadasqueNoferura lheprodigalizou.E,desúbito,abraçou-aporsuavez,retribuiuosbeijos,proferindopalavrasdeamor.Tudoestavaolvidado;aimagemdeNeithesmaecera,invencívelatraçãoimpelia-opara essa esposa que ele havia abominado; torrentes de lavas ígneas dir-se-ia correndo em suasveias,e,semoavaliar,aspiravaávidooperfumedeliciosoeenfeitiçantequeseevolavadamulher,equeoimergianumbem-estardesconhecido.

Desdeessedia,umestadoestranho,incompreensível,seapossoudocasal.Selvagempaixão,impetuosa, insaciável, devorava Roma, e tais sentimentos, em antítese à natureza calma, casta eharmoniosa do jovem sacerdote, mostravam reagir sobre a saúde. Era presa de atordoamentos,

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doresagudasnopeitoeumainquietudequenãolhepermitiaummomentodetranquilidade,mesmoduranteseusserviçosnotemplo.AimagemdeNoferuraperseguia-oportodaparte,ecomoaromaindefinívelquea identificava;apenasemseusbraços,quandoaabraçava, embriagando-secomoodorqueaenvolvia,encontravarelativacalma,eumnovotransportedeamorfaziaesquecertudo,distanciandomomentaneamenteaimpaciênciaeaangústiaqueodevoravamlongedela.

Noferuranãocompreendiatãoinesperadareviravoltanasatitudesdomarido;mas,apesardasatisfação que experimentava, por vê-lo enfim partilhar de sua paixão, não fruía essa felicidadecompleta,sonhada...Umdesencantamento,umvácuo,sentimentoscontraditórios,incompreensíveispara ela, perseguiam-na até quando nos braços do esposo. E quando, ausente ele, se estendiafatigadanoleitoderepouso,caprichosossonhosatormentavam-na,afiguraimprecisadeumhomemincógnitodobrava-separaelaeosseusolhosbrilhantes, lembrandoduas flamas,diminuíam-lhearespiração...Edespertavaquebrantada,palpitantededesejosquenãosabiadenominar.

Sob a impressão desses desencontrados sentimentos e império da mútua paixão, ambos sehaviam tornado sedentários, e tal retraimento excessivo causou geral reparo. Roant nãocompreendiaasituação;aansiedadeeociúmedeNeith,pornãomaisveroseuamado,excediamtodososlimites.

—Dizemquefoitomadodeloucoamorpelamulher,eque,paranãoadeixar,seausentoudetodaparte.Acreditasisso,Roant?—perguntouàamiga,comangústianavozelágrimasnosolhos.

Roantmeneouacabeça,meioariremeioinquieta.

— Seria autêntico milagre se, depois de meio decênio de matrimônio, ele se prendesse aoamordessaparvadesonesta.Acalma-te,porém.Amanhã,cedo, ireià suacasae tirareia limpoomisteriosoassunto,edetudoserásinformada.

Fielàpromessa,aesposadeChnumhotepdirigiu-seàresidênciadoirmão,eoencontrounojardim em companhia de Noferura, e, pelo olhar, pelo modo de enlaçar o busto da mulher,caminhando lado a lado, não lhe restou dúvida quanto aos sentimentos de Roma. A presença deRoant mostrou haver causado a ambos medíocre contentamento, e a visitante constatou, cominquietude, que o irmão patenteava mau aspecto, um olhar febril e incerto, que ela jamais lheobservara,equesuasmãospareciamqueimardetãoquentes.

Percebendoquelheevitavaoolharesóevasivamenterespondiaàsperguntas,Roantlevou-oparafalaràparte.

—Quesepassacontigo,Roma?Porquenãomeprocurasmais?E,principalmente,porquedeixastede iràcasadeNeith?Apobrecriançadesespera-secoma tuaausência.Podes tuassimamarefazersofrer?

Oolhardopadreseguiaavidamenteosmovimentosdamulher,quecontinuavaandandoparaofimdaaléia;visívelimpaciênciaodominava.

— Para que me falas de Neith! — esbravejou irritado. Não a posso visitar, porque amounicamenteNoferura.Sóagoracompreendooqueéoverdadeiroamor;fruojuntodelaalgoquenãote posso descrever: delícias, venturas jamais conhecidas, ao passo que Neith, por bela que seja,deixa-meindiferenteefrio!

Roantouviramudadepasmo.Depoisavermelhidãodacólerasubiu-lheaorosto:

—Confessonãocompreendernadade teupalavrório!Perdestea razãoouessaNoferura teenfeitiçou?Seassimnãoé,porquenãoteinspirouelaestagrandepaixãodesdehátantotempo?TuacondutaparaNeithécovardeeindigna,eantesdecuradodetuainsânianãotequerover.Mas,antesdenossepararmos,dar-te-eiumconselho:vaiaotemploefazquetemediquem,porqueestásenfermo,ouvítimade“mau-olhado”.Emsuma: tueNoferuraestais transformados,estranhos; tumagro,desfeito,eosolhosdeamboslembramcarvõesqueimando,aoextremodemefazeremmedo.Queaconteceuaosdois?

— Rogo poupares-me das tuas recriminações; estou perfeitamente bem e não careço sercuradodoamorlegítimoquetenhoporminhaesposa—respondeucomraiva—voltandocostasàirmã.

Roant retirou-se muito preocupada e sem nada compreender quanto ao estado do irmão.Encontrou Neith, que a aguardava ansiosa e que a crivou de perguntas. Roant teve ímpetos dedissimularouatenuararealidadedasituação;aenérgicainsistênciadajovemamiga,porém,bemdepressalhearrancouaverdadeintegral,istoé,queindiscutivelmenteviolentapaixãoporNoferura

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avassalavaaalmadeRoma,fazendo-otudoesquecer.

—Issoéinconcebível,eestouseguradequeexisteumocultomistério—rematouRoantcomdesgostoeindignação.Ouavilmulheroenfeitiçou,outerrível“mau-olhado”caiusobreele...Mas,passará,eentãoelecompreenderáoerro,evoltarámaisamorosodoquenunca.

—Oh!seessetempojamaislhechegar,esperoqueminhaloucuratenhapassado,semperigode retrocesso — respondeu Neith, que tudo escutara, pálida, olhos incendidos. Eu te agradeçohaveresdito a verdade,Roant.SaberqueumaNoferurame substituiuno coraçãodohomememcujo amor cegamente acreditei é amargo, porém salutar medicação (e riu com amargor). Amar!Pudefazê-loapenasumaveznaminhavida;mas,tornadoindignoesseamor,euoarrancodomeucoração qual se fosse venenosa serpente. Assim agirei com relação a ele, e se prezas a minhaamizade não pronuncies aos meus ouvidos o nome do traidor; quero esquecer aquele que merenegouporumacriaturamiserável.

Calou, sufocada pela emoção, e lágrimas desceram pelas faces afogueadas. Sinceramenteafligida, Roant abraçou-a, e procurou fazê-la acalmar-se, insistindo em atribuir a sortilégio ainexplicávelinfidelidadedoirmão;mas,atingidamortalmentenoseuorgulhoeamor,Neithrecusouadmitirqualquerescusaem favordohomemqueousara traí-laeesquecê-la.Devoradadeciúme,dominando a custo sentimentos tumultuosos, despediu-se da amiga, e, durante muitos dias,encerrou-se no palácio, ruminando projetos de vingança. Com satisfação cruel, felicitou-se porjamaishaver transpostoas fronteirasdahonestidadenesseamor.Aomenos,naatual conjuntura,nãotinhadeenrubesceràfacedesimesma,enenhumadebilidadepassadaaapequenariaanteoinfiel,sealgumdiaelerecaíssesobseudomínio.

Muitassemanasdecorreramsemtrazeralterações.

RomaeNoferuracontinuavamamando-sefuriosamente;mas,porquetalamoreralegítimo,areconciliação do casal, caso simples, não despertou atenções em ninguém. Somente Roant,conhecedora dos sentimentos recônditos do irmão e da aversão que a esposa lhe inspirava, pelaconduta indigna, afligia-se, inquietava-se cada vez mais, pois o amava fraternalmente de todo ocoração.Semembargodaameaçadenãotornaravê-lo,voltouavisitá-lomaisvezes,econstatava,com apreensão, que terrível mudança se operava nele. Aquele homem, tão doce, tão calmo, tãocheio de harmoniosa gravidade em cada um dos seus movimentos, tornara-se irritável, violento,bruscodegestosepalavras;uminconstantefogoincendiava-lheoolhar,outroratãolímpido,easuaalimentadapaixãonãolhedavaevidentementenemrepouso,nemventura.Maisnotávelaindaeraque Noferura sofrerá idêntica transformação; deixara de ser a mulher frívola, árdega para osprazeres,exuberantedeforçaseinsaciáveldefestas;nostraçosdorosto,pálidoeemagrecido,lia-seomesmoesgotamento;amesmainquietudeadevorava,privando-adetodorepouso,dequalquercontentamento.Desolada,ecadavezmaisconvencidadequealgumaforçamisteriosadominavaemRoma, Roant foi procurá-lo no templo, e ali, com lágrimas nos olhos, suplicou-lhe confessasse arealidade.Comoabsortoemsonho,omoçosacerdotepassouamãopelafronte.

— Tens razão, Roant. Alguma coisa de estranho ocorre comigo: um calor dentro de mimrequeima, todoomeucorpo temopesodechumbo,eumaansiedadesemnomedistancia-medetodos os lugares. Só junto de Noferura estou confortado, encontro um pouco de sossego e deesquecimento.Seiquedanteseratudodiferente,rqueumbemsúbitoamormeassaltou.Ocasiõesháemque,orandoaqui,euprópriomeadmirodisso;mas,quefazer?Souescravodessesentimentoeforçasmefaltamparalutarcontraele.

—Meupobreirmão,ésvítimadeumsortilégio,evidente;apelaparatodasastuasenergias,consulta sábios emágicos, faze-temedicar, e talvez te libertes—exclamouRoant, desatando empranto.

Roma assegurou à irmã seguir o conselho, e cumpriu a promessa, embora sem haurirresultado algum. Em seu Inconformado desgosto, Roant confiou o caso à amizade de Keniamun,omitindo,éclaro,oamordoirmãoporNeith.Maisintrigadodoquesurpreso,ooficialsugeriuumaconsultaaAbracro,tãoperitaemassuntosdesortilégios.Plenadenovasesperanças,Roant,providade rica:; dádivas, foi à casa da feiticeira, obtendo vários pós r uma bebida, que devia seradministrada a Roma, à revelia deste. Nulos foram os resultados, tal como ocorrera com otratamento dos sábios, e Abracro declarou francamente não poder adivinhar qual a bruxariaempregadanocasoemquestão.

Durante esse tempo, Neith continuava vivendo multo retraída. Sua primitiva e desenfreadaindignaçãocedera,aumacalmasombriaecheiadeamargor;avidaparecia-lhedesertaeodiosa;oshomens inspiravam-lhe repulsa e desconfiança.Quedeveriam ser os demais, seRoma, esse idealquehaviaadoradoqualaumdeus,seRoma,àfidelidadedoqualhaviahipotecadoumaexistência,

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tão indignamenteatinhatraídocomamulherqueeleprópriodiziadesprezar?Abandonando-seávulgarpaixão,eleeramaisdesprezíveldoquequalqueroutro,porqueelanãoadmitiaainfluênciade forças sobrenaturais; no seu melindrado orgulho e no seu enceguecido ciúme, não lheconcessionava escusa alguma. Sob a tirania de tais sentimentos, Neith evitava convívio social, emesmonaCorteraramentecomparecia.AcuriosidadecomquesebuscaraesmerilharamisteriosapendênciaentreelaeSargontornara-amaisarrediaainda.ApenasRoanteraacolhidacomprazereamizade;mas,porquejamaisaaltivabocapronunciasseonomedohomemqueaolvidara,eevitassemesmoqualquerassuntoqueo lembrasse,Roant sentia-se contrafeita.Roma fora sempreo temaprincipaldaspalestras,eagora,abordadosapenasacontecimentostriviais,aconversaçãodescaía,sobrevindohabitualmentelongosilênciodeambasaspartes.

CertodiaemqueNeithestavamaistristeemaisisoladadoquedecostume,Keniamunveioprocurá-la, portador de mensagem de Semnut. Recebendo-o benevolamente, fê-lo sentar-se juntodela,oferecendo-lhebebidasrefrigerantes.

—Porqueaparecestãoraramente,Keniamun?Sentestédiocomigo?—indagouasorrir.

Ooficialbalançouacabeça,respondendo:

—Tu,Neith,équetetornaste inteiramenteoutra.Muitopenosoéparamimviraquicomopensamentodequemerepelistetotalmentedoteucoração,dequenãoteinspiromaisconfiança,nempalavrasdeamizade.

— Enganas-te, Keniamun. Hoje, tal qual outrora, tu me inspiras sincera afeição, e nuncapreciseitantodeumamigodevotadoquantoagora.Ouve-me,semcólera,enãomepeçasamor;nãose pode doar uma coisa na existência da qual não se acredita, e eu descreio de amor profundo,eterno quanto a vida. Paguei duramente a experiência de saber que esse sentimento cego tem amesmainconstânciadasbatidasdocoração...Amei,eacrediteicorrespondidoomeuafeto...Erro!Loucura!Fui torpe-mente traída.Não lamentes,pois,essesentimento traiçoeiro,queproporcionafugitivafelicidade,frágil,edaduraçãodoqualtunãopodesestarcerto,nemporumdia...Aceitamaisdepressa...

—Blasfemas,Neith:atraiçãodeumnãotedevefazercondenaroamorveroeprofundoqueinspiras a outros. Estás livre, por isso que o crime de Sargon te desliga dele; por que nãoexperimentasserfelizedarventura?

— Equivocas-te, Keniamun, supondo-me liberta — respondeu, fazendo movimento com acabeça.Indissolúveljuramentoliga-meaSargon.Navésperadasuadeportação,tivecomeleumaentrevista,nodecursodaqualprometi, invocandoHator,emtestemunhodaminhajura,retomá-loparaesposo, sevoltassedoexílio.E regressará.Emmeu recenteencontro,disse-mea rainha terrecebidoboasnotíciasdopríncipe,quesuportacomtantacoragemquantoobediênciaapenalidade,e que tem sido aligeirada de todas as maneiras a sua situação, de modo que, dentro de vinte equatrooutrintaeseismeses,nomáximo,oindultará,restituindo-oàposiçãosocialeàpossedoshaveres.Vês, pois, quenão te possopertencer.Aceitaminha afeiçãode amiga, de irmã, e dá-merecíprocoafeto,únicosemamáculadoegoísmoedointeresse.Calou,olhosorvalhadosdelágrimas,lábiosnervosamentetrêmulos.Tãoabandonadaestou,etãosozinha—dissefinalmente.

Keniamun baixara a cabeça. Depois, erguendo-a, pegou a mão de Neith, e respondeuemocionado:

—Agradeçoatuahonrosaconfiança,eprocurareitornar-medignodela.Desdeestemomento,desligodomeucoração,definitivamente,todosentimentoegoístico,esereiapenasteuamigo,teuirmão, protetor e defensor, se tiveres necessidade de mim. Em troca, promete-me confiarfrancamentetudoquantoteafligir,econcede-meodireitodetevisitar,distrairepartilhardastuaspreocupações.

—Combinado.Aconfiançadeve,porém,sermútua,e,assim,devoconhecertuasinquietações,talqualsaberásasdeminhaparte.

ENeith,jáasorrir,estendeu-lheasduasmãos.

Apartirdessadata,relaçõesverdadeiramenteamistosasefraternaisestabeleceram-seentreambos.Keniamun,pelasua jovialidade,espírito finoecáustico, sabiadistraira jovemsenhora,e,semjamaisdemonstrarcuriosidadeindiscreta,dissiparasmaissombriasnuvensdafrontedeNeith.Esta,aseuturno,aguardavaaalegriadepodersurpreendê-locomalgumadádiva,economizandoaooficialaborrecimentosoriundosdasuaescassezpecuniária.

A essa época, Noferura recebeu mensagem anunciando que sua tia Setat, sempre doente,

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desdeadesapariçãodeNeftis,estavaemestadomelindroso,edesejavavê-la,talvezporúltimavez,antesdemorrer.Nãoerapossívelrecusar,eRoma,quenãoqueriaseparar-sedamulher,resolveuacompanhá-la.AlugarampequenobarcoeencetaramaviagemaMênfis, feitasemdescanso,parachegar mais depressa. Era noite, quando se aproximaram da antiga cidade. Pesadão e exauridocomose tornara,Romasehavia instaladonapequenacabinaedormiaprofundamente.Noferura,porém,mais oprimida do quenunca, trabalhada interiormente por esse calor inextinguível, pelosbeijosepela insâniaapaixonadadomarido, foraparaa frentedobarco,a fimderespirarabrisanoturna,naesperançadeacalmar-se.Cabeçaapoiadanasmãos,contemplavaasvastasconstruçõesdostemplosepaláciosdeMênfis,quejáseapercebiamdistintamenteàclaridadedoluar,quandofaróisvermelhosdeslizandosualuzsobreaságuasdoriolhedespertaramatenção.Levantando-se,para ver melhor, divisou bem depressa grande embarcação, prodigamente ornamentada, sob odossel da qual um homem se reclinava em coxins. O coração começou a bater impetuoso, e anarrativadeTuaálheacudiuàmemória;iaverobruxodeMênfis,poisaesfingedeolhosdefogonaproa não deixava dúvida a esse respeito. As duas embarcações aproximaram-se celeremente, equaselogoficaramparalelas.Noferura,quesecurvaraávida,emitiuumgritorouco,estendendoosbraços. No mancebo, coberto de jóias, reclinado nas almofadas, e cujo olhar, ao mesmo temposombrioerutilante,pareciaperder-senacontemplaçãodovácuo,acabavadeidentificaroincógnitodossonhos,ofantasmafascinador,quesefundiaentresuasmãosquandoelapretendiaprendê-lo,equeRomanãoconseguirasubstituir.

A exclamação vibrante de selvagem paixão, o desconhecido soergueu o busto, firmando-senum cotovelo, e, olhos dilatados, fixou a mulher que, de pé ainda e braços estendidos, pareciadevorá-lo com o olhar flamejante. O que se passou em Noferura nesse instante seria difícildescrever:umanuvemígneacomoquelhesubiuaocérebro,afogandotodaacompreensão,todosospensamentosquenãofosseodealcançaressehomem,aqualquercusto,deaprisioná-lonosbraços,antesquedesaparecessenovamente.Seupeitoestuava,centelhasemturbilhãodançavamanteosolhos obscurecidos, o coração se lhe dilatava. Pretenderia ela, num salto desesperado, atingir abarcadeHoremseb, ou refrigerar-senas águas?A realidadeéquepulou insensatamente, braçossempreestendidosparaele,ecaiudesamparadanorio,nadistânciadeumbraçodaembarcaçãomisteriosa,aqualprosseguiuseurumo,desaparecendonoprogressivoafastamento.

Umdosremadores,aflito,atirou-seaorio,natentativa,bemsucedida,deagarrarocorpodeNoferura,quefoidepositadoàproadobarco.Roma,despertadopeloalarido,acudiu,e,feitolouco,atirou-seàesposa,procurandotorná-laasi.Umajovemacompanhante,quedormitavanofundodobarco,chamadaAcca,acorreutambém,espantada,eenvidouesforçosnomesmosentido.Todososcuidados foram,porém, infrutíferos, e inanimadochegouo corpodeNoferuraà vivendados tios.Enquanto,sobafiscalizaçãodeHor,despiamocadáver,insistindoaindanatentativadeoreanimar,Romacorreuaotemplo,ondeserviradurantealgumtempo,paratrazerumpadre,excelentemédicoedoseuconhecimento.QuandoosdoishomenspenetraramnoaposentoondeNoferuracontinuavaestendidaeinanimada,Romaprecipitou-serápidoparaela;mas,estremecendo,experimentounãooamorapaixonadoqueatéentãooavassalaraesimumasensaçãoderepulsaquelhetocavaaalma.Perturbado,recuou,eseguiucomolharquaseindiferenteosmovimentosdoamigo,que,apóscurtoexame, constatou a morte de Noferura. Roma recebeu a comunicação sem alterar a calmainexplicávelecontrastantecomaagitaçãoprecedente.Declarando-sefatigado,esemsequervoltarosolhosparaadefunta,saiudorecintoefoidormirprofundosono.

Quando despertou, alto estava o dia. Sentia-se rendido de cansaço, alquebrado, como sehouvesse tidogravemoléstia; tranquilo, porém, alma cheia deumbem-estar desconhecidodesdemuitosmesesantes.Deixandooleitoesentando-sejuntodajanelaaberta,pensou:Quesignificavaomolestosonhodoqualpareciaestardespertando?Quesepassaracomeleduranteessepesadelo?Restavam-lhe apenas lembranças confusas, nas quais se encontroavam cenas de amor, sensaçõespenosas, mas, tudo isso se misturava emaranhado em sua reminiscência, quando ensaiavaaprofundarosatoseascausas.Súbita,aimagemdeNeithveioàtonadoseuespírito...Tambémelase apagara do seu viver, durante esse sonho escuro e doloroso. Quanto tempo, quanto tempopassara sem vê-la! Melindrara-a sem dúvida! O coração do moço sacerdote batia com violência:comopuderaeledesprezareesqueceraquelapuraeencantadoracriança,porumafrívolamulher,quetantooatormentaracomseuscaprichos,gostosvulgares,ecujabrutalpaixãolhehaviaoutrorainspiradotantodesgostoeaversão?

Fronte inundadade suor,Roma levantou-se.Decididamenteestiveraenfeitiçado.Mas... qualacasoromperaesseencantamento?AmortedeNoferura?Voltouparajuntodocorpo,que,envoltonum pano, ia ser entregue aos embalsamadores, e mais uma vez se convenceu de que nenhumsentimentooatraíaparaaquelamulher...

—Liberto,enfim!—murmurou,desoprimido.

Noentanto,nãolheveioàmenteterdesaparecidodoseuolfatooaromaterrívelevoladode

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Noferura, que o entorpecia e subjugava, prendendo-o a ela, e, simultaneamente, ter cessado aangústiafebril,ofogointeriorqueodevorava.

Quando,porordemdeHor,foradespidoocorpodeNoferuraparafricções,Acca,aservaqueaacompanhava,desacolchetaraocolarqueamorta jamaistiravadopescoço(porqueconsideravavalioso talismã), pois, desde o primeiro dia de uso, seumarido voltara ao seu amor, e por isso otraziadiaenoite,eoembrulharajuntocomasvestesmolhadas.

À convicçãodequea esposaempregaraum feitiço contraele,Roma revoltava-se, tornandoodiosa a sua memória, e ansioso estava para regressar a Tebas, para explicar-se com a irmã ereconciliar-se com a jovem Neith. Assim, tendo informado Hor de que os deveres do templo oreclamavam imperiosamente, deixou Mênfis alguns dias depois, e, mal desembarcara, correra àresidênciadeRoant,comunicando-lheoacontecimentoqueorestituíaàliberdade.Foiacolhidodebraçosabertospelairmã,quelhedissepalavrasdepiedosopesarpelaperdaqueelesofrerá,mas,àsprimeiraspalavras,foiinterrompida:

—Deixaesseassunto,Roant.Estaperdaéumagraçadosdeuses.Dize-me,emvezdisso,queéfeitodeNeith—acrescentou,comvozinsegura.

Airmãolhouparaelecomoqueembasbacada.

— Meu querido Roma, vejo, com júbilo, que os deuses escutaram as minhas preces e telivraram,aomesmotempoquedessaodiosamulher,dosortilégioqueprojetarasobreti.Retornasàrazãoeaoverdadeirosentimentoqueencheteucoração;mas,meupobreirmão,devodizer-tequeNeith,apesardasuajuventudeedograndeamorporti,demonstroutalrevoltacomatuatraição,conformeelaclassificateuproceder,que,desdehámeses,nãomaispronunciouteunome.Tendofelnaalma,desligou-sedeti,eoquesepassaemseucoraçãoéparamimimpenetrávelmistério.

Romaescutaraairmãbastantepálido.

—Reconheço-me culpado anteNeith, embora involuntariamente—disse, apósmomentodesilêncio.Estavaimpotentecontraaforçaterrívelqueanulavameussentidos;recordo-meacustodoque fiz durante meses, no decorrer desse horroroso sonho, do qual acordei ante o cadáver deNoferura.Meucoração,porém,pertenceusempreaNeith,enãopossocrerquemerepila,quandolheexplicaraverdade.Agoramesmo,vouprocurá-la,e, semeamouverdadeiramentealgumdia,perdoaráumafaltainvoluntária.

Roant tentou dissuadi-lo, fazendo-lhe compreender ser tarde para a explicação, e que valiamaisprevenirajovemdavisita.Oirmãonãoatendeuanada,e,açodada-mente,rumouparaoNilo,ondealugouumbarco,fazendo-seconduziraopalácioassírio.

Violentamente agitado, saltou nos degraus, e ordenou ao barqueiro que o esperasse paravoltar.Esubiuaescada.Naportadecomunicaçãodoterraçocomointeriordavivenda,velavaumavelhaescrava,acocoradasobreaslajes,aqualreconheceuosacerdote.Interrogadasobreseadonadacasaestavasozinhaeemquepartedacasa,respondeu,comumlargosorriso,queNeithestavanoterraçoligadoaojardim,equeKeniamun,queestiveraemvisita,acabavaderetirar-se.

Caminhandorápidoe impaciente,Romaatravessouosaposentosbemseusconhecidos,e sedeteve,comoqueenraizadoaosolo,naentradadoterraço, iluminadopelaclaridadeavermelhadade numerosos archotes e por dois amplos tripés com alcatrão aceso, colocados nos baixos daescadariaconducenteaojardim.Noprimeirodegrau,cabeçarecostadadeencontroàbalaustrada,estavaNeith,que,nasuaimobilidade,lembravaadmirávelestátua.Asgrandesflamasvacilantesdostripés iluminavam-na fantasticamente, projetando rubros reflexos no vestuário branco e fazendocintilarocolareosbraceletesmaciços,eaindaalargafaixadeouroquelheprendiaoscabelosdeumnegroazulado,osquais,emanéisespessosecuidados,lhecobriamasespáduaseosombroseesparziam nas lajes. Durante alguns segundos, Roma contemplou-a, mudo, enlevado: nunca lhepareceratãolindaamulherqueadoravaequeocultaforçasepararadele,quantonessemomentode devaneio, com aquela expressão de sombria amargura. Acionado pelos sentimentos que lhetransbordavamaalma,eestendendoosbraçosparaela,murmurou:

—Neith!

A esse som meigo, mas vibrante e tão seu conhecido, a jovem sobressaltou-se, como queimpelidaporinvisívelmola.Porinstantes,olhosdilatadosfitaram-noemediramoaudacioso,comose pretendessem destruí-lo. Mas, encontrando o olhar puro e acariciador daqueles outros olhosaveludados que a miravam súplices, o fulgor se extinguiu, a cólera cedeu, e, sacudida por umestremecimentonervoso,Neithencostou-sedenovoàbalaustrada.

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—Quemequerestu?—perguntouemtomamargo.Explicaratuaindignatraição?Desculpar-te?Paraqueserviráisso?Nãotenhodireitoalgumaosteussentimentos;soumulhercasada,minhapalavraeminhavidapertencemaSargon;ésigualmentehomemcasado,teuamorélegítimo;voltaparatuaesposa,paraaquelaaquemvotasteumtãosúbitoamor.Saideminhacasa,nãoperturbesorepousoquereconquistei,depoisdehaverreconhecidomeuculposoamor.

Calou, baixando o olhar; faltava-lhe a voz e sentia-se fraquear sob o olhar de Roma, que afitavacomcensura.

—Oh!Neith,nãoesperavaouvirdeteuslábiospalavrasassimtãoásperas.Quepodereidizer-teparameabsolverdachagaqueabriemteucoração?Nãotenhodesculpasparaaforçanefasta,paraosortilégiohorrendoquemecegouetevepreso,arrastando-mequalescravoaospésdaquelaqueexerciaemmimobruxedosubjugantedosmeussentidos.Privadodoraciocínio,acrediteiamarNoferura, a culpada mulher, cuja morte me libertou agora. Saneada a alma, volto a ti, meuverdadeiro eúnico afeto, apesardohorrível pesadeloqueme fez culpado eprojetouumanuvemsobre a minha sinceridade. Pudeste, em verdade, crer que tal mulher, desestimada por mim,conseguisse tornar-se tão preciosa, ao ponto de me fazer esquecer-te, nauseantemente, por suacausa? Silencias, Neith Mas, olvidaste-me de todo (e a voz tremeu), ao ponto de duvidares dasminhas palavras? Olha-me, pois! Tenho semblante de haver fruído gozos durante meses de felizamor?

Ajovemmulhersubiuoolharesefixounorostoemagrecidoeesgotadodomoçosacerdote,que,recuando,testaabaixada,seencostavaàombreiradaporta.Sim,essestraçosexibiamosulcode sofrimentos físicos; era possível, verdade, que fatal bruxaria o empolgara, tornando-o traidorcontraavontadeprópria?Neithcomeçavaacrê-lo.Romaexerciasobreelaopoderdeemergirosbonssentimentos,esuapresençadestruíratodoo impulsomalsãoouegoísta,graças,decerto,aoafeto profundo e leal que lhe votava. Também nesse momento, a tristeza, o desânimo do amadohomem, sua reserva, a piedade despertada pelos imerecidos sofrimentos, fundiram a couraça degeloquerevestiraoaltaneirocoraçãodajovemegípcia.Caminhouvacilantespassos,edepois,numbrusco ímpeto, atirou-se aos braços do contristado moço, que, exultante, a apertou carinhoso aopeito.

— Tu perdoas o passado e restituis a afeição que iluminará minha ensombrecida alma? —perguntoudocemente,mergulhandoseuolharradianteecariciosonosolhosúmidosdeNeith.

Uminfantilsorriso,plenodeventura,erravanoslábiosdajovem.Passouosbraçosemredordopescoçodosacerdote,edeuarespostanumbeijo.Cóleraedesgostoestavamesquecidos.

PobreNeith!Elasealegrava,ignorandoopreçodeumamorsemcensuraesemsofrimento,oúnicoqueproporcionaaverdadeirafelicidadeeenobreceocoração,porqueéparceladodivinofogoquenoscriouaalma.Ignoravaqueoporvirlhereservariauminferno,tambémdenominadoamor,umadessassubjugaçõesfatais,quearruínamocorpoeescurecemoespírito;queeladeveriasofrer,emgrauaindamaisalto,todasastorturasqueRomahaviasuportado.Felizmente,ofuturoéocultoaosmortais,e,porisso,nenhumasombratoldouafelicidadedaquelareconciliação.

—Agora,nadadeexplicaçõesequerelas—exclamouNeith,desprendendo-sedoabraço,olharjubiloso.Vem,meupobreRoma, tomaralgumalimento; tuas traições fizeram-temagroeabatido,qualumasombra.Precisasvoltarasergordoebelo!

Deixando-se conduzir, dentroempouco instalava-seanteopíparaedelicada refeição.Neith,havendorecuperadotodoobomhumor,gracejavademodocáusticoarespeitodobruxedodeRoma,e,servindo-o,motejavatãodivertidamentedeleedelaprópria,queomoçosacerdoteriaabomrir,sinceramente.

Mas,umaoutraargentinarisadafê-losvoltarorosto:Roantestavadepénasoleiradaporta.Aplaudindocomentusiásticobaterdasmãos,arisonhavisitanteavançouparaNeith,abraçando-a,edepoisaoirmãotambém.Emseguida,pegoudesobreamesaumcopocheiodevinho,e,erguendo-o,numgestodebrindetriunfal:

—BenditasejaHator!Estáfeitaapaz;opassadoesquecidoeosespíritosimpurosafastadosparasempre!

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II

ASAVENTURASDOCOLARENCANTADOA Acca, a serva que acompanhara Noferura, coubera tirar as jóias e vestes da morta. No

momento da aflição, ninguém reparou nesses movimentos de despir o cadáver, nem nos objetos.Depoisqueocorpofoilevadoparaosembalsamadores,quandoaserviçalcomeçouapôremordemasvesteseadornosdasuadefuntasenhora,paraseremenviadosaTebas,a tentação lheveiodeapropriar-sedocolar,quecobiçavadesdehaviatempo.Refletiuserdifícilprovarqueafalecida,aomergulhar,nãohouvesseperdidoaditajóia,oumesmoduranteastentativasdesalvamento;Setat,estandodeitadaparadormir,nãotinhavistochegarocorpodasobrinha;HorebemassimRomanãopensariamdecertonasminúciasdasjóias.Auto-convictaporessasreflexões,ocultouocolarentreosseuspertences, levando-oparaTebas,paraonde foi reconduzida.Acca,emboraserva,nãoeraescrava,esimumapobreórfã,parentadeHanofer,acargodaqualficaradesdeamortedospais;mas, a megera, avarenta e invejosa da beleza da menina, procurara desembaraçar-se dela, econseguiucolocá-lanoserviçodeNoferura,que,preguiçosa, linguareiraevulgar, seagradaradaloquacidade de Acca, porque esta, tendo adquirido no estabelecimento comercial de Hanofer uminesgotávelrepertóriodehistóriaspicanteseescandalosas,contava-ascombastanteespírito.

AmortedeNoferuratornouAcca inútil;mas,comahabitualbondade,Roma,aodespedi-la,recompensou-a generosamente, e ainda lhe dadivou uma parte das roupas da falecida, além dediferentesobjetosaosquaisestavamligadasdesagradáveisrecordações.Impandodeorgulho,Accaregressou à casa de Hanofer, levando, cuidadosa mente escondido entre os presentes, o colaresmaltado,daexistênciadoqualopróprioRomahaviaperdidoalembrança.

Aórfãpropunha-seaajudarHanofernosafazeresdoalbergue,esperançosadeque,entreoshabituais frequentadoresencontrasseumpretendente:agoraestava rica,epodia, sem temor,darmostra de tal, por isso que todos os preciosos objetos haviam sido doados pelo antigo patrão.Hanoferviu,cominvejososolhos,asriquezasdamoçaeprima,esóseconformouumpoucodepoisque,sobreprimendaseameaças,adespojoudeumapartedaquelaspreciosidades,issoatítuloderemuneraçãodasdespesasquefizeracomamantençaeeducaçãodeAcca.

Muitas semanas decorreram. Certo dia, em que se celebrava em Tebas uma festa anual, egrandesetornavaonúmerodefreguesesaatender,Accaataviou-secuidadosamente,e,retirandodoesconderijo,ondepermaneceraatéentão,ofamosocolar,oacolchetouaopescoço,monologando:

—Comomeinvejarãonodiadehoje,acomeçarpelavelhamegera!Emirando-sevaidosaaumespelhodemetalpolido,queforadeNoferura,acrescentou:Quedeliciosoperfumesedesprendedestecolar!Nuncasenticheirosemelhante—terminou,olfatandoávidaoaromaenervantequeseevolavadajóia.

Facespurpureadas,olhos faiscantes,Accadeixouseuquartinhoparaentrarnagrandesala.Nolongocorredorqueaprecedia,encontrouSmenkara.

—Queboacarinhatenshoje,e...portodososdeuses!Quecolartrazesaopescoço?Éumajóiadealtovalor,incrustadadelegítimapedraazul,sabesdisso?—falouousurário,curvando-separaamoça, palpando e admirando o lavor e o preço do colar. E qual é este divino perfume? Oh! dávontadedecheirá-losempre—acrescentou,brusco,olfatandoruidosamenteopescoçodarapariga.

— O delicioso perfume vem do colar, cujo valor desconheço; dele espero que faça minhafortuna—respondeucomorgulho.Minhadefuntasenhoracomeleseadornavatodososdias;mas,perecendoafogadacomelenopescoço,onobreRomamopresenteou.

OnarizdeSmenkarapareciacoladoàjóia.Desúbito,seuvolumosorostosetornouescarlate,os pequenos olhos pardos começaram a chispar estranhamente, e, enlaçando o busto de Acca,abraçou-acomardor.Poruminstante,elamostroucorresponderaogesto,e,abraçandoopescoçodeSmenkara, permutou algunsbeijos fervorosos;mas, logodepois, desprendeu-sedosbraçosdohomem,repelindo-oviolentamente,efugiu.

Nasala,Hanofer,entronizadanopostohabitual,fiscalizava,comolhosdeáguia,aexatidãoesolicitude dos serviços, visto que a baiúca estava à cunha. Reparando na superfina jóia de Acca,sombreou-se-lheosemblante,eseusolhos,fulgurandodecobiça,nãomaissedesviaramdamoça,que circulava por entre os fregueses, em febril atividade, fixando os homens com invulgartenacidade.Maisdeumaencaravacuriosaeespantadamente,easpobresmulheres, seminuase

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enfeitadasdepechis-beques,devoravam-nacomosolhos.Bemdepressa,porém,ociúmedeHanofertomounovorumo,aoconstatar,compasmoeraiva,queSmenkaraseguia,qualsombra,ospassosde Acca, projetando nesta olhares de fogo, procurando curvar-se sobre o pescoço da moça,testemunhando,semrebuços,umapreferênciainsultante,paraela,esposa.ÉcertoqueafidelidadedeSmenkaranãoerairrepreensível;mas,assim,tãoàsescancaras,napresençadamulher,tãoaoalcance dos punhos que ele respeitava, e, com razão, jamais ousara ostentar. Hanofer franziu ossobrecenhos e atirou aomarido ameaçadora olhadela.Este, porém, comaudácia jamais ensaiadasequer,nãodeuatençãoaessepresságiotempestuoso;qualumébrio,viaapenasAcca,einsaciáveldoodorqueamoçadesprendia,eleaacompanhava,murmurando,entredentes:

—PorOsíris!Estacriaturaéirresistível;nuncameagradoutantoquantohoje,equeropossuí-la!

Sem compreender o móvel da impertinência do marido, porque semelhante caso jamaisocorrera, Hanofer sufocava, e, surpreendendo outra “olhadela assassina” com a qual a moçaanimavaosavançosdoonzenário,o fiodapaciência se lhe rompeu,e,qualpantera,avançouemperseguição de ambos os culpados, que haviam desaparecido da sala, disposta a infligir-lhesexemplarcorretivo.

Apósinfrutíferaprocurainicial,pilhouosfugitivosnumhangarescuro,queserviadedepósitodecervejaevinho.Seusmaciçospunhosabateram-secomforçadedoismartelossobreostraidores;mas, Smenkara, que costumeiramente se tornava dócil e obediente, mostrou, desta vez, talferocidade, que Hanofer ficou atônita. A obstinação e o temor de perder toda a sua autoridadefizeram-natentarumabatalha,eapósesforços inauditos,eesfalfadaelaprópria,conseguiupôromaridoforadecombate,equisvoltar-separaamoça,quetambémmostravaatitudebelicosa,

— Não me toques, Hanofer! — gritou ela, com olhos faiscantes. Não tenho culpa daperseguiçãodeSmenkara.Antesdeentrarnasala,eleseatirouamim,eeuorepeli.Éridículoessevelhobobo,quesóaversãomeinspira.

Hanoferimediatamenteseacalmou,eexaminouamoçacomesquadrinhadorolhar.

—Éverdadequenãotencionavasdar-lheatenção?Nestecaso,vem;euteconduzireiaoutraseção,ondeservirásaosfreguesesfidalgosquesereúnemali,etalvezentreelesconsigasfuturo!(Eumperversosorrircontraiu-lheosbeiços.)Umacondiçãoapenas:possocontarcomatuadiscrição?Aosaposentosreservadosvêm,àsvezes,personagensquenãoqueremservistos,nemidentificados,equetêmobraçosuficientementepoderosoparapunirindiscrições!

— Por quem me tomas tu? Serei acaso bastante maluca, para cavar a minha ruína? —respondeudesdenhosa.Seiperfeitamentequelásetratadeassuntosvedadosàpublicidade,ejulgoque devias contar mais com a discrição da tua parenta do que com a da velha feiticeira deSachepris.

—Segue-me.Ondeadquiristeoperfumedoqualparecesungida?

—Nãoestousaturadadenenhum.Édocolar,quemefoidoadopelonobreRoma,equesuamulhertraziaaopescoçoquandoseafogou.Édocolarquesedesprendeoperfume.

—Louco!Doartaljóiaaumacriada!—regougouamegera,despeitada.

Silenciosamente, as duas mulheres atravessaram extenso corredor, depois vasto pátio,rodeadoporummuroqueseprolongavapordetrásdoalbergue,enoslimitesdoqualhaviaalgumasconstruções: galpões, estrebarias, etc., tão arruinados quanto o prédio principal. Ao fundo, numrecantoescuro,haviapequenaporta,queHanoferabriucomachavequetraziaàcintura.Acharam-se então em amplo jardim, plantado de árvores frutíferas e de hortaliças, e depois num segundojardim,separadodoprimeiroportapume,constituídoporsicômoros,acácias,palmeiras,porentreas quais se distinguiam canteiros de flores. Em seguida, apareceu, por entre a folhagem, umasegundacasa,menor,masdeaparênciaelegante.Porespaçosoterraço,ornadodearbustos,ambaspenetraram em uma sala sustida por fortes colunas, pintadas de preto e amarelo, e na qual umgrupo de mulheres estava reunido. Eram todas jovens e formosas, e algumas, bailarinasevidentemente, ostentavam largas faixas de metal, colares e braceletes de missangas, tendo nasmãoscompridaselargasmantilhasdetecidotransparente.Duasdelastinhamtingidodevermelhãoberranteoscabelos,enroladosnoaltodacabeça,lembrandotorressangrentas,penteadoquelhesdavaaspectoselvagemefantástico.Deitadasemesteiras,exibiam,despudoradas,anudezdosseuscorposflexíveisedelgados,impregnadosdeóleosodoríferos.Outras,vestidasdecurtastúnicasdelistras,empunhandoharpasdetrêscordasoumandoras,estavamacocoradasconversandoameiavoz.ÀapariçãodeHanofer,umacurvadamulherencarquilhada,dessafealdaderepugnantequenãoraroatingeasmulheres,equepareciavigiarorebanhodejovens,levantou-sedeumescabelo.

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— Nenhum dos nobres visitantes se apresentou ainda, senhora — disse ela, obsequiosa, e,curvando-se,emvozmaisbaixa:—SomenteopadreRansenebseencontraemumadassalinhas,àesperadealguém.Pediufrutasevinho.

— Está bem Sachepris. Eis aqui Acca, que trouxe para que te ajude. Manda-a servir oshóspedes de distinção. Para começar, ela servirá ao padre os refrigerantes solicitados. Vai! —continuou,dirigindo-seàmoça—etentonalíngua.UmpadredeAmonestáaquiparaultimarumatransaçãodedinheiro.

Accalimitou-seaumgestodeassentimento,pois,haviamuito,nãoignoravaquemaisdeumpadreoudignitário,embora insuspeitávelde frivolidade,vinhadivertir-seali,para jogoououtrosprazeres,esabiatambémquealiseultimavamvultosastransaçõesdedinheiro,nasquaisSmenkaraera intermediário. Estava disposta a ser modelo de prudência e discrição, e a transferênciadeterminadaporHanoferagradava-lhe,vistoque,desdemuitotempo,anelavatrocarastarefasdoalberguepelasdoelegantebordel,ondeserecreavaumaturmadeoficiaisedenobresmancebos,indolentes e generosos, semeadores de ouro a cada carinha que lhes agradava." No estado desuperexcitação em que se encontrava, a moça desejava ardentemente o amor de algum homembonitoedealtasituaçãosocial.Aincertaimagemdeumidealnessegênerovacilavanoseucérebro,semque lhe conseguissedar forma concreta: ora tomavaos contornosdobeloRoma, seu antigopatrão, ora os de um oficial que às vezes frequentava a casa de Hanofer. Ambos lhe inspiravamnessemomento violentapaixão, embora semsaber a qual dos dois daria preferência, de vez quenemumnemoutrocorrespondiafielmenteaoincógnitodesejadoporela.

Preocupada com esses pensamentos, cabeça incendida e pesada, arrumou em bandeja umaaveassada,umaânforacomvinho,umcopoeumcestocheiodefrutas,edirigiu-seacertasaleta,isoladadasdemais,designadaporSachepris.Nesseaposento,comsaídaparticular,oconfidentedoSumoSacerdotedeAmonestavasentadojuntodepequenamesa,engolfadonaleituradetabuinhasabertasanteseusolhos.Àpresençadaserviçal,fechou-as,eenrolouumpapiroestendidonamesa.Correspondendo com um movimento de cabeça, benévolo, à profunda e respeitosa reverência damoça,Ransenebpegouaaveecomeçouacomer,enquantoAcca,empunhandoaânfora,secolocoupor detrás da cadeira, pronta para encher o copo, logo que o sacerdote tal ordenasse. Algunsminutosescoaramemsilêncio.Ranseneb,comendocomapreciávelapetite,pelasegundavezerguiaocopo,quando,derepente,aspiroucomforçaeprocurouidentificaralgo,respirandocomatençãováriasvezes.

—Quesuaveperfumeéestequeestoupercebendo?Deondeprovém?

—Venerávelpadre,édomeucolar—respondeuumtantoperturbada.

—Mostra-meessecolar,edizedequemteveioele.

— Do nobre Roma, o sacerdote de Hator, que mo deu juntamente com outros objetospertencentesàsuadefuntaesposaNoferura.

AccapassouparapróximodeRanseneb,curvandoobustoparaquepudesseserexaminadaajóia,oqueelefezcuriosamente.

— Eis um estranho aroma... Creio que, apesar de suave, a continuação poderá produzirvertigens—murmurouopadre,continuando,semembargodaponderação,aaspiraravidamente,narinasdilatadas,otraidorperfume.

E,comoquecedendoairresistívelatração,pegouamoçapelobraçoeavizinhouorostoquaselhe tocando o pescoço. Súbito, estremeceu, endireitou-se: o crânio lustroso e as maçãs do rostocoloriram-sedeardentepuipura,enosolhosacendeu-seflamaselvática,enquantofixavaamoça,sempredobradasobreele.

—Senta-te junto de mim, filha, e dá-me vinho disse com olhar e sorriso que contrastavamsingularmentecomotiposombrioeascéticodetodaasuaaparência.

EporqueAccahesitasse,olhandocomreceio seu incendidosemblante,Ransenebabraçou-apela cintura, puxando-a para si, e tentou beijá-la no pescoço e depois na boca. Nesse precisoinstante,aportafoiabertaaofundo,eumhomemdeelevadaestatura,comavestimentadeescriba,ostentandoenormeperuca,apareceunaentrada.Deparandocomagalantecena,quetinhaporatorovenerávelprofetadotemplodeAmon,Hartatef(porqueeraele)duvidoudotestemunhodopróprioolhar.EramesmoorígidoefanáticoRanseneb,cujaimpiedosaseveridadedesciatãopesadamentesobreosjovenspadres,ecastigavaamenordasfaltas,eramesmoelequemvinhabuscaraventurascomumamoçadealbergue?!

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Acca,que,momentaneamente,cederaaoabraçodopadreepagaraobeijo,deuumgrito,e,repelindo-o,fugiupelaportaopostaàquelajuntodaqualpermaneciaHartatef.Comoquearrancadodeagoniadosonho,Ransenebpassouamãopelatesta.

— Que significa isto? Insânias vieram perturbar meus velhos dias; não vi eu bastantesmulhereslindas,paraqueumavulgarmoçadealberguemefaçaperderarazão?—murmurouele,sombrio.

Só então percebeu Hartatef, que, profundamente Inclinado, deixava ao padre tempo derecompor-se. Um fluxo de sangue ascendeu ao rosto de Ranseneb, ao pensamento de que essesubalternohouvessepresenciadosuainexplicávelloucura.

—Aproxima-teHartatef—ordenou,dominando-setrabalhosamente.Quenotíciasmetrazes?

O escriba aproximou-se, respeitoso, entregando-lhe tabuinhas e muitos rolos de papiros, e,comamaneiraclaraesucintaque lheerapeculiar, fezdetalhadorelatóriodaviagemaBouto.OpadreinterrogouminuciosamentesobreTutmés,Antef,relaçõesentreestes,etc.,e,emprazando-oanovoencontro,dentrodebrevesdias,emlocaldesignado,expôs,emdetalhes,instruçõessecretasparaexcitaçãodopovocontraarainha,espalhandohabilmentequeela,tirandoavidadoirmão,enãotendodescendentevarão,terminariaextinguindocompletamenteogloriososanguedeTutmésI,eficandooEgitosemFaraólegítimo.Eeraissooqueopovotemiaacimadetudo,eoquedeviaimpeli-lo ao partido do príncipe, jovem cheio de futuro e do qual era lícito esperar numerosalinhagem.EnquantoosdoishomensassimseentregavamàdiscussãodosinteressesdoexiladoedoporvirdoEgito,Accavoltaraàgrandesala,ondenumerososvisitantesestavamreunidos.Sentadojuntodeumadasmesasdo terraço,nomeiodemuitoshomensentretidosa jogar,Pair,agitadoecobiçoso,nãoenxergavanemouviaoutrascoisasalémdosvaivensdoslucrosouperdas.

As dançarinas e cantadeiras estavam meio dispersas. Algumas atada se entregavam a umadançavoluptuosaeprovocante,nocentrodeumgrupodefrequentadores,queriam,aplaudindooucriticando sem rebuços o talento e as perfeições físicas das bailarinas. Na primeira fila dosespectadores, via-se Mena, com as duas mãos enfurnadas na cintura da túnica, a perorarbarulhentamente, sobre passando a todos, em graçolas equívocas e brutais, e excitando asdesgraçadas criaturas para evoluções cada vez mais arriscadas. Gasto e entediado, não sabiaevidentementeaqualdasmulherespresentesdariapreferência,quandoseuolhardivisouAcca,quereentravanorecinto.Araparigadispunhadeótimaaparênciacomavestimentaricamentebordada:rosto corado, olhos negros coruscantes, fremir nervoso que a agitava toda, distinguiam-navantajosamentede todas as outras.AgradouaMena, que, saindo rápidodogrupo, se abeiroudeAcca,elhedisse,encarando-aaudaz:

—Belajovem,leva-meaojardimumcopoeumasólidaânforacomvinho,quetumeservirás.Aqui,ocaloreobarulhomeincomodam.

Accareparou,comolhardebrasa,aesbeltaerobustaestaturadooficial.Estavacadavezmaissobainfluênciadoenfeitiçadoodor,querespiravadesdemuitashoras,oqual,maisentorpecente,maisexcitantedoqueomaisfortevinho,lhefaziaferventeosangue.Menarecolheuesseolhar,eumsorrisofátuopassou-lhenoslábios,aomesmotempoquesedirigiu,empassodisplicente,aumbosquetedojardim,ondehaviabancoemesa,quemoitasderosaseacáciasescondiamdavistadospasseantes,localqueMenaconheciaepreferia,porserretiradoediscreto,edoqualguardavamaisdeumavoluptuosareminiscência.Apenassentara,eAccachegou,trazendoaânforacomovinho,umcopoeumacestadepastéiseoutrasmassas.

—Eis-meaqui,àstuasordens,senhor.

Menaolhouparaelacomfamiliaridadeaudaciosa,usadaemtodosostempospelosmundanosparacomasfilhasdopovo,quedesejamlhessirvamdetransitóriopassatempo.

—Vemcá,pequena,edize-meteunome—começouele,passando-lheumbraçoemredordacinturaefazendo-asentarnobanco.Tumeagradas—acrescentou,beijando-anopescoço.

E logo um odor suave e entorpecente lhe chegou às narinas; o sangue afluiu ao cérebroviolentamente,produzindo-lhemomentâneoaturdimento.Mas,oseubeijopareceutertiradoàmoçatodanoçãodesenso:qualébria,agarrou-seaooficial,apertando-onumamplexoquasesufocante.Équenarobustanatureza,violentaevoluptuosa,deAcca,oaromaenvenenadoexerciaterrívelefeito:nuvensdefogoobscureciam-lheavista,afogandoraciocínioepudor,e,nessanévoa,vacilavaantesua visão o rosto pálido de um homem, de olhar sombrio e profundo, que parecia encará-la comestranhosorriso.

Trementeemtodoocorpo,elaseretesou,procurandodepoisfundirseuolharnessesolhosde

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fascínio; mas, em vez dos traços admiráveis que haviam surgido em sua imaginação, viu a faceavermelhadadeMena,deolharinflamado.Emitindoumgritoabafado,elaseatirouparatrás,meiosufocada,cabeçaemchamas,parecendoestalaremultipartir-se.Doragudalheperfuravaopeito;comasmãoscomprimindooladodocoraçãosuperpalpitante,caiudesmaiadasobreobanco.

—Queteráestacriatura,edondeviráestedeliciosoperfume?—monologouMena,curvando-se para ela, e olfatando avidamente. Olha! É do colar que se evola o divino aroma, desta grossaplacacentral...Mas,onde(portodasasdivindadesnefastas!)abrejeirafurtousemelhantejóia?—continuou ele, tentando abrir o prendedor de colar para mais detido exame. Não o conseguindo,usou,impaciente,umpunhalparadesligaroselosqueprendiamomedalhão.—Paraestabruta,oquerestadocolarbastará—resmungouele.

E,semmaisvoltarosolhosparaadesmaiadamoça,retornouàsala,satisfezosgastosfeitos,esaiudobordel.

—Eisumachadoque fiz—pensou, tirandodocintoa jóiaeaspirando-lheávidooodor.—Farei prender esta placa a um dos meus colares, e todos me invejarão este perfume novo e tãoadmirável.

Deresto,ojovemnãocessavadecheirarodeletérioaroma,semrepararque,paulatinamente,ummal-estar lhe invadia todoo organismo; inquietude vagaoprimia-o; a cabeçapesada; ardentesederessecava-lheagarganta...Porisso,abandonouoprojetodefazerumpasseionoturno,erumoudiretamenteparaopaláciodePair.Atravessandoumadassalas,caminhoobrigatórioparachegaraosseusapartamentos,encontrouSatati,que,desabituadaa tãorápidoregressodosobrinho, lheindagousurpresa:

—Jádevolta,Mena?Pairveiocontigo?Mas,quetenstu?Teurostoestávermelhoeteusolhostêmumbrilhofebril;estásdoente?

—Não.Sinto-mebem.Apenastenhoespantosasedeeestoucansado.

—Entãovemcomigoàsaladejantar.Terminamosarefeição,eosmeninosforamdormir,maseu te servirei refrigerantes — disse Satati, conduzindo-o a um aposento dependente dos seuscômodos.

Eordenouaumaescravatrazervinhoecarnesfrias.Sentou-sedefronteecomeçouaservi-lo.Mena encheu e esvaziou vários copázios de vinho, e pousou os cotovelos na mesa, com aspectofatigado, semtocarnosalimentos...Satatiobservou talatitude longamente.Depois, levantou-seelhebateusuavementenoombro.

—Decididamente,Mena,algodeextraordinárioacontececontigo;estásagitadoeaomesmotempoaturdido;nãocomestecoisaalguma.Quetefalta?

Mena endireitou-se, brusco. Olhos sanguinolentos e exageradamente cintilantes, fixou a tiacomexpressãoqueafezestremecererecuar,e,maisvelozdoqueumraiodeluz,aenlaçoucomosbraçoseaatirouviolentamentenumacadeiraaseulado:

—Quemefalta?Équeteamo.Voltei;ignoroporque,mas,avistando-te,aclararam-seosmeussentimentos.

Oassalto,tãoimprevisto,deixaraaesposadePaircomoqueaturdida,comacabeçaapertadadeencontroaopeitodorapaz.Depois, forcejando,elaorepeliu,e tentou,emvão, libertar-sedosrobustosbraçosqueaacorrentavam.

—Larga-me!—gritou,raivosa.Queescândalo,seumadasescravasnosvisse!Enlouqueceste?

Menasondouoaposentocomolharsorrateiro.

—Estamos sós, escuta-me; desta vez, podes crer, sinto que meu amor é verdadeiro, e quemulheralgumatepodesercomparada.

Como se a sua resistência se houvesse esvaído de repente, Satati recaiu sobre a cadeirasentindogirar a cabeça, uma indeterminadaopressãoa comprimir-lheopeito.Éque, na emoçãocausadapelosustoesurpresa,nãoseaperceberadoenfeitiçadoperfumeexaladodosobrinho, e,inconscientemente, absorvido pelas narinas. Indefinível estado, novo e incompreensível para essamulherfria,egoístaerapace,aavassalava,poucoapouco.SatatijamaistiveraamorporPairouporquem que fosse, e apenas por fatuidade se deixara cortejar, pois os seus arraigados sentimentoseram a ambição e o cálculo das vantagens, e, se naquele instante pudesse raciocinar, ter-se-iapasmadodosbatimentosapaixonadose tumultuososdo seucoração,daadmiraçãoqueMena lhe

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inspiravaecujabelezaeolharprofundoafascinavam.Fatiganteembriaguezainvadialentamente;parecia-lhe flutuarnumaatmosferaembalsamada;osouvidoszumbiam;osbeijoscálidosdorapazcomunicavamfogoàssuasveias...Fechouosolhosedescansoudetodoacabeçanopeitodele.

Osdoisenfeitiçadosnãoseaperceberamdequelargotempodecorrera,enemmesmooruídode pesados e incertos passos de alguém que se aproximava os arrancou da sua entorpecência.Apesardebêbedo,Pair(poiseraeleorecém-chegado)parouestupefatoapoucadistânciadamesa.Tiveranajogatinaumaterrívelmásorte,eperderaatéocolar.Tãofuriosoquantoébrio,deixaraoalcoucedeSmenkaraumahoradepoisdosobrinho.Dirigia-sediretoaoquartodedormir,quandoreparouhaver luzna saletade trabalhodaesposa.OespetáculodeSatatinosbraçosdeMenaodeixouporsegundoscomoquepetrificado;mas,semdemora,umaInsensata fúriaoavassalou,e,apanhandodecimadeumacadeiraaespadadeMena,assentouumpossantegolpenacabeçadosobrinho,que,soltandoumgritorouco,rolouensanguentadonaslajesdochão.Porfelicidadedele,foidavacilantemãodeumbêbedoquelheveioogolpe,pois,dadeumlúcido,seriamortal.

—Ah! traidores!—rugiuPair,bocaespumando,querendoagarrarSatati,que,bruscamentedespertadadosonhodeamor,buscavafurtar-seaoalcancedomarido,cujofuroraamedrontava.

Perseguindo-a, porém, Pair derrubou a mesa, causando enorme estrondo, inclusive peloespatifamentodosvidrose louças,querepercutiuemtodoopalácio.Semsepreocuparcom isso,agarrouaesposa,procurandoatirá-laaochão,egritava,tentandoretirardocintoopunhal:

—Vaispagaroultrajefeitoàminhahonra;nãoesperareiqueocarrascoponhanatuafaceamarcadasmulheresadúlteras,eeuprópriotecortareiapontadonariz.(15)

(15)NoCódigoPenaldaépoca,ocrimedeinfidelidadeconjugalerapunido,nohomem,comummilheirodechicotadas;namulher,cortando-se-lheonariz.(Martin,op.cit.,pág.508.)

Procurou com uma das mãos apertar-lhe a garganta, brandindo o punhal com a outra, noesforçodeexecutaraameaça;mas,odesespero,oindescritívelpavordesermutilada,decuplicaramasforçasdeSatati,que,comumselvagemgrito,sedesprendeudosdedosdePair,efugiuparaojardim,ondeatrevaimpediuoprosseguimentodaperseguição.Deresto,opróprioexcessodaraivahaviaesgotadoas forçasdoébrioeprovocadoreação:pernas trêmulas,apoiou-sepesadamenteaumacolunadoterraçoepassouamãonatestaúmida.Dir-se-iadespertavademedonhopesadelo.Depois,lentamente,retomouocaminhodasalaondeMenajaziaaindadesacordado,eemtornodoqualseacotovelavamalgunsescravos,pálidoseansiosos,ebemassimAssaeBeba,atraídospelosgritos e alarido. A presença dos filhos e dos domésticos acabou de desembriagar Pair, que,esforçando-seporaparentarcalma,ordenouaremoçãodeMenaparaoseuaposento,aquietouosfilhos e respondeu evasivamente às perguntas referentes à esposa, cuja ausência pareciaincompreensível,eosmandouvoltaraoleito,enquantoeleiaassistiraoprimeirocurativonoferido.Ficandoasós,osadolescentesmiraram-semuitoespantados.

—Quesignificatudoisso,eondepodeestarnossamãe?—perguntouAssa,inquieto.

Imediatamente, Beba, cujos olhos pesquisavam curiosamente o aposento, agachou-se, e,apanhandoadesastradaplacaquecaíradocintodeMena,disse:

—Olha!Nossamãeperdeuestajóia.Parece,creioeu,umadasqueHartateflhedoou,quandodonoivadodeNeith.

— Não, não; eu conheço todas as suas jóias; não tem nenhuma semelhante. Com certezapertenceaMena—respondeuAssa.

—Quebeloodorexala!OndeMenaoterápescado?Parecearrancadodealgumacoisa.Voupô-lonajarradanossasaladebrincar,eelepodedepoisprocurá-la—disseBebacomrisinhosonso,conduzindooirmãoparaosseusaposentos.

Pair seguiraosescravosque transportavamMena,e fizerachamarumvelhopadremédico,queresidiaemsuacasa,e,quandoestelhedissequeoferimento,aindaquegrave,nãoeramortal,equeMenanãotardariaemrecobrarossentidos,retirou-separaoseuapartamento.Apresençadosobrinhoera-lheodiosanessaocasião.ElenãotinhaciúmesdeSatati,aqual,mesmonoplenoviçoda juventude, nunca lhe inspirava apaixonado amor; temendo a mulher, cujo caráter firme eastucioso o dominava completamente, habituara-se a vê-la sempre severamente salvar asaparências,esódemaneiramuivagasuspeitava-adealgunspecadilhosdemocidade,osquais,pordifíceis de provar, não passavam para além da suspeita, com o que se conformava, não sendotambémummodelodefidelidade.

E,inopinadamente,essamulhergrave,reservada,prudente,demaduraidade,rolavaparaum

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amor louco, com esse biltre estúpido, Mena, rapaz tão volúvel que teria de ser distanciado dequalquermulher;Satati, tão calma, tão constantenos seushábitos, comprometia-seaté concederumescandalosoencontroemsalaaberta,expondo-seàrisotadosescravos,tantoassimqueMenaseesquivaradoalberguedeHanoferparaalcançá-la.Pairsuspirouprofundamente,estendendo-senoleito.

Acóleradesvaneceupoucoapouco,echegoumesmoalamentarterfeitotantoestardalhaço.Semdúvida,Satati não teriadesejadoqueele lhedecepasseonariz,mas... aquele escândalo emtodaaTebas!...Felizmente, ela seeclipsara, e restavaapenaso ferimentodeMena, oqualdariamuito que falar. Mas, também por que (por todos os espíritos impuros!) esses dois malucos seexpuseramassim,quando,vivendosobomesmoteto,emliberdadepelasfrequentesausênciasdePair, podiam facilmente esconder o seu amor? O superintendente das equipagens reais era decaráterbrandoeconciliador;nenhumapaixãosombria,nenhumorgulhosupérfluoachavamguaridaemsuaalma;eraestreitodeespírito.Perdulárioporhábito,gostavademulheres,bonsmanjaresejogo,sobreoqualconcentravaomaiorvigordossentimentos.Cadavezmaispreocupado,pensounascenasqueoaguardavam.Satati,mesmoculpadaeausente, já retomavaaascendência sobreele,eperguntavaasipróprioondeteriaidoesconder-se,devezquenãovoltaraaolar...Nodecursodessascogitações,osonoosurpreendeu.

Nãopodendosuspeitardasreviravoltasdoespíritodomarido,Satatiachava-senopaláciodeSargon. Apenas liberta das mãos de Pair, atravessara o jardim qual flecha, e, passando por umaportadopátioexterior,ondehaviaumaescravavigilante,àqualordenousegui-la,chegou,sempreacorrer,àsmargensdoNilo.Saltandoparaaprimeiraembarcaçãochegada, rumouparaopalácioassírio,onde,aliás, todos jádormiam.Conhecedora,porém,detodososrecantos,SatatipenetrousemdificuldadeatéacâmaradeNeith.

—Salva-me!Pairquermatar-me!—gritouela,sacudindoajovem,queseergueuestupefatasobreoleito.

QuandoNeith,refeitadoprimeirosusto,desceudacamaechamouasserviçais,achouatiaestendidaedesacordadanochão,eforamnecessárioslongosesforçosparaquereabrisseosolhos.A pobre mulher ignorava ter sido o feitiço do colar a causa de tudo, naquela incompreensíveldesgraça.

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III

OPALÁCIODOENFEITIÇADORSombrio, silencioso, semelhante a um colosso adormecido, elevava-se à borda do Nilo o

paláciodopríncipeHoremseb,oumelhor,omurolargoealtoquecinturavaoimensoterreno,nãodeixando ao olhar curioso perceber outra coisa além de maciços de verdura e alguns telhadosperdidosporentreassombras.Muitosolhares interesseiros, suspeitososemalignos fixavamessemudo enigma, contra o qual se quebravam, desde havia bastante tempo, a curiosidade e amalevolênciadoshabitantesdeMênfis,eesteúltimosentimentocomeçavaapredominar.Ospadresofendiam-secomanegligênciaindisfarçadadopríncipequantoaosdeveresreligiosos;nopovo,osboatos mais diversos circulavam a respeito da misteriosa habitação, cujos servidores eraminvisíveis, e assim o seu patrão, e apenas a elevada origem social deHoremseb se impunha aosmaledicentes, forçando toda essa animosidade surda a encobrir-se qual brasa sob cinzas. É justodizer que a bizarramorada constituía verdadeiro contraste como palácio de umgrande egípcio,semprecheiodevida,ruídoelabor.Aquitudoerasilêncioesolitude,eoscultivadoresquelevavamao palácio do príncipe os produtos colhidos nos vastos domínios, os únicos seres que se podiamgabardehavertranspostoaportadorecintoabertaparaoladodacidade,narravamexistirnolocalvastopátiorodeadodeceleirosealpendresondesedescarregavamascolheitas.OvelhoHapzefaá,ajudado por alguns escribas silenciosos, recebia e registrava tudo, pois os rendeiros eramdespedidossemmesmopoderemidentificarondeficavaaportadeacessoaorestodaedificação.Talporta, dissimulada empequena construção, servindo de escritório, abria para um segundo pátio,igualmenteespaçoso,emredordoqualestavaminstaladasascozinhas,assalasdestinadasàlixíviaeaosoutrosgrosseirosmisterescaseiros.Estapartedahabitaçãoeraseparada,porsólidomuro,dosinterioresdopalácioedascasasonderesidiamasdançarinasecantoras,sobavigilânciadosrespectivos eunucos, e os bailarinos, coristas e outros escravosmasculinos destinados ao serviçoparticulardosenhordosdomínios.

Paraconduçãodosalimentos,frutas,vinhos,etc.,servidosnamesaprincipesca,ebemassimpara sustento do restante da misteriosa população, os escravos tinham de transpor uma portaseveramenteguardadaporeunucosarmados, e sóporestesaberta.Silenciosos, cheiosde temor,comoqueesmagadosaopesodedupladesdita,essespobresserescumpriamsuasobrigações,e,emverdade, mais infortunados do que seus irmãos de servidão, pois eram mudos e grande partetambém surdos. O próprio palácio constituía uma amálgama de arquitetura egípcia e alienígena:extensas galerias, infinidade de terraços, grandes e pequenos pátios, plantados de palmeiras eoutrasárvores,eumaverdadeiraconfusãodesalasdeváriasdimensões.Otodoestavadispostocomluxorealengo:tapetespreciosos,estofosrarosoupinturasvariegadascobriamasparedes;pesadastapeçarias,comfranjasebordados,mascaravamtodasasportas;osmóveis,deébano,incrustadosde marfim e mesmo de prata maciça, eram admiráveis; mas, por sobre todo esse luxo, essesesplendoresdaarteedariqueza,pareciadesceralgumacoisadelúgubreedegélido;todosessesapartamentos estavam desertos, e seu ambiente sobrecarregado de odores em excesso: tripés ecaçoilasdeouroemprofusãoestavamdispersasemtodasasdependências,ondemeninos,deonzeedozede idade, circulavamcomo se fossem sombras,mantendo zelosamente o fogodos carvõesenelesderramando,a intervalosdeterminados,diferentesperfumes.Os inditososmeninosestavamricamenteparamentadosdecurtasfaixasbordadas,ostentandocolaresebraceletesdeouro;mas,silenciosa tristeza se patenteava em seus semblantes. Nunca se falavam, e a apatia, o mortalabatimento de seus olhares pareciam de velhos. Nos vastos jardins que rodeavam a mansão, omesmo silêncio, idêntica solitude; nenhuma criatura humana passeava nas aléias sombreadas;silentesecomoquetemerososdeseremavistados,osjardineirosdeslizavamdebaixodasárvores,eumsonoenfeitiçadopareciapesarsobretodasascoisas.

Entre a espessa verdura, cintilava a superfície polida e tranquila de dois lagos. Um,muitogrande,situava-seanteafachadadopalácio;umabarcadouradaalisebalouçavapresaadegrausde granito rosa por uma corrente de prata; o outro, menor, ficava na extremidade do parque,rodeadodegrandesárvoresedecerradosarbustosquelhefaziamumaespéciedemuralhavegetal.Empequenailhota,nocentrodesselago,haviaumpavilhão,feitodetijolos,queocupavatodaessasuperfície;apenas,numaface,umaconstruçãocilíndrica,assentadasobreestacas,avançavaparadentrodaágua.Estaformadetorre,semqualquercobertura,era,emtodaacircunferência,providade compridas e estreitas janelas disfarçadas por tapeçarias. Duas ligeiras pontes serviam decomunicaçãocoma ilhota:umaconduzindoaopalácioeaoutra,do ladooposto, confinavanumaaléia estreita, ladeada de arbustos espinhosos, que terminava em sombrio e espesso maciço, aocentro do qual havia ampla construção em forma de pirâmide. Contíguo a um dos numerosospequenospátiosquemencionamos,plantadosdeárvoreseflores,haviaumapartamentocomposto

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deduascâmarasdemédialargueza,decoradascomosrefinamentosdoluxoquedistinguiamtodoopalácio.Uma,escura,iluminadaporlâmpadadeóleoperfumado,serviadequartodedormir,aoutraabria,deumlado,paraojardinzinhoe,dooutro,paraumagaleriadeserviço,longa,paraointeriordopalácio.Apenasaportaera fechadaporumagradedemadeiradourada,comferrolhona faceexterna.

Sobreumleitoderepouso,decedro,cobertodeestofoazulbordadoavermelho,estavajovemmulhersemi-estendida,acabeçaescondidaemalmofadas.Umaalvatúnicadesenhava-lheasformasesbeltas e elegantes, e opulentos cabelos ruivo-dourados, presos por uma faixa trabalhada, lhecobriamosombroseasespáduascomafarturacuidadadosseuscachos.Aescuridãovierarápidaequasesemtransição,mas,amulhernãodemonstraraaperceber-sedetal.Subitamente,endireitouocorpoe,juntandocomasmãosacabeleiraparaascostas,murmurou,comangústia:

—Ah!Aquehorasviráele,hoje?Hator,divindadepotenteemisericordiosa,dá-mepaciênciaduranteasmortaishorasquepassolongedele!

ENeftis (porqueeraela)ergueuosbraçosematitudesúpliceparaumaestatuetadadeusaprotetora do amor. A pobre moça estava bem mudada desde o dia em que, na companhia dainconsequente Tuaá, tentara a grande e aventurosa loucura que a pusera no caminho doenfeitiçador: emagrecera; suas belas cores juvenis haviam cedido a uma palidez doentia, e osgrandes olhos esverdeados reluziam, exteriorizando nervosa superexcitação vizinha da demência.Poucodepois,ergueu-se,comtristonhoabatimento,bocacontraídaporindizívelamargura,edesceuao jardim, onde fez pequeno giro a passo lânguido. Em seguida, como que tomada por novopensamento,saltouparaaportadagaleria,acocorou-senaslajesepremiuafrontecontraagrade.

— Oh! Eu me queimo viva num braseiro — murmurou, ofegante. Onde encontrarei pararefrigérioumapedratãogeladaquantoocoraçãodaquelequeidolatroepermaneceimpiedosoantemeus sofrimentos? Quando deixarei de anelar pelos momentos fugitivos durante oh quais meconcedeatristealegriadeocontemplar?

Algumas ardentes lágrimas perolaram por suas faces, enquanto o olhar sondava,esquadrinhante,assombriasprofundezasdagaleriaquecosteavasuaprisão,e,deambososlados,pareciaperder-seemlongínquadistância.Inopinadamente,intensoruborcoloriu-lheorostopálido,e nervoso estremecimento agitou-lhe o corpo; numa das extremidades da galeria, surgiraavermelhadaclaridade;escravos,empunhandotochas,apareciameemcarreiraescalonavam-sededistânciaemdistância.

— Enfim, enfim, vai ele aparecer! — suspirou a jovem egípcia, concentrando o olhar naelevada estatura de um homem que, precedido e seguido de moços portadores de tochas, seapropinquavarapidamente.

Era Horemseb. Vestia túnica branca, com franjas à moda assíria, e fechada no busto porartísticocinto;largolistrãodeouroincrustadodepedrariasretinha-lheaespessacabeleiranegra.Chegado junto da grade, parou, e, percebendo ali a jovem, genuflexa, do lado exterior,maliciososorrisopairou-lhenoslábios.Emseguida,tiroudocintoumachave,eabriu.Comumaexclamaçãodejúbiloaprisioneiraavançouparaele,e,ajoelhando,cobriudebeijosaspontasdatúnicaedepoisamão,queelelheabandonaraàcarícia,fixando-acomindefinívelexpressãodeironiaepiedade.

—Estábem,Neftis,calma-te!—dissecomindiferença.Seiquantominhapresençaterejubila;mas, devias recordar-te de que não gosto de ser atormentado com as tuas expansões. Vem! Arefeiçãonosespera.

Voltou-se e prosseguiu no caminho, acompanhado de Neftis, que baixara a cabeça ante ogélidoolhardeHoremseb.Agaleriaconduziaaumasala,nocentrodaqualelegantemesaestavaopiparamente servida, para duas pessoas. O príncipe ocupou uma cadeira dourada e suacompanheira,“vis-à-vis”aele,numescabelo,enquantoosescravos,sempremudos, iniciaramsuatarefa, deslizando sem ruído os pés nus sobre o chão, e, como que dirigidos pela batuta de ummágico, manejavam com os alimentos e enchiam os copos, sem que uma só palavra fossepronunciada...Opríncipecomiacomapetite,masNeftispareciasaciar-seemolhá-lo,poismaltocouem tudo que lhes foi servido, espelhando, nesse contemplar, um amor que atingia as raias daadoração.

Terminado o repasto, o príncipe desceu ao jardim, e por uma aléia transversal, andandovagaroso, atingiu pequeno pavilhão elevado demuitos degraus e cujo Interior estava debilmenteiluminadopordoisamplostripéscheiosdecarvõesacesos,sobreosquaisdoismeninosderramavamincessantementeperfumesquedesprendiamatordoantearoma,saturandooambiente interioreoexterno, dos bosquetes. No fundo da pequena e delicada construção, feita de bambus e cujostabiquesdeestofospodiamserretiradosfacilmente,haviaamplaabertura,subindodochãoaoteto,

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dando acesso a vasto tabuleiro de relva rodeado de árvores. Arbustos odorantes do lado de foraencobriam o pavilhão, deixando apenas uma abertura suficiente para permitir que uma pessoadeitadaem leitode repouso, colocado juntodeum tabiquede verdura, divisasse comodamenteoqueocorrianoditotabuleiroderelva.Comoquefatigado,opríncipedeixou-secairsobreoscoxinsde púrpura do leito, e o sonhador olhar incidiu indiferente sobreNeftis, que o acompanhava, e,sentada em rasa banqueta, acompanhava-lhe cada um dos movimentos com obsidente adoração.Horemsebpermaneceuporalgumtempoestirado,imersonassuascogitações;depois,soergueu-seum pouco e bateu palmas. Quase simultaneamente, da sombra das árvores saiu um cadenciadocanto,estranho,orasuave,oradesfalecendonummelodiosomurmúrio,oraaumentandoparasonsagudos, selváticos, símiles aos silvosdos ventosduranteos vendavais, excitandobizarramenteosnervos dos audientes. Por fim, o cantar cessou num acorde prolongado, lamentoso, que pareciarepercutir e perder-se a distância. O príncipe, que o escutara, olhos semifechados, como queadormecidonumberçodesonhoporessessonssurpreendentes,queexcitavamtodosossentidosetodas as paixões, ergueu-se de todo e olhou o tabuleiro sobre o qual começava um fantásticoespetáculo. A lua surgira, iluminando com a sua prateada luzmulheres vestidas de branco, que,surgindo, uma a uma, da profunda sombra das árvores, vinham postar-se na relva. Eram todascriaturas moças, mostrando através de túnicas transparentes esbeltas e elegantes formas; osbraceletes e colares de ouro realçavam-se vigorosamente sobre a tez bronzeada. Algumasempunhavam harpas douradas, com enfeites floridos; outras, compridos e largos véus brancos.Acompanhadascomesses instrumentos,começaramanimadaevoluptuosadança,aproximando-seoudistanciando-sedopavilhão.Seuságeis corpos se torciamou turbilhonavamemdesgrenhadasvoltas; os níveos véus, desenrolando-se, moviam-se como se fossem nuvens esbranquiçadas porsobreacabeçadasbailarinas,asquais,nivelando-seaapariçõesemergidasdoreinodassombras,pareciamdeslizarnaverdura,tocadaapenasdelevepelosligeirospésemmovimento.Emseguida,surgiram rapazelhos, trazendo recipientes que desprendiam turbilhões de fumaça odorante,incorporando-se depois ao bailado, e, aumentados os clarões do alcatrão contido nos tripés,constituiu o todo um conjunto de giros em redor desses núcleos inflamados, cujo clarãoavermelhadoagrandavaaindamaisofantásticodaextraordináriacena.

Então, umhomem, trajadodebranco, aproximou-sedeHoremseb, trazendo, sobrebandeja,um par de copos e dois frascos cinzelados, um de ouro e outro de prata, que respeitosamenteapresentou. O príncipe, pegando primeiro o frasco de ouro, encheu um copo e bebeu; depois,servindo-sedosegundo,odeprata,despejouoconteúdonooutrocopoeoestendeuparaNeftis,aqual, prostrada contra o leito de repouso, seguira com olhar apático o maravilhoso espetáculodesenroladoanteela.Mas,apenasoaromapenetrantedolíquidolhechegouaoolfato,estremeceu,e,pegandoocopo,oesvaziousemtomarfôlego.Comosehouvesseingeridofogo,seupálidorostocoloriu, seus grandes olhos esverdeados acenderam-se de flamas devorantes, e, atirando-se paraHoremseb,pegou-lheamão,murmurandocomavozentrecortada:

—Oh! Horemseb, concede-me um olhar de amor, uma palavra de afeto... Não posso maissuportarestavida...Ama-me,talqualeuteamo,oudeixa-memorrerateuspés!

Ojovempríncipevoltou-se,semquequalqueremoçãoseespelhassenobelorosto.Seuolhar,serenoesorridente,mergulhouporinstantesnosolhosincendidosdavítima;enlaçandoobustodeNeftisparaperto,ecomaoutramão,dedoemriste,apontouacena:

—Olha!Pode-se,diantedessemaravilhosoquadro,pensaremoutracoisa?

Ocontactodoseubraçodeuaelaumfremirnervoso.

—Horemseb, sou cegapara tudoquantonãodiga respeito a ti—murmurou ela, passandoambos os braços em torno do pescoço do príncipe e tentando beijar aquela boca sorridente, quepareciaprometerventuras.

Comoquemetamorfoseado,Horemsebrecuou,comfulguraçõesameaçadorasnosolhos;umaexpressãodeinabordávelorgulhocrispou-lheoslábios.

—Insensata!—disse,desembaraçando-sedoabraçoerepudiando-arudemente.Semprecoma tua paixão louca e impura a perturbar osmomentos em que eu desejaria fazer-te partilhar doêxtasequemearrebataaalma!

Voltou-se,ecomumpequenomartelodebronzefezsoarumtimbredemetal.Imediatamente,umafiladeservos irrompeunopavilhão,e,enquantoumeunucoseapoderavadeNeftis,mudaecomoquebestializada,outrossedesvelavamjuntodopríncipeaquemrevestiramcomummantodepúrpura,colocando-lhesobreacabeçaumatiarainteiramenteincrustadadepedrarias,e,porfim,fixaram-lhe nas espáduas, com auxílio de correias passadas sob as axilas, duas asas douradassemelhantesàsdasesfingesassírias.

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Assim paramentado, Horemseb deixou o pavilhão e tomou assento num trono portátil,imitando o dos Faraós, que foi erguido e sustentado pelos ombros de oito homens. Precedido deportadores de tochas, o bizarro cortejo marchou através do jardim. De diferentes aléiasdesembocavamgruposdeambosossexos,trazendoânforasecopos,harpaseguirlandasdeflores,eseincorporavam,emcânticos,aoséquito.Afinalchegaramemvastaclareiradeareia,aotérminodaqual,sobumdosselmantidosobrecolunas,seerguiaumaltarbemalto, juntodoqualardiamperfumes em tripés igualmente elevados. Por uma escada disposta por detrás do altar, escravossubiram,carregandoHoremseb,ealicolocaramacadeiradouradaondeestavasentado,imobilizadoqualum ídolo, fixando,comgélidoesombrioolhar,a turbaqueseajuntavaaseuspés,eentreaqualcirculavamadolescentesenchendooscoposcomenervantebeberagem.

Imitandoasdançassagradaseoscânticosmaisusadosnascerimôniasreligiosas,oscasaisseaproximavamdoaltar,fazendolibações,e,apóshaveremsacrificadoaodeusmortalentronizadoali,iniciavamdesenfreadaronda,girandosobresipróprios,agitandoastochasouoscopos,reenchidostãologoeramesvaziados.Semdemora,verdadeirofrenesipareceuassenhorear-sedaquelachusmadesgrenhada, ofegante, que turbilhonava qual bando de demônios, ao clarão avermelhado dastochas e do alcatrão aceso nos tripés; o odor estonteante dos perfumes, amalgamado com asemanaçõesdovinho,comosuordessagenteexausta,formavaumaatmosferaabafadiçaquenãosedissipavamesmoàinfluênciadofrescornoturno.Nessevaporagitavam-seseresmaismiseráveisdoque irracionais; as danças haviam degenerado em orgia, que a pena recusa descrever nas suascenasodiosas...Apenasonovodeus,entronizadonoaltar,pareciainacessívelàsbrutaispaixõesporeledesencadeadas;impassível,mas,narinasfrementesdeselvagemsatisfação,seguiacomosolhosasperipéciasdabacanal...Equandoaquelamassahumana,ululante,começouarolarpelochão,edepoisaadormecerpesadamente,apenaseleficouaolhardoseualtoisolado,contemplando,comumsorrisodemofaecontentamento,adesordemobscenaehorripilantequereinavaemtornodele.

Depois, desceudoaltar e caminhou lentamenteparaamuralhado jardimquemarginavaoNilo. Chegado junto de uma porta, puxou o trinco e a entreabriu: ante ele estava a escada dasesfinges,aofimdaqualcorriamaságuasdorio,palhetadasdeouroerubispelosraiosdoSolquesurgia por detrás das montanhas. Como que fascinado, encostou-se à murada e fitou o astrobrilhanteque,esplêndidoevitorioso,emergiadastrevas,inundandoaTerracomtorrentesdefogoevida.OsraiosdouradosdodeusprotetordoEgitozombavam,espelhando-senatiarafaiscante,nomantodepúrpuraenasasasdouradasdopigmeuquetentavarivalizarcomseuesplendoreterno...Pobre estulto, frágil deus, perecível e cego, cuja alma obscurecida não dava passagem aos raiosesclarecedores da razão e do dever!Durante algunsminutos,Horemseb sonhou silenciosamente.Parecia-lhe ser um deus repudiado da sua luminosa pátria, e, por segundos, um sentimento devácuo,dedesgosto,delassitude,oinvadiu;mas,osgritoslongínquosdealgunsbateleiros,ofrêmitoda cidade imensa, acordando para o trabalho do dia, arrancaram-no bruscamente a essespensamentos... Fechou vivamente a portinhola e regressou ao palácio. Velho escravo, que oaguardava à entrada, levou-o ao quarto de dormir, ajudando-o a despir-se. Exaurido, Horemsebdeixou-secairnoleito,eadormeceu.

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IV

HOREMSEBEOSEUFEITICEIROOpavilhãoerguidonomenordosdois lagosdo jardimdeHoremseb, jádescrito, tinhaduas

câmaras: uma, demenores dimensões, que servia de quarto de dormir, comunicava, por estreitocorredor, coma edificação circular construída sobre estacas; a segunda, assaz vasta, rodeada dealtas janelas encobertas no momento por espessas cortinas abaixadas, de riscas vermelhas ebrancas.Aocentrodoaposento,destacava-segrandemesa,atulhadadepapiros,caixas, frascosemolhosdeplantassecas.Umalâmpada,alimentadaaóleo,iluminavafracamenteessadesordem,nomeiodaqualalentadogato,pretocomosefossefeitodeébano,estiravaaspataselásticas,fixandocomolhosfosforescentesocrâniocalvodeumhomemsentadopróximodalâmpadaemergulhadonaleituradeumdospapiros.Talpersonagem,magroemédiodeestatura,trajavalongavestimentadelãbranca,franjadanaextremidadeepresaaocorpoporumcintobordado;seurosto,consumidoe rugoso, era pálido, apesar da tez bronzeada, e indicava férrea energia; a testa, muito ampla,denotava o vasto espírito nele contido; sob supercílios cerrados, cintilavam dois olhos pardos,sombrios,profundos,plenosdeimplacáveldureza.

Entregue inteiramente aos seus trabalhos, desenrolou e leu diferentes papiros, e, depois,aproximandolargatiradecouro,traçousobreela,comumponteirodeferro,sinaismisteriosos,aomesmotempoquemurmuravanúmerosecifras,provadeestarprocedendoacomplicadocálculo.Aconcentração do sábio era tal, que não percebeu absolutamente haver sido aberta a porta deentrada e que Horemseb estava parado ali. A expressão do seu rosto não apresentava vestígiossequerdaquelagélida soberba tão suapeculiar; fixavao sábio comolhar repletodeadmiraçãoedeferência,e,avizinhando-se,disse,respeitoso:

—Eutesaúdo,mestre!

Oanciãovoltou-sevivamente,e,avistandoovisitante,benevolentesorrisoadoçouaexpressãoseveradoseurosto.

—Sêbem-vindo,meufilho,equeosImortaisprotejamcadaumdosteuspassos—respondeu,estendendo-lheamão.

Horemsebapertouessamão,e,sentando-seaoladodovelho,indagou,comosolhosabrilhar:

—Então,mestre,comoseachamtuasexperiências?Foiinfrutíferoteutrabalho?

Osábioesvaziou,aosgoles,oleitedeumcopo,e,pousando-onamesa,respondeu,satisfeito:

—Não,oGrandeSerabençooumeusesforços,ebemdepressaesperoconseguirmanejarasondasdosaromasnasutilezadesejada.Então,meu filho, teuardentedesejopoderáseratingido:conseguireidesvendar-teofuturoeopassado,estemenosinteressantedecerto,porissoqueapenasretratasofrimentoseprovaçõesjásuportados.

—Ah!Tadar,quantoaneloconhecerofuturoeassimilarinteiramenteessasestranhasleisquenosregem—murmurouHoremsebenquantofugitivoruborlhepassounopálidosemblante.

—Curiosidadelegítimaecompreensível,meufilho.Ofuturoéodestinodenossaalma,e,seforpossívelapreenderaemanaçãoqueonossocorpoastralexalanoEspaço,seráconhecido,porassim dizer, o peso-gravidade que decidirá de nossas ações, porque é a emanação, dominante evencedoradasoutras,queregenossosatos,gostosoupaixões.Cadairradiaçãoespecialdesenvolvesentimentosdiferentes;cadahomem,cadapovotemsuavibraçãoastralàpartee,deigualmodo,desdeapedra,todasasespéciesdeplantasedeanimais.Éesseprincípio—odordaalma—quemcriaaaversãoderaçaeaantipatiapessoalquetornaoserviciadoodiosoàvirtude,eestairritanteaovício.Aquepontoessearomaespiritualpodeinfluirnosatosesentimentos jáverificaste,meufilho,nasculturasdasfloresdoamor.Oaromavivificanteeexcitantedávida;oexcessoproduzamorte, cortando o fio vital, pois é amplamente sabido que um leito de flores émortal. De igualmaneiraquecadasentimentodestilanoEspaçocertaclaridade,cadaaroma,assimentendido,éraizdeumsentimento.Oodordáclaridadeesom:osomproduzamúsica.Cadasomtemseuaromaàparte, imperceptível, sem dúvida, para o corpo espesso e para os sentidos grosseiros e nãocultivadosdohomem,aindasobopesodavidamaterial,porémcujopoderéimenso.Emprovadaverdadedaminhaassertiva, lembra-tedequepessoasenfermaseprivadasdenutriçãopercebemmuitas vezes odores inacessíveis àsqueas rodeiam; igualmente,muitos animais têmoolfato tãodesenvolvido,quepodemseguiratravésdegrandesdistânciasapistadeumapessoaoudeoutro

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animal,guiando-sepelocheiroqueestesexalamparatrás.Todaluztemseuaroma-irradiaçãoebemassimossonsmusicais,eseseconseguiracharmeiodeaumentaropoderdasvibraçõesaromáticassobreossentimentos,poder-se-ádissiparassombrasqueobscurecemavistaeocérebro,ecriarsuficienteclaridadeparavislumbraroporvir.Osnossoscincosentidossãoexercitadospelohomembemconstituído,mas,cadaumdeleséagrosseiraraizcujasramificações,infinitasecadavezmaissutis,sepropagamportodooser,duranteavida,e,apósamorte,continuam,extraordinariamenteaguçadas, em seu corpo astral. Este corpo extraterrestre, aéreo e de indescritível flexibilidade,produz, por sua atividade, “sons” (quandopensa e semove), “luzes” diversas (quando trabalha eestuda), “aromas” quando impulsos daalma, jactos de vontade semanifestam, e, de tais aromasinternos, verdadeiro produto das qualidades adquiridas pelo espírito, nascem o amor, o ódio, ociúme,aabnegação,apaciência,obemouomal.Diz-sequeocheirodosangueatraiosanimaiscarnívoros; o odor reage sobre o sentido feroz do animal e lhe desenvolve a crueldade, de igualmodoque,nasbatalhas, o cheirodifundidodo sangueexcitaos combatentes, tornando-oscruéis,embriagando-osqualumvinho.Taisexemplosdevemfazer-tecompreenderqueaexalaçãodecadaser,unindo-seaoutrasdamesmaespécie, pode fazer subir os sentimentosaomais altograu,deigualmaneiraque,emumaorgia,asensualidadedeunsinflamaosoutros.Oodordoouroprovocasensaçõesquesechamam—avarícia,e,seocorpoastraldeumhomemestásaturadodessaaura,será dominado pelo dito vício. Tu sabes, meu filho, que vivemos muitas vezes, e que isso éindispensável para purificação dos odores que nos trabalham. Ora, o conhecimento da força, daintensidadedetaisaromas,dátambémapossibilidadedeprejulgarasvidasfuturasparaumabemextensaduração,porqueémuidifícildominaressesaromas instintivos, semviverumaexistênciaassaz regrada, que repila do exterior toda e qualquer vibração símile, que tornasse a lutaimpossível.É, pois, lentamenteque seprocessaadepuração, porque, desdequando, emnós, umsentimento acorda outros, produz umaromaque reage sobre nossos atos, ofusca-nos e influi emnossaspaixões.Homensháquefogemdomundoparaviveremdesertos,alimentando-sedeplantase raízes: são os desejosos de purificação dos aromas instintivos, e temem a tentação, isto é, asvibrações contagiosas, que, unidas às suas, os cegariam. Mas, também existem aromas quedestroem as emanações astrais, ensurdecendo-as, conforme te comprova o cheiro do líquido quemataqualquersensualidade,etepermitever,sememoção,umalindamulherdevoradadeamorporti.Convémacrescentarquetalméritonãoéteu,por issoquenãoéprodutode—depuração.Se,pois,euconseguirisolareescrutarteusodoresinstintivos,entãooteuporvirserádesvendado,teuscaminhos futurosestendidosaos teusolhos,porqueos juizesdoreinodassombras te impuseramexistênciassegundoaromas-exalaçõesdeteucorpoastralatéquetuosdominesesetornempurosqualoaromadosastros,quesãoimpossíveiseinabordáveisemsuaserenagravidade,tantoquantoaquelesqueosgovernam.Enquantoohomemnãodominaremsialutadosaromas,enquantoeledesejaravidamenteoqueeleatraideforadesipróprioelheexcitaaspaixões,nãoserásatisfeitonunca...Esmagar,mataromundoexterior,parafruirabeatitudeíntima,taléoresultadodavitóriadaqueles que não sãomais tentados, que nãomais se embriagam com os odores damatéria. Oespíritoencarnadoé,pois,oescravodocorpo,eenquantonãovencerastentaçõesquesemostramanteele,asemanaçõesdamatéria,retornaráavivernaTerra,sucumbindoàembriaguezeexpiandoemseguidaseusabusos,àsemelhançadasconsequênciasdaorgia,quedeixaocoraçãovazioeocorpoquebrantado.Umaspecto finalque frisar—concluiuTadarcomumsorriso.Quantomaisocorpo astral está intimamente ligado aos aromas da matéria, mais difícil se torna a morte e aseparaçãodasombraimperecíveldoenvelopecarnal,porqueocorpoastral,quenãoéaalma,esimahabitaçãodacentelhadivina,serácomoqueparafusadoàmatériaemdissolução.Poressemotivoé que os vossos padres preservam tão zelosamente os cadáveres contra a decomposição, e osembalsamamcomosperfumesmaisraros,esperandotornarmaisagradávelàalmaapermanênciajuntodoantigoenvoltório.Erroprofundo,deresto,porqueonecessárioéqueimarocadáver;ofogopurificatudo,éoúnicodestrutordosliamesqueunemocorpoastralàmatériagrosseira.

Horemsebtudoescutara,vibrantedeinteresseedeemoção.

—Oh! se pudéssemos ver,mestre, aonde nos impele no futuro a vontade dos Imortais! SefossepossívelpalestrarlivrementecomaquelesquenosprecederamnoEspaço!

Osábiomeneouacabeça.

—Àsvezes,mantenhoconversaçãocomalgunsdessesquedeixaramaTerra,evêmvisitar-me.Ai de mim! São bem cegos ainda, e por isso que podem predizer? Contudo, seus conselhos sãovaliososemederammaisdeumaidéianova,maisdeumaindicaçãoparaomeutrabalho.

—Tadar,eutesuplico,admite-mequantoantesaconstatartudoisso—exclamouHoremseb,comosolhoscoruscantes.

—Paciência,meufilho;otempodeteiniciaraindanãochegou,masviráembreve—disseomago,erguendo-seeapertandoamãododiscípulo,comoqueencorajando-o.

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Em seguida, aproximou-se de uma das janelas, e, levantando a cortina, olhou para fora, eacrescentou: — Amanhece o dia; vamos para junto das flores, Horemseb. Traz uma tocha, paraalumiar;atéqueaclaridadesejacompleta,teremostempodeprepararonecessário.

EnquantoHoremsebacendiaatocha,Tadarchegou-seaumaparadordeébanopolido,sobreoqualseencontravamfrascoscinzelados,poteseredomasdevidroefaiança,ebemassimvasosdealabastrodebocalarga.Pegouumdestesúltimos,umfrasco,eaindaalgunsobjetosmiúdos,esaiu,seguidopelopríncipe.Atravessaramodormitório,opequenocorredor,aotérminodoqualosábioergueu a tapagem de couro, e chegaram à construção circular. À luz baça do dealbar do dia,confundidacomaclaridadeavermelhadadatochaqueHoremsebfixaraaumgancho,pôdever-sequeocentrodopavilhãoestavaocupadoporumtanquecheiodeágua,emredordoqualcorriaumagaleriadechapasdecobre;àentradadocorredor,estagaleriaformavaumaplataformaemcimadaqualhaviadois tripés,umcofredemadeiraeduasaltasânforas.Opríncipecomeçoupor fazerogirodotanque,retirandoospanosquefechavamasaberturasdaconstrução;depoisveioparajuntodo sábio, que tirara do cofre um pacote de plantas secas, rosas e outras flores igualmenteressecadas,asquaisamontoounosdoistripés,deitandonestesoóleoodorantecontidonovidro,epôsfogoaoconjunto.Asplantassecas,encharcadasdeóleo,queimavamcrepitandoeexpandiramodor aromático de talmodo sufocante, que alguém, desambientado de tal atmosfera, teria caídoasfixiado. O sábio e seu discípulo não demonstraram, porém, qualquer alteração nesse ambienteirrespirável,eHoremsebajudouativamenteomestreaalimentaraschamas,pondonostripésmaisplantassecasemaisdoóleotrazidonopardeânforas.Quandoafinalofogoseextinguiu,restavanofundodosqueimadoresumresíduodecinzasdeóleo,formandoenegrecidamassagordurosa.Tadar,então, tirou do cinto uma patena de marfim, com a qual extraiu os detritos ainda quentes,colocando-osnovasodealabastroqueHoremsebsegurava.Quandoforamesvaziadososdoistripés,apagou-se a tocha e ambos se avizinharam do tanque, ao centro do qual a luz do dia, já plena,permitiadistinguirbizarraplantaquealidesabrochava.Otanque,delargaabertura,porémpoucoprofundo,estavacheiodeáguacomtransparênciadecristal;aofundo,umaamplaeredondacestade vime, atestada de terra, por cima da qual se elevavam, tímidas, algumas raízes de coloraçãosanguínea,edelasseprojetavamduasgrossashastes,umadasquais,debranco-leitosoecomoquepolvilhadadeprata,subia,vigorosaereta,cercadecinquentacentímetrosacimadoníveldaágua;osegundo talo, de rosa-pálido, coberto de uma lanugem avermelhada, enrolava-se em espiral deserpente emvoltada outra, e, a partir do lugar ondeaplanta atingia a superfície líquida, saíamfolhasdeumverde-escuro,estendendo-sesobreaágua, lembrando,pelasuaforma,adonenúfar,emboramaiores;aocimodashastes,viam-seaindafolhaseinúmerosbotõesquerecobriamquasetotalmente duas flores de todo desabrochadas e de tamanho pouco comum. A flor pertencente àhastebranca,largamenteaberta,tinhapétalasoblongas,espessasecomoquecheiasdeumidade,dealvuranotáveleparecendosalpicadadeprata;acorolaaliseformavanumaespéciedefruto,dofeitio de coração, lembrando um tomate, transparente, e com o colorido vermelho-sanguíneo. Asegundaflor,meiofechadaqualumatulipa,porémdezvezesmaior,pendiaparaaágua,comoqueforçada pelo seu próprio peso; suas pétalas, de azul-pálido, eram delgadas e transparentes,mastatuadas de veios azuis quepareciam semeados degotinhas de orvalho; longos estames rosados,qualahaste,vergavamemcachoforadaflor.

Libertando-se das sandálias e da túnica, Tadar desceu os dois degraus que facilitavam oacessoaotanque,e,ajoelhandonaágua,pegoucomambasasmãosanegramassaqueHoremseblhealcançavanovasoraso,erecobriuzelosamenteasraízesatéàalturadostalos.Quandoterminoua recobertura, devidamente acamada com o auxílio das mãos, voltou à galeria, retomou asvestimentaseregressoucomopríncipeàprimitivacâmara.

—Osbotõesvãoentreabrirbemdepressa;dentrodeduasnoites,nomáximo,émistercortarasflores—disseovelho,sentando-se.Pensastenisso,Horemseb?

— Sim, mestre. A moça que nos deve servir está preparada; mas, para a próxima vez,escolherei entre as escravas, porque receio que afinal se torne muito notada a desaparição dejovens que têm parentela. Demais, a origem não influi, desde que o sangue provenha de umavirgem.

—Semdúvida—respondeuTadar,que,levantando-se,apanhoudesobreoaparadorumpardeânforaslavradas,porémdeformatodiferente,enchendoumacomincoloretransparentelíquido,eaoutracomumlicoravermelhado.Fechou-ascuidadosamenteeasdeuaopríncipe.

—Eisaquiasbebidas,meufilho.Naterceiranoiteapartirdehoje,eladeveestaradormecidasobreomuleitodeflores.Orestotuosabes.

— Sim, mestre, nesse lapso de tempo deverá esvaziar o conteúdo desta ânfora. Serásobedecido.

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—Amulherquedestinasaosacrifícioéadapelealva,olhosesverdeadosecabelostifônicos?Euavipasseandonograndejardim,nashorasdoteurepouso.

—Sim,mestre:éela.

—Bemformosacriatura!Teucoraçãoetuasmãosdeixarãodetremernomomentodecisivo?—perguntouovelho,comsinistrosorrirefitandoseuaceradoolharnosolhoslímpidoseclarosdeHoremseb.

Estefezumencolherdeombros.

—Nãoreceiocoisaalguma;omeusangueémais friodoqueaáguado tanque,e somentepelos olhos sei fruir o amor.Nahoraprecisa, tudo será expedito.Agora,mestre, até depois.Vourepousar.

E,apoderando-sedasduasânforas,saiu,dirigindo-selentamenteaopalácio,semseaperceberdequeumvulto, escondidonosarbustos, lhehaviaespreitadoa retiradadopavilhãoe seguiaospassos,qualsombra,esósedetevequandoHoremsebatingiuoterraçoedesapareceunointeriorda casa. O espião, que deslizara sob o arvoredo com a agilidade de serpente, era um rapazelhoaparentando quinze de idade, magro e assinalado por esse selo de senilidade precoce quecaracterizava os servidores de Horemseb. Nesse momento, os traços fatigados estereotipavamsombriaagitaçãoeoolharcomqueacompanhouaaltaeeleganteesbeltezdopríncipebrilhavacomira selvagem e mortal. Logo que se assegurou da entrada do senhor, o adolescente escravo seinsinuoucomprecauçãonorumodeoutrapartedosjardins,eocultou-senosarbustos,observandoatentamenteaaladopalácioquelheficavadefronte.

Permanecianessepostodesdeumahoraantes,quandoumaportaabriuparadarpassagemaChamus,ochefedoseunucos,seguidodeNeftis,comaqualtrocoualgumaspalavras,voltandoparaointerior,enquantoeladesciaosdegrauseencaminhavaseuspassoslentosparaaaléiaarborizadaqueterminavaaofundodojardim.

Cabeça abaixada, tristonho desespero espelhado na fisionomia, Neftis andava ao acaso;sombriospensamentosagitavam-nae,soboexcessodesofrimentosmoraisefísicosqueaabatiam,suarazãoserevoltava,maldizendoodiaemquearosafataltombaraemseusjoelhos,nabarcadeTuaá,pois,desdeessahoranefasta, jamaisconhecerarepouso,eoporvirse lheanteviasombrio,fazendo descrer das venturas sonhadas.Um som rouco e ininteligível, que ressooumui próximo,interrompeusuasmeditações.Imediatamente,sentiuquealgolhepuxavaaextremidadedaroupa,ereparando tratar-sedeumrapazinho, ajoelhado, comumdedo sobreos lábios, comoqueapedirsilêncio,ematitudesúplice,sorriu-lhebenévolae,comexpressãoindulgente,indagou:

—Quedesejas,pobrecriança?Dizesemtemor.

Intraduzível contração de ódio, amargura e desespero plicou o rosto amortecido doadolescente;moveuacabeça,e,comeloquentegesto,mostrouoscaracteresquedesenhoucélerenaareiacomumavarinha.Comindizívelespanto,Neftisleu:

—Soumudo, porqueme cortaram a língua, tal como fazem a todos que o servem. Se nãodesejasmorrer,deigualmodoquemorreuminhairmã,etodasquepereceramantesdeti,foge!

—Tusonhas!—murmurouela,recuando,pálidaetremente.Comosabestu,isso?

Orapazinhoapagourapidamenteasletrastraçadas,eescreveudenovo:

— Eu o odeio e espiono; contar-te nossa história demoraria muito. Há trinta e seis mesescaímosaqui,eueminhairmã,belaeinocentequaltués;separaram-nosemutilaram-me.Certavez,muitassemanasdepois,consegui rastejaraté juntodela,eentãomeconfessouamaromonstroapontodequemorrerporelelhepareciaventuroso,eque,apóshaveringeridoumabebidaqueelelheoferecera,talpaixãoaumentavamaisainda.Foge,senãoqueresdesaparecer,comoaconteceuaminhairmã.Ignorasqueobruxonãodeixavivernenhumadesuasvítimas?

Neftisemitiuumsufocadogrito,e,arrancandodacinturaumarosarubraqueHoremseblhedoara,atirou-aparalonge,horrorizada.Omudoapanhouaflorealançouraivosamenteaumcantodo palácio; depois, nivelou a areia com ambas as mãos, e, remergulhando no bosquete de ondesurgira,desapareceucomosilênciodeumfantasma.Cambaleante,comocrânioemfogo,ajovemarrastou-seatéumbancoderelvaealisedeixoucair.Luzintensasefizeraemseuespírito:

— Sim — murmurou —, cada vez que tomo a infernal bebida, julgo sucumbir à insensatapaixão:dariaminhavidaporumseusinaldeafeto,parasentir,umavezquefosse,seuslábiossobre

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osmeus.Mas...nada;ele ridosmeussofrimentos,equandoestiver fartodemever,matar-me-á.Devofugir;porém,dequemodo?Depois,separar-medelenãoépiordoqueamorte?

Espalmou asmãos no rosto e chorou amargamente.Não saberia dizer quanto tempo assimpermaneceu,empolgadaemsuador,quandoumsomagudoeprolongadoa fezestremecer:eraotoquederegressar,esoboimpulsodohábito,ergueu-seeretomouocaminhoparaopalácio.Mas,reentrandonaprisão,deixou-secairexaustanoleitoderepouso.Terrível lutasedesencadearanoíntimo:a razãodiziaà infelizqueestavaemperigodemorte;queabusavamodiosamentedesuadebilidade feminina; que devia buscar ummeio de fugir;mas, a todos esses justos raciocínios ocoraçãorespondia:

—Não;antesmorrerdoqueabandoná-lo.

É que o terrível e enfeitiçante veneno, que lhe circulava no sangue, ligava-a ao bruxoencantador.Pormomentos,Neftisacreditavasucumbiraopesodasduascorrentesdeidéias.Opeitoarfante,cálidosuorumedecendoafronte,dolorosaopressãogarrotava-lheocoração.

—Não:hojerecusareiocopo,quandomeforapresentado—balbuciouela.

E, completamente exaurida, adormeceu, num sono pesado e febril. O ruído dos passos deHoremsebeaclaridadedastochastiraram-nadoentorpecimento.Vacilante,levantou-seeseguiuopríncipe;mas,quandosentada“vis-à-vis”comele,quandoseuolharse firmounaquelebelo rostosorridente,naquelesolhosquerefletiamasuaveserenidadedocéu,todaasuaaversãoseevaporou,asurdarevoltafundiu-seemadoraçãotácita.Terminadaarefeição,ovelhoescravo,únicoaquemera permitido pegar no vidro da misteriosa bebida, trouxe os dois copos e o par de frascoscinzelados.Aovê-los,Neftisrememorouosanterioresraciocínios,e,comsuplicantegesto,repeliuaporçãoqueopríncipelhedava.Este,comindisfarçávelespanto,deixouverumbrilhodeameaçanoolhar;mas,dominando-seprestamente,ordenou,porumgesto,aretiradadosserviçais,edisseaovelhoescravo:

—Vai,emandaprepararaminhabarca,enquantoescutooscânticos.Depoisvirásbuscaroscopos.

Ficandoasóscomajovem,aproximou-se,enlaçou-apelacintura,e,curvando-sequaseaunirasfaces,ciciou:

— Desenruga tua linda fronte, enxuga as lágrimas, minha bem-amada; bem depressa teuincendidocoraçãoreaveráacalma,nossasbocasunir-se-ãonessebeijoquedesejas,eadormecerásditosa.

Trêmula,subjugadaporesseprimeirotestemunhodeternura,ajovemmalpercebeuosorrisoestranhoesinistroquepairavanoslábiosdeHoremsebquando,porsegundavez,pegouocopoeoavizinhoudaboca.Fascinadapeloolhar,qualopássarooépelaserpente,Neftisnãomaisresistiu,ebebeu docilmente o conteúdo enfeitiçado do copo. Relâmpago de júbilo perpassou nos olhos dopríncipe, que, retirando o braço do busto da jovem, sorveu com delícia o conteúdo do seu copo,saindo em seguida, acompanhado de Neftis, com destino ao pavilhão precedentemente descrito.Desta vez, o tabuleiro de relva estava iluminado por tochas e fogo de resinas, a cuja luzavermelhadaasdançarinasformavamgruposegirosgraciosos.

Ajovem,porém,nãoviucoisaalgumadetalespetáculofantástico:acocoradaaopédoleitoderepouso,empolgava-seemtumultuosascogitações.Nuncasofrerátantofisicamente.Sentia-senumbraseiro, fogo liquido corria em suas veias, um formigar doloroso percorria-lhe o corpo, e, porinstantes,arespiraçãolhefaltava.Apesardetal,ospensamentosqueahaviamtrabalhadoduranteodiavoltavam,momentâneos,àmenteobscurecida; compreendiaagoraqueos sofrimentoseramconsequência da amaldiçoada bebida; o aviso do adolescente escravo retornava à memória, e aapreensão de desconhecida morte causava-lhe desfalecimento. A representação foi curta, eHoremseb bem depressa levantou-se, e, estendendo uma rosa a Neftis, disse-lhe, com amistososorriso:

—Atébreve,muitobreve,epensanaminhapromessa.

Neftis não respondeu; mas, emudecida por instintivo sentimento, aproveitou a confusãomomentânea,resultantedaretiradadopríncipe,paraafundaremumcerradomatoaofundodoqualse encolheu silente. Ouviu a voz de Chamus, chamando-a; depois, tudo recaiu em silêncio.Evidentemente,segurodequenãopoderiaelafugir,renunciouaprocurá-lanaocasião.Afriagemdanoiterefrigerou-aelhedeualívio;opensamentotornou-semaislúcidoeconcentroudenovonosacontecimentosdaqueledia.Apesardo firmepropósito,elabebera,enoamanhãcederiadecertooutra vez, e recairia nessas dores infernais, que parecia terem alívio apenas nos braços de

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Horemseb...Mas,aesseancoradourochegariaelaalgumdia?Inopinadopensamentolheacudiu:eseelapudessebeberolíquidodaânforaazul,usadopelopríncipe,quesemostravasemprecalmo,isentodepaixãoedesofrimento...Oh!talvezencontrassetambémorepouso!Mas,comobuscarabebidalibertadora?

—Devo tentar—murmurou, abandonandoo esconderijo. Trata-se apenasde encontrar seuaposento e de corromper o velhoHapu.Ah! quiçá a rosamaldita quemedeu sirva para algumacoisa.Casocontrário,estrangulareiovelho.

Com ágil celeridade de gazela, correu para o palácio, e,margeando-o com precaução, veiopassarpróximodeumterraçoiluminado,emcujosdegrausdeacessoestavasentadooadolescenteescravoquelhederaomatinalconselhodefuga.

—Hator, graças te sejam dadas pela tua visível proteção— vibrouNeftis em pensamento,apropinquando-sevivamente.Éesteoseuapartamento,etuoobservas?

Orapazinhofezsinaldeassentimento.

—EHapuestálá?

Emresposta,moveuacabeçaemgestoafirmativo,ecomamãoindicouqueeladeviadirigir-separaadireita.Semperderumsegundode tempo,Neftisprecipitou-seno interior, rumoupeladireitaeachou-senumpequenogabinete,queprecediaodormitório,visívelatravésdeumaportacujo reposteiro estava erguido. À luz de várias lâmpadas, percebeu o velho escravo agachadopróximodolimiar,cochilando.Nãodistantedele,sobrepequenoaparador,osdoisfrascoscinzeladoseoscopos.UmsuspirodedesafogoInflouopeitodajovem.Tirandoarosadacintura,aproximou-se,deslizandoqualumfelinosobreaespessaesteira,ecolocouaflorsobasnarinasdovelho.Esteaspirou muitas vezes o aroma atordoante, e, depois, despertou em sobressalto; seu terno olharvacilavaestranhamente;asamplasnarinasdilatavam-se,eumaexpressãobraviaebestialretesava-lheosfanadostraços.ArrebatandoarosadasmãosdeNeftis,eleaapertoudeencontroaonariz,voltou-se,deualgunspassoscomoseestivesseébrio,apoiando-seàparede.Elacorreuaomóvel,e,pegandoofrascoazulbebeuoconteúdoatéaderradeiragota.Amedidaquedeglutiaamisteriosabebida, delicioso frescor se espalhava no abrasado corpo.Depois, presa de subitânea debilidade,caiusemsentidos.Estedesfalecimentofoicurto,porém.

Ao termo de quinze minutos, reabriu os olhos, e levantou-se, calma; um sentimento debeatitudehaviasubstituídoasdoresmoraisefísicasqueadevoravamOfogoquelheesbraseavaocérebroestavaextinto:friamente,lucidamenteelaavaliavaasituação,relembrando,comprecisão,cada detalhe do passado, e compreendia estar duplamente perdida, se Horemseb descobrisse aautoriadoatoqueacabavadepraticar.Paraevitarhorrívelmorte,deviafugirnessamesmanoite.Opensamentodeabandonaropríncipenãoadetevemais,ainsanapaixãoporeleperderaaforça,eaiminência do perigo aguçava-lhe a energia e as faculdades. Todas estas reflexões, longas dedescrever,tiveramaduraçãodesessentasegundos.Friaeresoluta,Neftis,voltando-se,examinouoaposentocombrilhanteolhar:estavasó,poisovelhoescravodesaparecera.Então,pegandoofrascovermelho,quenofuturo,quiçá,lhepoderiaserútil,pôsàcinturaumpunhalquedivisarajuntodoleito do príncipe, e envolveu-se em amplo capote escuro, atirado sobre uma cadeira, cujo capuzdesceuparaacabeça,efugiuparaojardim.Oplanoestavatraçado:HoremsebpasseavanoNilo,e,ao regressar, devia abrir a porta de comunicação com a escadaria das esfinges... Por aliempreenderiaafuga.

O acaso foi-lhe propício. Orientou-se assaz rapidamente, e, ao chegar junto da porta,encontrou-a entreaberta. Chamus, o chefe dos eunucos, aguardava pessoalmente o retorno dosenhor: de pé, no último degrau, sondava as trevas que amortalhavam as águas. Aproveitando ainesperadaajuda,Neftisescapuliu,e,comaagilidadedeumfelino,contornouaesfinge,apassosmáximos,eencolheu-senasmoitasquemargeavamomuro.Ummomentodepois,ouviuoeunucoressubiraescadaria,esóentãoprosseguiunamarchade fuga,rastejandocomprecaução...Mas,aindanãoestavalonge,quandoestremeceuderepenteeseacocorou,cabeloseriçados,nasombradamuralha.UmclarãovermelhosurgiranoNilo,edessesdoisolhossanguinolentostãoconhecidosdela,equeanunciavamaaproximaçãorápidadabarcamaravilhosa,naqualfixouoolhareondeviuopríncipe sentado sobodossel, como seubelo rosto impassível.Olhando-o, amargoepungentesentimento contraiu o coração damoça; o sangue rebelde nãomais obscurecia seu raciocínio; oencantamentoterrívelforaroto.E,noentanto,sentiaqueesqueceressehomemerabemdifícil.

—Oh! Horemseb! — balbuciou, com os lábios trêmulos — necessitas acaso de venenos efeitiçosparatefazeresamado?

Quandoabarcasedistanciou,ajovemreergueu-seerumouparaacidade,comarapidezdecorça,ansiosaparaatingiracasadotio,aliencontrarAnúbis,edelecolhernotíciasdacasa,e,se

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possível, ainda nessa mesma noite, embarcar para Tebas, sem ser avistada por ninguém. Osconfidentesdopríncipeprocurá-la-iam,no intuitode reaver o frasco ematá-la, dissonão tinha amenordúvidaemseuespírito.IgnorandoamortedeNoferura,eranodomicíliodestaquecontavarefugiar-se.

O Sol irrompia quando chegou à residência deHor. Conhecendo bem o interior do prédio,dirigiu-se aumaporta ocultaquedava acesso ao segundopátio, e, na ruelaque conduzia a estasaída, a mesma providencial ajuda que a protegera na fugida, fez-lhe encontrar Anúbis.Reconhecendoa vozda suaquerida senhora, que julgavamorta, omoçoescravoquaseperdeuojuízo.FoicommuitocustoqueNeftislheimpôssilêncio,elhearrancouanotíciadequeSetathaviafalecido,edeestarotioemviagemporalgunsdias.Porseuturno,ocegocompreendeuqueNeftisqueriadeixarMênfisdespercebidamente,edeclarouafirmeresoluçãodeacompanhá-la,aindaqueaofimdomundo,informandoque,sefossemimediatamenteaoembarcadouro,poderiamconseguirlugaremumbarco,carregadodetrigo,cujopatrãoeradesuaamizadeeseguiaparaTebas.Umahora mais tarde, a fugitiva e o ceguinho estavam instalados a bordo de uma dessas alentadasembarcações que descem oNilo carregadas de gêneros.O frasco delator e as jóias que a jovemtraziaaofugirestavambemguardadosemgrossosaco,presoaosombrosdeAnúbis.

Mênfis haviamuito desaparecera no horizonte, quando o rapaz lembrou-se de comunicar àsenhora a morte de Noferura. Embora ferida no coração por essa segunda mensagem fúnebre,Neftisemnadaalterouoseuplanodefuga,poisRomacontinuavasendoseucunhado,e,portanto,suacasaumasiloseguroeconveniente.Orestover-se-iaaseutempo.Mas,quebrantadapeladuplaperdaquelheforacomunicada,Neftisapoiou-seaumdossacosdetrigoechorouamargamente.

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V

OBEIJOMORTALRegressando do passeio, Horemseb ficou muito surpreendido por não encontrar o velho

escravoacocoradoàentradadodormitório,conformeestavahabituado.Quesignificavasemelhantenegligência por parte deHapu, omais exatodos servidores, o únicoque toleravano seu serviçoíntimo?Sobrancelhasfranzidas,percorreucomoolharoaposento;mas,subitamente,estremeceu,e, com arregalados olhos, viu a preciosa ânfora azul caída no chão. Pegando-a, agitadamente,verificou estar vazia, e uma outra mirada ao aparador mostrou haver desaparecido o frascovermelho.Comumasurdaexclamaçãoderaiva,regougou:

—Ah!miserável cão, ousaste tocar nos segredos do teu senhor!Eu te farei pagar commilmortesatraição!

Empunhandoalâmpada,esquadrinhouosaposentoscontíguos,depoisoterraço:tudodesertoesilencioso.Premindodecólera,precipitou-separao jardim,e iadirigir-seaopavilhãovizinhoeapitar, chamando o chefe dos eunucos, quando, ao primeiro passo na aléia, esbarrou em algoestendido no solo e que por pouco lhe teria dado uma queda. Abaixou-se, para identificar oobstáculo,e,comumnovoassombro, reconheceuovelhoHapuestirado,coma facena terraeamãodireita convulsivamentecomprimidacontrao rosto.Agarrandooanciãopelocintodepano,Horemseboarrastouparaoterraço,trazendodepoisalâmpadaparaalumiaroImobilizadocorpo.Aodobrar-se,paraexaminarmelhor,umfortearoma,bastanteseuconhecido,feriu-lheoolfato,e,comgrandeesforço,desviouamãodoetíope,quepareciaretorcidaparaorostocrispado,enaqualse via uma rosaquase esmagada, cujas pétalas,murchas e estraçalhadas, se dispersavam sob osdedos.

—Ah!Quesignificaestenovomistério?—murmurouHoremseb,endireitando-se,inquieto.Dequemodosemelhante rosaveio teràsmãosdestehomem?Teria sidonodesígniode iludira suacomprovadafidelidadequelhederamaflor?Aproveitandoentãooaturdimentoproduzidonosseussentidos, fracos e desacostumados a este perfume, um malfeitor teria esvaziado o vidro azul efurtadoovermelho.ÉmisteracordarHapu,afimdesaberoqueocorreu—prosseguiu,sacudindooescravo,quecontinuava inerte.Por todasasdivindadesnefastas!Creioqueovelhobrutoaspiroudemasiado veneno do perfume e que a senil carcaça sucumbiu em consequência — engrolou opríncipe,dirigindo-seapressadamenteàgaleriaposterioraodormitórioenaqualnumerososservosvelavam,agachadospróximodostripésespargidoresdeperfumes.

Àordemdopríncipe,levantaram-seeseguiram-noaoterraço.

— Transportem-no, seguindo-me, à casa do sábio — ordenou Horemseb, apontando Hapu,aindaestiradoesemmovimento.

Minutos depois, os vigorosos carregadores depuseram o inanimado corpo do etíope naprimeiracâmaradopavilhãodeTadar.Depois,despedidospelopatrão,regressaramaopalácio.

Nessemomentodasaída,osábioapareceunolimiardogabinetecontíguo.

—Queacasoteconduztãoinopinadamente,meufilho?—Indagouele.

—Perdoaperturbar-te,mestre,mas,umIncidentesuspeitoocorreuduranteaminhaexcursãonoNilo.

EHoremsebrelatousucintamenteoacontecimento,eterminouporpediraTadarquefizesse,sepossível,tornarasiovelhoescravo,afimdesaberquemlhederaafloreprovavelmenteroubaraaânfora.Escutando-o,osábioexaminavadetidamenteHapu.

—Devetersidoumamulheraautoradoaudaciosofurto,eindispensávelsetornaimpedirquenosaborreça—disse,meneandoacabeça.Nãotesurpreendas,meufilho,doqueacabodetedizer.Porduasvezes,linosastrosquepenosaslutasnosesperam,eque,porumatraiçãofeminina,perigode morte ameaçar-nos-á a ambos. O acontecido agora bem pode ser o primeiro passo paraconsumaçãodopresságioceleste.

Horemseb empalideceu ligeiramente, mas, sem responder, ajudou o assírio a reanimar oescravo.Pormuitotempoforamvãososesforços;nemascompressasdeáguafria,nemasessênciascom as quais friccionaram a testa e as têmporas do inanimado produziram efeito. O príncipe

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começava a tremer impaciente, quando, enfim, Hapu suspirou, reabriu os olhos e sentou-se pormovimento próprio.Mas, o olhar era inexpressivo e aparvalhado; braços e pernas tremelicantes.Tadar,então,apanhoupequenocoponoqualderramouumpoucodeleite,retiradodegrandejarradetrêsasaspostanumtripéfeitodemadeira,eadicionoualgumasgotasdeincoloressência,edeua beber ao preto a mistura, o que este fez com avidez. Quase instantaneamente, o olhar senormalizoueamemórialhevoltou,pois,reconhecendoosenhor,deuumgritolúgubre,eatirando-seaosolo,orostonaterra,gemeu:

—Perdoa-me,senhor;tempenademim.

—Confessa,semocultarnada,oqueaconteceu,etalvezeutenhamisericórdia—respondeu,severo,opríncipe.Mas,guarda-tededissimularouesconderaverdade—acrescentou,comolharsombrio.

—Tudo, tudoquantoseiserádito—bradouovelhoescravo,retorcendo-sede terror.Euteesperava, senhor, e, receio, estava cochilando, quando extraordinária sensação fez-me reabrir osolhos:oaromademilrosasenvolvia-mesufocante,efogopareciaderramadonomeusangue.Todoenleadopercebientãoamulherruiva(comaqualfazesarefeiçãodanoite),depé, juntodemim,mantendo sobminhas narinas uma flor, que agarrei, erguendo-me semdemora.Não sabia o quedesejava,mas,umavezlevantado,sentiumaterríveltonteiraeumatremuraemtodoocorpo,quemeobrigouaencostar-meàparede.Vi,então,a jovem tifônicaprecipitar-separaaânforaazulebeberoconteúdo,caindo,ela,quaseimediatamente.Eu,aoverpraticadoumcrimequemecumpriater impedido,penseiunicamenteem teavisar, senhor,oupedir socorro.Nãomerecordodo localparaondecorri,respirandosempreaflormaldita,quepareciacoladaaomeunariz,esentindocomoqueumatempestadeemredordaminhacabeça...Depois,perdianoçãodascoisas.Eistudoquantosei,senhor,osdeusesImortaissãotestemunhasdisso—concluiuovelho,chorandoamargamente.

Horemsebescutaracrispandoospunhos.

—Considero-te Inocentedeculpa,Hapu, eperdôo—disseaocabodeum Instante.Mas, aessamulheréprecisoapanhareencarcerá-la.Feitoisto,voltareiafalarcontigo,Tadar.Etu,Hapu,segue-me.

Quaseacorrer,opríncipevoltouaopalácio,efoidiretoaoaposentodeNeftis,queencontroudeserto.Desesperadodefúria,fezchamarHapzefaáeChamus,maltratoubrutalmenteochefedoseunucos e ordenou as mais minuciosas pesquisas. Acompanhados de escravos, empunhandoarchotes, percorreram primeiramente todo o edifício, depois os jardins, sondando, fossando cadarecanto. Tudo infrutífero: Neftis não era encontrada. Horemseb, que, lívido, espumando de ira,supervisionaraedirigirapessoalmenteasbuscas,nãotevemaisdúvidas:ajovemlograraevadir-se,levandoconsigoapreciosaedenunciadoraânfora.OSolsurgiaquandooprínciperetornou,enfim,àpresençadosábio,e,esgotadoderaivaefadiga,deixoucairocorponumacadeira.

—Amiserávelfugiu.Quefazeragora,Tadar?Éprecisocortarasfloressagradas,eavítimapreparadadesapareceu!—disse,passandoamãopelatestainundadadesuor.

—Éfatalcontratempo—contestouosábio,comexpressãosombria.Mas,nãosendopossíveladiaraoperação,porserindispensávelregarcomsanguevirginalosbotõesdaflor,escolherásentreasescravas, cantorasoudançarinas,alguma inocentecriaturaaquem farás ingerirabebidaquevoupreparar.Agora,meufilho,vaiedormealgumashoras,poisestásesgotado.

—Tudoseráfeitosegundoteusdesejos,mestre.AntesdoSolposto,voltareipararecebertuasinstruçõesfinais.

Deretornoaosaposentos,opríncipemandouvirChamus,quenãosefezesperar.Adespeitodas numerosas contusões que lhe marcavam o pescoço e o rosto quadrangular, o homem deconfiança prosternou-se ante o senhor, com todas as exterioridades de adoração e respeito.Horemseb, que caminhava pelo aposento, braços cruzados, parou à frente dele, e disse, em vozvelada:

— Foste culpado hoje de inominável negligência, mas, em atenção a teus longos e fiéisserviços,queroconservarconfiançaemti.Antesdoescurecer,trarásaquiumajovemescrava,àtuaescolha,desdequesejabela,virgememaiordequinzedeidade.Alémdestaincumbência,àhoradarefeição desta noite, distanciarás todos os servos, e vigiarás para que, até amanhecer o dia,ninguémponhapésnosjardins.

— Senhor, espero que fiques satisfeito— respondeu o eunuco, obsequiosamente. Comprei,ontemdemanhã,umajovemdeescassasquinzeprimaveras,tãobelaquantoaprópriaHator,filhadeumanúbiaedeumegípcio,conformeassegurouovendedor.

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—Estábem;seiqueésconhecedor,erecompensareiteuzelo.

OdiaestavaavançadoquandoHoremsebdespertou,lépidoebemdisposto.Banhou-se,vestiucomapuro,erumoulogoparaamoradadosábio;mas,antesdepenetrarnopavilhão,foiàpirâmidedepedra,jádescritaanteriormente,queseerguia,circundadadealtasárvoresedetufos,napartesolitáriadojardimsituadopordetrásdopequenolago.Nãolongedapirâmide,haviaumacabanadebambu,naqualdoisvigorosospretos,dearabobalhado,estavamsolidamentepresosacorrenteseque,avistandoosenhor,seprosternaram,rostonochão.

Horemsebsoltou-lhesascadeiase,seguidoporambos,penetrounapirâmide,logoiluminadapelaluzdemuitosarchotesacesospelosdoisnegrosedistribuídosporváriosprendedoresdeferrofixados nas paredes. Via-se então que, tanto no interior quanto externamente, a misteriosaconstruçãoerarecobertadelajesdegranito,eque,nocimodocone,haviaumaaberturaredondaservindodechaminéoudecondutodear.Aocentrodasala,sobredoisdegrausdepedra,estavainstaladocolossalídolodebronze,representandoumhomem,sentado,mãosnosjoelhos,acabeçacobertacomumbonépontudoeprovidodechifresdetouro.Entreasduaspernasdaestátua,abriaumaestreita portinhola debronze, dando acesso a umaespécie de forno, onde os ditos escravoscomeçaramaintroduzirladrilhos,rodeando-osdemadeiras,resina,palhaeoutrasmatériasdefácilcombustão.Deixando-osentreguesàsuatarefa,Horemsebsaiu,fechandoaentradaporumagradeque,dandopassagemaoar,lhesimpediaqualquertentativadefuga.Depois,seguiuparaopavilhão.

—Vejo,peloteuaspectosatisfeito,estartudoarranjado—disseTadar,sorrindo.

—Sim,mestre,evimapenasperguntarcomo,istoé,emquedosesdevodarabebidaquemeenviaste.

— Três copos bastarão, mas, igualmente, dar-lhe-ás aquele ramo — respondeu o sábio,apontandoumvasosobreamesa,noqualvicejavamnumerosasrosasrubras.

—Então,atélogo,mestre.Prepara-te.AntesqueRaressurjadastrevas,trareiavítima.

Permutandocomovelhoamigávelsaudação,opríncipeapanhouasfloresesaiu.Chegadoaoterraço vizinho ao seu apartamento, apoiou os cotovelos à balaustrada, colocando as rosas noparapeito, e imergiu em profundo devaneio. Quem o contemplasse assim, sério e calmo, olharlímpidoetranquilo,comoqueperdidonaadmiraçãodaNatureza,teria(certo)supostoqueaalma,puraeentusiasta,daquelebelomoçoseelevava,pelopensamento,aummelhormundo,bemacimadasmisériasedastorpitudesterrestres.Quempoderiasuspeitarqueaqueleserenosonhadoreraumcriminosoenrijecido,queseapresentava,comamaiorquietude,paraperpetrarodiosodelito,equesóinspiravaamorparamataravítima?

Ligeiro rumorarrancouopríncipedodevaneio.Atentandoparao ladodeondeprocederaoruído,avistouChamus,pordetrásdoqualestavaumvultofeminino,velado.

—Senhor,eisaquiajovemdequemtefalei—anunciouoeunuco,que,empurrandoamoça,aomesmotempoquetiravaovéu,acrescentou:—Andaparaafrente!

Trêmulaeperturbada,ajovemfezadevidareverência,e,depois,permaneceudepé,braçoscruzados,olhosansiosamentefixosnopríncipe,oformidávelsenhordoqualseudestinodependia.Eraumadeslumbrantecriatura,dessasqueoOrienteproduzàsvezes,desabrochanteflorhumana,naprimeiraplenitudedaformosura.Flexíveleesbelta,quaseaéreadeformas,masadmirável;rostoalongado, de colorido tão transparente que parecia querermostrar a circulação do sangue sob apelebronzeada;espessacabeleiranegrapresaporfrágilargoladeouroacair-lhepelasespáduas;grandesolhosaveludados,docesemedrososquaisosdeumagazela,franjadosdecílioslongosquefaziamsombranasfaces.MesmoogeladoolhardeHoremsebiluminou-senumclarãodesurpresaadmirativa,àvistadetãoadoráveladolescente;mas,nenhumafibradeseucoraçãosecontraiudepiedade, pensamento algum de pesar para com aquela vida juvenil, que tencionava destruir, lheperpassoupeloobscurecidocérebro.

—Estou satisfeito,Chamus—disse, despedindoo eunucodemodobenévolo e curvando-separa a linda escrava, a quem dirigiu escrutadora mirada. A moça, ante esse olhar perquiridor,ajoelhou,fixando-onummistodeadoraçãoemedo.

— Ergue-te, criança, e não tremas assim; teu senhor te estima— disse, com um sorriso eestendendo-lheumadasmãos,queelabeijoucomunção.

NovosorrisoerroupeloslábiosdeHoremseb,aquemtaladoraçãoapaixonadadivertia,semque o atingisse jamais, porque tal era o seu feitio. E, sem remorso, nem pesar, fundiu um olharfascinador nos olhos cândidos da moça escrava. Sentando-se num banco, fez aceno para que

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tomasse lugar num tamborete, deu-lhe o traiçoeiro ramo de rosas que estava no parapeito, eencetou amistosa conversação com a indefesa vítima, perguntando-a sobre antecedentes, nome,parentela, etc. A pequena escrava, perturbada, intimidada, respondia de início, hesitante,mas, apoucoepouco,desembaraçou-seefezingênuorelatodosacontecimentosdasuacurtaexistência,atéomomentoditosoemqueChamusafizeravestiraquelaalvaelindatúnica,bordadadeouro,eadornar-secomaquelericocolarecombelodiadema, tudoparaconduzi-laàpresençadosenhordesconhecido, que ela havia temido tanto e encontrava omais formoso e omelhor dos homens.Algumashorasdecorreram.Kama(taleraonomedaescrava)cadavezmaisseanimava,àmedidaquesorviaoodordasrosasquetinhanasmãos;suasfacesestavampurpúreaseosolhoscintilavam,quando, afinal, Horemseb se levantou para passar à sala das refeições. Desta vez, ninguém oacompanhava:aextensagaleria, eassima sala, estavadesertae silenciosa.Sentando-seàmesa,provida de riquíssima baixela, colocou a jovem defronte dele e a serviu de diferentes gulodices,estimulando-a,combenevolência,acomerebeber.

A ingênuae simplescriatura julgavaestar, antes, sobo impériodeumsonho;mas,emboraadmitidapelaprimeiraveznavidaasemelhantefestim,oapetitelhefaltou,emantíteseaumasedeardentequeadevoravaelhefezesvaziar,avidamente,umcopooferecidoporHoremseb.Este,comatentaobservação,assinalavaaflamavermelhaqueenrubesciaorostodaescrava,ebemassimotremornervosoqueagitavaseusdelicadosmembros.Depois,quandoela readquiriuumpoucodecalma,denovo,servindo-sedaânforacinzelada,encheuumsegundocopo,quefoiesvaziadopelavítima,comumsorrisodeventura.Afinal,tomadaporsubitâneaembriaguez,atirou-seaospésdeHoremseb,abraçando-lheosjoelhosepremiuorostodeencontroàmãoúmidaefriadopríncipe.Comumgestoacariciador,estelhebrincoucomosespessoscaracóisdocabelonegroeafezsentar-sejuntodele,ciciando-lheaosouvidospalavrasdeamor,elhepropinouaterceiradosedoveneno.Aescravapareceuaturdidapormomentos; logodepois, fremente,procurouabraçarHoremseb,masestejásehaviaerguido.

—Espera-meaqui;voltareiparatebuscar—disseele,asorrir,dirigindo-seaojardim.

Ajovemquissegui-lo,porémaspernastremelicantesrecusaramandar,eelarecaiusentada,braçosestendidoseolhosparadamentefixosnaportaporondeopríncipedesaparecera.Esterumouapressadamenteparaumgrandebosquetederosas,situadopordetrásdograndelagoeaocentrodoqualseerguiaopequenopavilhãoocultopelasfolhagens.ALuarecém-surgira,inundandocomasualuzmágicaasaléias,ossombriosmaciçosdeárvores,efazendoresplenderasuperfíciepolidadaágua,tornadaasemelhançadeumespelhoargênteo.

O interior do pavilhão oferecia aspecto feérico: lâmpadas, industriosamente escondidas porarbustos, alumiavam, suaves, o pequeno recinto, literalmente coberto das mais raras flores,inclusivealcatifandoochão;ramosfloridos,colocadosemgrandesvasos,formavamcomoqueumaabóbada odorante por cima de um leito de repouso, feito de cedro emarfim, e cujos coxins, depúrpura,sumiam-sequasesobumlençolderosasedefloresdelis.Acabeceiradotraiçoeiroleito,estavaumtamborete demarfim.Horemseb examinou todos esses preparativos commeticuloso evivaz olhar, e após, retirando do bolso pequeno frasco de vidro azul com ranhuras amarelas,aspergiucomoconteúdoo leito florido,atirandodepoisovidroparaumrecanto.Feito isso,saiu,fechandocuidadosamenteaporta,retomouocaminhodopalácioe jáseachavabastantepróximoquando soluços ruidosos o fizeram parar, e apercebeu Kama, fora de si, cabeleira esparsa,vestimentaemdesordem,buscando-o, evidentemente, a correrem todasasdireções.Avistandoopríncipe,deuselvagemgritoeatirou-seinsensatamenteaele,queaabraçou,apertando-aaopeitoepassando-lheagélidamãonoincendidorosto,tentandoextinguir,pordocespalavras,oconvulsivosoluçar. Embalando-a assim, ao som da sua sonora e melodiosa voz, enlaçou-a pela cintura,amparando-a a caminhar, e a conduziu pouco a pouco, para o pavilhão, onde a deitou sobre ocolchão de flores, ficando ele sentado no tamborete ao lado. Amoça nenhuma resistência opôs;braçosrodeandoopescoçodopríncipe,cabeçaencostadaaoombro,elapareciaimersanumtorporde paixão extática. Apenas os olhos, voltados para os lábios de Horemseb, falavam ardentelinguagem. Então, ele se curvou para colar a fria boca à de Kama, num beijo longo, sufocante,mortal,emqueforamfundidostodosossofrimentosdainocentevítima,enoqualtambémpareceuextinguir-se a sua vida, porque, quase instantaneamente, um tremor lhe agitou o frágil corpo,embaciaram-se-lheosolhos,enrijaram-seaspequeninasmãoseacabeçarecaiuinerte,afundandonolençoldeflores.

Horemseb endireitou-se, lívido qual um cadáver; abundante suor perolava-lhe a testa e seurobustocorpotremiacomoseestivesseacometidodefebre.Apassovacilante,deixouopavilhão,e,com olhar inexpressivo, foi para um banco, sob uma árvore, e nele se deixou cair, apertando acabeça de encontro à fria casca do tronco. Mais de uma hora passou em absoluto silêncio.Gradativamente, a friagem da noite espaireceu o torpor, a prostração produzida sobre o própriotreinado organismo do príncipe pela ação sufocante dos aromas deletérios que olfatara.Recompondo-se,alisoufortementeoscabeloscomasmãos,depoisdoqueretiroudocintopequeno

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frasco de gargalo pontudo, fechado por um tampo de ouro preso por curta correntezinha a umapequena asa, e cujo conteúdo cheirou repetidas vezes, aplicando também a dita essência emfricçõesnatestaetêmporas.Comisso,todooseuvigorpareceuretornar.Levantou-se,fezligeiracaminhadanaaléia,estiroubraçosepernas,edepois,empassadasvivaselentas,subiudenovoaopavilhão.

À claridade discreta das lâmpadas, a escrava estava em decúbito no leito de repouso,imobilizada; umditoso sorriso parecia condensado nos lábios lívidos; palor cadavérico Invadira osedutorsemblante.Horemsebcontemplou-aporbrevesminutos,comestranhaexpressão,mistodeadmirarãoecrueldade;mas,refreandoimediatamentequalquerImpulsomaisimperativo,ergueuocorpodajovem,levando-onosbraçosparafora,erumouparaamoradadosábio.

Cheiodeimpaciênciaeevidentementeacionadoporexcitaçãofanática,Tadaraguardava-onaprimeiracâmara.Mudaraavestimentacostumeira:traziaagoraumaventaldetecidopreto,quelhedesciaàsrótulas,bordadodebizarrosdesenhos;sobreopeitonu,suspensoporelosdeouro,umlargo peitoral, também de ouro, com o desenho de alada mulher, despida, de boné pontudo nacabeça, sustendo os selos com ambas as mãos, e tendo em derredor, grupadas, multas figurashorrendas, com cabeças e caudas de animais. Um boné preto, cônico, ornado com dois chifresdourados,completavamaindumentáriadovelhosábio.

Sem trocar palavra, os dois passaram ao aposento do tanque e do qual todas as cortinasestavamsuspensas.Aluzlunarpenetravaemondaspelotetoaberto,clareandofantasticamenteabizarra planta que ali florescia e bem assim a plataforma onde estavam postos um altar dealabastro, baixo e quadrado, e uma pequenamesa, em cima da qual se viam um prato cheio deterra,doisvasosesmaltadosdediversosmatizes,umpardecoposeumafacadereluzentelâmina.Horemseb depositou o corpo da escrava sobre o altar sacrificatório, afastando-se depois algunspassos para permanecer de pé, mãos unidas ao peito, a direita sobre a esquerda. O temor e orecolhimentoestavamespelhadosnoseusemblante.

Tadarabriuasvestesdamoça,e,armando-secomafaca,ergueuobraçoeencetou,emvozbaixa,masvibranteecadenciada,umaconjuração,evocandoAstartéedeterminandoaosdemôniossubmeterem à sua vontade as forças da Natureza. Terminado o esconjuro, desceu a lâmina,enterrando-a no peito da desfalecida vítima. Viu-se então horrível espetáculo; um estremeçãosacudiu o corpo de Kama, abriu os olhos, velados, mas transbordantes de espanto, um gemidoabafadosaiu-lhedabocaentreaberta...Depois,tudocessou.Tadarretirouafaca,eumacaudaldesanguerubrojorrouborbulhantedoferimento.Osábioencheualternativamenteosdoiscopos,queeleeHoremsebhaviamaproximado,ebeberamdeliciados...

Uma terceiraporçãode sangue, enchendonovamenteumdoscopos, foi espargida sobreosrebentosdaestranhaplanta,quepareceuestremecerecolorir-sedepúrpuradebaixodasangrentarega.Aseguir,Tadaramassoucomsangueaterrapreparada,recobrindoasraízes,cortouasduasfloresdesabrochadaseasencerroumeticulosamentenosvasosesmaltados,acompanhandotodososmovimentoscomesconjurosritmados,oraameiavoz,oraalta,egestosmísticos.Terminadaestaprimeirapartedosacrifício,pegouocadávere,ajudadoporHoremseb,saiu,recuando,dopavilhão.

Apósatravessaro lago,parou, fezvoltear trêsvezesocorpo,eapassoaceleradocaminhouparaapirâmide,precedidodopríncipe,queabriulestamenteagradedeentrada.

Ocolosso,aquecidodesdehorasantes,expandiacalorsufocante,esuavizinhançadeviasermais do que desagradável aos dois infelizes pretos, que, agachados junto da saída, sorviamavidamenteoarquevinhadefora.Àchegadadosenhor,amboscorreramparacadaumdosladosdodeusepegaramaslongascorrentespresasàsmãosdomesmo.

Nesse ínterim, entrava tambémTadar, que, entoando um cântico estranho, selvagem, subiuuma escadinha portátil postada ante a entrada e que o colocava quase à altura dos joelhos daestátua sobre os quais atirou o corpo que conduzira. Tão logo os dois escravos entesaram ascorrentes,oestômagodebronzeabriulentamente,deixandosairumfeixedelabaredas,eoligeirofardoencurvou-seedesapareceunoabismoincandescente,eaaberturafechou.

Osábio,então,desceu,permutouumabraçocomHoremseb,felicitando-oporhaverbebidooelixirdavida.

Depois, regressouaopavilhão, enquantoopríncipe seentregavaà tarefade repor tudoemordem. A lousa de pedra que fechava a entrada da pirâmide foi recolocada, e os dois pretosnovamente acorrentados na respectiva choça.Mudos, providos apenas da nutrição indispensável,cadaoitodias, trazidapor servos, igualmentemutilados,os infelizesnãopoderiam trairqualquerindíciodesseshorríficosmistérios.EstranhasesilenciosassentinelasvelavamjuntodocruelMoloc,que, sorrateiro, sehaviadeslizadoeestabelecidoemMênfis, essecentrodeelevadaciênciaeda

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civilizaçãoeleganteerequintadadoEgito.

Dois dias mais tarde, Horemseb veio encontrar o mestre, à tarde, e, após curta palestrareferenteaosacrifíciodaantevéspera,disse:

—Tenhodetefalardeváriascoisasimportantes,Tadar.Emprimeirolugar:decorridososoitomeses de abstinência com a qual me preparei para receber o elixir da longa vida e da eternajuventude,tumeautorizasafruirdenovoosprazeresmateriais?

—Sim,meu filho, durante trêsmeses tens liberdade de gozar todas as alegrias que a vidaofereceaumhomemrobustoesão,datuahierarquiae idade;mas,recorda-tedeque,sedesejasverofuturo,deverássubmeter-teaumanovaabnegaçãodedezmeses,porquesomenteemfacedeumaalma impassível sedesvendaodesconhecido, somenteumcorpode têmperaepurgadopelojejumsetornaaptoasentirecontemplaroinvisível.

— Obedecerei; submeto-me a tudo, pois quero conhecer o destino que os Imortais mereservam—respondeuHoremseb,comresoluçãosombria.Adquirindoavidaeterna,nãoveremosciclosinfinitosdesenrolarem-seantenossosolhos?Quiçá,aoextinguir-seaderradeiradinastiadosFaraós,quandoosdestinosdomundoestejamprestesdasuameta,viveremosaindaesempre;nós,invulneráveisàsmisériasdosmortais,salvosdosquarentaedois(17)terríveisjuizesquepesamoscoraçõesdoshomens...Porviresplêndido!Queéquenãomereçasersacrificadoparateconhecer,parasaberoqueseremos,comoviveremos,quando,então,milharesdegeraçõesterãoadormecidonosepulcro?

(17)42JUIZES-Apósamorte,oEspíritoseguiaparaomundoinferior,parasubmeter-se,noAmenti,aJulgamento,sobapresidênciadeOsíris,oEspíritodoBem,rodeadodequarentaedoisEspíritosdessa"outraTerra",umparacadapecadocapital,ornadoscompenasdeavestruz,emblemasdaVerdadeedaJustiça.Asombra,duplo(Ka)ouEspíritocomeçavapordarasrazõespelasquaisrogavaseracolhidoporOsíris,mencionandotodosospecadosnãocometidosporele,suplicante,nodecursodavidacorporal.OJulgamentosefazia,pesandoasinceridadedasdeclaraçõeseprecesdoEspírito.Numdospratos dabalança era colocado o coraçãodoKa, e no outro, servindodepeso compensador de equilíbrio umapenadeavestruz.Seoresultadofossefavorável,oEspíritoseguiaparaascampinasdeBa,odeus-sol;sedesfavorável,ocondenadoera expedido para o Inferno, região dividida em 75 distritos, guardados por demônios providos de gládios, onde sofriatorturas inauditas (Le-tourneau, La Kvolutlon Keligleuse, ed. Vigot, Paris, 1898, páginas 313 e seguintes, narrando ocuriosojúriesuasconseqüentespenalidades.

Animara-seaofalar:exaltaçãoextáticailuminava-lheorosto.Tadarescutara-o,comorgulhososorrisonoslábios.Olhoscintilantes,inclinou-seedisse,emvozentrecortada:

—Sim,quantodizescumprir-se-á;viveremoseternamente,eofuturoergueráparaosnossosolhos suas dobrasmisteriosas. Duranteminhasmais recentes orações e experiências,Moloc, empessoa,apareceu-meerevelouque,tocadopelasnossaspreceseincessantessacrifícios,concordavaemsernossoguia.

Horemsebrecuou,descoradoeestremecido.

—Visteodeus?Qualéoseuaspecto?

— Sua estatura é de proporções estarrecentes; um manto esverdeado, sulcado de flamas,flutuaemseuredor;suasasasnegraseimensasalçam-separaocéuqualenxame;oolharécobertoporumvéu,masavoztemasemelhançadeumventodetempestade,mescladocomocrepitardebraseiro.Essaterríveldivindadeprometeu-meauxílio.

—Felizés tu,Tadar,grandepelosaberepelomérito, seumtaldeus te favorece.Quantoamim,permanecereiteufieldiscípulo,enãofalirei,nematinemàdivindade.Eagora,mestre,ouve-me ainda, e dize-me se aprovas o que tenciono fazer. Quero ir a Tebas e ali passar o tempo deliberdade que me concedes. Tenho duas razões para esta viagem: uma é o dever imperioso desaudarHatasuedelheoferecerosvotosdefelizascensão,eque,paraumpríncipedasuacasa,jáchegamcomatraso;ooutroéque,segundoindagaçõesfeitasporHapzefaá,podeter-secertezadeque amiserável Neftis está refugiada na Capital.Minha permanência dará ensejo de fazer, semcausarreparo,asdiligênciasparacapturadessamulher,reaveraânforafurtada,efechar-lheabocaparasempre.

—Teuprojetoérazoável,meufilho,eeuoaprovo.

—Escusadodizerque,duranteminhaausência,serásaquiosenhorobedecidotalqualeuosou. Agora, a derradeira questão: sei, por intermédio do fiel Hapzefaá, que muitos boatos desuspeitacirculamameurespeito;queospadresdeMênfismeacusamdeirreligioso,sendoquetaismalévolas suspeitas da parte destes poderiam levantar desconfianças na corte e acarretar

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consequênciasmaisdesagradáveisainda.Paraoporumdiqueaessesfala-tóriosecontentaracastasacerdotal, pretendo, antes da minha viagem, tomar parte em uma grande procissão religiosa,depoissacrificarsolenementenotúmulodemeupai.OfendereiMoloccomsemelhanteato?

Cínicoegélidosorrisopairounoslábiosdovelhosábio.

—Nãotemasnada,meufilho:afé,aprece,impulsodaalma,équeestabelecemoeloentreohomemeadivindade,enuncaasfórmulasexteriores.Vela,pois,tranquilo,pelanossasegurança.Molocvêoteufielcoração,eele,eassimtodososdeuses,prescrevemorespeitopelosmortos.

—Tumelibertasdetodoescrúpulo.Aindaestanoite,expedireiummensageiroaTebas,paraquepreparemomeupalácio.

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VI

OSPROJETOSDENEFTISApós viagem bastante longa e sofrivelmente tediosa, embora isenta de qualquer ocorrência

incômoda, Neftis desembarcou em Tebas, dirigindo-se, em companhia do dedicado Anúbis, àresidênciadocunhado.Durantehorasdeinaçãoforçada,ajovemreadquiriraacalmaerefletiranopassadoenofuturo.A lembrançadeHoremsebainda lheenchiaasensibilidade;mas,nãomaisoamava com insensata paixão, e compreendia agora que ele tivera para com ela apenas umacrueldadecínica,queaexcitarapararirdosseussofrimentos,divertindo-secomoseucoraçãodemulher,talqualogatobrincacomumrato...Noentanto,quandoodesgostoearaivalheinspiravama idéia de denunciar o príncipe e os crimes inauditos que se cometiam no palácio, o coraçãofraquejava,epercebiaque,apesardetudo,aquelehomemdominava-aainda,ejamaisteriacoragemdearruiná-lo.Não,jamaisalguémdeviaconhecerosegredodasuamisteriosadesaparição,eparaHoremsebdeviasumir-se,tambémparasempre,porissoque,conhecendo-osuficientemente,sabiaestarcondenadaseeleaencontrasse.

E sem que de tal se apercebesse, profunda transformação, moral e física, se operara nela,depoisdamisteriosafuga:expansivaeapaixonadapornatureza,superexcitadapelaaçãodovenenoàs raias da loucura, dir-se-ia que toda essa vivacidade, toda essa exaltação de sentimento seextinguirasobsúbitogeloquelheinvadiraoser.Estavacalma,fria;seuespírito,aguçadoecomoquesutilizado,dominavatodososimpulsosdocoração,que,entorpecido,indiferente,pareciabatermais lento; o sangue não a escaldava, conforme acontecia outrora, nem lhe coloria as faces,tornadaspálidas,de tonalidademate semelhanteàda cera; estranho fulgorbrilhavanosolhos; aboca,antesrisonhaegárrula,sehaviacontraídonumaexpressãosombria,duraeamarga.

MalsepoderáimaginaraestupefaçãodeRomaaoverchegar,viva,emsuacasa,essaNeftis,tida por morta desde havia quase um ano; mas, porque as obrigações do templo o chamassem,entregou a instalação dos recém-vindos aos cuidados da sua velha despenseira, aconselhandorepouso à jovem, e transferindo as explicações para depois do jantar. Efetivamente, terminada arefeição,ojovemsacerdoteconduziuacunhadaparaoterraçoesolicitou-lheexplicaromistériodadesapariçãoeodoregresso,e,enfim,ondeedequemaneiraviveradurantetalinterregno.

—Poderiamentir,satisfazertuacuriosidade,legítima,comumafábula—falouNeftis,depoisdealgumsilêncio—eassimvouprocedercomrelaçãoàsdemaispessoas;mas,ati,dirigireiapenasumarogativa:nãomeperguntesnada,Roma,poiscoisaalgumapodereidizer-tesobreesteepisódiodaminhavida. Juro-te,porém,quemereço semprea tuaestima,equecomigonenhumadesonraentrouemteular.

—Issomebasta,eeuteagradeçoafranqueza—disseomoçosacerdote,comumsorriso.

Neftisapertou-lheamão,etransferiuoassuntodaconversaparaafalecidairmã,causasdamorteepormenoresqueignorava.ÀmençãodeNoferura,sombreou-seosemblantedopadre,eobreverelatoquefezdascircunstânciasreferentesàmortedamulherressentiam-setãovisivelmentedepenosarepulsa,queNeftisnotouisso.

— A razão que a levou a precipitar-se no rio, tão inopinadamente, permanece segredo —concluiuRomaOsremadores julgamquerepentinaloucuraa invadira,e issoemconsequênciadeumaziagoencontroqueocorreucomabarcadofeiticeirodeMênfis,quetrazdesgraçaaquemoavista.

—OfeiticeirodeMênfis!—repetiuNeftis,empalidecendorepentinamente.

—Istoé,onobrepríncipeHoremseb,queopovoestúpidotem,nãosesabeporque,nacontadenigromante.Mas...quetenstu?

— Nada. Apenas notei que falavas de Noferura, com evidente má-vontade, e isso me fere,tantoquedesejosaberosmotivosdetalatitude.

—Porminhavez,sereifranco—respondeuRoma,depoisdebrevehesitação.Ocaráterdetuairmãeraviolentoeapaixonadoemexcesso,esuacondutadeu-metaisaborrecimentosqueeunãoapudeamardeacordocomassuasexigências.Ela,então,sepermitiutercomigoumprocedimentoignóbilecriminoso,usandoummalefícioqueforabuscaremMênfis,ondeestivera,emseguidaaoteudesaparecimento,apretextodeconsolarHoreSetat.Desdeoretornodessaviagem,comeceiasentir por ela um amor que não tinha nada de humano: fogo circulava em minhas veias, meus

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sofrimentos eram indescritíveis, e somente junto dela encontrava relativo repouso. Mais tarde,recordo que, durante todo o tempo da minha loucura amorosa, era eu perseguido pelo aromasufocantedeumaflorqueNoferurapareciaexalar,eque,logoquetalodormefaltava,eumesentiacomo que privado de ar. Certamente teria sucumbido de esfalfamento ou perdido a razão, se osdeusesnãoseapiedassemdemim.QuandoelafoiparajuntodeSetatmoribunda,euaacompanhei,afimdenãonossepararmosumdiaquefosse...Desdeomomentodesuamorte,oencantamentocessou,ebastaasualembrançaparainspirar-meumarepulsãoindominável.

Pálida, sobrancelhas franzidas, Neftis ouvira a narrativa, da qual o sentido oculto elacompreendiabemmelhordoqueonarrador.

— Eu te compreendo, e lamento haver evocado essas recordações desagradáveis — disseafinal.Sabes,porém,seNoferuratrouxedeMênfisomeucofrezinhodejóias?

Euguardavanelealgumaslembrançasdeminhamãe,eseriaditosaemreavê-lo.

—Imediatamenteviráàstuasmãos,poismandeiqueoguardassem.

E,algunsminutosmaistarde,aencarregadadoguarda-roupatrouxeocofrezinho,queNeftisremexeu,retirandodeleumanelquepôsnumdosdedos.Depois,displicente,indagou:

—Não sabes se minha irmã trouxe ou guardou entre as jóias um precioso colar de placasesmaltadas, presas por anéis e escaravelhos? Era da maior estimação para mim, presente denúpciasdadoàminhafalecidamãe.

— Placas esmaltadas a azul e vermelho? Sim, lembro: Noferura usava-o sempre, desde oregressodeMênfis,porlembrançadeti,segundomedisse,eoconservavanomomentodoacidente.Mas,depoisdisso,nãomaistorneiaverajóia:roubaram-na,oucaiunaságuasdoNilo,desprendidoduranteosmovimentosdaretiradadocorpo?Ignoro;estavaperturbadodemaisparacogitardisso,esóagoratumefizesterecordaressajóia.Deplorosinceramente,caraNeftis,tenhassidodespojadade talprenda,mas,esperoquemedêsalegriadeaceitaralgunsadornosdeusode tua irmã,emressarcimentodaqueperdeste.

Neftisagradeceu,etendosabidooquedesejavaquantoaocolar,mudoudeassunto,falandodo futuro,deAntef, onoivoquecontinuava fiel àmemóriadadesaparecidaequeprovavelmentequereriareclamarseusdireitos,devezqueelaestavaviva...Aestepropósito,Romaachavaqueomaissensatoeratransferir-seelaparaBouto,ealicelebraromatrimônio.

—Paraumajovem,natuafalsaposição,éduplamentenecessáriocolocar-sesobaproteçãodeum esposo. O mistério destes últimos meses não te trouxe ventura, isso está escrito em teusemblante...Mas,senãotensdeteruborizardessepassado,olvida-onosnovosdeveresdeesposa,ecrêquesóumasinceraamizademeinspiraesteconselhoquetedou.

— Não tenho dúvida, Roma, e sei que Implante generoso para não me acolheres de má-vontade em teu teto. Além disso, o meu próprio bom senso diz que tens razão; mas, tão graveresoluçãodevesermeditada;dá-mealgunsdiaspararefletir.

—Semdúvida, tudecidirásquandoecomoquiseres.Ésparamimuma irmã,Neftis,e,comestetítulo,teulugarestámarcadoemminhacasa.Agora,permitequetedeixe,porquetenhodeiràcasadePenbesa,umvelhopastordo templodeAmonemeuamigo,queestá enfermoeaquemprometivisitar.

Ficando a sós, Neftis voltou ao seu aposento, onde se estirou num leito de repouso,entregando-seasériospensamentos.Romatinharazão:eraprecisoregularizarsuaposiçãoeerguerumabarreiraentreelaeopassado,arespeitodoqualnãopodianemdesejavadesvendaromistério.Tambémsoboaspectodesuasegurança,Boutoeraasilobemrecomendável,pois,lá,Horemsebnãoaprocurariadecerto,e,quantoaAntef,elaodesposaria,seatalseresolvesse...Nãopossuíaelaumrecursosegurodelhereavivaroamor,casohouvessediminuído,edevencerescrúpulos,casoeleostivesse?Nessepontodesuasreflexões,aimagemdojovemoficialdesenhou-seemseuespírito.Elelheagradaramuitooutrora:airoso,espiritual,rico,esegurodebrilhantefuturo,poiserasobrinhodeSemnut,Antefparecera-lhesempreumótimopartido,edebomgradoprometeradesposá-lo.AnomeaçãodomoçooficialparacomandaraguarniçãodeBoutoretardaraarealizaçãodoconsórcio;mas,impressionantecartadeAntef,decidiraSetataconduzirasobrinhaatéBouto,quandoafatalaventura com Tuaá veio tudo transmudar. Mas, nesse instante, o pensamento de matrimoniar-secomAntef inspirouaNeftisumaquaserepulsa;afiguradoantigonoivopareceu-lhetãoapagada,seuexteriortãovulgar,oporviremcomumtãoáridoetãomesquinho!EntreelaeAntefprojetavam-seovultopálido,ossombreadosolhosdeHoremseb,aqueleolharfascinadordobruxo,quepodiagelar as almas com o desdém, mas também cativar, quando, sorridente, pródigo em carícias,

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prometerinfinitafelicidade.

—Ah!Horemseb—ciciouelaparaconsigoprópria,comprofundosuspiro—que fatalidademeforçaaamar-teainda,crueldequemdevofugir?Porque,juntodeti,velaamorte,enenhumapiedadedetémopunhalnatuamão.

Enareminiscênciasurgiua imagemdorapazqueapreveniradasortequeaaguardava,e,depois,pareceu-lheregressaràssombreadasaléiasdojardimondesedesenrolavamaspoéticasefantásticasdanças,aopalordaLua,etambémasespantosasperipéciasdasorgias,acavaleirodasquaisseentronizavaonigromante,qualumdeus.Muitasvezesassistira,acocoradapordetrásdotrono,aessesespantososmistérios, eà sua recordação,agora,umarrepiopercorria-lheocorpo.Não:eranecessáriorepelirtodaaevocaçãodopassadoetentarreaverapaznoamordeAntef.

Repentinamente, infernal idéia sulcou-lhe o cérebro, fazendo-a estremecer e avermelhar orosto:porquenãolheocorrera,desdeantes,queTutmés,opretendenteaotrono,residiaemBouto,sob a vigilância de Antef, o antigo noivo? Sem dúvida, Tutmés, banido e prisioneiro, interessavamediocremente;mas,sesubisseaotrono,quenãodariaaquemoajudasseparatalevento?Eporquenãoseriaela,Neftis,talcolaborador?NãopossuíaumbruxedoultrapoderosoaoqualHatasuestariasubjugadatalqualomaishumildeaguadeiro?Seconseguissepropiciaraevasãodo jovemrei,munindo-odeumarosaencantadaparadominarocoraçãodarainha,Tutmésrecusariaalgumacoisaaquem lhehouvesseprestadosemelhanteserviço?Umavezescolhidoessecaminho,Neftiscomeçou a ruminar o plano, sazonando-o e elastecendo-o: pensamentos mais e mais ambiciososderramavam-senaimaginação...Nãopoderia,elaprópria,fazer-seamarporTutmés,e,aoseulado,sentar-senotronodoAltoeBaixo-Egito?Hatasueramortal,e,pelocaráterepelaaversãoquelhevotavamospadres,poderiaperderavidaaomesmotempoqueacoroa.Neftis,então,tomariaoseulugar,eessemesmoHoremseb,quehaviamotejadodosseussofrimentos,prosternar-se-iaebeijariaochãodiantedela.AsfacesdeNeftisabrasavam,seusolhosesverdeadospareciamexpelirchamas;ela jáseviarainha,adoradadoFaraó,queoenfeitiça-mentotornavaescravodassuasmais levesvontades,e,aseuspés,dobrava-seomagodeMênfis,trêmuloanteasuacóleraeasuavingança.Mas, a imagem do príncipe possuía o condão de absorver e desbotar qualquer outro sentimento.Empalidecendodesúbito,Neftiscontraiuasmãosdeencontroaopeito.

— Ventura, porvir, sossego, tudo, Horemseb, me furtaste; meu cérebro está lúcido, meusanguejánãoferve,e,noentanto,meurebeldecoraçãonãoqueresquecer-te...Omandosupremo,oamordoFaraó,as lisonjasdoEgito, tudoeutrocariaporumbeijodos teus lábios,paraver teuolhar,naembriaguezdoamor,mergulharnomeu!

Ecobriuorostocomasmãos,denovoseabismandonosseuspensamentos;mas,depronto,ergueu-se,atirouparaascostasafartaecuidadacabeleiraruiva,emurmurou,emdecididotom:

—Bastadeloucosonhar!Horemsebéincapazdeamarigualaosoutroshomens;seucoraçãoestáressequidoevazio;elenãodeveserempecilhoparaqueeuatinjameusdesígnios.AcaminhodeBouto,e,lá,osdeusesmeinspirarão!

Nodiaimediato,conversandocomocunhado,Neftisdeclarou-lhehaverrefletidoedeliberadoseguirparaBouto,mas,antes,desejavavisitarumajovemparentaquehabitavaemTebaseaquemqueriapediraacompanhasse.

—Mentchu é viúva — acrescentou —, e porque o marido era primo de Antef, Isto me dá odireitodeavisitar.Se,conformeespero,elaaquiescer,seráumgrandeauxílio,poisnãomeconviriachegarsozinha,ignorandoseomeuantigonoivomeguardoufidelidade,etambémse,atéodiadocasamento, poderia alojar-me no palácio, de onde provavelmente as mulheres são excluídas. Emcompanhiadeumaviúva,suaparenta,minhasituaçãoserádecente,etudosepoderárealizarsemprecipitaçõesinoportunas.

—Aprovototalmentetuaresolução,minhacaraNeftis.Minhaliteiraemeupessoalestãoaoteu dispor quando quiseres realizar a visita e, na época de tua partida, obterei de Semnut umalicençaparapenetraresemBouto,queéconsideradafortaleza.

AvisitadeNeftisàparentacolheuoesperadoêxito:Mentchu,moçaeformosa,contandovintee três primaveras, recebeu-a de braços abertos, e, sem hesitações, declarou estar disposta aacompanhá-la. Alegre, frívola e ávida de prazeres, a jovem viúva entediava-se, porque, emboradecorridoolapsodetempodeluto,diversascomplicaçõesdefamíliaimpediam-nadeaparecerempúblico, conforme desejava, de modo que a perspectiva de uma viagem lhe pareceu oportunadistração concedida pelos deuses. Ficou assentada a partida, tão depressa Roma obtivesse apermissão de entrada na cidade, e Mentchu, preocupada com os preparativos da viagem, nãocogitou de aprofundar a veracidade do que Neftis lhe impingiu sobre a nebulosa desaparição.Acreditounaspalavrasdaparenta.AintervençãodeRomaobteveigualmenteêxito,eaotérminode

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doisdiasanunciou,satisfeito,àcunhadaqueopoderosoconselheirodeHatasuacolherabenévoloasolicitaçãoeexpediraosalvo-conduto.Maisainda:porfelizcoincidência,aviagemiaserfeitaemcompanhiadealtodignitárioesuaescolta.

—Oescribareal,Hornecht,queencontreihoje,saindodepalácio—narrouopadre—,seguedepoisdeamanhãemvisitadeinspeção,tomadadecontasdosrecebe-doresdeimpostos;escalaráem Bouto, e prometeu levar-vos, sãs e salvas, até junto de Antef. Fareis a viagem com toda acomodidade.

Tudoassimcombinado,Neftisteveapenasdecuidardabagagem.Comhabitualgenerosidade,Romahaviaabastecidolargamentedetodasasprovisõesacunhada(queàsuacasachegaracomaroupadocorpo), inclusive um belo enxoval. Na sua caixinha de valores,novamente acrescida deadornosquehaviampertencidoaNoferura,levava,cuidadosamenteacolchoada,apequenaânforavermelha furtada ao enfeitiçador, e por ela considerada agora a base de sua futura fortuna. Nointervalodessesdias,teveoportunidadedefazerestranhasdescobertasquantoàspropriedadesdoprecioso líquido: durante o dia, seu odor era fraco; à noite, a exalação aumentava a ponto de setornar sufocante. Constatara igualmente que, derramado sobre uma rosa, o deletério perfumeconservavasuaforçairradiantemesmodedia,eocasionavacefaléiaseaturdimento,seaspirado;e,maisainda,que,banhando imediatamenteo rostoeasmãosemágua fria, o efeitodo veneno seatenuava.

Na data aprazada, as duas encetaram a viagem. Mentchu estava esfuziante de alegria, nãocessandodetagarelarsobreAntef,deanunciaroseucontentamento,asurpresa,aoverchegar,vivaeformosa,anoivaqueforachorada,comoseperdidaparasempre;depois,conversavaeria,comHornecht,quandoogalanteescribareal,viúvo,demédiaidade,seaproximavadocarrodequatrorodas, tolda de couro, que conduzia as belas protegidas. Neftis partilhava escassamente de talanimação. Preocupada e silenciosa, concentrava-se completamente no amadurecimento epormenorização do plano que arquitetara, fazendo da jovem viúva mero instrumento paradesembaraçar-se de Antef (pois desejava poder agir livremente junto de Tutmés), e, ao mesmotempo,paraexperimentaremambosadoseeosefeitosdoenfeitiçamento.Nesseintuito,compraraumcolardemadeiraperfumadaeumescaravelhodeprata,oco.Ocolarfoiimersodurantemuitashoras em óleo temperado com algumas gotas de elixir, e o escaravelho recheado de pétalasigualmentesaturadasdoperfume.

Oresultadopareceu-lhesatisfatório.QuantoaTutmés,resolveranãolheprovocaramor,poiseraconvenientequeelealcançasseantessituaçãodedestaque.QuandoHatasumorresseoufossedestronada,entãosim,conviriaatraí-loedesposá-lo,casoelaprópria,aessetempo,nãohouvessepreferido seguir uma idéia que a tomara. Com o coração cheio de uma inapagável imagem, todopensamentodeamoredepertenceraoutrohomemlhepareciaodioso;mas,seoFaraóordenasseaHoremsebdesposá-la,opríncipenãoousariarecusar,emuitomenosarriscar-seemmataramulherprotegida pelo rei. Neftis estava persuadida de que Tutmés, agradecido pelo que lhe teriaaproximadodaliberdadeedotrono,dariadeferimentoaessapretensão.Relativamenteãfelicidadeproblemática,resultantedetalmatrimônio,nãosepreocupava:poderdaraHoremsebonomede—esposo,tersobreeledireitosinatacáveis,eisoapogeudosseusdesejos.Oquesobreviesse,poucoimportava,satisfeitosquefossemoseuciúmeeseuorgulho.Aproximava-seotérminodajornada,quando Mentchu, cuja loquacidade não esmorecia, e que se impacientava com o silêncio e asdivagaçõesmentaisdacompanheira,perguntou,pegando-lheamão:

—Quetens,Neftis?Porqueestástriste?NãoterejubilasemreverAntef?Lembro-medeque,quandoomeupobrePtahotepseausentouparaaguerra,euconteiashorasatéseuretorno,eessesmomentospareceram-meinfindáveis,equaseadoecidealegriaaorevê-lo.

—Ptahoteperateuesposo,easseguradaestavaasuaafeiçãoporti,aopassoqueeuvouaoencontrodeumnoivoque, hádozemeses,me consideramorta.Admiras-tedequeeu temaesseprimeiroencontro,quetalvezmedemonstreestaresquecida?

—Podesrecearisso?—exclamouainconsequenteMentchu.Tuéstãobela,tãodiferentedasoutras, coma tua tez lisa, teus olhosglaucosbrilhantes e teus cabelosde ouro!Não; não.Estoucertadeque,aoprimeiroolharsobreti,oamordeAntefsereacenderámaisardentedoquenunca,eteráumpensamentoapenas:abreviaravossaunião!...

Interrompeu-sebruscamente,golpeandoafrontecomasmãoserepetindoaexclamação:

—Ah!louca,oh!estúpidaquesou...Quefuifazer?

—Souumacabeçasemmiolos;esqueciemcasaumpacotequeTachot,airmãdeAntef,meincumbiudelhoentregar.Contémumcolarcomamuletos.

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—Seéapenasissonãotepreocupes—respondeuNeftis,asorrir.Tenhoumlindíssimocolar,ornadodeamuletosdemadeiracheirosa,compradohápoucotempo,porquemeencantouoraroeadmirável perfume que dele se desprende. Eu to darei, e Antef ganhará com a troca, e eu nadaperderei, porque meu será depois das núpcias. Quanto a Tachot, quem lho dirá? Até que sereencontrem,ofútilincidenteestaráesquecido.

—Agradecida,muitoobrigada!Ésverdadeiramenteboaesalvas-medegrandeembaraço.

Aoanoitecer,chegaramaBoutoefizeram-seconduziràresidênciadeAntef,oqualjulgoucairpara trás ao reconhecer Neftis. Cheio de sincera e plena alegria, o jovem aceitou, sem asaprofundar, as explicações de Neftis sobre o desaparecimento, declarou que o casamento deviacelebrar-sedentrodomenorprazopossível,ealojouaambasnoseuapartamento,contentando-seele com um leito provisório na antecâmara do príncipe, a quem informou da sua inesperadafelicidade.

Antesdeacomodar-separadormir,Neftisdesembrulhouocolarenvenenadoeoentregouàviuvinha, evitando cuidadosamente aspirar o perfume deletério. Mentchu, ao contrário, sorveu oodor,semdesconfiança,eficouencantada.

—Ah!Queadmirávelperfume!Nuncarespireialgosemelhante,nemvijamaisumataljóia,econfesso-mepesarosaporterdeentregá-laaAntef...

EstranhosorriraflorouaoslábiosdeNeftis,quepensou:

—Osdeusessão-mepropícios.Porestemodo,euoprendereimaisseguramenteaela.Eemvozalta:Se,defato,essecolartantoteapraz,aceita-opordádivadaminhaparte,caraMentchu,edesculpa-te depois com Antef do teu involuntário esquecimento. Dou-te o colar, apenas com umacondição:adequeousarásfrequentemente.

— Agradecida — disse Mentchu, satisfeita, chocalhando o colar nas mãos. Aceito, e, paraexecutarconscienciosamenteatuacláusula,começareiausá-lodesdeamanhã,todososdias.

Nodiaseguinte,Neftisachouocasiãodedizer,divertindo-secomisso:

—Repara,Antef,nocolardeMentchu.Ele teestavadestinado:mas,essa formosatraidora,nãosatisfeitadeesqueceropresentequeTachotteenviava,confiscouessecolarqueeu lhederapararemediaroesquecimento.Exalaumperfumedelicioso,desconhecido,porém.Pode-riasdizer-medequemadeirassãofeitosessesamuletos?

—Eisum lindoprocedimento, furtarassimumobjetoquemeeradestinado!—comentouooficialarir.Mas,vejamosoinfielperfumequeaMentchuinspiroutalrapacidade.

Inclinou-separaa viúva,que, facesavermelhadas,parecianervosaeexcitada, e sorveuporváriasvezes,curiosamente,oaromaevoladodosamuletospresosaopescoçodeMentchu.Neftis,queoobservava,viuqueorostosepurpureavasubitamenteequeoolhardeslizava,comexpressãodemudada,paraasespáduasdesnudas,ebemassimparaas facesenrubescidasdeMentchu.Emseguida,eleaproximouumacadeiradolocal,e,sentando-se,entabuloupalestratãoanimada,quepareceuesquecidodeNeftis.

Algunsdiasdecorreram,duranteosquaishouveincoerentemudançanosmodosemesmonocaráterdomoçocomandantedeBouto:inesperadaecegapaixãopareciaimpeli-loparaMentchu.Apresençadanoivaselhetornarapenosa,ebuscavaemvãodissimularosatuaissentimentos;àfriaimpassibilldade do seu feitio, sucedera febril e nervosa irritação; negligenciava seu ilustreprisioneiro, servindo-se de mil pretextos para ausentar-se e reunir-se à viúva, a qual também oprocuravamuitoavidamente.

Certa manhã, ao vê-los absorvidos de novo em interminável conversação, Neftis retirou-sediscreta (elasabia que tal momento seria aproveitado para abraços), e encaminhou-se ao jardimondepasseavaopríncipeTutmés,aoqual foraapresentadaecomquempalestraramuitasvezes.Num banco de pedra, à sombra de enorme sicômoro, o jovem banido estava sentado, sombrio epensativo, mas, ao avistar a jovem, desenrugou os sobre-cenhos e um sorriso iluminou-lhe osemblante.Tutméseramuitosensívelàbelezafeminina;aspaixõescomeçavamadespertaremseucoração,eapresençadaformosamulhererasuficiente,nomomento,paradesviá-lodosambiciosossonhosefazerolvidarmomentaneamenteoexílio.

—Bomdia,belaNeftis—disseele,correspondendoporacolhedora inclinaçãoda fronteaorespeitososaudardarecém-vinda.Senta-tepertodemim;vemdistrairopobreprisioneiro,queteunoivovigilacomosefosseumcriminoso.Fala-medeTebas,ondereinamalegriaevida.

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Atraiu-aparaobanco,e,fixando-acomolharcintilanteeanimoso,acrescentou:

—Oamordeve-teumagrandecompensação,peloquetulhesacrificas,trocandoaCapitalporBouto. De minha parte, estou assaz satisfeito, e quisera apressar o teu casamento, porque apresençadetãobelaejovemesposatomariamuitotempoaAntef,libertando-medesuapresença,quesemetornaodiosa,porverneleumcarcereiro.

Neftissuspirou,baixandoafronte.

— Duvido, príncipe, que eu venha a ser algum dia a esposa de Antef, pois, durante minhalongaausência,seucoraçãoesfriounoamorpormim,eaformosuradajovemparentasubjugou-o.

—Impossível.Antefsempremefalouemticomtantoafeto!Suaalegria,reencontrando-te,foitão sincera, que, a meu ver, tu te equívocas e fazes suposições errôneas. Antef é honesto eespiritual, e preenche com admirável tato as suas difíceis funções para comigo, e, apesar dosirrestritospoderesquelhederamosmeusinimigos,sabeconciliarasobrigaçõescomadeferênciaquemeédevida.Euocreioincapazdeumacontradição.

—ConheçooméritodeAntef,eporissomesmodeploroohavê-loperdido.Ofuturoprovará,príncipe,que tenho razão.De resto,euoestimosuficientementeparanãocriarembaraçosà suafelicidade,e,semciúme,cedereimeusdireitosaMentchu.

Interrompeu-se,aoaperceberAntefqueparaelessedirigia,parecendosuperexcitado,comoolhar,habitualmentetãoclaroetãoimpassível,perturbadoeindeciso.

—Perdoa,príncipe,terdemoradoemvirrecebertuasordens—disse.Desejastalvezpassearouiraotemplo?

— Não, não tive desejo algum, porque tua bela noiva fez-me companhia — respondeualegremente—e,emborasejasbomcompanheiro,confessoqueaprefiroparaguardiãodaminhapessoa.Espero,Antef,quenãosejasciumento,equeautorizestuanoivaefuturamulheradistrair-mealgumasvezescomassuasnarrativasdeTebas,deMênfis,dessemundo,enfim,doqualestouseparado.

—Sentir-me-ei feliz sempre que Neftis possa amenizar a tua solitude, e jamais ousaria terciúmes de ti, príncipe! — respondeu Antef, num riso contrafeito, evitando o escrutador olhar damoça.

Zombeteiro e satisfeito sorriso esboçou-se nos lábios de Neftis, enquanto, em pensamento,diziaasiprópria,rejubilada:

—Ametadedatarefaestárealizada;Antefnãoembaraçarámeusprojetos.

Novamente, muitos dias decorreram. O moço comandante empedernia-se cada vez mais emsua louca e cega paixão, partilhada por Mentchu, parecendo indiferente a tudo, esmorecendo avigilância ao seu perigoso prisioneiro, e fugindo à presença da noiva. Neftis conduzia-se com amaior discrição, evitando importunar os dois enamorados. Em compensação, procurava todas asocasiõesdereencontrarTutmés,quenãodeixavamaisojardim,nointentodearever,poiscadavezmaissetornavammiafeiçoado.Numatarde,estavamambos,conformedecostume,sentadossobosicômoro,masaconversaçãorareava,porissoquesombriapreocupaçãoplicavaafrontedoexiladoeprofundatristezavelava-lheoolhar,dehábitobrilhanteevivaz.

Navéspera,notemplo,souberadamortedaavó,eodesaparecimentodaquelaqueoamarasem restrições, sem segunda intenção, pesava fundamente em sua alma e lhe tolhia o fluxo dapalavra.Neftis,emsilêncio,observoutalatitudedurantealgumtempo,mas,depois, inclinando-separaele,lhetocouligeiramentenobraço:

—Ergueacabeça,príncipeTutmés,enãodeixesqueodesânimoensombretuaalma,nemodesgostoentibieatuaenergia.Readquireesperançasejovialidade,filhodeRa;odeuspotente,doqualésinstrumento,saberáarrancar-teaoexílioindigno,e—quemsabe?—estásmaispróximodotronodoqueaesperançamaisaudaciosanãotefezsonhar?

Ojovemergueuobusto,e,pálido,dirigiudesconfiadoeperquiridorolharaosolhosfaiscantesde Neftis, mas, a sua inata perspicácia deu-lhe imediata convicção de que a moça falavasinceramente.

—Vejoquemeestimas;porém,engodar-medevãesperançaserialoucura.MinhairmãHatasué demasiado ambiciosa para dividir o trono por segunda vez. Enquanto ela viver, agonizareimiseravelmenteaqui.Equeoportunidadepodesterparaarrancarocetroàquelaférreamão?

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Neftisinclinou-se,aproximando-seaoouvidodopríncipe,edisse,emtombaixoevibrante:

—Umaforçaquedobraomaisorgulhosoedomaatéaambição:oamorimperamesmosobreosreis!Hatasuestáaissosubmetida,qualaconteceatodososmortais;elatedarálugaraseuladonotronodosFaraós.

LívidopalorinvadiubruscamenteoadolescenterostodeTutmés;entreabertososlábios,seusdilatadosolhosolhavamainterlocutoracomincréduloespanto.

—Divagas,Neftis,enãotecompreendo—pronunciouafinalcominseguravoz.ComopoderiaHatasu sentirpormimumamorquedominasse suaambição?Essamulher,deespíritoe coraçãoviris,éinacessívelaoamor.Alémdisso,játranspôsaprimeirajuventudeedehámuito,primogênita,medetestaporpretendenteefilhoilegítimodenossopai.Não;não;elajamaisteráamorpormim.

—Falasa verdade—disseNeftis,depoisdeamplo sorriso—eeu, talqual tu,nãoousariaesperarcoisaalguma,contandoapenascomosmeioscomuns,senãopossuísseopoderdetefazeramadopelarainha.

—Equaléessemeio?—murmurouTutmés,comavozafogadapelaemoção.

—Eutedareiumfeitiço,oqual,sepuderesfazerchegaràsmãosdetuairmã,inspirar-lhe-áafeição tãoprofunda,quenãopoderámais viver sem ti, e fará comque teupoder sobreela sejaabsoluto.

—Realizaisso,Neftis,enãotearrependerásjamais,porquesereigratodurantetodaaminhavida!—disseopríncipe,olhosbrilhandoepremindoasmãosdajovemmulher.Eagorarevela-meemqueconsisteoencantamentoquepossuis.

— É um perfume — segredou Neftis, curvando-se de novo para Tutmés. Segundo creio,impregnarcomeleumpapiroqueenviariasàrainhabastariaparaquetemandassechamar.

Omoçopríncipemeneouacabeça,depoisderefletir:

—Não;essemeionãoserve,poismeparecebastanteperigosoentregaraosazaresdoacasoobjeto tão precioso. Quem sabe as desordens que causaria, em que mãos poderia cair, antes dechegaràsdarainha?Antesdetentaralgo,precisoestarlivre,Neftis,istoé,fugirparaTebasondeoSumo Sacerdote de Amon e o principal profeta do templo, Ranseneb, me asilarão e ensejarão apossibilidade de aproximar-me de minha irmã, facilitando que eu próprio lhe faça entrega dosortilégio.

—Mas,omistériodobruxedodeveserignoradodospadres—disseela,inquieta.

— Tranquiliza-te. Supões que transmitiria semelhante segredo aos sacerdotes, para ficardepoisescravizado a eles? Nunca! Pretendo utilizá-los unicamente para seguro asilo em Tebas eparachegaraopalácio.Mas,paraisso,precisoestaremliberdade.

— Sim, é necessário que o estejas — acrescentou energicamente Neftis — e creio que aocasião de fuga se apresentará muito em breve. Tens visto que Antef, absorvido com os amores,relaxou consideravelmente a vigilância. O dia do festim de noivado deve ser o escolhido para aevasão.Cuidaremosmais tardedosmeios;mas, desde já, deves expedirmensagemao templodeAmon,paraprevenirtuachegada.Ocasamentosósefaráemdataposterioràdaresposta.Deixaameucuidadomanobrarascoisasatéomomentopropício.

—Éótimaidéia;vouimediatamentecomunicar-mecomotemplo,deondeveioummensageiroanteontem. Deveria regressar dentro de alguns dias, mas vou fazê-lo voltar hoje mesmo com amensagemparaRanseneb,eelemesmomediráquandotraráresposta.Enquantoisso,tomaremosnossas providências. Vem encontrar-me, aqui, amanhã, cedo, porque ainda tenho muito que teperguntar.

Ficandoasósnobancoondeacabavadetecerosfiosdefuturoseventos,dosquaisnemelaprópria avaliava sequer a importância, Neftis deu surto a pensamentos sonhadores de brilhanteporvir.A imagemdeHoremseb, tornadoseuesposo,espelhava-seemseuespírito. Ignoravaestarsendoinstrumentoinconscientedeumdessesacasosquemudamodestinodeumimpério,eque,seguindoapenasseusmesquinhosepersonalíssimosinteresses,iaimprimiraogovernodoEgitoummovimentodeconsequênciasbemgraves.Mas...ascriaturashumanassãocegas,e,felizmenteparaela,Neftisnãopreviucoisaalgumadofuturo.

Coraçãoinfladodenovasesperanças,julgandosentirjáohálitodaliberdadeeaembriaguez

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dopoder,Tutmésfoiaotemplo.Omensageirofiel,dequemfalaraaNeftis,eraHartatef.OpríncipetevecomeleecomoSumoSacerdotecurtaconferência,nodecursodaqual ficoudecididoqueopseudo-escriba retornaria na mesma noite, e estaria de regresso dentro de doze dias, ficando orestante para ser resolvido de acordo com as notícias e os conselhos trazidos de Tebas. No diaimediato, pela manhã, Tutmés comunicou à confidente as resoluções que assentara, e na suaimpaciência rogou que lhe explicasse como deveria empregar o sortilégio para conseguir econservardomíniosobreHatasu.

— Dar-te-ei um frasquinho — respondeu ela, sorrindo — e quando tenhas certeza de teaproximares da rainha, derramarás sobre uma rosa rubra algumas gotas do perfume, dando-lhedepoisaflor.Poroutrolado,dar-te-eiumcolarornadodeamuletos,oqualdeverásteraopescoçoquandolhefalares,colocando-sedemodoqueoaromaexaladodocolarlhefiraoolfato.Talperfumeéfortíssimo,esofrerásumtantocomseusefeitos,mas,banhandorepetidamenteorostoeasmãosemáguafria,terásalívio.Enfim,quemdesejavencerdeveterpaciência,eesperoque,depoisdetuaasceseaopoder,ajudesportuavezaminhafelicidade.

— Podes ficar tranquila. Quanto desejares, riquezas, honrarias, ou mesmo um esposoescolhidoentreosmaioraisdoreino,eutedarei,sobpalavradeFaraó—concluiu,arir.

Para que o mensageiro de Tutmés tivesse tempo de regressar de Tebas, Neftis deixouescoaremmuitosdiassemparecernotarossofrimentosealutaíntimaquetrabalhavamaalmadeseu antigo noivo. Incapaz de dominar o insano amor, sem perder a compreensão da sua condutadesonestaparacomNeftis,Antefestavacomoqueemestado febril;o fogoque lhecirculavanasveias obscurecia seu raciocínio, e o combate recôndito que sustentava desmoralizava-odefinitivamente;estavacegoesurdoparatudoquantoocorriaemredor,eporissodeixaraaTutmésamplovagarparaopreparodafuga.Afinal,certamanhã,Neftisaproveitouummomentoemqueeleestavasozinhonoterraço,eveiosentar-se juntodele.Evitandoolhá-laetremendonervosamente,elepretendeuerguereesquivar-se,masamoçalhepegouamãoeoreteve.

—Fica,Antef,edeixa-meesclareceroquetunãotensasinceridadedemoconfessar.Julgas-metãocega,apontodenãoverqueamasMentchu,equeésamadoporela?Teuhonestocoraçãosofrepor faltaresàsobrigaçõesque julgas terparacomigo,eessa tortura tácita tedevora.Mas,meubomAntef, tenhopor tiumaafeiçãomuitoverdadeira,enãodesejooutracoisaalémda tuafelicidade,esoueuquemtevemdizer:desposaMentchu,sêditoso;eupermanecereialgumtempojuntodevós;semciúme,partilhareidavossafelicidade,eesperoquemeconcedaisemvossolarosdireitoseaamizadedeumairmã.

Antefescutara,corandoeempalidecendoalternadamente.Àsderradeiraspalavras,pegou-lheasmãos,easlevoufebrilmenteaoslábios.

— Neftis, tua doce generosidade mais me humilha ante meus próprios olhos; mas, dizes averdade;amoaMentchucominsensatapaixão,nãopossoviversemela;invencívelforçaacorrenta-meàsuapresença,e,desdequeadeixo,umainquietudeeumsofrimentomeassaltamdemaneirainsuportável,esomentereavistando-aexperimentorelativacalma.Talvezque,comoteuperdãoeunidoaMentchu,recupereasaúdedocorpoedaalma.Tereinecessidadedeteassegurarqueserássempre para mim uma irmã querida, e que minha casa é também tua, até que um marido, maisdignodoqueeu,teconduzaparaseular?

Nessemomento,chegouMentchu;mas,reparandonaanimadapalestra,deteve-se,pálidadeciúmeedecólera.Aovê-la,Neftisergueu-se,edisse,alegremente:

—Acalmateu injustoenfado,edeixa-mecolocartuamãonamãodonossobomAntef.Tudoestáexplicado;tuésanoiva,eembrevesuaesposa.Jura-meapenas,Mentchu,queofarásfeliz.

Comumaexclamaçãodejúbiloedeagradecimento,aviúvaabraçouNeftis.Depois,falaramdoporvir. Os dois pobres enfeitiçados acreditavam-se sinceramente os mais venturosos dos mortais.Comoconcursodeumpadreversadonessesgravesassuntos, foiescolhidoumdiapropícioparacelebração do casamento, e disto se cuidou ativamente, quanto aos indispensáveis preparativos.Três dias antes do matrimônio, chegou Hartatef, com a mensagem de Ranseneb. O profeta dotemplodeAmonexprimiatantacuriosidadequantosurpresacomrelaçãoaosprojetosdopríncipe,assegurando,porém,quetudoestariaprontopararecebê-lo,sugerindoqueaevasãosefizessesobodisfarce de escriba, em companhia de Hartatef, munido este de instruções detalhadas parasegurançadofugitivo.

Febril impaciência devorava o jovem banido; o chão parecia queimar sob seus pés, porqueNeftisjálhederaocolar,ornadocomumescaravelhodeprata,eopreciosovidrinhoquelhedeviasubordinar a vontade de Hatasu. Apesar disso, deu prova de domínio sobre si mesmo e dedissimulação, que foram de bom augúrio para o seu futuro papel de rei. Com a maior e franca

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jovialidade, tomou parte nos preparativos da festa, e exigiu que o festim fosse feito em suaresidência, e também constituiu um dia de gala para os soldados e servos. Enfim, parecia tãodivertido, estar tão longe de qualquer pensamento suspeito, que mesmo um homem bem maisperspicazdoqueAntef,emsuaatualsituação,ter-se-iaequivocado.

Chegouafinalotãodesejadodia.Tutmés,aparentandomaisalegriadoquenunca,ofereceuàdesposadaumvaliosobraceleteeaonoivoumapreciosaespada,epresidiu,elepróprio,aofestim.Ovinho foi servido à farta, animando, de instante a instante, a alegria dos convivas. Antef,particularmente, estava em embriaguez quase total, porque Neftis achara meio de derramar novinho algumas gotas do elixir encantado. Quando terminou o banquete, ninguém fez reparo nadesapariçãodeTutmés.

Enquanto prosseguiam os risos e festejos, por Isso que eram os noivos acompanhados àresidêncianupcial,opríncipe,envoltonummantoescuro,deslizavaparaforadopalácioechegava,semembaraços,asombriaruela,ondeHartatefoaguardava,comdoismuareseumavestimentadeescriba,paradisfarce.Vertiginosamente,Tutmésdespiuasricasvesteseassubstituiupelasimplestúnica, enfiando na cabeça a enorme peruca, e montou no animal. As roupas que despiu foramamarradasesumidasnumfossocheiodeágua.

Seguindoatrotecurto,osdoishomenschegaramàsportasdacidade,quetranspuseramsemóbices,porissoquesabiama“palavradepasse”.AumacertadistânciadeBouto,nahabitaçãodeumpastordotemplo,trocaramdeanimais,cavalgandoentãodoissoberboscorcéissírios,dirigindo-seagaloperumodaCapital.Emconsequênciadocopiosofestim,comsuperabundantedistribuiçãodevinhos,osonofoiprolongadonopaláciodeBouto,eodiahaviaavançadoemhorasquandoAntefsaiu do seu apartamento, sentindo-se como que alquebrado, cabeça pesada. Queria, entretanto,procuraropríncipe,paraagradecerosfavoresrecebidos.Neftisreteve-oemcaminho,felicitando-oepalestrandoalegrementecomele.Emboraconvencidadequeseualiadoestavabemdistante,eque esse avanço tornava inútil qualquer perseguição eficaz, apesar disso, todo o tempo queretardasseadescobertadafugalhepareceuprecioso.Àportadacâmaradopríncipe,oseuservo,tremente,declarouqueTutmésnãohaviaaparecidodurantetodaanoite.

A notícia era assaz grave e suficiente para dissipar mesmo o efeito do veneno, e, por isso,subitaneamentedesembriagado,comalividezdeummorto,ooficialprecipitou-separaointeriordoaposento: estava deserto. Depois de haver revistado todo o palácio, Antef correu ao templo, naesperança,frágilembora,dealireencontraroprisioneiro;mas,responderam-lhe,comespanto,queopríncipenãoforalá,eofereceram,semhesitar,fizesseAntefincursõesinclusivenosantuário.Comamortenaalma,retornouaodomicílio.Nãopodiailudir-se:Tutmésfugira.SematenderàsansiosasperguntasdaesposaedeNeftis,atirou-seaumacadeira,murmurandosoturnamente:

—Jogueiminhacabeçaeperdi.

Umsentimentodepiedadeparaohomemqueaamaratãofielmente,equeelasacrificaraafrioegoísmo,constringiuocoraçãodeNeftis.Noíntimo,jurouqueofariaperdoarporTutmés,seestesubisseaopoder.Aproximando-se,disse,energicamente:

—Emlugardelamúrias,devespensarnatuasegurança,Antef.Dirige-teaodeserto,oubuscainfiltrar-te em alguma caravana, mas protege-te contra a primeira cólera de Hatasu. Semnut époderosoepodeobterteuperdão;nomomento,porém,devesdesaparecer,levandoquantopossuasemouroejóias.NãoteinquietesporMentchu,porqueeuvelareiporela,enãoaabandonareiemcasoalgum.

Antef compreendeu a oportunidade do conselho, e, após bem tristes despedidas à jovemesposa,saiudacidade,tendoficadodecididoqueNeftisesuacompanheiraregressariamaTebas,combinando-setambémamaneiradeobternotíciasarespeitodele.SemembargodaimpaciênciadeNeftis em abandonar Bouto, foi retida por grave enfermidade de Mentchu, que, esgotada esuperexcitadapelovenenosoperfume,atingidaemplenocoraçãopeladesgraçadomarido,foipresade violenta febre. Muitas semanas decorreram, antes que recobrasse forças suficientes paraempreenderaviagemaTebas.

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VII

HATASUSOBAAÇAODOFEITIÇOSerena e calma era a noite. Na sombra azul do céu cintilava talmultidão de estrelas, que

semelhava um dossel tecido em fios de prata. Através das ruas desertas e silenciosas de Tebasadormecida uma liteira, carregada por quatro vigorosos homens, dirigia-se celeremente rumo dotemplodeHator,emcujaentradasedetiveram,sobasmaciçascolunaspintadas,queprojetavamsombrasprofundas.Umvultofeminino,envoltoemextensovéu,desceudaliteira,e,seguidadeumapreta velha, subiu os degraus e penetrou no templo, no limiar do qual um padre, empunhandoarchote,recebeu-arespeitoso,iluminando-lheocaminho.Anoturnavisitantenãosuspeitouqueumserhumano,ocultonasombradeumadascolunas juntodaqualacabavadepassar,aobservara,comfuzilanteolhar,desdequandodesceradaliteira.Essealguém,protegidoporescuromanto,decapuz, tinhanamãoumobjeto escondido zelosamentenasdobrasda vestimenta, semdesviar osolhosdaentradadotemplo.Deviateresperadomuito;aimpaciênciafazia-lhetremeramãoearfaropeito,quando,afinal,aluzdatochareapareceueprojetoudébilralodeclaridadeavermelhadanaslajesdoperistiloenasombradotalheesbeltodamulhervelada.Noinstanteemqueadesconhecidapassavarapidamentejuntodacoluna,ohomemescondidoàsuasombrafez-severesurgiudemodotão inesperado ante a visitante, que esta recuou involuntariamente, fixando, com surpresa, oscontornosindecisosdeumsemblanteiluminadopordoisolhosfosforescentes,lembrandoosdeumfelino,sobaproteçãodocapuz;mas,antesqueelapudessedar-secontadasituação,sentiuquelhepegavamamão,neladepondoumobjetoúmidoe frio,aomesmo tempoqueumvultodehomemreimergianapenumbra,desaparecendo.

—Quesignificaisto?exclamouamulher,voltando-seechamandoopadre,quesedetiveranoumbral.

Osacerdoteatendeuprestamente,eentãoHatasu,porqueeraela,viuquetinhanamãoumavirentehastederoseiraemcujaextremidadevicejavaumaflorpurpurina,recém-desabrochada,eumbotãoderosaprestesaabrirtambém.

—Quem ousou seguir-te, rainha, e ingressar no recinto sagrado? exclamou por sua vez opadre.Voudaralarmeimediatoefazerapanharoímpio.

Arainhafezrápidogestonegativo.

—Detém-te,Setnecht.Proíbo-tefazerruídoporumafutilidade,eperseguirumpobrelunático,que,semdúvida,metomouporoutrapessoa.

Subiu à liteira, e, a sorrir, respirou várias vezes a flor, cujoperfume forte e acariciador lhepareceudosmaisdeliciososdequantoshouveraconhecido.Afogueada,cabeçapesando,reentrounopalácio, e, chegada aos aposentos, examinou ainda a rosa tão misteriosamente oferecida.Relembrando o devorante olhar quepor instantes se fixara sobre ela, não teve dúvidas de que oofertanteseequivocara.

—Homenagemdefloresàrainhaouàmulher?—murmurouparasiprópria.

Desdenhososorrisoaflorou-lheaoslábios,aopensarqueninguémnoEgitoousariaerguerosolhos para vê-la simples — mulher —, a ela, a orgulhosa Faraó Hatasu, que, desprezando asfraquezasdosexo,sustentava,audaz,simultaneamenteocetro,aespadaeapostiçabarbadorei!Semembargo,respirouarosarepetidasvezes,dando-adepoisaAma,paraqueacolocassenumafloreira próxima. Em seguida, deitou-se e adormeceu; mas, a respiração perturbada, osestremecimentosnervososquelheagitavamocorpo,ainquietudecomquesevoltavaoraparaumora para outro lado do leito, demonstravam que o sono estava bem longe de ser o de repouso.Efetivamente, sonhos, pesados e enervantes quanto o são os pesadelos, povoavam-lhe o cérebro;parecia-lhe ver Tutmés, o jovem irmão e rival, pretendendo estrangulá-la sob uma avalanche derosascujoodorsufocantelhetolhiaarespiração.Depois,apercebia-sedequenãoeramaisoexiladode Bouto, e sim um jovem desconhecido que se dobrava sobre ela, trespassando-a com olharterrivelmenteagudo,apontodelhedarasensaçãodeumdardoatravessandoopeito.Afinal,tudosefundiu,edivisouNaromath,vacilanteemesbranquiçadanuvem,estendendo-lheosbraços,navãtentativadeaproximar-se.

Hatasu despertou tarde, invadida de forte mal-estar, a cabeça pesada e dolorida, facesincendidas, recôndito sofrimento a torturá-la, e a impaciência e cólera durante o serviço da sua

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“toilette”espantarameatemorizaramasfâmulas.

NoConselhoquepresidiuaseguir,ouviudistraídaosrelatóriosdosdignitários,repreendendoseveramente pequenas omissões, e, assim, nessa plenitude de irritação, e de indeterminadaangústia,regressouaosaposentos.Casualmente,oolharincidiunarosa,queaindapermanecianajarrinha. Pegando a flor, novamente a cheirou,mas o aroma diminuíra sensivelmente, embora aspétalasconservassemplenofrescor.Depois,presadesúbitaimpaciência,murmurou:

— Estúpida flor! Foi decerto o teu forte odor que me produziu dor de cabeça; mas, creioloucuraguardaradádivasuspeitadeumaudaciosoadmirador.

E,comumbruscomovimento,atiroua florpela janelaaberta.Earosa ficoususpensanumtufoespessode jasmins,enquantoarainhaserecostou inquieta,descontentedetudoepensandoemNaromath.

Depois da refeição da tarde, recebeu uma notícia que lhe dissipou como que por encantoqualquerquimerasentimental:lívido,trêmulo,Semnutveioanunciar-lheafugadeTutmés.Emboraforadesi,pelacólera,Hatasu,anteoperigoqueameaçavaoseupoderiodominouquaisqueroutrossentimentos,paradeterminar,comcalma,enérgicasprovidências.Muitosdiasescoaramemfebrisatividades,mas Tutmés continuava eclipsado. Asmedidas de precaução, no entanto, eram de talordem,queumasedição,tentadanesseambiente,nãoofereciaqualquerprobabilidadedeêxito.

Aproximadamente oito dias depois da visita ao templo deHator, a rainha, exaustamoral efisicamentepeloslabores,inquietudeseemoçõesdasemana,refugiara-separaoterraçoprivativo.E, afastando os serviçais, estendera-se num leito de repouso, afundando-se em silencioso pensar.Era uma vasta balaustrada, ornada em redor de maciços de arbustos odoríferos, plantados emamplas selhas; alguns degraus, ao cimo dos quais vigiavam dois leões de granito, conduziam aojardim.Duaspalmeiras,aotérminodaescada,projetavamasombradeseusverdeslequesvegetaissobre as lajes de granito róseo, e, por entre os bosquetes, cintilava a superfície lisa de grandetanque. A Lua surgira havia pouco, iluminando com brilhante mas suave claridade todo o local,plenodecalmaprofundaemisteriosa.ApenasocoraçãohumanonãocorrespondiaàquietudedaNatureza.Asenhoradessesoberbopalácio,desseencantadojardim,estavaenceguecidapelasgalasque a rodeavam; a grande voz da divindade, que, por suas criações, lhe predicava a calma, acontemplaçãodasperfeiçõeseadasfragilidadeshumanas,nãolheatingiaaalmaintumescidapeloorgulho, sombreada pela ambição. Pensamentos amargos e tempestuosos agitavam o espírito deHatasu;repreendia-seporhaverconfiadoaguardadeTutmésaestranhasmãos,deixandoensejosaosinimigos,ospadreseosdescontentes,deexasperarocoraçãodoadolescente,despertandoneleprecoces ambições, que servissem para torná-lo dócil instrumento de criminosas intrigas. Não(pensavaarainha),juntodemimdeveriaeutê-loguardadoparalheplasmaraalmajuvenilsegundoaminha vontade. Onde se ocultava o perigoso fugitivo, que, de um instante para outro, poderiasurgirondemenosoesperassem,earvoraroestandartedarevolta?

Idéias ainda mais penosas, mais mescladas de esperanças e temores, faziam bater comviolênciaocoraçãodeumadolescente,depequenotalhe,escondidonooutroextremodoterraço,entreosmaciçosartificiais, e cujosolhos flamejantesnão sedesfixavamdo rostoda soberana.Osilencioso companheiro deHatasu era Tutmés, vindo para tentar conseguir algo, sob o efeito doperfumeenfeitiçante.Agora,aopensamentodequeosortilégionãoproduzisseefeito,gélidosuorumedeceu-lheafronte,porque,nessecaso,teriaarriscadoeperdidoaliberdade,equiçáaprópriavida.Ospadres,naignorânciadosegredo,haviamtachadodeinsanooprojetodeaproximação,etentadomesmoimpedi-lo;mas,pelaprimeiravez,ojovemabutremostravabicoeunhas,afirmandoimutávelaresoluçãodetriunfarcomairmãeobteraliberdadeirrestrita,oumorrerimediatamente,pois preferia a morte á existência de prisioneiro ou fugitivo. Um dedicado ao templo lhe haviafacilitadoaentradaempalácio, indicando-lhe tambémo terraçoondepreferencialmentea rainhacostumava fruir as brisas do anoitecer, e através do qual poderia igualmente chegar aosapartamentosdasoberana.

Tutmésestivera cercademeiahoraocultoentreosarbustos,quandoa rainhaapareceunoterraço.Depoisdeagitadoandaraolongodolocal,estirou-senoleitoderepouso.Largointervalodecorreu, e o jovem não se decidia ainda a dar o passo decisivo. Olhava a irmã, com agitaçãoprogressiva;oodorforteedeletériodoencantadocolarquetraziaaopescoçosubia-lheaocérebro,intensificando o latejar das têmporas e oprimindo-lhe a respiração; mil suposições sobre o quedeveriasobrevirturbilhonavamemsuamentesuperexcitada...Mas,desúbitolheveioopensamentodeque,seoperfumeenfeitiçantedespertasseemHatasuamorporele,arainhapoderiadesposá-lo;mas, embora tal solução lhe solvesse todas as dificuldades, estranho sentimento comprimiu ocoraçãodoadolescente,umfluxodesanguelhesubiuàsfaces,e,pelaprimeiravez,examinouequisdescobriramulhernessairmã,naambiciosasoberanaquesempreolharaapenassoboaspectoderival.

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O acaso favoreceu-lhe a contemplação, pois a claridade era perfeita e a admiráveltransparência atmosférica permitia-lhe distinguir cada incrustação do móvel de repouso, asesculturasdapequenamesadesândalosobreaqualestavamumcopofeitodeouroeumlequedepenas brilhantes.E o olhar deTutmésdeslizou desses objetos para fixar ardentemente amulherimobilizadasobreoscoxinsdepúrpurapontilhadadeouro.Ligeiraeajustadatúnicadelinhovestiaarainha,amoldando-seaocorpoefazendoressaltarasformasesbeltaseelegantes,queaindanãohaviam perdido em nada a elasticidade e a graça da primeira juventude. O braço, que lhedespontava da curtamanga vigorosamente e se destacava sobre a alvura da vestimenta, era deadmirávelcontornoeterminavaporpequeninamão,fina,dedosafilados,parecendoincrívelquetalmãozinha,quaseinfantil,soubessetãoáspera,tãorudementesusterocetro,dirigiregovernarumgrande império; a espessa cabeleira, liberta de qualquer penteado ou adorno, espargia-se noscoxins, envolvendo, qual negro véu, seu semblante e perfil de puros e regulares traços. Assimestendida,comofinonariz,bocaseveraeenérgica,pálpebrasdescidasefranjadasdelongoscíliosrecurvadosparaoalto,pareciasósiadeumaestátua.

— Sim, ainda é bastante bela para fazer pulsar um coração — pensou involuntariamenteTutmés.Mas, o aroma enfeitiçante agiria sobre essa natureza, da qual ele conhecia a têmpera?Mudar-lhe-iaocursodospensamentosqueseagitavamsobaquelafrontepálida,asdecisõestalvezsinistraspressagiadasnossupercíliossubitamentecontraídos?

Aopeso desta preocupação e domal-estar que o enervava, o jovem esqueceu o lugar ondeestava,suspirouprofundamente,eobruscomovimentoqueexecutou,paralevaramãoàfronte,feztilintar os braceletes de encontro aos elos do colar. A esse som metálico, a rainha soergueu-serápida,seuperscrutadorolharinvestigoutudoemredor,e,comindizívelestupefação,viupequenoeesbeltocorpodeadolescentesurgirdofundodoterraço,eavançarparaela,célereesilenciosoqualumasombra.E,antesquepudessecoordenaropensamentoouemitirumgrito,ojovemajoelhara,abraçando-lheosjoelhosedizendoembaixaeemocionadavoz:

—Nãochamesalguém,Hatasu;soueu!

—Tutmés!Insensato!Ousaspenetraraqui?—murmurouarainha,atônitaerecaindonoleito.

— Sim, sou eu; mas, não venho na qualidade de rebelde, e sim na de suplicante, que seentregaaoteuarbítrio.Porpiedade,mata-me,seaminhavidaconstituiobstáculo,ou,então,deixa-meviverjuntodeti,nacondiçãofraternadeteusúdito,príncipedatuafamília;mas,nãomeexilesmaisparaessecharcoondepercoa razão,à forçade tédioedesespero; lembra-tedequesomosfilhosdomesmopai,nãomerepilasmais.

Elesecurvou,comoqueparalernafisionomiadairmã,epegando-lheambasasmãosaatraiuasi.Arainhanãorespondeu.Comoqueinvadidapordepressãoinédita,apoiou-senoscotovelos.Oefeito enervante do veneno perfumado, que respirou então, agiu, aturdindo-a e dificultando-lhe arespiração.Apesardisso,porqueoaromadeletérioperdesseeficiênciaaocontactodoarambiente,ou porque o natural dominador da rainha e o hábito de sofrear sentimentos lhe servissem depreservativo,averdadeéqueapenaslheveioumpensamentodepiedade,deindulgênciamaternalpor esse adolescente, que, a despeito de tudo, era seu irmão. Como se as palavras ouvidas ahouvessem invocado, a imagem do pai surgiu ao seu espírito, e então recordou certa noite, nodecursodaqualogenitor,poucoantesdemorrer,lhelevaraaoaposentoumfranzinomeninote,deaproximadosseteanosdeidade,edisseracomtristeza:

—Tenhopressentimentodequemeufimestápróximo.Promete-me,Hatasu,que,poramordeminha memória, protegerás esta criança, e que esta súplica que te dirijo servirá de escudo aoorfãozinho,quandoeumefor.

Agitada,olhosplenosdelágrimas,pousouentãoasmãosnafrontedopequenoerespondeu:

—Que nefasto espírito te inspira esses tristonhos pensamentos? Viverás, pai querido, paraglória de teus povos; mas, se minha promessa te causa alguma alegria, juro-te velar por estacriança.

Depois, erguendo o menino, ela o abraçou, enquanto um sorriso de satisfação iluminava opálidosemblantedeTutmésI.Agora,nãoeraasombradovelhoreiarelembrartalpromessafeitapelafilhaesucessora?Esseadolescenteerapassíveldecensuraporhaveracastasacerdotalfeitodeleuminstrumentodeperturbação,destinadoahumilharaorgulhosaindependênciadeespíritodarainha, que lhe desprezava a supremacia? Nesse momento, não lhe oferecia a sorte inopinadaocasiãoderepararumafaltaqueelaprópriadeploravaalgunsminutosantes?

A rainha, suspirando,ergueu-seedesceuoolharparao semblante infantildeTutmés,que,aindaajoelhado,lábiosansiosamenteentreabertos,olhoslacrimosos,aolhava,semlhecompreender

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o longo silêncio. Novamente, lânguido sentimento de afeição e de pesar, uma necessidade deternurainvadiram-lheaalma.Inclinando-se,cingiucomasmãosafrontedoadolescenteeabeijou.

— Tu vens, súplice, apelando para amemória do nosso divino e glorioso pai. Não foi vã ainvocação,eeutedouobeijofraternal,porqueémaisdoceamardoquemaltratar.Ageagorademodoquejamaistenhadelamentarestemomento.Nãotedouotrono,porquedevoreinarsozinha,masconcedo-teosdireitosehonrariasdevidosaomeuirmão,eumdia(Hatasusorriucomtristeza)acoroaqueambicionastecaberá,pordireito,poisnãotenhoherdeiros.(18)

(18)NAOTENHOHERDEIROS-ApesardomuitoquenosmereceorutilanteEspíritodeRochester,estaparticularidadeesbarraemafirmativacontrária,feitaporArthurWeigall,"antigoinspetordasantigüidadesdogovernoegípcio".Apágina108dasuaHistóriadoEgitoAntigo,afirmaque,poucodepoisdomatrimôniocomTutmésII,houveHatasuumaprimeirafilha,aquemdeuonomedeNefrourê,emaistarde,depoisdeanimosidadesurgidanocasal,reconciliado,umasegundafilha,querecebeuonomedeHatshepsut-Meritrê.DopróprioTutmésII,segundoditoautor,ficouumfilhobastardo,havidocomumacriaturasemqualquerhierarquiasocial.

A estas palavras, a esse ósculo tão francamente dado, tumultuoso sentimento de vexame ehumilhação turbilhonou a alma jovem, honesta e orgulhosa, de Tutmés; à lembrança do recursotraiçoeiroqueempregaraparacaptarumaafeiçãoquenãomerecia,edaqualospadresqueriamabusarparadestruiraquelamulherquelhedavaobeijofraternal,ardenterubortingiu-lheasfaces.

— Sou um traidor para contigo! (quase gritou, sob o impulso de tais sentimentos e doenervamentoquelheproduziraoenvenenadoraroma).

Mas, ainda teve forças para reter essa confissão, embora elas lhe faltassempara conter aslágrimasqueemanaramsubitamentedosseusolhos,inundandoasmãosdarainhaecontraasquaispremiuasincendidasfaces.

Hatasu, emocionada por esse acesso de desespero, que atribuiu à reação aos temores eapreensõessofridospelojovem,levantou-lheafronte,enxugouaslágrimasqueaindaperolavamorostodoirmão,edisse,asorrir:

— Calma-te. O passado está extinto e esquecido, e o futuro Tutmés III não deve serchoramingas.Senta-tenessetamborete,econversemosumpoucoarespeitodanovaexistênciaquevais viver. Tua hierarquia e tua idade descortinam largo e radioso porvir. Frui esse futuroalegremente, mas, dentro dos limites razoáveis, com as despreocupações e prazeres que sãoapanágioda juventude.Bemdepressavirãooscuidadoseárduos laboresdogoverno,poisébempesadaagrandecoroadossoberanosdoNilo.Eaindaumacoisa,Tutmés:nãoescutes,nemacolhascegamenteasinsinuaçõesdospadres.Umfuturoreideveaprenderajulgarporsimesmo,ealernaalma dos homens. Os servidores dos templos ensinaram-te a detestar-me, no grau de inimiga, eagoraelesnossepararam,fazendodetiarmacontraaminhavidaeautoridade.Paraquê?Paraqueacriançainexperiente,quecolocariamnotrono, fosseseuescravo,o instrumentodoseupoderio,quedesejariamelevaracimadavontadereal,devezquesedizemrepresentantes,mandatáriosdosdeusesquereinamsobreoUniverso.Seja!Queopovoassimosconsidere;mas,ossoberanosdoEgito são filhos de Amon-Ra, o sangue do deus lhes circula nas veias, e não necessitam deIntermediários entre o Faraó e seu Imortal Pai. Os imensos templos, os suntuosos túmulos queconstruímossãohomenagensaosdeuses,monumentosdestinadosaperpetuarnossosnomes,nossaglória,agrandezadenossosatos;essasconstruçõesgigantescas,naelevaçãodasquais fundimossomas incalculáveis, tomadas à totalidade dos povos vencidos, o clero, insaciável e intrigante,desejariafazerdelasumpedestal,e,autorizando-secomonomedadivindade,colocar-seacimadorei.Nenhumsoberano,dignodestetítulo,admitiráisso,porquesóumSolbrilhanocéu,eavontadedoFaraódeveregeroimpério.

Animara-sea rainha,àproporçãoque falara;odesmesuradoorgulhoque lheenchiaaalmatransbordava nos olhos flamejantes, na curva dos lábios, na máscula vibração da voz metálica.Tutmés escutava, violentamente agitado: tal ensoberbecida convicção de pairar acima daHumanidade,talarrogânciareal,encontravaecoemsuaalmaaltaneiraeambiciosa,sentindoqueHatasudiziaaverdade,aoafirmarqueeleerainstrumentonasmãosdospadres,e,pelaprimeiravez,surdarevoltabramiu-lherecônditacontraaquelesquesemprelherepetiamqueaelesdeveriatodo o poderio a alcançar no futuro. Arquitetava ainda uma resposta, conciliante de seuspensamentos com a prudência a guardar, quando a rainha, com a mobilidade habitual do seuespírito,odispensoudetal,perguntando-lhe,bruscamente:

—Dequemodoconseguistefugir?FoiAntefquemteajudou?

—Não;esobreamemóriadenossodivinopai,juroqueAnteféteuservidorfiel;aproveiteiaoportunidadefestivadoseucasamentoparaevadir-me.

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—Comquemeondeteescondesteaqui?Oinquéritoapurouquedoisservidoresdotemplo,servindo-sedapalavradepasse,franquearamumadasportasdafortificação.

—Sim, eumedisfarceideescriba, e fui ocultadono templodeAmon.Mas,Hatasu, tunãopunirásninguémporisso—balbuciouTutmés,intimidadopelotrespassanteeperquiridorolhardasoberana.

—Tranquiliza-te,nãopunireipessoaalguma,poisquejáteperdoei.Foramospadresqueteaconselharamtambémaviraqui?

—Não,issofoiresoluçãominha.

IndefinívelsorrisoperpassoupeloslábiosdeHatasu.

—Fostebeminspiradoemnãoseguirconselhosdeles,naespreitademomentofavorávelparaatacar-me abertamente. Mas, basta, por hoje. Segue-me, vou dar ordens para tua instalaçãoprovisória.

Ergueu-see levouTutmésparaseusaposentos,ondemandouqueaaguardasse.Passandoaoutradependência, fezsoar trêsvezesumdiscosonoro.Semdemora, foierguidooreposteirodaporta,eooficialdeserviçoapareceu:eraKeniamun.

— Transmite ao chefe do palácio ordem de reunir, na sala pequena de recepções, ocomandantedasguardas,oficiaisefuncionáriosdeserviçoestanoite,ebemassimmeusescribasparticulares,eaindaoastrólogoRameri,aquemincumbide lerhoje,nasestrelas,avontadedosImortais.Apressa-te,porquedentrodemeiahoraqueroestarnasuapresença.CasoSemnutnãosehajaretirado,dize-lhequevenhafalar-meimediatamente.

O oficial correu a executar as ordens recebidas, e, antes da premarcada meia hora, umaverdadeiramultidãodeoficiais,padresefuncionáriosdetodasascategoriaseidadesseacotovelavanadesignadasala, feericamenteiluminadapor lâmpadasearchotes.Todosestavamansiosos,semnadacompreenderdaquelaconvocaçãonoturna;mas,asconjeturastransformaram-seemabsolutoassombro,quandoapareceuHatasu,guiandopelamãoojovemTutmés.Sabia-se,emTebas,queoexilado fugira de Bouto, e aguardavam-se acontecimentos terríveis e sangrentos a propósito, ejamaisaquelacordialidadeabsolutamenteincompreensível.

Arainha,quevestirasobreotrajebrancoumatúnicadelinhofiníssimoepurpurina,cingindoa frontecomdiademadeouro, subiuaoestrado,permanecendodepé juntodo trono.Opríncipeficaranopenúltimodegrau.Então,designando-oàassembléia,arainhadeclarouque,inspiradaporAmon-Ra, se reconciliara com o irmão, concedendo-lhe os direitos e as honrarias devidas aoherdeiro presuntivo do trono. Aclamações, gritos e bênçãos responderam a comunicação, na suamaioriasinceras,porquetalmiraculosareconciliaçãoafastavaainquietanteperspectivadaguerracivil.Emseguida,arainhaordenouque,paraodiaseguinte,fossemconvocadososconselheiros,osescribas reais dos domínios e os guardiães dos tesouros, para regularização das condições edomicílio do príncipe. O encarregado dos apartamentos recebeu ordem de alojar Tutmés,provisoriamente,eochefedasguardasadelheformarumapequenaescoltadesegurançanoturna.Depois,Hatasudetodossedespediubondosamente,ecadaumvoltouàsuatarefa.

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VIII

OENFEITIÇADOREMTEBASAnotíciadareconciliaçãodarainhacomTutmésproduziuemtodooEgitoprofundasensação.

Todosospartidáriosdaordemeda tranquilidade rejubilaram-sesinceramente;osdescontenteseambiciosos calaram, na expectativa de que tal pacificação não seria duradoura. A população deTebas tomou, no grave acontecimento político, parte muito ativa, não só pelas discussões, mastambém pelo que constataram com os olhos, de vez que a rainha foi ao templo de Amon-Ra,acompanhada de Tutmés, e depois à cidade morta, onde ambos ofereceram sacrifícios sobre otúmulodogenitor.Àsduassolenidades,celebradascomexcepcionais imponências,assistiramnãosóoshabitantesdaCapital,mastambémaspopulaçõescircunvizinhas,tendoasoberanarecebidoaclamaçõessuperioresaquantasatéentãolhehaviamsidotributadas.

Não se extinguira ainda a emoção causada pela reconciliação da família real, quando umanotícia,nãomenosinesperada,veioexcitaracuriosidadedetodos:opríncipeHoremseb(dizia-se)viriaaTebassaudararealparentaesoberana,eapresentar-lheospreitosdereverênciapelasuaascensãoaotrono.

A longa ausência do príncipe, seu misterioso e retirado viver haviam gerado muitoscomentários estranhos, de modo que, ao anúncio da chegada, a atenção geral se fixouImediatamente no vasto palácio, deserto e silencioso havia muito, do príncipe, próximo daresidênciadoFaraó.Comoqueporencantamento,aimensahabitaçãoseanimara,e,sobasordensde Hapzefaá, um exército de serviçais trabalhava para limpar e pôr em ordem todas as coisas;numerosos barcos, atestados de objetos preciosos, haviam chegado de Mênfis, e, segundo agrandiosidadedospreparativos, fácil se tornavaavaliarqueopríncipedesejava “fazer figura”naCapital.Causoureparoofatodehaverointendentedopaláciocompradonumerososescravos,emvezdeostrazerdeondeviera,eacuriosidadeemtornodachegadadeHoremsebaumentouaindamais.

Em uma bela tarde, aproximadamente três semanas depois dos sucessos narrados,Neith eRoant estavam reunidas no terraço da casa desta. A esposa do chefe das guardas falavaanimadamente, acalentando nos braços um tenro filhinho. Adormecida a criança, a jovem mãeretomou com entusiasmo o assunto das últimas novidades concernentes ao príncipe Horemseb.Estava informada, pelo esposo, de que a rainha fixara a apresentação do príncipe para amesmadatadagranderecepçãodasdeputaçõesdospovostributários,queviriamapresentarhomenagensàsoberana, cerimônia que devia ser dasmais suntuárias, demodo que as cogitações de Roant seconcentravam na chegada do enfeitiçador e no lugar que ela obteria no séquito real, a fim decolocar-sebemeassimapreciarodesfiledocortejo.Preocupadacomofilhinhoecomosprojetosparaafesta,RoantnãopareceurepararnosombriosilênciodeNeith,que,comacabeçareclinadanoencostodacadeira,olharperdidoparaoalto,dir-se-iaquemalaescutava.

—Comopodestomarverdadeirointeressepelachegadadessehomemdesconhecido,vaidosoegasto?Todoomistériodeque se rodeia é forjadoapenaspara chamaratenção— interrompeuNeith,subitamente,comIrritadonervosismovibrandonavoz.DeixemosesseimbecilHoremseb,edize-meantesquandoRomaregressarádeHeliópolis.Querovê-loedizer-lhequeele,apenasele,éculpadodetudo,pois,dehámuito,estaríamoscasadoseditosos,seelenãomehouvesseforçadoaaceitar esta fatal separação. Agora, não ouso faltar à promessa feita, para a qual invoquei otestemunhodeHator.

RoantolhouparaNeith,surpreendida.

— Roma regressará brevemente, e, decerto, não espera ouvir censuras sobre esse velhoassunto.Quantoaopríncipe,nãocompreendoqueteirritescontraele,salvo(ecomeçouarir)seépressentimento de te apaixonares por ele, pois, dizem, todas asmulheres escravizam o coração,quandoHoremsebasolhacomafeto,enãoserájuntodeti,amaisbelafilhadeTebas,quepassaráindiferente.

Longedealegrar-se,Neithiarespondercomímpeto,quandoaentradadochefedasguardasinterrompeuodiálogo.Chnumhotep, tendoabraçadoa esposae o filho, apertouamãodeNeith,depoisdesembaraçou-sedasarmas,e,sentando-se,disse,jovialmente:

—EstavamfalandoemHoremseb,e tenhooprazerdeanunciarasuachegada.Encontreiocortejo esplêndido que o acompanhou da barca ao palácio, estando ele, na liteira, impassível e

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indiferente,semelhandoumdeusdegranito.

—Éeletãoformoso,quantoodizem?—interrogouRoant,curiosa.

— Mão sou juiz competente em beleza masculina, mas, apesar disso, parece-mesuficientementesedutorparainspirartemores,amimetodososmaridos,paiseamantesdeTebas—respondeuChnumhotep,rindoexpansivamente.Dizem-noterrivelmenteperigoso,quantocruel,e—avisoavós!—seucoraçãopermaneceinabordávelefrioaosmaisdivinosatrativos,contentando-seeminspirarpaixões.

—Paramim,podeeleficargélidoqualummorto,porquemeinteressamuitopouco,alémdequeopensamentoquemeoprime,desdeestamanhã,ésuficientepreservativocontrafrivolidadesdeamor—disseNeith,ematitudepreocupada.

—Quesignificamestesmistérios?—exclamouRoant, impaciente.Desdeháalgumashoras,vejoquetensamortenaalma,semquedigasomotivodetal,amim,atuamelhoramiga!

—Sargonfoiagraciado—murmurouNeith,comangústiaecóleraalteradanavoz.

—Sargoncomutado!Desdequando?Éimpossível!—disseRoant,noaugedaestupefação.

—Nadaémaisverdadeiro,entretanto,enãoéelesóque,porimerecidagraça,fugiráaumajustapunição—interveioChnumhotep,dirigindocompassivoepesarosoolharaNeith,quefecharaosolhos,apoiandoafrontenoombrodeRoant.

—Quaisosoutros?

—Aindanãoseiosnomesdetodososquevãoseranistiados,mas,aocimodalista,figuramSargon,HartatefeAntef.

— O traidor! O sacrílego! exclamaram ambas, simultaneamente, tiradas dos preocupadospensamentosanteainsólitanotícia.

— Apenas compreendo que a rainha Indultasse Sargon, mas, a Antef, que traiu!... Éprincipalmenteestranhoqueelaqueiraofenderospadres,agraciandoumblasfemo,sacrílego,qualofoiHartatef—concluiuRoant.

—OsmilagresnãosãorarosemTebas,desdehátrêssemanas:foiopróprioSumoSacerdotequemImpetroueobteveacomutaçãodeHartatef—respondeu-lheoesposo,emtomchocarreiro,divertidocomaexpressãoembasbacadaeincréduladorostodeambas.

Mas,refeitasdopasmo,assediaram-noparaminuciosospormenoresdainusitadanovidade,e,porque ele se fizesse rogado, prodigalizaram-lhe delicadas atenções, no intuito de demovê-lo dasreservas: Neith, meio refeita do abatimento anterior, adquirira tom de voz rival da de umcomandantedetropas;Roantafagouomarido,servindo-lhevinhoefrutas,edepoissentou-seaoseu lado, abanando-o com um leque, para amenizar o calor durante a esperada narrativa.Chnumhotep, após motejar um pouco do zelo e da curiosidade da mulher, disse, retomando aseriedade:

— Tendes razão, porque tudo Isso é inverossímil, e, apesar disso, foi tudo combinadosimplesmente,ontem,ànoite,demodoinesperado.Osdetalhesquevoudarsãoexatíssimose,osaque não assisti, eu os ouvi de Ranseneb, que acompanhava o Sumo Sacerdote. Já sabeis que aconciliação entre a rainha e Tutmés excedeu a todas as expectativas, e não ouso pensar se foi ocoraçãoouapenasahabilidadepolíticaqueainspirou.Emqualquerhipótese,porém,ameuver,areconciliação neutralizou a influência dos padres sobre o jovem príncipe, o qual, inebriado deliberdadeeprazeres,pensará somenteemgozara vidae recuperaro tempoperdidonoexílio.Éjusto salientar que a rainha o dotou regiamente, apresentando-o herdeiro do trono, e pareceprazerosaemcumulá-lodedádivasehonrarias.Acaçadadeontemesteveesplêndida,earainha,ela própria, abateu duas gazelas, com aquela espantosa segurança de mãos. Quanto a Tutmés,chegouairritar-se,e,quandoteveensejodeatingirumleãozinho(deregulartamanho,diga-se),seuentusiasmoesatisfaçãoforamsemlimites.Aoregresso,pediuparasubstituirooficialcondutordarainha,afimdelhenarraremminúciaessagrandeproeza,sendoatendido.

—Encontrei,ontem,oséquito,quandoeuregressavadacasadeTahoser—InterveioNeith—,efiqueiatônitaaoverTutmésguiandoocarrodarainha.Quelindaparelhadecavalos!Asmantasvermelhasestavamdetalmodobordadasecheiasdepedrarias,quefaziaminveja,eeuatélamenteiquetãobelaspreciosidadesestivessememporcalhadasdepoeira!

—Sim,Hatasuapreciaamagnificência.Mas,retornemosànarrativa.Entrounopalácioobom

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humor;láestavamoSumoSacerdotedeAmoneRanseneb,paraagradeceràrainhaumacargademadeiradesândaloenumerosasânforasde finasessênciasqueelaenviaraemdádivaaotemplo.Como era natural, falaramda caçada (e aqui começa o que ouvi do profeta, depois que deixei opalácio),earainhaelogiouodenodoeadestrezadoirmão,aquemdoousoberbacoleçãodearmasacumuladasporTutmés I, por julgar ser ele dignode as possuir. Tutmés expandiu a alegria, e arainha julgou oportuno, embora a rir, aconselhá-lo a moderar essas expansões; mas, avaliai doconstrangimentodetodos,quandooimprudentemoçodeclarouquenãopodiadeixardecorrerumdianoqualarainhaespalhavatantocontentamentoemtornodesi—verdadeirafilhadeRa—semlheimpetrarumagraçaemfavordealguém,decujadesventurasegeraraafelicidadedele,Tutmés.E pronunciou o nome de Antef. Penoso foi o silêncio que se seguiu, e Semnut, ao que se diz,mostravanorostoalividezdeumcadáver,aopensamentodequemereciacondenaçãoatrabalhosforçados,porhaverrecomendadooestúpidosobrinho.Arainha,porém,nãopareceucontrariada,edisse;

— Tua rogativa é honrosa, pois convém a um rei não esquecer aqueles que, mesmoinvoluntariamente,lheprestamserviços.VouanistiarAntef,ecomissodesejoprovar,maisumavez,aestimaeagratidãoquetenhopelomeuzelosoefielservidor,Semnut.

Comovidíssimo,semdúvida,Semnutprosterna-se,e,porentrelágrimas,agradeceàsoberana,balbuciandodepois:

— Ah! rainha, divina benfeitora, se a tua misericórdia perdoa tão grande criminoso, nãopoderáestender-seaoutroculpado,Sargon, tambémperdidopeloamor,equeseconsome longedosteusolharesvivificantesedajovemesposa,nostrabalhosforçadosdosestaleiros?

—Ranseneb—prosseguiu o narrador— julga (e estou de acordo com ele) que omanhosoSemnutagradouàrainha,proporcionando-lhetalensejopararepatriaroseuprotegido,tantoassimque, sempre a sorrir, concedeu o indulto, acrescentando desejar fazer daquele incidenteoportunidadeparamaisamplagraça,eautorizavaoSumoSacerdoteeSemnutaorganizaremalistadaquelesquepoderiamseranistiados.FoientãoqueoSumoSacerdotepediuporHartatef,e,anteanaturalsurpresadasoberana,explicouqueHartatef,homemreligiosoehonesto,foralevadoaoatosacrílegopelainfluênciadeapavorantesortilégio,eque, istoconstatado,osdeusesperdoavam,e,pelabocadeseuservidor,intercediamporele.Hatasunãofezobjeção,edeterminouarestituiçãodosrespectivosbens,excetoapartedoadaao templo.Eusoubetudo issohoje,pelamanhã,e foisemdúvidaSemnutquemtecomunicouasocorrências;mas,nãoteentristeças,Neith,porquedoismeses, nomínimo, decorrerão antes da chegada deSargon, e assim terás tempode aceitar essepensamento.Crê, o cumprimento de umdever atrai a bênção dos Imortais; eles tudo conduzirãoparabomtermo.

—Agradeço-te,Chnumhotep,asbenévolaspalavras,mas,bemdifícilsetornaserboaesposa,quando se ama outro homem — respondeu, tristonha, a jovem, e, erguendo-se, terminou: Vourecolher-me,poisestoumaldacabeçaesentindoindisposiçãogeral.Atémaistarde,meusamigos.

—Cuida-tebem,erecordaquedepoisdeamanhãrealizar-se-áacerimôniadaapresentaçãode Horemseb — disse a alegre Roant, acompanhando a amiga e prometendo visitá-la no diaseguinte.

A noite precedente à recepção dos tributários foi melo insone para Tebas. Devendo acerimôniacelebrar-sepelamanhã,antesdagrandecanícula,desdeatardedavésperaumexércitode servos e funcionários se encarregou de tudo preparar. Na sala aberta diante da qual deviadesfilarocortejo, foramsuspensostapeteseesteiras, fixadasarmaçõesebandeirolaseerguidootrono.

Nasruas,oscuriososprevidentesseassenhoreavamdosmelhorespostos,e,multoantesdoalvorecer, compactas massas humanas congestionavam as ruas adjacentes ao palácio real; osdestacamentospoliciais aplicavamempurrõesegolpesdebastãoparamanter aordeme impedirque o povo invadisse o caminho privativo. E quando enfim o Sol surgiu no Levante, redobrou aanimaçãogeral. Inicialmente, chegaramas formaçõesde soldados, cantando, empunhando ramosfloridos, escalonando-se nos dois imensos pátios, circundados de colunatas, ao término dos quaisestavasituadaasalaaberta:eramtropasdeseleção,chamadas“filhosdeTebas”eos“bonsfilhosreais”,brilhantementeequipadoseprovidosde lançasemachadinhas.Emseguida,osassistentesprivilegiados começaram a encher os dois recintos, ocupando os lugares que lhes estavamreservados,enquanto,noexterior,jáocortejodostributáriosseorganizava,segundoasindicaçõesdos mestres-de-cerimônias. Finalmente, Chnumhotep, com um destacamento da Guarda Nobre,ocupou os degraus que conduziam à sala aberta, esplendidamente engalanada, e na qual já sereuniamdiversosdignitários.

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Estasala,cujoacessosepodiafazerdopátioporumadezenadedegraus,abria,porumlado,paraextensagaleria,conduzindoaointeriordopalácio,eporeladeviachegaropessoaldaCorte.-Os muros estavam literalmente cobertos por tapetes caros e armações de púrpura, e, junto daescadinha,duaslongashastessustinham,projetadasparaafrente,umvastopanoraiadodeouroevermelho,e,emfrenteàescada,sobrealtoelongoestradodemadeiradourada,aspoltronasreais.Nocentrodoestrado,haviaumdossel,apoiadoemquatrocolunatasesmaltadasdecoresvivaseterminadas em folhasdepalmeira; sobre o frisodobaldaquino e ao fundo tambémesmaltadoderubro,via-sebordadaaouro,a“uraeus”comodiscosolarsobreacabeça.Otrono,deouromaciço,quadrado, quase sem encosto, era ornado em ambos os lados com incrustações de lápis-lazúlirepresentandoduashastesde lótusedepapiro ligadas,emblemasimbólicodoAltoeBaixo-Egito,unidossobumcetroúnico.

Nomesmonível, foraporémdodossel,haviaoutracadeira igual,destinadaaTutmés.Tudoestavadisposto,osretardatários,apressados,ocupavamseuslugares,ostributáriosescalavamjáoprimeiro pátio, quando chegou Horemseb. Sentado em dourada liteira, o príncipe permaneciaindiferenteesonhador,nãoparecendonotarnemosmilharesdecuriososolhosqueofixavam,nemomurmúrioadmirativoàformosuradoseurostoeaoesplendordoseuséquito.

Aentradadosegundopátio,menor,aliteiraparou:Horemsebapeoueavançou,apé,rumodatribuna. Nesse instante, inúmeras fanfarras estrepitosas anunciaram a aproximação da corte;cessaramtodososmilruídosdaturba;amultidãoondulouemtodosossentidos,imobilizando-senospontos conquistados; todos os olhares convergiram para a galeria, ao fundo da qual se viadesenrolar como que imensa fita marchetada de reflexos metálicos, encimada por uma florestamovediçadeplumasedesedas.

À frentedoséquito,Hatasucaminhavarapidamente,vestindo trajebranco, justo,bordadoaouronabarra,nacintura,nasmangasegola;finamantilhavermelha,franjadadeouroebordadosdepedrariascobria-lheobusto;umcolardesetevoltas,deIncalculávelpreço,ornava-lheopescoço;pesadosbraceletesmoviam-sedesdeospulsosatéquaseoscotovelos.Emlugardaduplacoroa,arainha exibia um penteado de plumas de Angola sobre o qual assentava uma coroa redonda erecortada;desobaspenas,queformavamasaserguidas,saíamosnegroscabelosanelados,e,coisapoucoacreditável,tãoestranhopenteado,difícildeserexibidonacabeçademulherdenossosdias,combinava perfeitamente com o rosto regular e fino de Hatasu. A alguns passos de distância,caminhavaTutmés,tendoàcabeçaumboné-capacete,ornadonafrentededuas“uraeus”deouro,cujascaudas seenrolavamemespiral, e trazendonamãoumacompridavarinhadourada, comacabeçadeHatorencimando-a.Arainhasubiuoestradoapassofirmeesentou-se.

Avistada assim, na sua atitude hierática, fulgurante de jóias, na imobilidade serena que aantiga etiqueta do Egito exigia de seus reis, semelhava um ídolo de pedra. Em conjunto, aquelacena, emoldurada de construções imensas e estranhas, espelhando diversíssimas colorações epersonalidades humanas, de modo a causar vertigens, constituía um quadro do qual solenidadealgumadenossostempospoderiadarsequeridéiaaproximada.

DesdequandoTutméstomoulugareosporta-abanoseosdignitáriossecolocaramemredordotrono,ummestre-de-cerimôniasprosternou-se,anunciandoqueopríncipeHoremsebimploravaagraçadesaudarSuaMajestadeededeporaseuspésofertasdeboas-vindas.Depois,erguendo-se,estendeuamão,eos servosdopríncipecomeçaramagalgarosdegraus, conduzindoasdádivas,verdadeiramentedeslumbrantes,queHoremsebofereciaàsuarealparenta.Emseguida,veioele;mas,olhando-o,expressãodedesagradodelineou-senorosto imóveldarainha,umsentimentodequaseaversãoelevou-senoíntimodaalmacontraessejovem,belo,quepareciatersidocriadoparainspirar simpatia. Cólera e angústia lutaram por instantes no imo de Hatasu, enquanto as facesbrônzeasdeTutméssecobriamdefugazpalidezeinternodesfalecimentofazia-lhefecharosolhospormomentos.

Sem suspeitar do mal-estar e da hostilidade provocados pela sua presença na alma dossoberanos,Horemsebprosternara-se,beijandoo solo;mas,aoerguer-se,deparoucomoolhardeHatasu, frio e acerado qual um dardo, e dura severidade vibrava na voz, quando, em sumáriaspalavras,agradeceuasofertas,acrescentando:

—Éumpoucotardiamentequevenscumprirosdeveresparacomochefedatua família;olugardospríncipeséjuntodotrono.Porquefogestudomundo,vivendoumaexistênciainativaeinútil?Porquetefurtasaosdeveresdeesposoedepai,nãotendoatéhojeesposa,nemherdeiroqueperpetueatuaraça?

Rubor fugacecolorouas facesdeHoremseb;mas, recalcandoa raivaqueo invadiu, àquelareprimendapública,inclinou-seprofundamente,braçoscruzados,eretorquiurespeitoso:

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—Divina filha de Ra, digna-te de ouvir, sem cólera, a resposta do teumais humilde e fielsúdito: um voto feito aos Imortais impôs-me vida de solitude o isolamento: tu sabes que aspromessasfeitasaosdeusessãoInvioláveis,ealutaentreoardentedesejodeprosternar-meateuspéseotemordeperjurardilacerouminhaalma,muitotempo.Umsignovisíveldadivindadeafinalmeautorizouadeixaroretiro,pararefazerereflorirmeuespíritonoespetáculodatuagrandeza,impondo-meacondiçãodereentrar,aofimdealgumassemanas,nomeupaláciodeMênfis.

A rainha escutara com visível surpresa amisteriosa explicação.Muitos boatos, estranhos esuspeitos, haviam chegado ao seu conhecimento, relativamente ao enfeitiçador de Mênfis, mas,nenhumaqueixafundamentada,e,pormultoanormalquefosseumjovemebelopríncipe ligar-sepor voto a viver solitário, uma vez que não praticava o mal contra ninguém, podia-se crê-loindiferenteatudo.

—Longedemimaidéiadetefazerperjuroparacomosdeuses—disseela.Agesegundoatuaconsciência.Serásbem-vindoàminhaCorteduranteotempoemquepermaneceresemTebas.Eagoravemsentar-tenoteulugarimediatoaodopríncipemeuirmão.

TãologoHoremsebchegouàcadeiradesignada,doisdignitáriosvestidosdetúnicasbrancas,sobre as quais se envolvia um estofo transparente, igualmente níveo e finamente plissado,aproximaram-se deHatasu. O primeiro, cujo “claft” era ornado de uma “uraeus”, levava namãodireitaumsacodeouroenaoutraumaventarola;osegundoumaespéciedepastaoupequenosacodourado.Ambosprosternaram-se, e, empalavraspomposas, rogarampermissão,oprimeiro,parafazer desfilar o cortejo, o segundo, o da pasta, para apresentar à rainha príncipes tributários daÁsia,vindospara imploraracontinuaçãodapazeabenevolênciareal.Hatasubaixouocetro,emsinaldeassentimento,eodesfileteveinício.

Àfrente,vieramospríncipestributáriosasiáticos,algunsmorenos,qualosegípcios,outrosdeum amarelo pálido, barbados e de pronunciado tipo semítico. Vestiam túnica interior amarela,inteiriça até os tornozelos, formando calções colantes, de mangas justas, por cima da qual osenvolviamlongoschalesfranjados,encarnadoseazuis;nafronte, faixasestreitas,brancas,caindoparaascostasemduaslongaspontas.Chegadosjuntodotrono,flectiramosjoelhosparaochão,emãosaoalto,clamaram:

—Glóriaati,rainhadoEgito,solfemininoqueiluminasomundocomastuasclaridades,talqualodiscosolar;sêpropíciaanósoutros,dispensadoradevidaealegria,senhorademilênios,porisso que tua palavra é o destino da Terra; e digna-te de aceitar o tributo que nós, teus maishumílimosescravos,tetrazemos,pararecrearteusolhoseaumentarteustesouros.

Apósestaarenga,começouumdesfile,verdadeiramenteinterminável,detodasasriquezasdaÁsiaedaÁfrica:pratosdeouroedepratarepletosdelápis-lazúli,ágata,cornalinaedepedrariasdiversas,ânforasdetodosostamanhos,cheiasdevinhosouóleospreciososeodorantes.Algumasdessas ânforas, brancas, terminando em ponta e cercadas de ouro, tamponadas com cabeças debodeoudevaca,eramtransportadaspordoishomens,havendotambémvasosdeouro,ornadosdefloresparaenfeitedemesa, tecidos,armaseumcarroadmiravelmentecinzeladoe incrustadodeesmaltesmulticolores.

Depoisdosasiáticos, vieramos cuchitas,destacáveispela tezmais clara, ostentandoblusasbrancas e cintos vermelhos, casquetes enfeitados de penas, pele de pantera sobre os ombros;negros, de carapinha, com aventais mosqueados de branco e encarnado ou preto, sendo que asnegrasvestiamlongassaiasraiadasazuis,rubrasouamarelas,elençosnacabeça.Estesafricanostraziamportributoarcoseflechas,abanos,plumaseovosdeavestruz,dentesdeelefante,andoresempilhadosdepelesde leãoede leopardos,perfumes,ouroeprata, leõesepanterasvivos,eatéumagirafa.Finalmente,aotérminododesfile,vinhamgado,símios,plantasraras,estasemamplascaixasdemadeiratrabalhadaecolorida.

Quandoo longodesfilar,queseestendeupormaisdeduashoras, terminouenfim,arainha,visivelmentefatigada,erguendo-se,dirigiubrevesebenevolentesexpressõesaoSumoSacerdotedeAmon,anunciandolhequeremeteriaconsideráveispresentesaotemplo.Emseguida,acompanhadade Tutmés, e do seu séquito, regressou aos aposentos, ao som das fanfarras e sob aclamaçõesfrenéticasdamultidão.Opovo,entusiasmadoediscutindoruidosamentesobreamagnificênciadacerimônia, a riquezados tributosepreço incalculáveldos tesourosquehaviampassado sob seusolhares,escooulentamente,emboracadaumestivessepressurosoderegressoacasaparanarrarodeslumbranteespetáculoaquantosimpedidosdeaeleassistir.

O tempo seguintedecorreualegre, e foi umacontinuidade ininterruptade festaparaa altasociedadedeTebas:todosdesejavamseragradáveisaTutmés,infatigávelamigodedistrações,eaomesmotempoatrairomisteriososolitáriodeMênfis,arespeitodoqualcirculavamtantosestranhos

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boatoseaquemtodosestavamdesejososdeconhecer.Horemsebprestava-sedeboa-vontade,comamelhor graça possível, a essa curiosidade geral, que ele simulava não perceber; com amávelsimplicidade,aceitavatodososconvites,recebiaemsuaresidênciacomhospitalidadeprincipesca,etomavaparte,sempestanejar,nosprazeresdajuventudeálacre,esoube—coisadifícil—granjearobomconceitodosvelhosdignitárioseodosmoçosestouvadosdametrópole.

Quanto às mulheres, estavam fanatizadas por esse belo e ilustre mancebo, sempre amávelparatodas,emborasemdestacarnenhumaemparticular.ApenassobreesteaspectoHoremsebnãose modificara: seu coração permanecia gélido, e não demonstrava aperceber-se das perigosaspaixõesqueexcitavano imodasmoças,ardentesquantoo soldo trópicosobcujos raios,haviamnascido. As herdeiras mais ricas e formosas demonstravam-lhe aberta preferência, e ter-lhe-iabastado pronunciar uma palavra para obter por esposa qualquer das mais orgulhosas; mas, opríncipe,jásedisse,sempreamável,permaneciafrioatodasasinvestidas,etudofoiemvão:maisde uma pretendente prestigiosa viu-se desdenhada, mais de uma aliança, prestes a concluir, foidesfeita.

Assimdecorrerammaisdetrêssemanas.

Neith nãohavia comparecido a nenhumadas festas, porque indisposiçãograve, prolongadapor extrema debilidade, retivera-a em casa, onde, por intermédio de Roant, que a visitouassiduamente, semantivera ao corrente de todos os acontecimentos. Afinal restabelecida, Roantarrancou-lheapromessadeparticipardeumgrandefestimqueseuesposoofereceriaemhonradopríncipe,equeforaadiadoparaqueela,Neith,pudessecomparecer.

Aquiesceu,apesardarecônditatristezaqueaassediava;oregressodeSargon,cadavezmaispróximo,oprimia-aqualumpesadelo;esseinsuportávelobstáculoiacolocar-seentreelaeRoma,ea tal pensamento, o de pertencer ao homem que lhe inspirava piedade tão somente, dava-lhecalafrios. Os tristes pensamentos faziam pálido o fino semblante da jovem egípcia, e velavam demelancoliaosseusgrandeseaveludadosolhos.Noentanto,tudoissonãolhenegligenciouosensoda elegância, e preparou-se para a festa com magnificência e gosto que mais realçaram suamaravilhosa formosura. Vestiu comprido e amplo vestido de pano escarlate, bordado na parteinferior com ouro e pedraria fina; cinto trabalhado com incrustações de pérolas e turquesascontornava-lhe o talhe, esbelto e flexível; um colar e braceletes, tambémde pedrarias preciosas,ornavam-lheocoloebraços;pequeno“claft”,igualmenteescarlate,cobria-lheacabeça,ornado,nafrente,comadmiráveldiadema,dádivadeHatasu.

Nãodesejandofazeraparecimentosensacional,NeithfoiparaaresidênciadeRoantantesdoinício da festa; mas, estando a amiga atarefada com a “toilette” e as derradeiras providênciasdomésticas,encaminhou-separaumdosterraços,e,estendendo-senumapoltrona,ficoucomoqueemsonho,fruindoafrescuraaromáticadojardim,semquepudessedepoisavaliarporquantotempoassimficaraperdidanaselvadospensamentos,atéqueRoantirrompeuali.

—Quefazes,Neith,relegadaaesteterraço,enquantoestouàtuaprocuraportodaparte?Osconvivasjáseestãoreunindo,eHoremsebdevechegardeummomentoaoutro.Estás lindíssimahoje!—acrescentou,olhandoeabraçandoajovem.Atéapalidezeessevincodetristezaemtornodoslábiostêmencantadorfascínio.Horemsebserádecididamentecego,sepermanecerindiferenteaocontemplar-te.

Neithfezdesdenhosomovimentodeombros.

—Duvidoquemeusencantostenhammaiorimpériodoqueosdetodasasbelasquesuspirame sofrem aos pés do impiedoso encantador, e não o desejo demodo algum. Homem igual a ele,acostumadoaagradaratodasasmulheres,devesertediosoerevoltante,e(umclarãodeorgulhofulgurouemseusolhos)eurecusoatrelar-meaocarrotriunfaldessevaidoso,quejáarrastaasmaisformosasjovensdoEgito.

—Neith! Neith! Que linguagem! — exclamou Roant. Tu serás mais benévola para com aspobrescriaturasqueperderamocoração,quandoohajasvisto.Digo-tequeébeloquantoHorusequeseuolharfulgenteenviaindestrutívelchamaaocoraçãodamulhermoçaesemcompromissosdeamor.Preveni-te,Neith,paraquenãosucumbas,tutambém,àfascinação.

Escarninhosorrisodeslizoupeloslábiosdajovem,ealgodehostilvibravaemsuavoz,quandorespondeu:

—BeloquantoHorus,umdeusdignodeamor!Nãosabes tuqueseadoraumdeus,porémjamaisseamaumdeus?Assim,estoudispostaaadorarodivinoHoremseb,masnãotenhoreceiodeamá-lo,nunca.

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—Neith, imprudente,nãoprovoquesessehomemestranhoemisterioso: secretavozdiz-mequeissoteacarretará...

Roantinterrompeu-se,empalidecendo,eabafadogritofugiu-lhedaboca;seuolharcaírasobreumhomemque,braçoscruzados, seencostaraao leãodegranitoqueornavaoúltimodegraudaescadado terraço.Angústiae terror comprimiam-lheo coração.DequemodoHoremseb (porqueera ele) ali chegara, e desde quando ali estava? Afeito sem dúvida à predileção das súbitasaparições,entrarapelaportaparticular,enquantoeraaguardadocerimoniosamentepeladafachadadoprédio.Roant teveopressentimentodeque, seouvidashouvessemsidoaspalavrasdeNeith,teriaestadeaspagarbemcaro.

Àexclamaçãodaamiga,ajovemvoltara-se,e,comdesagradávelsurpresa,olhouohomemdepénoterraço.Elajamaisotinhavisto,masteveaintuiçãodetratar-sedopríncipe,queaparentavaindiferença,embora,sobaspálpebrassemi-fechadas,seuolharaceradoechamejantesedardejassesobreasduasmulheres,enquantoindefinívelsorrisolhepairavanoslábios,descobrindo,porentreapúrpuracavada,oesmalteimpecáveldosdentes.

— Ah! príncipe, que susto nos pregaste! Não é justo surpreender-nos assim— disse afinalRoant,dominandoaemoção.

—Bemaocontrário,felicito-meporisso,porqueébeloespetáculoverreunidasduasformosasmulheres, sem que suspeitem estarem sendo admiradas — respondeu Horemseb, subindolestamenteosdegrausdeacessoaoterraço.

Apertou amigavelmente a mão de Roant, e depois, encaminhando-se a Neith, saudou-arespeitoso, comuma expressão de surpresa e ironia no olhar que fixou na audaciosa jovem, queafrontavaedesdenhavaoseupoder.Àaproximação,Neithergueraobusto,alteandodesdenhosaafronte, com a exteriorização de inabordável orgulho plissando-lhe a boca, com os lindos olhosbrilhantes,veladosdegélidaindiferença,comoqueespelhandodetodaasuapersonalidadesurdarevoltaeinimizade,semqualquerdisfarce.

—Eu te saúdo,maisbeladas tebanas,e sou felizem fazerenfimoconhecimentodanobrefilha de Mena, o glorioso amigo de meu pai — disse Horemseb, não demonstrando reparar naatitude hostil da sua interlocutora. E deixa-me dizer-te — prosseguiu — que ouvi tuas cruéis einjustaspalavras:tumecondenasporfaltasquenãopratiquei.Nãoteriaeuomesmodireito,Neith,derecriminartuabeleza,encantoscomqueosdeusestedotaram?Aosadoradoresquesuspiramateuspéspodestuamar,atodos?

Curvou-se para ela, tanto, que seu hálito escaldante soprou a face de Neith, e seu olharpareceuatravessarajovem.

—Eupróprio—ajuntouainda—estouprestesadescerdomeucarrodetriunfo,paraatrelar-meaoteu,afimdeobterumsorrisodessapequeninaboca,queétãorebeldeetãodesdenhosa.

O rosto subitamente purpureado, Neith recuou vivamente. Suave aroma, mas sufocante,ferira-lhe o olfato, oprimindo a respiração; os lábios fremindo nervosamente, a voz parecendoenrouquecida,quandorespondeu:

— O deus não deve descer do pedestal em cujo cimo é adorado pela multidão, para setransformaremescravo juntodeumasimplesmortal.Aliás,seriaemvão,poisnãotenhosorrisosparatedar,Horemseb,devezquesoucasada,emeuesposo,Sargon,regressarádentrodealgumassemanas.Seubraçoé forte, seupunhalbastanteagudo,enãopermitiráqueoutro,alémdele, seatreleaocarrodetriunfoondelheestáaesposa.

Ajovemfalaracomagitaçãocrescente;começavaacompreenderqueaquelehomem,porsuabeleza, e por estranha influência que ela experimentava sem poder defini-la, podia exercer fataldomíniosobrecoraçõesfemininos.Comoquemovidapeloinstintodeconservação,evocaraonomede Sargon, o marido, seu legítimo defensor, para fazer disso um broquel contra o perigosofascinador. Pálida e emudecida, Roant escutara o diálogo, que para seu imenso alívio foiinterrompidoporChnumhotep,acompanhadodeduassenhorasdaparentela.

A palestra generalizou-se, então, pois passaram a uma grande sala repleta de convidados,ondeHoremseb foi logoposto emassédio, enquantoNeith conversava comKeniamun.Mas, este,chamado por um velho dignitário, ausentou-se, e a jovem sentiu-se, sem saber por que, triste eisolada em plena festa, pesada a cabeça, a imagem de Horemseb a persegui-la, com o hálito aqueimar-lhea face,e,atormentadapor intensomal-estar,esquivou-seedesceuao jardim,ondeaaura fresca a reconfortou um pouco. Apesar disso, as pernas tremiam-lhe e respirava comdificuldade,enquantoumpesoplúmbeopareciainvadir-lheosmembros.

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—Aindaestouenfraquecidadadoença;nãodeviatervindo—murmurouparasimesma.

Deixando-secairsobreumbanco,àsombradeopulentosicômoro,apoiouafrontedeencontroaotroncodaárvore,esonhounoseuesvaecimento.Aimagemdopríncipeperseguia-a;ela,porém,repelia-acomraiva,esforçando-seporpensaremRoma,comparandoseupuroesuaveolharcomosolhossombriosdeHoremseb,soboencantodosquaisdir-se-iaocultoalgodecruelegelado.Leveletargosurpreendera-aduranteessasreflexões,enãosaberiaporquantotempodurouosono;mas,despertandoemsobressalto,respiroudeliciosoperfume,fortíssimoembora,queaenvolveucomoseestivessenomeiodeumroseiral.Orostoescaldavaeocoraçãopalpitavaviolentamente.Levandoamãoaopeito,sentiualgodeúmido,queretiroucomsusto;eraumahastederosaembotãoquaseaeclodir,presaaocorpinhodovestido...

—Ah!adormeci,ealguémseaproximouparamedarestarosa.Quantoédesagradávelisto!—murmurouela,arrancandoaflor,comrepulsa,eatirando-aaochão.Precipitadamenteregressouàgrandesala,esentou-sejuntoaumgrupodesenhoras.

Pouco depois, os escravos trouxeram pequenas mesas e serviram vinho, frutas e bolos,enquantomúsicosedançarinasdistraíamosconvivas.Horemsebencontrouensejodecolocar-senamesaondeestavaNeith,eencetouumaconversaçãodaqualnãopôdeajovemfugirdetomarparte.Aparentementealegreeanimada,sustentoubrilhantepalestra,respondendocomespíritoefinuradeexpressão,queexcitavarisoseadmiraçãodoauditório;mas,atentoobservadorteriaconstatadoque o rubor das faces era febril, o brilho dos olhos anormal e que, na voz, lhe passavam porinstantescomoquelágrimasrepresadas.

Efetivamente,Neith estavanumestranho estadode alma: surda aversão lutava nela contrauma atração apaixonada para o príncipe; tão logo lhe era impossível desviar os olhos do belosemblante, ela se revoltava contra a misteriosa sugestão por ele exercida sobre ela. Então,acreditavalernosombrioolhardeHoremsebaavidezmalvadaecautelosadeumtigreemnegaças;oamávelsorrisolembravaoríctusvitoriosoechasqueadordeumdemônio.Eelaseinteiriçava,emapelo ao seu orgulho, e um olhar frio e hostil, uma resposta arrogante emordaz terminavam osjocososdizeres,cortandoaharmonia,qualdissonânciaaguda.

Neith regressou a casa seriamente indisposta; o corpo queimava, a cabeça em revoluteios,angústiapungentecontorcia-lheopeito.Enquantoasservasadespiam,desmaiou,ejáosraiosdoSoldouravamohorizontequandoadormeceualfim,numsono inquietoeagitado.Otempoqueseseguiufoipenosoparaajovemsenhora,porqueexperimentavaasensaçãodeestarquebrada,físicaemoralmente; seucoraçãoestavadeserto,nãomaisparecendoqueRoma tivessealium lugar;eSargon havia sido olvidado. Em antítese, a imagem tentadora de Horemseb flutuavaincessantemente ante seu espírito, perseguindo-a até nos sonhos. Ela própria, não mais secompreendendo,tomouaresoluçãodefugiratodoequalquerencontrocomessehomemperigoso,queeraseminjustiçachamadoenfeitiçador,e,sobpretextodemoléstia,confinou-seemseupalácio,recusouobstinadamentetodososconvites.Muitassemanasescoaram-sesemquerevisseopríncipe,doqualtodaTebascontinuavaocupando-se.

Hatasuveiovisitá-la,umavez,repreendendo-acarinhosamentepelareclusão,queoestadodesaúdenãojustificavadetodo,ecomunicouqueSargonenfermaraseriamenteduranteaviagemderegresso, tendo sido necessário interná-lo em uma fortaleza do percurso. Estava, porém, fora deperigo,edentrodeseissemanasdeviachegaraTebas.

Emumatarde,àhoraemqueagradávelfrescorsubstituiosufocantecalordoplenodia,Neithestava no seu local favorito, no terraço da borda doNilo, sentada preguiçosamente sobremaciapoltrona, com os delicados pezinhos em sandálias brancas apoiados num escabelo: sonhava,desfolhando, distraída, uma flor de lótus que colhera de grande vaso da balaustrada; uma jovemserva, de pé por detrás da cadeira, abanava-a suavemente, enquanto uma segunda, acocorada acurtadistância,cantava,acompanhando-sedeharpa,umaária,cadenciadaemonótona,emboradeextremadoçura.A entradadeumapretinha, que trazia uma cesta de flores, veio tirarNeithdosquiméricospensamentos.

—Senhora,umcriadoricamentevestido,masrecusandodizerquemomandava,trouxeisto—disseela,apresentandosoberbasrosasrubras,dispostascomartenocestodourado.

Algosurpresa,Neithinclinou-separaasflores,mas,tãologodeliciosoepenetrantearoma,járespirado, feriu-lhe o olfato. Fatigada e subitamente esmorecida, recuou, encostando a nuca noespaldar da cadeira; violento ardor corria-lhe nas veias e céleres batimentos assaltaram-lhe ocoração, enquanto, de novo, a imagem de Horemseb se desenhou ante ela, atraindo-ainvencivelmente. Jamais,qualentão,experimentaratãoardentedesejoderevê-lo,eviversemeleparecia-lhe acima de suas forças. Mas, ainda a natureza enérgica, a alma reta e altiva lutaram

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contraosefeitosdoveneno.Passandoamãoúmidapelafronte,ergueu-se.

—Soubemlouca,pordeixar-meassimdominarporestashumilhantesquimeras!AntesmorrerdoqueamarHoremseb!

E, com um bruscomovimento, semmesmo aperceber-se domotivo que a fazia agir assim,pegou a cesta e atirou-a com violência ao rio. Satisfeita e como que aliviada, debruçou-se nabalaustrada;mas,imediatamente,estremeceuefixouosolhosemelegantebarcadourada,cujaproavisavaamargemepareciadirigir-separaaescadado terraço.Naparte fronteiraestavasentadoHoremseb,dequemeladivisavaperfeitamenteorostoeocintilanteolharvoltadoparaopontoondedesapareceraacorbelha,deixandoesparsasasrosas,quebalouçavamcoquetesnodorsodaságuas.Pareceu a Neith que expressão de raiva e de incrível perversidade desfigurava a fisionomia dopríncipe;mas, rápido, ele se curvou, apanhando uma das flores, e, de pé, exclamou, erguendo amão:

—Salveati,nobreNeith!Osdeuseshojefavoreceram-meduplamente:enviam-meumadádivadetuasmãos,emepermitemavistar-tedeboasaúde.Autorizas-meachegarjuntodetiporalgunsinstantes?Tenhoalgumaspalavrasquetedizer.

Coraçãofechado,ela inclinouacabeça, fazendocomamãosinaldeassentimento,vistoquenãotinharazãoplausívelpararepelirtãosimplessolicitação,feitaporumpríncipeaparentadodeHatasu. Enquanto ordenava aos escravos trouxessem uma cadeira e servissem refrigerantes, abarca chegara, e Horemseb lestamente subira a escada. Sem dar atenção à atitude glacial ecerimoniosacomqueestavasendorecebido,opríncipesentou-se,aceitouumcopodevinho,e,apósalgumasexpressõessemimportância,disse,asorrir:

—Vimcertificar-meseverdadeiramenteestáenferma,segundosediz,amaisbelamulherdeTebas,poisquenãoarevidepoisdafestadonobreChnumhotep.Mas—acrescentoucomligeirosuspiro—minhapermanênciaaquichegouaotermo,poisretornoàsolitudedeMênfis,parasempresemdúvida;e,antesdenossepararmos,queroreuniraindaumavez,emminhacasa,osamigosdeTebas,quetantabenevolênciamedemonstraram.Assim,venhosolicitarahonradetevertambém,nobreNeith,embelezarminhafestacomatuapresença.Recusarásestefavoràquelequeparte,semintençãodevoltar?

Inclinando-se para ela, fundiu, nos olhos perturbados e inocentes da jovem, um olharacariciadorecheiodesúplicas.

— Ele vai embora! Louvados sejam os deuses — disse Neith a si mesma, respirando maisdesafogadamente.

Mas,apesardessepensamentodealívio,doraguda,pungente,atravessou-lheocoração,e,àidéiadenãomaisreverHoremseb,comoqueumvéude lutopareceucobriroporvirdasuavida.Partilhandosentimentosassimtãocontraditórios,baixouacabeça,erespondeuemtominseguro:

—Agradeçoahonraquemefazescomesteconvite,príncipeHoremseb,eesforçar-me-eiporassistiràtuafesta,seminhaamigaRoantaelaigualmentecomparecer.

—AformosaesposadeChnumhotepnãodeixarádeiraumafestaqueanossagloriosarainhaprestigiarácomasuapresença.Assim,nadapodeimpedirteucomparecimento,nobreNeith,alémda tua própria vontade — respondeu Horemseb, fixando com olhar de cruel satisfação a fronteinclinadadajovemquebalbuciaraumapromessa.

Instantes depois, ergueu-se e fez suas despedidas, deixandoNeith comoque sob o peso deuma opressão. E, quando o barco do príncipe desapareceu, apertou a fronte escaldante,murmurando:

—Devoequeroolvidá-lo!

A festa de adeus com a qual Horemseb se despedia de Tebas primava por inigualávelmagnificência.Todasaspersonagensdedistinção,dacidadeedaCorte,aliestavamreunidasemassembléia. A rainha não faltou; mas, acometida de renitente cefaléia, que a assaltavaperiodicamentedecertotempo,poucosedemorou,deixandoparasubstituí-laojovemTutmés,cujainesgotáveljovialidade,vivazeafável,semesclaraàanimaçãodofestim.

Horemseb excedia-se em atenções para com os convidados, mas distinguia a Neith muitoparticularmente,reencontrando-asemprenolabirintodamultidão,paradizer-lhepalavrasamáveis,ofertar flores oumostrar algumobjeto raro e valioso, convidando-a afinal para ligeiropasseionojardim,queentãoforailuminadofeericamente.Neithacedeu.Sentia-secontrafeita,cabeçapesada,

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testaardente,olhar incendido,meiosufocadacomoaromadas floresqueopríncipe lhedoara,eporissoesperançou-sedequeoarexteriorlhefizessebem.Silenciosamente,caminhouaoladodeHoremseb,queparecianãorepararnaindisposição,falandoalegremente,eque,depoisdealgunsgiros nas Iluminadas aléias, retomou o rumo do palácio. Mas, chegados a um terrapleno, entãodeserto,opríncipesedeteve,edisse,olhandoNeithcomatenção:

—Ocalorpareceperturbar-te,nobreNeith.Permitequeteofereçaumrefrigerante.

—Agradeço-te, e aceito— respondeu, apoiando-se à balaustrada.Emverdade, tenhomuitasede,esinto-meexaustadecalor.

—Aguarda-meummomento,aqui:mandareiservir-te.

Horemsebrumouparaointeriordopalácio;mas,aodecursodealgunsminutos,reapareceu,trazendo,elepróprio,umcopo,queofereceuà jovem.Estabebeuavidamente,porém,nomesmoinstante,bruscoarrepioasacudiu,fazendoqueocopolheresvalassedamão,e,comoquepresadevertigem, cambaleou, olhos fechados, arrimou-se a uma colunata.Horemseb permaneceu imóvel,observando,comescarnecedorasatisfação,oestranhoestadodasuavítima.Subitamente,Neithseretesou.Apúrpuradasfaces,sucedeulívidopalor,e,olhosdesmedidamentedilatados,pareciafixar,comhorrorexecrável,invisívelobjeto.

—Oabismo,oabismohianteeterrível,lá,anossospés—murmurou—,eesseriodesangue!Oh! Quem são essas mulheres ensanguentadas, com uma chaga aberta no peito e rodeadas dechamas?

Elarecuou,tremente,braçosestendidos,parecendorepelirsombrasvisíveisparaela,eteriacaído,seHoremsebnãohouvessecorridoaampará-la.

— Torna a ti, Neith! Que visão te atormenta? Que abismo vês a teus pés?— indagou ele,empalidecendoecurvando-separaajovem,que,prostradaemseusbraços,parecianãoover,nemouvir.

Desúbito,elaergueuamão,e,comestranhotimbre,pronunciou:

—RenunciaaMoloc,queteencadeouequeratuaperda,oumelhor,foge,Horemseb,antesquesejademasiadotarde:oabismoescancaradoteatrai,asvítimasparaeleteimpelem!

A voz extinguiu-se-lhe bruscamente, e sua cabeça descaiu pesadamente: estava desmaiada.Cadavérica palidez havia invadido por instantes as faces do príncipe, e seu olhar se fixara nostrêmuloslábiosdajovem;mas,dominandotalemoção,ergueuNeith,emonologou:

—Estranhacriatura,quemtepôdedesvendarmeusatosemeussegredos?Razãodemaisparaquemeapoderede ti,nãohoje,mas logoquepossa,eninguémduvidarádeque tumeseguiste.Sim, tu serás minha, bonequinha preciosa e linda, tua forma de alma interessa-me, tuas visõespodemservir-me;nãotedeixareijamaisparaomíseroescravohitenoaquemchamasesposo!

Emsalacontígua,encontrouRoant,quebuscavaaamiga,equesoltouumgritodesusto,aovê-lainanimada.

—AnobreNeithdeveestarenferma,porquedesmaioudurantepequenopasseioquefizemosnojardim;mas,tranquiliza-te,Roant,vamosfazê-latornarasi.

Num aposento dos privativos deHoremseb, sem acesso dos convidados, a jovem em poucoreabriu os olhos, embora parecesse presa de extrema debilidade. E em voz baixa, quebrantada,dissedesejarserimediatamentereconduzidaparaoseular.

— Vou mandar vir tua liteira, e a ele eu mesmo te conduzirei — disse o príncipe. É umahonrariaquemepertence,naqualidadededonodacasa,equenãocedereiaquemquerqueseja.

Neithnãofezobjeção.Muda,olhosfechados,deixou-seerguerporHoremseb,mas,o ligeirotremor que lhe vibrava pelo corpo, fez que o príncipe compreendesse estava ela na plenaconsciênciadosacontecimentos,foimomento,elefixou,comolharmeiocruel,meioapaixonado,ofascinanterostodajovem.Depois,curvandoobusto,ciciouaoseuouvido:

—Tumeamas,belarebelada,apesardo teuorgulhoeresistência.Voupartir,masvoltarei,quandoestiveresnofimdadissimulação,econfessarásosentimentoqueteligaamimparatodaavida.

Neithestremeceu,ereabriuosolhos;seuorgulhopareciaquebrado,e,encontrandooolhar

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sombrio e tambémdevorantedopríncipe, indizível angústia o seua refletiu, tal qual oda vítimaquandovêerguidocontrasiopunhaldoassassino.Poucodepois,Horemsebacolocavana liteira,onde já se encontrava Roant. Dirigindo derradeiro olhar a Neith, que refechara os olhos, ele seinclinourespeitosamente,e,apósalgumasexpressõesdedespedida,retornouaopalácio.Sorrisodesatisfação enfeitava-lhe as feições, e jamais seus convivas o conhecerammais alegre, animado ebrilhante.

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IX

FRUTOSDAESTADADEHOREMSEBEMTEBASDoisdiasdepoisdafestaquedescrevemos,opríncipehavia,emsoleneaudiência,apresentado

despedidas à rainha. Durante a noite que se seguiu a tal encontro com a sua real parenta, ofeiticeirodeixouTebas, semevidências, eopalácio recaiu, comoquepormagia,no silêncioenoabandono.Omisteriosoesedutorpríncipe,centroeornamentodetodasasfestasondeoesplendoreosexcessoshaviam,durantedoismeses,ocupadoaCapital,regressaraàsolitudedeMênfis,parasepultar-seatéofimdesuavida,segundodisseraaosnumerososamigos.Apesardisso,aestadadeHoremseb em Tebas devia deixar após ele um sulco fatal, que parecia justificar os temoressupersticiososdopovodeMênfisqueoacusavade“mau-olhado”.Seu fascíniosobreasmulheresera evidente, mas, porque jamais distinguisse alguma da “sua sociedade”, não se podia, em sãconsciência, acusá-lo de haver deliberadamente suscitado paixões. Todavia, muitas moças,pertencentesàsprincipaisfamíliasdoEgito,haviammanifestadoporeleinsanoamor,contraoqualnenhuma persuasão dos parentes, nenhuma tentativa de esmaecer tal paixão, recorrendo amatrimônioscondizentes,nadaconseguiareconduzi-lasàrazão.

Consumidas por estranha febre, por uma angústia que lhes impedia qualquer repouso, asinfortunadasperambulavamnoiteedia,possuídasdoexclusivopensamentodereveropríncipe,acustofossedoquefosse.

QuinzediasnãoeramdecorridosdoregressodeHoremseb,eduas jovenscaíramenfermas.Nodelíriodeardentefebre,julgavamveropríncipe,curvadosobreelas,elhepediamconcedesse-lhesumolhardeamor.Eassimsucumbiram,semrecobraralucidez.Essasduasprematurasmortespareceramabrircaminhoaumasériededesgraçasdepiorconsequência:afilhadeumdosgrandessacerdotesenforcou-senodormitório;duassobrinhasdeumConselheiroRealafogaram-senoNilo;outranovelcriaturaapunhalou-se;duasDamasdeHonordarainhaenvenenaram-seno jardimdopaláciodopróprioHoremseb,ondehaviamconseguidopenetrar.Ossuicídios,atalépoca,nãoeramcomuns(talcomoocorreemnossotempo),demodoqueasmortesviolentasevoluntáriasdetantosjovensseres,olutoinopinadoqueatingiunobresfamílias,,provocaramprofundaagitaçãonaCapitale despertaram surda malquerença contra o autor de tantos malefícios. Contudo, ninguém ousavaacusarHoremseb,porque—acasoeraeleresponsávelporamoresquenãoencorajara?Aprópriarainha, cientificando-se desses acontecimentos, sentiu renascer a antipatia que experimentara nomomentodaapresentaçãodopríncipe,eteveocasiãodeafirmar,emvozaltacertavez,quegraçaseram devidas aos deuses pela jura que ele fizera de exilar-se perpetuamente e solitário no seupaláciodeMênfis,equeelaesperavajamaisfosseesquecidatãosolenepromessa.Taisexpressões,equivalentesaodesfavorrealeaoexílio,foramdoconhecimentodetodaaCapital,oque,dealgummodo, constituiu uma satisfação aos diversos sentimentos hostis excitados contra o enfeitiçador.Roant também observava, com progressiva inquietação, a mudança operada na personalidade deNeith, as alternativas de febre e de apatia que a devoravam, a irritabilidade nervosa, a estranhamisantropia com que ela se esquivava da sociedade e da luz solar, refugiando-se avidamente naobscuridadeenosilêncio.Atodasasperguntasdaamiga,ajovemrespondiaevasivamente:

—Nãoénada,epassarátãologoeurevejaRoma.

Jamais mencionava Horemseb, e, apesar disso, a voz recôndita dizia a Roant que nenhumoutroeracausadossofrimentosdeNeith.Reviviarepetidamentenamemóriaofatalmomentoemqueopríncipesurpreenderaaconfidencialpalestradeambasnafestaqueomaridooferecera,e,coração confrangido, relembrava o fulgurante e indefinível olhar dirigido à altiva jovem, quandoesta, motejadora, declarara desdenhar atrelar-se ao carro triunfal do príncipe. Horemseb teriaatiradoalgumsortilégioaNeith?Porvezes,RoantpareciaidentificaremNeithosmesmossintomasverificados em Roma, ao tempo do encantamento por Noferura, e, por isto, escrevia ao irmão,instandoparaqueregressassesemtardança,esperançosadequetalvezsuapresençaeseuamorrestituíssemorepousoàquelaqueamava.

Inquieta pelo estranho estado da sua favorita, Hatasu fez Neith ir a palácio, e tentou,bondosamente, a confissão dos pesares que a afligiam, prometendo satisfazer a tudo quantodesejasse,sehumanamentetalfossepossível.Emborasensibilizadaeagradecida,aofundodaalma,Neithrespondiaapenascomlágrimascopiosas,porqueseuslábiosrecusavamconfessaraluta,comtodasasforçasdoseuser,contraofatalamorporHoremseb;queinvencívelpoder,subjugando-lhearazãoeavontade,aarrastavaparaobeloegélidohomemque,divertindo-se,destruíaocoraçãoea vida das mulheres, sem amar nenhuma. Rubor de vergonha subia-lhe ao rosto, lembrando asacerbasecruéiszombariasdeKeniamunedeoutros,apropósitodoamorridículoedesdenhadodas

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moçasloucasquesópuderamencontrarnamorteremédioparaosseusabrasadoscorações.Deviaconfessar que ela também havia sucumbido ao fascínio? Sem dúvida, a poderosa protetora podiaanularoseumatrimônio,eordenaraHoremsebqueadesposasse;mas,poderiaarainhamandartambémqueopríncipeaamasse,aela,Neith?CadafibradoseuorgulhosocoraçãoserebelavaaosimplespensamentodetaluniãoimpostapeloFaraó,àperspectivadeencontraroolharirônicodeHoremseb,quelhepredisseraainsâniaejázombaradaderrotaaqueforalevada.Não!Milvezesnão!AntesvivercomSargon,aquemdera juradeesposa.Todosesses tumultuosospensamentosagitaram Neith, enquanto, ajoelhada aos pés de Hatasu, escutava as afetuosas palavras da suaprotetora; mas, a vergonha e o orgulho chumbavam seus lábios, e foi com esforço que pôdebalbuciar:

—Nãopossodizeroquesinto:umaangústiaterrívelavassala-me,tirando-mesonoerepouso;fujoaodia,aosol,cujosraiosmefazemmal;somenteànoiteounaescuridãoencontroumpoucodecalma.

Desassossegada e aflita, a rainha despediu-a, e, convencida de que algum maléfico “mau-olhado”descera sobrea jovem, encaminhoua estaosmelhoresmédicosdeTebaspara tratá-la erepeliroespírito impurocausadordomal.Haviamuito,asmásnotíciasque lhe transmitiaRoantinquietavamRoma,eeleaceleravaquantopossívelosassuntosqueoretinhamemHeliópolis;mas,aoreceberaúltimacarta,abandonoutudoeseguiuparaTebasapressadamente.Aprimeiravisitafoiparaairmã,aqual,jubilosaporesseretorno,lhedissedosalarmesquelhecausavaoestadodeNeith,fazendo-ocientetambémdassuspeitasdetratar-sedeumenfeitiçamentoigualaoqueaeleforadadoporNoferura,econcluiu:

—Apenasumaparticularidademefazvacilar:Neithnãomanifestapreferênciaporninguém,nenhum nome de homem é pronunciado por ela, e, no entanto, pressinto que algo de funesto seprepara.Quiçáatuainfluênciaalibertedoespíritomaléficoqueaacorrentou.

—QueabondadedeHatorpreserveadesditosaNeithdossofrimentosquesuporteioutrora—suspirouojovempadre.Emtodocaso,vouImediatamenteaoseuencontro.

O palácio de Sargon estava deserto e silencioso. Nenhum visitante transpunha aquelesumbrais,porqueajovemproprietária,enfermaemisantropa,nãorecebianinguém.Apesardisso,osservosnãoopuseramqualquerdificuldadeaoacessodeRoma,poissabiamqueo irmãodeRoantera sempre bem recebido. Além disso, por ordem de Hatasu, desde muitos dias, numerosossacerdotestinhamvindotratardeNeith,do“mau-olhado”,demodoqueosserviçaisdopalácio jáestavamafeitosadarentradaatodosospadresqueseapresentavamali.

Seguindo a indicação que lhe segredara um velho doméstico de confiança, Roma dirigiu-separaumasalacomunicantecomojardimepreferidaporNeith.Erguendooreposteiroraiadoqueescondiaaporta,ele,comansiosoolhar,esquadrinhouoaposento:meiaescuridãodominava.Bemaofundo,numdivã,estavaestendidaNeith,comsemblantedetorpor,tendoaospés,acocorada,asuavelhanutriz,sendoqueestamostrava,norugadorostoenosgrandesolhos fixadosna jovemsenhora,aprofundaangústiadequeseachavapossuída.Semembargodisso,àchegadadomoçosacerdote,aservavoltou-se,e,reconhecendo-o,quiserguer-seefalar-lhe,masumgestoexpressivodorecém-vindoindicou-lhesilêncioeretiradadolocal.Depois,comtodaaprecaução,aproximou-sedodivãecurvouobustosobreaadormecida.FebrilvermelhidãocobriaasfacesdeNeith;custosaeirregular respiração saía de seus lábios entreabertos; bruscos estremecimentos sacudiam-lhe ocorpo; suas pequeninas mãos, cruzadas sobre o peito, acusavam nervoso tremor. Pungente pesarinvadiu a alma de Roma ante esse sofrimento exteriorizado, e, com fervorosa unção, coraçãoopresso,ergueuumapreceaosImortais.

—Neith!—murmurouele,pegando-lheamão.

A jovem despertou em sobressalto, e, com abafada exclamação, estendeu-lhe os braços.Sentando-senabordadoleito,Romaaconchegou-aaopeito,indagandocomternura:

— Que tens, minha bem-amada? Que mal te consome, e de onde provém a causa de tuatransformação?Sêfranca,dize-me:queteoprime?

AlgumaslágrimascandentesdeslizarampelasfuroudeNeith,eprofundaangústiarefletiu-senoolhar,fixadoentãonoqueridoamigo.

—Roma!Salva-medemimprópria,ficaameulado,paraqueeunãorolepeloabismoquemeatrai;teupuroamorcurar-me-á,eexpelirá...ooutro!—acrescentouemvozmaisbaixa—porqueesteélabaredaquenãoaquece,esimdevora,destróiemata.

— É o regresso de Sargon que ela teme; esse medo consome-lhe a vida — pensou. Mas,

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bruscamenteresoluto,disse,afagando-lheasmãos:

—Acalma-te,Neith,repelequalquerapreensãopelofuturo.Seiagoraquantofuiculpadopordeixar-te sofrer tão longamente. Ainda hoje, irei a Semnut, solicitar-lhe audiência e, amanhã,espero,podereiajoelharantearainha,dizer-lhedohorrorqueSargonteinspira,eimplorarquetedêamimparaesposa.Queresassim,Neith?Reencontrarásjuntodemimsaúdeeventura?

— Sim, sim, és o único que pode ser meu esposo; sob o teu olhar, esmaece a dor que meaniquila; mas, não me deixes — ciciou, oprimindo a fronte no peito do jovem sacerdote, que aobservavaansiosamente.

Apesardisso,elenãodeixouperceberainquietude,e,pelocursodapalestra,outalvezpelaoculta influência que sua voz e seu olhar exerciam sobre a enferma, conseguiu atenuar a febrilagitaçãodeNeith.Anoiteeraplenaquandoeleafinalseergueu.

—Éforçosoquenosseparemos,minhaquerida,poistenhodeverSemnuteapresentar-meaoGrande Sacerdote; mas, amanhã, cedo, voltarei, e combinaremos nossas deliberações, antes deavistar-mecomaRainha.

Neith mandara aprestar uma embarcação, e fez questão de acompanhar Roma à base dasescadarias das esfinges, e, de pé nos degraus, acompanhou com o olhar o afastamento do seuquerido.Depois,regressoutristemente,e,despedindotodos,aaiainclusive,caminhoupeloterraço,abismadana torrentedosseuspensamentos.Muito tempodecorreuassim.O frescordanoiteeoprofundosilênciohaviamreagidosobreajovemdemodobenéfico.Reaproximando-sedaescadaria,apoiou-senaesfingeecontemplouorio,cujasuperfíciequietíssimaespelhavaaLuanoseuprimeiroquartocrescente,difundindosuaveemisteriosaluz.

—Deusmisericordioso—murmurouela—,libera-medoamorporessehomemfatal.PoderáelesuportarumacomparaçãocomRoma,tãopuro,bondoso,afetivo?

Mas, ante seu espírito surgiu vitoriosamente a imagem de Horemseb, de vibrante olhar,motejadora boca, com o encanto estranho e fascinador, que se exalava da sua personalidade, e,subitamente,invencíveldesejoderevê-loatravessou-lheocoraçãoeocérebro,parecendoqueseusangue se transformavaem fogo líquido; serpentes incendidas,movendo-se, picavam-lhe o corpo;doragudaperfurava-lheopeito.Comabafadogemido,asofredoramoçapremiuafrontecontraofriogranitodaesfingeaqueseapoiara.Assimabsorta,nãoseapercebeudequegrandebarca,deaparênciacomumepintadadecorsombria,masvigorosamentemovidaporoitorobustosremeiros,aproximava-se célere do terraço; e não viu que homem de avantajado talhe, envolto em escuromanto,surgindodeumacabinasituadaàpopa,depoisdeolharparacima,fezsinalparaacostaràescadaria.OmisteriosoviajoreraHoremseb.Divisandoaalvasilhuetadajovemmulher,iluminadapela claridade da Lua e com a fronte escostada ao colosso de pedra, na atitude de recalcadodesespero,umsorrisodesatisfaçãoirônicafez-serefletirnosemblante.

—Estás esmagada, orgulhosa criatura — monologou ele —, e o próprio acaso facilita meusplanoseteentreganasminhasmãos—concluiu,saltandosobreosdegraus,quegalgousemruído.

Adoispassosdasuavítima,alheiaatudo,sedeteveedesembaraçoudomanto,poissabiaqueolhadoassim,àluzdoluar,produziadeslumbranteefeitosobreasqueestavamdevoradasdeamorpor ele.Braços cruzados, permaneceu imobilizado, fixandoNeith, que tremianervosamente; umarosa purpurina que trazia à cintura exalava estonteante fragrância, que terminaria por atingir oolfatodajovemetirá-ladotorporemqueestavaimergida.Comexperienteolhar,constataraachar-sedesertooterraço.Fosseoaromaenervante,atuandoeficientemente,fosseavibraçãopesadadoolhar,agindosobreasuperexcitaçãonervosa,Neithvoltou-se,e,apercebendoquase juntodesioser fascinador, cuja imagem obcecava-a noite e dia, recuou, descorada de susto e pavor, e,estendendoambasasmãos,comoqueparareprimirumespectro,murmurou:

—Sombrafunesta,tempiedadedemim,ecessadeperseguir-me!

Olhos flamejantes, Horemseb inclinou-se e prendeu-lhe a mão. Jamais lhe pareceu tão belaquantonessemomentodeterroredeangústiamoral;algosemelhanteaumdesejodespertavaemseucoraçãosecoeálgido.

—Neith,nãosouumasombraesimrealidadeviva;souaqueleporquemsonhavasaqui,semesperança.Nãoneguesoqueestáreveladoemcadatraçodoteusemblante,confessaquemeamas,formosa revoltada! — acrescentou, acompanhando com satisfeito olhar o combate íntimo que sedesenhavanafisionomiadeNeith,que,meioafastada,forcejavaporlibertaramão.

Ainda uma vez, a alma altiva e enérgica da filha de Hatasu rebelou-se contra o fascínio

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envenenadoqueaavassalava.

—Não,euteabomino,criaturasemcoração!Malditosejateuamor,quedestilasofrimento!Tunãomeverásateuspés;antesamortedoquetalhumilhação!—afirmouelacomavozconvulsa,e,repelindo violentamente o príncipe, tentou, com um movimento rápido, atirar-se ao Nilo; mas,céleresqualopensamento,doispossantesbraçosaagarrarameergueramcomosesuspendessemumapluma.

—Criança louca, não é sofrimento que te trouxe, e sim ventura e repouso — segredou eleunindoseuslábiosnumbeijo.Euteamo,ciosodecadaolharqueseembriagadatuabeleza;nomeupaláciodeMênfis,poreiateuspéstudoquantopossuo,etuviverásunicamenteparamim.

Resguardando-acomoseumanto,desceu,correndo,aescadaria,masnãoreparou,aosaltarparaabarca,queovéudeNeith,presoporumasaliênciadedegrau,caíra,arrastandocomelearosaqueHoremseblevavaàcintura.Aperturbadavítimanãoofereceuqualquerresistência.Qualpássarofascinadopelomagnetismodaserpente,elasedeixouarrebatar,oprimidadeencontroaopeitodoraptor,pois,nessemomento,tê-lo-iaacompanhadonumbraseiro,talopoderqueexerciasobreela.Oderradeiroesforçodereaçãoquefizeraquebrara-lheas forças;asondasdoperfumeentorpecente exaladas de Horemseb queimavam-na e paralisavam-na simultaneamente; os beijosrecebidoshaviam-naimergidonumaembriaguezdefelicidade.Mas,talventuranãoeracompleta.

PobreNeith!Bemnofundodocoração,inundadodevitoriosapaixão,agitava-seumaagruravaga, operava-se uma dilaceração interior; a imagem meio velada de Roma, buscando-adesesperado,erguia-seanteela;cadaremada,fendendooNilo,levava-aparalongedeTebas,doseupassado, dos seus amigos, rumo de uma felicidade, nova sem dúvida, mas igualmente incógnita.Súbito, Horemseb, que a acomodara a seu lado, sobre uma pilha de almofadas, notou estar suavítimatremendoequeescaldanteslágrimascaíamsobreamãoqueaamparava.

—Tusofres,pequenarebelde—disseemtomacaricianteeaconchegando-aaopeito—,bebealgunsgolesdevinho,eissotereconfortará.

Aproximou-se de um móvel, colocado ao fundo da cabina e que discreta lanterna iluminavaparcamente,e,abrindoumacaixetadeébano,delaretiroudiminutaânforadevinho,umcopoeumpequenofrascodeesmalteazulincrustado.Tendoenchidoocopo,derramounestealgumasgotasdofrasco,eodeuaNeith.Esta,devoradadesede,esvaziou-odeumtragoe,imediatamente,sentiu-sealiviada;deliciosofrescorinvadiu-lheocorpo,umasensaçãolangorosa,calmaefatigada,substituiua febril agitação. Apoiando a fronte na espádua do príncipe, fechou os olhos, e, bem depressa,profunda e regular respiração demonstrava que adormecera. Horemseb estendeu-a nos coxins,agasalhou-acuidadosamente,e,sentando-seaseuspés,monologou,satisfeito:

—Eis o que vale mais do que o orgulhe e a repugnância, inspiradores da veleidade de meabandonares ameiodo caminho.Dorme, bela caprichosa, pois despertaráspordetrásdosmurossólidosdomeupaláciodeMênfis,e,umavezlá,nãohaveráregresso.

Apoiando nas almofadas os cotovelos, contemplou demoradamente a adormecida, que,bafejadadeluz,faziaesplenderoformosorostoeaadmirávelcabeleiradesnastrada.

—Emverdade,elaédeslumbrante—murmurou.Euadeixareiviver,eesperoqueMolocnãoterázelos,nemmecastigaráporisso.Eulhesacrificareiasmaisbelasdasminhasescravas,vivassenecessário,masguardareiNeithparaosdiasderepousoejúbilo,decorridososdezlongosmesesdeabnegaçãoqueprecisoguardar.Ninguémsuspeitaráondeeladesapareceu,eopríncipeSargonterátempodesobraparaprocurarabelaesposa!

Osorrisoirônicoemau,esboçadonoslábios,prontodesapareceu,substituídoporconcentradaraiva,àlembrançadequeexistiaalguémconhecedordaforçaentorpecenteedosefeitosdasrosasrubras.EsseespectroeraNeftis:elapodiaadivinharondeNeithseperdera,àsemelhançadeváriasoutraslindasegípciasantesdela.Suasmãossefecharamcrispadaseosolhosdespediramfulgoressinistros.

—Miserável traidora e ladra, onde te escondes de todas as buscas? — rugiu, rangendo osdentes.Ah!seteapanhar,caropagarástuaaudácia:eutequeimareivivanasentranhasdeMoloc.Euaencontrarei—pensoudepois,maiscalmo.Menaservir-me-ábem;essedesprezívelser,aquemum pouco de ouro estimulará o zelo, há de buscá-la ativamente, e, encontrada, ele de tudo meinformará,comootemfeitocomrelaçãoatudoqueocorreemTebas.Quantoamim,prefiroviverno meu misterioso palácio, pois só ali me considero verdadeiramente feliz e poderoso. Na Corte,todos são escravos, e, mesmo os ricos e altamente colocados, tornam-se joguetes nas mãos deHatasu,escravizados,comoelaprópria,àsrigorosasleis.Semtuaordem,rainhadoEgito,nãomaispisareiemtuaCorte,nemdesejariatrocarporteutronoomeupoderioilimitado;maisdoquetu,

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exerçoarbítriodevidaemorte,equantosdemimseavizinhamseprosternamerastejamnopó;impunemente,Hatasu,meaposseida tuaprotegida,e reinosobreoscoraçõesdasmulheres;nãoconheço outra vontade alheia à minha, e esse poder eu o terei para sempre, porque Moloc meprometeuavidaeterna!Indefinívelsorrisodeorgulhocontraiuseusvermelhos lábios,econcluiu:Sim,sóeureinosobreotempodestruidordetodasascoisas.Oh!Tadardisseaverdade:eusoubemOsírisencarnadosobreaTerra,umacentelhadeRa,benditoentretodos!

Quando o sol nascente despertou a cidade imensa para nova jornada de atividade e detrabalho,opaláciodeSargonfoi tomadopela inquietudeeestupor,aoseconstatara inexplicávelausência da sua senhora. Acca, a velha ama, encontrando vazio o leito de Neith, acreditouinicialmentequesehouvessedirigidoaojardim,semachamar,emboraissojamaisocorrera;mas,depoisdepercorridostodososaposentoseinterrogadostodososdomésticos,semqueresultassemindíciosdeNeith,foipresadeterror,eperdeutotalmenteaserenidade.ÀchegadadeRoma,tudoestavaemtumulto,eavelhaaiaaelesedirigiuemsoluçoselágrimas:

—Nobremestre,sabesparaondefoiaminhasenhorazinha,a jóiadosmeusolhos?AnobreRoantnãoveiobuscá-laontemànoite?Nãoaencontramosempartealgumadacasa!

Romaempalideceu.

—Quedizes,mulher?TeriaNeithdesaparecido?—inquiriuele,pegandoobraçodaserva.

—Ignoro,senhor.Ontem,apóstuapartida,asenhoradespediua todos,eamimdisse:“Vaidormir,Acca,porque ficareiaindano terraço;eu techamarei.”Adormeci juntodoseu leito,e,aoacordar, verifiquei que não se deitara, nem a encontrei em parte alguma. Aconteceu-lhe algumadesgraça,porqueaondeiriaelasemmim?—concluiuavelha,chorandodesesperadamente.

Fremente de inquietação, o moço sacerdote procedeu minuciosa busca no palácio e nosjardins.Chegadoaoterraço,olhoucasualmenteparaaescadaria,divisandoentão,noúltimodegrau,algo branco, cuja extremidade pendia na água, balançando levemente. Coração constringido porlúgubre pressentimento, desceu a correr, e identificou o véu que Neith usara na véspera, naextremidade do qual estava suspensa uma rosa vermelha. Com dedos amortecidos pela emoção,pegou os dois objetos e os premiu de encontro ao peito: não era tudo quanto restava da suadestruída felicidade? Não havia dúvida: voluntariamente ou por acaso, Neith findara a vida naságuasdorio.OruidosodesesperodeAccainterrompeuotorpor,e,dominando-secomesforço,saiuda enlutada mansão. Subindo ao carro, rumou para a casa de Semnut, a fim de comunicar-lhe oacontecido, que tornava inútil a audiência solicitada na véspera. Aflito e profundamente agitado,Semnutseguiuimediatoparaarealresidência.

Desperta desde o alvorecer, como era de hábito, a rainha regressara de matinal passeio, ealmoçava, quando lhe anunciaram que o seu conselheiro pedia ser recebido imediatamente. Aonotarafisionomiatranstornadadofielservidor,deixouarefeição,erguendo-seinquieta.InformadadaprovávelmortedeNeith,recaiunacadeiracomoqueaniquilada:oimprevistogolpeferiu-lhedeplenoocoração,quebravaoderradeiro laçoquea ligavaàfugitivafelicidadehauridanoamordeNaromath.Comtodaatenacidade,todaaviolênciaprópriadoseucaráter,amaraojovemhiteno,e,àmortedeste,sepultaracomeletodasasfraquezasfemininas,deixandoapenassoberanaaambiçãonoseupeitoinvulnerável.E,agora,umaincompreensívelmortefurtava-lheafilhadeNaromath,asuavivaimagem.Decorridolongosilêncio,queSemnutnãoperturbaraporummovimentosequer,Hatasu,enxugandoaslágrimasquelheinundavamorosto,indagou,emvozembargada:

—Quesesabedasderradeirashorasdainditosacriança?Quemeemquesítiolhefaloupelaúltimavez?

SemnutreferiutudoquantolhenarraraRoma,edissedasuspeitadequeodesgostoprovávelde renunciardefinitivamenteao jovemsacerdote, libertoagoracomamortedaesposa,aliadoaotemoreàrepulsãoquelheinspiravamoretornodeSargon,deratalvezmotivoàresoluçãomortaldeNeith.

—Deusesimortais!Porquenãomeconfessouelaaverdade,quandoainterpeleihádias?—exclamouHatasu.Afinal—acrescentoucomdolorosaamargura—eumesmaestavaemculpa,pornãolhehaverdito,desdehámuito,quemeusouparaela.AnteoFaraó,guardavaareservadevidaàrealeza,enquantoàmãedesvendariatodasasdobrasdaalma.

Constatandoa comoventedorda sua soberana,Semnut tentoupersuadi-ladeque talvezassuposiçõesformuladasfosseminfundadasedequeoestadodoentiodeNeith,tãoagravadodepoisda festa de despedida de Horemseb, degenerasse em momentânea alucinação, em vertigemcausadoradaquedanaságuasdo rio.Aonomedopríncipe, súbita suspeita surgiunoespíritodarainha, recordandoosnumerosos suicídios, ocorridosapósa suapartida,de todasessas jovensa

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quem um fatal amor arrastara à morte. Teria Horemseb lançado a Neith algum sortilégio, einspiradoaela tambémessenefastosentimento?Mas,depronto, repeliu talpensamento,porquenuncaouviraNeithmencionaroenfeitiçador,eevitaraostensivamenteencontrá-lo,alémdeque,seo“mau-olhado”deHoremsebaatingira,difícilseriaacusá-lodisso.

Desolada, fundamenteaflita,Hatasu sentiunecessidadede ficar a sós.DepoisdeordenaraSemnutquefizesseesquadrinharoNilo,paraacharocorpodeNeithedar-lheashonrasfunerárias,encerrou-senosseusaposentos,proibindoperturbá-lasobqualquerpretexto.

OfimdeplorávelemisteriosodeNeithproduziuemTebastantointeressequantocompaixão,e,apesardetodasassondagens,ocorponãofoiencontrado,admitindo-se,porisso,houvessesido,pelascorrentesfluviais,arrastadoparadistante.

Roantpranteousinceramenteaamiga;osombriodesesperodeRomaerasuperioraqualquerdescrição.NafamíliadePair,otristeacontecimentorestabeleceuaconcordânciatãoterrivelmenteabaladapelacenaescandalosaque iacustandoocortedonarizdeSatatieavidadeMena.Parasalvarasaparências,maridoemulhersehaviamreconciliadonodiaseguinte,masessapazfactíciaencobria mil espinhos ocultos. Entretanto, continham-se e olvidavam o passado; sentiam que amortedeNeitharrebatara-lhesasuamaisseguraproteção.AqueeradadaaPaireseusobrinho,emrazãodeNeith,masdaqualSatatibemsabiaoveromotivo,tinhasidooúnicofiosólidoquelhesassegurava a benevolência da rainha. Por múltiplos motivos, nenhum deles chorou por Neith,exceção feita de Keniamun, que, além da sincera simpatia, tinha dívidas, sempre pagas pelagenerosa amiga, desaparecida antes que ele lhe pudesse confiar suas novas dificuldades. Tristeporvir! Que fazer, sem ela? Mas, teria ela realmente perecido? Apesar das aparências, Keniamunduvidara, e resolveu vigiar e perquirir sem trégua quanto à realidade da morte de Neith,consagrando a esse inquérito secreto toda a sutil esperteza e tenacidade de espírito de que eradotado.

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TerceiraParteNeithempoderdoFeiticeiro

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I

ANTIGOSCONHECIDOSAslágrimasdamulheratraemofogocelestesobreaquelesqueascausarem.

(VEDAS)

Desgraçadodequemridossofrimentosdasmulheres;Deusrirádassuaspreces.

(MANU)

A alguma distância de Tebas, por entre vinhedos e vastos jardins, erguia-se pequena eelegantehabitação,escondidadosolharescuriososporespessaverduradesicômoros,palmeiraseacáciasquearodeavam.Nesteatraenteretiro,viviaNeftis,juntamentecomÍsis,moçaaparentadade Antef, que a elamuito se afeiçoara e que partilhava prazerosamente tal solitude.Neftis, comefeito, vivia muito retirada, evitando, tanto quanto possível, atrair atenção, e recebendo rarosvisitantes, entre os quais o príncipe Tutmés, o mais frequente, dado pelos maldizentes por seuamante. Para tornar compreensíveis essa mudança de posição e diversos acontecimentossubsequentes,émisterretrocederdealgunsmeseseretomaranarrativadesdeodiaseguinteaodafugadeTutmésdafortalezadeBouto.

Após a fugida de Antef, Mentchu tombara gravemente enferma, mas seu estado não asalvaguardoudacruelleiegípcia,queestendiaatodaafamíliaapuniçãodoculpado,sematenderaidadeou sexo.A esposado comandantedesertor foi assimaprisionada, e bemassimNeftis, que,corroídaderemorsos,nãoaquisabandonar.

QuandoveiodeTebasaordemdecessarprocedimentosenãoprosseguiroprocessosobreafugadeTutmés, as duasmulheres forampostas em liberdade, oGrandeSacerdotedo templodeOuazitseinteressoupelasortedeambas,e,quandoafinalMentchuserestabeleceu,facilitadalhefoiavoltaaTebas,sobaproteçãodeumvelhopadre.Antesdoregresso, tiveramumaentrevistasecretacomAntef,que,nãoprocurado,nemperseguido,apesardissonãoseanimavaaaparecerabertamente,poromitirorescritorealqualquerdisposiçãoespecialaseurespeito.Enquantoisso,areconciliaçãodeHatasucomTutméspropiciavaaos trêsnovaesperança,e,aconselhodeNeftis,Antef decidiu ocultar-se na casa do velho parente, que vivia solitário num prédio isolado, e aliaguardaromomentofavorávelparaobterdarainhagraçacompleta.

Com terror natural,Neftis soube, logo à chegada, queHoremseb estava na Capital, e umacasualidadeainformou,algunsdiasdepois,dequeHapzefaá,ohomemdaconfiança,faziasecretaseativasdiligênciasparareencontrá-la.Estariaperdida,sedescoberta,semsombradedúvidaparaela, e, temerosa, pensou, sem detença, em colocar-se imediatamente sob a salvaguarda do seupoderoso cúmplice, ao qual mandou suplicar, em expressões compreensíveis apenas por ele,mencionandoseuregressoesolicitandoumaentrevistasecretaparafazê-locientedoperigoqueaambosameaçava.

Tutmés, reconhecido e generoso por índole, e também desejando, tanto quantoNeftis, nãofossedivulgadoosegredodoperfumeenfeitiçadorquedetantolheservira,foiocultamenteàcasadeMentchu,e,assegurandoaNeftisguardarinalterávellembrançadoquantoAntefporelefizeraduranteoexílio,prometeuaproveitariaoprimeiroensejofavorávelparaobtermercêdarainha.

EmnovoencontrocomNeftis,fez-lhedoaçãodabelacasadecampo,situadanãodistantedaCapital, e bem assim de vultosa soma que tornava a jovem mulher independente e rica,circunstânciaqueàprópriaMentchudeuaidéiadequeelafosseamantedopríncipe.

Sem citar o nome de Horemseb, Neftis explicou a Tutmés haver adquirido o segredo doperfume-feitiçoduranteasuamisteriosadesaparição,queduraraumano,equeindispensável lheerapermanecerocultaporcertoperíodo, sobpenadeser tudodescoberto. Implorou,pois,queaajudasse a conservar-se assim escondida, coisa bem difícil depois que perdera o seguro asiloproporcionado pela fortaleza de Bouto. Apesar de todas essas reticências, Tutmés, dotado desutileza e penetração bem acima da sua idade, compreendeu imediatamente que o primitivo emisterioso possuidor do perfume-feitiço devia ser o príncipe Horemseb, que tirava do odorencantado o domínio extraordinário que exercia sobre as mulheres e do qual tagarelava toda acidade.

Longedeconcederqualquergravidadeàsuaconclusão,oinconstanteenegligentemoçonela

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encontroumotivopararir intimamente,e,durantealgunsdias,opensamentodequesomenteeleconheciaaverdadesobreosacontecimentosdeTebasdivertiu-oimensamente.Depois,esqueceuoepisódio, no turbilhão de todos os prazeres dos quais parecia Insaciável. Com efeito, após areconciliaçãocomHatasu,ojovempríncipesentia-sefelizesócogitavaderessarcir-sedotédioqueoconsumiraduranteoexílio.Arainhanãolheembaraçavaosgostoselheproporcionararecursospara divertir-se regiamente, tratando-o com inalterável bondade. Invencível, mas estranho e porvezes molesto afeto a impelia para esse irmão, do qual observava, com interesse, o rápidodesenvolvimentofísicoeintelectual.

A rainha possuíamuita perspicácia para deixar de perceber nele uma alma parenta da suaprópria,eoesboçodeumgranderei,cujoespíritoinstávelpareciatalhadocommilfacetas,enãoraro,naintimidade,divertia-se,pedindo-lheopiniãosobreváriosassuntospolíticos,administrativose privados, verificando sempre que as respostas de Tutmés denotavam segurança de vistasadmirável, astúcia cautelosa algumas vezes, crueza mascarada de displicente generosidade, queassombravamarainha.Suaargúciafazia-lhecompreenderqueessabrilhantepersonalidade,dotadadetãoraradestrezadeespírito,desedutorencantoedenaturaleloquência,própriaparadominareencher de entusiasmo as turbas, constituía para ela perigoso rival. Por isso, recusou sempreaquiesceraumúnicodesejodopríncipe:serenviadoàfrentedeumafrota,alongínquaexpedição,porissoqueconsideravaimprudênciaconcentrarasvistaseaadmiraçãodopovosobreumjovemherói,regressandovitoriosoetrazendocopiososdespojos.

Elaconheciaopovoegípcio,suavaidadeeavidezderiquezasfáceis,obtidaspelasconquistas,e tal auréola de triunfador considerava supérfluo e arriscado dá-la a Tutmés. Além disso, haviarazõesdeordempolítica:Hatasudetestavaaguerra.Favoritadogenitor,acompanharaTutmésInasuacampanhalongínquaàsbordasdoEufrates,e,meioinacessívelemboraaqualquersensibilidadeexagerada,ascenasdemorteedecarnagemquetestemunharacausaram-lhefundaimpressãonaalma,quemalsaíradainfância.

ÉoamorquelheinspiraraNaromathreforçouaindamaisessesentimentoderepulsaíntimapela guerra e suas consequências, pois viu morrer miseravelmente, degradado e prisioneiro, ohomemquerido,sobrecujafronteelaquiseracolocartodasascoroas;impotente,assistiraaosaque,àpilhagemdascidades,àdestruiçãodopovo,àmorteouescravidãodetudoquantoforacaroaocoraçãodobelohiteno.Por isso,ela,aoassumiropoder,evitaraaguerra, tantoquantopossível,pois desejava um reinado pacífico, cogitando demelhorar a situação do povo, com a proteção àagricultura e às artes; pondo fimàsmurmuraçõesdospadres, coma restauraçãodosnumerosostemplos danificados pelos Hyksos, afagando a vaidade dos egípcios com expedições brilhantes,pacíficas,aoutrospaíses.

Comesseintuito,preparava,demoradamenteecomespecialcuidado,umaflotilhaquedeviarumaraPouna,conduzindo,alémdosguerreirosedignitários,umacomissãodesábioseartistas.Aliás, as inclinações bélicas de Tutmés visavam, no momento, mais uma distração apenas; ele,repitamo-lo,considerava-seinteiramenteditoso:herdeirodotrono,cumuladodehonrarias,tendoàsuadisposiçãooouroeosprazeresquealmejasse;atémesmosuavaidadedeadolescenteestavasatisfeita, porque a rainha o fazia seu representante em várias cerimônias, proporcionando-lheassimserpostoemdestaque,semosônusdosserviçosdoEstado.Comprofundodesgosto,emborasecreto, ospadreseosdescontentesnaaltanobreza compreenderamqueaenérgicaeastuciosasoberanahaviahabilmentearrancadoaelesapoderosaarmaquepensavamempregarporalavancana derrubada de Hatasu. Por enquanto, deviam curvar a cerviz sob a potente mão do Faraó, eaguardar pacientemente que a idade e a saturação dos prazeres lhes reconduzisse a alma dopríncipe,paraentãonelereacenderemofogodaambiçãoedaavidezdemando.

AestranhaformosuradeNeftishavia,desdeoinício,agradadomuitoaTutmés;mas,apesardodevotamentodequeelalhederaprovas,nãoencorajaraassiduidades:dir-se-iaquesecretopesaratormentava-a,sempresombria,gélida,misantropa,vivendonummundo interior.Ovolúvel jovemnenhumesforçofezparaaliviaramisteriosamelancoliadeNeftis,evoltouasatençõesparaÍsis,apartícipedasolidãodaquela.

Ísis,parentadeAntef,era,alémdeórfã,malquistadafamília,pormotivosdosquaisnãolhecabiaculpaalguma.Opai,distintooficialeirmãodamãedeAntef,noivaracomumaparenta,mas,havendo trazido da guerra uma jovem prisioneira de rara formosura, rompeu os antigoscompromissos, e desposou aquela a quem todos passaram, desde então, a chamar uma escrava.Toda a parentela voltou costas, comdesprezo, ao “imbecil que elevara às honras de esposa umacriatura que, sem empecilho qualquer, podia ser sua concubina”. Quanto a ela, acusaram-naabertamentedefeiticeiraedehaver,pormeiodealgumfiltroamoroso,monopolizadoocoraçãodomarido.

Emconsequênciadetodasessascizânias,omilitarobtevetransferênciaparaMênfis,ondesua

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felicidadedecorreria semnuvens, seamortenão lhehouvesse roubado,em tenra idade,amaiorpartedosfilhos,restando-lheapenasduasmeninas:Senimutis,aprimogênita,eÍsis,seteanosmaismoça,quehaviamherdadoabelezaperegrinadagenitora,atezalva,cabeloslouroseolhosdeazultãoprofundoquantoodocéu.Cruelepidemia,queassolouMênfis,fezórfãsasduasmeninas,sendoacolhidas, no grau de filhas, pela viúva de um escrivão da Corte, senhora que, ao completarSenimutisdezesseisprimaveras,afeznoivadeRui,filhoúnicodoseufindomatrimônio,esponsaisque não se consumaram em casamento, porque a noiva, dias antes do consórcio, desapareceuinexplicavelmente,ejamaissesoubeseuparadeiro,eojovemRui,voluntariamenteounão,pereceuafogado aobanhar-senoNilo.A essedesgosto, a pobremãe, coração cruciado, não resistiu e sefinoupoucodepois.

Comamortedesuaprotetora,ÍsisficouamparadaporAntef,nomeadoseututor,mas,porqueTachot,a irmãdeste,e,poresta instigada,Mentchuaolhassemmal,denegrindo-lheaorigememtodasasoportunidades,afeiçoou-seelaaNeftis,e,quandoestaseinstalounanovaresidência,Ísispara ali também foi, constituindo ímã do jovem herdeiro do trono à isolada mansão. À data daretomadadanossanarrativa,Neftis,ÍsiseTutmésencontravam-sereunidosnumterraçosombreadoporárvores.Afundadanasuapoltronadeespaldar,pálidaesilenciosacomodehábito,adonadacasaouviudistraidamenteasnotíciasehistóriasdetodaespéciequeopríncipenarrava,enquantoseserviadasfrutasqueÍsis,descascando-as,oferecia,rindodoscomentárioscáusticoscomqueeleadubavaoscasos.

—EncontraramafinalocorpodeNeith?—interrogouNeftis,desúbito.

—Não; continua desaparecido, apesar de pescadores emergulhadores haverem sondado oNilodesdeháseisdias—contestouTutmés.Arainha,queconsagravagrandeafetoaessainditosamoça,prometeuum“talentodeBabilônia”aquemaencontrasse,infrutiferamente,atéagora.

—Nãosabesosdetalhesdessetristeacontecimento,príncipe?—indagouÍsis.Recordo-medeque,certavez,numpasseio,encontramosanobreNeith,deregressodopalácioreal.Estavamuitobela,maspareciaentristecidaeenferma.

—Sim,estavadoentedesdealgunsmeses,motivoqueaImpediudeassistiràmorpartedasfestas dadas por Horemseb; mas, a respeito da sua morte, ninguém sabe algo de positivo.Despedindoosfamiliares,ficousozinhanoterraço,e,pelamanhã,viu-sesobreoúltimodegraudaescadaria o seu véu e uma rosa vermelha: escorregou ou voluntariamente se precipitou no rio?Quemosabe?Otemorpeloregressodomarido,queumavezaapunhalara,tê-la-iaimpulsionadoaosuicídio? Salvo se, à semelhança de tantas outras apaixonadas pelo enfeitiçador de Mênfis, sóconseguiuafogarasuapaixãonoNilo—concluiuTutmés,comrisosutil.

A menção da rosa rubra, achada com o véu, após a desaparição de Neith, Neftis teve umestremecimento; mas, à alusão final do príncipe, empalideceu e sinistro clarão iluminou seusesverdeados olhos. Quase imediatamente, ergueu-se e desceu ao jardim, deixando Ísis e Tutmésentretidosnapalestra,e,emrápidospassos,rumouparaumbosqueteisoladonotérminodojardim,onde se deixou cair sobre um banco, escondendo a cabeça entre os braços cruzados. Milsentimentos tumultuosos oprimiam-na, tornando-lhe quase difícil a respiração. A notícia dodesaparecimento de Neith despertara-lhe vaga suspeita, agora transformada em certeza, ante oachadodaflorpurpurina:aformosaesposadeSargonnãomorreraesimforaraptada,comaquelahabilidadedemoníacaquejamaisdeixavatraçosdocrime,esumidapordetrásdassólidasmuradasdaquelepalácio,doqualasvítimassópormilagrepodiamregressar.Elaprópria,Neftis,não foratida por afogada nas águas doNilo?Mas, qual razão levaraHoremseb a consumar tão perigosorapto, em vez de contentar-se com as vítimas vulgares da burguesia ou de secundária nobreza?Ousariatorturar,associaràshórridasorgias,oudestinaraalgumterrível fima favoritadoFaraó,umadasprincipaismulheresdoEgito?AcasoNeith lhehaviaagradadoapontode levá-loa tudoarriscarparapossuí-la?Erabastantebela,ilustrebastanteparaincendiarmesmoobrônzeocoraçãodo fascinador. A este último pensamento, selvagem ciúme desgarrou-lhe o peito, e surdo gemidoveio-lhedo íntimo.Nesse instante,braçosacariciadoresenvolveram-lheosombros,eavozde íslsciciou,comafetuosatristeza:

—Neftis, querida, que te falta? Vejo tuas mãos escaldantes e teu rosto com a palidez damorte!Estásenferma?Quesecretodesgostocorróituaexistência,oquetenhoemsuspeita,dehámuito,esemousarinterrogar-te?

—Adivinhaste,comacerto:terrívelmistériopesasobreminhavida.Mas,porquedeixasteopríncipe?Tivenecessidadedebuscaralgunsminutosdeisolamento.

—Tutmésfoiembora—respondeuÍsis.Etunãopodiasdizer-mequaloteupesar?Euteamoqualaumaqueridairmã,ejurofazer-medignadatuaconfiança.

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Neftismeneouvivamenteacabeça.

—Não;não.Istoquemematanãotepossorevelar,emborasaibaquemeamassinceramente,eéemretribuiçãoaesseafetoque te voudarumconselho: seeumorrerou sumir,nãoaceites,nunca,rosasvermelhas,deperfumeestonteantequeoprimearespiraçãoetransformaocorponumbraseiroardente.Nãoo esqueças:queima,queima,destrói a flormaldita.Ésbela, e a fatalidadepoderiaarrastar-teaoabismoondepereceriassemremissão.

—Quedizes?!—exclamouÍsis,numgrito,empalidecendo.Quetrágicareminiscênciaacordasnaminhamemória?Umarosarubra,deodorsufocante,faziaasdelíciasdeminhaIrmãantesdasuaIncompreensível desaparição. De quem houvera ela tal flor? Ignoro, pois já se passou um lustrodepoisdisso,eeuentãocontavanoveanosde idade;mas,recordoqueRui teveciúmes,poressarosa, cujo perfume também aspirava, emuito interrogavaminha irmã a respeito da flor. Depois,Senimutis escondeu-anumpequenino saco, que trazia aopescoço;mas, ànoite, eu a vi,maisdeumavez,abrirosaquinho,beijararosa,aspirando-a,echorar.Umdia,enquantomeencontravaemvisitaaamigas,desapareceu,enãofoiencontrada.

Parou de falar, sufocada pelas lágrimas. Depois de algum silêncio, acrescentou, com súbitaenergia:

— Estámorta, sem dúvida, aminha pobre Senimutis, tão boa, tão afetuosa, e a sua perdatambém ceifou as vidas- de Rui e de minha segunda mãe; mas, eu, estou viva, e, se algum diadescobrirquecriminosamãodesencadeousobrenóstodasessasdesgraças,vingareiastrêsmortes,mesmo que haja de perecer no desempenho da tarefa. O teu conselho, Neftis, deixa entreversaberesalgoarespeito:dize,então,eutesuplico.

—Nomomento, não sei, nem te posso dizer coisa alguma— respondeuNeftis.Mas, quemsabe?Talvezbemdepressanosaliemos,esatisfareiatuacuriosidade.

Silenciosamente,reentraramemcasa,dirigindo-secadaumaparaseusaposentos.Por longotempoNeftisdivagou,encolhidanumacadeira,juntodajanela,e,pelasrugasquesesucediamnafronteepelosfulgoresque,rápidos,acendiamseusolhos,percebia-sequealgumaresoluçãomuitosériaestavasazonandonoseuespírito.Afinal,endireitou-see,comambasasmãos,alisouparaascostasosfartosedouradoscabelos.

— Monstro insaciável de sofrimentos e de jovens vidas destruídas, é feitiço ou amor queemudeceaminhaboca?—monologouela.Aindanãotivecoragemparatetrair;mas,tomasentido,Horemseb!SepouparesavidadeNeitheousaresconceder-lheumraiodeteuamorentorpecente,nãohaverápiedadeparacontigo:denunciar-te-eiaoódiodetodooEgito,destruir-te-eieinfligir-te-ei todasas torturasque tucausasaosoutros.Eaverdade,euasaberei, introduzindo-meemteupalácio.

Seus olhos verdes cintilavam, e uma dura crueldade contraía os lábios, descobrindo-lhe osdentesalvosepontiagudos,dandoidéia,nessemomento,deumapanteraprestesasaltarsobreapresa.SobravarazãoaHoremsebparaprocurarcomtenacidade,etemer,essedemôniodestruidorquelheconheciaossegredos.

Cabedizeraquialgumaspalavras,comreferênciaaumapersonagemdanossanarrativa,eumtantoolvidadanosprecedentesúltimoscapítulos:Hartatef.Agraciado,porintercessãodospadres,retomara, em Tebas, sua antiga hierarquia, reintegrado que fora nas honras e dignidades, e seinstalaranobelopalácioqueoutrorafizeraconstruirparaseular,recomeçandoosantigoshábitossociais; o tenaz e apaixonado amor por Neith não se extinguira, mas, destituído de qualqueresperança,dissimulavaessesentimento.Compreende-sequeodesejodereverajovemmulhereradosmaisviolentos,porém,aindisposiçãoeoviverretiradodacobiçadaNeith,alémdosimperativosdosseusprópriosencargos,ajudavamacriarsempreempecilhos,demodoquesomentenoensejodafestadedespedidadeHoremsebatãodesejadaocasiãoseapresentou,enfim.RevendoNeith,tãoestranhamentetransformada,emboramaisbeladoquenunca,paixão,raivaedesesperorugiram-lhenocoração.

Observou,adistância,osmovimentosdamoça,esecolocouàpassagem,quandoHoremsebaacompanhouàliteira.Eporqueociúmedámultiplicadaperspicácia,sobaspálpebrassemi-descidasdopríncipe,Hartatef surpreendeuumolhar que lhe atingiu fundo o coração, qual punhalada, demodoque,aoternotíciadodesaparecimentodeNeith,inafastáveldesconfiançafez-lheestabelecerumarelaçãoentreHoremsebeomisteriosoacontecimento.

Inspiradopelaciumentapaixão,Hartatefquaseadivinhavaarealidade;nãoadmitiaamorte,esimo raptodeNeith, consumadopelo enfeitiçadordeMênfis.É certoquenenhum indíciodiretoconfirmavatalsuposição,porissoqueNeitheopríncipesehaviamavistadoduasoutrêsvezes,e

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Horemsebausentara-sedeTebasummêsantesdafatídicaocorrência.Assim,atacarabertamenteumaparentadodafamíliareal,porsimplessuspeita,eraatitudeperigosa.Hartateferademasiadoprudenteparaarriscar, segundavez, sua situação social numaaventura temerária;mas, a íntimaconvicçãopermaneceu inabalável,eresolveupesquisar,semalarde,esondar,aqualquerpreço,omistériodopaláciodeMênfis,e,verificadaquefosseapresençadeNeithali,denunciaraverdadeàrainha.

Com a paciência perseverante que lhe era peculiar, Hartatef iniciou a indagação, sem seaperceberdeque,elemesmo,eraoobjetodeativaeocultavigilância,porpartedeKeniamun.Este,nãoacreditandoigualmentenamortedeNeith,admitiaaprobabilidadedehaversidoelaraptadapeloantigoadorador,cujaviolentapaixãoeradetodosconhecida,porissoqueoconsideravacapazde, por vontade ou à força, ter-se apoderado de Neith, e escondido a jovem, sob o impulso deselvagemciúmeepelodesejode subtraí-la aomarido.Keniamun,porém,estavabemdistantedepensar que a vigilância exercida sobre o rival de Sargon deveria conduzi-lo a outra pista, dediferentegravidadeecompletamenteimprevisível.

Ignorando todos estes acontecimentos, Sargon, coração partilhado pela esperança e peloreceio, estava a caminho de Tebas. Os vinte e quatromeses pesadamente escoados desde a suacondenação,haviammodificadomultoopríncipe,moralefisicamente;crescidoemagro,seucorpo,meio débil e efeminado, bronzeara ao sol do exílio; severa ruga, gerada de amarguras, davaexpressãointeiramentenovaàsuafisionomia.Apesardetodasasatenções,quesecretasordenslheproporcionavam,serviçoslevesquelhepoupavamdesumanostratamentoseindescritíveisprivaçõesinfligidas aos outros condenados, mais de uma vez acreditou sucumbiria sob o fardo daquelaexistência desprovida de tudo quanto lhe era antes habitual; mas, a vontade de sobre-existir, aesperança, enraizada no coração pela promessa de Neith, sustentaram-no, dando-lhe a coragemparaesperarqueabondadedeHatasuoretirassedaquelepenar.

Ealibertaçãochegaramaisdepressadoqueoprevisto,enacorrespondênciaquetrouxeraoatodemercê,paraeleeoutros infortunados, tambémvieraumrecadodeSemnut,avisando-odeque, por assentimentodeNeith, umabarca tripuladapor serviçais seus, e aprovisionadade tudonecessário, aguardá-lo-ia num determinado ponto. Como que transfigurado pela alegria e pelaesperança,Sargonempreendera imediatamenteoregresso;mas,areaçãoforademasiadoforte,eperigosaenfermidadeocolheu,pondo-lhe,durantesemanas,avidaemrisco.

Oscuidadosdeidososacerdoteeaforçavitaldajuventudetriunfaram,entretanto,domal,e,restabelecido, reencetou a viagem.No local pré-indicado por Semnut, encontrou os serviçais e abarca que o aguardavam, e foi com indizível sensação de bem-estar que vestiu as roupas da suaclasse, e reentrou no conforto de que fora privado por tanto tempo. Impaciente, ordenara viajarnoiteedia,permitindofazerapenasasindispensáveisparadas,paraasprovisõesdeáguafrescaealimentos. O avanço era rápido, pois a grande barca, tripulada por doze remadores que serevezavamdeduasemduashoras,faziaomenornúmerodeparadaspossível.

Estendidosobrealmofadas,abrigadoempequenacabinaassentadasobreocostado,Sargondevaneavahoras inteiras, tentandopreverepositivar,na imaginação,comoseriaonovoprimeiroencontro coma esposa, de quemodo o receberia, e como combinar o futuro da vida conjugal; aexaltação,queosustentaranoperíododedesdita,cederacomotérminodossofrimentos;nãomaisduvidavadequeNeithmanteriaapromessa,feitasobaInvocaçãodeHator,edequeoacolherianograudemarido,oquedecertoestavaconfirmadopeloenviodabarca.Apenasemumpontonãolherestava Ilusão: o Impulso generoso da esposa era fruto do remorso e do pesar despertados peladesgraça que o alcançara,mas, esse bom sentimento já tivera tempo de arrefecer, e omais quepodia razoavelmenteesperarera ser tolerado.Aestepensamento,um fluxode sanguecoloriuasfaces emagrecidas do príncipe, e acerba onda de desespero, impotência e orgulho feridoconstringiu-lhe e pareceu rasgar o coração. Por vezes, revoltando-se, projetava forçar Neith apartilhar do seu amor; mas, regressando logo a idéias mais sãs, propunha-se conquistá-la pelapaciênciaepeloafeto,e,então,insensivelmente,sonhosderadiosoporvirfaziam-noolvidartodasastempestadesdopassado.

Anoitecera, quando se avizinhou de Mênfis. Próximo da cidade, uma barca de extremoesplendor, iluminada por farol vermelho e trazendo à proa uma esfinge dourada, com olhospurpurinos,atraiuaatençãodeSargon.

— Nosso glorioso Faraó Hatasu estará por acaso em Mênfis? — perguntou, voltando-serapidamente.

Antes, porém, que qualquer dos tripulantes respondesse, a embarcação que parecia voarsobre as águas, apropinquou-se da de Sargon, e este viu, com surpresa, que, sob um dossel depúrpuraeouro,repousava,emcoxins,ummoço,admiravelmenteformosoefaiscantedejóias,cujo

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rosto, impassível qual o de uma estátua, mostrava, vivos, apenas dois grandes olhos negros,coruscantes, de expressão arrogante e sinistra. Esse olhar, plúmbeo e estranho, perpassou comgélidaindiferençasobreSargon,easduasembarcaçõesdistanciaram-se,emseguida,umadaoutra.

—Quemserá?—interrogou,tentandoreprimiradesagradávelimpressãoquelheproduziraoexcursionista.

—ÉopríncipeHoremseb, senhor—disseumdos remadores—e é bem lamentável que oencontrássemos:tem“mau-olhado”etrazdesgraçaaquemoencontra.Nãoria,senhor,pois,oquedigo todos o sabem. Talvez o nobre Horemseb conheça quanto seu olhar é funesto; vive muitoretirado e sai somente à noite. Quando recentemente esteve em Tebas, todos os infortúniossobrevieram.

—Dequegênero?—indagouopríncipe.

—Mortesdediferentesmaneiras.Asmulheressãoprincipalmentesujeitasao“mau-olhado”:tomam-sedeinsensatoamorporele,edepoissuicidam-se.Foioqueaconteceuamuitasfilhasdasmaisnobresfamílias.

Eoremadorenumerouosnomesdealgumasdasvítimasdofascinador.Semcompreenderoporquê,súbitaangústiainvadiuocoraçãodeSargon:esseestranhohomemperturbadorestiveraemTebas, e Neith devia tê-lo visto. Resistira ela à fatal influência destruidora de tantas risonhasexistências?Tãomoça,abandonadaasimesma,ligadaaumesposonãoamado,ficavabemexpostaasucumbir.Essepensamento,explodindonocérebrosuperexcitadodohiteno,bemdepressatomouproporçõesdeidéiafixa,demodoquenãopodiasepararaimagemdeNeithdafiguradeHoremseb:raiva e ciúme contra este envolveram-lhe a alma, e lamentou não possuir asas para chegarmaisdepressa.

OSolmergulharanohorizonte,quandoabarcadoexiladochegouaoalmejadotérmino.Depé,àproa,sondava,avidamente,comoolhar,aescuridão,atéquelobrigouoscontornosmaciçosdoseupalácio,aescadariaeoscolossosdegranitoquefaziamsentinelaàentradadoterraço.

O coração do jovem príncipe latejava tumultuosamente: as lembranças do passado e asapreensõesdoporvirabalroavam-se.Equandoaembarcaçãoacostou,ele,deumsalto,atingiuosdegraus, antes mesmo da amarração do barco, absorvido por um único pensamento, dominantesobretodososoutros:verNeith!

Quaseacorrer,atravessouodesertoterraço,depoiscâmarasescurasesilenciosas,detendo-se,afinal,surpreso:quesignificavaaquelaquietude,aqueleabandonoemqueestavamergulhadotodo o edifício? Neith estaria ausente ou enferma? Coração confrangido, recomeçou a andar,orientando-se na treva, sem atinar com o motivo da ausência dos servos que habitualmentepopulavamoagoradesertopalácio.Porfim,saiunumaposentointerior, iluminadoporarchotes,edivisounumerososescravosque,grupadosemtornodeumafonte,palestravamruidosamente.

—Quesignificaanegligênciaqueencontrei?—inquiriu,comirritadotomdevoz.Conversais,enquantoacasa,deserta,permaneceàsescuraseàmercêdoprimeiroinvasor,semqueestejamosvigiasnosseuspostos?ChamemApopi,imediatamente!

Avozdosenhor,osescravoscalaram,assustados,aomesmotempoqueumalentadohomem,rechonchudoemusculoso,aparecianaportadorecinto.Crendoterouvidoosonorotimbre,davozdeSargon,eapercebendo-o,prosternou-se,braçoscruzados.

—Perdoa-me,senhor,pornãotehaverpreparadorecepçãodignadeti,poiscontávamoscomatua chegada depois de amanhã. Além disso, o luto que domina teu palácio dispersou os servosdesolados.

—Explica-te,Apopi:deque luto falas tu?Chorais?—perguntouopríncipe,empalidecendo.OndeestáNeith,minhaesposa?Nenhumlutodeveimpedir-vosdeservi-lacomzelo.

Antes que o intendente pudesse responder, Beki, a velha nutriz, se precipitou no aposento,gemendolastimosa,vestesrasgadas,cabelosemdesordem,cobertosdecinzaelodo.AvançouparaSargon,e,abraçando-lheosjoelhos,exclamou,desesperada:

—Oh!senhor,éemhoradedesventuraqueregressas;aquelaquebuscas,Neith,ajóiadoteucoração,osoldestepalácio,morreu!

Gritoroucoeclodiudoíntimodopríncipe,quecomprimiuafrontecomasmãoscrispadas.Ogolpeforademasiadorudeparaoseudepauperadoorganismo;cambaleou,eteriacaído,nãoforaa

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intervenção dos fâmulos, que o ampararam. Sob ordens de Apopi, conduziram-no ao aposentopreparado para ele, e, rapidamente, tudo se iluminou e adquiriu movimento e animação. Odesacordado foi posto no leito, e Beki prodigalizou-lhe os primeiros socorros, com fricções nastêmporasenasmãos,entremeando-ascomsoluçoselamentações.Maisdeumahoraassimescoou;Sargon permanecia em decúbito dorsal, mudo, olhos fechados, insensível, aparentemente. Emverdade, porém, não estavadesmaiado: a concentração febril de todo o seu ser, fixada sobreumpensamentoúnico,tornavaocorpoinerte,eera:—Neithmorreu!

Ofuturoquesonharafruirjuntodela,eforaseusustentáculoatéentão,desmoronava-seentresuasmãos;arealidade,horrendaeimprevista,esmagava,retorcia-lheaalmaemindizíveldorfísica.Pouco a pouco, no entanto, a reflexão fez-se luz no caos do desespero: de que se finara a jovemcriatura,plenadejuventude,deforçaedesaúde?Semquepudessetalexplicar,aoladodaimagemdeNeith,quelheespelhavaoporvir,subitamentesurgiuasombranegradoenfeitiçadordeMênfis,odestruidordemulheres.Comoimpelidopormolas,Sargonergueu-se,e,pegandoobraçodavelha,ajoelhadajuntodoleitoeaindasegurandoumfrascodeessência,perguntou,comfebrilaflição:

—Quandomorreu,comoaconteceutaldesgraça?Conta-metudo.

— Ah! senhor — soluçou Beki — o mais terrível é ignorarmos de que modo sucumbiu. ÉverdadequeanobreNeithestavadoentedesdealgumtempo,equenão iaapartealguma,mas,ninguém previa semelhante desenlace. Exatamente há oito dias, vários médicos, enviados peloFaraó,visitaramaminhasenhorazinha;ànoite,veioopadredeHator,Roma,irmãodanobreRoant,e,quandoesteseretirou,Neithdespediu-nos,dizendoquererficaraindanoterraço,oqueninguémestranhou,poisanoiteestavalindaerepetidasvezesNeithdemorava-seasonharàluzdaLua,eiadeitar-seaoamanhecer.Demanhã,verificamos,comestranheza,quehaviadesaparecido.Sobreoúltimodegraudaescadariaapenasoseuvéueumarosavermelha.Segundotodaaevidência,caíraao Nilo, mas, o corpo não foi encontrado, embora vasculhado o rio em todos os sentidos, eprometido,pelanossagloriosarainha,um“talentodeBabilônia”deprêmioaquemdescobrisseosdespojosdanobresenhora.

Sargonescutara,pálidoeofegante;àsúltimaspalavrasdeBeki,saltoudoleito,e,agitandoospunhoscontraídos,bradou,olhosincendidos:

—Ah! tudoconfirmaasminhasdesconfianças;Neithnãomorreu,estádesaparecida,porémsabereiondereavê-la,pelasinspiraçõesdomeucoração.Dize,mulher,opríncipeHoremsebvinhamuitasvezesaqui?—acrescentou,voltando-separaanutriz,queoolhavaaparvalhada.

—Oh!não,senhor,veiosomenteumavezconvidarNeithparaafestadedespedidaantesdoseu regresso, e àqualdevia comparecera rainha,queosdeuses conserveme cubramdeglória!Minhasenhorazinhafoi,masanobreesposadeChnumhotepatrouxedevoltamuitodoente:perdeuossentidos,enãomaisserestabeleceuatémorrer.

Estarespostapareciadestruirpelabaseasuspeitadopríncipe,mas,este, inabalávelnasuaconvicçãoíntima,viuemtudoissoumacoisaúnica:adificuldadeemseguirapistadeHoremseb,pois descobri-lo para desmascaramento implicava quase sacrificar a vida. Em dias subsequentes,Sargon teve uma entrevista com Semnut, depois com a rainha, que o acolheu com a maiorbenevolência. Falaram sobreNeith,masnão soube outros detalhes alémdos que já eramdo seuconhecimento;oamorda jovempelo sacerdoteRomanão foi assunto,nemporpartedeSemnut,nem por parte de Hatasu. Uma vez tudo terminado, para que acrescer tal chaga no coração dodesventuradoSargon,tãocruelmenteamargurado?

Repartidoentreodesesperoearaiva,excitadapelasuposiçãodoraptodeNeith,opríncipemanteve-sealgunsdiasreclusonopalácio,mas,depois,acudiu-lheodesejodeverRoantefalarcomeladaquelheforamelhoramiga.

A esposa de Chnumhotep achava-se em companhia do irmão, quando ali chegou Sargon.Mostrando-sebastantecompadecida,elaoacolheumuitoamigavelmente,mas,naalmadeRoma,apresença do príncipe desencadeou uma tormenta de sentimentos diferentes. Honesto, puro egenerosoatéaoimodoser,ojovemsacerdoteexperimentavaciúme,piedadeeremorsoanteaquelehomemque,ignorandoestarempresençadequemlhehaviaroubadoocoraçãodamulheramada,apertava,semreservamental,amãodorivalfeliz,docausadordosseussofrimentos.Influenciadopor esse misto de vergonha e hostilidade, Roma sentou-se afastado, para não partilhar daconversação, e simulou estar absorvido na leitura de um papiro. A palestra, como era de supor,versouexclusivasobreNeith.

—Nãocompreendocoisaalgumadomisteriosodesgostoqueaconsumia,doqualmefalas,deigualmodoqueouvidarainhaedanutriz—disseafinalSargon,comsombriaexpressão.Ignoroseessepesartemqualquerrelaçãocomoestranhodesaparecimento;mas,deumacoisaestoucerto:

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Neithnãomorreu,éavozdocoraçãoquemmodiz,avozquejamaisseequivoca;elafoiarrebatada,e eu a descobrirei, pacientemente, alerta, procurando até achar a pista e desmascarar o infameraptor. Apenas quero que me digas, Roant, se veio a Tebas um homem cujo olhar fatal atingemortalmenteocoraçãodasmulheresporelefixadas,eseNeithprivoucomesseenfeitiçador.

Comosefosseatingidoporumraio,Romaestremeceuviolentamenteaoouvirtaispalavras,elevou a mão à fronte, de súbito inundada de suor. Recordou-se das expressões de Neith, noderradeiroencontrodeambos:“Salva-medemimmesma,Roma;teupuroamorexpeliráooutro...porqueesteélabaredaquenãoaquece,masdevora,destróieassassina!”Taispalavrasbempodiamter alvo além de Sargon. Fora ele tão cego, a ponto de pensar apenas no hiteno? Roant, lívida,dominando-seacusto,respondeu,numgestonegativo:

—Não teentreguesaconjeturas sem fundamentoalgum;Neithmal conheceuHoremseb,enuncapronunciouonomedopríncipe,queviveemMênfis,numretiroabsoluto,consagrando-seàCiência, ao estudo; jamais distinguiu ou incitou mulher, porque um voto o prende e força apermanecerliberto.

Sargonriu,secaeestridentemente.

— Todas essas histórias nada provam. Sabes do que se trama por detrás dos muros desseenigmáticopalácio?Encontreiessehomem,aopassarporMênfis,eamagnificênciaextravagantedaembarcaçãoedasuapersonalidadeémaisdoquesingularparaumsábio,consagradoaretiroeestudo.Essehomemsemeiao infortúnioeamortepelocaminho:numerosasvítimasderamdissoprova em Tebas; qualquer coisa se abalou em mim, à vista daquela face insolente, como quepetrificada no orgulho e no menosprezo pelo Universo. Tal sentimento maligno não eraaparentementesemmotivo.

Roantescutara,cadavezmaisperturbada;comansiosoolhar,viuosemblantedojovemassíriocrispadoporselvagemódio,edisse:

—Guarda-te, Sargon, de atacarHoremseb, baseado em vagas suposições; não esqueças deque esse homem poderoso é membro da família real, e que arriscarás, por segunda vez, vida eliberdade,emvão,provavelmente.

—Seiquantoafortunaeaposiçãodovencidoeprisioneirosãocoisasfrágeis,evinteequatromeses de humilhação e tortura desgostaram-me da vida — respondeu ele, com amargor. Semembargo, seguirei teu conselho, Roant, e serei cauteloso, porque não quero morrer antes devingado.

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II

ASPESQUISASJá mencionamos que, trabalhado por secreta dúvida, Keniamun espionava ativamente

Hartatef, esperançoso de, por essa vigilância, descobrir a generosa amiga, que suspeitava haversido raptada pelo antigo noivo. Apesar disso, cerca de dois meses eram decorridos desde adesapariçãodajovem,semquehouvessedescobertoamenorpista.Começavaaperderacoragem,quando,certamanhã,soubequeHartatefhaviapartido,só,paraviagemdefinsdesconhecidos.Anotícia era grave, pois suspeitou que o raptor ia visitar secretamente a sua prisioneira. Era,portanto, necessário surpreendê-lo, no próprio local do delito. E, recordando-se de que uma vezHanofer, amulher de Smenkara, lhe prestara serviço, informando-o de segredos deHartatef, foivisitá-la, e, mediante dádiva condizente, a megera narrou-lhe, sem escrúpulo, que o seu amigoviajaraparaMênfis,afimdeajudarparentesnoandamentodecomplicadoassuntodefamília.EraclaroqueHanofernãodesconfiavadaverdade,eKeniamunbemseabstevedeelucidá-la.

—Ah!miserável—pensouele—arrastasteatuavítimaparatãolonge,naesperançadequeninguémaliaprocurasse,mas,espera!Setalousaste,perderásodisfarce.

Sem perda de tempo, foi a Chnumhotep solicitar uma licença para negócios de família, e,obtida,rumouparaMênfis,onde,chegado,disfarçou-se,instalando-seemlocalquepermitiavigiararesidênciadeHartatef.Bemdepressaconstatouqueestesaíaànoite,sumindo-seporlongashoras,e isso com habilidade, demodo que, por três vezes consecutivas, lhe perdeu as pegadas. Afinal,certanoite,ooficialconseguiusegui-lo.

Emescuraruela,viuHartatefcobriracabeçacomenormecabeleirapostiça,envolver-seatéao nariz em seu escuro manto, e dirigir-se, após, ao Nilo, onde pulou para uma pequenaembarcação. Temeroso de mais uma vez perder a pista, Keniamun cortou a amarra de pequenobarco de pescador, e, remando vigorosamente, seguiu Hartatef, mantendo sempre a convenientedistância para não ser percebido. Atravessaram assim a cidade, rodearam em seguida o imensomuroquecircundavaamoradadeHoremseb,e,nãodistantedaescadariadasesfinges,Hartatefacostou,escondeuabarquinhanosvimes,depoisdoquedesapareceunasombradosarbustosquecresciamaolongodamurada.Acentenasdepassosdedistância,Keniamuntambémdesembarcou,e, andando o mais silente possível, aproximou-se quanto pôde do local onde presumiu deviaencontrar-seHartatef.

Não demorou muito, e, do seu esconderijo, viu a barca maravilhosa sair do respectivoancoradouro,enelainstalar-seopríncipeparafazeropasseionoturnonaságuasdoNilo.Logoqueaembarcação sedistanciou, apareceuovultodeHartatef, encaminhando-separaaescadariaemcujosdegraussepercebiavagamenteasilhuetadeumescravoacocorado.Oqueocorreudepois,Keniamun não pôde ver: ouviu o indistintomurmúrio da voz profunda deHartatef, interrompidobruscamenteporgrunhidosroucoseferozes,e,afinal,osapateartípicodelutacorporal.Instantesapós, o egípcio pulou por cima de umadas esfinges e correu para o seu barco, à altura do qualdeslizaraooficialnaintençãodetudopresenciar.

—Chacal!murmurouHartatef,desprendendoacordadeamarra.Apesardetudo,sabereiseescondesNeithpordetrásdessesmurostãobemsentinelados.Nãoéemvãoqueamasanoiteeomistério,animalimpuro,feiticeiromaldito!

Ergueu o punho crispado, num gesto de ameaça, e saltou para a embarcação. Keniamunimitou-osemdemora,porissoque,naescadaria,haviamaparecidomuitoshomens,comarchotes,aprestando-se,semdúvida,paraarondaemtornodomuro.Rapidamenteatingiuamargemopostadorio,e,semaçodamento,regressouacasa.

O moço oficial estava aturdido com as palavras que ouvira e derribavam todas as suassuposições:Hartatefnãoforaoraptor,poisaprocuravanosdomíniosdeHoremseb,oqueeratãoinesperado quanto inconcebível. Keniamun, conhecendo a astúcia e prática de Hartatef, estavasegurodequeestenãoperseguiriafantasmas,edequesóporindíciosbemfundadosafrontariaoriscodepenetrar,aqualquerpreço,noinabordávelemisteriosopalácio.Mas,queacasooconduziraàquelapista,seéqueumloucociúmenãooimpeliaparafalsoroteiro?EmvãoooficialtorturouocérebroparaestabelecerrelaçãoentreopríncipeeodesaparecimentodeNeith:nãoencontrouofiocondutor.

FrequentaraHoremseb,quandodasuaestadaemTebas,enãolhenotaraqueseinteressasse

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pelamoça,nãolheouvira louvoresàbelezadeNeith.Quantoaesta,esquivaatodasasfestasdaépoca, quase não frequentava a sociedade. Keniamun recordava-se de que o estado doentio dajovemdatavadachegadadopríncipe,mastambémcoincidiacomoperdãoconcedidopelarainhaaSargon.Asilenciosatristeza,asurdaagitaçãoquedevoravaNeith,ofulgorestranhoefebrildeseusolhoslhehaviam,então,inspiradoinquietude,masporqueajovemnãopronunciarajamaisonomedopríncipe,decujapresençamaisfugiradoqueseaproximara,nãopodiacompreenderhouvesseentreambosumvínculosecreto.Duasvezesapenaseleosvirajuntos:nofestimdeChnumhotepenafestadedespedidadopríncipe,enumaenoutra,este,indiscutivelmente,distinguiraNeith.Era,porém, natural que tão formosa mulher atraísse atenção, e, além disso, em toda parte sehomenageavaaprotegidadarainha.

Keniamunnuncasedetiveranessascircunstâncias,mas,soba influênciadassuposiçõesoradespertadas, rememorou de súbito dois incidentes, os quais a sua superexcitada imaginaçãointerpretava, agora, de maneira nova. Encontrara o príncipe quando este, saindo dos aposentosprivados,ordenaraaumservomandasseaproximaraliteiradeNeith.Impressionadopelalividezeardeperturbação,indagousobreoqueocorrera.

— A esposa do príncipe Sargon está sentindo-se mal, e vou levá-la à liteira — respondeuHoremseb,distraidamente.

Agora,Keniamunperguntavaasimesmoseaextremapreocupaçãodopríncipepoderiaserprovocada naturalmente pelo acidente sofrido por uma jovem senhora, completamente estranha,convidada pormera polidez. O segundo incidente ocorrera cerca demeia hora depois. A poucospassos de Horemseb, o príncipe Tutmés indagara qual fora a causa da súbita indisposição dafavoritadesuairmãHatasu.

— A nobreNeith desmaiou ao regressar de um passeio no jardim. Pareceu-me enferma dealmaedecorpo.Éverdade—ajuntouHoremseb,comescrutadorolharebaixandoavoz—queaexpectativadoretornodomaridotemreagidotãodesfavoravelmentesobreasuasaúde?Ohitenodeveserbemhorrendoparaqueelatantotemaoseuregresso.

—Demodoalgum!Sargonéumbelorapaz,comodefeitodeteramãodemasiadoimpulsiva.Boqueja-se que a bela Neith tem um fatal e irrealizável amor por um homem casado, segundoalguns,eporalguémmuitoabaixodonívelsocialdela,segundooutros—disseTutmés,arir.

Horemsebvoltoubruscamenteacabeçaepegouumcopodevinho,eKeniamunnotouqueamão estava trêmula, imperceptivelmente, e que sombrio olhar, pleno de cólera e ameaça, semostrara através das pálpebras semi-fechadas do enfeitiçador. Chegado a esse ponto das suasreflexões,omilitaresbarrouemoutranovaeinextricáveldificuldade:seHoremsebamavaNeitheera correspondido, qual a necessidade de rapto, de todo esse perigoso enigma?Hatasu, que tãoostensivamenteprotegiaafilhadeMena,teriaachadoplausívelrazãoparaanularomatrimôniocomSargon,ligandosuafavoritaaumpríncipedacasareinante.Tudoissoeraincompreensível,epodia-seperderosisoemtaldédalo.

Keniamunteveumanoitedeinsônia,mas,quandoaaurorafiltrouosprimeirosraiosdeSolnominguadoespaçoqueocupava,oespírito sutil e inventivodooficialhaviaobtidoa soluçãoqueoacalmou: convencera-se de que, embora Neith vivesse, impossível era chegar até ela, porque aelevada hierarquia de Horemseb tornava-o inatacável, no momento. Decerto o ciumento e feroHartatefnãosedeteriaanteessaconsideração,nadaempecilhariaatenacidadenabuscadamulheramada,e,seadescobrisse,oescândaloseriaenorme.

Mas,longosmesesseescoariam,semdúvida,antesdetaldescobrimento,eKeniamun,crivadodedívidas,nãopoderiaesperartanto,sobpenadeserdevoradopeloscredores.Nãoexistia,porém,umhomememcondiçõesdetirá-lodeembaraços,eolhá-loagradecido?EssacriaturaeraSargon,oqual, restituído à posse de Imensa riqueza, vivia solitário, e desesperado, pranteandoNeith, queconsideravamorta.Quedariaeleaquemlhelevassenovaesperança,umfiocondutor,aelequejáabrigavaumadesconfiança?Tendodecididodefinitivamente lançarSargonnatrilhadeHartatefedoenfeitiçador,Keniamuntranquilizou-se,readquiriuobomhumor,e,nessemesmodia,embarcouparaTebas.

Entristecidoedesencorajado,pornãohaveremsuasindagaçõesproduzidoqualquerresultado,Sargonretomaraovivermaissolitáriodoquenunca;revoltadoecheiodeaversãocontrahomensedeuses,arrastavaseusdiasnaapatia,oufatigandoocérebronabuscademeiodealcançaroraptordeNeith, pois, tanto agora quanto anteriormente, não acreditavanamorte da jovem.Avisita deKeniamun causou-lhe medíocre satisfação, e ouviu, com a indiferença de homem fatigado, aloquacidade alegre do visitante. Este não mostrou reparar na fria recepção, e, interrompendo obanalassuntoemfoco,disse,cominteresse:

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—Vejo que tens a alma enferma,Sargon; amorte de tua esposa acabrunha-te, e isso seriaefetivamenteumterrívelgolpe,setalmorteestivessesuficientementecomprovada;mas,eunãoaaceito, e vim confiar-te uma descoberta que fiz, e quiçá te proporcione um fio condutor paraencontrarNeith.

Sargon, que se estirara displicentemente sobre um leito de repouso, retesou o busto, olhosflamejantes.

—Ah!tambémtunãoajulgasmorta.Mas,depressa,depressa,fala;quesabestu?

—Calma! Sei pouco, mas, constitui um indício. Lembras-te de Hartatef, o antigo noivo deNeith?

—Louco,cegoquefui—interrompeuopríncipe,golpeandoafronte.Éele?Omiserávelcaropagaráaaudácia!

—Sossega-te,Sargon;tuteprecipitasmuito,etomasrumoerrado;quisapenasrelembrarqueessehomem,tenazeenérgico,amouNeith,amaainda,e,talqualnós,nãoacreditanasuamorte.Nãofoioraptordetuaesposa.

—Senãofoiele,quempôdepraticarorapto?—disseopríncipe,desencorajado,poiscontavajáconheceroinimigo.

—Não;Hartatefnãofoi,masnosajudaráaencontrarNeith,queeleprocuranacasadeumhomemque,semele,nuncaseriapornóssuspeitado.

E narrou quanto havia surpreendido emMênfis; Sargon escutava, pálido, lábios contraídos.QuandoKeniamunfindou,disse,comavozconcentrada:

—EstoupersuadidodequeociúmebeminspirouHartatef;amimtambémavozdocoraçãosoprouonomedessehomemnefasto.Suafigura(euoencontreipróximodeMênfis)perturbou-meorepouso,eeuignorava,então,odesaparecimentodeNeith.Quandoseuolharsecruzoucomomeu,raiva cega invadiu-me a alma. Mas, como chegar até esse miserável, cuja hierarquia o tornainatacável?Oh!seeutivessequalquerprova!

— Deixa-me dizer-te, Sargon, que antes de tudo, é mister armar-se de paciência; emsemelhantesassuntos,oacaso,muitasvezes,éomelhorguia.Mas,certamente,sepultando-tenestepalácio não émeio de obteres um indício. Semque ele o suspeite, temos emHartatef umaliadoastuto e intrépido, que precisamos seguir de perto;mas, tu próprio, deves ir a toda parte, ver eouviroquesepassa,poisninguémadivinhaondeedequemodosepodecairsobreumrastrosério.A minha aventura com ele o prova. Assim, deverás visitar Tuaá, muitas vezes, mulher que temparentes e amizades, emMênfis, que a procuram. Agora, precisamente, um de seus primos estáaqui.Taisrelaçõessãoindispensáveisati.

—Tensrazão:ireiàcasadeTuaá;estainatividademeenerva,enãoserveparacoisaalguma.Tu,Keniamun,sêmeualiado;nósdoisvenceremos,euoesperofirmemente.

Ooficialsuspirou.

—ReceionãotesertãoútilquantoodesejaraedeacordocomaminhaamizadeporNeith;meusassuntossãotãodeploráveis,quenãoseimesmosepodereipermaneceremTebas.

—Tensdificuldadesdedinheiro?Dívidas?—perguntouvivamenteopríncipe.

EvendoqueKeniamunfaziagestodeconfirmação,acrescentou,pegando-lheasmãos:

— Não penses mais nessas bagatelas; sinto-me feliz por desembaraçar de tão mesquinhapreocupaçãoumamigo,quemeprestauminapreciávelserviço.Amanhã,enviar-te-eium“talentodeBabilônia”.Bastaráisso?

Ooficialse fezderogado,paradepoisagradecer,contente,poisasomaerao triplodoquenecessitava. Uma hora mais tarde, os dois moços despediram-se grandes amigos, e Keniamunprometeuvoltar,nodepoisdeamanhã,paralevá-loàcasadeTuaá.

A reunião na residência da viúva não era numerosa; quando Sargon e seu companheirochegaram, Nefert e alguns moços, admiradores assíduos, jogavam bola no jardim; Tuaá, velhasamizadeseoprimodeMênfisagrupavam-seemredordemesalauta.Aestesconvivasjuntaram-seosrecém-vindos.TuaáacolheuSargoncomgrandesdemonstraçõesdealegria,fazendo-osentar-seaseuladoeprocuroutirá-lodotaciturnomutismo.Keniamun,jovialeconversadordesempre,dirigiu

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habilmente a palestra e alcançou que versasse sobreHoremseb, informando-se, do residente emMênfis,dealgumapossívelnovidadea respeitodopríncipeenfeitiçador.O interrogado,umvelhopadre,melancólicoerabugento,respondeu,avisívelcontragosto:

—Que se pode saber de um homem que vivemisteriosamente, e sai apenas à noite? É dedesejarquetalexistência,tãocuidadosamenteescondida,sejaagradávelaosImortaisenãoreceieoolhardosvivos.

Tuaáclamoucontraaopiniãosuspeitadoparente,aquemclassificouderesmungador,e,emseguida,espraiou-sesobreaformosuraeencantofascinadordopríncipe,quelhecausaraindelévelimpressãodesdeaprimeiravista.Enlevadacomas recordações,narroupormenorizadamenteseunoturnopasseioemcompanhiadeNeftiseoencontrocomHoremseb,queatiraraumafloràquela.Sargon e o oficial prestaram atenção, sendo que este se lembrava de ter ouvido antes essesdetalhes,pormenoresqueagoraserevestiamdeoutrointeresse,aliás.

—Equefazagoraamoçadistinguidacoma lisonjeiradádiva?Guarda-a?—perguntoucomaparentedespreocupação.

—Emverdade!Nãopenseiemperguntar.Mas,meusamigos,ahistóriadestamoçatomou-setãoestranha,queeunãoresistoanarrá-la.

Enotandoacuriosidadedosconvivas,vivamenteexcitada,Tuaáprosseguiu,animadamente:

—Devolembrarque,àdatadoencontro,NeftiseranoivadeAntef,oantigocomandantedeBouto, e dispunha-se a seguir para ali, com a tia, a fim de celebrar o casamento, quando,subitamente,desapareceu,algumassemanasdepoisdaminhapartida.Acreditou-seter-seafogadonoNilo, porque, regressando, à noite, da casa de uma das amigas, sumiu da embarcação que aconduzia.Oescravo,cego,queaacompanhava,dizterouvidocomoquebarulhoderemadas,mas,éadmissível fosse Neftis raptada sem proferir uma interjeição qualquer? O certo é que continuoudesaparecida,esuadesoladairmã,Noferura,onoivoetodoschoraramsuamorte.Pode-secalcularo assombro geral quando, repentinamente, reapareceu. Onde passou durante quase um ano?Ninguémosabe,poisoqueelanarrasobretalausênciaéevidentepatranha.Minhaconvicçãoéqueesse mistério encobre tristes coisas, por isso que a felicidade não transforma assim as pessoas.Imaginai que Neftis, outrora alegre e risonha, tendo a frescura das rosas, atualmente estáirreconhecível: tem a palidez da cera, olhos febricitantes e estranhos, não ri nunca, falaescassamente,esquiva-sedetodos,eparecevivertão-somenteparaassuasquimeras.Oh!àsvezescreioqueoencontrocomopríncipeHoremsebtrazdesgraça,equeobelorapaztem“mau-olhado”.Voltemos,porém,aNeftis.Depoisdareaparição,seguiuparaBouto,nopropósitodedesposarAntef.Uma viúva, sua parenta, Mentchu, acompanhou-a por mera conveniência; mas, imagine-se que,desde a chegada, Antef enlouqueceu de amor pela viúva, a qual, em formosura, não vale assandáliasdeNeftis,ecomelacasou,poisaantiganoivadesfezocompromissoassumido.Foi issopuragenerosidade,ou(Tuaábaixaavozesorricomarsignificativo)teráelaagradadoaoutro?Opositivoéque,naatualidade,NeftishabitanãolongedeTebas,belacasa,doaçãodeTutmés,queavisitaassiduamente.Fuivê-laumavezcomNefert,porquesoubedeAntefqueelaestariaaqui,mas,tornadaestranha,poucosociável,tantoquenãomeretribuiuavisita.

Enquanto os assistentes riam e discutiam o que acabavam de ouvir, Sargon e Keniamunpermutaramumcompreensivoolhar.ÉqueaambosacudiraareminiscênciadarosarubrapresaaovéudeNeith,encontradanodiaseguinteaodadesaparição.

—Comefeito!Vivemosnumtempocheiodeaventurasque,outrora,nãoocorreriamnumlargociclodetempo—disseummoço,escribareal.Voucontar-te,Tuaá,umahistóriaàqualnadafaltadepicante. Tu, emuitos de vós,meus amigos, conhecestes, aomenos de nome, Tatmut, a viúva doastrólogodotemplodeAmon.Suafilhaúnica,Chonsu,élinda,eagenitorafaziagrandesprojetoscomrelaçãoaessafilha,contandomatrimoniá-lacomBock-en-Ptah,quearainhanomeouchefedospintoresquetrabalhamnoseutúmuloemconstrução.Tudoestavaquaseconcluído,asfamíliasdeacordo,quandoanoivamudoudepreferênciaeseapaixonoudoidamente...adivinhaidequem?Deum escravo, de um impuro amonita. Paixão tenaz, contra a qual são inúteis castigos, persuasão,orações. Tatmut tudo envidou para que o escândalo não transpirasse; eu, porém, o soube porintermédiodairmãdeBock-en-Ptah,furiosaqueestácomaofensafeitaaoirmão.

-Essa história suscitou aindamaiores comentários do que a precedente,mas, a entrada deNefertedosacompanhantesdojogodistraiuaatenção,emudouotemadapalestra.Saindodacasade Tuaá, Sargon propôs a Keniamun levá-lo no seu carro, e, para maior liberdade, despediu ocondutor. Durante o trajeto, e após discutirem os incidentes da tarde, disse o príncipe,animadamente:

—DevoavistarNeftis, porque tudo indica existir correlaçãoentre o seudesaparecimento e

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estranhamudançaeomiserávelnigromante,quesemeiamortee loucuraemseucaminho.Talvezporelaapreendamosalgumacoisa.Amelhormaneiradechegarmosàsuacasa,seriaointermédiodeAntef.Consegueisso,seoconheces.

—Creioquesim.AntesdeirparaBouto,servimosambosnomesmodestacamento,noqual,aliás, foi reintegrado, depois do seu regresso, situaçãoquenão lhe deve ter agradado, tendo emvista o posto anteriormente exercido. Fui muito ligado ao pobre rapaz, e, se depender deleaproximarmo-nosdaex-noiva,eleofará.Ficatranquilo,Sargon.Amanhã,avistar-me-eicomele.

Dando cumprimento à promessa, Keniamun foi, no dia seguinte, à morada do antigocomandante de Bouto, que encontrou bem alterado. Embora restituído à fria calma e destrezaenérgicaquelheeramcaracterísticas,estavatristeevisivelmenteferidonoseuorgulho,porhaversido rebaixado do posto que deixara, quando já esperava atingir o primeiro degrau de brilhantecarreira.Osdois jovens sentaram-seàmesa, saboreandoumbomvinho.Keniamunsabia inspirarconfiança,eAnteftransbordavadeamargor,poistodaafamília,Semnutinclusive,nãolhepoupavacensuras, nem perdoava a louca imprudência que poderia tê-lo atirado aos trabalhos forçados; oministro negava-se a dar-lhe qualquer emprego, e a sua reintegração fora de iniciativa e ordemdiretasdarainha.Soboimpériodetaissentimentos,Antefusoudedesacostumadafranqueza.

—Nãopossocompreender—disseKeniamun—qualoespíritoimpuroqueseapossoudeti;seiquenãoésvolúvel,deteunatural,mas,noentanto,abandonastemuitodepressaanoiva,queamavasdesdehaviatantotempo,porumnovoamor,quetelevoumesmoaoesquecimentodosteusdeveres.

Antefapoiouafrontenasmãos.

—Eupróprionãopossocompreenderoque,então, sepassouemmim—cicioueleemvozabafada —, estava enfeitiçado, pois teria renunciado à vida antes de privar-me de Mentchu.Atualmente, nãoposso atinar comohavê-la amado, nemela compreende a transitória paixãoqueteve por mim. Desse tempo de insânia, guardo apenas vaga reminiscência, e só me ficou osentimentodoquesofrihorrorosamente:meusanguepareciatrans-mudadoemfogo,minhacabeçadir-se-ia prestes a eclodir, e um aroma, suave quanto atordoador, perseguia-me por toda parte.Sabesquebebosempremoderadamente,e,dadasasminhasresponsabilidades,maissóbrioeumefizera.Poisbem:asedeentãomedevorava,enodiadomeudesastradomatrimôniobebi,dizem,desmesuradamente.NessamesmanoiteTutmésfugiu,oqueconstituiestranhacoincidência.Ah!omalefício foi bem calculado, e não é menos estranho que Mentchu experimentasse idênticassensações,emborameconfessasseque,malgradoapaixãopormim,nãosesentiasatisfeita,pois,nossonhos,viasempreumhomem,belo,degrandesolhossombrios,curvar-sesobreelaesufocá-lacomardentehálito.Emaisestranhoaindaéque,segundoela,odesconhecidodosseussonhoséopríncipeHoremseb.Quando,certavez,oencontrou,naságuasdoNilo,aimpressãoteveaviolênciadefazê-laperderossentidos,semembargodejamaishavervistoopríncipe,nemouvidopronunciarseunome.

—Sempreessehomem, ligadoaalgummistériomalfazejo, a algummalefício impossíveldeidentificar—pensouKeniamun.Decididamente,começoacrerqueHoremsebfarejouaboavida.

Tendo obtido de Antef a promessa de fazer a apresentação desejada a Neftis, caso fossepossívelvencerarelutânciadajovemempermitirnovosconhecidos,Keniamundespediu-se.Algunsdiasmaistarde,ooficialrecebeutabuinhasescritasporAntef,anunciandoestartudocombinadoefixandoadataemqueeleeoamigopodiam iràcasadeNeftis,queacederacontrariada,poisoconsentimentoforaobtidopelasrogativasdeÍsis,empenhadaemconheceropríncipehiteno.

DesdeoreencontrocomSargon,Romaviviamaisarredioainda,dedicando-seexclusivamenteaosserviçosdotemplo.Adesconfiança,oriundadaspalavrasdohiteno,haviam-lheenvenenadoosossego;nãomaisconseguiaprantearNeithpormorta,e,àidéiadequeelaforaarrebatadaesofriatalvez, longe dele, ficava desesperado; a hipótese de que ela amasse Horemseb fervilhava-lhe osangue. Nos momentos de calma, tentava persuadir-se de que aquela trama, inverossímil, nãopassava de criação do enfermo cérebro de Sargon; logo depois, aprofundava-se, avidamente, nascircunstânciasquehaviamprecedidoadesapariçãodabem-amada,enelasdescobriamilindíciosdaverdadedasasserçõesdojovempríncipe.Soboimpériodetãopenosapreocupação,Romainsulava-sedetodos,evitandomesmoosparentes.

Porisso,grandesurpresafoi,aoreentrarnotemplo,encontraralguémqueoaguardava:eraumvelhoamigodafamília,ovenerávelPenbesa,pastóforodotemplodeAmon,equenãoavistavadesdehaviamuitassemanas.Oaspectodoanciãoeraprofundamenteaflito,demodoqueRoma,nomomento, olvidou seu próprio desgosto, para indagar, com verdadeiro interesse, do que assimangustiavaoencanecidopadre.

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—Éumadesgraçadefamíliaquemetrazati,Roma;venhorogar-teajudaeconselho—dissePenbesa.Trata-sedeChonsu,afilhadomeufinadofilho;algumciumentoter-lhe-iaatiradoterrívelmalefício, ou espírito impuro, de poder extraordinário, dominando a infortunada criança?Obstinadamente, tomou-se de amor por um de nossos escravos, da imunda raça dos amonitas, enenhuma persuasão, nenhum remédio produz efeito,' pois ela não pode passar sem avistar esserapaz.Vendo-nosintransigentenarecusaasemelhantematrimônio,quer,evidentemente,morrer,eseuestadopiora,dediaparadia.

—Émisterafastaressehomemqueaempolgaeexcita,semdúvida.

— Difícil se torna qualquer compreensão: Neftali tem dezoito de idade, é tímido, dócil,governávelcomumsimplesolhar.Entretanto,tambémelefoiatingidoporigualloucura:emvãoocastigamosapancadas,comprisão;eletudoarrostaparaencontrá-la,eomaisextraordinárioéquemuitasmulheresdacasaestãocativadasporele.Vim,pois,suplicar-te,Roma,vásanossacasafalaraChonsu,evêseconseguesrepeliroespíritomauqueaconsome;tu,osacerdotedagrandedeusaquedirigeoscoraçõesdosmortais; tu,cujarígidavirtudese impôsa todos, talvez tenhasa forçaquenosfalece—terminouPenbesa,comdesolação.

Muitoacontragosto,Romaaquiesceu,emboraconvencidodequenãoconseguiriapersuadirajovemlouca;prometeuatender,porquelhefaltoucoragemparanegartãosimplesauxílioaovelhoamigo.Nodiaimediato,compareceuaolardeTatmut,anoradopastóforo.Apobremãe,desfeitaem lágrimas, detalhou a triste aventura. Interessado por alguns pormenores verdadeiramenteestranhos,o jovemsacerdotepediu fosse levado juntoàdoenteequeodeixassemasóscomela.Tatmutobedeceu,açodadamente,e,chegadosaoaposento,fezsinaladuasescravasvigilantesparaqueseretirassem,esaiutambém.

Romaficoujuntodaporta,edaliobservou,atento,aadolescente,acocoradanumalmofadão,nãoparecendoter-seapercebidodapresençadealguém:eraumaquasemenina,dedozeatrezedeidade, frágil e emaciada; o fino rosto e a lassidão do corpo denotavam completo esgotamento;fechadososolhos,acabeçamalapoiadasobreoestofadodeumacadeirapostapordetrás;ruborfebril tingia-lhe as faces, pesado respirar, entrecortado, saía-lhe dos lábios entreabertos edescorados. Profundo suspiro de comiseração arfou o peito do sacerdote: aquela vítima,involuntariamente,recordava-lheNeith,tambémpresadessemesmoaspectoexaustoearquejante,comummalmisteriosonaalma.RomalevouumacadeiraparajuntodeChonsu,sentou-seelhepôsumadasmãosnafronte.Imediatamenteaadolescenteabriuosolhosetomouposição.

—Vimconversarcontigo—disse,curvando-se,amigável.

Mas,nomesmo instante,estremeceu,eapalavrase lheparounos lábios.Équedoagitadopeitodaenfermaseevolavaemondasumsuavearoma,agradabilíssimoderespirarsempre,mas,simultaneamente, acre, atordoa-dor, que apertava o coração e derramava fogo nas veias. Arespiração se lhe embaraçou, um arrepio escaldante percorreu-lhe o corpo e uma nuvem ígneaascendeu-lheaocérebro.Saltandodacadeira, correuparaa janela,desvioua cortinaeabsorveuávidooarfrescodojardim,e,após,avistandoumabaciacheiadeágua,banhouorostoeasmãos.Refazendo-se, ainda que lívido e trêmulo, apoiou-se à parede: identificara o perfume fatal, queoutroralhedominaraarazãoeosossego,acorrentando-oaumavergonhosapaixão.Talaromanãomaisosentiraempartealguma,desdeamortedeNoferura:queacasooressuscitaraali?

— Que te acontece, venerável padre? — perguntou Chonsu, que, espantada, olhosdesmesuradamenteabertos,acompanharaoinusitadoprocedimentodeRoma.

—Dize-me,filha,deondehouvesteesseperfumequeexalas?

—Suaveeraro,nãoéverdade?Veio-medapobreamigaMoéris,queseafogounaságuasdoNilo:suamãedoou-me,emlembrança,seucofredejóias,eneleencontreimuitossaquinhosiguaisaeste.

Ergueu-se e tirou do seio um saquinho, preso a leve corrente, o qual, aproximando-se,estendeuaRoma.

—Dá-metambémocofrezinhodeMoéris,oqualtedevolvereimaistarde.

Recebendo-o,neleencerrouosaquinho,colocandotudonoparapeitodajanelaaberta,depoisdoque,reavizinhando-sedeChonsu,afezsentar-seelhedisse,bondosamente:

—Agora falemosdoquemetrouxeaqui,doamordesarrazoadoquesentesporumserviçal,homemimpuro,tãoabaixodoteunível.Dize-medesdequandocomeçouessapaixão,domomentoemquetivesteaidéiadedesposarNeftali:sêfranca,caramenina,poisdesejooteubem,e,coma

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ajudadeHator,euterestituireiasaúdeeafelicidade.

A adolescente parecia mais tranquila; ergueu o olhar receoso para o sacerdote, mas, semdúvida,abelaecalmafisionomiadesteinspirou-lheconfiança,porquerespondeusemhesitar:

—Não sei, eu mesma, como aconteceu isso. Conheço Neftali desde a infância, brincamosjuntos, sempre me serviu e sempre o estimei, de modo diferente de agora. Quando recebi ocofrezinhodeMoéris,eulhomostreiebemassimasjóias,eoperfumeagradou-lheapontodenãomaispoderseparar-sedele.Entãolhefizpresentedeumsaquinhoeeutambémpasseiatrazerumcomigo.Depoisdisso,nãopodemospassarumdiasemnosavistarmos,e,quandonãoestájuntodemim, sinto-me morrer. A seguir, fiquei doente, desde há tempo; não posso esquecer Moéris, e,quandodurmo,vejosempreobelopríncipeHoremseb,queelaamoueporquemseatirouaoNilo.

Depoisdehaverfeitomuitasperguntasepalestradoumpouco,RomadeixouChonsuefoiaoencontro de Tatmut e Penbesa, que o esperavam ansiosos e a quem tranquilizou, recomendandobanhassemmuito bema doente, a vestissem com roupas completamente novas e a levassemporalgumassemanasparalongedeTebas.Emseguida,foitercomNeftali,dequemtomouosaquinhodo perfume e a quem recomendou fosse feito igual tratamento. Afinal, despediu-se. Às instantesinterrogações do velho pastóforo, respondeu apenas que julgava ter sido inspirado pela grandedeusaparadestruiromalefício.

Regressandoa casa,Roma sentou-se ao ar livre, ligouao rostoumpanoúmido, demodoaprotegerasnarinaseaboca,abriuacaixetaquetrouxeraedelaretirouossaquinhos,emnúmerode quatro. Curioso de saber que continham, rasgou o tecido com uma faca, e apenas encontroumurcharosavermelha,nãodesfolhada,cujaspétalas,amolgadaseligeiramenteviscosas,pareciamembebidas de um suco incolor que umedecia as paredes do saquinho. Nos outros três, idênticoconteúdo.

Roma,apoiando-senoscotovelos,meditoudemoradamente.PorqualacasoasestranhasflorestinhamchegadoaopoderdaInsensatamoça,cujofatalamorporHoremsebaarrastaraaosuicídio?Erguendo-sebruscamente,rumouaoaposento,parabuscaroescríniodemarfimnoqualconservavaas derradeiras lembranças de Neith, o véu e a rosa presa nele. Desprendendo o pano que lhedefendiaoolfato,abriuoescrínioecomeçouaretirarovéu;mas,tãologofoidesfazendoasfinasdobrasdotransparentetecido,estremeceu:nãohaviadúvida,oolorsuave,porém,atordoadorqueseevolou,eraigualaodossaquinhos;arubraflor,úmidaeemurchecida,erairmãdasconservadaspela jovem vítima de inexplicável sortilégio. Premente de amargura e de indignação, o sacerdotedescaiunumacadeira.QueligaçãoexistiaentreessasrosasmalditaseodesaparecimentodeNeith,adementepaixãodeChonsueosuicídioda filhadoescribareal?Quemforaodoadordas floresfunestas?Apósmeditação,guardouovéueossaquinhosnoescríniodemarfim,queencerrouemmóvelbemfechado.

—Émisterguardar estasprovasdo crimeehaurir informações comas famíliasdas outrasvítimas—monologou ele.Claro está que as desgraçadas não se podem separar do veneno até ofinal.Quemsabe,se,nabuscadasrosas,encontrareitalvezumtraçodomalfeitor,remetentedessasmensagensdefatalidadeemorte?

Maisdepressadoquepuderaprever, teveRomaoportunidadedenovasdescobertas.Desdealgunsdias,ouvira falar,no templo,deumaocorrência inexplicável, verificadanacidade-mortaereferente a dois embalsamadores. No seu estado de espírito, não dera maior atenção a essashistóriascochichadasmisteriosamente,mas,depronto,ocasorepercutiu.OindiscretopermaneceuIncógnito,porém,todaacidadesoubequedoisembalsamadoressehaviamapaixonadodemúmiasde mulheres nas quais trabalhavam, recusando, obstinados, separarem-se delas e restituí-las àsfamílias á quempertenciam. Perturbação e terror espalharam-se no povo, e enorme afluência degente intransitou a cidade-morta, sendo necessário isolar o quarteirão dos embalsamadores paraimpedirainvasãopelaturba.Houvera,atravésdostempos,algunsescândalosnaquelelocal,mas,taiscasos,extremamenterarosecruelmentepunidos,diferiamdoatual,quealvorotavaeespavoriaapopulação,Narrava-sequeosdoishomens,comoquecravadosaoscadáveres, jáemtermosdesepultamento,nemsequercogitavamdecomerebeber,e,armados,ambosameaçavammatarquemlhes tentasse arrebatar as múmias. Semelhante aberração mental era atribuída à Influência deespíritos impuros,que, indubitavelmente,haviam tomadopossedoscorposdasmulheres,mortas,umaeoutra, por suicídio.Asmurmuraçõesque transbordavamna capital nãopermitiram ficasseRomaalheioaelas,principalmenteporqueosdetalhes,ouvidosdeRanseneb,excitaramdeimediatotodooseuinteresse:acausadetodooalvoroçoeraseremasmúmiasdeduasmoçasquesehaviamsuicidadoporamoraHoremseb.

— Ah!— pensou ele— omaldito aroma deve ter desempenhado algum papel na tragédia.Algumajóiaouadornoenviadospelafamília,paraornarasmortas,nãoestariaimpregnado?

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Semmesmoregressaracasa,osacerdoteatravessouorioerumouparaacidade-morta.Portodaparte,agrupamentosdecuriosos,mantidosadistânciaporsoldadosepoliciais.Suasvestesdepadre e as tabuinhas com a assinatura deRanseneb deram-lhe livre ingresso. Falou inicialmentecom um dos funcionários, segundo o qual, de uma nova tentativa para afastar os dois furiosos,resultarasairferidogravementeumdosservosdotemplo.Contemporizava-seainda,antesdeusardemedidasextremas,porqueosdoispossessoshaviamsido,atéentão,exemplarestrabalhadores,alémdemestresemsuaarte.

A seupedido, o funcionário conduziu o sacerdotedeHator à saladosúltimos retoquesnasmúmias, onde se viamnumerosos bancos de pedra sobre os quais eram estendidos os cadáverespara o enfaixamento em tiras. Nomomento, os bancos estavam vazios, exceto os dois ocupadospelasmúmiasenfeitiçadas, juntodasquaisseacocoravamosseusadoradores.Todoshaviamsidoafastadospelospadres,temerososdecontágiodabizarraloucura.Romadeteve-se,nãodistantedaporta,eexaminouatentamentetodasasminúciasdacena:umdosembalsamadoreseraidoso,eseuolhar habitualmente discreto e plácido, ardia como em febre, e os olhos, injetados de sangue,mostravamvigiaroaudaciosoqueousassevirdesalojá-lo;empunhavaafacaqueferiraoservodotemplo. O segundo enfeitiçado era um belo rapaz, pálido e visivelmente exausto. Pendido para amúmia,meioenfaixadadetiras,eleafixavacomadoraçãotípicadedemência,eparecia,naocasião,nãover,nemouvir.Sobreopeitodeumadasmortasostentava-seumcolardeamuletos,e,próximodeambas,cofrezinhosabertos,visivelmentecheiosde jóias,colocadossobrebanquetas.Nãomaisduvidandodaverdadedesuassuspeitas,ojovemaproximou-sedomoçoembalsamador,e,tocando-onaespádua,disse,suavemente:

—Nãotemascoisaalguma,Nebenhari,nãoqueroarrebataraqueamas,esimapenasvê-la.

—Ecrêsqueadeixarãocomigo?—indagou,olhandoansiosamenteosacerdote.

—Épossívelqueosparentessedeixemvencerpeloteuamor.

Sempre falando, Roma esquadrinhara a caixeta de onde o aroma venenoso se evolavaabundante, e, no fundo, sob as jóias, descobriu duas úmidas rosas, envoltas num pedaço de finotecido. Com o asco que sentiria se tocasse em víboras, repeliu o achado, e, voltando-se para oembalsamador,disse:

—Paraqueafamíliateconcedaamúmia,precisaconvencer-sedoteudesinteresse,peloquelevareiestasjóiaspararestituí-las.

Sem aguardar resposta aquiescente, retirou o colar de amuletos e o meteu na caixinha,levando-aeconfiando-aaofuncionárioqueoesperava.

—Os desgraçados estão sob o império de terrívelmalefício, que julgo haver descoberto—disseRoma.Mandatrazer-meumpanobemencharcadodeágua,eordenaaosservosqueenchamvários baldes na sala contígua. Feito isso, que dois me acompanhem. Reaproximando-se deNebenhari,querecaíranacontemplação,envolveu-lhebruscamenteafrontecomopanomolhado.

Antes que pudesse oferecer resistência, os servos arrastaram-no para o pátio, onde,desembaraçadodopano,lheinundaramacabeçacomaáguadosbaldes.

—Quesignificaisto,quemefazeis?—gritouNebenhari,meiosufocadoeenceguecidopelascargasdeáguaqueoencharcavam,atirando-seaumbanco,logoquelhopermitiram.

—Significaqueeraindispensávelqueterefrigerassesumpouco.Agora,vósoutros,enxugai-o,dêem-lhevestimentanovaeconduzi-oparaoseualojamentoparaquesealimenteedescanse.

Comespantodetodos,orapazdeixou-selevar,semqualquerobjeção.Parecendoesfalfadoecomoqueébrio,seguiudocilmenteseuscondutores.Animadosporesseprimeiroêxito,Romaeosservosregressaramparaosegundoembalsamador.Umgrande jactodeáguaque lheatiraramdeimproviso sobre a cabeça atordoou-o suficientemente para que o pudesse agarrar e desarmar.Levadoparaar livreeamplamenterefrigeradotambém,ovelhodesmaiou.Depoisderecomendarquedessemos idênticoscuidadosprescritosparaNebenhari,Romavoltoupara juntodoguardiãodosembalsamadores,oqual,maravilhadodetãoprontoêxito,ofelicitouelheagradeceu.

—Consenteomenospossívelquese toquenasmúmiasenfeitiçadase fazsepultá-lascomamaior brevidade. Quanto a estas caixetas, eu as levarei, se tal me autorizas, para restituí-las,pessoalmente,aosparentesdasmortas.

— Antecipas meu desejo, nobre Roma. Compreendo que esses objetos estão igualmentecontaminados,eestoucertodequeosrestituiráspurificadospelastuaspreces.

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Arepercussãodessaestrondosacura,de tão incrívelenfeitiçamento, foi totalnacidade,eacuradeChonsuigualmentesetornoupública;mas,porqueRomasilenciaraabsolutamentequantoaosmeiospelosquaispenetraranosegredodosortilégio,atribuíramoêxitoàsuarígidavirtudeeexemplar piedade.Empoucos dias, o jovem sacerdote tomou-se personagemcélebre, venerado ealvodesupersticiosaadmiraçãopelopovo,ededistinçãoehonrariaparaosdasuacasta.Oheróide tãosúbitanomeadanão tevealegriaalguma,equasea ignorava,buscandoasolitudemaisdoquenunca;odesejodepenetrarnomistériodas rosas funestasabsorvia-ocadavezmais.Acadaumadasfloresquedescobrialigava-seonomedopríncipeHoremseb;todasessascriaturasmoças,que nefasto amor havia vitimada, possuíam-na... Mas, que acaso doara a Noferura uma rosadaquelas, e com a força da qual ela o fascinara? Onde a escondera então? Jamais lhe notaraportadora de um dos agora conhecidos saquinhos... Instantaneamente, porém, lhe acudiu àrecordação um colar de placas esmaltadas queNoferura usava sempre, desde o seu regresso deMênfis, em lembrança da irmã, jóia que Neftis lhe reclamara após a reaparição, e que nãoaparecera,possivelmenteroubadaouperdidanofundodoNilo.

Chegadoaessepontodasreflexões,estremeceu:Noferuracaíranorionomomentoemquepassava a barca de Horemseb, e os remeiros lhe haviam descrito a estranha agitação da jovemmulher,eatribuídoasúbitaloucuraao"mau-olhado”dopríncipe.Podiasermeracoincidência;mas,porqueperderaoequilíbriojustamenteaoverohomemmisteriosoparaoqualconvergiamtodasasramificações do bruxedo? E esse colar suspeito pertencera aNeftis, cuja desaparição e regressoestavamacobertadosporinsondávelmistério.Nissotambém,talvez,seescondessealgumelocom*Horemseb,Romaosentiainstintivamente,masfaltavaofiocondutoraessedédalo,equantoaobterum,esclarecimentodacunhada,agélidaestátuaanimadaporsinistrofogo,eledetalnãocogitava.Porisso,entregou-seàprocuradenovosindícios.

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III

ACONJURASargoneKeniamunsehaviamtornadohóspedesassíduosdacasadeNeftis.Prudentemente,

paranãoaespantar,observavamatentamenteajovemmulher,que,silenciosa,sombria,indiferente,os tolerava, sem encorajar novas visitas. As vezes, eles se encontravam com Tutmés, que,igualmente,visitavaNeftiscomfrequência,mas,Keniamundepressaseconvenceudeque,apesardas aparências de íntimas relações, não existiam laços de amor; Tutmésnão era cioso deNeftis,nem esta representava algo para ele, indiscutivelmente. Que elo, então, poderia haver entre opoderosoherdeirodotronoeadesvalidafilhadeummercador?Teriasidoumaligaçãopassageiraacausadehaver opríncipe tão ricamente a recompensado?Ahipótese era admissível, e emparteindiferenteaooficial,pois,qualquerquefosseaorigemdasólidariquezadeNeftis,estaapossuía,circunstânciaqueinspiraraaKeniamunumavariantenovanoseuplanoprimitivo.

Desejosodecasaredegarantir,porumconvenientematrimônio,umfuturoricoetranquilo,acudira-lheaIdéiadedesposarNeftis.Amulheragradava-lheeopassadomisteriosodeviafazê-laaspiraracasamentohonroso;mas,contratodaaexpectativa,mostrou-seelaindiferenteeacolheuasinequívocasassiduidadesdorapazcomreservasquaseIrônicas.Estimuladonoamorpróprio,ooficialredobrouasatenções,e,àspesquisasdaspegadasdeNeith,seassociouopropósitodesaberse não era também, no caso, o bruxo de Mênfis que lhe barrava o caminho. Por duas vezes,constataraque,aonomedeHoremseb,pronunciado inopinadamentenapresençadela,umsúbitolampejoalteraraosolhosternosdeNeftis,e,àmençãodavidadissolutaqueopríncipemantiveraem Tebas, indefinível expressão de raiva e de sofrimento revelara-se no seu rosto pálido eimpassível. Sobre tal ciumenta conjetura, Keniamun arquitetou um plano de prova decisiva: sealgumacoisapodia levarNeftisatrair-seedeixartransparecerumapartedo íntimosegredo,eradecerto esse sentimento onipotente— o ciúme— que cega as criaturas e desencadeia todas aspaixões.

Aocasiãoalmejadafez-seesperarumpouco;mas,numatardeemqueSargoneeleeramosúnicosvisitantes,achoupropícioomomentoparadesfecharogolpedefinitivo.Ísis,quesetomaradegrandeamizadepeloassírio, talvezmesmode secretoamor,equemultogostavadepalestrarcom ele discretamente, convidou-o para ver uma rara flor desabrochada no jardim. Keniamun,presumindoquenãoregressassemsemdemora,resolveuaproveitarobommomento.Aconversaçãoarrastava-seeNeftis,noseumutismo,nãosedavaaotrabalhodemantê-la.Assim,decorridolongosilêncio,Keniamuncurvou-sebruscamenteparaela,edisse,pegando-lheamão:

—Neftis,porquesempretãopálida,tãosombria?Porquemostrassóindiferençaàquelecujocoraçãoestácheiodefielafetoporti?

Estremeceu,eseusgrandesolhosesverdeadosfixaramooficial,comironianãodisfarçada.

—Creioquenão serás tu,Keniamun, volúvel egalanteborboleta, openetradode tãobelossentimentos de fidelidade. Aliás, seria em pura perda: meu coração morreu para o amor, desdequandotivederenunciaraAntef,pois,semelhantessacrifíciospetrificamasmaisardentesalmas.

—Tuarespostaéáspera,porém,nãoatenhopordefinitiva—respondeu,combonomia.Sabesque da pedra se tira fogo, quando se sabe atritá-la, e não se deve confiar no próprio coração.Conheciumhomemqueparecia invulnerável, peloqual asmulheresmorriamsem lhealcançarobrônzeo peito. Pois bem: o amor venceu-o igual a qualquer outro, e dissome convenci por umapequenaaventuraquemeaconteceuemMênfis,aotempodeminharecenteviagemali.

Comoqueabsorvidopelasrecordações,silenciou,eingeriuumgoledevinho;suafisionomiaespelhava franca jovialidade, inocente malícia, de modo a excluir a idéia do ardil. A citação deMênfis,sombreou-seosemblantedeNeftis,e,comumgestonervoso,aproximouumcopodecristal,queencheu,dizendo,comalteradavoz:

—Issoprometeserinteressante:conta,Keniamun.Queméessehomemqueconheces?

—Guardarássegredo?Trata-sedeumagrandepersonagem—respondeu,semprejovial.

Aumgestoafirmativodainterlocutora,prosseguiu:

—Poisbem: confesso-tequeopríncipeHoremseb,por tudoquantodele sediz, sempremedespertou viva curiosidade. Achando-me em Mênfis, passei muitas vezes próximo do muro que

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circundasuahabitação,eavistadessesmisteriosos jardins,dessepalácioperdidoentresombras,aguçoumaisaminhacuriosidade.Resolvialipenetrar,atodocusto,ecertanoite,nãosemesforço,confesso,subipelomuro.

—Econseguistesairdelávivo?—interrompeuNeftis,emvozrouca.Estavalívidaeoslábiostremiam-lhenervosamente.

—PelosdeusesRaeOsíris,nãosetratadeumantrodebandidos!—respondeu,simulandonãorepararnaemoção.Demais,nãomeaventureiatémuito longe,etudoestavadeserto;mas,asorte levou-mediretoao fim.Emumaaléia,ao termodaqualcintilavaaáguadegrande lagooutanque, vi um banco e nele sentado um casal. No homem, reconheci imediatamente o nossoinvulnerávelherói;amulhernãoidentifiquei,nãoapudeverporqueenlaçaraosbraçosemvoltadopescoçodopríncipeeocultavaorostonopeitodeste.Noteiapenasqueeradelicadaetinhacabelosescuros. Como que para dissipar minhas derradeiras dúvidas, ele se fez ouvir, e nas palavraspronunciadasvibravatãointensapaixãoque...

Interrompeu-se, pasmo, ele mesmo, do efeito da ousada mentira. Neftis pulara, emitindorouquenhogrito,enquantoocopo,desprendendo-se-lhedosdedos,seespatifavacomestrépitonochão. Seus olhos verdes pareciam vomitar chamas; o semblante, tornado violáceo, crispara-se naexteriorizaçãodeselvagempaixão;opeitoarfava:apersonificaçãodociúmedevorante,prestesadestruireamatar.

—Ah!elepodeamar!—explodiuela,emtomsofreado.

E, recaindo sobre a cadeira, cobriu o rosto com asmãos. Refeito do seu primeiro receio eespanto,Keniamunaproximou-se,vivamente:conseguiramuitoalémdaexpectativa,edissoqueriatirartodaavantagem.

—CaraNeftis, teriaeu Involuntariamente te feito sofrer?Tuaperturbação faz-mesuspeitartenhasestadopordetrásdessemuroenfeitiçadoealisidovítimadegraveofensa.Dize-metudo,emtalcaso;acredita-meteudedicado,capazdetevingar,mesmodeHoremseb!

Neftisergueuacabeça.

—Seme ofendeu?— disse, num rir desesperado.—Eleme torturou, destruiu, arrancou ocoração,e,todavia,aniquilei-me,tudotenhosofridoemsilêncio,porqueacreditavasereleincapazdeamar,penseiqueabebidamágicaporeleusadalhehaviaparalisadoaalma;mas,sabendoagora,Horemseb,queteuolhargélidopode incendiar-sedeamor; tuaboca, friaezombeteira,preme-seem beijos apaixonados de mulher, não mais terei piedade de ti, e denunciar-te-ei, aniquilarei,arrancareiabruxariaqueteganhacorações,efareipagarestodososmeussofrimentos!

Calou,sufocada.Indefinívelexpressãodeódio,dedesesperoedeselváticaobsessãocrispava-lhetodoorosto.

—Calma-te,Neftis,econtacomomeuauxílio,emqualqueriniciativaquetomes.Possaomeudevotamentoprovarasinceridadedomeuamorporti.

—Creioeagradeço,Keniamun,e,ameuturno,juroque,nodiaemqueHoremseb,destruído,degradado, preso a corrente, for arrastado pelas ruas de Tebas para comparecer ante os juizes,nessedia,sereituaesposa.PossamHatoretodososImortaispunir-meenegar-measmoradasdafelicidade,seeufaltaraestejuramento.

Keniamunapertoufortementeatrementemãodajovemmulher.

—Para tal conseguir—disseele—,é indispensável saberoquesepraticasobas sombrasmisteriosasdossicômoros,nessepalácioondeseconsomemmulheres...

—Onde também se tragouNeith— interrompeuNeftis. Quanto aos segredos do feiticeiro,conheçoumaparte...

E narrou sucintamente tudo quanto testemunhara. O oficial ficou aturdido, pois jamaissuspeitaratãoinauditoscrimes.Efalou:

—ParalibertarNeithedesmascararumcriminosotãotemíveletãoaltamentecolocado,nãoteparecequenósambossomosinsuficientes?Seperecermos,éprecisoqueoutrosprossigamnossatarefa;nessaintenção,ofereço-teSargonporaliado,poiséseguro,ousadoejásuspeitouaverdade.

—Muitobem.EdeminhaparteproponhoInteirarÍsisdoassunto: tambémelaéenérgicaefiel,etemtrêsmortosavingar.

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—Deacordoqueestamos—rematouooficial,levantando-se—,permitequevábuscarnossosdoisaliados,paraformarmosconselhoeassentarumplanodeação:quantomaisdepressamelhor.

Meia hora mais tarde, os quatro conjurados reuniram-se em aposento cuidadosamentegarantidocontraindiscrições,eNeftis,concentradaeresoluta,minudenciandodestavez,narroudeque forma havia caído em poder do nigromante, descreveu a vida estranha que semantinha navivendadeHoremseb,aindignamutilaçãodequasetodososfâmulos,asorgiasnoturnas,opoderdas rosas enfeitiçadas e o do contraveneno, o pavilhão inescrutável onde o príncipe desapareciaparatrabalharcomumsábiodesconhecido,enfim,oquelhehaviaditoojovemescravoarespeitodahorripilantemorteinfligidaavítimasinocentes.Suorálgidoporejaraafrontedosouvintesanteainacreditávelnarrativa.Ísisagoracompreendiaoqueteriaacontecidoàirmã,mortaquiçáporentreatrozessofrimentos.EaopensamentodequeNeithestavanesseinferno,edequesuaalma,puraeinocente,encontrava-seenodoadapelavistadetaismisérias,pungentedorfísicaferiaocoraçãodeSargon, que foi o primeiro a romper o silêncio, perturbado apenas pelo soluçar de Ísis, pelosdolorosossuspirosdesuaamigaearespiraçãoofeganteerefreadadosdoishomens.

—Poisquesetrata,emprimeirolugar,dalibertaçãodeumserquemeestáligadoeaquemamo—disseohiteno,erguendoobusto,pálidoedeolharincendido—,éamimqueincumbemodireitoeodeverdepenetrar,antesdetodos,nesselocaldemorteedissolução,e,porquealisóseaceitammudos, serei surdo emudo. Embora simular isso não seja fácil,mas possível, triunfarei,fazendo-me comprar por escravo. Seu intendente, segundo se diz, compramuitos, pois necessitarenovarogadohumanodizimadopelas orgias!E,umavezdentrodapraça, vigiareiHoremsebeencontrareiminhamulher,sealiseacha.

—Esetereconhecem?—interrogouÍsis,murmurante.

—Quemmepodereconhecer?Opríncipenuncameviu,eeupossoevitarNeith.Alémdisso,estoubastantemudado,eoseuorgulhosoolharnãodesceráatéummíseroescravo.

—Edequemaneiranoscomunicaremos,paraestarmosaocorrentedoquedescobrires?—perguntouKeniamun.

—Combinaremos,quandochegadoslá;teremosdedescobrirouescavarnomuroumburacooufendaondeeupossadepositar,cadadia,umpequenorolodepapiro,e,seestefaltar,significatersidoeudescoberto.Dareisentãooalarme.

— Irei contigo, Sargon: tenho três mortos a vingar sobre esse miserável, e não queropermanecerinativa—disse,energicamente,Ísis.

E,aonotarosinalnegativofeitobruscamentepelosoutros,acrescentou:

—Nãotemaiscoisaalguma,pois,perigoconhecido,jáestápormetadeevitado,eatarefadeSargon será bem facilitada não estando ele sozinho na goela do leão. Nós nos ajudaremosreciprocamente, e, se um perecer, ficará o outro para vos dar a notícia; esforçar-me-ei para serenfeitiçadapelobruxo,poisnãoignoroserbastantebelaparaconstituirseudivertimento.Apenasnãoterápoderalgumsobremim,porquedestruireitodasasrosaseporeiforaabebidaenfeitiçada.Nãotenteisdissuadir-me:minharesoluçãoéinabalável.

Após curto debate, o oferecimento de Ísis foi aceito, de igual modo que a proposição deKeniamun,deobterumalicençademesesparaacompanharseusaliadosaMênfis.

—Ocomandantedastropasetíopeséamigo,e,emcasodenecessidade,deleobtereisoldadosparacercaropalácio,ouforçaraentrada—acrescentou.

—Resta-nosapenasfixarodiadapartida—disseNeftis,deolharcoruscante—porqueeu,meusamigos,possooferecer-vosabrigoseguro,ondeninguémnosprocurará.Possuo,dochefedemeupai,pequenamoradia,situadaempaupérrimoquarteirãodeMênfis,nãodistantedomercadode escravos. Tal habitação, simples e modesta, mas adequada às nossas necessidades, fica emcentro de jardim, quase inculto, e foi residência de uma parenta falecida recentemente. Velhoescravo,fieledevotadoqualumcão,nelareside,só,atualmente,eninguémoconhece,porqueestáde pouco tempo em Mênfis, vindo de um vinhedo pequeno que possuo. Servir-nos-á, e será ovendedordeSargonnomercado.Asseguroquenãonostrairá.

Depoisdeassimhaveremdecididoaperdiçãodonigromante,osconjuradossepararam-se.Asduasmulheres,asós,aindaconversaramlongamente.

—Umacoisaaindamehorrorizaegelade terroropeito:éa tuadeliberação, Ísis—frisouNeftis,comumsuspiro.Confessa-o,époramordohitenoquevaissegui-loaoantrodoleão;mas,se

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o feiticeiro, apesar de tudo, envenenar tua alma e te destruir? Não desdenhes da grandeza doperigo; aindaé tempodedesistir; tunãoconhecesopoderda feitiçariae a força fascinadoradeHoremseb.QuevaleSargon,comparadoaele?Sentisobremimesseolharquegelaequeima;viosorrisoquezombae,apesardisso,prendeparasempreaele.Euoabomino,e,noentanto,nãooesquecerei jamais, e é porque ninguém o possui, e eu não o possuí, é por isso que eu o traio edestruo.

—Tensrazão:deixei-meprenderaSargon,semsegundaintenção,porém,vistoqueécasado,pretendo apenas ajudá-lo a reaver a esposa.No que concerne aHoremseb, não temas pormim,Neftis,porquenãoamareinuncaessehomemhorripilante,cujaalmatemonegrumedosabismos,que a ninguém ama e que destrói, por prazer, inocentes criaturas, que jamais lhe causarammalalgum.Atalmonstro,porformosoqueseja,nãoencadeareiminhaalma:querovingarminhapobreirmã,efazerHoremsebpagarossofrimentosdetantasdesgraçadas.

Umatarde,quinzedias,aproximadamente,apósomemorávelconciliábuloemque,arrebatadapelociúme,Neftishavia traídoonigromantee juradosuaperda,opríncipeTutmés,deitadonumleitoderepouso,jogavadamascomumoficialdasguardas.Oherdeirodotronoestavavisivelmenteentediadoedemauhumor.Éque, trêssemanasantes,emgrandecaçada,umadasrodasdoseucarro, incidindo num baixio da estrada, quebrou, fazendo com que, pelo desequilíbrio, fosseprojetado violentamente no chão, luxando um braço e ferindo uni joelho. Seu estado nãoapresentavagravidade,masforçavarepouso,emcasa,alémdeseveríssimoregímenalimentar.PorIsso, à proporção que as dores diminuíam, o turbulento e vivaz príncipe mais e mais seimpacientava,e,namanhãdodiacitado,oaborrecimentoeomauhumorhaviamatingidooapogeu.Descontente de tudo,maltratara os familiares, e, para ver cara nova (segundo textual expressãosua),convidouparaumapartidadedamasooficialdeserviço,coincidindoqueeraMena.Deresto,ojogonãooentretevepormuitotempo:repelindootabuleiro,pousouascostasnoleito.

—Nãoquerojogarmais;vai,Mena,edizequemeenviemosobjetosquecompreiontemnomercadorestrangeiro;depois,conta-meumahistóriabempicante,dasmuitasquedevessaber,pois,aoquesedizdeti,ésassíduoondeflorescemasmaisescandalosasaventuras.

— Procurarei contentar-te, príncipe. É certo que sei muitas coisas, digo-o sem me gabar,porque são as aventuras que corremparamim— respondeuMena, com fatuidade, inclinando-seprofundamente.

Em seguida, ordenou a vinda dos objetos reclamados, e, enquanto Tutmés se distraía emexaminar os ricos tecidos estrangeiros, jóias e armas trazidas do país de Kewa (Fenícia), Menadesfiou uma série de anedotas, algumas menos e outras mais arriscadas, o que restituiu o bomhumoraopríncipe,poisriuperdidamente.Comoqueemretribuição,presenteouMenacomsoberbopunhal,decabocinzelado,escolhidodeentreosobjetosaliesparsos.Subitamente,recordouque,emumadasrecentesvisitas,Ísismostraradesejodepossuirumajóiafenícia,dogênerodaqueviraemNefert,afilhadeTuaá,eresolveuenviá-la,paraoqueescolheuumcolareumprendedorquelhepareceramadaptar-seàdescriçãoqueouvira,ajuntandomaisumlençobordadoefranjadodeouro,objetosqueencerrouemelegantecofrezinhodemarfim.Mas,paranãodescontentarNeftis,preparouparaestaumsegundocofrezinhodepresentes,edisse,fechando-o:

—Pronto!Amanhã,enviá-los-ei,ecreioqueÍsiseNeftisficarãosatisfeitas.

Mena, que ajudara Tutmés, alcançando-lhe os objetos que iam sendo escolhidos, prestouatençãoaestesegundonome.

—Nãopoderiaeuseroteumensageiro,príncipe?Seriaprazerparamim—disse,obsequioso.

—Tufarejasasmulheresbelas, talqualocãoumbomossomas,pararecompensarastuasboashistórias, acedoà solicitação: levaas caixinhas, eamanhãcedovai ao subúrbiodeTebas (eindicouo local)ondeestáamoradiadeNeftis; saúda-aemmeunome,ebemassimsuaamiga,aformosa Ísis, e entrega-lhes os presentes, dizendo-lhes, outrossim, que irei vê-las, tão logo possasair.

ParacompreenderointeressequeonomedeNeftisdespertaranooficial,émisterretrocedera sete meses antes, à época da estada de Horemseb em Tebas. Mena, cujo natural, baixo einteresseiro,o levavaarastejaranteosricosealtamentecolocados,fizeraenormesesforçosparaimiscuir-sena intimidadedofascinador,conseguindo-o,emparte.Opríncipecompreenderaqueoservilpersonagempoderiaser-lheútil,emváriossentidos,eque,nãoestandooshábitosegostosdeMena no nível dos recursos pecuniários, seria fácil, por dinheiro, fazê-lo instrumento do queconviesse.Paracomprovarsepoderiausá-lonofimaquesepropunha,opríncipeempregouMenaprimeiramenteempequenosserviços,nãooficiais,quesaldouprodigamente,e,convencidodequenenhumescrúpuloconstrangiaaconsciênciadooficial,convidou-oparasolitáriopasseio,diasantes

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do regresso aMênfis. E, quando se distanciarampara sítios sem ouvidos indiscretos, o príncipe,abaixandoavoz,disse,sempreâmbulos:

—Noteiquegostasdemulheresedejogo,belascoisas,porémcaras,maiscarasdoquepodespagar.Queresganhar,cadalua,umaredondasoma,emretribuiçãodeserviçoquemeprestarás?

UmclarãodecúpidaavideziluminouosfulvosolhosdeMena.

—Quepossofazerparateservir,Horemseb?Nãoduvidesdaminhaboa-vontade.

—Desejo algo fácil de ti—disse lentamente o príncipe. Informar-me-ás de tudo quanto deinteressanteocorrernaCortedeTebasedoquesedigademim;mas,principalmente,tratarásdesaberseapareceemTebascertamulherchamadaNeftis,bela,ruiva,pelealva,olhosesverdeados.Seadescobres,avisar-me-ás, edar-te-ei recompensaespecialpor isso.Acada lua,umhomem,ameu serviço, virá buscar um relatório teu, entregando-te, ao mesmo tempo, a soma quecombinaremos.

Oacordoestavaconcluído,eMena,quenãoencontravanadadehumilhantenoseupapeldeespião, de vez que isso lhe rendia dinheiro, havia mantido Horemseb fielmente informado dasnovidadesdaCorteedacidade,faltandoapenasdescobrirNeftis.OuvindoTutméspronunciaressenome, tratou logo de obter meios de ver a mulher em questão, pois, se acaso fosse a que tãoencarniçadamenteopríncipebuscava,poderiareclamaraprometidasomaextra,daqualestavaemgrandecarência,porissoqueafaltadedinheiroemMenaeraummalcrônico.

Nodiaimediato,rumouparaadesignadahabitação.Deinício,oescravoguarda-portanãolhequisdarentrada,alegandoqueasenhora,indisposta,nãorecebianinguém;mas,Menadeclinouaqualidadedeenviadodoherdeirodotrono,einsistiuemseradmitido.OnomedeTutmésproduziuefeito, e a porta abriu amplamente para o carro do visitante. Quinzeminutos depois, estava empresença da dona da casa e de sua amiga. Desculpou-se, em escolhidas frases, da insistência,transmitiuasmensagenseasdádivasprincipescas,e,apóspequenarefeiçãoquelhefoioferecida,retirou-seradioso,nãoduvidandodequefavorávelacasoconduzira-odiretoaofim:abelamulherdetezpálida,cabeleiradourada,deviaseraqueHoremsebbuscava.Mas,queligaçãoexistiriaentreeles?TeriaelapreferidoTutmés,entrandoemjogoociúme?

Devendo o enviado do príncipe tardar oito dias ainda, Mena tomou outras informações eredigiu seu relatório, farto em citações dos custosos e árduos esforços que lhe acarretara adescoberta deNeftis. A seguir, relatou ser a jovemmulher amante de Tutmés, o qual, depois dareconciliação com Hatasu, a beneficiara ricamente. Por fim, pedia instruções ulteriores sobre oassunto.

Menajamaispoderiasuspeitarque,precisamentenanoitedadatadasuavisita,aresidênciaficariadesabitada,sobaguardadealgunsescravoszeladores,transferidostodososoutrosservosadistantepropriedade,paraoutrosafazeres.Aoanoitecer,Neftise Ísis,cuidadosamenteprotegidasporespessosvéus,saíram,pelojardim,alcançaram,apé,oNilo,esubiramparaumaembarcaçãodeaparênciacomum.Doishomens,vestidosdemodestosburgueses,aliasaguardavam:SargoneKeniamun.Esteúltimo,tendoditoaChnumhotepnecessitaratenderaumvelhoparentedequeeraherdeiro,obtevelicençadealgunsmeses.

AtingiramMênfis,semembaraços,einstalaram-senapequenacasadeNeftis.Estacomunicouimediatamenteaoescravoguardiãoonecessário,ebemassimopapelquelheestavadestinado,navenda de Sargon. O velho Cheops era um desses servos que obedecem cegamente, sem nuncadiscutirouexaminarasordensdossenhores;porisso,apenaspensouembemexecutaroquedeleseesperava.Alémde tudo, ignoravaaqualidadedosdoishomens,queconservavamasvestesdopovoeguardavamnasconversaçõesamaiordiscrição.

O príncipe e o oficial trataram, no primeiro tempo da sua estada, de uma indispensávelpreparação: cada noite, encaminhavam-se às proximidades damoradia de Horemseb, e cavavamdois orifícios nomuro que a rodeava, aberturas que deveriam servir para a correspondência deligação entre Sargon e seus aliados. Lá depositariam as folhas de papiros, dando notícia do quefosse descoberto, e seriam recebidas as respostas e novas doexterior. A fim de orientar-semaisfacilmente,oassíriotranspôsomuro,comauxíliodeescadas,aproveitando-sedapropíciaescuridãode uma noite, preparou alguns sinais que lhe facilitariam reconhecer o local, e escondeu, naespessuradeumbosque,sobmontedefolhas,umpunhal,ummachadodecabocurtoeumalongacorda com anel corrediço. Terminados tais preparativos, restava aguardar que o intendente dopríncipeviesseaomercadodosescravos,oqueerafácildesaber,dadaaproximidadedacasa.

Todavia, muitas semanas se escoaram sem que se apresentasse a almejada oportunidade.Desesperadoeimpaciente,Sargoncomeçavaaperderânimo,quando,afinal,certamanhãovelho

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Cheops acorreu esbaforido, anunciando que Hapzefaá aparecera, e estava fazendo grandescompras. Sombrio e resoluto, Sargon preparou-se para partir. Por última vez apertou as mãosamigasdosqueorodeavam,emocionados,obrigando-osajurarprudênciaeimediatasnotíciassuas.Depois,seguiuCheops.Natardedessemesmodia,ÍsisrealizariasuaprimeiraexcursãoaoNilo,nointuitodeencontrarobruxo.

Cheops, completamente senhor do papel a representar, levava após si o falso escravo,oferecendo-o a quantos encontrava, e aproximando-se, sem ostentação, do ponto onde Hapzefaáadquiriaalgumasraparigas.Muitoscompradoresdetiveram-seaexaminarSargon,mas,informadosde que era surdo-mudo, recusaram-no ou ofereceram preço ínfimo, dando lugar a que Cheopsvoltassecostas,cuspindo,colérico:

—Quevamosfazerdesteanimalestúpidoeinútil?

Depois,esticando-se,berrou,atodaforçadospulmões:

—Quemprecisademuitohábilservo,entendidoemtodosostrabalhoscaseiros,ecujodefeitoúnicoésersurdo-mudo?

A voz aguda e ganida chegou ao ouvido de Hapzefaá, que, concluídas suas compras eaproximando-sedosdoishomens,encarouSargon,comescrutadorolhar.

—Éummudoqueestásvendendo,velho?Quê!Ésurdotambém?Triplotrabalho,então,paralheexplicaroquetenhaafazer—engrolouointendente,sacudindoosombros.

—Oh!Umsimplesacenobastaparaqueentenda:Karapusaéhábilediligenteservo.Nãotemrival para entrançar guirlandas, ajeitar flores em jarras e corbelhas, alimentar os tripés deperfumes,limpareteremordemosapartamentos,servirealumiaroshóspedes,carregarfardoseabanarcontraasmoscas.Poroutromérito,temodenãoescutaràsportaseabusardalínguaparacaluniarossenhores—clamouCheopscomespantosavolubilidade,agitandoosbraços.

—Calma!Crêstu,velhoimbecil,seroprimeiroescravoquecompronaminhavida,parameaturdiresassim?Écertoqueogalhardoparecerobusto,eeuocomprarei,setutecontentascomumpreçorazoável,esemeconvenceresdequesuainteligêncianãoémuitoobtusa.

Para atrair a atenção de Sargon, que parecia mergulhado na indiferença mais estúpida,Hapzefaálheaplicouumpontapé,e,gesticulandocomosbraçosaoar,simulouosmovimentosdequem colhe flores e as ajeita para uma corbelha. O falso Karapusa demonstrou animar-sealegremente,mostrandoosbrancosdentesemovendoacabeçaemsinaldehavercompreendido.Pegandoumacorbelhaeumfeixedeflorescomeçouaconfeccioná-la,apesardosgritoseprotestosda dona vendedora. Sem poder represar o riso, Hapzefaá gesticulou para que cessasse a tarefa,pagou a soma pedida por Cheops, e acenou a Sargon para que se reunisse ao grupo de algunshomensigualmentecomprados.

Meiahoradepois,Sargon,coraçãoagitado,carregandopesadaânfora,eseuscompanheiros,tãosilenciososquantoele,entravamnovastodomíniodeHoremseb,cujamaciçaportase fechouapós.Hapzefaáentregouosnovosescravosao subintendente, retendoapenasSargon,queguiou,através de longos corredores, até uma outra ala do palácio, introduzindo-o numa câmara ondealentadohomem,deflácidasbochechas,escrevia.

—Chamus,trago-teohomemquemeencomendasteparasubstituirChnum—disseHapzefaá.Olha!Creio ter feitoboacompraparao serviço íntimodoamo:este rapaz sechamaKarapusa,ésurdo-mudoemepareceexpeditoecuidadoso.

O chefe dos eunucos, erguendo-se, examinou atentamente Sargon, que simulava amaior eperfeitaindiferença.

—Podia sermaismoço, porém não importa! É suficientemente delgado e bem parecido—comentouChamus.Vouacomodá-lo,ecomeçaráseuserviçohoje,narefeiçãodanoite.

Depoisdepermutaremacertossobreastarefasdomésticas,separaram-seosdoishomens,eChamusconduziuonovoservoaamplasalaondehavia,aocentro,grandetanquecheiodeágua,eoconfiou a outro eunuco. Este fê-lo entrar num pequeno aposento contíguo, pôs ã sua disposiçãosubstanciosorepasto,efechouaporta.Decorridasmuitashoras,escoadascombemcompreensívelagitaçãoparaopríncipe,aportafoireaberta,eoeunucooreconduziuàsaladotanque,acenando-lhe para despir-se e fazer um mergulho na água. Sargon obedeceu, sem hesitar, e, depois debanhado,doisescravosenxugaram-noesmeradamente,esfregando-ocomóleoaromático,epondo-lheumaventaldefinalãbordadoaouro,alémdeamplocolardeourivesariaaopescoçoe largas

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pulseirasnosbraçosetornozelos,terminandoporassentar-lheàcabeçaum“claft”listradodeazuleouro.

— É evidente que Horemseb deseja ver em seu redor riqueza e elegância; tudo que seaproximadessemonstrosanguináriodeverecrearseuembotadoolhareacariciaroolfato—pensouSargon,plenoderaivaeamargura.

Concluída a “toilette”, o eunuco levou-o à presença de Chamus, que o examinou, comsatisfaçãoeumbalanceardecabeçaaprobativo.

—Osoutrosestãoaprestados?

—Sim;esperamnagaleria.

Chamusescolheuumavestimentaleve,ornoudejóiasopescoçoeosbraços,esaiu,fazendoaceno a Sargon para que o seguisse. Anoitecera. Atravessaram muitas e silenciosas câmaras,iluminadasportochas,depoisumagaleriaondesetejovensescravos,comvestimentasidênticasàdeSargon,seincorporaram.Aolongodeextensocorredor,Chamussedeteve,puxouumreposteirode couro e abriu, com a chave que levava, alta grade dourada. Uma série de apartamentos,mobiliados com realengo luxo, fartamente iluminados, seguia-se ante ele; por todaparte, viam-semóveis preciosos, objetos de arte e custosos vasos atestados de flores raras. Moços, ricamentetrajados,transitavam,semruído,alimentandoostripéscomaromassuaves,massufocantes.

O coração de Sargon batia desordenadamente; parecia-lhe entrar em mundo encantado enovo;naquelacasadesuntuosidades,silenciosaqualumtemplo,vivia,pois,Horemsebe,juntodele,Neith, talvez amando e feliz nos braços do rival. A semelhante pensamento, cólera e ciúmeturbilhonavamnaalmadoassírio.Teriasidoparalibertarumaingrataqueeledesceraaoníveldeescravo,entregue,demãosepésligados,aessechacalparaquemavidahumanavaliamenosdoqueadoanimal?Não!Essehomem,frioecruel,nãodavaanenhumsernemamornemfelicidade;seNeithaliestava,deviasofrer,eavingançaaproximava-se.Opunhoselhecrispou;omomentoemqueHoremseb,presoacorrentesedegradado, fossederastospelas ruas,essemomentopagariatudoquantoele,Sargon,estavaarriscandoepadecendo.

Logoemseguida,Chamuseseuséquitopenetraramemgrandesala,que,porumadasfaces,abriaparaojardim;brandõeselâmpadasacesosiluminavamprofusamente;muitosdomésticos,sobadireçãodemordomo, terminavam, céleres, ospreparativosdeuma refeiçãoparaduaspessoas.Sobrelargodegraudourado,viam-semesaesoberbapoltrona;duasesfingesdemetalsustentavamesta,dealtoespaldar,forradodeestofopúrpuracomramagensdeouro;umtamboretedemarfim,fronteiro, destinava-se ao conviva do senhor. O eunuco indicou a Sargon o posto, por detrás dapoltrona,elhedeusoberbaânforacinzelada,explicando,porgestos,quedeveriaencherocopodoamo,todaavezqueestelhoestendesse.

A seguir, Chamus ergueu enorme e pesado pano suspenso a um lado da sala, e o hitenopercebeu,atravésdatapeçaria,douradogradilqueseparavaesterecintodeumaposentoougaleriaparcamenteiluminada,nasombradaqualseviammulheresvestidasdebrancoetrazendoharpas.Nessemomento,prolongadoevibrantesomfez-seouvir,vindodofundodopalácio.Chamusdeixoucairvivamenteoreposteiro,e,ajeitandoumafisionomiadeadoraçãoquaseestúpida,correuparajuntodamesa,emtomodaqualvierampostar-se,emsemicírculo,dezhomensmunidosdetochas,enquantoservos,trazendoospratos,escalonavamprestes,segundoasordensdomordomo.Houveum momento de silêncio solene; depois, ruído de passos, e, da sala contígua, saíram doisadolescentes,empunhandotochas,esedetiveramimóveiscomosefossemestátuas,e,sucedendo-os,caminhouHoremseb,acompanhadodeesbeltamulheremuitosescravos.Desdeoaparecimentodo amo, Chamus e o mordomo prosternaram-se e beijaram o chão; todos os demais servidoresajoelharam, e Sargon, fremindo de raiva, teve de imitá-los. Mas, quase instantaneamente, tudoesqueceu:namulher,que seavizinhavaeque se instalouafinalno tamborete, reconheceuNeith.Dominando,numquasesuper-humanoesforço,odesfalecimentoqueporuminstanteameaçouatirá-loaosolo,inteiriçou-senaposiçãodoseuposto,observandoavidamenteajovemmulher,aqual,eassimHoremseb,nãodirigiraolharaosescravosdeserviço.

Neith trajava uma veste de lã branca ricamente bordada a ouro; jóias de elevado preçocintilavamnopescoçoebraços,eumacoroadefloresornava-lheoslindosenegroscabelos;mas,seurostoencantadorestavapálidoeemagrecido;taciturnatristezavelava-lheosolhos,eaboca,emrecalcitrantemudez,denotavasofrimentoeexaustão.Comtantasurpresa,quantosatisfaçãoíntima,Sargonconstatouquenenhumapalavra,nenhumolhardeamorforampermutados:comexpressãofriaealtanada,opríncipeserviasuacompanheira,que,vezalguma,ergueuoolharparaele.

Coincidindo com o início do repasto, suave canto se elevou, por detrás do pano, melodiaestranha, algomonótona, parecendo embalar os convivas, provocando umdescanso voluptuoso e

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contemplativo. Neith de quase nada se serviu, e bem depressa se apoiou na mesa como queabsorvidapelamúsica,enquantoHoremsebcomiacomapetite,erguendomuitasvezesocopo,queSargonenchia,deplorandonoimodaalmanãoservenenoaquelelíquido.

Por momentos, louco desejo o invadiu: erguer a pesada ânfora e esmigalhar o crânio domiserávelsentadodiantedele,mas,acada impulso,oódioespelhava-lheanteoespíritovingançamais requintada. Oh! matar, apenas, era muito pouco! A humilhação de Horemseb, oencarceramento,atortura,mortehorríveledegradante,eisoquepoderiacontentarorancorferozde Sargon. Terminada a refeição,Horemseb também se apoiou àmesa, fixandoNeith com olharmetadecolérico,metadeapaixonado;mas,porqueosolhosdajovempermanecessemteimosamenteabaixados,profundarugaselheformounafronte.Levantando-se,curvou-sesobreela,enlaçou-lheacintura,forçando-aaerguer-se.

—Vejamos,bela rebelada, concede-meafinalumolhar,umsorriso—dissemeioa rir,meioagastado.

Neithnãoofereceuresistência,masosolhoscontinuaramabaixados,mesmoquandoele lhebeijouoslábiosfechados.Felizmenteparaofalsoescravo,Chamus,atarefadocomoamo,nãoviuoclarãoodiento,feroemortal,querelampejounosolhosdeKarapusa.

NanoitedessemesmodiaemqueSargonentraraparaoserviçodeHoremseb,nodisfarcedeescravosurdo-mudo,Neftis,comasmãostrêmulas,enfeitavaaamigaparaopasseiopeloNilo,queredundariaemcair,elatambém,nasmãosdofeiticeiro.Adespeitodaresolução,Ísis,igualmente,estavaagitada:esperavareconquistaraliberdade,mas,nãoalimentavailusõesquantoaoperigoaqueiaexpor-se.AcompanhadadeKeniamun,vestidocomaventaldegrosseiropanoecomo“claft”riscadodosescravos,amoçaentrounopequenobarco,queooficialdirigiu,apressadamente,rumoaopaláciodeHoremseb.Parandoemfacedasescadarias,nãoesperarammuitotempo,poisviram,embreve, o fascinador entrar namaravilhosabarca, e, dentro empouco, as duas passaramumajuntodaoutra.Avistadaformosajovem,daqualoluariluminavaabrancatez,oslouroscaracóisdoscabelos,ecujoolharpareciavoltadoparaele,Horemsebergueuobusto,e, sorriso,mistodeescarninhoedepaixão,que lheerahabitual,olharcintilante, tirouumarosadocintoe fê-lacairdiretanoregaçodeÍsis.Distanciadasqueforamasembarcações,amoçaatirou,comaversão,aflorparaumcestoadrede,postoaseuspésparatalfim,nointuitodeconservarasrosasparaprovadequeHoremsebasdistribuía.

—Qualseriaaindignaçãodobruxo,sevisseoteudescasopelasuapreciosadádiva!comentouKeniamun,motejando.

—Grande,semdúvida,emaiorainda,sepudesseavaliaroascoquemeinspira.TãobonitoericamentedotadopelosImortais,duplamenteculpadosetornaemassenhorear-sedoscorações,porsortilégios,edestruirdepoistodosqueoamam.

Duranteostrêsdiasqueseseguiram,Ísis fezvãsexcursões,poisnãoencontrouopríncipe,que,evidentemente,desejavafazê-lalanguir;mas,quando,enfim,suasbarcassecruzaramdenovo,outra rosa foi-lhe atirada, acompanhando-a com olhar de não disfarçada paixão. Ao terceiroencontro,queocorreualgunsdiasmaistarde,arosatraziapresoàhastepequenorolodepapiro,queKeniamundecifrou,noregressoacasa.Diziaassim:

“Beladesconhecida,se teucoraçãoconfirmaoque teusolhosexprimem;seécom intençãoque cruzas meu caminho, sejamos felizes, ambos, porque também te amo. Se, pois, te inspiroconfiançaparaquecreiasemmeuafeto,vem,amanhã,àprimeirahoradanoite,àmargemdoNilo(estava indicadooponto), ondeencontrarásumabarca, tripuladapordoishomens,umdosquaisexibiráumarosanoboné.Tulhesmostrarásaqueoratedou,eserásconduzidaaosmeusbraços,seguraediscretamente.”

Pálidaetrêmula,Ísisescutaraaleituradamensagem:chegaraomomentodecisivo.

—Recuas?—perguntouNeftis,pegando-lheamão.

Repelindoomomentâneodesfalecimento,amoçaretesouocorpo:

—Não—replicouenergicamente—,nãorecuo,eamanhãestareinolocalindicado.Fartosdetantos crimes, os deuses protegem os nossos empreendimentos; eles me inspirarão para que eupossaauxiliarSargonevingartodososinocentesdestruídospelobruxo.

Nessanoite,ambasnãodormiram.Achegadasnumbancodojardim,trataramprimeiramentedamensagemtrazidadafendamural,porKeniamun,diasantes,enaqualSargon lhes informavaestar Neith realmente no palácio, e que ele fora posto no serviço íntimo de Horemseb. Depois,

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Neftis indicou à amiga a maneira, a seu ver, mais fácil de subtrair-se à influência do aromaenfeitiçante e evitar beber, sem despertar atenção, o licor venéfico. Falaram também daparticipaçãodeTutmésnousodoenfeitiçamento,poisNeftisconfiaraessesegredoaosseusaliados,paraqueestespudessem,emcasodemortedesta,exercerpressãosobreopríncipeeestesobrearainha, na hipótese de querer a orgulhosa soberana subtrair à justiça o seu criminoso parente.Poucoapouco,aconversaçãoesmoreceuecessoutotalmente.Pesadosetumultuosospensamentosperturbaram o coração das duasmulheres; um pressentimento, que em vão tentavam combater,segredava-lhessermaisrazoáveldesistirdadesiguallutadofracocontraoforte;queaquelanoitetalvez fosse a derradeira de suas jovens existências, em que, livres, não sujeitas a vergonhosasubjugação, contemplavam o céu estrelado sobre suas frontes. A idéia de que no dia seguinte,àquelahora,estariaempoderdodesalmadonigromante,sóeseparadadomundo,umgélidotremorpercorreuocorpode Ísis;mas, a resoluçãonão fraqueou;umamorbemmaisprofundo,quenãoconfessaria, ligava-aaSargon, edispostaestavaa tudo sofrerpara revê-loeestar juntodele,nomomentodoperigo.

O dia transcorreu pesarosamente. Até sobre o alegre Keniamun parecia haver tombadoplúmbea nuvem, e seu olhar se obscurecia, ao contemplar a denodada moça que,destemerosamente,seexpunhaaumfimtalvezmedonho.Chegadaanoite,Neftis,sombriaemuda,adornouaamiga,pôs-lheaopescoçoumbentoamuleto,e,apósderradeiroósculo,envolveu-anummanto. Tendo-se igualmente despedido de Keniamun, que quis acompanhá-la até certa altura docaminho,ÍsissaiueandourápidaemdireçãoaoNilo.Avistadorio,apertoumaisumavezamãodooficial,ecorreuparaumapequenabarca,providadedoishomens,atracadanopontoindicado.

Quandoseaproximoubastante,umdosremadoreslevantou-se,e,vendoarosanamãodeÍsis,lhe indicou, com o gesto, a que trazia presa ao boné. Depois, ajudou-a a embarcar. Como quealquebrada,deixou-secairnobancodobarco.Findaratudo.Impossívelaretirada,porinstantesacoragemabandonou-a;mas,mulhercorajosaeenérgica,aprostraçãofoifugaz;opróprioinstintodeconservaçãoinspirou-lheanecessidadede,maisdoquenunca,sangue-frio,lucidezdeespírito,paratudo ver e enfrentar, a tempo, qualquer eventualidade.O trajeto foi feito celeremente e nomaiscompletomutismo,parecendoqueosremadoreseramsurdos-mudos,por issoquepalavraalgumalhessaiudaboca.

Em breve, apareceu a muralha imensa que cinturava os domínios de Horemseb, e aembarcação,semsedeter,contornouaescadaesumiunoancoradouro,cujaporta,silenciosamenteaberta, com a aproximação, silenciosamente também fechou, após o ingresso. Ísis olhou,escrutadora.Aofundodohangar, iluminadoporarchotepresoaomuro,via-se,amarrada,abarcamaravilhosa,esobreosdegrausdaescadadepedra,subindoparaotalude,estavamdoisescravos,muitomoços,ricamentevestidos,empunhandotochas.UmdosremeirosergueuÍsiseadeixounoprimeirodegrau,indicando-lhe,poraceno,osdoisadolescentes,osquais,porsuavez,convidaram-na,porgestos,asegui-los.

Emboracomocoraçãolatejandodescompassada-mente,anovahóspedeacompanhoudócilosdois guias, que a precediam, iluminando o caminho. Atravessaram aléias arborizadas, que lhepareceramsemfim,tudodeserto,eondeapenasorumordospassosperturbavaosilêncio,profundoesolene,daquelaverdesolidão.Inopinadamente,àcurvadeescuraaléia,desembocaramemvastaesplanada,aotérminodaqualseerguiaopalácio.Comoquedeslumbrada, Ísisparou, incapazdedesviarosolhosdaquelavisãomágica.Àesquerdadocaminhoqueiaseguir,dominavaumimensolago, cujas polidas águas refletiam labaredas acesas em altos tripés de bronze, colocados,equidistantes, em torno das bordas. A fachada monumental do palácio mostrava uma série decolunas maciças, pintadas de cores vivíssimas, iluminadas por infinidade de vasos e tripés,queimando alcatrão. Tal claridade, rival de um avermelhado luar de incêndio, promiscuía-sefantasticamente sobreasesculturaseornamentosmulticolores, osbosquetesde flores raraseosdegraus de granito que conduziam ao jardim; na bruma avermelhada, via-se distintamentemoverem-sesilhuetashumanas,atarefadasemmanterosfogaréus.Recobrando-se,aogrunhidodeumdosguias, Ísis recomeçouaandar, esperandoencontrarHoremseba cada instante;mas, estenão apareceu, e foi Chamus que a recepcionou, conduzindo-a a elegante e pequeno aposento,semelhanteaoqueforaocupadoporNeftis,diferindoapenasemqueabriaparaograndejardim.

—Oamo te saúda—disseo eunuco.Ele escolheupara tuamoradaesteaposento,noqualacharás tudo que necessites, em vestidos e enfeites. Lá, sobre amesa, fiz colocar refrigerantes:come e bebe, se te apetece, e depois descansa. As determinações ulteriores tu as receberásdiretamentedele.

E, saudando-a ligeiramente, retirou-se. Ficando a sós, Ísis acocorou-se sobre um leito derepouso,e,enlaçandoosjoelhoscomasmãosunidas,meditouafundo:

—Que lhe trariamaspróximashoras?Osenhordacasaviriaaindahojedarordensànova

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escrava?Infame,quedeixavacairamáscara,tãologoavítimatranspunhaolimiardasuamorada!Oh!quandosoariaahoradasrepresálias,emqueHoremseb,maisdegradadodoqueumescravo,aguardariaasordensdosjuizes?...

Deixando-sedeslizardejoelhos,amoçaergueuasmãos,emuda,masardentepreceelevou-sedesuaalmaparaosImortais,implorandoaabreviaçãododiadavingança.

Nessamesmanoite,algumashorasmaistarde,Tadar,ovelhosábio,encontrava-sesozinhonasaladopavilhãoquelheserviaparaestudoetrabalho.Desceradoobservatório,instaladoacimadoteto, onde observara os astros, tentando neles ler o futuro; mas, era evidente não lhe ter sidorevelado bom augúrio, porque profunda ruga lhe vincava a testa, e seu rosto, encarquilhado eanguloso,espelhavasombriaansiedade.Cabeçaapoiadanasmãos, fixavaumafolhadepapiro,naqualestavamtraçadosalgunscálculosastronômicos,eseachavaprofundamenteabsorto,apontode não se aperceber da chegada de Horemseb. Somente quando este lhe tocou ligeiramente naespádua,entesou-se,emsobressalto.

— São, suponho, pensamentos desassossegados os que ouso perturbar, mestre — disse orecém-vindo,sentando-se.Haverá novos obstáculos à grandemostra prometida porMoloc, e quenosdesvendaráoporvir?Lestenosastrosalgumsinaldesfavorável?

—Essaexperiênciaaqueaspirastãoardentemente,meufilho,verificar-se-ámaisdepressadoqueesperas;mas,oqueporduasvezesli,nocéu,enche-medeapreensõesocoração.Claramente,asestrelasanunciamquemortalperigopairasobrenossoteto;tu,principalmente,ésameaçadoporumhomem,etambémpormulher,quealmejamdestruir-te,porém,nãopudeverdetalhes,porquesempresombrasnegrasseinterpõemeimpedemdistinguirnitidamenteoqueseprepara.

Horemseb estremeceu, e seu semblante, pálido e preocupado, desde a chegada, mais sesombreou.

— Esta noite trouxeram uma jovem destinada a Moloc — disse — e não sairá viva daqui;dentrodemesesperecerátalqualasoutras.Nãocreiosejaelaadesignadaperigosapelosastros.NãoserádeNeithquepossaviroperigo?Essatenazeorgulhosacriaturatemtransformaçõestãoestranhaseinesperadas!

—Não;játedissequeNeithnãotetrairá,ehojeacrescentarei:éaúnicaqueteficaráfieledevotada. É de outra e de um homem, cheio de ódio, que provirá o mortal perigo que pareceameaçar-tededestruição.Temcuidado,Horemseb,sêprudente,maisdoquenunca.

Expressãoderaiva,mescladadeansiedade,desfigurouporinstantesobelorostodopríncipe,eseupunhosecrispou.

— Não posso duvidar, mestre, de que é Neftis o ser perigoso que ameaça minha vida; amiserávelconhecenossossegredos,furtouabebidaencantada,daqual,desconfio,jáabusa.Porela,tudoserádesvendado,seeunãoconseguirdeitar-lheamão,emtempo,eparafalarnelaéquevimaqui. Já te fiz ciente do relatório de Mena, anunciando tê-la descoberto, e que é a amante deTutmés. Imediatamente suspeitei que tal ligação, que lhe proporcionou a riqueza, e amiraculosareconciliaçãodarainhacomoirmãosãoefeitosdoaromasagrado.EscreviimediatamenteaMena,recomendandovigiá-ladepertoe indicaramoradiadelaaomeuenviado,homemdeconfiança,oqual devia raptá-la ou, se isso impossível, dar-lhe uma punhalada; mas, incontestavelmente, osespíritos impuros protegem-na, e advertiram-na, pois, esta noite, meu mensageiro regressou, eMenacomunicaqueNeftisdesapareceu,equesuacasaestávaziaefechada,Kendoqueoguardiãoignora o rumoque a ama seguiu. Saiu deTebas?Esconde-se apenas?Quemo sabe?Mas, infelizdela,seoacasoacolocaremminhasmãos!

—Bempodesterrazão,meufilho,suspeitandodessaNeftis,eseelaaçularTutméscontrati,poderásereleoterrívelinimigoassinaladopelasestrelas.

Horemsebacenoucomacabeça.

—Estaúltimahipóteseparece-meimprovável:oprínciperealnãoseimiscuirianumaintrigadirigida contra um membro da sua casa; mas, entre os padres, possuo irredutíveis adversários.Acalmei um pouco os deMênfis, mediante sacrifícios, oferecidos antes daminha viagem, e pelaminhaparticipaçãonafestadeÁpis;mas,emTebas,apadralhadamanteve-seemreserva,mostrou-me a sua desconfiança, e um profeta do templo de Amon, de nome Ranseneb, homem duro efanático,disse-mecertodia,semconstrangimento:

—“Pretende-se,príncipe,quetuafetasmaisdoquenegligenciaspelareligiãoecultodosteusavós.Deixa-medizer-tequenemahierarquia,nemonascimentodispensamdadeferênciadevida

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aosdeuseseaosseusservidores.TomacuidadoparaqueRanãogolpeietuaorgulhosacabeçaenãoilumine com desfavorável luz a sombra que envolve tua existência e teu misterioso palácio.”Indubitavelmente ninguém pode proibir-me viver conforme quero, em minha casa; essa casta,porém,ávida,éinsaciáveldedonativos,eRansenebbempodeseroinimigoquetemes.

—Sacrifica,então,eaplacaospadrescomofertasvaliosas.

Horemsebsuspirou.

—Acoisameéincômoda,enãoposso,nomomento,sacrificaroquantoserianecessárioparalhes tapar a boca. Devo confessar-te, mestre: a vida que levo esgota aminha fortuna. Sou rico,ainda,semdúvida,porémjátiveembaraços,eprevejoodiaemqueHapzefaávenhadizer-mequeestou arruinado. Devo, pois, inventar um meio de reparar meus haveres, de vez que não possomudardecostumes;estouhabituadoaviverdamaneiraquevivo,pordetrásdestesmuros,eaissonãorenunciarei.Eisoquepretendofazer,casodêsatuaaprovação:dentrodetrêssemanas,apósosgrandessacrifícios,tereialgunsmesesdeócio,eaproveitareioensejoparadesposarNeith.Ama-meepossuigrandescabedais,queHatasunãodeixarádeacrescer.AprópriaNeithobteráoperdãodo rapto e, confessandoque, por amor,me seguiu voluntariamente, a rainhanão poderá desejar,mesmoparaafilhadeNaromath,partidomelhordoqueumpríncipedacasareal.

— Teu plano é bom e prudente, meu filho, mas, esqueces que Neith é casada, e que seuesposo, indultado segundomedisseste, regressouaTebas?Eleamaaesposa, conformedizem,enãotecederáseusdireitosdemarido.

—Voluntariamente,não,semdúvida—obtemperouHoremseb,comcínicosorriso—mas,umtãomesquinhoobstáculonãomedeterá:Sargonmorrerá,umavezquemeatrapalha,eseráMenaquemmedesembaraçarádoempecilho,pois,pordinheiro,assassinariaopai!Amanhãmesmo,dar-lhe-ei ordempara agir. Isto, porém, é detalhe secundário.Dize-me antes, Tadar, quando tentarasafinalaexperiênciaautorizadaporMoloc?

—Depoisdeamanhã,ànoite,meufilho.Purifica-te,pois,porumseverojejum,tomaumbanhoebebeaessênciaquedilataossentidos;transportarásNeithaqui,paraqueeuaadormeça:Molocexige sua presença. Providencia para que todos os serviçais sejam afastados nessa noite, e queninguémperturbenossosolenesilêncio.

—Evereioquefaremosnosséculosfuturos,quandoapenasnóssobre-existirmosàsgeraçõesdescidasaotúmulo?—interrogouHoremseb,comávidacuriosidade.

—Odeusmeprometeu.Elepesaráosaromasqueenchemnossasalmas,e,feitoisso,veráadireçãodosnossosinstintoseoambienteondeprojetaremosnossosatos;porqueéoexcessodeumououtroquefazbalancearnossasaçõesedecidedasprovasqueteremosdesuportar.Osdemaishomens morrem e regressam, em novo corpo, para lutar contra os aromas instintivos; nós, queviveremossemmudardeenvelope,nósnostransformaremosmaislentamenteainda,e,pormuitosmilharesdeciclosanuais,Molocpoderáfixarenosmostraroquenosaguarda.

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IV

NEITHEHOREMSEBRetrocedamosagora,pararetomaranarrativanomomentoemqueNeith,estendidasobreas

almofadas da cabina, adormecera na barca de Horemseb, para despertar no palácio. Após havertransportadoajovemparaoapartamentoquelhehaviaescolhido,edeterminadoaChamusqueelee os servosda recém-vinda lhe viessem testemunhar omais profundo respeito, o príncipe rumouparaopavilhãodosábioelhedissedabelaeilustrepresaqueacabavadeconsumar.Tadarmeneouacabeça,preocupadoedescontente.

—Teriasprocedidomelhorpedindo-meconselho,antesde trazeressamoçaparaaqui.Umavezofatoconsumado,peço-tequecuidesdasuasaúdeedeatormentá-laomenospossível.

—Porquetantasrecomendações?—inquiriuHoremseb,surpresoedesconfiado.

—PorqueafilhadeMenanãodevesersacrificadaaMoloc.Li,estanoite,nosastros,queamulherquetranspusesse,hoje,teulimiartornar-se-iaanossasalvaçãoesalvaguarda,nomomentodeperigomortal.É,pois,emteuprópriointeressequezelaráspelasuavida.Expliquei-meclaraeconvincentementeparadissipardúvidas?Confessoqueesperavamaiorconfiançadatuaparte.

—Perdoa-me,mestre;serásobedecido,eNeithaspiraráapenasaporçãodearomanecessárioamanteroamorpormim.

Satisfeitíssimo, o fascinador regressou ao palácio. O conselho do sábio coincidia com o seupróprio intuito:odeconservaravidadeNeith;aarroganteeespiritualmulheragradava-lhe,eafatuidadeestavacontentadacomhaver,afinal,seapoderadodaquelajovemdealtonascimento,emvezdeescravasepobres filhasdeburgueses,dasquais fazia jogueteeo tratavampor senhor.Afilha de Mena, pela origem e caráter, era de outra têmpera: amada, mimada, adulada por todos,havia fruído a posição honrosa e privilegiada que os costumes egípcios concedem às mulheres.Levar à compunção essa bela caprichosa, humilhar seu orgulho, fazendo dela dócil e humildebrinquedo, devia constituir um divertimento tão novo quanto interessante, do qual Horemseb seprometiausarabel-prazer.

Tornando a si, Neith encontrou-se num delicioso pequeno apartamento, decorado com luxoreal.Asparedesdosalãotinhamincrustaçõesdelápis-lazúlisobrefundodeouro;todososmóveis,de madeiras preciosas, marchetados de marfim e pedrarias, possuíam acolchoados de púrpura.Servos, mudos porém hábeis, serviam-na com respeito, e as vestimentas postas à sua disposiçãoagradaramaoseuapuradobomgosto.Mas,estaprimeiraimpressão,todafavorávelànovamorada,nãofoiduradoura:acativajovemcompreendeubemdepressaqueaquelaáureagaiolaeracárcere;nãomaispoderiatercontactocomRoma,que,ternoeamoroso,delicadoebenévolo,cederasempreaosseuscaprichos,olhandooseuamorcomosendoodommaisprecioso,eque,anteassuasmaisdesarrazoadas fantasias, as acolhera em silêncio. Mesmo Hartatef e Sargon, em obediência asincera paixão, tomaram-se seus escravos; mas, o homem a quem imprudentemente seguirademonstrara-lhe,semdelonga,nãoestardispostoadiverti-lacomamor,apassarosdiasaadmirá-la,adistraí-la,esimqueelasederaaumsenhorbrutaleinsolente,enãodeviateroutravontadealémdadele.

Amanheceuodiaseguinte,eNeith,depoisdarefeição,manifestoudesejodefazerumpasseionoNilo.

—Éimpossível—respondeutranquilamenteopríncipe.

— Por quê? Teu palácio está na margem do rio, e eu quero sair! — disse, surpresa econtrariada.

—Lamento;mas,umavezentrandoaqui,nãosesalmais.Assim,nãofarásteupasseionoNilo.

Neithergueu-se,deolhoschamejantes.Équenão tendoabsorvidonovadosedoveneníferofeitiço,estavanaplenitudedoseunatural,etambémnaforçaviolentadoseucaráter.AmavaaindaHoremseb,écerto,masacreditava-secorrespondida,econheciaopoderqueelaexerciasobreoshomens.Alémdisso,habituadaaque sedobrassemà sua vontade, a recusa, a coisa tão simples,ofendeu-aduplamente.

—Quesignificaisto?Querosairesairei!—quasegritou,impetuosamente.Ordenoque,agora

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mesmo,meaprestemumabarca;nãovimaquiparaserprisioneira.

Horemsebvoltou-senacadeira,efixou-a,comostensivaironia.

—Játedissequenãosesaidomeupalácio.Tumeseguistelivremente;habitua-teaobedecer-meeterporvontadeavontadedoteusenhor.

Frementedepasmoedeorgulho,mediu-o,comolhardedesprezo:

—Tudisseste“senhor”,creio,maserrasteapalavra,decerto.Casocontrário, ficasabendo,Horemseb: a filha de Mena nunca teve senhor; a própria Hatasu diz-se minha protetora; Tutméstrata-medeigualparaigual;oshomens,quetenhohonradocomomeuamor,consideravam-semeusescravos.Seagora,como jamaiso fizeste,ousarestratar-metão insolentemente,eutedetestarei,emvezdeteamar.

Opríncipeergueu-se,eoolharsefixou,comglacialdureza,sobreasuavítima,dobradamenteformosanapassionalrevolta.

—Experimentadetestar-me—disse em tomvibrante—,mas fica sabendo tambémque, sepretendes conservar meu amor, jamais deves pronunciar palavras tão insensatas. Neste paláciotodosmesãosubmissos;eusouosenhordatuaalma,datuavida,doteucorpo.Compreendeistoeadaptaaistooteuprocedimento.Horemsebsótolerajuntodelemulhereshumildes,quesuspiramaseus pés e imploram o seu amor, e nunca uma rebelada. Se persistires na tua teimosia, eu tedistanciareidemim.

—Eudesejoregressar;nãoficareipertodeti—retrucou,trêmuladecólera.

Semhonrá-lacomumolharsequer,opríncipevoltou-se,edisse,comindiferença:

—Asolitudedarácuraàtuainsânia.Sómeverásnovamentequando,arrependida,humilde,imploraresperdão.Evoltando-separaChamus:Reconduzestamulheraoseuapartamento.

Muda, fulminada, Neith julgou enlouquecer. Sem enxergar, sem ouvir, maquinalmenteacompanhouChamus,queaaconselhou,respeitosamente,acalmar-seerepousar.

Ficando a sós, sua raiva e desespero se fundiram numa torrente de lágrimas, e a noiteavançara bastante quando adormeceu, exaurida. Durante três dias, Neith não saiu do aposento.Primeiramente, escutou, com ansiosa expectativa, o menor ruído nos corredores ou no terraçocontíguo, na esperança de ver surgir, a cada instante, Horemseb, que, arrependido e cheio deremorso,viesserogarpaz.Talesperançafoivã;elenãoveio,e,comintensoamargor,ajovemtevedereconhecerqueaquelehomemnãoaamava,conformeestavaelahabituadaaserquerida;que,duroe indiferente,aguardavaqueelasehumilhasseanteele.E,aestepensamento, tudoemsuaaltivaalmaserebelava:pedirperdãoaesseinsolente,culpadoúnico,nuncaI

SeNeithpudesseverairritaçãoeimpaciênciadopríncipe,ter-se-iaconsoladoenormemente;mas,apesardisso,elesemantevefirme,esónatardedoquartodiaremeteuumarosarubra,pormãodeumdosescravos.Recebendoadádivapérfida,Neithseagitoufortemente:eleenviavaumaflor,provadequecediaeentabulavaassimaspreliminaresdareconciliação.Recuperandoobomhumor,àesperadeHoremseb,sentou-seecheirouarosaenvenenada.Longotempodecorreu,semqueopríncipeaparecesse.

Assaltada por uma inquietude, uma angústia sem nome, a pobre enfeitiçada passeou peloaposento, e depois correu para o terraço; faltava-lhe o ar, dir-se-ia sufocada em um braseiro; aimagem do príncipe espelhava-se diante dos seus olhos; o desejo de revê-lo, a qualquer custo,invadiatodooseuser.Incapazdepermanecerquieta,embrenhou-se,errante,nojardim,devoradapor mortal sofrimento moral e físico, nas aléias desertas e silenciosas. Por fim, exausta ealquebrada, avistou um banco colocado à sombra de duas palmeiras, e, atirando-se ao chão,encostouatestaardentenapedrafria.Asensaçãodefrescuraúmidaaliviou-a,eamergulhounumaespéciedefatigadotorpor.Alua,queascendiaparaoseupercurso,iluminavadesuaveclaridadealuxuriantevegetaçãodapequenaclareiraeasalvasvestesdaprostradajovem.Nesseabatimento,Neithnãoouviuospassosligeirosqueseaproximavam,e,mesmoquandoHoremsebseinstalounobanco, ela não fez reparo em tal. O príncipe a seguira, a distância, desde quando ela entrara nojardim,e,poruminstante,contemplou,numduplosentimentodedespeitoeadmiração,adeliciosacriatura estendida, imobilizada a seus pés. Abaixando-se para ela, murmurou, com apaixonadotimbre:

—Neith!

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Ajovem,estremecendo,ergueuocorpo.

—Horemseb!

Todoumuniversodesofrimento,humildadeeamorvibravanaentonaçãodessaúnicapalavra,e brilhava nos seus olhos velados de lágrimas. Ancho de íntima satisfação, terminou de levantarNeitheasentounobancojuntodele.Arosahaviacumpridoasuamissão,eestilhaçadooorgulhodabelacaprichosa.

—Muitobem!Neith,meuamor,aindaqueresteroutravontade,alémdaminha?—perguntouele,emvozcariciosa,dandoumcálidobeijonoscarminadoslábiosdavítima.

— Não, se em troca me deres todo o teu coração — respondeu, tão baixo que as palavraschegaramqualsoproaoouvidodopríncipe.

As semanas que se seguiram decorreram pacíficas. Neith não recebeu mais rosas, porém aatmosferadetodaahabitaçãoestavasuficientementesaturadadeodoresdeletérios,paramanterodelicado organismo da enfeitiçada num estado de super-excitação nervosa. Agora não sofria, eHoremseb, que a cuidava e encontrava mil distrações na convivência dessa mulher instruída eespiritual,procuravaentretê-la,demodoaevitarnovosdissídios.Eraumaépocaásperaecheiadeprivaçõesparaele:nointeressedasexperiênciasquedesejavaempreender,edeviamdesvendar-lheo futuro, adstringia-se, por ordem de Tadar, a rigorosíssimo regímen, alimentando-se somente delegumeseleiteebebendoapenasdoiscoposdevinhopordia;viviaexistênciacastaesevera.

Ovelhosábiodissera-lhequetodoequalquerexcessoabsorver-lhe-iaforças,ligandoaissooêxito da grande experiência. Embora violento e sensual em demasia, por natureza, submetia-seimplicitamenteaessadietarígida,sendonissoajudadopelosucodaincógnitaplantaquecultivava,etinhaoduplodomdearrefecerosangueesatisfazeroapetite.Apósingeriraportentosaessência,calmo, espírito lúcido, descansado, quase não sentia fome; alguns legumes, um copo de leitesaciavam-nocompletamente.Se,porém,ossentidosamodorradosnadareclamavam,osinstintosdaalma conservavam plena atividade, e Horemseb, nesse regímen de jejum, desforrava-se com osprazeres da vista, encontrando satisfação extrema em contemplar as orgias mais dissolutas.Entronizado, qual um deus acima das paixões brutais que desencadeava, assistia ao caosturbilhonanteaseuspés.

Certatarde,apósarefeição,disseaNeith,quedesejava,comodecostume,irparaoterraço:

—Fica,evemconversarumpoucoemteusalão.Depois,euteproporcionareiumespetáculoqueteinteressará,poisnãoqueroqueteentediesnomeupalácio.

—TumelevarásapassearnoNilo,nabarcamaravilhosa? indagoua jovem,enrubescidadeemoçãoeprazer.

—Seráverdadequeaindasonhascomessasvelharias?Não,eutemostrareiasdeslumbrantescoisasquetenhoaqui,convencendo-tedequepossosubstituiroNiloporalgodemelhor.Tumesmaconvirásemqueaquiseestámelhordoqueemqualquer lugar, foradestesmuros;emqueoSol,comoscanicularesecegantesraios,comasuabrutalclaridadeservebemparaopopulacho,eemqueavida realcomeçaànoite, sobas rutilaçõesprateadasdo luar.Mover-sesobos sombreadosmeiosperdidosnaescuridão;sonhar,escutandoomurmúriodafolhagemoudesuavemúsica;enfim,amar,semarealidadegrosseiradoamor;eisumaexistênciadignadenós.Quantoàsatisfaçãorudedossentidos,pode-sevê-laexercidaporseressubalternos.Confessa,pequenacaprichosa,queumavidaassiméocimodafelicidade!

Enquanto falava, seu olhar de fogo imergia nos olhos límpidos e inocentes de Neith, que oescutava embasbacada. Uma hora mais tarde, Horemseb, precedido de portadores de brandões,conduziuajovemaojardim.Emtornodopaláciotudoestava,destavez,escuroesilencioso,mas,embreve,desembocaramnumaaléiaextensaefeericamenteiluminadaporaltostripésdentrodosquaisardiaalcatrãoemvasosdemetal.Emtodoopercurso,ocaminhoestavajuncadodepétalasdeflores,ebraseiroscolocadosnochãoexpeliamturbilhõesde fumaçaperfumada.Bemdepressaseavistou,aofundodaaléia,umapraçacircularcobertadeareia,naqualseerguiaumaespéciedetemplo,pequeno, aoqual se subiaporquinzedegraus.Emumnicho, ondeduascolunasbrancassustentavamo teto,projetadoparaa frente,ostentava-seamplo trono,circundadodearbustosdeflores desabrochadas. Flores ainda, esparsas pelos arredores e sobre os degraus, em torno dotemplo,eguirlandasverdes,esticadas,comoqueaconstituirumaabóbadaodorante.Nosdegraus,Neithjulgoudivisar,escalonadas,singularesestátuas,tendonasmãos,erguidas,tochaselâmpadas;mas,aproximando-se,verificounãoseremestátuas,esimrapazes,ricamentevestidos,imobilizadoscomosefossempétreos.Aospésdecadaum,umacaçoilaemanavaperfumes;archotesefogachosde alcatrão iluminavam amplamente a clareira, povoada por multidão de homens e mulheres,

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grupadosemsemicírculo.

Chegadoàfrentedaescada,Horemsebparoueexaminou,comarsatisfeito,adecoraçãodolocal; Neith permaneceu de pé, pálida e emudecida: o que estava vendo deslumbrava-a esurpreendia,masoolorsufocantedasfloresedosperfumesreagiamuitoviolentamentesobresuanatureza nervosa e sensível; a cabeça parecia rodopiar e uma lassidão, mesclada de torpor,chumbou-lheocorpo.Aoacenodosenhor,umenxamederaparigasportadorasdefloresecorbelhasdestacou-seda turbae rodeouNeith,e,antesmesmoqueestaseapercebesseda intençãodelas,despiram-na,substituindo-lhearoupagemporumatúnicadetecidoleveetransparente,cobertadebordadosdeprata.Àguisadecinto,apresilharam-lheumaguirlandadeflores,eumaoutrafoi-lheajeitadasobreoscabelosdesprendidos.ApobreNeith,aturdida,nãoopôsresistência,e,quandoasmulheres a deixaram, seu desnorteado olhar encontrou o de Horemseb, que, ardente desta vez,pareciaquereratravessá-la.

Apesardoaturdimentoquelheoprimiaossentidos,umacerbosentimentodehumilhação,devergonhaedecóleraimpotentedespertounocoraçãodajovem,quefechouosolhos,cambaleante.Horemseb susteve-a e, erguendo-a nos braços, subiu os degraus com o leve fardo. Sentou-se notronoeacolocouaseulado.Notandoalividezdacompanheira,cujacabeçasefirmavasemforçasnoseuombro,opríncipeacenouaChamusparaquelhetrouxesseumcopodevinho.LevantandoacabeçadeNeith,fê-labeberolíquido,aoqueobedeceumaquinalmente.Ocapitosovinhoespalhou-senassuasveiasqualrastilhodefogo;asfacesavermelharam,osnegrosolhosfulgiramnumclarãofebril,retesou-se,comosorrisonoslábios.

Horemseb bateu palmas, e, a esse sinal, elevou-se um canto discordante, embora deimpressionar, tão depressa melodioso e suave, qual cântico de amor, tão logo agudo, dissonante,selvática, sacudindo os nervos dos audientes com as potentes vibrações, excitando nas almas asmais múltiplas paixões. No mesmo instante, uma “troupe” de dançarinas surgiu da multidão.Protegidasapenasporlongosealvosvéus,quesustinhamemumadasmãos,faziamsoarosanéis,os colares e as pulseiras que lhes ornavam os ágeis membros. As belas mulheres executaramvoluptuosadança, cada vezmais veloz; seus véus voltejavampor sobre as cabeças, quais nuvensesbranquiçadas,eposesdiversaspunhamemrelevosuasadmiráveisformas.Recostadonacadeira,olharfuzilante,Horemsebcontemplavaestaanimadacenacomsatisfação,comvisívelbem-estar.

A própria Neith, superexcitada pelo vinho, pela música e aromas atordoantes, não podiaafastarosolhosdomágicoespetáculo,aoqualopríncipedeufim,erguendo-se.Desaparecidasasdançarinas, a multidão formou alas para passagem do senhor e sua acompanhante. Seguido eprecedido do cortejo, que cantava e atirava flores a seus pés, Horemseb encaminhou-se para ograndelago,agorabrilhantementeiluminadoquantoopalácio:astochas,aslâmpadaseasgrandesflamasdoalcatrãoacesocobriamavasta toalha líquidacomavermelhadabruma.Ao términodosdegraus de granito rosa, que desciam para a água, estava amarrada uma flotilha de pequenosbarcos,ornadosdefloreseiluminados,emcadaumdosquaishaviaumeunuco,umatocadoradeharpa e grande ânfora. No local de honra, junto da escada, esperava a embarcação do senhor,douradaeincrustada,e,nomomentoemqueHoremsebeNeithtomaramassentosobrecoxinsdepúrpura, seis rapazes e outras tantas raparigas, tendo por único vestuário guirlandas de flores,atiraram-seaolago,euns,pegandoacompridacorrentedepratapresaàfrentedobatei,eoutros,empurrando-opelapopa,nadaram, levandoapequenaembarcaçãoparaocentrodo lago.Todaamolehumana,queseguiaopríncipeouoaguardavanasmargens,dispersouentão.Unstomaramlugar nos barcos, outros mergulharam no lago, nadando em redor das canoas, emitindo gritos ecantorias de selvática alegria. A todos tinham sido distribuídos copos, que os eunucos enchiamsempre que ávidas mãos se estendiam para eles. Bem depressa a bebedeira apossou-se daqueleajuntamento tumultuoso, que nadava a esmo, ao som das harpas e das cantarolas, rodeando achalupadosenhor,oudescansandosobreuma jangadaunidaàmargem,nãomuidistante.Neith,inicialmente, olhara, interessada e curiosa, a fantástica exibição, mas, à medida que a festadegenerava em espantosa orgia, o terror empolgou-a: jamais, até então, seu casto olhar foramaculadoporespetáculotãoabjeto;àvistadasfacesincendidas,descompostaspelaembriaguezereverberandoaspaixõesbestiaisqueacadainstantesemostravampróximodabarca;essessereshumanos,nadandoemtornodelaeestendendoamão,seguraaocopo,porvezescrispada,comosepretendessedescarregar-seemgolpesobreacabeçadosenhor;tudoissolhecausavacalafrios,e,trêmula,seachegavaaocompanheiro.

—Quetemestu?—perguntouHoremseb,açoitandocomchicoteobraçoeascostasnuasdeumescravo,queseaproximoudemasiadoeoriginouumgritodeterrordeNeith.

A festa, ou melhor, a odiosa bacanal aquática chegara ao apogeu: os cantares e a músicafundiam-senumcaosdedissonâncias;aselvagemalacridadedosdesgraçadosseres,embrutecidospela embriaguez, pelo veneno que lhes propinavam e por todos os excessos, degenerava emdemência. Sem embargo, os eunucos, que circulavam pelo lago, tentaram manter certa ordem: a

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golpes de relhos, repontavam para as bordas os mais barulhentos, pescavam com arpões os queafundavameamontoavamasmulheresnajangada,impedindo-asderetornaràágua.

Apesardetaisprecauções,muitosdessesinfortunadospereceramafogados.Afestachegaraaesseponto,quandosurgiu juntodabarcadopríncipeumnadador, superexcitadoàs fronteirasdaloucura.Eraum jovemnúbio, robustoedepossanteestrutura; seu largopeito arfavaeosolhos,furibundose injetadosdesangue,pousaramsobreNeith,comumaexpressãode fazercoagularosanguenasveias.Imediatamente,oescravoagarrou-seàsbordasdobarcocomasmãos,e,alçando-se com força, dobrou-se sobre a jovem, em cujas espáduas nuas premiu os lábios. A semelhantecontacto escaldante, sentindo sobre o rosto o hálito avinhado do miserável, atirou-se paraHoremseb,quesevoltou,surpresocomoviolentochoquequequaseviraraaembarcação.Insensatofurordemudou-lheosemblanteaoveroinsolente.

—Brutoenraivecido,ousastocarnotesourodoteusenhor!—rugiu,foradesi.

Numrelâmpagodetempo,tiroudocintoaachadepunhodeouroeassentouimpetuosogolpesobre a cabeça do escravo. O crânio abriu, qual casca de noz e um fluxo de sangue e de massaencefálicaatingiuNeith,quasecegando-a.Comoque fulminada,sempronunciarpalavra,a jovemcaiudesacordada.Porfraçãodeminuto,ohorripilantecadáverficouaferradoàbeiradadobarco;depois, os músculos dos braços distenderam, e, pesadamente, escorregou para o fundo do lago.Horemseb cuidou de Neith, e, pondo água na mão, enconchada, aspergiu--lhe o ensanguentadorosto;mas,constatandoaineficáciadorecurso,resmungou,despeitado:

—Estúpidoincidente!Ora!terminaráporacostumar-se!

Deu,emseguida,ordemparaatracar,e,pegando-anosbraços,conduziu-aaosaposentosdopalácio.Aretiradadosenhor fez findara festa.Todososdesditososquehaviamservidoà ignóbildistraçãodopríncipeforamreconduzidosparaterrafirme:osquepodiamarrastar-seainda,foramtangidos,arelho,paraashabitações,talcomosefazcomumrebanhodegado.Dosquerestaram,algunseunucos,sobasupervisãodeChamus,fizeramrol; transportaram-seosemcomaalcoólica,removeram-seosmortosparaumsítioespecial,a fimdeseremconsumidos,e trêsouquatroqueapresentavam ferimentos graves, sem probabilidades de cura, atirados, mesmo inconscientes, noviveiro,paraalimentodospeixesdestinadosàmesadeHoremseb.

Quando,afinal,Neithdespertoudolongodesfalecimento,todosostraçosdoterrívelincidentehaviam desaparecido do seu corpo, e, ao recobrar a memória, inquiriu, com angústia, se a suareminiscência era de realidade, ou apenas de um pesadelo vivido pelo enfermiço cérebro.Efetivamente, sentia-se indisposta; seus membros pesados; arrepios gélidos trepidavam-na, e adoloridacabeçaparecia-lhecinturadaporumcírculode ferro.Emcompensação,ospensamentosestavam mais lúcidos do que nunca, e também menos influenciados pelo venenoso aroma: oesgotamentonervosopareciateramortecidooveneno.

Comárduaclareza,encarouasituação,eocoraçãoselhefechou:nessemomento,Horemsebinspirava-lhehorroretormento,e,pelaprimeiravez,depoisdemuitotempo,abelafisionomiadeRomasurgiu-lheanteoespírito,alteando-sevitoriosaentreelaeo fascinador.Neithcomprimiuafronteardenteentreasmãos:erapossívelhaveresquecidoecessadodeamaraquelehomemtãonobre, tão bom, de quem cada olhar, cada palavra lhe haviam despertado bons sentimentos,espalhando-lhenaalmaquietudeeventura?Compungenteemoção,reviveusuasconversações:elasempre desvelara a Roma todos os pensamentos; o que lia nos límpidos olhos dele jamais aruborizara;seubeijotrazia-lhepazaocoração;entreseusbraços,julgava-seeminviolávelasilo.

Comparando,queinfernoeraoamordeHoremseb!Semdúvida,esteigualmentearespeitava,nuncaatentaracontra suahonrademulher,mas,porque,àvistadopríncipe, todoo sangue lhesubiaàcabeça?Porquelhepareciasufocarnumaatmosferadefogo,quandosecurvavaparaela?Porqueseubeijolhecausavaagoniainomináveleoolhardechamassemelhavareduzi-laacinzas?Num arrepio, confessou a si mesma que o amor de Horemseb destruíra-lhe a vida, sem lhe darfelicidade;asubjugaçãoestranha,queexerciasobreelafazia-lhedesejarapresença,emseubeijobuscava um consolo; uma compensação ao sofrimento inexplicável que a minava; jamais, porém,encontraraacalma,odescanso.

PobreNeith!Arrancada,inopinadamente,atodososseushábitos,àshonestasafeiçõesquearodeavam, a uma existência regular e sã, para vegetar num mundo fantástico, onde, dir-se-ia,subvertidaaNatureza,seencontravaconstantementecomoquesoboimpériodesonho.Nasingularmorada, onde se mudava o dia para a noite, os clarões do poente despertavam os habitantes dopalácio;àclaridadedosarchotescomeçavafebrilatividade;nuvensdefumaçaodoranteenchiamosapartamentoseosjardins;cenasidênticasàsdavésperapodiamfazê-lacrerqueseencontravanoreino dos demônios. Todas essas circunstâncias eram suficientes para enervar os mais robustos

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organismos, e muito mais o de uma jovem mulher, delicada e impressionável. Por outro lado, ainfluênciamalsãexercidaporHoremseberamaisnocivaàalmadeNeithdoqueonovogênerodevidaparaoseucorpo.Opríncipe,écerto,nãomais lhepropinavaoveneno,que infalivelmenteateria morto pouco a pouco, mas usava amuletos perfumados, e todo o seu corpo exalava o olordeletério,queferiaoolfatodeNeithsemprequeelesecurvavaparaela,despertando-lhenosangueirritaçãonociva.

Odiadecorreucustosamente;osono fugiadaspálpebrasda jovem,equandoocalorcedeulugaraagradávelfrescor,ergueu-seefezsinalàsservasqueavestissemparaojantar.Pretendia,em seguida, dirigir-se ao jardim, para fruir algumas horas do dia e de um pouco desse sol queraramentevia.Deixou-sevestirmaquinal-mente;seuspensamentosestavamjuntodeHoremseb;anecessidadedevê-lonarefeiçãoinspirava-lhehorrorerepulsa,e,apesardisso,coisaestranha,nãorenunciaria, a preço algum, a esse encontro, e ela própria contava, impaciente, as horas daseparação. Terminado o vestir, as escravas saíram, exceto uma, que terminava os adornos,alcançando as jóias e aspergindo todo o corpo de Neith com essências odoríferas. Quando lheapresentouumgrandeespelhodemetal,Neith,poracaso,olhouorostodaservaeimpressionou-secomaexpressãodesombriodesesperoestampadonoseusemblante.Generosaecompassivaporíndole,Neithagoraestavamaisacessívelàpiedade,noatualestadodeespírito.Pelaprimeiravez,examinou-a,comatenção,eviuamáscaradeprecocevelhice,ossulcosdefadigaedesofrimentoindeléveisnaquelacriatura.Pondoamãonatestadamoçaescrava,indagou,bondosa:

—Ouves-meouéstambémsurda-muda?

Paramelhorsercompreendida indicou,comamão,abocaeasorelhas.Aescravaelevouoolhar:doregratidãonelesedemonstraram;depois,emacenosrápidos,explicounãosersurda.

—Porquemotivoperdesteousodapalavra,pobrefilha?Astuascompanheirassãosurdasdenascença?

Com profundo espanto de Neith, a essa pergunta, extraordinária emoção apoderou-se daserva; tremornervosoagitou-lheocorpo;seusolhosreluzirameroucosgrunhidossaíram-lhedoslábios. Ao termo de instantes, dominou-se, moveu negativamente a cabeça, e, por animadapantomima, explicou que Chamus (ela arremedou o eunuco sem possibilidade de serincompreendida)decepara-lhealíngua.

—Oh!horror!Porordemdequem?—exclamouNeith,tocadapormaupressentimento.

Rir, irregular e desesperado, flui da boca da moça escrava, e, por acenos, ainda maisexpressivos, porém marcados, de pavor e aversão, designou o senhor da casa como sendo oinstigadordamutilaçãoedadeseuscompanheiros.Presadeinopinadoesvaimento,Neithdeixou-secairnumacadeiraeescondeuo rostonasmãos:consternação, receio,asco,entrechocaram-senasuaalmaparacomHoremseb,acrescidosdaslembrançasdavéspera.Eeraaessemonstroqueelaamava!PoreleabandonaraeesqueceraRoma,que,semdúvida,achoravapormorta!...

Ligeiro contacto tirou Neith dos amargos pensamentos. Procurou a causa e viu a escrava,ajoelhada, mãos postas, olhando-a ansiosamente. Encontrando o olhar da ama, levou a mão aoslábios,comsúpliceesugestivaexpressão.

—Nãotearreceies;nãorevelareioquemeconfiaste.

Eestendeuamão,queamoçabeijouagradecida.Esaiuparao jardim.OSolaindanãoseesconderanohorizonte;seusraiosvivificantesespraiavam-sesobreaespessaverduradoarvoredoecintilavam na superfície cristalina do lago. Neith respirou sofregamente o ar puro e a própriaclaridade do dia que quase nunca lhe era dado fruir; mas, a vista do lago fez-lhe horror, e,retornando,entroupelasaléias.Apóscurtoandar,sentiu-sefatigada;omal-estarqueaatormentaratoda a manhã, recrudescia, com intensidade maior ainda; alcançou o terraço mais vizinho, e,sentando-senumbanco,encostou-seaumacoluna.

Ante seus olhos estendia-se uma clareira circundada de moitas e sombreada por algumaspalmeiras, ao termo da qual começava uma aléia de sicômoros. Tudo estava ainda deserto esilencioso;nenhumdosfâmulosapareciaparaacenderastochasetripésaexpandirosperfumes,pois não soara a hora do aparecimento do senhor da casa. Gradativamente, singular torporassenhoreou-sedajovem;acabeçapesou-lhe,glacialarrepiosacudiu-lheosmembrosenegrovéupareceudescersobreseusolhos.Imediatamente,teveaimpressãodeverumasombrasurgirdetrásde uma das palmeiras e avançar: reconheceu um tipo feminino, cujo rosto estava recoberto pornegrovéu,tendoosbraçosornadosdebraceletes,estendidosparadiante.Pareciadeslizarparaoterraço,roçandoosoloobliquamente.

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—Quempoderáser?—pensouNeith.Umadasdançarinasouauxiliar?Ecomoousaviraquieaproximar-sedemim?

Nomesmoinstante,muitasnovassombrasapareceram.Davamailusãodesurgirdasmoitaseaté das colunas do terraço. Num abrir e fechar de olhos, todo o bando cercou a jovem egípcia,emudecidadeespavento,incapazdesemover,comoquechumbadaaobanco.Asveladasmulherescomprimiram-seemredordeNeith;aatmosferageladaqueasenvolviaeocheironauseabundoqueexalavam quase afogavam a jovem. Então, mãos crispadas, dedos inteiriçados e cobertos dequeimadurasestenderam-separaela,evozesroufenhasesufocadasexclamaram:

—Ei-la,aquelaparaquemguardabeijosdiferentesdomortalquenosconcede,aquelaqueelenão destina à morte. Foge deste palácio, ou não sofreremos tua presença; foge, Neith, porqueaqueleaquemamasnospertence,ou,então,torna-teigualanósepartilhadanossasorte.

Osatrosvéuscaíram,eNeithviu jovensebelos semblantesdesfiguradospelo sofrimentoepor brutais paixões; chamas envolviam-nas, e de uma chaga no peito de cada uma das vítimasescorrianegroeespessosangue.Osvéusestavamtransmudadosemfumaça,sulcadadeclarõesqueturbilhonavamemtornodoassustadorconjunto.Elaquisfugir,mas,asextremidades,paralisadas,recusaramobedecer:todaavidapareciaconcentradanavisãoenoouvido.

— Olha, estas chagas são obra dele — disse um dos terrificantes seres, cuja fisionomiacontraídarespiravaódioselvagem—,osanguequefluiudonossopeitoHoremsebobebeu,eporesse elo sangrento ele se ligou a nós; pertence-nos, e nós o arrastaremos ao abismo, onde,despojado do corpo de carne, estará à nossa disposição. Se queres partilhar do nosso poder, dátambématuavidaparanutri-lo!

Rindolugubremente,assombrashorrendascomprimiam-seaindamais,quando,subitamente,turbilhonaram-se,e,quaisbolasincendiadas,varridasporumgolpedevento,sumiramnoterraço.Libertando-se,pordesesperadoesforço,dotorporqueachumbaraaobanco,

Neithrecuperou-se,trêmula,eseuolhar,atarantado,incidiusobreHoremsebque,indolente,sorrisonoslábios,seencaminhavaparaela,vindodaaléiadossicômoros.Esquecendotudo,movidasomentepelodesejodenãosesentirsozinha,correuparaele;mas,asforçaslhefaltaram,e,comabafadogrito,caiuajoelhada.

—Quetens,Neith?—indagouorecém-vindo,curvando-sesurpresoparaela,cujosemblantedemudadomostravaummedointenso.

—Mulheres,comumachaganocoraçãoeenvoltasemchamas,sitiaram-meeameaçaram-me—ciciouofegante—,dizendoquenãotenhodireitoaoteuamor,enquantonãobeberesmeusangue,tal qual fizeste com o delas, e que te arrastarão ao abismo onde ficarás inteiramente sob seudomínio.Ah!ei-lasquevoltameterodeiameseagarramati.Expulsa-as,semeamas!

A voz extinguiu-se-lhe, e rolou desacordada no chão. Por instantes, Horemseb permaneceuimobilizado: lívido,olhosembaciados,parecia levantar-sesobreelemesmo.Nãoseriaohálitodassuasvítimasque,semelhanteageladovento,lhesopravanatestamolhadadesuorefaziaeriçaroscabelos?Osbraçosnãoseestendiamparaele,vindosdecadamoita,decadapontosombrio?Dentescerrados,ergueuNeith,saltouparaoterraço,e,depondo-asobreumbanco,bateupalmas.Chamusenumerososescravosacorreram.

—Vinhoeessências!ordenouHoremseb,emalteradavoz.

Graçasaoscuidadosqueprodigalizou,ajovemreabriuosolhos.

—Comotesentes?—indagou,abraçando-a.

—Melhor;creioqueumsonhomaumeatormentou—respondeu,tentandosorrir.

—Decertosonhaste.Vamosagoracomer,eistotereconfortarácompletamente—acrescentou,enlaçando-apelobusto,paraajudá-laacaminhar.

A refeição foi silenciosa: Neith estava incapacitada de comer, e Horemseb observava-a,preocupado,vincadaatestacomprogressivaruga.

—Teussonhosmalsãosfazem-tedoente,Neith;estáspálida,desfeita,semapetite,eistonãopode prolongar-se assim. Depois da refeição, conduzir-te-ei a um grande e sábio médico, queprescreveráremédios,eresta-te...

Interrompeu-se: Neith retesara-se, descorada e arrepiando-se; olhos desmesuradamente

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abertos,dir-se-iaconcentradossobrealgopavoroso.

—Quem é essa mulher pálida, envolta em chamas, com uma rosa vermelha na mão, e quequeragarrar-te,Horemseb?—murmurou.

Seus pequenos e gelados dedos fecharam-se crispadamente no colar do príncipe, fazendo-ovoltar-se,brusco.

—Nãoháninguém,Neith,tusonhas!

—Ei-la!Eseinterpõeentrenós...Eisoabismo:pára!pára!Nãotedeixesempurrarparalá!...—gritouela,recuandoatremer.

—Tuestásenferma,querida—disseHoremseb,atraindo-aparasi—,tumeamas,bemovejo,porquenãoqueresquetombenavoragem;mas,aquieta-te:nuncanossepararemos.

Eleaconchegou-amais,abraçando-a.Quando,porém,aproximouoslábiosdosdeNeith,estasentiuumodordecarnequeimada,acreefumegante,saindodabocadeHoremseb;línguasdefogorodeavam-lheatesta,iluminando-lheosolhoscomsangrentaluz.

Sentindo-se num braseiro, perdendo o fôlego, cegada, a jovem mulher debatia-se, e seufranzinocorpotinhacontorçõesdeconvulsão.

— Perdão! Horemseb, não me queimes; as chamas sufocam-me! — gritou, tentandodesprender-se.Depois,inteiriçou-seedescaiuinanimadaentreosbraçosdopríncipe.

Novamente,repentinopalorcobriuorostodeHoremseb.

—Quesignificaisto?Elavêasquepereceram?—murmurou,inquietoepensativo.

Imediatamente,porém,oolharfez-sevivaz,elndefinívelexpressãodeorgulhoedesatisfaçãoíntimadesenhou-se-lhenoslábios,jásorridentes:

—Suasalmasnãopodemencontrarrepouso;amam-meaindaetêmzelos.PobreNeith,essassombrasloucasinvejam-lheapreferênciaquelheconcedoeaperseguem.Tadardeveterremédioparaocaso.

Readquirindo a calma, como que por encantamento, tomou Neith nos braços e a levou aopavilhãodosábio,que,dir-se-ia,esperava-o,poisestavadepé,naentrada.Sombrio,silencioso,semqualquerindagação,pegou,elemesmo,ocorpoaindainanimadodamoça,e,tendo-ocolocadonumleitoderepouso,fezdetidoexameparaafinal,voltando-se,dizer,comdescontentamento:

— Os sentidos desta criança dilataram-se mais do que a matéria pode suportar; ela vê asvítimassacrificadasaMoloceouveaspalavrasdesbordantesdeódioedeciúme.

— Sabes isso, mestre? — exclamou o príncipe, admirado. Uma vez que feriste o assunto,permite-me uma pergunta: Neith vê as almas dessas mulheres porque elas existem? É verdade,então,quetaissombrasvingativasrodeiam-me,incendiadasdecóleraedeamor,equeremarrastar-meparaalgumabismo,ealisevingaremdemim?

Evoltouàpreocupação,sacudidoporumarrepionervoso.

— Já te disse que coisa alguma se destrói na Criação, e, por muito mais forte razão, essaqualquercoisatãoperfeitaetãosutilaquechamamosAlma—respondeugravementeovelho.Semdúvida, esses seres, separados de seus corpos, no desabrochar da existência e da juventude,turbilhonam aqui, sobre estes lugares onde viveram; essas mulheres queriam possuir-te e têmciúmesdecadaolhar,cadapensamentoqueconcedesaoutrasquenãoelas,porquenessesseressem corpos lutam desencadeadas todas as paixões dos vivos; os sentidos sobre-existem à morte,faltando-lhes apenas os órgãos carnais que as paixões põem em ação. O sofrimento é, pois,duplicado,porqueosdesejos,Impotentes,esbarramemcondiçõesintransponíveis,eéporissoqueessesseresqueremarrastar-teaoabismo,queéamorte.Sóassim,eentão,poderiam,realmentetornar-se perigosas e terríveis a ti; igualado, por teu corpo transparente, serias acessível àsperseguiçõesdassombrasdevoradasderaivaedeamor.Mas,porquenósviveremoseternamente,nutrindo-nosdosanguedasvítimas,esseperigonãoexiste,comrelaçãoati,eaconvicçãodatuainvulnerabilidadesuperexcitamaisaindaafúriaimpotentedosinvisíveis.

—Oh!maisdoquenunca,sacrificareivítimasebebereiseusangue—exclamouHoremseb,comselvagemexaltação.Euqueroedevoviversempre;essasalmasbrutaiseodientasnuncaterãopodersobremim.

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—Nadatensatemer.Mas,tornemosaNeith:oaromapoderosoeosespetáculosdogênerodosdeontemsuperexcitaramseuorganismo;elavêeouveoqueéimperceptívelparaosoutros,nosquaisosfiossutisqueligamaalmaaocorpoestãopresosmuitoestreitamente,esóselibertam,demodo imperfeito, durante o sono. Em Neith, esse desprendimento excede os limites ordinários;nesseestado,osórgãosdaalmacomeçamavibraredesvendam,aovivo,oqueseachaocultonaatmosferapopuladademaravilhas.Talestado,porém,éigualmenteperigoso,porquepodeacarretara rupturadocoração.Neithnecessitadearpuroedescansoabsoluto; já te recomendei cuidá-la,mas, porque encaras displicente os meus pedidos, eu a conservarei aqui, na câmara superior dopavilhão,eatratarei,porqueprecisassaber,Horemseb,queNeithéumafilhadomeupovo,eaquiestásobaproteçãodoseudeusesobaminhasalvaguarda.

Ovelhosábiorecostara-se,majestosamente,epousaraadestranacabeçadadesacordada.

—Tudevaneias,Tadar.ComopodeNeith,filhadeMena,chefedospavilhõesreais,serdaraçadoshitenos?—disseopríncipe,incrédulo.

—Oenganoéteu.NeithéfilhadoFaraóHatasuedopríncipeNaromath,oirmãomaisvelhodeSargon, e foi por isto que disse: em caso de perigo, esta filha seria nossa poderosa proteção,porquearainhaadoraessalembrançadoseuamorúnico.

Horemsebescutaraatônito.

— Por que só hoje me dizes isto? Mas, é impossível: a arrogante Hatasu teria amado umvencido?E,alémdisso,dequemodoocultariatalsituaçãoaseupai?

Àpalavra“vencido”sombreara-seafisionomiadovelhohiteno,eumclarãovenenosofugiu-lhenoscavosolhos.

—Umvencidodasorte!Lembra-tedequeosHyksosprovaramaoEgitoquenemsempreesteeravitorioso—respondeuTadar,asperamente.

— Desculpa-me, caro mestre, pois não pretendi ofender-te; foi o pasmo que me inspirou ainjustaexpressão.Eporquetantomerevelaste,dá-me,porfavor,algumasexplicações,casoNeithnãoestejareclamandoimediatoscuidadosteus.

Osábiomuniu-sedeumfrasco,friccionoucomoconteúdoatestaeastêmporasdajovem,edisse,limpandoasmãos:

—Nomomento,nãonecessitaelademaioratenção,equerosatisfazer,debomgrado,atuacompreensívelcuriosidade,sebemquesóanecessidadedete imporumfreio foiqueme levouarevelar-teosegredo.

Tadarapoiou-senoscotovelos,epareceuabismar-seemrecordações.Horemsebafogueava-sedeimpaciência,quando,afinal,ovelhorecostou-senovamente.

— É desagradável rememorar esses tempos de humilhação e desgraça — disse. Os deuseshaviamvoltadocostasaonossodesditosopovo,eoorgulhosovencedoracampavanopalácio,meioincendiado,denossosreis.Umabatalhadecisiva,perdidapelosnossos,haviaentregueaosegípciosmilharesdevencidos,entreosquaisNaromath,omaisformosodoshitenos,esperançaeorgulhodasuanação.Crivadodeferimentos,eprincipalmenteesgotadopelaperdadesangue,omoçoheróifoiencontradoentreummontedecadáveres,duranteacontagemfeitapelosegípcios,napresençadorei.TusabesqueHatasuacompanhavaTutmésnessacampanha.Emboraquasemeninaentão,lindaquantoHator,porémenérgicaeorgulhosaaomáximo,avaliarásdainfluênciaquejáexerciasobreoreipeloque se segueeme foinarradopor teupai, testemunhaoculardoepisódio.OFaraó,quedestinava ao trono essa filha favorita, procurava, por todas as formas, dar-lhe têmpera viril aocaráter,pois,àsutilidadedamulher,deviaaliaracoragemdohomem.Comsemelhante intenção,levava-acomeleaassistiràsbatalhas,adistânciasuficienteparanãoseratingida,enaquelaveztambém a levou para estar presente à contagem dos mortos. De pé no carro real, olhava, sempestanejar,comosecomputavamasmãosdecepadas,vindasdetodosospontosequeosescribasanotavam nas tabuinhas, quando começaram a remover o montão de cadáveres junto do qual sedetivera a carruagem real. Deste é que foi retirado, desde logo, Naromath, sem sentidos. Pelocapacetedouradoeinsígniasqueoadornavam,Tutmésidentificouopríncipequehaviacombatidonavéspera,edisse:

—Éumleão,umheróiquemorreucombravura.

“QualimpulsomoveuocoraçãodeHatasuédifícilsabê-lo,poisnãodeixoudeolhá-lo.

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—Acho,meupaieFaraó,queumfilhodereinãodevesermutiladoporsubalternos,mesmoquando morto e vencido, e se um triunfador da tua estirpe, um deus da guerra faz tão preciosolouvoràsuamemória,oheróinãomereceashonrasdeumsepulcro?

“O rei pareceu encantado, e elogiou o tato e a magnanimidade da filha, e mandou inumarNaromath,comhonrarias,semmutilação;mas,quandosetransportavaocorpo,ador,arrancando-lheumgemido,mostrounãoestarmorto,sendoentãoconduzidoparaopalácio.Dequemaneiraseencontrarameamaram,NaromatheafilhadeTutmésI,ignoro;somenteSemnut,àépocapequenooficial subalterno do séquito da princesa herdeira, e uma das criadas graves, de nome Satati, aserviramduranteoenredo.Esseamor,únicoqueconseguiusubjugaraaltaneiraHatasu,dominou-aentãocompletamenteeenterneceu-lheocoraçãoemfavordosvencidos,obtendodeTutmésI,paraeles,muitosalívios;e,certamente,Naromathgalgariaotronodeseugenitorhiteno,nacategoriadetributário doEgito, seHatasupudessedecidir-se à separação.Mas, aqui o egoísmoprevaleceu atodos os sentimentos: o príncipe devia acompanhar o exército e... seus ferimentos reabriram.Naromath sucumbiu e Hatasu regressou a Tebas, desesperada e grávida. Um acaso auxiliouesconderestacircunstância.TutmésItevedeseguirquaseimediatamenteparaaLíbia,e,julgandoafilhafatigadapelademoradacampanhaquevinhamdefazeremcompanhia,nãoalevoudessavez.FoidurantetalausênciaquenasceuNeith.Mena,seupainominal,contraírasegundasnúpciascomumaparentadorei,eaeleaprincesaaconfiou.Mena,chefedospavilhõesreais,estavaemTebasconvalescendo de ferimentos, aceitou ficar com a menina, como se fosse filha do casal; a esposafaleceudeparto,dandoàluzumfilhomorto,oqualfoisubstituídoporNeith.Dessesegredoapenaspartilharam:Mena,Satati,Semnutedoishitenos,TiglateafeiticeiraAbracro.EuosoubedeTiglat,e,demim,teupai,etuagora.

Horemsebtudoescutaracomávidacuriosidade.

— Agradecido, Tadar. Quanto me acabas de revelar explica muitas coisas, e também odesmesurado orgulho de Neith, herança maternal. Com relação a ela, conformo-me com as tuasrazoáveisdisposições,eenviareiparaaquitudoquantonecessite.Permitir-me-ásvisitá-la?

—Certamente,autorizo;apenasémisterqueelaserestabeleçadetodo,antesdesuportarumambiente tão diverso do seu. Eu ta devolverei também mais forte, porque os aromas serãoassimiladospelosangue.

Paragrandeespantoseu,Neithdespertounopavilhãoealipermaneceu,edepressaseafezàconvivênciadovelho sábio,quea tratavacombondadee sedivertia como seuespíritoatiladoeréplicasfinasecáusticas.Sobainfluênciadesériotratamentoedeumaexistênciamaissã,ajovemrecuperou paulatinamente as energias e o viço. Horemseb visitava-a com assiduidade. É que osegredodoseunascimentoinspirava-lhe,paracomela,umnovointeresse,eaesplêndidaformosuradamoçafazia-lhedesejar impacientementevê-laaseuspés,devoradadeamor.Ela,porém,aindaestavaenferma,eapresençadeTadarimpediaorecomeçodocriminosoefútildivertimento.

Durante a lenta convalescença, íntima e encarniçada luta se travara na alma de Neith.Subtraída à subjugação malsã, que o príncipe exercia sobre ela, sua razão e sua consciênciaressuscitavam, as lembrançasdopassadoassaltavam-na cada vezmais, confessava-se incorreta eingrata,esquecendoRomaedeixandonaignorânciadasuasituaçãoarealprotetora,sempreboaeindulgente. E Sargon? Não lhe havia ela jurado, invocando Hator, esperá-lo fielmente e reparar,quanto possível, o agravo afrontoso que lhe fizera? Como tinha cumprido a sagrada promessa?Quase à véspera do regresso do seu desventurado esposo, deixara-se, ela própria, arrebatar, nãopelomeigoRoma,esimporumhomemqueatratavaigualaescrava,degradava-apelaexibiçãodehorroresindescritíveis,eque(sentia-o,amargurada)nãoaamava,brincandocomelaàsemelhançadogatocomoratinho.Oolhardessehomemfascinava-a,talqualaserpenteatraiopássaro;mas,ofundo do fogoso olhar de Horemseb encobria glacial indiferença, e seu coração devia ser mau,porquedecretavaamutilaçãodedesgraçadasmoças,edivertiaosolhoscomorgiasabomináveis.

E,apesardisso(coisaincrível),dessaconvicção,dohorrorqueopríncipelheinspiravamuitasvezes,aidéiadeabandoná-loapertava-lheocoraçãonumaangústiasemnome:nãovê-loerapiordoque a morte. Assim se escoaram alguns meses, e estando refeita na saúde, deixou o pavilhão ereinstalou-se no palácio, no antigo modo de viver, encontrando-se mais vezes com Horemseb erecaindosobseudomínio.Mas,semembargodetalinfluência,eporquenãolheerapropinadomaisveneno e absorvia menor porção do perfume, a razão não estava muito obscurecida. Horemsebtornou-se mais assíduo, ou antes, habituou-se mais à formosa e inocente companhia, e só anecessidade de privar-se desse convívio para assistir às exibições com que se distraía da vidaascéticacontrariava-oprofundamente, tantoassimqueresolveu tentar,aindaumavez,acostumarNeithaos lodososespetáculos.Numanoiteemqueelaassistira,nopavilhão jádescrito,adançasexecutadassobreo tabuleiroderelva, trouxeramo trono,eNeithviu,comassombro,prenderemnas espáduas de Horemseb duas grandes asas douradas e lhe adaptarem à cabeça uma tiara

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cintilante de pedrarias. Quando ele lhe fez sinal para sentar-se a seu lado, compreendeu queassistiriaaalgumanovacenaorgíaca,e,trêmulapelaaversão,inundadadesuorfrio,estendeuasmãosjuntasparaoalgoz,eexclamou,súplice,masvibrantedeindizívelrepulsa:

—Não!Não!Imploro:deixa-me,nãoqueroircontigo!

Horemsebnãoestavaafeitoàresistência;tudodeviadobrar-seanteasuavontade.Poroutrolado,a fatuidade impelira-oatéanecessidademesquinha,eaquelarecusadiantedasuagente,omenosprezodadoàhonrariadeassentá-lajuntodele,puseram-noemestadodecólerafuriosa.

—Ah!o lugar juntodo teusenhornão tebasta!—rugiu, fulminandoNeithcomameaçadorolhar.

Inclinou-separaChamus,aquemtransmitiualgumaspalavras,ordenandodepoisaocortejoqueiniciasseamarcha.Comoqueébria,ajovemseapoiounumaárvore:raiva,desespero,vergonhaulceravam-lhe a alma, e essas reações decuplicaram, quando o eunuco, aproximando-se, braçoscruzados,lhedisserespeitosamente:

— O senhor me ordenou te fizesse assistir à festa; segue-me, pois, sem resistência, nobremulher;nãomeobriguesausardeviolênciacomatuapessoa.Eseumínfimoservo,qualeusou,tepodefazerumaadvertência:nãoresistasjamaisàvontadedopríncipe,porquesuavingançaécruel,suacóleraeoseurancortedestruiriam.

Neithcomprimiuafronteentreasmãos.Oh!porqueseguiraesseabominávelhomem,queadesprezava e degradava ao nível de escrava; obrigava-a a assistir a espetáculo que lhe causavahorror e desgosto, e não lhe atendia à súplica direta, pondo-a à mercê de um doméstico? AconvicçãodequeChamuspoderiaemverdadeusardeviolênciaaguilhooutodooorgulhodeNeith.Endireitando-sevivamente,disse:

—Mostra-meocaminho.

Quando, em companhia do eunuco, ela chegou ao local da festa, viu Horemseb sentado noaltar,quejádescrevemosnoprincípiodanarrativa.Aturba,aseuspés,oferecialibações,dançavae, graças às bebidas irritantes, distribuídas profusamente, já se encontrava num vero delírio.ChamusfezNeithsubir,e,indicando-lheumacolunaapoucospassosdotrono:

—Ficaaqui!

Mas,aofendidajovemjulgoucair-lheumraioemcima,aoveroeunucomanusearumacordaque,passadalestamenteemredordacintura,aamarrouàcoluna.Aesteultraje,quearebaixavaàcondiçãodeanimal,osanguefluiu-lhenacabeçacominauditaviolência,enãopercebeumaisnadado que se passou em derredor, e os gritos e o tumulto da orgia desencadeada chegavam-lhe aoouvido como se fossem um sussurro longínquo. Sem demora, cambaleou e caiu sobre os joelhos,cobrindo as faces com as mãos. Ódio selvagem contra Horemseb fervilhava-lhe no íntimo e oscabelos se lhe eriçavam à lembrança de que estava em poder dele. Vagamente, percebeu quevigorosos braços a erguiam e sentavam em confortável cadeira, mas, o conhecido contacto deúmidasefriasmãosfizeram-naabrirosolhos.Horemseb,jásorridente,estavacurvadoparaela.

—Tornaati,caprichosa;meuressentimentopassou.

Um perfume atordoante que se exalava do seu corpo agia de maneira enervante sobre oorganismo de Neith, e toda a cólera anterior pareceu fundir-se naquele apaixonado amor que aprecipitaranosbraçosdopríncipe;mas,porestranhacisão,aalmanãocorrespondiaàsubjugaçãodos sentidos e continuava vibrando de repulsa e desprezo. Incompreendendo-se ela própria,quebrantadaporessedespedaçamentorecôndito,recuou,instintivamente,paratrás,murmurando,inconsciente:

—Mercê!

Osorrisotípico,quegelavaeabrasavasuasvítimas,perpassou-lhenoslábios.

— Que mercê pedes tu, Neith? Que mais te posso dar, além da metade do meu reinado?Vamos! Cessa teus caprichos, ergue tua bela cabeça e olha como se espoja a nossos pés essadesprezívelmultidãodeescravosedefâmulos;compenetra-tedaconvicçãodeque,semelhantesadeuses,nóspairamosbemacimadetodasaspaixõesbrutais.

Neithnãorespondeu.Completoabatimentosucedeuàsuperexcitaçãoespavorida;comoolharsem expressão, apoiou-se no espaldar da cadeira e mergulhou num letargo que degenerou emesvaecimento.Quandodespertou, viu-seestendidanumbancodo jardim,nãodistantedosmuros.

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Horemsebestavasentadojuntodelaeajudou-aaerguer-se.

—Sentes-temelhor?—indagou.Sim?Entãovem,voufazercomquerespiresarpuroefrescoquetere-confortará.

Conduziu-apróximodomuro,abriuumaportaechegaramàescadaquecomunicavacomoNilo. Os clarões do Sol no oriente faziam cintilar a superfície do rio sagrado, como que lheestendendoumlençoldeouroerubis;oscimosdasmontanhas,quelimitavamodeserto,cobriam-sede tons rosa e alaranjado. Depois, o disco resplendente do astro diurno subiu no horizonte,Inundandodeluzaesplêndidapaisagem,ostemplosepaláciosdeMênfis,cujassilhuetasmaciçassedesenhavamvigorosamentesobocéuesbraseado.

Palpitante,respirandoaplenospulmõesoarvivificantevindododeserto,Neithcontemplavaomágico espetáculo do qual a sua vida malsã desabituara. Intensamente, nela despertaramrecordaçõesdopaláciodeSargon,ondetantasvezes,sentadanoterraço,contemplaraonascereopôrdoSol,respiraraafrescuradabrisavindadorio,esonharacomaimagemdeRoma,oucomadoinfortunadoesposo.Então,elasejulgaradesventurada,eeralivre;seucoraçãonãoseesmagavaaopesodeagora;jamaisenfrentaraessecombatehorrível,entrearazãoeumaforçanefastaquelhecurvavavontadeeorgulhoeaatirava,contraoseupróprioquerer,aospésdeumhomemqueelaaborrecia,desprezava,eidolatrava,tambémcontraoseupróprioquerer.

Subitamente, a lembrançadahumilhaçãodessamesmanoite ressurgiu-lhenamemória, eorubordavergonhatingiu-lheorosto:sentiu-seindizivelmentedegradada,infeliz;umdesejoinfrenede liberdade invadiu-a.Paradeixaraquelaprisão,nãomaisveraquelesmuros,nãomais respiraraquele ar viciado, teria dado a vida em tal instante. Involuntariamente, ergueu os olhos para ohomemqueexerciatãofataldomíniosobreela,àmercêdoqualseencontrava,elheacudiuaidéiadequeeletambémfruíadeumaespéciedelibertação,naspaisagensdaNatureza,naclaridadedodia,numar isentodearomasdeletérios;que, talvez,qualelamesma,seembriagaria longedessepalácio,sobasombradoqualsetornaraescravodepaixõesimpuras,ondeelesesaciavadecrimes,calcando,nopróprioíntimo,todoosentimentohumano.Encostadoàumbreiradaporta,Horemseb,braços cruzados sobreopeito, aparentavaestar imersonacontemplaçãodaadmirávelpaisagem.Seuolharmudaradeexpressão:orgulho,aspereza,ameaça,tudoseesbatera,paradarlugaraumacontemplativacalma;osolhossombriosbrilhavamcomsatisfação,puraeentusiástica;docesorrisosonhadorentreabria-lheosvermelhadoslábios.OolhardeNeithmediu,admirativo,aaltaeesbeltaestaturadobelojovem,cobertodejóias,ostentandoaindasobreoscabelosencaracoladosatiara,sobreasespáduasomantodepúrpura,doqualserevestiraparapresidiràabominávelorgia.

—Tãobelocorpo,e tãoasquerosaalma!—ciciouelaasimesma,comprimindoasmãosdeencontroaopeito.

Denovo,umaconfusãoderepugnânciaeamorselheamalgamoudentrodocoração,edepoisse fundiunoúnicodesejode fugirdaquele lugardesofrimento,ondeperdiaarazão,nãomaissecompreendendoelaprópria.Resoluta,bruscamentepegou-lheobraço.

—Horemseb!

— Que me queres tu? — perguntou, estremecendo e fixando, com surpresa, o semblanteestranhamenteanimadodeNeith.

—Restitui-mealiberdadedaalma,fascinadordeMênfis;tuaacorrentaste,euosinto,etodoomeuserserebelacontraopoderqueexercessobremeussentidosequeencarceraminharazão.Nunca,antesdetever,conheciestefogodevoradorquemechamejanasveias,meimpeleaosteusbraços, me envilece a dignidade, me envergonha de mim própria. Se sabes prender, deves saberlibertar:devolve-me,pois,o repouso,aestimademimmesma,desobstruimeucoraçãodapaixãonefastaquetantomefazsofrer.Issonãotedevecustar,Horemseb,porquetunãomeamas,tumerelegasaograudeescrava,souapenasumjogueteparatuasmãos.

Neithanimara-secadavezmais,comosnegrosolhosfulgurantes,odébilcorpofrementedeorgulho e desespero. Súbito, essa exasperação transformou-se numa torrente de pranto; mãospostas,elaseavizinhoumais,e,emvozsúpliceeentrecortadapelaslágrimas,prosseguiu:

—Tempiedade,Horemseb,deixa-mepartir;nãotetraireinunca,porumapalavraqueseja,arespeitodoquevi;jamaisperturbareiteusossego;bemaocontrário,procurarei,portodososmeios,defender-te,mesmoantearainha,porquealgomedizquenuvenssombriasseacumulamsobretuacabeça.Ou,semeamas,sedesejasguardar-me,procurareisuportar,semmurmurar,afascinaçãoque exerces sobre mim; mas, então, por ti mesmo Horemseb, renuncia a essa terrível vida decrimes, a esses festins noturnos, a essa horrenda solitude, a essa existência contra a Natureza;retoma o posto que te corresponde na sociedade; antes que seja tarde, toma à convivência dos

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homens,soboazuladodocéu,sobosclarõesdouradosdeRa;fogeaessastrevas,aessesaromasenervantes,aessesespetáculostenebrososqueassassinamtuaalma,gelamteucoração!

Opríncipeescutara,espantado;depois,sombrianuvemcobrira-lheafronte;mas,aconvicçãoprofundaquevibravanavozdaformosaegípcianãodeixoudetododeproduzirseuefeito.Umaboaintuiçãoadvertiaopríncipe.

“Renuncia,antesquesejamuitotarde;Tadar,tambémele,prevêumperigoqueteameaça.”

Comumlongosuspiro,passouamãosobreatesta,subitamenteempalidecida;mas,omalerademasiadamente Inveterado; fatuidadee teimosiavencerama frágil vozdobem.Endireitando-se,comindefinívelsorrir,vergou-separaNeith,e,enlaçando-lheacintura,dissecaricioso:

—Tudivagas,Neith;oamoréoúnicofascínioqueteligaamim,e“essamagia”eunãotenhoopoderdearrancardeteucoração.Mas,porquetesentesdesditosaaqui,parte,vai;nãotequeroreter; segueamargemdo rio, e a primeirabarcaque chegar conduzir-te-á aumdos templosdeMênfis, e de lá a Tebas. Seguir-te não me é dado, pois devo viver aqui; jamais nos reveremos;regressaàtuacasa,esêfeliznosbraçosdoteuesposo,opríncipeSargon.E,agora,adeus!

Inclinou-se,abraçou-a,e, tirandodocintoumarosa rubra,prendeu-anoscabelosda jovem.Em seguida, voltou-se, e, saudando-a com a mão, lentamente reentrou no jardim. Por momentosNeithsentiu-secomoqueaturdida;oaromasufocantequeseexalavadocolardopríncipeedaflorpostanacabeleira jáexerciamsobreelasua terrível influência; todooseucorpo fervilhava; seusfascinadosolhosestavamconcentradosemHoremseb,queseaprestavaafecharaportadojardim.Aopensamentodenuncamaisrevê-lo,nãolheouviravoz,nãotersobreelaocariciosoedominanteolhar,indizíveldesesperodelaseapossou.Não!Antesrenunciaràliberdade,aoSol,aoarpuro,doqueabandoná-lo!Qualarminhosopradopelovento,correuparaofeiticeiropríncipeesealçouaoseupescoço.

—Horemseb!—murmurouanelante—retornovoluntariamenteparamorreraqui.Aconteçaoqueos Imortaisdecidirem!Nãopossoviversemti;mesmocomosoldodia, longedeti,avidaétreva.

Incapazdeprosseguir,apoiouafrontedeencontroaopeitodonigromante,elágrimasférvidasperolaramdeseusolhos,eporissonãoviuozombeteirosorrisodesatisfaçãoquecontraiuabocadeHoremseb.

—Sê,pois,bem-vindaporsegundavezàminhacasa—disse,abraçando-a.

Em seguida, fechou a porta da escadaria, correu o ferrolho, e ambos regressaram sob aespessasombradoarvoredo.Neithinclinouafronte,comaimpressãodequelhecimentavamsobreacabeçaapedradeumtúmulo.Desdeessedia,HoremsebrenuncioufazerNeithassistiràsfestasnoturnas por ele presididas. Ele a poupava, mas lhe agradava a convivência, porque, espiritual,instruídaebastanteilustreparalhefalardeigualparaigual,aformosaegípciaeraemverdadeaprimeira mulher que tratava com familiaridade, pois as que até então lhe haviam passado pelasmãos, belas sem dúvida, eram simplórias e de origem obscura, temiam-no, ingênuas e inocentesvítimas,naqualidadedequasesenhor,adoravam-noqualum ídolo, lábios fechadospelo respeito,ousando apenas murmurar palavras de amor. Neith, menos minada pelo veneno, altaneira ecaprichosa, mordaz e zombadora, reagia sempre contra o efeito do olor enfeitiçado, e essarecalcitrância obstinada, reunida à formosura encantadora, esporeava a depravada alma deHoremseb, despertando um interesse que jamais tivera por mulher alguma, mas tambémarrastando-o a recomeçar o perigoso divertimento, proibido por Tadar. Quanto mais rebelde eorgulhosaelasemostrava,maiselesaboreavaoencantodoexcitamentoeodeemseguidadobrá-la,sobojugodepaixãoinsana;acompanhar,nostraçosmutáveis,nosgrandesolhosexpressivos,todasas nuanças da luta entre o orgulho e o amor, tornou-se para ele uma distração da qual não seprivava,equeafinallheinspirouaidéiadedesposarNeith,porjulgaresseomeioderestauraroshaveres, e de Neith obter o título pouco invejável de sua esposa. Em tais alternativas de paz eguerra,decorreramalgunsmeses.Semqueeleosuspeitasse,a tempestade,preditapelosastros,anunciava-se cada vez mais sombria sobre a sua cabeça de nigromante: dois mortais inimigoshaviamsub-repticiamenteingressadonopalácio,espionandoseusatoseespreitando,avidamente,omomentodeperdê-lo.

Agora, retomemos a narrativa desde o dia em que Ísis transpôs os umbrais do palácio deHoremseb,ehouveentreesteeTadaragraveconversação,duranteaquala soleneexperiência,quelhesdeviadesvendaroporvir,foifixadaparaodiaseguinte.

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V

OFUTUROO dia Impacientemente aguardado por Horemseb raiou, enfim, e, chegada a noite,

encaminhou-seaopavilhãodosábio,no intuitodeajudá-lonosderradeirospreparativos.Todososserviçais receberamordensdepermanecernaaladopalácioque lhesestavadestinadaedaqualnão poderiam sair, sob pena de morte; suspensos quaisquer serviços, Chamus devia vigiarcuidadosamente para que nenhum ser vivo penetrasse nos jardins. A grande câmara, que serviahabitualmentedesaladetrabalhoaTadar,estavaquasevazia,poisosmilobjetosqueainundavamhaviamsidotransportadosparaoapartamentosuperior,esubstituídosporpequenamesadecedro,duascadeiraseum leitode repouso.Aalgunspassosdamesa,estavacolocadoenorme tachodecobrecheiodeáguaatéàsbordas;umalâmpada,postanumrecanto,iluminavaoamplorecintocomincertoemortiçoclarão.Porúltimo,ovelhosábiotrouxeumacaixetarepletadefrascos,quedeixouem tamborete próximo de uma das cadeiras, e, voltando-se para Horemseb, que empilhava,silencioso,muitaspelesdeleopardonoextremodoleito,advertiu:

— Tudo concluído, meu filho; trarei apenas a ânfora cheia de vinho quente, enquanto vaisbuscarNeith.Elabebeuolíquidopreparado?

—Sim,mestre,edormeaquiperto,nopequenopavilhãoazul.Voutrazê-la.

Saiaetornoulogo,carregandonosbraçosNeith,profundamenteadormecida,rostolívidoeocorpo com a inércia da morte. Tadar auxiliou Horemseb a estendê-la sobre o leito de repouso,acomodou os coxins para sustê-la comodamente e a recobriu cuidadosamente com uma pele depantera.Depois, encheuum copo com vinho aquecido, derramandonele gotas de um frasco, e oofereceuaopríncipe,ocupadoematiçarcarvõesacesosnumtripé.Ingeridoovinho,Tadarretiroudacaixetaumpunhadodeervassecaseaspôssobreasbrasas,produzindo-seespessafumaça,quesubiueespalhouna salaumaromaatordoanteeacre.Emseguida,despiu-se,noque foi imitadopelopríncipe.

—Agora,sónosrestaaguardarodeus—disseosábio,sentando-se.Tomalugardefrontedemim,Horemseb,dá-meamão,efirmateuolharsobreaágua:láéqueeleaparecerá.

Mais de um quarto de hora decorreu em completo silêncio;mão fortemente ligada e postasobreamesa,osdoishomensfitavamatentamenteotacho.

—Estougelado,meusmembrosdir-se-iaseremdechumboepicadasdefogomartelamtodoomeucorpo—murmurouopríncipe,sacudidoporviolentoarrepio.

—Pior ainda será, quando as substâncias aromáticas das tuas paixões se retirarem do teucorpo—retorquiuovelho,tambémemvozbaixa.

Nessemomento,Neithemitiuroucosuspiro,emurmurou,comvozapenasinteligível:

—Elevem!

Horemseb estremeceu, e um supersticioso temor cobriu-lhe a testa de gélido suor. A águaagitou-se, placas vermelhas e amarelas sulcaram a superfície, e depois, do centro do recipiente,subiu, turbilhonando, umanuvemenegrecida, ao centrodaqual eramvistas distintamente váriasmãosvermelho-incandescentes,qualsefossemdemetalfundido.

Amassainformeaproximou-serapidamente,envolvendo,qualnegrovéu,acabeçaeopeitodeHoremseb,queseretesoudeencontroaoencostodacadeira,murmurando,comavozsufocada:

—Éamorte;arrancam-meocoraçãoeocérebro!

Tadar reteve convulsivamente amão do discípulo, a qual forcejara para libertar-se. Estavaamarelo, lábios nervosamente trêmulos; mas, o olhar, claro e faiscante, seguia, com agitadointeresse, o estranho emaravilhoso espetáculo que se desenvolvia ante ele. De todo o corpo deHoremsebdesprendia-seumachuvadecentelhasmulticoloridas,queasmãosdefogocondensavamemcompactamassaetomavamaformadeumcometa,oqualrecuavacomanuvemnegraatéaotacho,flutuandosobreaáguaepermanecendounidaaocorpodopríncipeporlargafaixaígnea,quelhebrotavadopeito.Durantealgunsmomentos,todaessamassaredemoinhoucomoqueemfusão,produzindo um ruído crepitante e fraco; asmãos haviam desaparecido. Subitamente, houve uma

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detonação, e um jacto de fogo deslumbrante, parecendo vir do teto, caiu sobre a nuvem, queviolentamenteseagitouefendeuesumiu,sendosubstituídapelaapariçãodeseteduplicaçõesdeHoremseb,setesombrastransparentescomostraçosdopríncipe,unidasentresipordelgadosfiosdefogo,filamentosessesqueiamconfundir-senalargafaixaígneaprojetadadocorpodeHoremsebeque,comosopradaporimpetuosaventania,tremelicavaesecontraía.

Cadaumdessesduplospossuíacordiferente,lembrandoasdoprisma:odeumaextremidade,vermelha, e o da outra, violeta. Tais corpos, da transparência do cristal, deixavam percebernitidamentetodososórgãosdocorpohumano,trabalhandocomvertiginosaceleridade;asubstânciacomcoloração típicadecadaumdosduplos, circulavaemcascatacintilantenocorpodiáfano,e,sobre esse fundo, com brilhos de jóias, destacavam-se, à semelhança de placas de ébano, duasnódoasunidasporumaartériapreta,sendoqueumadasmanchasocupavaolugardocoração,eaoutra o do cérebro das sete sombras vaporosas. Reaparecendo, as mãos de fogo trabalhavamativamenteemretirardaáguaedoarflamasazuladas,amarelaseesverdeadas;depois,umadelassubiuelançoulargojactodeluzbranca,cegantequaloreflexodoSolnaneve,luzqueseabateusobre um dos duplos de Horemseb, envolvendo-o por instantes, para depois retornar ao espaço,deixandoapenas,nasnegrasplacas,comoquegotinhasdeorvalho.Omesmofenômenoreproduziu-senosoutrosseisduplos,e,emseguida,umaderradeiratorrentedeluzinundouatodos,oscorpostranslúcidos fundiram-se em um único e, depois, a massa purpurina, estriada de veias pretas,volteou,qualtorrente,nafaixadefogoecomestasubmergiunocorpodopríncipe.Estesuspirouroucamente,e,semgrandedemora,abriuosolhos,reaprumando-se.

—Forammedidastuasemanações—murmurouosábio—mas,lúgubreseconfusasforamasvibrações.

Interrompeu-se, porque, nesse instante, uma ígneamão reapareceu, traçando sobre a águacaracteresfosforescentes,quesumiamàproporçãoqueovelhoosdecifrava.

—Vaisvercenasdedistanteporvireoutrasdetemposmaispróximos,concernentestodasàtuaexistênciaemépocasemquetodososoravivosterãodescidoàtumba.

Palpitantedeávidacuriosidade,Horemsebpendeuparaafrente,fixandoumanuvemazuladaqueseerguiavagarosadotacho.Gradativamente,anuvemagrandoueadquiriuaformadeImensoglobo, que ocupava todo o fundodo recinto, cujas paredes pareciamampliadas e o teto afastadoparalhefornecerlugar.Aocentrododiscodeluz,vacilavamnuvensque,porinstantes,ocobriraminteiramente, para recuarem depois, amalgamando-se todas, em seguida, em torno da placaluminosa,quemudara totalmentedeaspecto:asuperfície,polidaecintilante, transmudara-seemdesproporcionada área, circundada de construções em estilo arquitetônico de todo diferente doegípcio, tendoao fundograndeedifício, oqual seatingiaporescadarias;mas, coisaestranha, asparedesdetalprédiopareciamtransparentes,mostrandoaHoremsebquantoocorrianointerior,eláseviacolossal ídolo,emredordoqualsemoviampadrestrajadosdebranco.Omonstroestavaincandescente e imenso braseiro chamejava-lhe por dentro. Em todo o local, e bem assim nosarredoresdotemplo,enxameavagente,formandofileiraslateralmenteaextensocaminho,peloqualavançava lúgubrecortejo:mãos ligadaspara trás,acorrentadosumaooutro,marchavamhomensnus,fisionomiasferozesedesesperadas;soldados,providosderelhoseaguilhões,faziamavançar.Qualdesproporcionado listrão,a intérmina filade infelizesatravessavaapraça,subiaaescadae,chegadosanteo ídolo,umapósoutroera lançadonavoragemdefogo, incinerantesentranhasdeum deus insaciável de vítimas. Pormomentos, a procissão detinha-se junto de grande e elevadatribunasobreaqualseagrupavammulheres, tocandoharpae instaladasà frentedo tablado.Emumadetaisparadas,umdosprisioneiros,avantajadoevigoroso jovem,decujocorpo,cortadodechicotadas,manava sangue, voltou a cabeça e seu olhar, turbado e fero, buscou o deHoremseb.Gélidoarrepioestremeceuocorpodopríncipe:nopreso,sobcorrentes,nu,degradado,pareceu-lhereconhecerasuaprópriapessoa;nãoeramosseusfiéistraços,mas,ocoraçãoaceleradogritava-lhe:

—Éstu!

Ocortejoprosseguiu,e,quandooprisioneirosósia,aoqualparecialigadaaalmadofeiticeiro,franqueavaoliminardotemplo,asnuvensdilataram-seecobriramtodaacena.

—Éimpossível;enganei-me;nãopossomorrer!—balbuciouHoremseb—apertandonasmãosafronteperoladadesuor.

Imediatamente, o disco revelador absorveu toda a sua atenção. O cenário cambiava deaspecto, e, desta vez, o príncipe estremecia de júbilo: a rua, margeada de casasmulticolores, aextensa aléia de esfingesque a confinavapor umcolossal “pylone” (pórtico típicoda arquiteturaegípcia) não era uma vista deMênfis? Sim, decerto! Lá se elevava, à esquerda, bem conhecido

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obelisco,eaturbaquecirculavaalegrementereunia-sepertodeumatribunasobreaqualestavauma cadeira, encimada de dossel. Eram autênticos egípcios, com suas vestimentas brancas e“clafts” listrados. E quem era aquele guerreiro, coberto de armas preciosas, que avançava,montando admirável cavalo branco, seguido de enorme escolta? No pálido rosto do cavaleiro,molduradoporbarbadanegruradoébano,doisolhos,grandesesombrios,vagueavamindiferentespelaturba.Chegadoemfrentedatribuna,apeou-se,subiuesentou-senotrono,emredordoqualseagruparamguerreirosdaescolta,dignitáriosegípcioseosporta-abanosreais.

—Desta vez sou eu, e serei Faraó! — pensou Horemseb, com orgulhoso agrado, que lheinundouocoração.

Pelaaléiadasesfinges, caminhavaagoraumbemconhecidodesfile: cantoresecantorasdotemplo, padres conduzindo estátuas de deuses. Era a festa de Apis, porque também ali estava oanimalsagrado,comenfeitesdefloresetirinhas.Afestaeaprocissãoemqueeraparteagora,opríncipeconhecia-amuitobem,mas,seuolhartambémrecaiuvivamentesobreaquelasuaprópriapessoaláfigurante,elevado,semdúvida,pelaextinçãodadinastiadosTutmés,aotronodosfaraós.Mas,quesignificavaistoagora?Aoredordarealcadeirasurgiam,umaapósoutra,mulherespálidasedesgrenhadas,exibindonopeitonuescancaradoferimento,enasmãos,erguidas,sacudindorosasvermelhas.Amultidãohorrendaaumentavarapidamente,formandocírculoemredordorei;depois,umadasmulheresdeslizouparajuntodele,sentou-senobraçodapoltrona,enlaçouopescoçoreal,e,comaoutramão,agitouumfeixederosasrubrasdiantedosolhosdoguerreirocoroado.

O pálido semblante desta mulher estava contraído pelo ódio e sofrimento; desmesuradoscabelosruivos,soltos,pareciamenvolvê-laqualvéudeflamas.Comhorrorizadoespanto,HoremsebnelareconheceuNeftis.Ohomemsentadonotronomostravaressentir-sedeextraordináriaemoção;sua fisionomia avermelhara-se; nos olhos, exageradamente dilatados, luzia demência. Nesseinstante, o turbadoolhar fixou-se sobreoboiÁpisquepassavaem frente da tribuna, e, como sefossepicadoporumaserpente,pulouparaoanimalsagradoeoabateucomumpunhalqueretiraradocinto(19).Asnuvensvelaramotumultoquepareceuseguir-seaoatosacrílego,eHoremsebnãoserefizeradaemoçãoquelheagitavaopeito,quandoumnovoquadrojáselheofereciaaoolhar.

(19)Este episódio, na reencarnaçãodeCambises, é histórico emencionadopor vários autores.Esse rei persa (529-522a.C.),quedominouoEgito(em525), fundouaXXVII*dinastia.Médium, instrumentodeEspíritosterríveis,era,segundoMaspero(Op.clt.,pág.694):“desdeainfânciaacometidodecrisesdeepilepsia,duranteasquaistornava-sefuriosoesemconsciênciadesuasações”,doençaque(conformeesclareceHeródoto,livroIII,33)entãoeradenominada“gotacoral”ou,segundooutros,“morbosagrado”.FuriosoporinsucessosnaAírica,entrou,derrotado,emMênfis,naocasiãoemqueospadrescelebravamemfestaaentronizaçãodoboiApis.Cambises,supondoqueo júbilopopulareraregozijopelosseusrevesesguerreiros,supliciouossacerdotesematouopseudo-deussimbólico,oboiApls.Cambisesmorreudemodomaisoumenosmisterioso,admitindo-sequesehajasuicidado.

Destavez,áridasuperfície, juncadadecadáveresaperderdevista;guerreirosdepontudoscapacetes, caras barbadas e selváticas, perambulavam em bandos no campo da carnagem,despojandoosmortosemutilandoos feridos.Umdosgruposretirou,domontãodessesdefuntos,umhomemevidentementeatordoado,poisseucapacete,comornatosemrelevo,estavaamolgadoeamãocontraídaseguravaumaespadapartida.Entreasmanoplasdossoldadosohomemtornouasi,mas o seu ar altaneiro, ou imprudente palavra, teria ofendido os vencedores? Semdemora, araivasedesencadeou,e,numpestanejardeolhos,odespojaramdasvestes,cortaram-lheonarizeasorelhas,abandonando-odepoisdevazarem-lheosolhos,aririronicamente.Ainfortunadavítima,quenãosucumbiraaessashorríficasmutilações,arrastava-seerranteentreoscadáveres,mascandoervasparadistrairafome,buscandoemvãocomqueatenuaradevorantesede,paraalfimtombarsemforças,retorcendo-sedesesperado.

Esserostosangrento,desfigurado,nãocondiziacomHoremseb,masasuarespiraçãoteveumcolapso,porque,emtornodomutilado,surgiadenovoamassaesguedelhadadasvítimasdeMoloc,sacudindoasvermelhasrosas,contemplandoodesgraçadocomzombadorasatisfação,eapontando-lhe,distante,amágicavisãodopaláciodeMênfis,doNiloaoclarãodaLua,dabarcamaravilhosasobreoscoxinsdaqualsepavoneavaonigromantepríncipe.

RodopiavaacabeçadeHoremseb,seupensamentoconfundia-se,eteveímpetosdefugir;mas,invencívelforçaprendeu-oàcadeira.Muitasvisõesseguiram-seaesta,tãodepressadetortura,tãodepressaderiquezaepoderio,masopríncipecompreendia-ascadavezmenos, tãoestranhas lhepareciam as construções e as personagens e a própria Natureza, completamente transformada.Três, porém, de tais visões causaram-lhe particular impressão: a primeiramostrava uma câmararedonda,cujasparedeseramforradasdetapeçariascompersonagenseiluminadaporduasaltaseestreitas janelas.Temperadaluzenchiaoapartamento, filtradaatravésdevidrosmulticoloridos,edistribuindo-se sobre maciços móveis e cadeiras de altos espaldares esculpidos. Em um dessesassentos,via-seformosojovem,deexpressãoaltivaezombeteira,edepé,juntodele,enlaçando-lhe

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o pescoço e fitando-o apaixonadamente, uma franzina e alta mulher, trajando negra e longavestimenta,acabeçacobertadevéu,tendoaopescoçoumacadeiadeouro,daqualpendiafaiscantecruz.Talmulher,Horemsebnãopodiaequivocar-se,eraNeftis,eohomemsentadoeraelemesmo.Opríncipevia-osconversar,sempercebersomalgum,enoentantocompreendiaqueelafalavadeamoredeciúme,eexigiaqueadesposasse,aoqueelerespondia,comsorrisoegestosignificativos,que,paracontrairmatrimônio,haviaentreambos“quatroolhosdemais”.Acenametamorfoseara-se,mostrandoumaposento iluminadopor lamparina,aofundodoqualseelevavagrande leitodecolunatas.Neftis,pálidaedesgrenhada,dobrava-separaduascriançasadormecidas,murmurando:

—Quatroolhosdemais!

Depois, qualquer coisa lhe brilhou na mão, abaixando-se rapidamente sobre a cabeça dospequenosadormecidos,eamãecriminosafugiaespavorida,ecorriaparaohomemamadoecujaimagem flutuava ao longe; mas, à aproximação, ele se voltava, com horror e desgosto,desaparecendonabruma.Neftisficavasó,mas,emseuderredor,tudomudava:umlongocorredor,escassamenteiluminado,desenhava-se,e,lentamente,olharfixoeperscrutador,mãoscruzadas,eladeslizava,vestidadanegraroupa;aoavizinhar-se,porém,todoslhefugiam,loucosdeespanto,e,aisso,umsorrisodecruelzombariacrispavaoslábiosdoespectro,mensageirodedesgraça.

Quandodenovoasnuvens, apartando-se, desvendaramumapágina futura, os raiosdaLuailuminaram,qual espelho, a superfíciepolidade imensa toalha líquida:umabarca, transportandonumerososhomensesoldados,decujasarmasa luz fazia tremeluzir reflexosmetálicos,deslizavasobreaágua,aproximando-serapidamentedegrandeesinistraconstrução,erguidaàsbordasdomar e da qual as torresmaciças sombreavam na água suas silhuetas dentadas. Quando a barcaacostoueospassageirossaíram,Horemsebviuqueumdeles,aoqualosoutrosfalavamdecabeçadescoberta,tinhaorostocobertopormáscarapreta.Emseguida,reviuditohomemsozinhoemumacâmara,cujaestreitajanela,gradeada,estavaquaserenteaoteto;amáscaracontinuavatapandoorostodoprisioneiro,quecaminhavaagitado,e, tristeedesencorajado,sedeixouafinalcairnumacadeira, parecendomesmonão se haver apercebido de que, do recantomais escuro, surgia umaformafeminina,vestidadenegraroupagemdecauda,cadeiadeouroaopescoço.

Retirandodoseioumarubrarosa,avisitanteagitou-aporcimadacabeçadoprisioneiro,e,inclinando-separaele,pareceuciciar-lhequalquer fraseaoouvido. Imediato,maravilhosoquadrocomeçouadesdobrar-se,retirandoaosonhadorosmurosdaprisão;viusoberbopalácio,rodeadodejardins, depois salas, de paredes douradas, plenas de luz, e nas quais se acotovelava verdadeiramultidão de homens e de mulheres recobertas de pedrarias; lá, sob elevado dossel, de muitosdegraus,sentava-seumjovem,decopiososcaracóisdecabeloesparsossobreodorsoeespáduas,comlargafaixaazulnopeito,eummantoflordelisado,comforrodearminho,presoaosombros.Abrilhanteturbadesfilavaanteoestrado,saudando,curvada,obelorei,olhando-o,comadoração,erecebendo emdomprecioso um sorriso ou palavra de seus lábios. Tomado de selvático ciúme, oprisioneirosaltou,rasgandoasvestesnaalturadopeito,tentandoarrancaramáscarafixadasobreorosto,batendoacabeçadeencontroàsparedes,qualinsensato.

Lá, liberdade, poderio, adulação, amor; aqui, solidão, cárcere, morto-vivo. O contraste erapara destroçar a alma e arrebatar a razão. A misteriosa visitante havia recuado, e, lentamente,levitado; seupersistenteolhar,brilhantedeódio,miravaoencarcerado,parecendosaborearessedesespero;umsorrisodecrueldadesatisfeitabanhou-lheadescoradaface,emurmurou:

—Teusolhosdestavezéquesãodemais!

Declinandoobliquamenteparaoladodajanela,sempresuspensanoar,atravessouasgrades.Nesse instante,Horemseb identificouNeftis.Comumcavernososuspiro,oprínciperetesou-senacadeira, cheio de terror e medo desse porvir que evocara, e lhe apresentava tão lúgubres eameaçadores quadros. A vida eterna, tão almejada, era tão terrífica e a morte não se tornavapreferívela issoquehaviavistoeteriadepadecer?Oh!porquetinhaeleerguido, imprudente,ovéu que, misericordiosamente, esconde o futuro aosmortais? Por segunda vez, tentou escapulir,mas,seucorpo,pesadocomosefossedegranito,recusavaobedecer,eforçamaisfortedoqueasuavontadelevava-lheoolharparaodiscocintilante,quedenovoserevelava.Essedesfileesmagadoreestranhonãoterminarianunca?

Destavez,via-segrandesala,ondenumerosaspersonagens,ricamentetrajadas,seadensavamjuntodeumtrono,anteoqualjovemhomemestavadepé,comummantodearminhoajustadonosombros—umrei—semdúvida.OcoraçãodeHoremsebinflou:agoraeraele;seutalhe,destroeesbelto, seus grandes olhos, sombrios e sonhadores, seu sedutor sorriso. Essa alta hierarquiaacenava-lhe, enfim, com uma existência sem escuridades, repleta de glórias e poderio. Ancho dealegria e de orgulho, curvou-se paramelhorminuciar,mas, com arrepio de pavor, atirou-se paratrás: as sombrasque surgiam,umaauma, nosdegrausdo trono, eramnovamente as vítimasde

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Moloc.Sanguemanavadesobosvéusdenegridosqueascobriam;seusolhareseramameaçadores,enasmãoscrispadasbalançavamasfataisrosasvermelhas.Desseassédiohostildestacou-semaisdistintamente uma esguia mulher, vestida de preto, cruz refulgente ao peito. Seu descoradosemblanteeraimpassível,mas,nosgrandesolhos,esverdeados,bailavaimplacávelódio.Instalando-seaoladodojovemrei,pousou-lheamãonaespáduaeosgeladosdedosmergulharamnoarminho,eumsom,apenasacessívelaopensamentodeHoremseb,saiudoslábiosdoterrificoespectro:

—Quatroolhosdemais!E tu,agora, ficasozinho;nenhumaesposaseassenhorarádo lugarquemepertence;passoapasso,nósteempurraremosparaoabismo;nósteisolaremosdetodos;nóstearrancaremosessacoroa,quetedápodereriqueza;entretiecadaviventequepretendasamar,seinterporáumadenós;quisesteonossoamor:queeletebaste!

Comosetivessesentidoapresençadoaterradorcortejoqueoprendiacominvisívelcadeia,oolhar do moço rei se obscureceu; passou a mão pela fronte pálida, como que para afugentarimportunospensamentos.Emseguida,ergueuosolhosparaocéueentãoumasombra,alvaepura,dobrou-separaele,dizendo:

—Trabalha,sacrifica-tepeloteupovo,eora:serásmaisforte,eteusinimigosrecuarão;mas,nãoteesqueçasdequeaociosidadeteentregaráemsuasmãos.

Ojovemrei,obedecendoaestaboainspiração,imiscuiu-senaturba,buscandoumapoioentreoseupovoeosdignitáriosqueseagrupavamemseuredor;por todaparte,contudo,assombrasvingativasseintrometiam,soprando-lheloucospensamentosetoldando-lhearazão.Mudandopoucoapouco,oimplacáveldiscorefletiuumacenatrágica:alutadesesperadadedoishomens,àbordadeumlago,cujaságuasplácidasbemdepressaserviramdetúmuloaambos.Anoitedesceusobreesselocaldeinfortúnios,eemtalescuridãodesfez-seesumiuigualmenteodiscoluminoso,espelhoincoercíveleaterrorizantenoqualsehaviamespelhadooscrimes,asexpiaçõeseaslutasfuturasdobruxodeMênfis.Esmagadopelomedoepelohorror,mortalmenteexaurido,Horemsebabateu-senacadeira, em completa prostração.Não viu Tadar levantar-se, lavar o rosto e asmãos na águadotacho,e,depois,aproximar-sedele,comumfrasco.Somenteapóshaverovelhosábiolheesfregadoastêmporasepostoovidrosobasnarinas,abriuosolhos.

—Lava-tenaáguadotacho,meufilho,vestearoupaedepoisbebedestecopo.LogoqueeudesperteNeith, leva-aparaseusaposentos,poisnecessitarádemuitassemanasdedescansopararecuperar-sedanoitedehoje.Etu,igualmente,vaidormir,porqueestásesgotado.

Aproximou-sedeNeith,que,inteiriçadaegélida,jaziaqualmorta,elheprodigalizoucuidados,enquanto o príncipe obedecia silencioso às suas determinações. Depois de haver abanadoviolentamenteNeith,elheescorridonabocaumasubstânciaavermelhada,ajovemteveumbruscosobressaltoereabriuosolhos;mas,quebrantada,seuextremoestadodefraquezanãopermitiuficardepé.Sombrioepreocupado,Horemsebdespediu-sedosábio,e,soerguendo-a,reconduziuajovemao palácio, onde a deixou no leito, rumando em seguida, ele próprio, para o seu aposento, e seabateunacama,adormecendosemtardar,numsonomaisparecidoaesvaimento.

NOTADOAUTOR—Foimuitodifícilescreverocapituloqueaquiterminou.Pretendendoreviverestranhosacontecimentosdelongínquopassado,repetidasvezesfaltaram-mevocábulosparaexprimircomclareza,efazercompreensíveis,aosvivos,assuntostãoescassamenteconhecidosainda.Otecidoinvisível,envoltóriodanossaalma,édifícildeapreenderemuitosleitoresnelenãoacreditam,semembargoderepresentarimensopapelemnossavidaespiritual.

Mas,asdescobertassesucedem;JáaCiênciarocaaredefluídicaquefazfuncionaroInvisível.Maisumpasso,eelaconstataráa suaexistência.Mãos Inábeise indecisas tateiamaindanessemundonovo,porém,omagnetismoanimal, ohipnotismo, a sugestão mental Já fizeram larga brecha nos velhos preconceitos e revelaram faculdades da alma,desconhecidasatéentão,ediantedasquaisoshomensparamestupefatos.Aseupesar,sábiosrecalcitrantessãoarrastadospara uma estrada onde encontrarão maravilhas, de cuja existência nem sequer suspeitam. Almejo que minhas obrasconcorramparaapressaromomentoemqueaCiência,vitoriosa,descobriráocorpoastral,penetraráasleisqueregemaalmaeanalisaráosaromas(eflúvios,emanações)daspaixões,comamesmaexatidão,atingidahoje,comquedeterminaasvibraçõesdaluz,avelocidadedacorrenteelétricaemedeasdistânciasqueseparamosastros.Repito:descrevercoisastãoescassamente conhecidas, custoumuita dificuldade e labor; esforcei-me por ser claro e verídico, tanto quanto possível.Assim,acenaqueprecedeasvisõesérigorosamenteexata:éadescriçãodasmanipulaçõesedoprocessoinvisívelqueumEspírito deve empregar, quando deseja sondar o estado de uma alma e fixar, aproximativamente, seu futuro, deconformidadecomosinstintosquevivemnelaecomaspaixõesqueaindanãoforamdominadas.

Noqueconcerneàsvisõespropriamente,paranãoentediaro leitoremanternaminhaobrao interesse literário,tivedeasmodificarumtanto,nãonofundoesimnaforma:grupeiascenasmaisinteressantes,edeirelevoaquadrosquepassaram vagos e quase incompreendidos ante o criminoso egípcio, contemporâneo dos Tutmés. A diferença enormetrazidapelosséculosaoscostumes,vestuários,idéias,etc.,tornaramquaseletramortaparaHoremsebessasexistênciasdeporvir, das quais era incapaz de apreciar o alcance; o Espírito que, sob o nome de Moloc, dirigiu a sessão, não lhe

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emprestouaexatidão,nemaordemcronológicaquefizobservar:inteligênciacruelezombeteira,desejavaimpressionareamedrontar, e isso conseguiu. Aproveitei esse episódio para esclarecer o leitor espírita, que acredita na reencarnação,sobre as vidas de provação e de expiação padecidas pelo feiticeiro deMênfis. Com tal intento, precisei, pelo vestuáriocoloridodaépocaedecenasbemconhecidas,suasvidasmaisfrisantes,maisprópriasparafazersentiropapelimensoqueopassadorepresentanopresentedecadacriatura.Assim,elefoi,alternativamente,Cambises,quealoucuraprendeunaterraegípciaondehaviapecado;oamantedasombriaCondessadeOrlamunde;oMáscaradeFerro,devoradodeciúmes,sonhandopompasdeVersalhesnoseucalabouçodailhadeSantaMargarida;enfim,odesditosoreiLuísIIdeBaviera,cujaterrívelobsessão tinha raízesnopassado,noaromanefastodoqualo seucorpoastralaindaseachavasaturado,equeformavaumeloentreeleeassombrasvingativas.

Estas, ai de nós! não querem perdoar, e, depois de milênios, perseguem sem descanso seu antigo perseguidor,envenenando as sendas de provas onde o poder lhe foi concedido, escarnecendo-o impiedosamente no infortúnio e naexpiação.

NãopossoresistiraodesejodedizeralgumaspalavrassobreaúltimaexistênciadonigromantedeMênfis,sobreesseJovemrei,tãoricamentedotado,cujavidaestranhaetrágicamorteforamumenigmaparaosseuscontemporâneos.Esclarecido e depurado pelas provações, expiação e arrependimento, colocado, por seus Guias, em situação que lhepropiciavaoportunidadedeexperimentar forcas, opoderqueadquirira sobreos instintosdopassado, faltouaLuís II aenergiaeaperseverançaparatrabalhar,ininterruptamente,pelobemdoseupovo;nãoatendeuàvozintimaeamigaqueoinspirava—"sóotrabalhoéútil”;aprecehumildeesinceraeodevotamentoaosinteressesdoseupovopoderiammanter,adistância,os invisíveisadversários, romperacadeiadeseresrancorososque tentavamapoderar-sedele.Talcoragem,repito, o jovem rei não teve; deixou-se envolver e subjugar pelas fúrias que o seguiame irritavamos sentidos, fazendoressurgiranteseuespíritoosquadrosmeioesmaecidosdelongínquopassado.

Tal qual Horemseb, abandonou-se a perigosa ociosidade, que lhe transmudou a vida real em sonhomalsão. Emconsequênciadesteúltimoembateàvida fracassada,encontrouaquelequehaviaoutroraarrastadoopríncipeegípcioàsendado crime:Tadar, o sábiohiteno.Pobre edesconhecidodamultidão, quenãoqueria compreender e apreciar suascomposiçõescaóticaseinarmônicas,oantigosacerdotedeMolocreencontrouoantigodiscípulo.Apaixonadoetenaz,aindana ebriedade do passado,mordido pormil sofrimentos, impetuoso e revoltado contra toda a lei de harmonia humana edivina, a alma deWagner buscava uma salda para esse caos interior nos sons, atordoantes quanto a planta que haviacultivado,selváticosediscordantesquantoeramastempestadesquefervilhavamnele.ParaLuisII,aestranhamúsicafoitodaumarevelação:essasnotas,quesibilavamsemelhantesaventosdesencadeados,ululavamqualborrasca,embalavamcomosefossemcantaresjuntodeumberçoparafundirem-se,inopinadamente,emmelodiavoluptuosaesuave,evocaramnaalmadomocoreitodoummundoderecordaçõesvagas,confusas,masenervantes.Essaspotentesvibrações,queeramavozdopassado, tornavam-se incompreensíveisparaopúblico, quepodia sentir apenasa emoçãodealgograndiosoedesconhecido;paraLuisII,essessonsconstituíamoeloqueoligavaaHoremseb,espanavamapoeiradosséculos,faziamvibrarsensaçõesignotas,acalentavam-nocomvisõesfantásticas,eassimsevinculouaocompositorignorado.Seuouroeseupoderioabriram,talcomooutrora,ocaminhoaTadar;omundoaclamouumgrandemaestro;opúblicohabituou-seàsombria e inarmônicamúsica do gênero da almado seu criador; admirou essa expressãomusical de rudes e selvagenspaixões.Mas,paraoJovemreiessereencontrofoifatal:sobaimpressãodasvibraçõesdopassado,suavontadefraqueou,assombrassangrentas retomaram impériosobreele,envolvendo-omaisdeperto, separando-o,gradativamente,de todarelaçãocomavidaconcreta,comafamília,deveresesúditos.Ensombrecidodeespíritoedecoração,buscandoanoiteeasolitude, perdido em fantásticas quimeras, o infortunado monarca construía, ilusoriamente e sem interrupção, orareproduçõesdaVersalhestãocobiçada,oraasfortalezaseascabanasdelendáriopassado.

NãotentoureconstruiropaláciodeMênfis,porquevagosentimentodemedoehorroraissosempreseopôs.CadavezmaissubjugadopelosadversáriosInvisíveis,queoafligiameoempuxavamparaoabismo,LuísIIperambulouaalma,atenazada por mil tormentos incompreensíveis, pelos castelos desertos, arrastando o real manto nas galerias vazias eiluminadaseque,sóparaele,sepopulavamdelegiõesdesombrasrevindasdotúmulo,enquantoemseuredor,voltívolas,motejadoraseplenasderaivasatisfeita,asvítimasdeMolocbalançavam,àguisadetroféus,porsobreasuacabeça,asvermelhasrosasdobruxodeMênfis.Afatalidadeprosseguiu,seucaminho,esomentequandoacoroa,essebaluartedoseupoderio e orgulho, devia ser-lhe tirada, para salvação do povo, os inimigos recuaram: Neftis, a sombria Condessa deOrlamunde,ogêniomaudorei,abandonou,e,subitamenterestituídoàrazão,elecompreendeu,emtodaanudez,oterríveldesuasituação:destronadoetidoporlouco(eeleestiveradesassisado,emverdade),emboranãomaisseencontrasseemtalestadonesseinstantedehumilhação.Osgrandessábiosqueoassistiameconstataramadoençacerebralnãopuderamdebelá-la, nem compreender a reviravolta mental, pois não admitiam a enfermidade da alma, nem acreditavam nasInfluênciaspoderosasqueopassadoexercesobreavidapresentedascriaturas.Tudoquantoturbilhonouemdesesperoevexame no espírito do rei destituído — é difícil descrever; mas, exercitando astuciosa cautela na própria desgraça,dissimulouacóleraebemassimaaversãocontraomédicoqueoassistia,IgnorandoqueesteeraAmenófis,umdospadresdeMênfis, que, implacavelmente, havia agido contra ele no processo de feitiçaria. Instinto odiento, porém, surgido dasprofundezas do passado, inspirou-lhe o desejo de destruir o esculápio: uma luta, combatemortal foi travado nas águasentreoreieovigorososábio;comadecuplicadaenergiaqueadesesperacãomomentâneaempresta,omonarcavenceu,esóolargou—morto.Oesforço,porém,excederadasforcaseoexaurira,demodoquesedesgovernouacabeça,perdeuoapoio no fundo escorregadio do lago, atordoou-se, teve vertigem e tombou também e... a alma se desprendeu doatormentadocorpo.Representara-seumdosmaissurpreendentesdramasdostemposmodernos.

Mas,acimadolugardadesgraça,rodopiava,qualmanchanegra,oenxamedasInteligênciasvingativas,destilando

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naatmosferaoolordeletérioqueashaviavitimado,edoqualosrebeldesEspíritosnãoqueriamseparar-se.EspionandooEspírito liberadodonigromante,estesprecipitaram-sesobreele,acorrentando-onosítiodoseucrime, increpando-oporumpassadosemprerevivescidoparaessassombras,porqueoInterregnodosséculosnãoexisteparaoódio,eotempoéumsopronaeternidade,quenãomensuraafaúlhainextinguíveldaalma.Nãosesuponhaquenasuperfícieespelhantedolagopossabalançar-seestranhogrupo,emmeiodoqualsedebateumEspíritoatormentadoderemorsosearrependimento;mas,tristedaqueleque,ligadoporalgumfiodesconhecidoaessepretéritotempo,venhaabsorverimprudentementeoodorfatal que plana sobre esse local funesto! Inacessível aos sentidos grosseiros, esse perfume sutil e deletério invade otemerário,ensombrece-lheocérebroeoarrojasempiedadenaságuastransparentesondeestácravadaaalmadofeiticeirodeMênfis.

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VI

DERRADEIROSDIASDEPODERIODezdiashaviampassadodepoisdanoiteemqueofuturolevantaraovéuparaHoremseb,e

Ísisaindanãoavistaraoseusenhor.Opríncipe,disseraChamus,estavaenfermo,servidoapenaspelovelhoHapu;todososdivertimentosnoturnosestavamsuspensos.Opasmoentreacriadagemeraenorme,porquejamaissemelhantecoisaforavista;mas,ninguém,porumaexpressãodeolharsequer, ousara formular qualquer pergunta a respeito. Aguardavam todos, entristecidos edesencorajados,querecomeçasseasuacorvéia.

ApenasSargonestavapresadeindizívelagitação:quesignificavaainvisibilidadedeNeithedeHoremseb, desde anoitemisteriosa emqueo acesso aopalácio e aos jardins fora interdito atodos?Queocorrera,então?Milsuposiçõesretorturavamojovemhomem,despertandoumasvezesociúmeeoutrasoreceiodeumaadversidade.Rilhandoosdentes,jurouasimesmoque,tãologoadquirisse qualquer certeza sobre a sorte da esposa, fugiria, para dar imediato final àquelaintolerávelsituação.

Horemsebestiverarealmenteenfermo,dealmaedecorpo;asmúltiplasemoçõesdaterrívelnoite haviam-no exaurido de todo, ocasionando uma turbação no cérebro, que não lhe permitiacoordenar os pensamentos. Durante alguns dias, permaneceu na cama, atristado e abatido,rememorandoquantohaviavisto,etentandoorientar-seeinterpretarocaosdaquelavidavindoura,tãobizarramenteamalgamadademisériaedegrandeza.Aofimdessetempo,suaflexívelnaturezacomeçouareadquiriraplenitude;oorgulhoea fatuidadeporauxiliares,eleexplicouasimesmotudo para sua glória e honraria, admitindo, complacente, que, no curso de uma existência semtérmino,algumasgotasdeamarguranãopodiamdeixardecair.Noentanto,oorganismoaindaseencontravaquebrantadodemaisparaapetecerashabituaisdistrações.

Enfim, na tarde do décimo primeiro dia, Chamus veio pedir a Ísis que se aprestasse parapartilhardarefeiçãodoseusenhor.Agitadapornervosotremor,amoçaenfeitou-se:iadefrontaromais perigoso momento da sua voluntária missão; os deuses a ajudariam a evitar os efeitos doperniciosoaromaearepelirovenenoquelheseriaoferecido?Aopensamentodeserdominadapelofeitiço, de ser forçada a amar o odioso homem, que destruíra os seus e que ela detestavamortalmente, sentiu vertigens. Ardente prece reconfortou-a; os Imortais não lhe podiam recusarproteçãoàjustacausa.

Assim,quandoChamusveiobuscá-laeadeixounagaleria,recobraraacalmaeaenergia,epreparava-se para simular amor e humildade em face daquele que ela pretendia destruir. Semdemora,viuaproximar-seopríncipe,àfrentedocostumeiroséquito:estavapálido,masimpassível,eseuolhar,ásperoeglacial,percorreuagaleriaprocurandoanovavítima.Nervosamentetrêmula,Ísisprosternou-se,e,mãoscruzadasaopeito,inclinouacabeçaatéaochão.Dedosúmidosefriospegaramlogoseubraço,eumavoz,sonoraedoce,disse,bondosamente:

—Ergue-te,belafilha.Umaindisposiçãoimpediu-meatéhojedetesaudar.

Ísislevantou-se,mas,aoencontrarosolhosfaiscantesezombeteirosqueafitavam,baixouafronte.Horemsebsorriu.

—Pegaessasrosasesegue-me,pequena.Nãoseiquenometedê.

—Ísis—murmurouela.

—Belonome,e,porteusencantos,podesrivalizarcomagrandedeusaqueotem.

A refeiçãodecorreucomoerahabitual.Apesardaprecauçãoadotadaparanão respirardasexalaçõesdas rosasenvenenadas, osperfumesnarcotizantes,desprendidosdopríncipeede tudoqueorodeava,reagiamdolorosamentesobreamoça;pesoefraquezainvadiam-lheosmembros,eocoraçãosecontraíadeangústiaevagoterror.Concluídoorepasto,foramparaopavilhãodojardim;Ísis assistiu às danças sobre o tabuleiro de relva, e conseguiu derramar, num vaso de flores, afunesta bebida que lhe estava destinada. Horemseb, longe de qualquer desconfiança, não seapercebeudetal,epartiutranquilamenteparaopasseioaoNilo.Nodiaimediato,foibisadoodavéspera;mas,emvezdoespetáculonarelva,a jovemassistiuaumaorgiaemminiatura,emboranemporIssomenosodiosa,equeterminoucomamortede jovemeformosaescrava.Tomadodesúbito furor, Horemseb precipitara-se sobre a cativa e a estrangulara, e, depois, refeito, masdescontente,deraporterminadaafesta.

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Pelaprimeiravez,abebidaquelheesfriavaosanguenãohaviadesempenhadototalmenteasua função; o aroma que ele espalhava parecia haver-se transformado em fio de dois gumes: asbrutaispaixões,queneledormitavam,despertaram,inspirando-lhe,subitamente,odesejoferozdeafundaropunhalnaqueleseiolindo,eemseguidasorver,alongostraços,oquenteerubrosangue,premir com a boca os lábios abertos na carne pelo ferimento, e saborear, voluptuosamente, osderradeiros estremecimentos daquela vida, que se extinguia para reviver nas veias dele próprio.Mas,bebersanguesólheerapermitidoemdeterminadasépocas,e,recordando-sedessaproibiçãoimpostaporTadar,repôsopunhalnocinto,masavítimahaviaperecidoafogadaemumaconstriçãomortal.

Ísisregressouespavoridaeincapazdeconciliarosono.Porisso,empregouorestodanoiteemescrever a narrativa minuciada dos horrores a que assistira. Pela manhã, quando ainda todosdormiamnopalácio,Sargonesgueirou-senojardimeveioparajuntodogradilqueoseparavadojardinzinho contíguo ao apartamento da moça. Esta aguardava-o já, porque muitas vezes, assim,haviamconseguidocomunicar-semutuamente.Rápida,passou-lheoescrito,recomendandoassiná-lotambém,talqualelaofizera,epô-lonoescaninhocombinado.

—Seambosperecermosnestacavernadebanditismo,essedocumentovaleráporum libelocontraHoremseb,porumaprovadoshorroresquesepraticamaqui—finalizouÍsis.

Sargonfalou-lhedosreceiosquantoàsortedeNeith,edisseque,sedentrodealgunsdiasnãoaencontrasse,fugiria,apesardetudo,eindicouaÍsisumgrandevasocolocadonaaléiaporondeaelaerapermitidopassear,epediuquealidepositassesuasmensagens,poisalitambémeledeixariaassuas. Issocombinado,separaram-se,e,nessamesmadata,ànoite,KeniamunlevavaaNeftisoterríveldocumento,assinadoporÍsiseSargon.

— Conheço tudo isso, e vi igualmente um assassínio mais ou menos assim — disse Neftis,suspirando. Sargon fará bem em fugir o mais depressa possível, pois já temos suficientes provasparadestruirotraidor!

OorganismodeNeithsofreráumgolpebemmaisrudequeodopríncipe,e,durantemuitosdiasqueseseguiramàmemorávelnoitada,ressentiu-sedefraquezaqueaprostroudeitada,imersaem letargo.Contudo,poucoapouco, readquiriu forças, eestranhounãomais reverHoremseb.Oorgulhoeociúmecomeçaramalutar:quesignificavataldescaso?Haviam-lhedito,écerto,queeleestava indisposto, mas não acreditou, por um momento sequer, na veracidade da escusa, emortificou o cérebro para adivinhar as razões da ultrajante indiferença daquele a quem amava.Neithignoravaque,paralheproporcionarrepousocompleto,Tadarproibiraopríncipedevisitá-la.Semembargodociúmequeaminava,Neithpossuíaaltivezeobstinaçãosuficientesparanãotentaratrairopríncipeaoseudomicílio.Aopensamentodemendigarsuapresença,oruborsubia-lheàsfaces,eresolveu,seoacasolhefizesseencontrá-lo,mostrar-lhedesprezoeindiferença.

Certodia,àhoraemque,habitualmente,opríncipenãomaissaíadosaposentos,Neithdesceuaojardim.Enfraquecidaainda,andavalentamente,cabeçabaixa,eabsorta,quando,àcurvadeumaaléia,esbarroucomalguémquecaminhavacélere:eraHoremseb,que regressavadopavilhãodeTadar. Reconhecendo-o, Neith recuou como se tivesse pisado num réptil: o sangue soberbo deHatasuferveu-lhenasveias,dando-lhe,nomomentoeapesardadiferençadetraçosfisionômicos,flagranteparecençacomarainha:omesmoolharchamejanteeacerado,amesmabocadecantosdescidos,exprimindodesmesuradoorgulho,ogestoimperativodainabordávelsoberana.Horemsebdedicou-lhe um olhar admirativo e apaixonado, aquela arrogância real agradava-lhe, e tambémtitilava o amor próprio. Que prazer quebrar, incontinenti, o grande orgulho, mudar o desdém, odesprezo,emamorehumildade!Todavia,recordandoasrecomendaçõesdeTadar,erecuandoumpasso,disse,desviandooolhar:

—Comovaituasaúde,Neith?Oardenteruborqueincendeiatuasfacesfazsuporqueaindaestásenferma.

Achufairônicaquevibravanessaspalavrasmudouimediatamenteoruboremlívidapalidez.

—Éverdadeque,sobteuteto,esquecioquesejacalmaesaúde;entretanto,estoubastanteforteparadeixarestaprisão,eaproveitonossoencontroparatedizerqueaceito,hoje,aliberdadequejámeofereceste.Deixa-mesair,emantereiapalavradadadenãodivulgarnadasobreavidaquelevas.

Por sua vez, Horemseb mediu-a com um olhar de ameaça e surpresa: toda a sua fatuidadearranhadavibrounotom,ásperoeperemptório,daresposta:

—Deviasteraceito,então,eidoembora.Agora,nãopermitomais.

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E,voltandocostas,desapareceunumaaléiaadjacente.

Neith regressou desesperada, e durante horas chorou loucamente, recaindo em debilidade,que a forçou a permanecer dois dias em casa. Na noite do terceiro dia, sentiu-se melhor, porémtristíssima,oprimida,e,porIsso,novamentedesceuaojardim,naesperançadequeoarfrescolhedaria alívio. Esplêndida era a noite: o ambiente doce e embalsamado, o firmamento cintilante demilhares de estrelas, a grandiosa calma da Natureza reagiram, qual refrigério, sobre a almaulcerada e enferma de Neith. Havia muito $ue andava, sem rumo, pelas desertas aléias, quandodistante cantar chegou-lhe ao ouvido. Parou, estremecendo, e, invadida por invencível desejo dereverHoremseb,verificaroqueestaria fazendo,enveredounadireçãodos sonsmelodiosos.Bemdepressaestesficarammaispróximos,eNeitharredou,cautelosa,osramosespessosdeumasebequeaseparavadesítiofartamenteiluminado.

Viu, assimoculta, opequenopavilhãoaberto, noqual ela assistiramuitas vezesadanças ecânticosdosescravos,eHoremsebmeioestirado,conformeseuhabitual,sobreumleitoderepouso,tendoaseuspés,sentada,umajovemdedeslumbranteformosura,dedouradacabeleira,lembrandotrigalmaduro,quelhecobriacostaseespáduas,qualmantosedoso,ecujosbraçosalvos,pejadosdelargosornatos,pousavamnosjoelhosdopríncipe.Este,voltadoparaela,sorrindosonhador,ciciavapalavrasquesópodiamseramorosas.Anteessequadro,difícilédescreveroquesedesencadeounocoração de Neith. Seu pensamento inicial foi que acabava de descobrir o motivo do abandonoinsultante,noqualelavegetava;aidéiadeserpreteridaporoutramulher,ela—quetantoshomensdistintoshaviamidolatradononíveldeumadivindade—subiu-lheaocérebroquallabareda;mistode fúria e cego ciúme cortou-lhe a respiração; avermelhada bruma obscureceu-lhe o olhar.Apertandoopeitocomambasasmãos,comosesentisseromper-seocoração,emitiuumgritosemtimbrehumano,eroloudesacordadanarelva.

Aindaquediminuídopelascantilenas,essegrito foipercebidoporHoremsebeChamus.Deumsalto,opríncipeatingiuaproximidadedasebedesarças,deondepartiraavoz,e,ajudadopeloeunuco, afastou as ramas, deparando, a pouca distância, com o corpo de Neith, estatelada qualmorta. Não a identificando, devido a escuridão, olharam-na de mais perto, e Horemseb, ao ver afilhadeHatasu,começouarir.OrdenandoaChamusquereconduzisseÍsisaopalácio,edesseporfindooespetáculo,levantouNeitheatransportouaosaposentos.

— Veja-se quanto esta louca pequena está enciumada, apesar de todo o seu orgulho! —murmurou, enquanto caminhava. Pobre Neith! Se soubesses como é vão o teu zelo, e quão caroaquelamulherpagaráalgunsolharesamorosos,ficariasconsolada.

Graças aos cuidados que lhe dispensou, a jovem bem depressa voltou a si, mas os olhoscontinuaram obstinadamente fechados. Compreendendo que, para não a excitar mais ainda, omelhoreradeixá-lasozinha,Horemsebretirou-se,dissimulandoumsorriso.

Tão logo ele saiu, Neith ergueu-se, e, por gesto brusco, despediu as servas: bramia-lhe noíntimoumatempestadequeaameaçavatalvezdeperderarazão.Alémdasanhaciumenta,elanãopodiasuportaraidéiadequehouvessedeixadoperceberaextensãodoloucoamorporele,poisnãoignoravaquantopoderiaferi-lanocoraçãoporisso,equenãoperderiaoportunidadedeassimagir.Quanto se divertiria com o orgulho humilhado! Parecia-lhe mesmo já estar vendo o sorrisozombeteiro,quelhefaziaferverosangueesubiravergonhaàsfaces.Frementedesuperexcitaçãonervosa, com tremores febris, trilhava o aposento, retorcendo as mãos e soltando exclamaçõessufocadas.

— Não! Tal viver não pode continuar; se eu não recobrar a liberdade, ao menos podereimorrer,porqueamorteétambémliberdadeedescanso.

Algoabrandadapelaresolução,sentou-senovamentenoleitoderepouso.

— Oh! Roma! — balbuciou ela. — Se soubesses quanto sofro, perdoarias minha traição. Enunca saberás como fui cruelmente punida; enquanto os que me amam choram por mim, morroaqui,voluntariamente,mísera,maisdegradadadoqueumaescrava,privadamesmodesepultura,comosefosseumanimalimpuro.

Escondendo o rosto nos coxins, verteu lágrimas amaríssimas, pranto que a aliviou, emborasemapagararesoluçãotomada.Neitheraenérgica, talqualarainha,suamãe,e,nosmomentosgraves,assumiaaatitudedasfriasdeliberações,oqueconstituíaumdostraçossalientesdeHatasu.Tendochegadoàconvicçãodequeeraimpossívelviverassimmaistempo,nãohesitouemprocurarmorrer. Enxugou as lágrimas e levantou-se. Primeiramente, pensou fazer nó corredio com umacharpa que estava sobre a cadeira e enforcar-se, pendente de um gancho de bronze fixado naparede, porém, mais depressa ainda, repeliu a idéia; esse gênero de morte desfigurá-la-ia. Apre!Todaasuacoqueteriarevoltou-se.Eparaqueisso,quandopodiaafogar-se!

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Sem hesitar por mais tempo, esgueirou-se para o jardim, e correu para o grande lago.Chegandojuntodaágua,notouquetodasasluzesdopalácioestavamapagadas;asombriafachadadovastoedifíciodesenhava-se,qualmassanegra,soboazul-escurodocéulantejouladodemilheirosde estrelas. Por breve minuto, contemplou, olhos fulgentes e coração desbordante de amargor, aesplêndidaprisãoondetantosofrerá:depois,voltando-se,brusca,ajoelhounoprimeirodegrau,e,tirandonoseiopequenaesculturadadeusaÍsis,emlápis-lazúli,presaàcorrentinhadeouro,elevou-a para o alto. De início, orou silenciosamente, porém, exaltando-se cada vez mais, começou aexprimiremvozaltaospensamentosque lhetorpedeavamocérebro, invocandoasdivindadesdoreinodassombras,semesquecerdecitartudoquantorealizaraemhonradetodas,duranteavida,apontando os numerosos sacrifícios, as dádivas soberbas oferecidas aos templos, para obter dosdeusesfossesuaalmalibertadanefastapaixãoporHoremseb.Enfim,levantandoambososbraçosaofirmamento,exclamou:

— Ó Ísis! potente deusa! Osíris! senhor do reino subterrâneo! Anúbis! protetor das almas,perdoai-meporterminarvoluntariamenteumavidaquenãomaispossosuportar;fostessurdosaosmeus rogos, não me liberastes de um indigno amor. Agora, protegei-me nas esferas inferiores,defendei-mecontraosespíritosimpurosquemeassaltarãonasregiõesdepavor;intercedeipormimanteOsíris,nosolenemomentoemosquarentaedoisjuizesponderaremmeucoraçãoemeusatos.PoderosoAnúbis,nãopermitasquemeuduplo(KA)imortalpereçacomaminhaalma,semeucorpoforprivadodesepultura,esenenhumservidordadivindadeabrirmeusolhosemeusouvidos.Meupai, Mena, minha mãe, Tachot, vós, cujos sepulcros estão cercados de honrarias, ajudai-me eprotegei-me!

Levantou-se, beijou o amuleto, e quis descer, correndo, os degraus para lançar-se na água,quando robusta mão segurou-a, imprevistamente, pelo largo cinto de prata que lhe contornava otalhe, e a impediu de mover-se. Emitiu abafado grito, ao encontrar, com turbado olhar, o deHoremseb,que,calorosoeescarnecedor,pareciamergulharfundonasuaalma.

— Oh! Neith! Morrer de ciúmes, tu, a mulher indômita! Tranquiliza-te, jamais amei outramulher.

Elenãoacrescentou:“amoatisomente”,issoporque,verdadeiramente,nãoamavaninguém;naquelecoração,frioepervertido,havialugarapenasparaadoraçãodelepróprio.Ajovemmulhernão respondeu; surpreendera tão-somente a vibração chasqueadora das palavras do príncipe, esentia-semorrer,sobopesodaquelahoradehumilhação.Poruminstante,pareceupetrificada,mas,inesperadamente, abriu o colchete que fechava o cinto e, livre, saltou para atingir a água.Horemseb, que não contava com semelhante gesto, cambaleou e esteve a termo de perder oequilíbrio, porém, firmando-se, transpôs num pulo vários degraus e tomou a pegar Neith nomomentoemqueelasedeixavacairparadentrodolago.

Sustendo-a de encontro a si, voltou e seguiu para um banco distante. Ela não ofereceuresistência; tocara o extremo da debilidade e das resoluções; a cabeça apoiava-se pesadamentesobreoombrodopríncipe,easexalaçõesatordoantesdoenvenenadocolardesteaempestavam,reacendendo-lhenosangueairritaçãoapaixonadaquelheeratãonociva.

NoqueconcerneaHoremseb,elepairavaentreacóleraeaadmiração:nuncatalvezaquelamulherlhepareceratãoformosaquantonessemomento,eafascinaçãoexercidaporelachegouaoapogeu.Denovo,qualocorreradoisdiasantescomaescrava,despertouneleoselváticodesejodefundiropunhalnaquelecorpofranzinoeflexível,ebeberogenerososangue,quedeviaterespecialsabor, porque era de veias fidalgas. Sob o império de tão abominável sentimento, seu sanguefervilhou;cingiuajovemcontraele,quaseaasfixiá-la,ecolouabocanoslábioslívidosdaindefesamulher;mas,umderradeirolampejoderaciocíniofez-lheentreverestaraliafilhadeHatasu,asuasalvaguarda em caso de perigo, e que ele arriscava destruir... Dominando-se, com esforço, ele aafastou, recuando. Grande, porém, foi seu alarme quando Neith, desamparada, caiu e ficouestendida,semmovimento!

—Euamatei!—disse,ofeganteepassandoamãopelatestaInundadadesuorfrio.

Bruscamenteresoluto,apanhouoinertecorpodasuavítima,ecorreuparaopavilhãodovelhosábio, a quem narrou quanto ocorrera, enquanto Tadar examinava atentamente a jovem egípcia.Preocupado,sobrecenhosfranzidos,osábiofalouaHoremseb:

—Insensato!—disseseveramente,pegando-lheobraço.Começoacrer,emverdade,queosImortais querem perder-te, pois obscurecem tua razão e te impelem a destruir o único ser quepoderádefender-teemcasodeperigo.Aquemtenhodadomeusconselhoseminhasordens?Ficasabendo,agora,que, seeunãoconseguir reanimarestadesgraçadacriançadentrodeumahora,estaletargiaéprelúdiodamorte.

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Pálido, lábios contraídos, Horemseb não respondeu à dura reprimenda, e, silenciosamente,ajudouTadar,esórespiroudesafogadoquando,apóssessentaminutosdeesforços,Neithabriu,osolhosefezligeiromovimento.Aumsinal,opríncipeserefugiaraparaofundodoaposento,demodoatornar-seinapercebidopelaenferma.Neith,deresto,estavaemabsolutaprostraçãodeespírito,enão deu resposta às palavras carinhosas e amigas do sábio; porém, bebeu, sem relutância, oconteúdo do copo que este lhe apresentou. Ao termo de um minuto, fechou de novo os olhos, erecaiunaimobilidade.

—Eisoqueénecessário fazer—disseTadarchamandoporgestoopríncipe:emlocalbemarejado, é mister preparar um leito cômodo, para nele repousar esta criança. O sumo que lheadministreimantê-la-áemsonodurantemuitassemanas,oqueénecessário,parasuspenderaaçãodopensamento,queelanãosuportará.Semesteintervalo,morreriadecongestãocerebral,rupturadocoraçãooudomalquevitimateusservos,osquais,comodecursodotempo,parecemincapazesdesuportaroar saturadodosaromasque respiram.Para sustentaras forças, tu lhederramarás,diariamente,dezgotasdaessênciacontidanestevidro,oquecorrespondeànutrição,eseacasoosdentes estiverem cerrados, afasta-os com uma lâmina. A seu tempo, dar-lhe-ei o remédio paradespertar.Enquantoisso,visitá-la-eicadatrêsouquatrodias.

—Nãosepoderiadeixá-laaqui,noaposentosuperior,jáumavezporelaocupado?

—Não,porque ficariamuitopróximadasagradaplanta.Alémdisso,osperfumesqueestoupreparando para o grande sacrifício, que celebraremos dentro de oito dias, prejudicá-la-iambastante.Éimperiosotransferi-laparaopequenopavilhãodepedra,omaisvizinhodoNilo,enãoabaixarascortinasdasjanelas,porqueelatemnecessidadedearfresco,diaenoite.

Umahoradepoisdestaconversação,HoremsebtransportouNeithparaodesignadopavilhão,estirou-acomodamentesobrealmofadasdeumleitoderepouso,earecobriucomumgrandevéudegaze, e saiu em seguida, puxando apenas a porta, rumo do palácio, receoso e preocupado. Apóshaver dado a Chamus ordem de interditar aos escravos a aproximação do pavilhão de granito,deitou-se,eadormeceu,semquelheacudisseaopensamentoapossibilidadedealguémburlartalordem.

A inquietude de Sargon por não ver Neith, desde havia quinze dias, mudou para ira edesespero; em vão se insinuava em todas as aléias, espiava o palácio e o pavilhão do sábio,arriscando-se às vezes até à imprudência; Neith continuava inencontrável. Ísis, igualmente, nadasabia, e, na sua exasperação, Sargon tomara a decisão de enviar a Neftis ordem de seguir paraTebas, onde tudo narraria à rainha, para obter permissão de bloqueio e busca no palácio, pelasautoridades.Umacaso,noentanto,fê-lodescobriroquebuscava.Certamanhã,estandodeserviçonosapartamentosdopríncipe,viuestedesceraojardim,e,despistandocomhabilidade,conseguiusegui-lo, pela parte do jardim marginal ao Nilo, e vê-lo penetrar no pavilhão de pedra, àsvizinhançasdoqual,desdehaviapouco,nenhumescravopodiachegarOcultonaespessuradeumasebe,Sargonnãodespregouoolhardolocaldopavilhão.

—Quenovocrimeestarásendoalitramado?—murmurou,rancorosamente.

Apósalgumademora,quepareceuumaeternidadeaomoçohiteno,Horemsebsaiu,alegreedespreocupado, e, assobiando uma ária guerreira, retomou o caminho do palácio. Sargonacompanhou-ocomoolhar,eseuspunhoscrisparam-sedeiraeaversão.

— Canta, canta — disse, baixo — porque são as tuas derradeiras músicas, assassino demulheres,monstrovomitadopeloinferno;bemdepressaajustiçatealcançará,eocastigodobrarátuainsolentecabeça;malsabes,envenenadorassassino,quãopróximoestáoteufim!

Quando Horemseb desapareceu, o hiteno deslizou para o pavilhão, cuja porta, fechada porferrolhoexterior,eleempurrou.Achou-seempequenacâmara,iluminadaporduaslargasjanelas,decortinas levantadas,mobiliada com leve mesa, onde havia uma ânfora de alabastro e copo, e umleitoderepousosobreoqualestavadeitadoumcorpodemulher,ajulgarpelafartaelongatrançacaída para o chão. Essa humana forma estava coberta por alvinitente véu. Sem hesitar, Sargonaproximou-se, e levantou vivamente a gaze, para, imediato, vacilante, recuar, emitindo refreadogritodepasmo:

—Neith!

Lábiostrêmulosdeemoção,ajoelhou,inclinando-separaorostolívidodaesposa,quepareciapetrificadanaexteriorizaçãodeindizívelsofrimento.

—Morta!—balbuciou,beijandoaspequeninasmãosgeladas,postascruzadassobreopeito,inundando-asdelágrimasardentes.

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Subitamente,estremeceu,aoperceberquedébil,masperceptívelrespiraçãoalçavaosseios.Sim,nãoerailusão:umsopro,despercebidoparadesatentoobservador,fugiadoslábiosdeNeith.Frementedeventura,omoçopríncipe,firmando-sedepé,sacudiuaadormecida,tentandodespertá-la,repetindo:

—Neith!Neith!Tornaati;nãoestásabandonadaesó;alibertaçãoestápróxima!

Mas,aonotarquevãoseramseusesforços,queacabeçadeNeithrecaíainerte,queosolhoscontinuavamobstinadamentefechados,ojúbilomudou-selogoemangústiaedesespero:

—Eleamergulhouemsonoenfeitiçado—murmurou,arrimando-seàparedeepremindoafrontecomasmãos,emrápidaprostração.Étempodeentraremação;devofugirepôrfimatantoshorrores;mas,tristedeti,bruxomaldito,seestarespiraçãoextinguir-seantesdomeuregresso!

Recuperando-se,poresforçodevontade,calmoeenérgico,novamentesecurvouparaorostoimotodajovemesposa,deuapaixonadobeijonapálidaboca,e,recobrindocuidadosamenteocorpo,fechouaportaecorreuaopalácio.Decididoafugirsemtardança,ohitenoprocurouavidamenteaoportunidadedeexecutarseuprojeto,e,comespanto,verificouquealgoinusitadosepreparava.Eporque não era surdo-mudo, nem embrutecido, nem aterrorizado, como estavam os demaisescravos,quedesempenhavamastarefascomatristeapatiadeumanimal,conseguiusurpreenderuma conversação entre Chamus e outro eunuco, e soube, assim, da chegada de nova remessahumana, constituída exclusivamente de mulheres e crianças, e também que se separavam eisolavam,emalaàparte,servosatacadosdesingularenfermidade,queele,Sargon,havianotadojá.Esses desgraçados, sãos em aparência, estavam como que embebedados; durante muitas horas,permaneciamcaídos,inertes,emmodorra,daqualcoisaalgumaosdespertava,nemameaças,nemespancamento. E, quando cessava o torpor, os olhos espantadiços e reluzentes, lábios bambos erepuxa-mentos incoercíveis da face davam-lhes a aparência da idiotia. Viu também o sábio, queraríssimamentesedeixavaavistar,falarmultoazafamadocomHapzefaá;mas,aindapoucodepois,fezadesagradáveldescobertadeestarsendoobservadoporChamus,esurpreendeumesmo,neste,umolhardedesconfiança,oquemaislherobusteceuadecisãodefugiratodocusto.

SombriopressentimentofechouocoraçãodeSargon,quando,nanoitedosegundodiadepoisdadescobertadeNeith,Chamusoconduziuàsaladosescravosdoentesealiotrancou.Otempoqueaissoseseguiupareceu-lheumaeternidade,esóele,entreosinfortunadoscompanheiros,nãopôdedormir,quandoastrevasnoturnasinvadiramavastasala.Oruídodaportaqueseabriaotiroude tumultuosos pensamentos. Deitado num recanto, fingindo dormir, viu muitos eunucos,empunhando tochas, fazerem o giro nos adormecidos, grupando junto da porta os que podiamerguer-se sem dificuldade, e derramando algumas gotas na boca dos que não podiam despertar.Comarrepios,masparecendoeletrizados,osinfelizespulavamempé,eembreveatropilhahumanaestavaemmarcha, sobadireçãodoseunucos, rumodos jardins.Tendoatravessadooparqueemtoda a extensão, chegaram a vasta clareira, rodeada de uma fila de espinheiros e árvoresramalhudas,aocentrodaqualseerguiaumapirâmidedepedra.Sargonjamaisviraesselugar,tãohabilmentedissimuladonaespessuradedensomato,edecujaexistênciajamaissuspeitara.

Essapartedosjardins,próximadopavilhãodosábio,eraterritóriointerditoaosescravos,osquaissóaliapareciamsobvigilância,eohitenoporalinãoseaventuraria,salvoclandestinamente.Sargonexaminoucuriosooambientequeocercava:tudoeravivamenteiluminadopeloclarãodosarchotes; não longe da fileira vegetal, à esquerda da pirâmide, achavam-se postos, em mesa depedra, um grande tacho, que lhe pareceu cheio de vinho, e copos de alabastro. Do interior dapirâmideouviam-seruídosmetálicoseocrepitarsemelhanteaodeimensobraseiro.Semdemora,aclareira se povoou, em multidão, de mulheres e crianças de todas as idades, e bem assim deeunucos, que se ocuparam no enchimento dos copos, constrangendo as desgraçadas a beber. Aembriaguezcomeçavaadominartodaaturba,quandoapareceramosábioeHoremseb.Amultidãoseguiu-os, formando colunas ante uma espécie de altar, erigido à entrada da pirâmide. Chamustrouxeumaânforacinzeladaedoiscoposdeouro.Apóshaverbebido,eopríncipetambém,Tadarentoou um cântico selvagem, com o qual os submissos fizeram coro, a dançar, em volteios develocidade cada vez maior. Sargon não tocara na bebida, embora fingisse tê-la ingerido, e,esgueirando-separaorecantomaisescuro,encolheu-sesobassarças,semqueonotassem,porqueavertigemdetodosatingiraoapogeu,e,entreessesseres,desvairadoserodandosobresimesmo,comvertiginosarapidez,eradifícildistinguiralguém.Deoutraparte,oseunucosestavamocupadosemvigiarassaídaseenchernovoscopázios.

Súbito, viu Horemseb pegar uma das desgrenhadas dançarinas e atirá-la ao altar, e emseguidaTadarservir-sedeumpunhal,queafundounopeitodavítima.Nomesmoinstante,oolhardo hiteno incidiu sobre a alta porta aberta da pirâmide, e, com sufocada exclamação, apertou astêmporas com as mãos: o ídolo entronizado lá, Iluminado por tochas de avermelhados clarões, ecujosmembrosinferioressecoloriamcomorubroorvalhadodometalincandescente,eraMoloc,o

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deusdoseupovo,eaoqual,elemesmo,haviaorado,desdeatenrainfância.Oquesepassou,nessemomento, no cérebro de Sargon, não se descreve. Mil lembranças acordavam, e, imediatamente,inesperada lutadesgarrou-lheaalma:aqui faziamsacrifíciosaodeusdoshitenos,àdivindadedoseu povo, e ele pretendia trair esses homens, destruir esse santuário! Podia fazê-lo? Ousariasemelhantesacrilégio?

Comolharvago,viuosábioatiraramulher imoladana fornalha,edepoisHoremseb lançarnos braços fumegantes do deus um filho arrancado dos braços maternos. Sargon sabia que issoestava certo, e que muitas outras vítimas ainda seriam engolidas pelas entranhas da sanguináriadivindade(20). Inesperadamente, novo curso de idéias fez-se aurora na mente superexcitada dojovemhomem:queconsideraçãodeviaeleaessedeus,quedeixaraservencidooseupovo;matartodososseus;queodeixaraarrastar,feitoprisioneiro,aopaísinimigo?Poressadivindadeingrata,abandonariasuavingança,deixariavivereprosperarohomemqueelemaisdetestavanomundo,renunciaraNeitheperecer,elepróprio,miseravelmente?Não.Nunca!Deviafugir,imediatamente,poiseravisívelqueChamusjásuspeitavadele,eohaviatrazidoaliparamorrer.

(20)Emtodosossemitasbárbaros,osinfanticídios,principalmentedemeninas,nãoeramraros.Enfim,nocultodeMoloc,comumatodosossemitas,emdadomomentodesuaexistência,ossacrifíciosdecriançaseramderegra,queimadasvivassobasnarinasdoídolo.NaBíblia,Levitico,XVIII-21eXX-2,estãoexpressamentecondenadostaissacrifícios,eAmós,V-26,aludeaos falsosdeusesconduzidospelos israelitasaodeserto, (Letourneau,L.aFsychologieEthnique,ediçãoSchlelcherFrères,Paris,1901,pág.326eMartinI<e8CivilisationsPrimitivesenOrient,ed.Didier,1861,pág.432):

“OmaismonstruosodessesídoloseraMoloc,omesmodescritoporDiodoro,falandodeSaturnodoscartagineses:“UmaestátuadebronzerepresentandoKronos (Saturno), tendoasmãosestendidase inclinadasparaa terra,demodoqueascrianças que lhe eramdepostas nasmãos caíam, rolando, emum sorvedourode fogo. Jeremias,XXXII-35, verbera esseculto: “Edificaram os altos de Baal, que estão no vale do filho de Hinnom, para fazerem que seus filhos e suas filhaspassassempelofogoaMoloc.”

Mas, como consumar a fuga? A saída estava com sentinelas, e o renque espesso eraintransponível, qual muralha. A Iminência do perigo decuplicava todas as faculdades de Sargon:qualréptil, rojou-se,achatando-sequantopossíveldeencontroaochão,parapertodasaída,ealiaguardou algum acaso favorável. A espera não foi mal recompensada: convencidos de que osinfelizes,destinadosàmorte,estavamincapazesdefugir,osdoiseunucosabandonaramseuspostoseavançaramumpouco,paramelhorapreciarossacrifícios,eohitenoaproveitouaoportunidade.Deumpuloatingiuasaída,embrenhou-senosombreadodeummatobravo,e,constatandonãoserperseguido,se fezao largo,qualcervosob latidos.Atingiu,nãosemcusto,aparteconhecidadosjardins,e,tendotraçadoalgumaslinhassobrepequenatabuinhaocultahajarradacorrespondênciacom Ísis, correu ao sítio onde, antes de ingressar no palácio, fingido escravo, escondera corda,machadinhaepunhal.Nãotardouemencontrarosobjetosintactos.

Comopunhalemumadasmãos,amachadinhanaoutra,Sargonandou,juntodomuro,atéaporta comunicante comaescadariaparaoNilo.Dois escravosali vigiavam,acocoradosnaareia.Qualtigre,caiusobreum,aquemfendeuocrânio,e,antesqueooutro,aturdido,pudessegritar,omesmolhesucedia.Semperdadeumminuto,abriuotrincoesaiuparaaescadaria,e,depoisdefecharaporta,escorregouparaaextremidade inferiordeumadasesfinges,e,abrigadoentreostojos,parouumpoucoparatomarfôlego.Omaisdifícilestavafeito,eoarfrescoepuroquesubiado rio refrigerou-lhe a fronte que manava suor. Mas, o solo como que queimava sob os pés, eimediato retomou a fugida, só se detendo às portas da casa de Neftis. Esta e Keniamun,despertados, formaram conselho e, sem discrepância, foi decidido que Sargon e o oficial deviamseguir, imediatos, para Tebas, e tudo comunicar à rainha. E porque, na previsão daquelaeventualidade, Keniamun havia, por antecipação, alugado um barco, movido por escolhidosremadores,tudoseconcluiurapidamente,eanoiteaindaescureciaMênfiscomasuasombra,ejáosdoismoçosestavaminstaladosnaembarcaçãoerumavamcéleresparaaCapital.

Quando, na manhã dessa noite memorável, Chamus despertou, um dos subintendentesanunciou-lhe, descoradoe inquieto, queosdois escravosguardiõesdaportadoNilohaviam sidoencontradosmortos,aoseremrendidosnavigilância,equeaportaforaaberta.Oeunucosaltouaessanotícia,ecomotemesseacordarHoremseb,querepousavaexausto,fez,àcontaprópria,severoinquérito,chegandoàconclusãodequeoassassinoefugitivodeviaseroescravoKarapusa.

—Tiverazãoemdesconfiardomiserável—resmungou,atirando-sefatigadosobreumleitoderepouso—,elerodavamuitonestesúltimosdias.Possivelmente,nãoésurdo,nemmudo,edetalsefingia para melhor espionar. Mas, quem poderá ser? E como conseguiu escapar-se, ontem? Meuraciocínioperde-senesseenigma.

OSoliadesaparecerquandoHoremseb,bemrefeito,lépidoedisposto,fezlheservissemumarefeição;mas,oapetitedesapareceucompletamente,nomomentoemqueChamus,lívidoetrêmulo,

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disse-lhedos acontecimentosda véspera edas suposiçõesquanto àpessoado fugitivo.Oeunucoesperavaumacessodecóleraepancada;viu,porém,pasmado,opríncipeempalidecerapenas,e,sobrecenhos contraídos, apoiar os cotovelos na mesa. Após prolongado silêncio, ele se retesou edisse,combastantecalma:

— É indispensável ter certeza de que o traidor não deixou cúmplices no palácio; devesestabelecer, a este propósito, severa vigilância, mas oculta, sobre todos que não te mereçamabsolutaconfiança.E,sealgodescobrires,comunica-meimediatamente,qualquerquesejaahoradodiaoudanoite.

Nodiaseguinte,àhorahabitual,ChamusprocurouÍsisnosaposentosèaconduziuaojardim,retirando-se em seguida. Cada manhã assim se fazia, e a jovem tinha, por ócio, permissão parapassear, duranteduashoras, regressando, aumsinal, apalácio. Ignorandoos acontecimentosdanoite,esupondonãoestarsendovigiada,Ísisencaminhou-separaorecantoondehaviaajarradasuacorrespondência.Certificando-se,aindaumavez,dequeninguémaseguia,mergulhouamãonofundodajarraeretirouatabuinhadeixadaporSargon,aqualleueocultounaroupa.Mas,enormefoioseuespantoquando,nomesmoInstante,umhomemsurgiudasombra,e,atirando-seaela,lhearrebatoubrutalmenteoescrito.

—Ah!miseráveltraidora,apanhei-teemflagrante!Vejamosquemissivaviestebuscaraqui—disseChamus,amarrandosolidamentepésemãosdeÍsis.

Isso feito, abriu a mensagem e leu, admiradíssimo: “Fujo imediatamente, e se escapar vivodesteantrodeassassinos,seguireiaindaestanoitecomKeniamun.Sêprudente,esóemcasodeurgênciadepositamissivaondesabes,eNeftisviráprocurá-laedeixarnotícias,senecessário.”

—Ocasosecomplicaeassumeproporçõesdeconjuraamplamenteorganizada—regougouoeunuco,carregandoaoombroadesacordada.Valeriabemaosenhorotrabalhodeviraqui,seestafosseaNeftisqueopersegue.

Tendoatiradoamoçaaochãodeseuquarto,qualsefosseumatrouxa,Chamustrancou-a,efoi em busca de Horemseb. O príncipe dormia, mas, Hapu, que decerto recebera ordens nessesentido, correu a despertá-lo, e poucos minutos depois o eunuco foi levado à presença do amo.Tendorelatadooqueacontecera,estendeu-lheatabuinha,e,tãologoHoremseblhepôsosolhos,saltoudoleito,comumgritoderaiva.

— Neftis! a miserável traidora está metida nesta intriga! E quem é o cúmplice, o pseudoKarapusa?Ísisdevesaber.

Sacudido de cólera e impaciência, Horemseb vestiu-se, sumariamente, e se encaminhou,seguidodeChamus,aoaposentodeÍsis.Opavordeseverdescobertaprivaraamoçadetodosossentidos,eopríncipeaencontroudesmaiadanosolo.Pegandoumaânforacheiadeágua,despejou-asobreacabeçadadesmaiada,que, instantesdepois,reabriuosolhos;mas,encontrandooolhariracundo do príncipe, o terror emudeceu-lhe a voz, e ele, apesar da fúria, logo percebeu que,naqueleestadodemedo,eramaisfácilmatá-ladoqueobterconfissão,eoprincipaleraconheceraverdade.Agitadoaoauge,pelainquietaçãoepelaira,mandouChamusbuscarumfrascodegotascalmantes, e destas derramou algumas na boca de Ísis. Simulando sossego, em aparência,assegurou-lheconsiderá-laapenasuminstrumentodeNeftis,eque,sequisessesalvaguardaravidaemerecerclemência,deviadizer,semrestrições,tudoquantosabiaarespeito.

—Dize-me, em primeiro lugar, quem é o escravo Karapusa, e com que intuito, ele e tu, seintroduziramaqui.Depois,queméoKeniamun,citadonamensagem.

— É Sargon, o esposo de Neith, e Keniamun um oficial das guardas, que o ajuda nessecometimento—murmurouela.

Ao ouvir o nome de Sargon, Horemseb julgou que um raio lhe caíra em cima. Por sua vez,durantealgumtempo,emudeceu.Afinal,emtimbreenrouquecido,recomeçoua inquirir,e,acadarespostadamoça,parecia-lheabrirochãosobospés,afundando-onoabismoentrevistoporNeith.Adescobertadoformidávelperigoquelhependiasobreacabeçaapagou,noprimeiromomento,odesejodesevingardeÍsis:seupensamentoúnico foicomunicarocasoaTadarepedirconselho.Sem mesmo dirigir um olhar à jovem, semimorta de medo, saiu, e correu à casa do sábio; mas,descendoos degrauspara o jardim, o olhar incidiu sobre o lago, e, instantaneamente, lhe veio opensamentodequeestavamterminadasasfestasnoturnas,efindaavidaencantada,edeque,seospadres surpreendessem os cultos a Moloc, as consequências poderiam ser incalculáveis. Aperspectivadoqueoaguardavatalvez,edequeissoodeveriaaNeftis,seudesprezadojoguete,foitomadosubitamenteporumacessodefúrialouca.

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Correndo,qualcego,bateucomacabeçadeencontroàsárvores;depois,caindonaterra,serebolcou, mordendo o pó, arrancando as vestes e tudo que as mãos tocavam, emitindo urros deanimalselvático,bocaespumante,retorcendoocorpocomoseestivessenumataqueepiléptico.Seuaspectoeradetalmodoamedrontante,queosservos,atraídospeloclamor,nãoousaramaproximar-se, e somente quando o frenesi se extinguiu, em profundo esvaimento e imobilidade, osaterrorizados escravos levantaram-no e conduziram para os aposentos. Era noite fechada quandoHoremsebdespertoudaprostraçãoqueotomara,aotérminododelíquio;ovelhoHapu,amareloeInquieto,velavasozinhojuntodopríncipe.Este,erguendo-se,alijou,comesforço,alassidãoquelheentorpeciaocorpo;tentoucoordenarospensamentoseajuizardasituação.

Sentindo-se mais calmo, teve idéia de que talvez não estivesse tudo perdido, e de que, seconseguissedissimularosvestígiosmaiscomprometedoresdosseuscrimes,nãoseriaperseguidocomrigoresumhomemdasuahierarquia,ecujadesonrarecairiatambémsobreafamíliareinante,eaindaque,dadaalentidãodoprocesso,teriadecertotempodetudoacomodar,antesdachegadadoComissárioRealoudeumDelegadodossacerdotes.

Quanto a Neftis, caro pagaria as horas de tortura que ele estava sofrendo. A simpleslembrançadessamulher,elejulgavaperderarespiração;mas,antesdetudo,eramisterentender-secomTadar.Reconfortadoporsuasreflexõesepelaesperançadeumavinditarequintada,dirigiu-seàmoradadosábio,queencontrounosportaisdopavilhão.

—Iaatuacasa,meufilho,poisháalgumashoras,quandotevisitei,atuagentenãomesoubeinformardascausasdatuasúbitaindisposição.

— A causa é a descoberta inopinada de incrível Infâmia de que somos vítimas — disseHoremseb, sentando-se e bem assim o velho, junto da mesa de trabalho deste. Estamos traídos,mestre,e,segundotodasasprobabilidades,umacomissãodepadresvirávisitaropalácio.Se,pois,não conseguirmos ocultar ou destruir Moloc e a planta sagrada, estaremos perdidos, porqueseremosacusadosdesacrilégioefeitiçaria.

—Destruirodeusouaplantasagrada?Mas,issoéimpossível!—exclamouTadar,saltandodacadeiraeoprimindoacabeçacomasmãos.Equemnostraiu?

— Neftis! A miserável suspeitou da presença de Neith aqui, e transmitiu esse segredo aSargon.Fingindo-sesurdo-mudo,ohitenopenetrounopalácio,disfarçadoemescravo,e,ajudadoporuma jovem,quesuponhoenamoradadele, tudoespionoueafinal fugiu,nanoitedos grandessacrifícios. Após isso, com outro cúmplice seguiu para Tebas, para denunciar-me à rainha; mas,restasaberdequemodoHatasuacolheráessadenúnciacontraummembrodafamíliareal,sendomesmo provável que, por orgulho, não autorize um escândalo público, pelo menos até que aacusação seja positivada, e sim um inquérito secreto. Pois bem: tal comissão não deve encontraraquicoisaalgumadesuspeito;Neithconfessaráquemeseguiuvoluntariamente,fugindodeSargone de seu amor, e... com a ajuda do deus, tudo se acomodará ainda — terminou Horemseb,retomando,cadavezmais,atranquilidadeeajactânciahabituais.

Osábiomeneouacabeça.

—Dar-te-ãotempodetudoarranjarassim?Ademoliçãodapirâmideeadestruiçãodaestátuaexigemmuitosdias.Nãoseriamaisseguroemaisprudentefugirescomigo,carregandoosmaioresepreciosostesouros?UmavezforadoEgito,pode-sedeliberareestabeleceremoutraparte,aoinvésdearriscaroucairempoderdospadres,quejáteabominam,segundomedisseste.NãocontescomHatasu,porqueaferistenoqueelatemdemaiscaro.

—Será esse ente querido quem defenderá minha causa, e a ganhará. Quanto a fugir, paravegetar miseravelmente no meio de estrangeiros, não, Tadar: outras terras e recursos teremossempre;primeiramente,ensaiaremosalgomelhor.Antesdeduassemanasnãonosincomodarão.

—Sejacomoqueres—disseTadar.Deixa-mesomentealgumashoraspararelerminhasnotas,sobreomododeprocedercomasagradaplantanocasopresente.Épeladestruiçãodapirâmidequecomeçarás?

—Não,porquemeproponhoofereceraindaumsacrifícioexpiatórioaodeus;outrostrabalhosindispensáveis tomarão o nosso tempo até lá — respondeu Horemseb, enquanto indefinívelexpressãodecrueldadelhecrispouosemblante.

Aos primeiros clarões da alvorada, o príncipe, acompanhado de Chamus, encaminhou-se aomuro, à procurada fenda Indicadapor Ísis, e, tendo encontrado o esconderijo, nele introduziu amão,retirandopequenorolodepapiro.Lábiostrêmulosdeira,Horemsebleu:

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“Elespartiram.Dentrodequatronoites,apartirdehoje,vireibuscarteuescrito.Nãodeixesdemedarnotíciastuas.”

—Nãoapanhamosamiserávelagora,masnãoperderáporesperar—disse,voltando-separaChamus.

Depois, deu ordens, e seguiu rumo do pavilhão de Tadar. Sua sanha contra Neftis eraindescritível, epormomentospensouem ir tirá-ladoprópriodomicílio.Refletindo,porém, julgoutarefaassazarriscada;otempoerademasiadopreciosoparaserperdidofutilmente.Atraidoranãolhefugiria.

Apartirdeentão, febril atividadecomeçouempalácio.Oprimeiro labor foi levadoa termopelopríncipeeTadar,sobabsolutosigilo:retiraramdotanqueaplantamisteriosa,comorespectivocesto, que foi posta em profunda fossa, com água, num local úmido e sombreado. Depois decurvadasashastes,recobriram-nadeterrafrescaerelva.Aseguir,Tadarencheucomoperniciosolíquido grandes frascos vermelhos e azuis, e também uma caixeta com sementes do perigosovegetal,reuniuseusmaispreciososmanuscritosebemassimalgunsobjetosconcernentesaoculto,eaindaas suas insígnias sacerdotais, encerrando tudonumcofreque, ànoite, fez conduzir,numbarco, para o sítio do qual falaremos oportunamente. Todo o restante, ervas, pomadas, vidros,papiros e bagagemcientífica, foi enterrado sobumaárvore. Isso concluído, começouodesmontedasbasesdeestacasedopavilhão;otanqueocupadopelaplantafoiarrancado,aslajesquebradas,edesfeitososaltaressacrificatórios,demodoque,doisdiasdecorridos,sórestavaaocentrodolagoumailhotavazia,cobertadeabrolhosesemcomunicaçãocomaterrafirme.

Emprosseguimento,foidestruídooudistanciadoquantopossível,doslocaisdasorgias,tudoquantopudessecaracterizarasuaantigaserventia,eoprópriopaláciopassoupor transformaçãoradical: as centenas de tripés e caçoilas foram empilhadas, e bem assim os perfumes venenososintegrantes das bacanais, em cava subterrânea, devidamente murada em seguida. Todas as salasforamarejadasesuprimidasasgradesisolantesdosapartamentosseparadosdasvítimasdeMoloc;os servos despojados dos ricos trajes e jóias que usavam, e vestidos, em troca, simplesmente delinho.Horemsebjuntouaessesobjetostudoquantopossuíademaispreciosoemfeituradejóias,debaixelas e armas e também as asas douradas, tiara e paramentos hitenos de que se servia, e osescondeuemváriospontosdoimensojardim.

Emmeiodasfebrisatividades,passouotemporapidamente,echegouanoitedesignadaemqueNeftisdeviavir.Horemsebestavasatisfeitíssimo:tudomarchavabem,eseconseguissedemoliraindaapirâmideequebrarocolosso,cujospedaçosiriampararnoNilo,podiaserfeitooinquérito,porqueasprovaspalpáveisdosseuscrimesteriamdesaparecido.Antes,porém,deempreenderestaúltimapartedotrabalhodesalvação,queriaapoderar-sedeNeftisevingar-se,poralgumatorturainaudita.Aose lembrardoque lhecustavaa traiçãodessamulher,damutaçãonoestranhoviverqueeletantoadorava,dosdesgostos,perigosehumilhaçõesqueoaguardavamtalvez,cadafibradoseurobustocorposeencolhiaderaiva:oódio,asededevinditaquaselhesuspendiamarespiração.

QuandooSoltranspôsparabaixoalinhadohorizonte,Horemseb,emcompanhiadeChamus,deixou o palácio, pela escadaria das esfinges, e, esgueirando-se ao longo do muro, ambos seagacharam nas sarças, a poucos passos do escaninho-correio. Aguardaram muito, e a hora erabastante avançada quando, enfim, perceberam uma sombra que se aproximava cautamente: eraNeftis,que,envoltaemescuromanto,vinhabuscarasnotíciasdeÍsis.Chegadajuntodoesconderijocombinado, ajoelhou e remexeu o interior, à procura do rolo de pergaminho; mas, eis que doisbraçosvigorososapegaram,repuxando-abruscamente,e,antesquepudessedarumgrito,espessamantilhalhefoipassadaemvoltadacabeça.Sentindoqueaconduziam,debatia-seemdesespero,compreendendoquequalquercoisaforadescoberta,e,umavezpordetrásdessesmuros,entregueàvingançadeHoremseb,teriamorte,emortehorrível.Exaustapelaluta,abafadapelopanoquelhecobria a cabeça, teve um atordoamento e perdeu os sentidos. Horemseb, ele próprio, havialevantadoNeftis,apesardaresistência,e,auxiliadopeloeunuco, levou-aparao jardim.EnquantoChamusfechavacuidadosamenteaporta,atirouofardoemterraedisse:

—Acendeumatocha,Chamus.Éprecisoversenãoerramosacaça.

Oeunucoobedeceu.

—Nãoerramos:éavíbora,desmaiadademedo!—falouHoremseb,comdesprezo.Leva-a,esegue-mepara apirâmide.Vamos verdequemaneira a traidora conversará comodeus.Fizesteacenderobraseiro?

—Sim,senhor—respondeuChamus,carregandoNeftisnosombros.

Chegadosàpirâmide,oeunucodepôsajovemnochão,edesapareceu.Horemsebencostou-se

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àentrada,ora fixandoavítima,comolharmalvado,oraprestandoouvidoaocrepitardo fogonasentranhasdocolosso—condenadoporessamesmavítima—aserdestruído.Logodepois,Chamusregressou,trazendoumcestocobertoeumajarracheiadeágua,e,enquantoopríncipedescobriaacesta, cheiade rosas,edela retirouumcopoeumvidrovermelho,oeunucoderramavaáguanorostoepeitodeNeftis,naintençãodereanimá-la.Vendoqueestafaziaummovimento,Horemsebdespejou sobre ela todas as flores. A moça estremeceu e se retesou, com o olhar perturbado: oaroma atordoante subia-lhe ao cérebro, colorindo de febril rubor as pálidas faces. Encontrando,porém,oolhardopríncipequeafixavasombrio,ameaçador,cheiodeimpiedosacrueldade,ergueuasmãosjuntas,murmurando:

—Graça!

—Graça,ati!traidora,espiã, ladra!—respondeuHoremseb,numrirestridente.Graçaati,quemedenunciasteetraíste!Dize-me,antes,quetorturadevoinventarparatefazerpagarquantoousastecontramim!Perfurareiessalínguadelatora,ouvazareiessesolhosdeserpente?

O furor tirou-lhe a voz. Rangendo os dentes, espumando pelos lábios, ficou desfigurado ehorripilante.Pormomento,opunhalqueretiraradocintobrilhousobreacarnedeNeftis,quelhesentiua friúrada lâminaepermaneceupetrificada,paralisadadehorroremedo.Mas,Neftiseraalmaenérgica,devaronilcoragem,apaixonada,odientaevingativaemexcesso;compreendeuquesoaraasuaderradeirahora,equeohomemcriminoso,que jogaracomasuavidaeadestruíra,ousavaerigir-seemjuizparajulgá-la,comosetivesseelacorrespondidocomingratidõesetraiçãoaquaisquerbenefíciosdelerecebidos.Todooseuânimoserebelou,e,nessaexasperação,dominou,momentaneamente, até a influência do veneno. Repelindo as rosas que a cobriam, endireitou-se,olhosesbraseados.

—Tensrazão,Horemseb;estavaloucaaopediroperdãoqueeuobteriamaisdepressadeumtigre do que de ti, para quem a morte é uma distração. Quando o acaso me ajudou a fugir,compreendiserapenasumjoguetedestinadoahorrívelfim;mas,silenciei,durantemaisdeumano,enãotetrairia,porqueteamomuitomaisdoqueàprópriavida,apesardaimpiedosazombariacomque propinavas o veneno para despertar no meu coração insensato amor, que repelias tão logoelevavaatiosolhos,recusando-memesmoesseamorindignoqueseconcedeaumaescrava.E,noentanto—tomoportestemunhoosdeusesimortaiseestahoratrágica—,teriasofridoemsilêncioesteamor, jamais saciado,enão te trairia,poisconsiderava teucoraçãogélido, incapazdeamar.Neithdesapareceu,eeu soubequeumarosa rubra foraachadapresaaovéuperdidonaescada.Uma suspeita veio-me: essa mulher, tão bela e tão ilustre, bem podia ter vencido teu coração. Equando uma testemunha ocular te viu, sentado num banco, enlaçando nos braços um corpo demulherecobrindo-lheasfacesdeapaixonadosbeijos,araivaeodesesperocegaram-me.

—Queméessatestemunha,eondemeviu?—interrogouHoremseb,queescutara,surpreso,aveementeexplosãodeNeftis.

—Keniamun,que,impelidopelacuriosidade,galgouomuroeteidentificou.Elenãoviuquemeraadama,porémeucompreendi—eu—queeraNeithequea“ela”tusabiasamar.

—Louca!—interrompeu,comlúgubregargalhada.

ElepossuíaaconsciênciadenãoamarNeith;apenasodivertir-se coma ilustreegípcia lhepareciamaisexcitantedoquecomasdaplebe,iguaisaNeftis.Estaprosseguiu,exaltando-secadavezmais:

—Sim, nesse cruel instante, meu amor por ti se transmudou em ressentimento, e contei averdadeaSargoneaÍsis,dequemdestruísteairmã,ainfortunadaquetambémreceberarosas,asmalditas mensagens de morte que envias às tuas vítimas. O esposo de Neith insinuou-se em teupalácio, fazendo-se passar por escravo; Ísis, que o ama e quis vingar a irmã, o seguiu, e nossavingançatriunfou:todososdetalhesdatuavidamisteriosa,todasasprovasdosteuscrimesdevemestar,àhorapresente,noconhecimentodoFaraó.Justiçaseráfeita,esobretuacabeçacriminosacairãoashumilhaçõeseossofrimentosrivaisdaquelesqueinfligistesemcompaixão.

Aestaspalavras,acalmarelativacomqueHoremsebescutaramudou-seemsanha;pensouem um golpe de faca para cortar a vida da jovem; mas, mudando bruscamente de idéia, repôs aarmanocinto,e,comódiofrio,maisassustadoraindaqueasuperexcitaçãoinsana,encheuocopoe,apresentando-oàvítima,disse,comsanguináriaironia.

—Bebe,emudatuaraivaemamor;ser-te-ámaisdoceomorrer,amando-me!

Neftisrecuou,comhorror.

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—Deixa-me:nãoquerobeberesseveneno.

—Bebe!—rugiuele—oufuro-teosolhos.

E, pegando a moça pela nuca, derramou-lhe na boca o conteúdo do copo. Durante algunsmomentos, a desditosa permaneceu prostrada em completo aniquilamento. Depois, umestremecimento percorreu-lhe o corpo, o rosto purpureou e os grandes olhos esverdinhadosacenderam-se, concentrando-se no príncipe, com expressão de fera espreitando a presa.Inopinadamente, saltoupara ele, e, enlaçando-lheos joelhos, exclamou, emvoz enrouquecida, naqualvibravaestranhamenteummistodeaversãoedeamor:

—Horemseb,concede-meumolhardeamor,umbeijoúnico,emorrereisemtemaldizer.

Por breve instante, ele contemplou, com satisfação cruel, a formosa criatura abatida epalpitanteaseuspés;emseguida,curvando-se,murmuroucomsardônicosorrir:

—Recebeobeijoqueastraidorasmerecem.

Comumgritodesgarrador,Neftistorceuparatrásobusto,osanguejorrandodeumferimentolateral.Desatandoemlúgubrerisada,Horemsebpegouocorpodavítima,e,subindoosdegrausdaescadinha,atirou-o aos joelhosdo colosso.Neftis não estavamorta, e a dor atroz despertou-a dotorpor da agonia. Emitindo gritos que não pareciam de garganta humana, ela rolou sobre oincandescente leito; mas, bem depressa lhe faltaram forças, de seus lábios saiu, como que numsibilar,terrívelmaldição.Depois,emudeceu,eapenasossacudimentos,ossobressaltosconvulsivosdemonstravamqueavidaaindanãoabandonaraojovemerobustoorganismo.

Oespetáculoeradetalmodohorrendo,queopróprioChamusencostaraorostonochão,paranãover,etaparaasorelhasparanãoouvirocrepitardosanguenometalaquecido,esforçando-setambémparanãoolfataronauseanteodordacarnequeimada.

Horemseb, ao contrário, estava imperturbável, impassível, braços cruzados, saboreando avingança; nenhuma fibra do seu brônzeo coração estremeceu sequer, ao ver o belo corpo dainfortunadacobrir-sedebolhas,apelefender-se,osmembrosrevirarem-seàsemelhançadetiçõessobrecarvãoaceso,depoisomontãodecabelosdouradosincendiar-seetorvelinharemtornodelaemumanuvemdecentelhas.Mas,então,seuolharencontrouodavítima,concentradosobreele.Essesolhosfixos,fulgurantes,injetadosdesangue,nãomaispareciampertenceraumserhumano:os sofrimentos e as maldições de uma criatura torturada até à loucura sintetizavam-se nessehorrível mirar, que, queimando qual labareda, pesado quanto o chumbo, dir-se-ia perfurar,paralisando, a alma do nigromante. Horemseb voltou o rosto, com involuntário arrepio: ignoravaque,naquelahoranefanda,umaalmadesbordantedeódiosehavialigadoaelepormilênios;queesse fatal olhar persegui-lo-ia através de séculos, pesando sobre suas vidas sucessivas,envenenando-lheorepouso,destruindo-lheporvezesarazão.Quandoopríncipetevedominadaafraquezaeseuolharvoltou-separaasupliciada,osterríveisolhosestavamextintos,Neftismorrera.Horemsebsaiudapirâmideechamouoeunuco,queseergueralívidoeemcalafrios.

—Fazapagarofogoimediatamente,lançaporagoraocadáverdatraidoranofornilhovazio,equeosdesignadoscomecememseguidaademoliçãodapirâmide.

Agitado por estranha inquietude íntima, Horemseb regressou aos aposentos e se atirou aoleito; sentia-se derreado, e fechou as pálpebras; mas, ante seu espírito reviveu a cena a queassistira:oolharsemi-extintodeNeftisfixava-osemcessar,ocheirodacarnequeimadasufocava-o,eespessa fumaçaenegrecidasurgia-lheemtorno,entorpecendo-lheosmembros,colando-se-lheàpele, interrompendo-lhe a respiração. Com abafado grito, ergueu-se e seu espantado olhar viu ovelhoHapu,que,tremelicante,lheapresentavatabuinhas.

—Senhor,umhomem,vindodeTebas,pedeparafalar-teimediatamente.Insistiudetalmodo,queouseidespertar-te.

Ôpríncipepegouas tabuinhaseasabriu,brusco, lendoapenasumapalavra—Mena—alitraçada,masbastanteparafazê-lopálido.

—Fazentrarodesconhecido—disse,levantando-se.

Poucodepois,umhomem,envoltoemmantoescuro,quelheescondiaorosto,foiintroduzidopor Hapu. Logo que se retirou o escravo, o recém-chegado se desfez do manto: era o irmão deNeith,cujasvestes,amarrotadasesujas,atestavamafadigadaeininterruptaviagem.

— Que grave notícia me trazes tu? — indagou Horemseb, apertando a mão do visitante e

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oferecendo-lheumacadeira.

—Sim,oquetevenhodizerédetalmodograve,quearrisqueiminhacabeçaparaprevenir-te.Pretextandoassuntodefamília,pedilicençae,secretamente,corriacomunicar-te.Estarásperdido,príncipe,senãoconseguiresfugir.Sargon,diz-se,acusou-teanteHatasudesacrilégio,assassíniosinauditosedoraptodeNeith,quemanténsprisioneiraaqui.

—Neithestáaqui,éverdade,masmeseguiuvoluntariamente,parafugiraoesposo,queelatemeequeaaborrece.Dize,porém,minuciosamente,quantoaconteceu.

— Ninguém sabe, ao certo, o que ocorreu. Sargon obteve audiência da rainha, presenteTutmés, que, pormotivo ignorado, apunhalouohiteno, o qual expirouduashorasdepois.Mas, àcabeceiradomoribundo,HatasureuniuumConselhoextraordinário,aoqualoferidoformulouumadenúnciadetalhada,acusando-tedecrimesinomináveis.Desdeessedia,opríncipeTutmésfoipostoincomunicávelemseusaposentoseteunomeandadebocaemboca;Tebasestáabaladapelasmaisdiversasmurmurações.Soube,deSatati,queumacomissão,compostadeRanseneb,Romaealgunsoutrospadres,viráaMênfis,e,comoconcursodoGrandeSacerdote,faráinquéritoemteupalácio.Keniamun, o oficial das guardas que tu conheces, acompanha Ranseneb, e traz ordem para ocomandante de Mênfis pôr força armada à disposição dos sacerdotes, caso o destacamento deguardas, comandado por Antef, não seja suficiente para te prender. Precedi a comissão, que,presumo,nãochegaráantesdeamanhã, cedo; tens,pois, tempode fugir, e, sequeresouvirmeuconselho, tratadedeixaroEgito,porquea tuavidanãovaleumaneldeprata,eemverdade foiprecisotodoomeudesinteressadodevotamentoparapre-venlr-te,emsemelhanteocasião.

—Recompensareituadedicação,Mena,e,seconseguircontornaroperigoquemeameaça,edefender-me,podesficarcertodequefareiatuafortuna—respondeuHoremseb,aquemterrosopalorcobriraorosto,nodecursodanarrativadooficial.

—Tucontasfugiratalperigoesalvaguardartuaposição?—perguntouMena,embasbacado.Nãoteiludes?Diz-semais,queNeftisdeverádeporcontratiedesvendarfatoshorríveis.

—Neftisnãodirácoisaalguma,porqueestámorta,e,quantoaoresto,osdeusesmeajudarão,euoespero,atudoacomodar—disseHoremseb,levantando-se.

RetiroudeummóvelumacaixetacheiadejóiaseumsaquinhodeanéisdeouroeosentregouaMena.

— Aceita isto, em primeiro sinal da minha gratidão, e agora descansa. Decerto queres verNeith.

— Não; é inútil saiba ela da minha vinda aqui; desde que me asseguras estar ela viva epassandobem,ficotranquilo.Alémdisso,devodeixar-tesemtardança,poisaindatenhoassuntonacidadeepressaemretomarocaminhodeTebas.Mas,apropósito,dizesqueNeftismorreu,esabesonderesidia?

— Sim (e Horemseb indicou o local). Mas, bebe ao menos um copo de vinho para tereconfortares.Espera!Eutotrareipessoalmente,evoudaralgumasordens.

Tãologoopríncipeseausentou,Menacorreuàmesacolocadajuntodoleitoesobreaqualhaviapercebidoumcolarebraceletes,degrandepreço,queHoremsebalipuseraaodeitar-se,eosfezdesaparecernasvestes,ebemassimoutrospequenosobjetosem lápis-lazúli eemmalaquita.Depois,reenvolvendo-senomanto,murmurou,chacoteandoegirandoemtornoumolharsorrateiro:

—Doido,que,comacordanopescoço,sonhacomacomodações,emvezdefugir,comofazoveado perseguido pela cainçalha! Eu o supunha mais atilado! Quanto ao teu vinho, muitoagradecido!Bempoderiaimpedir-me,parasempre,dereentraremTebas!

VoltavaHoremseb,trazendoumcopodevinho.Menaoaceitouefingiunelemolharoslábios;depois,deixando-o,disse:

— Agradeço-te, príncipe, mas, escusa-me; cada minuto me é precioso. Adeus! Possam osdeusespermitirqueterevejabrevemente,libertodetodosestesaborrecimentos!

Ficandoasós,Horemsebdeixou-secairnumacadeira,efechouosolhos.Tinhanecessidadededisciplinarospensamentosetomarumadecisão.Seuprimitivoplanodedestruirtodososvestígiosdos seus crimes era impraticável, porque demolir, de um dia a outro, a pirâmide e o colosso setornavaimpossível.Eagora,naperspectivadeperderdefinitivamentesuahierarquiaeoshaveres,paravagar,fugitivoemiserável,longedoEgito,seuorgulhoserebelava.Aquelaalmatirânica,cega

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pelafatuidade,pelaadoraçãodesimesmoededesmesuradateimosia,nãopodiaconvencer-sedequeopríncipeHoremsebfossetratadononíveldeumcriminosovulgar;deviaserpoupado,desdequefornecesseaosjuizespretextosparaseragraciado.Derepente,lembrou-sedamortedeSargon,que acabava de saber, e tal circunstância inspirou-lhe novo plano, que devia ser a sua salvação.Ergueu-sevivamenteeencaminhou-separaoquartodeTadar.Instaladoagoranopalácio,ovelhosábio não dormia: sombrio e silencioso, ele andava no aposento, de lá para cá, e não mostrousurpresacomasnotíciasqueHoremseblhecomunicou.

—Hesitasaindaemfugir?—perguntouapenas.

—Tenhooutroprojetoquemeparecemaiseficiente:disse-tequeSargonmorreu;nadamaismeimpedededesposarsuaviúva,edefazerdelaumsólidoescudo.Venhorogar-tequedespertesNeith,aquemfalarei,edentrodealgumashoraspartiremosparaSais.Lá,oGrandeSacerdotedotemplodeNeith,meu tio,Ameni, casar-nos-áe concederáasiloàminhaesposa, atéqueela váaTebas, defender minha causa ante Hatasu. Isso feito, na previsão de qualquer perigo, eu teprocurareinorefúgiodeSpazar,ejuntosficaremosocultosatéacalmaratempestade.

Tadarouvirasilencioso.

—Seja; despertarei Neith, e, após vossa partida, tomarei aqui as derradeiras providências,antesdeseguirparacasadeSpazar.Quandoaadormecidaestiveremcondições,eu temandareichamar.

—Não; manda-a ao meu aposento. Enquanto isso, vou regular um assunto indispensável, epreparartudoparaaviagem.

Regressando, Horemseb chamou Hapzefaá e Chamus. Aquele recebeu todas as ordensconcernentesàviagem.Emseguida,acompanhadodoeunuco,opríncipeencaminhou-seàcâmarade Ísis,aquem,porsuaordem,rasparamacabeça,sendoconduzidaapós,amordaçada,paraumbarco,noqualentraramosdoishomens.Tendosubidoorio,acertadistância,HoremsebferiuÍsiscomumapunhalada,e,sangrando,atirou-lheocorpoàságuas.Voltandoaosaposentos,esfalfadodefadiga e de emoção, o príncipe apoiou os cotovelos e deu curso a reflexões, mas, sem grandeintervalo,ergueu-seepegouumapequenaânforavermelhaeaesvaziounocopodevinhoquehaviaservidoaMena.Terminava isso, quandoo reposteiro foi erguido, eNeith, perturbadae indecisa,parou no limiar. Refeita e confortada pelo longo sono, a jovem mulher havia recuperado toda abeleza e viço. Com exclamação de contentamento, Horemseb precipitou-se para ela, e a apertouapaixonadamentedeencontroaopeito.

—Minhabem-amada,quantomeafligistecomo teu loucociúme!Éa tiunicamentequeeuamo!Ésasoberanadomeucoraçãoedeminhacasa.Comotesentes?

—Bem;apenasumtantofatigadaecomasensaçãodecabeçaoca—respondeu,apoiandoatestanoombrodopríncipe.

— Então bebe este copo de vinho, reconforta-te, minha querida, porque tenho bem gravescoisasateconfiar.

Neith bebeu, e, quase instantaneamente, rubor febril colorou-lhe o rosto. Horemseb aobservou com satisfação: estava seguro de que nenhum poder lhe arrancaria aquela mulher; ovenenolhaentregavacomInsensatapaixão.

—Que tensadizer-me,Horemseb?É felizou tristenotícia— indagouela,erguendoparaopríncipeumolharplenodeamoredeansiedade.

—Querocomunicar-tequemortalperigoameaça-me,porquefuitraído.

—Neithsoltouumgrito.Essemomentoelaoprevira,eemvãosuplicararenunciasseeleàvidaculposa,queterminariaporperdê-lo.

—Quemtetraiu?

— Sargon, teu marido, que, disfarçado em escravo, se introduziu neste palácio, e, tendoespionadotudo,denunciou-meaHatasu;mas,pagoucomavidasuasespionagens,porqueTutmésapunhalou-o. Uma comissão de padres, acompanhada de soldados, chegará aqui, amanhã, paraprender-me, sob acusação de sacrilégio e feitiçaria e outros crimes incríveis. Acusar-me-ás tutambém,Neith?Narrarástudoquantovistenestesrecintos?Ouamar-me-ásbastanteparaguardarsegredoenãorevelarcoisaalgumaaossacerdotes?

Ajovemmulherrecuou,muitopálida,revelandonoexpressivosemblantealutaviolentaentre

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averdade,queestavaacostumadaadizer,eamentiraquelheerasolicitada.Ocoraçãodopríncipecontraiu-se: se a força do feitiço não chegara a subjugar aquela altiva e honesta natureza, aderradeira esperança estava perdida. Com um enrouquecido suspiro, Neith contorcia as mãos;compreendia que a revelação da verdade implicava na morte de Horemseb; e como viveria ela,quandoseextinguisseparasempreaqueleolharde flamaquetão fundopenetravaoseu?Aquelavoz harmoniosa calaria por toda a eternidade?... Comprimindo as têmporas com as mãos, efundindo-seempranto,exclamou:

—Não;não;nuncaumapalavradaminhabocatetrairá,meubem-amado;morreriaantesdoquedesvendaraospadres coisasque te acusariam;para te salvar, sacrificareimil vezes aminhavida;mas,tu,foge!foge!

Horemsebabraçou-aapaixonadamente.

—Agradecido!Antesdafuga,desejavaunir-meatiparatodaavida.Sargonmorreu;nadateimpededeserminhaesposa,e,poristomesmo,minhasalvação.

—Deacordo!Euodesejo;mas,dequemodonossoconsórciotesalvará?—balbuciouela.

—Defenderás,peranteHatasu,acausadeteuesposo,elheobterásoperdãodoserros.

— Oh! sem dúvida, eu lho suplicarei, como jamais o fiz, porém, apesar da sua bondade,atender-me-áemtãogravecaso?

Horemsebcurvou-separaela,olhosbrilhando.

—SeexistenomundoumseraoqualHatasunãosaberárecusarcoisaalguma,essealguém,éstu,suafilhaedeNaromath,oúnicohomemqueelaamou.

—Arainha,minhamãe?—repetiuNeith,estupefata.

Recordando,porém,ainexplicávelafeiçãoqueasoberanalhetestemunhava,easpalavrasdeSatatisobreummisteriosoeloqueasligava,ficouconvencida,e,enlaçandoopescoçodopríncipe,exclamou,comexaltação:

—Sim,sim,arainhanãodesejarádestruirafelicidadedesuafilha,etesalvará.Oh!depressa!providenciaparanossaunião,afimdequeeutenhaodireitodetedefender.

Horemsebexplicousucintamenteoplanoquearquitetara,e,sessentaminutosmaistarde,umabarca fechada conduzia o casal a Sais. O príncipe ordenara a Hapzefaá conservar o palácioestritamente fechado até seu regresso, e acelerar a demolição do deus; mas, embarcando, e àmedida que a sombria silhueta do palácio desaparecia da treva, baixou a cabeça sob turvaprostração.Neith,coraçãocontraídoporlúgubrepressentimento,inclinouafronteparaopeitodopríncipeedesatouachorar.

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VII

AMORTEDESARGONFatigadoseprofundamenteagitados,SargoneKeniamunchegaramaTebas.Haviamviajado

comtodaaceleridadepossível,porqueopríncipehiteno fervilhavapor fazer seu relatoà rainha.Certamente,anotíciadequeNeithestavavivadeveriaencherseucoraçãodejúbilo,eeleconheciabastanteHatasuparaestarsegurodequealibertaçãodajovemesposaeapuniçãodosdelitosdeHoremseb, castigo que abrandaria a sua sede de vingança, não se fariam esperar. Munido dospapiros que continham a correspondência com Neftis e um traçado da planta do palácio e dosjardins, traçado feito durante a viagem, Sargon rumou para a residência real, e, sabendo, comsatisfação,queChnumhotepestavadeserviço,pediuparavê-loImediatamente.Ochefedasguardasrecebeu-ocomtantaalegriaquantosurpresa.

—Deondesurgestu,Sargon?PensamosqueoNiloteengolira.Equepéssimosemblante!—acrescentou,apertando-lheamão.

— Lá, onde estive, o ar era detestável; mas, não é de mim que se trata: devo falarimediatamenteárainha,revelar-lhefatosdamaisaltaImportância.Podereiserrecebido?

— A rainha está na sala particular, com Tutmés. Vou pedir suas ordens — respondeuChnumhotep.

Apósligeiraespera,quepareceuinterminávelâimpaciênciadeSargon,ochefedasguardasreapareceu.

— Segue-me. SuaMajestade aquiesce em receber-te— disse ele, conduzindo-o, através deumasalaepequenagaleria,atéjuntodeumreposteirolistradodeouroebranco,quesuspendeu.

Achou-se Sargon num salãozinho, do qual um dos lados era aberto para um pátio interior,plantado de acácias, palmeiras e arbustos cheirosos. A folhagem desta luxuriante vegetaçãopenetravanoaposento,porentreascolunetaspintadas,formandocomoqueumgradildefrescuraeperfume. Juntodedouradamesadecedro,colocadasobreestrado,depinturavermelha,estavamsentadosTutméseHatasu,comumtabuleirodojogodedamaspostoentreambos;mas,oanúnciodeChnumhotephaviainterrompidoapartida,eojovempríncipetamborilavacomosdedosnoditotabuleiro,mostrandodescontentamento,eoolhardesceucomdesdenhoso rancor sobreohiteno,queseprosternaraapóshavertranspostoolimiar.

— Levanta-te, Sargon, e dize o que de grave tens a comunicar-me — falou a rainha,benevolamente.

— Filha de Ra, tua sabedoria decidirá do valor de minha narrativa, porém o que tenho aproferirsomenteporteuouvidopodeserescutado—respondeuSargon,fixandoTutmés,comolharsombrioesignificativo.

Opríncipeergueuacabeça,eumrelâmpagodecólerailuminouseusnegrosolhos.

— Fala sem temor; o Faraó meu irmão tem a minha plena confiança — disse a rainha,acomodando-senamesaeendereçandoamistosoolharaTutmés,que,satisfeitoereconhecido,sehavialevantado,e,apóslheapertaramão,apoiou-senoencostodacadeira.

—Poisqueoordenas,minhagloriosasoberana,falareiparadesvendar-tecrimesinomináveis—começouSargon,depoisdehesitarbrevemente.ÉdeNeithquesetrata.

Aonomedadesaparecida,arainhaestremeceueseuolharsevelou.

—Quesoubestesobreoseudestino?

—Elavive,porémestáempoderdopríncipeHoremseb.Estecriminosohomem,possuidordeumvenenodesconhecido,mas terrível, que submetea ele a almaeos sentidosdas suas vítimas,enfeitiçouNeith,queardedeamorporele.Atualmente,eleamergulhounumsonomaléfico,pois,insensívelqualmortaeapesardeviva,dormedesdeháalgumassemanasnumpavilhãoocultodojardim.

—Tensconsciênciadagravidadedesemelhanteacusaçãocontraummembrodafamíliareal?

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— atalhou suspeitosamente Tutmés. É mais admissível que um homem belo e sedutor, qual o éHoremseb, conquistasse o coração de Neith, sem sortilégio algum, e ela o tenha acompanhadovoluntariamenteeseescondanopalácioprecisamenteparateevitar,ati,Sargon,oesposoqueelajamaisamouecujaferozpaixãojáumavezlhepôsemperigoavida.

UmclarãodeódiomortalpercorreuosolhossombriosdeSargon.

—Oqueavanço,possoprovar,Faraó.Disfarçadoemescravo,introduzi-menahabitaçãodessepríncipe,nódoadoEgito,espioneisuavidaíntima,descobriseuscrimeseseussegredos.Seique,com a ajuda e sob a direção de um velho sábio, cultiva venenosa planta cujo sumo expande umaromaatordoantee escravizaquemo respira abrutaispaixões.Atira rosas vermelhas, saturadasdesse veneno, a quantas deseja ligar a ele por insensato amor, e ele próprio traz sobre si umperfume que as atrai invencivelmente, e, ainda, quando saciado de suas torturas, assassina asdesgraçadas, sacrificando-as a um ídolo impuro que ele adora, renegando as divindades do seupovo.Oh!minha línguaserecusaarelatartodososhorroresdequefui testemunha.Foiumadasvítimasdonigromante,miraculosamentefugidadoseupoder,quemmepôsnocaminhodaverdade.Essamulher,denomeNeftis,ajudou-me,eeisaquiacorrespondênciaquemantivemos,duranteaminha estada na mansão de Horemseb— acrescentou o narrador, fixando irônico e dissimuladoolharaorostosubitamentepálidodeTutmés,queestremecera,aonomedeNeftis.

—Conta, emminúcias, tudoquanto viste e apreendeste, pois desejo tudo saber—ordenouHatasu,comavozenrouquecidadeemoção,arrebatandodasmãosdeSargonastirasdepapiros,antesqueeleseajoelhasseparalhasentregar.

Com satisfação cruel, prelibando antecipadamente a vindita que se apropinquava, o moçohiteno relatou abreviadamente as revelações de Neftis, o plano que concertara com ela, Ísis eKeniamun,ebemassimamaneirapelaqualpenetraranopaláciodosdoisbruxos.Emcompensação,descreveupormenorizadamentetudoquantosurpreenderadavidadeHoremseb,desuasrelaçõescom Tadar, o misterioso sábio e guardião da planta nefasta, dos sacrifícios humanos que ambosofereciamaMoloc,e, finalmente,mencionouas festasnoturnaseasorgias inauditascomqueserecreavaopríncipeeàsquaisobrigavaNeithaassistir,maugradoohorrordainfortunada,horrorquelhedesfiguravaasfeições.

— Desgraçada criança! Serás liberta e vingada — explodiu Hatasu, trêmula de emoção ecólera.Semperderminuto,voudarordensparaquesejampresososdoismiseráveis,efareijulgarasiniquidadesqueexcederamapaciênciadosImortais.

Quis erguer-se, mas Tutmés, cuja palidez aumentara no decurso da narrativa de Sargon,curvou-sevivamenteepôsamãonobraçodeHatasu.

— Minha soberana e irmã, inclino-me sempre ante a tua vontade, guiada por umasuperioridade de espírito que reconheço;mas, por esta vez, antes de tomar resolução definitiva,permite-mealgumasponderações.Nãoserálamentávelimprudênciaentregaraopoderdospadresum príncipe ligado à nossa casa? Esses homens, insolentes e ávidos de poderio, não deixarãodecertofugiresteensejodeseapossardaimensafortunadeHoremsebehumilharafamíliareal,condenandoumdeseusmembrosamorteinfamante.Reflete,igualmente,emque,seoescândalosetornarpúblico,opânicoseespalharánopovo,quepassaráaenxergaremtodapartemalefícios,eesse segredo perigoso, conhecido somente de Horemseb neste momento, tornar-se-á espólio detodos; as rosas que ele atirava, e que talvez se conservem em poder dos parentes das vítimas,tomar-se-iam, nas mãos dessa gente, terríveis armas a serviço dos seus interesses. Enfim, porderradeiroargumento,fareiobservarqueessaNeftis,denunciantedopríncipe(cujoprincipalfeitiçoé talvez a sua formosura), pode, quiçá por ciúme, ter inventado muitas coisas, pois a amanteabandonadaeexasperadaécapazdetudo.Suplico-te,Hatasu,confia-meoinquéritodestecaso:euterestituireiNeith,destruireiaplantavenenosaeporeifimaestahistória,semrepercussãoesemnissoimiscuirospadres.

Arainhaescutara,comatenção,oespeciosoplanodesenroladopelojovempríncipe:aidéiadeserjuizúnicoemtalassuntodefamília,comexclusãodossacerdotes,evidentementeagradavaaoseucaráteríntegroeimperioso.

—Tuésmuitojovem!—ponderou,entretanto.

—Setemesquemefalteprudênciaeseveridade,associaSemnut—rogouTutmés.Comeleealgunshomensdevotados, ireiaMênfis,e faremosInquéritossecretos.SeHoremsebforculpado,verdadeiramente,detudoquantooacusam,semereceramorte,morrerá,massemruído,eahonradenossaraçapermanecerápuradeopróbrioedemácula,porque,qualquerquesejasuaculpa—énossosanguequelhecorrenasveias.Sónóspodemosjulgar,etucondená-lo;ospadresnadatêmafazeraqui,eeuexecutareifielmentecadaumadastuasordens.

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Com agitação sempre crescente, Sargon acompanhara a conversa entre irmão e irmã, nãoduvidandodequeTutmésqueriaintervirnestecaso,paraimpediradescobertadasuacumplicidadecomainfelizNeftis;dequeopríncipe,queporessemesmovenenohaviaconquistadoopostoquedesfrutava, jamaisusariaparacomHoremsebamerecidaseveridade,edeixá-lo-ia fugir talvez.Opensamentodeque,graçasaesteTutmés,tendonomomento,aopescoço,umcolarquesabiaprovirdeNeftis, omiserável que lhe roubaraNeith, que pisara aos pés todo o sentimento humano,—estariaasalvodadesonraeda justiça—tornando inócuoopesadosacrifício—essepensamentodeuvertigensemSargon.

—Rainha—exclamouemvozdestimbrada—hácrimestãograndesqueapuniçãodelesdeveser proporcionada. Empenhando minha vida nesse perigoso empreendimento, jurei que, se osImortaismeprotegessem,arrastariaesseindignonigromanteatravésdasruasdeTebas,cobertodecorrentesedeopróbrio.Quecaiasobreeleacolheitadoquesemeou!Etu,FaraóTutmés,nãoteencarregues de um julgamento que poderia ser muito pesado aos teus ombros: recusarias eabrandarias, talvez, ante operfumedas rosas rubras edos colares enfeitiçadosqueencadeiamaalmaeavontadedasmulheres.

OtomeolharqueacompanharamestaspalavrasfizeramsubirumfluxodesangueaorostodeTutmés.

—Insolente!—gritou fora de si. Teu ciúme contraHoremseb te cega ao ponto de ousaresintrometer-tenaconversaçãodeteussenhores!

Depois,dobrando-sedetodoparaHatasu,queviasurpreendidíssimaaalteraçãoeofurordeambos,disse:

—Minhairmãesoberana,emsinaldeteufavoreconfiança,dequenãodesmereci,concede-me,naqualidadedeprimeiropríncipedosangue,regularesteassuntodefamília.

Sargon, que seguia cada um dosmovimentos, compreendeu o intento de Tutmés: o aromaenervantedocolardeviaatingiroolfatodairmãesubmeteravontadeindependenteeenérgicadeHatasu.InsensataraivadevorouSargon,deixando-lhevividoapenasumpensamento:destruiratodocustoosortilégioquelheiafurtaravingança.

—Abaixoo feitiçopeloqualcaptasaafeiçãodarainha!QueelasaibaqualarazãoporqueacobertasHoremseb e temes o processo—gritouSargon.E não se diga que umFaraó deEgitogoverna—emvezdeporsuavontade—pelomalefíciodeumbruxo!

Atirou-sefeitolouco,paraTutmés,e,pegando-lheocolar,lhoarrancoucomtalviolênciaqueosanéis,quebrados,eosamuletosseespalharamportodoorecinto,eodonocambaleou,soltandoumgrito.

—Ah!bandodetraidores!—dissearainha,voltando-selívidaemedindooirmãocomolharfaiscante.Nemaminhapessoarespeitaste.Agoracompreendoarosavermelha!

Tutmés,quecontemplaracomoqueaparvalhadoospedaçosdocolar,pareceutornarasi.

—Víbora,caluniador,morre!—rugiuele,destacandodacinturaumpunhal.

EantesqueSargon,aquemnãopoderiaocorreraidéiadenadasemelhanteempresençadarainha, pensasse emdefender-se, caiu-lhe emcima, qual tigre, e lhe afundoua armanopeito.Ohitenotomboucomselvagemgrito.

—Acudi,meusguardas—gritouestridentearainha.

EvendoTutméserguerobraçoparadesferirsegundogolpe,agarrou-oelhetirouaarma,comaforçaedestrezadasquaisninguémaJulgariacapaz.Espumando,doidodeira,Tutmésrefez-seedifícilseriapreverosubsequente,senesseminutonãofosseabertooreposteiroenolimiardaportanão surgissem Chnumhotep, arma em punho, seguido de numerosos oficiais e soldados. Ante oquadrovisível,ochefedasguardaspareceude iniciopetrificado,mas,dominando-se,determinouque fossem vedadas todas as saídas, e depois, com os companheiros, postou-se junto da rainha,aguardando ordens. Punhal ainda na mão, Hatasu continuava de pé, muda e imóvel qual umaescultura,osgrandesolhossombriosfixados,coruscantes,sobreoIrmão,que,inseguroquantoumébrio,seapoiavafortementenamesa.Nemporuminstanteadenodadamulherperderaapresençadeespírito,eapenasoarfartumultuosodoseioeotremornervosodoslábiosdenotavamqueuma,borrasca se desencadeava no seu íntimo. Durante alguns segundos, temível silêncio reinou nacâmara;depois,Hatasuarremessouaarmasangrenta,e,avançandoumpassoparaTutmés,disse,emvozalterada:

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—Saidaqui!Enãoousesaparecerantemeusolhos,semsereschamado.Eutefareisaberaminha resolução. E, até lá, Chnumhotep, que o príncipe não se mova do seu apartamento, semordemminha,formal.Responderásporissocomatuacabeça.

Tutméssoltouestranguladaexclamaçãoecaminhouparaaporta;mas,talvezporqueoacessode fúria que tivera reagisse mui violentamente sobre a sua nervosa constituição, de súbito,cambaleouecaiudesfalecido.Enquantootransportavam,sobavigilânciadochefedasguardas,arainha ajoelhou junto de Sargon e apoiou o ouvido sobre o peito do ferido. Imediatamente,estremeceuelevantou-se,lestamente.

—Respiraainda;depressa,chamemmédicos.Evósoutros,levantai-o.

Ergueram Sargon e estenderam-no, com precaução, num leito de repouso, e a rainha, elaprópria,bandouprovisoriamenteaferida,comumafaixatomadaaumdosoficiais.Tiglat,ovelhomédico hiteno, acorreu em primeiro lugar, e, fundamente emocionado, curvou-se sobre oapunhalado.

—Oh!rainha,todoosocorrohumanoéinútil;aferidaémortal—dissedolorosamente.

Um sábio egípcio, chegado nesse interregno, confirmou o diagnóstico. Sombria, supercíliosfranzidos,HatasunãohaviaabandonadoacabeceiradeSargon.

—Quanto tempoviveráainda?Recobraráoconhecimentoepossível lheserá,então, falareresponderàsperguntasdeumconselhoextraordinário?—perguntou,emalteradavoz.

—Resistirá até aopôrdo sol, e, segundo creio, recobraráos sentidos, respondeuomédicoegípcio.Seordenares,Faraó,dar-lhe-emosremédiosqueanimarãoasderradeirasforçasvitaiselhepermitirãofalar.

—Fazeitudoquantoestiveremvossopoderparalhedaraforçaderepetir,anteoConselho,odepoimentoquehápoucomeprestou.

EnquantoosmédicossedesvelavamjuntodeSargon,Hatasupassouparaacâmaracontígua,ondeestavareunida,silenciosa,verdadeiramultidãodeoficiaisecortesãos,ansiososeperturbadostodos,porqueanotíciadeumaextraordináriacenanoapartamentorealcircularaemtodoopalácio.

—Ameni!—chamouarainha.

Umjovemcortesão,jáagraciadocomumcolardehonra,aproximou-se,respeitoso.

—Envia imediatamentemensageirosaosGrandesPadresdosprincipaisTemplos,aSemnut,aosAntigosdoConselhoSecretoeaochefedosescribasdaminhamesa,comordemdesereuniremaqui— imediatamente.Ordenaaosmensageiros iremcorrendo—acrescentouela, comumolharquedeuasasaAmeni.

Sem atentar nos cortesãos ali reunidos em assembléia, voltou costas e regressou para acabeceiradoferido,observando,silenciosamente,osesforçosdosmédicosparareanimá-lo.

Ao fim de meia hora, Sargon reabriu os olhos, e surdo gemido saiu-lhe da boca.Imediatamente, Tiglat soergueu-o com precaução, enquanto o padre lhe aproximava dos lábios ocopocheiodeumabeberagempreparada.Tendoingerido,Sargonpareceureconfortadoeseuolharseavivou.Então,Hatasuergueu-se,e,ordenandoaosmédicosafastarem-separaooutroextremodacâmara,curvou-separaoferido.

— Reúne tuas forças, pobre filho para repetires quanto me disseste ante um Conselhoextraordinário que vai reunir-se — murmurou ela. Teu depoimento será a perda do miserávelsacrílego.Apenas,nãomencionesqueTutmésusouoaromacontramim.

Selvagemclarãodealegriaanimouosolhosdomoribundo.

—Silenciarei sobre o sacrilégio ousado contra ti;mas, prometes-me, Faraó, não agraciar oinfame?

FrioecruelsorrisodeslizoufugitivopeloslábiosdeHatasu.

—Tranquiliza-te:serásvingado.Poragora,basta;nãoteesgotes.

Cercadetrintaminutosseescoaramemprofundosilêncio,quandoSemnutapareceu,pálidoeinquieto,eanunciouàrainhaqueosdignitáriosconvocadosestavamreunidos,aguardandoordens.

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Arainhatomoualgumasbrevesdeliberações,executadasprontamente.Oleitodoferidofoipostonomeio do aposento, a poltrona real ao lado, e bem assim alguns tamboretes para os mais velhosdignitários,esobreumaesteiracolocadososapetrechosnecessáriosparaescrever.Terminadostaispreparativos,ingressaramosdoConselho.Hatasu,então,levantou-seedisse,emtomfirme:

—Veneráveisservidoresdosdeuses,evós,fiéisconselheiros,euvoschameiparaqueouçaisda boca do próprio acusador os crimes e sacrilégios que ele atribui ao príncipe Horemseb.ChamadosavelarpelajustiçaerespeitodevidosaosImortais,vósdeliberareisepronunciareis,emseguida,avossadecisãosobreoassunto.Agora,aproximai-vos,porqueavozdoferidoéfraca,etu,Nebsuon,prepara-teparatomarporescritoodepoimentodopríncipeSargon.

Depois de todos agrupados junto do leito, Semnut soergueu o enfermo, e, acomodando-o,sustentadoporalmofadas,lhedisse:

—Falaagora;osveneráveishomensreunidosaquiestãoprontosparateouvir.Narracomamaiorexatidão,porqueaqueleaquemacusaséummembrodafamíliareal.

Com a voz fraca, entrecortada, porém audível, começou a narrativa. Quando o fôlego lheescasseava, omédico acudia com a bebida reanimadora das forças do agonizante. Ao chegar aoculto prestado aMoloc, exclamações de horror e de assombro irromperam de entre os egípcios;mas, mortal palor cobria a fisionomia de Tiglat. Tendo, com esforço, terminado o depoimento,Sargondescaiu,sufocado,nasalmofadas.

— Ar! Afogo-me! — murmurou ele, ao fim de alguns Instantes. Levem-me à sotéia, porderradeiravez:queroverocéu!

— Quais são tuas ordens, Faraó, para um caso tão extraordinário? — perguntou um dosGrandesSacerdotes,dominandoatumultuosaagitação,excitadapeladenúnciainauditadeSargon.

— Quero que a justiça siga seu curso tão inexoravelmente como se se tratasse de um“parachite”(21)— respondeu Hatasu. Ficai aqui e discuti as medidas a tomar, enquanto velo osúltimosminutosdaquelequeacabadeprestartãoImensoserviçoaoEgito.

(21)PARASHITE-Naclassedosembalsamadoresprofissionais,aqueleque,nopreparodasmúmias,eraoencarregadodedarocortelateral,nocadáver,pararetiradadasvísceras.

Duranteessecolóquio,vendotodosafastados,Tiglatabaixouvivamenteparaoferido,edisse-lhe,vibrantenavoz:

—Traidor,queatraiçoasteudeus,eentregasàmorteumhomemveneráveldeteupovo;sêmaldito!

UmrancorosolampejodedesprezoIluminouosolhos,meloextintos,dohiteno.

—Essedeusquenosentregouàdestruiçãoemedeixamatarqualaumaferadasselvas,essedeuseurenegoedetesto!—murmurouele.

E,presadedebilidade,calou.Arainhaaproximara-see,porsuaordem,oferidofoiacomodadonumacadeiradeencostoealgunshomensvigorososconduziram-noà sotéia, retirando-sedepois.ElaeSemnutforamosúnicosaficarjuntodomoribundo.

O olhar embaciado de Sargon divagou pela paisagem que se estendia a seus pés: o Sol iasumir na curva do horizonte, espetáculo maravilhoso naquelas regiões; dir-se-ia que a Naturezadesdobravatodososseusesplendoresafimdetornarmaispenosoparaodesgraçadomoçooadeusàvida;numcéudeslumbrante,marmorizadodeveiosróseos,rubros,metálicos,unindo-se,porumafaixailuminadadeverde,aohorizonteazul-safira,oastro-reidesciarapidamente,transformandoemfeéricapaisagemaTerra,que iaabandonar.Comoqueporúltimoadeus, tudose iluminou,e,sobessecéudejóias,todasasconstruçõespareciamdeouro,oscamposeos jardinsdeesmeralda,odesertoaolonge,qualametistaimensa,cujamolduradecolinassefundianabruma.

—DestinomisérrimoquemefeznascerlivrenasbordasdoEufrates,paratrazer-meaoNiloemorrerescravo!—ciciouele,comindizívelamargura.

Arainhaacercou-semaiseapertou-lheamão,comumalágrimaempérolanoslongoscílios.

—Pobre filho!Quis fazer-teditoso,masmeupoderévãoantea fatalidadequedestruiuteudestino.

— Eu te agradeço, Hatasu, tua bondade para comigo jamais me abandonou, e disso darei

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testemunhoaNaromath,quandoavistarasuasombra.Contraasortequepodiastu?LibertaNeith,nãoadeixesentreasmãosdoímpio.

—Podesduvidar?Demais,eutejuro.Quederradeiramensagemdevotransmitiràtuaviúva?Nãocreiasqueelatenhapretendidofugirdeti;Neithévítimadosortilégio;euseiqueeladesejavarepararsuaimprudênciainfantileserjuntodetiumaesposaafetuosaededicada.

Fracosorrisoluziunoslívidostraçosdomoribundo.

—Dize-lhequeaameiacimadetudonomundo,equemorriparalibertá-la.

Avozfaltou-lhe;sanguinolentaespumasubiu-lheàboca,seguidadeumatorrentedesanguerútilo.Retesou-se,olhosparados;ligeiraconvulsãosacudiuseucorpo.Depois,inteiriçou-se,enãosemoveumais.

—Tudoterminou,Faraó:estámorto!—disseSemnut.

Arainha,querecuaravivamente,nadarespondeu.

Seuobscurecidoolharvoltou-separaocéu,cujasúltimas tintasdeazul-anil se fundiamnastrevas;mas,instantesdepois,passouamãopelosolhos,eserefez.

—Voudescer.Tu,Semnut,encontra-menacâmaradoConselho,logoquehajasdadoordenscom relação ao morto. Toma cuidado para que o corpo do príncipe seja embalsamado como seprocedecomasmúmiasrealengas.

Quandoarainhareapareceuentreosdignitários,compreendeu,pelasfisionomiasafogueadasepelaagitaçãodetodos,queadiscussãoforadasmaisvivas.

—Eentão?Quehaveisdeliberado?—inquiriuela,retomandoseuposto.

Ranseneb, que substituía o Grande Sacerdote de Amon, acamado desde algum tempo,aproximou-serespeitosamente.

—Somosdeaviso,Faraó,queconvém,emprimeirolugar,prenderoculpado.Paratalfim,umacomissão,de tuaescolha, deverá ir aMênfis, e, conjuntamente comAmenófis, visitar opalácio eapoderar-sedapessoadopríncipeedoseucúmplice.

—Ameu ver, um criminoso da têmpera deHoremseb não se deixará agarrar facilmente: ébastanteatrevidopararecuarmesmodiantederebeliãodeclarada—observouumvelhodignitáriodo Conselho Secreto. Por detrás dos sólidos muros está como se fosse numa fortaleza; os seusescravossãonumerosos,edefender-se-á.

—Émister,pois,paraprevenirtodaeventualidade,queacomissãodisponhadeforçaarmada—disseHatasu.Ranseneb, é a ti quedesignoparadirigir o inquérito emMênfis.Amanhã, dareitodas as ordens indispensáveis, e, à tarde, o Conselho reunir-se-á novamente, para decidir emdefinitivosobreasúltimasmedidasaadotar,eescolherosmembroscomponentesdacomissãoqueacompanhará o profeta. Tudo deve ser feito depressa, a fim de que nenhuma notícia advirta ocriminoso.

Ficandosó,arainhaisolou-se;mildiversossentimentostrabalhavam-lheaalma.Anotíciadeque Neith, a filha que tanto pranteara, estava viva, inundava-a de júbilo; o pensamento de queTutmés,oinsolenterapaz,ousaraenfeitiçá-la,edepoisassassinar—anteelaprópria—oirmãodeNaromath,faziafervilhar-lheosangue.Mas,poucoapouco,todasessassensaçõesfundiram-seemodientairacontraHoremseb.Paracastigaroaudacioso,queseatreverapôrasimpurasmãossobreafilhaquerida,osacrílego instigadordetantoscrimes,nenhumatortura lhepareciasuficiente.Àsimpleslembrançadele,osdedosdarainhacrispavam-seeimplacávelcrueldadeempedernia-lheaalma.

Natardedesseagitadodia,jáainformaçãodosacontecimentossobrevindosnopaláciorealseespalhara na cidade, e esses mesmos Informes, engrossados, amplificados, desfigurados até,encheramdesurdosrumoresaimensaCapital.Umfundodeverdadetranspirara,emconsequênciada indiscrição de funcionários subalternos, e a notícia de que Sargon morrera, assassinado nodecursodesangrentarixacomTutmés—empresençadaprópriarainha,corriadebocaemboca,comas variantes cadavezmais inverossímeis.Algunsacreditavamemconspiraçãoabortadapelohiteno,oqueconfirmavaaconvocaçãoextraordináriadoConselho,reunidoempalácio,dandoIdéiade que a rainha havia perecido, boato que acarretou congestionamentos de gente defronte aopalácio;mas,apresençadeHatasu,que,em liteira,acompanhadadocostumeiroséquito, rumaraparaotemplo,aquietaraopovo.

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OutrosnarravamqueSargon,paravingar-sedoexílio,tentaraassassinararainha,noqueforaimpedidoporTutmés,enquantooutraversãopretendia,bemaocontrário,queTutméspretenderamatarairmã,eSargonhaviaperecidoemdefesadesuaprotetora,apóshaver,durantealuta,feridogravementeoherdeirodotrono,tendosidoTutméslevado,semsentidos,paraseusaposentos.

Quem primeiro imiscuiu nomisterioso caso o nome deHoremseb foi difícil constatar,mas,bruscamente, o príncipe nigromante passou a desempenhar, no acontecimento, papelpreponderante.Contava-se,comarrepios,queHoremsebhaviaraptadoematadoabelaNeith;queestavaacusadodeenfeitiçamento,desacrilégioedeoutroscrimesinomináveis,ea lembrançadamorte violentade tantasmoças, vítimasdo seu loucoamor, ressuscitouem todasasmemórias, eapenasaInexplicávelquerelaentreSargoneTutméstornavaembrulhadasasvariaçõesdoocorrido.Eraadmissível,também,queadescobertadosdelitosdofeiticeirofosseacausademortalcombateempresençadoFaraó.

Enquantoessasestranhasecontraditóriasnovidadescirculavameeramdiscutidasnasruas,agitaçãobemmaioraindareinavanospalácios:Satati,aodespertar,ouviradePairumaparceladaverdade; em seguida, este, indo à casa de um padre, seu parente, obtivera detalhes aindamaiscircunstanciados, corroboradospelasnotíciasqueeladiretamente colheranaCorte.Neithestavaviva, e isso fazia que o casal se enchesse de alegria. Embora por motivos diferentes, ambosconsideravama jovemmulher—fonteegarantiada fortunadeles.Mena,queestiveradeserviçonessa noite em palácio, chegou ao lar multo depois do meio-dia e excitou surpresa na tia, peloaspecto concentrado e pela indiferença demonstrada com relação aos acontecimentos queapaixonavam toda a Tebas. Após um novo giro, à. noite, o oficial declarou que urgente assuntoreclamava-oemdistantepropriedade,eque,tendoobtidolicençaparaisso,partirianamadrugada.

Emoutraocasião,Satatisuspeitariaqualquermistérionacondutadosobrinho,mas,naquelaoportunidade, tanto quanto omarido, estavamuito preocupada para reparar emMena. AgitaçãobemmaioraindadevoravaRoant;emvezderegressar,ànoite,terminadasasobrigações,oesposoenviara-lhelacônicamissiva,anunciandoqueocorrênciasimprevistasoretinhamaindaempalácio,equeelanãosedevia inquietar.Apesardesta finalrecomendação,Roantestavaatormentadapormil suposições,e,pelamanhã,quandoo rumorpúblico lhechegouaoconhecimento,o temoreacuriosidadeaumentaram.Avisitadeduasamigashavialevadoaoaugesuainquietude,poisessasduas mulheres, esperançadas de conhecer a verdade por intermédio da esposa do chefe dasguardas, sem dúvida melhor informado do que ninguém, passaram à visitada todas asextravagânciascomquesematizavamanotíciadamortedeSargonedadescobertadosdelitosdeHoremseb.Ficandosó,Roantandouereandounosaposentos,comansiedadesempreprogressiva.Chnumhotep não viria mais, para confirmar ou desmentir tudo quanto acabara de ouvir?Finalmente,opasso,lestoefirme,dochefedasguardasressoounaprimeirasala.Todaperturbada,Roantcorreuaoseuencontro,e,semmesmorepararqueomaridonãovierasozinho,atirou-se-lheaopescoço.

—Afinal,chegaste!Oh!Dize-meaverdadearespeitodetudoquantoestãonarrando.

—Sesoubesseaverdade,eumesmoestariabemsatisfeito—respondeuele,meioarir,meioagastado.Enfim,possodar-teduasnotíciascertas:NeithviveeSargonmorreu.Eagora,tornaati,esaúdaKeniamun,quenãosabemaisdoquetodos,arespeitodobeloHoremseb,que,parece,éumcanalhasemrivalnomundo,atéodiadehoje.

Algoconfusa,RoantsaudouKeniamun,quepareciatristeepensativo,e,emseguida,guiouosdoishomensparaoterraço,ondevinhoepastéisaguardavam-nos.

—Aquiestamosaoabrigodeindiscretos;dizeiambos:Entãoépossíveltalventura?Neithestáviva?

— Sim, está viva, porém não te rejubiles demasiado — respondeu Keniamun, enquantoChnumhotepenchiaumcopocomvinho.Atualmente,a inditosaseencontramergulhadaemsonoenfeitiçado,quenãoénemvida,nemmorte.Conseguirádespertar?Aindaéumapergunta.Sargon,queseintroduziranopalácio,disfarçadoemescravo,descobriu-a,tentouemvãoreanimá-la.

— Deuses imortais! Horemseb será em verdade um feiticeiro? — exclamou Roant,perturbadíssima.

—Piordoque isso:éumenvenenador,quecultivacertaplantaembruxada,daqualosumoexcita loucapaixãoporele;rosasrubras,temperadascomtalveneno,sãoofertadasàsvítimas,e,quandodelassefarta,assassina-as,bebe-lhesosangueouassacrificaaumhorrendoídolohiteno.Porvezes,faz-seadorarcomosefosseelepróprioumdeus,e,paraquenenhumservopossatraí-lo,eleosmutila,cortando-lhesalíngua.Mas,deixa-menarrar-te,emminúcia,tudoquantosei...

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EKeniamundescreveuoqueouviradeNeftisedeSargonsobreavidadobruxo.

—Oespíritorecusaconcebertãoespantososcrimes—murmurouRoant,queescutara,pálidaecomoquepetrificada.Equesefaráagora?

—Umacomissão,daqualfareiparte,porserumadasprincipaistestemunhas,vaiseguirparaMênfis— respondeuKeniamun.Saía eudopalácio, aonde fui chamadoparaprestar depoimento,quandoteumaridomeencontrou.

—Mas,qualfoiafinalacausadamortedeSargon?Contam-seaessepropósitotantasversões,queéimpossíveldestrinçaraverdade—disseajovemmulher.

— Sobre isso, não compreendo coisa alguma, embora haja sido uma das primeirastestemunhas da aventura — comentou Chnumhotep, pensativo. Ao grito de chamada, dado pelarainha, nós nos precipitamos no aposento; Sargon já estava caído no chão, nummar de sangue;Hatasu, toda fremente, segurava namão o ensanguentado punhal de Tutmés, e, este, como queenraivecido,pareciaquereratirar-sesobreela.Quehaviaacontecido?Édifíciladivinhar.Quandoarainha o fez prisioneiro, ele desmaiou, e desconheço o que ocorreu em seguida, porque recebiordemdeguardaràvistaTutmés.Disseram-meapenasqueSargon,reanimadopelosmédicos, fezanteoConselhoseuarrasadordepoimento.

— Será que Tutmés, tão orgulhoso que é, arrebatado pela cólera, matou o hiteno, ante aaudaciosaacusaçãocontraumparentedafamíliareal?—observouRoant.

— Pode ser; embora, quanto a orgulho, a irmã valha o irmão, a verdade é que Hatasuabandonou Horemseb à Justiça, sem restrições; ordenou seja o processo instruído com a maiorseveridade,semnenhumaconsideraçãopelasuahierarquia.

—DesgraçadoHoremseb,queterrívelsorteteaguarda!—exclamouRoant,emocionada.

— Guarda a tua compaixão para alguém mais digno do que esse celerado — disse, nomomento,umavoz,vibranteeirritada.

Todossevoltaram,surpreendidos.

—Roma,tu?SabesjáqueNeithestáviva?—exclamouRoant,correndoparaoirmão.

— Viva, talvez; que vale, porém, uma vida metade destruída pelo veneno? — respondeu osacerdote,comamargura.

Seu semblante, tão doce e tão calmo, exprimia agora uma cólera concentrada, uma durezarancorosaquejamaisselhenotara.

— De resto, as revelações de Sargon não me causaram surpresa; desde há muito eudesconfiava a verdade. Apenas, os indícios erammuito tênues para permitir-me acusar. Agora édiferente,e já fizminhasdeclaraçõesaRanseneb,quecorroboramasdohiteno,edeixeiemsuasmãosasprovaspalpáveisdaculpabilidadedeHoremseb.

Notandooespantodosseusouvintes,Romarelatou,abreviadamente,ascircunstânciasqueohaviamlevadoàpistadasrosasvermelhas,eosindíciosque,poucoapouco,tinhamfeitoconcentrarassuspeitassobreHoremseb.

— Pobre Sargon, seu devotamento e sua coragem foram verdadeiramente sublimes, e suamorteresgataoserroscomrelaçãoaNeith—concluiuRoma,suspirando.

— Também sua memória será rodeada de honrarias — informou Chnumhotep. A rainhaordenou o embalsamento igual ao das múmias da casa real, custeará os funerais, e Ransenebdeclarouquetodoocleroassistiráàcerimônia,cumprindoosritos,ediráasprecesusitadasparaospríncipes de raça, o que o finadomereceu, pelo serviço que prestou à religião, desvendando umsacrilégioabominável,e renegando,por issomesmo,odeus impuroesanguináriodoseuprópriopovo.

— Sim, ele bemmereceu das divindades do Egito; mas, uma outra razãome traz— disseRoma.Acomissãosegueamanhã,eporquedevoacompanhá-la,vimdespedir-medevós.

— Já amanhã? — exclamou Keniamun. Julguei que somente dentro de três dias partiria, eignoravamesmoquenosacompanharias.

—Eu solicitei, emboraRansenebmehouvesse escolhido, à revelia. £ compreensível queeu

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deseje rever Neith e reconduzi-la para aqui. Quanto à partida, está sendo acelerada o quantopossível:Ransenebardeporassentaramãosobreosacrílego.

—E também sobre a sua fortuna, que será presa dos templos—acrescentouChnumhotep,commaliciososorriso.

Enquanto Keniamun, o chefe das guardas e esposa continuavam a discorrer a respeito daincrívelaventura,Romasentou-se,e,apoiandooscotovelossobreamesa,abismou-seemprofundocismar: verdadeiro temporal de sentimentos sanhudos, desesperados, ciúme, se desencadeara naalmapuraeharmoniosadojovemsacerdote;previaoásperocombatequeoaguardava,apungentedor de ver a mulher amada preteri-lo por um outro, sob a ação do terrível veneno, do qual elemesmojáexperimentaraopoderio.E,aopensamentodequeoabominávelcriminosolheroubaraoídolo, paramanchá-lo, e de que, gota a gota, havia derramado o veneno e a corrupção na almahonestaecândidadeNeith,seuspunhossecrispavam,e,sempiedade,teriaentregueHoremsebàsmaisbárbarastorturas.Nenhumapuniçãoerabastanteseveraparaesseassassinodealmas.Quecenasespantosas,quevíciosrepugnantestinhammanchadooolhar,quesentimentosabomináveishaviamassoladoquiçátodooserdajovemmulher,queele,Roma,respeitara,nãoabusandonuncadopoderqueoamorlhedavasobreela?Quantapaciênciaeabnegação,quantalutaíntimacontraseulegítimociúmeprecisariasuportar,antesdeerguer,purificar,curartudoquantoomonstrohaviapisado,feridoedestruído?

A voz de Keniamun, que se despedia, arrancou o sacerdote aos pungentes pensamentos.Ergueu-se, igualmente,e,poucodepoisdooficial,deixoua residênciada irmã.Necessitavaaindaconcluirpreparativosparaestaremcondiçõesdeembarcarnamanhãseguinte.

Alguns dias após a partida da comissão para Mênfis, a rainha achava-se, sozinha, em umgabinetedoapartamentoparticular.Esseretirofavorito,'dashorasdeliberdade,estava,emgrandeparte, consagrado à lembrança de seu pai, Tutmés I, cujamemória era sagrada paraHatasu.Aofundodoaposento,emumnicho,via-seaestátuadofalecidorei;emprateleiras,estavamreunidosobjetosquelhehaviampertencido,algunstroféusquetrouxeradascampanhas,enquantopinturas,cobrindoasparedes, ilustravamosaltos feitosdoFaraó, suasvitóriasnasmargensdoEufratesesuascaçadas.

Osdiversosobjetos,armazenadosnessacâmara,provavamqueomóbilespíritodaocupanterecreava-sepordiferentesmaneiras:alifiguravamengenhosdecaçaepesca,planosemodelosdotúmuloemconstruçãonacidade-morta,ebemassimdosanexosdestinadosaotemplodeAmon-i2a.Umagrandeharpa,devinteequatrocordas,maravilhosamenteincrustada,jaziaaumcanto,eumtrabalhofemininopousavasobreumtamborete;mesadeexpediente,sobrecarregadadepapirosetabuinhas,instaladajuntodajanela.

Silêncio profundo reinava no gabinete e nas câmaras circunvizinhas, quebrado apenas peloroncarsonorodolebreirofavoritodarainha,quedormiaemgrandealmofada,listradaedefranjasnosdoisextremos.Recostadanoaltoespaldardasuapoltrona,Hatasurefletia,mas,ossupercílioscontraídos,seuolharsombrio,lábiosfortementeplicados,demonstravamqueospensamentoseramdesagradáveis. Realmente, a deliberação que tomara, e se preparava para comunicar ao irmão,custavavivalutaíntima.Sempreoolharvoltavaaumpapiroabertoerevestidodasuaassinatura.

Ao ruídodeumcaminhar, ora rápido, ora hesitante, que se aproximava,Hatasu retesou-se.Sabiatratar-sedeTutmés,aquemnãomaisavistaradesdeofataldiadamortedeSargon.Poucodepois,acortinabordadaaourofoiafastada,eaeleganteestaturadopríncipeapareceunamolduradaporta.Visivelmente, estavamaismagro e pálido; seu semblante, carrancudo e taciturno, diziaclaramentenãoesperarnadaagradáveldessaentrevistacomarealirmã;mas,nosolhosbrilhantesenarugadacaprichosaboca,alternavam-seapertináciaearesoluçãodesesperadadeencararoinevitável.Evitandooolharclaroeperfurantedarainha,andouparaela,e,semfazerasaudaçãodeestilo,cruzouosbraços,e,emsoturnotom,disse:

—Chamaste-me: eis-meaqui,minha irmã!— falou, acentuandoasduasúltimaspalavras—Quedesejasdizer-me?

Hatasufranziulevementeassobrancelhas,masorostopermaneceuimpassível,quandodisse,calmaesevera:

—Obstinação e insolência, em lugar de humildade e arrependimento, é o remédio eficaz,quandonãosepodenegar;éorecursodospoltrões,quetememumajustapunição.Ah!muitomeenganeicontigo,supondoque,comosangue,herdarasasqualidadesdealmadoteugloriosopai,oqual,armasnamão,triunfavadosInimigoseconquistavaomundo,reipelaaudácia,tantoquantopela origem! E “tu”, seu filho, filho que sonha ser um dia Tutmés, oGrande, armado de colaresenfeitiçadosedefloresenvenenadaséqueabrescaminhotortuosoparaopoder?Porhaverusado

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taismeios,vergonhasobretiesobreosanguerealquetecorrenasveias!

A medida que escutava, púrpura violácea invadiu as faces do príncipe; vergonha e raivainsensatasufocavam-no.Arfante,espumanoslábios,porinstantesnãopôdefalar.Depois,torrentedepalavras sofreadase incoerentesacudiu-lhe.Afinal, dominando-se, comesforço,balbuciou, emvozrefreada:

—Corta-meacabeça,masnãomeinsultes;prefirosermortodoqueridicularizadoporumamulher.

Hatasuobservara,sempestanejar,o loucoacessodeira,e,comamesmaserenidadeseveravibrandonavoz,respondeu,erguendoamão:

—Basta!Tornaati,insensato,ecala,quandoatuasoberanatefala.Nãotenhonecessidadedatuacabeça,meninoestúpido,quepõesatuahonraàmercêdeumarasteiramulherquevendefiltroseestáligadaaumatenebrosateiadecrimes!Tensnecessidade,euvejo,deumaescolamaisrígidadoqueavidadaCorte,paraseresdignodopoder.Vice-reidaEtiópia,ensaiarástuasforças;não esqueças, pois, desde este momento, que não é mais o rapaz malcriado, e sim o primeirofuncionáriodoreinoqueseachaempresençadoseuFaraó.

Ao título de vice-rei da Etiópia, um assombro incrédulo desenhou-se primeiramente noexpressivo rosto de Tutmés; depois, acalmando-se súbito, disse, com respeitosa gravidade, quetrouxelevesorrisoaoslábiosdarainha:

—Nãoolvidonapresençadequemestou;apenasobservoqueteuirmão,ovice-reidaEtiópia,comoacabasdechamá-lo,nãodeveserdenegridoedesconsideradoemsuapresença.

—Nãoforamasminhaspalavras,esimteusprópriosatosquetedesconsideraram;mas,queroesquecerotomestranhodastuasobservações.

— Sempre fui obediente executor das tuas ordens, minha irmã — ponderou Tutmés,enrubescendo.Minhafaltaúnicafoiusaroencantamento,semdelejamaisabusar,contentando-mecomatuaamizade,semteinspirarumloucoamor,oquemeseriatãofácil!

— És especioso na desculpa; apenas, desta vez, fazes de teu interesse uma virtude —respondeu,comironia,arainha.Nãosousuficientementejovemparaquemedesejesnaqualidadedemulher,e,emcontrapeso,meuamoremeuciúmeseriamosmaisincômodosdomundoparaumjovemlibertino.Agistesabiamente,preferindoaminhaamizadeenfeitiçada,queteproporcionariafacilmente todos os favores desejados. Agora, basta, sobre esse incidente: o que passou, sejaesquecido para sempre! Horemseb pagará os abusos provocados pelo filtro que inventou, e tuseguirás,dentrodetrêsdias,paraassumirocargo,comteuséquito,doqualdesignareiametade,deixando-te livre a escolha do resto dos teus companheiros. Émuito perigoso ter junto de si umirmãoarmadodefiltrosdeamor.Quemsabe?Terásaindaemreservaesseirresistívelmeiodeêxito?

—Não;hão.Atualmente,euprópriomehorrorizodisso—exclamou,vivamente,opríncipe.

— Tanto melhor! — disse a rainha, estendendo-lhe o papiro aberto diante dela. Eis a tuanomeação; torna-te digno da minha graça. Tu havias posto em minhas mãos terrível arma,enredando-te nesse criminoso caso; nunca me faças arrepender de haver resguardado tua vida,arriscandoquiçáaminhaprópria.Ofeitiçoagiaaindaemmim?Nãosei,masnãoquisdestruir-te.

Tutmés ajoelhou e recebeu, respeitosamente, o precioso rolo de papiro, que lhe restituíaliberdadeepoderio.

—Perdoa-me,Hatasu—disse,vozbaixa—edespede-mesemcólera.Nossaamizade,aidemim!eraenfeitiçada,masopoderdofiltroérecíproco,minhairmã;essemalefícioquemesalvou,tambémmeimpedirádeestenderamãocontratuacoroa.

—Se ele te inspirar paciência para aguardares, honestamente, que eu desapareça, e entãosubiresaotronodosteusprogenitores,essefiltroteráprestadoserviçosanóseaoEgito—dissearainha,commelancolia.Sabesqueésmeuherdeiro,aesperançadagloriosaraçadeTutmés.Vaiagora preparar-te para a partida, e possam os deuses assistir-te e conceder êxito em tudo queempreenderesnopaísparaondeteenvio!

Tutmés,sempreajoelhado,pegouamãodairmãeabeijou,comrespeitoegratidão;depois,despediu-seeretirou-sealegre,cabeçaerguida;suanaturezaelásticareconquistaratodooaprumo.

Hatasupermaneceuimersaemsombriaquimera,e,olharfixonaefígiedorei,murmurou:

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—Cumpriminhapalavra!Aconteceoquetemdeacontecer!

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VIII

DERRADEIRASVÍTIMASDepoisdapartidadeHoremsebedeNeithparaSais,ovelhosábio,queoshaviaacompanhado

ao embarque, reentrou, precipitadamente, no palácio. Sombrio e preocupado, subiu aomais altotelhadolisoeexaminou,atento,océuestrelado.E,quantomaisestudavaosastrosecalculavaossímbolostraçadossobreumpapiro,maisseusemblanteseanuviavaeassumiaexpressãodeansiosacólera.

—Sótrevas;constelaçãoterrível;presságiodedesgraçaemorte—murmurou.Éevidentequeforçasinimigasocarregam,eHoremsebnãoreingressarásenhornestepalácio.Elenãoquisfugir;équeodestinoinexorável lheobscureceuarazão.Fatalidademaldita!Quandopensoquemaisdoisanosdetranquilidadeainda,teriambastadoparaultimaragrandeobra,aconquistadavidaeterna!

Seus dentes rilharam e os fechados punhos ameaçaram o invisível. Tadar estava horrendonessemomento;o frenesi interior retorciaesacudia-lheocorpoossudo,eseusangulosos traços,seusprofundosolhosrefletiamiraemalvadezinfernais.Aofimdealgunsminutos,pareceuacalmar-se;passouasmãospelorostoeestirouosbraços.

—Atarefa,emvezdeperdertempoprecioso!—falouasimesmo.

Enrolou o papiro que consultara e desceu à sua câmara. Ali, pegou pequena ânfora, queescondeu na ampla vestimenta, e fez misteriosa excursão pelas despensas do palácio, o que lhecustou quase uma hora. Ao voltar, chamou Chamus, o qual, com Hapzefaá e todos os homensválidos,trabalhavanademoliçãodapirâmide.

—Deixai esse trabalho; vós o reiniciareis amanhã, quando eu o ordenar— disse. Agora, émister dar descanso aos homens, que devem regressar aos seus alojamentos. Vós, Hapzefaá eChamus,segui-me,ebemassimtodososeunucosevigias,àsaladerefeição.

Quandoalireunidos,Tadarfalou:

—Tomaicadaumospreciososcoposqueseachamnosaparadores,enchei-oscomovinhodasânforas.Bebeieguardaioscopos,dádivaquevosfazopríncipeHoremseb,emretribuiçãodovossozeloemservi-lonestemomentâneodissaborqueoatinge.Secontinuardesfiéisenãorevelardes,aquem quer que seja, tudo quanto tiverdes visto aqui de anormal, ele vos recompensará maisgenerosamente,quandoregressar,poiscompreendereisqueumparentedoFaraósedesenvencilhadequalquerembaraçoedequalquercalúnia.

Contentesesurpresosdetalmunificênciarégia,oshomensbeberam,protestandofidelidadeedevotamento,eretiraram-separadescanso.

—Agorasereisfiéisediscretos,tenhocerteza—murmurouTadar,irônico.Eaindavospoupeiatortura,quetalvezvossoltassealíngua.

Regressouaoaposentoedespiuaamplavestimentabranca,daqualfezumpacote,cingindo-secomoaventaldepanogrossoepondoo“claft”dehomemdopovo.Depois,atirandoàscostasosaco onde enfurnara diversas coisas, dirigiu-se ao jardim, que atravessou em toda a extensão.Habilmente disfarçada em espesso mato bravo, havia pequena porta secreta, de cuja existêncianinguémJamaisdesconfiaria,eque,aberta,lhedeupassagemaumsegundoabrolhal,nãodistantedasbordasdoNilo.

Tadar margeou o rio, sem encontrar viva alma, pois ainda era noite, e todos evitavam asvizinhançasdopalácioencantado.Semestorvo,esquadrinhouoscaniçaiseachoupequenabarca,naqual,agarrandoosremos,rumoucélereparaoladooposto.Tendocosteadoacidade-mortaatéseusúltimosconfins,encostouemlocalescondido,ocultouobarcoeprosseguiupedestremente.

Apósfatiganteerápidamarcha,chegoupróximodeumacadeiaderochas,nasquaisseviam,aquieali,negrasaberturas,rasgõeshiantesdevelhastumbasvioladaspormalfeitores.Aregiãoeraselvática,deserta,detotaldesolaçãoesupersticiosohorrorparaaquelesquealiseaventurassem,porque ali repousavam, em milhares de túmulos, gerações desaparecidas, contemporâneas dasprimeirasdinastiasfaraônicas.

Noentanto,maisdeumhabitantedeMênfisdeslizavamisteriosamenterumodessedesolado

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local,porque láviviaumhomemque,nacidade,desfrutava,maisoumenos,damesma famaqueAbracroconquistaraemTebas.Eraigualmenteumfeiticeiro,aparecidoalipoucodepoisdoregressode Tutmés I da sua campanha na Ásia. A voz pública tinha-o por hiteno liberado ou fugido, dequalquermodo,dosenhorqueotrouxera,eotipodomago,suatezclara,eosotaqueestrangeirocomque falavaumvernáculo egípciomui defeituoso, confirmava a suposição.Não se conhecia onomedoincógnito,e,porissochamavam-lheo“homemdamontanha”,eomistérioquelhecobriaoviverenvolvia-odesupersticiosotemor,oquelhedavamaissegurançadoqueadeumaescolta.

Desde sua aparição, o desconhecido da montanha não mais deixara o sítio solitário queescolherapararesidir.Dequesealimentava?Eratambémmistério,porquejamaisfaziacomprasenãoaceitava,absolutamente,qualquerremuneraçãodequantostinhamcoragemdevirsolicitar-lheconselhos. Tal desinteresse e a fama de extraordinário saber atraíam-lhe clientes, embora bemmenosnumerososdoqueosdeAbracro.

Chegado perto de um conjunto de rochas, Tadar escondeu-se e emitiu, com perfeição, oprolongado grito de um pássaro noturno, e idêntico som fez-se ouvir em resposta, som que,permutadotrêsvezes,emsinal,fezqueosábioencetasse,acorrer,caminhoparaacadeiaderocha.Àmetadedadistância,encontrouosolitário,queosaudou,comrespeito.

—Éaprevistadesgraçaquetetrazhoje,veneradomestre?

—Sim, Spazar; tudo vaimuito pior do que eu julgava. Entremos, porém, depressa, porqueestouexaustodefadiga.

Haviam chegado junto da montanha. Spazar, seguido do sábio, rastejou, com as mãos ejoelhos,porentrefragmentosdarochaegrandespedras;depois,ergueuumacortinadeespinhosepenetrou em longo e escuro corredor. Após muitas viravoltas, em completa escuridão, Spazarempurrouumalousadepedra,quegirousobresimesma,eingressou,comocompanheiro,emumacovabastanteespaçosa,iluminadaporlâmpada.

Eraantigasepultura,compostadeduascâmarassepulcrais,queohitenohaviaadaptadoparahabitação;oar,emborapesadoeaquecido,erarespirável.Quemdeitasseumolharàsegundadasduas divisões, não se admiraria de que o bruxonão comprassemantimentos, pois lá se achavamamontoadasprovisõesconsideráveis;carnesdefumadasesalgadas,frutassecas,queijo,mel,etc.,ebemassimgrandesânforasdeóleo,vinhoecerveja.AfontedetalabundânciaeraHoremseb,queautorizaraTadar a suprir seu compatriota de tudoquantonecessitasse.Cadamês, o velho sábio,durante a noite, transportava para lá todo o suficiente, e, depois do temor da descoberta, TadaresconderanorefúgiodeSpazarosseusmaispreciososhaveres.

Naprimeiracâmara,confortavelmentemobiliada,Tadarseestenderanumleitoderepouso,e,reconfortadoporumcopodevinho,narrouaSpazarosrecentesacontecimentos.

—SeHoremsebestivessecomigo,neste seguro teto,eunãodesesperariado futuro;mas,oinsensatopreferiufazerderradeiratentativaparasalvaraposição,ereceioque,nessaempresa,elevenhaaperderacabeça.Emqualquerconjuntura—concluiuovelhosábio,comumsuspiro—,eleconheceocaminhodoteuretiro,eaquiserefugiará,emcasodenecessidade.

Nodiaseguinteaodestaagitadanoite,cercadeseishorasdatarde,muitosbarcos,ocupadosporpadresemilitares,chegaramaMênfis:eraacomissão incumbidadeprocedera inquéritonopaláciodeHoremseb,chegadadeTebasalgumashorasmaistardedoquepreviraMena.EnquantoRanseneb, Roma e seus companheiros sacerdotais se encaminhavam ao templo de Apis, paracombinaçõescomoGrandePadreAmenófis,ecomunicar-lheodepoimentodeSargon,Antef,comodestacamentoquecomandava,dirigiu-seàcidadeparaentregarumaordemrealaocomandantedeMênfis.Keniamunficou,paralocalizaraflotilha,quedeviamanter-seàparte,semcomunicaçãocompessoa alguma. Estava ele incumbido igualmente de prevenir Neftis e fazer uma visita aoesconderijo do muro, para colher as últimas notícias. No dia seguinte, à alvorada, propunha-seforçaraentradanopalácio.Ooficialcomeçavaasubira ruaque,dorio,conduziaao interiordacidade,quando,comgrandeespanto,viuHartatef,que,sombrioepreocupado,caminhavaaoladode uma liteira fechada, que quatro homens carregavam com precaução. Keniamun aproximou-secélereebateunoombrodeHartatef.

—Penseiestaresaindaemteuposto—disse,apósasprimeirassaudações.Quetransportastunessaliteira,comtantomistério,seaperguntanãoforindiscreta?

—Termineiminhas ocupaçõesmais cedo do que esperava, e nessa liteira se encontra umajovemferidaqueosmeuspescaram,estanoite,noNilo,eeulevoparaTebas,paraonderegresso.

Sem esperar permissão de Hartatef, Keniamun pegou e ergueu a cortina da liteira, e, ao

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primeiroolharparaointerior,recuou,pálido,exclamando,comabafadavoz:

—Ísis!

—Conhecesestamulher,quemurmura incessantementeonomedeHoremseb?— indagou,vivamente,Hartatef.

—Sim,enãoéaTebasquedevesconduzi-la,esimaotemplodeApisimediatamente:salvasteuma terrível testemunha contra o bruxo!Mas, ainda não sabes nada; vou pôr-te ao corrente dosfatos,edepoistumedirásondeedequemodoencontrasteestapobrecriaturinha.

Keniamun relatou, abreviadamente, a morte de Sargon, seu depoimento, disse que Neithestavaviva,eaindaqueuminquéritosepreparava.Súbitoruborcobriraas facesdeHartatef,aoouvirasextraordináriasnotícias.

—Suspeitava tudo isso, desde hámuito, e nãome equivoquei, desconfiando que os deuseshaviampostoemminhasmãosterrívelarmacontraomiserável.Eisdequemaneiraissoaconteceu:Voltava eu, ontem à noite, quando, aproximando-me deMênfis, julguei ouvir sobre a água débilgemido.Fizparareiluminartudoemredor,eentãofoivistaestamulher,agarradaaumatábua,quelargounomomentoemqueaapercebemos.Pelaminhagente,foielaretirada,e,jáemnossobarco,vi estar ferida gravemente. Enquanto eu banhava o ferimento, reabriu os olhos e murmurou:“Horemseb,nãomemates!”Taispalavrascausaram-mealarma,e,porqueonomedonigromantelhevoltasseincessantementeaoslábios,resolvitratá-laemminhaprópriacasa.

Aceitando o conselho de Keniamun, Hartatef transportou o seu achado ao templo, onde ospadres deram a Ísis todos os cuidados possíveis. Algumas horas mais tarde, Keniamun, muitoagitado,anunciouqueNeftis,quesaíradecasa,nanoiteanterior,nãohaviaretornado.

OsprimeirosraiosdoSoldouravamohorizonte,quandodestacamentosdesoldadossitiaramopaláciodeHoremsebebloquearamasaídacomunicantecomoNilo,enquantoospadres,àfrentedeforte escolta, batiam na porta de comunicação com a cidade. Durante algum tempo, silêncio demortefoiarespostaaosgolpes,ejásepreparavaoarrombamento,agolpesdemachado,quandoosferrolhos foramretirados interiormente,eum jovempreto, tremendo,apareceu. Interrogaram-no,mas, a todas as perguntas, respondia apenas não saber coisa alguma, e que, desde a noiteprecedente, o chefe dos eunucos, Chamus, o intendente Hapzefaá e todos os vigias haviamdesaparecido.Quantoaosenhor,jamaisoavistara.

—Pressintoquevamosdescobriralgumnovocrime—disseAmenófis,ordenandoaoescravoindicarocaminhodahabitaçãodointendente.

Com tanta estupefação quanto horror, a comissão constatou que o intendente, todos oseunucosevigiasestavammortos,evidentementeenvenenados,porqueoscorposnãoapresentavamnenhum traço de violência, nenhum ferimento; os infortunados pareciam pacificamenteadormecidos.Então,ospadresordenaramatodososseresvivosexistentesnopaláciosereunissememumdospátios,e,bemdepressa,umrebanhotrementedehomensemulheresagrupou-se;mas,ointerrogatórionãotrouxe,igualmente,resultadoalgum.

—Nãosabemosnada;somosdançarinasecantorasdosenhor—repetiamasmulheres.

Outros, empregados em trabalhos grosseiros da casa, nunca haviam transposto o recintoreservadoaopalácio;algunshomens,apenas,declararamteremsidolevadosaojardim,duasnoitesantes, parademolir uma construçãodepedra,mas o trabalho foraprontamentemandado cessar.Quanto aos do serviço íntimo, tanto masculino, quanto feminino, eram invariavelmente mudos etambémsurdos,emparte.Impossívelsetornavaobteralgo,ejáosdacomissãoseaprestavamparaprosseguirnavisita,quandodaturbasedestacouumrapazelho,que,prosternando-se,começouatraçardiversasletrasnochão.

—Sabesescrever?—exclamouRanseneb,admirado.E,erguendooadolescente,acrescentou,bondoso: Vamos dar-te tabuinhas. Escreve nelas, se puderes, tudo que sabes de teu senhor. Umescribaapresentouonecessário,eojovemtraçou:

“Anteontem,ànoite,HoremsebseguiuparaSais,comamulherchamadaNeith.”

Ospadrespermutaramolharesespantados.Romaexclamou,impetuosamente:

—Éprecisoperseguirofacínora,esabercomquefimarrastoucomeleasuavítima.Deixai-melibertarNeith!

— O que propões é justo, e nós disso te diremos, logo que esteja terminada a visita —

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respondeu, gravemente, Amenófis. Regressados ao templo, interrogaremos a fundo este rapaz eobteremosinformaçõesqueteauxiliarãoalibertarmaisdepressaainfortunadamoça.Nomomento,ele nos servirá de guia, pois havendo pertencido ao serviço íntimo, deve conhecer os meandrosdestecovil.

Conduzidos pelo jovem escravo, cujo olhar faiscava de ódio satisfeito, os padres, oficiais esoldadospenetraramnamisteriosacasaondeHoremseb,durantetantotempo,esconderaatodososolharesindiscretosseuestérilecriminosoviver,suasorgiaseseusassassínios.Opalácioperdera,emgrandeparte,suafeiçãooriginal:asmilcaçoletasestavamextintas,oarpurificadodosaromasatordoantes, osmais preciosos objetos desaparecidos, os servos adereçados nãomais circulavamnos aposentos desertos. Contudo, o luxo real do mobiliário, a arquitetura bizarra, a arrumaçãofantásticaetodaparticular,excitavamacadainstanteopasmodosvisitantes.

Peloterraço,noqualtantasvezesHoremsebescutaraoscânticosoucontemplara,sonhador,ofascínio da Natureza, e onde Chamus também lhe apresentara Kama, a inocente vítima quesubstituiu Neftis, a comissão penetrou nos jardins. Lá, igualmente, se constatou que grandesmodificaçõeshaviamocorrido,depoisdafugadeSargon.Opavilhãodosábioeaplantamisteriosatinhamtotalmentedesaparecido.

Enfim,avistadapirâmide,emviadedemolição,convenceudefinitivamenteaospadresqueHoremsebtentaradestruí-laeapagartodotraçovisíveldosseuscrimes,oqueteriaconseguido,seachegadaprematuradacomissãonãohouvesseanuladotalprojeto.Mas,dequemaneiraforaeleavisado?Issoficavapordescobrir.

Quandoossoldadosdesentulharamaentradadapirâmide,obstruídaporladrilhoselousasdepedraarrancados,ospadreseoficiaisnelapenetraram,easeusolhosseapresentou,emtodooseugrandioso horror, o colossal ídolo hiteno, a sanguinária divindade sorrateiramente surgida nocoraçãodoEgitovitorioso,paranutrir-se,durantelargotempo,comosanguedeseusfilhos.

—Ah!—gritouAmenófis,olhoscintilantes—infamesacrílego!Eraestaaverdadeirarazãodatuanegligênciaparacomtodososdeveresreligiosos!...Muitasvezeseulherecordeiasobrigaçõesquetinhadecumprirparacomosverdadeirosdeuses.Compreendoagoraquepermanecessesurdoàsminhasadmoestações.Osíris,fartodecrimes,fezsurgiraverdade.

— Sim, também eu desde hámuito suspeitava— observou Ranseneb.Mas, que significa ocheirodeputrefaçãoqueencheesteimpurolocal?Ocadáverdealgumavítimaestaráaqui?

Os soldados pesquisaram, alumiaram cada recanto com archotes, porém em vão. Afinal,avistaramaporta existente acimadaspernasdo colosso, e abriram-na:nauseante cheiro saiudointerior. Apesar disto, todos se inclinaram, avidamente, para olhar o que ia ser retirado dasentranhasdoídolo.Primeiramente,detritosdecombustíveiseossamentascalcinadas;depois,algovolumosofoiretiradodeummontãodecinzasúmidas,oqueprovavahaversidoobraseiroextintobruscamente.

Eraumcorpodemulher,crivadodehorrorosasqueimaduras,enegrecido,inchado,porémnãoconsumido. Quando o cadáver foi trazido para a luz plena, verificou-se que a um lado havia umferimentohianteequeo sangue, correndoa jorro, ficara calcinadoem tornodasancas, formadocomo que uma cintura negra; o rosto intumescido, pele fendida, estava, entretanto, menosdesfiguradodoqueoresto,edesobreocrâniopendiam,emalgunspontos,tufosdeespessocabeloruivo,coladosnafrontepelosangueoupelosuordaagonia.

Petrificadosdehorror,todoscontemplavamesserestohumano,demembrosretorcidos, facecrispada, sobre a qual estava indelével uma expressão de sofrimento super-humano, quandoKeniamunexpeliuumgritoenrouquecido,e,cambaleante,recuouviolentamente.

—Quetenstu?—perguntouRanseneb,amparandoooficial.

—ÉNeftis!—murmurouele,oprimindoacabeçaentreasmãosetentandoreadquirircalma.

Por momentos, reinou tumular silêncio; a revelação pesava sobre todos, consternando-os.Súbito,umdospadrescurvou-seepegouumadasmãosdocadáver,enegrecidaecrispada,cujosdedos,fechados,pareciamapertarqualquerobjeto.Comdificuldade,eleosabriueachouespremidacontraapalma,queseconservaraalvaemacia,umarosarubra,murchaemachucada.

—AprovaflagrantedaculpabilidadedeHoremseb,conservadapelajustiçaceleste,namãodaprópriavítima!—afirmou,solenemente,ovelho.Estaflor, idênticaàsreunidaspelaperseverançadeRoma,afastaasderradeirasdúvidassobreaorigemdoscrimescometidosemTebas.

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Enquanto isso se passava no interior do palácio, o sussurro de um inquérito na residênciamisteriosa e acusações capitais trazidas contra Horemseb se haviam espalhado na cidade. Assentinelas,postadasemtodasassaídas,tinhamconfirmadoanovidade,e,poucoapouco,enormemultidão de curiosos, entre a qual eram vistas escassas pessoas categorizadas, aglomerou-se emredor do palácio; a agitação era febril, falava-se de crimes cometidos, demortes constatadas, desacrilégios inauditos... Toda a raiva suspeitosa, que, desde muito tempo, jazia na alma doshabitantesdeMênfis,começavaatransbordar.

Assim,quandoacomissãoapareceunasaída,foicercadadepessoasnotáveisquesolicitavaminformações.Ospadresnãofizeramdificuldadeemnarrarquantohaviamvisto,silenciandoapenassobreafugadeHoremsebparaSais,carregandoNeith.EnquantoAmenófisfalavaaosdignitárioselhes concedia permissão, inclusive às respectivas famílias, para visitar o palácio, Antef informouRanseneb de que os escravos deHoremseb declararam não haver comido coisa alguma desde aantevéspera, e suplicavam que lhes dessem qualquer alimento. O profeta do templo de Amonordenouverificasseseexistiamprovisõesnopalácio,e,casoafirmativo,asdistribuísseaosfamintos,atéquedestes ficassedecididaa sorte.Emseguida, todosospadres retornaramao templo,paradeliberar,levandoopequenoescravo,queiamsubmeterauminterrogatórioemregra.

Depoisdehaverregistradoodepoimentodestagravetestemunha,decidiu-sequeRoma,comKeniamuneumdestacamentodesoldados,rumariamaSais,paraprenderoculpado,sealiaindaseencontrasse,etomar-lheNeithparaserreconduzidaaTebas,conformeordemdarainha.AmenófisterminavaumacartaendereçadaaoGrandePadredotemplo,missivaqueRomadevialevarparaterassegurado o concursodessedignitário, quando acorreu, todo atarantado, umoficial enviadoporAntef.

Vierarogaraospadressedirigissem,omaisrapidamentepossível,aopaláciodeHoremseb,onde ocorriam funestos acontecimentos.Emprimeiro lugar, os privilegiados admitidos a visitar amisteriosacasa,queforadurantelongotempoumenigmaparatodos,divertiam-seemexaminaremdetalheosmaravilhososapartamentos,osencantadosjardins,teatrodasselvagensorgias,morteseenfeitiçamentos,distraçõesdopríncipe.Entreessescuriosos,contavam-semuitasmoçaserapazes,imprudentementelevadosalipelosparentes.EssesestouvadoshaviamretiradodovasoqueserviraparaacorrespondênciadeÍsiseSargonummaçoderosasnefastasquea jovemconspiradoraaliatirara para livrar-se do mortal efeito. Ignorando o perigo, os imprudentes tinham cheirado,avidamente,oaromadeletério,e, tomadosdesúbita loucura,esqueceramhonraedecência.Comdificuldade, os parentes, espantados, separaram os infelizes e os afastaram; todavia, o efeito dovenenofoitãoviolentosobreostenrosorganismos,quemuitosestiveramlongamenteacamados,eumadasjovensenlouqueceu.

Aperturbaçãoocasionadaporesteincidenteaindaagitavatodos,quandoclamoresnospátiose casas de serviço para ali atraíram os oficiais, que viram os desgraçados escravos correr,embravecidos,batendocomacabeçadeencontroàsparedesoudebruçarem-se,ansiosos,sobreoscompanheiros estendidos, sem movimento, junto das tigelas que tinham esvaziado. Algunstombavampara sempre. Antef, fora de si,mandara chamar os padres;mas, quando chegaram, atodapressa,puderamapenasconstataramortedetodososinfortunadosquesehaviamsaciadocomasprovisõesencontradasnopalácio,e,entreeles,algunssoldados,quese tinhamdeixado tentarporumaânforadevinho,vinhotambémenvenenadoporTadar,antesdesuaretirada.

Mudosdehorror,ospadresmoveram-senomeiodaquelahecatombeinaudita,contemplandoos homens, de todas as idades, as arrebatadorasmoças estendidas em grupos, lembrando floresatingidas por uma foice. Todos haviam servido Horemseb, recreado seus olhos com as danças,encantadooouvidocomoscânticos—estavammortos;todasessasbocas,fechadasparasempre,nãomaispoderiamacusá-loanteosjuizesterrestres;mas,onúmerodessasnovasvítimascausavaestuporaomaisanimoso.

EmboraHoremsebignorasseosderradeiroscrimescometidospelosábio,foisobresuacabeçaqueseacumuloua raivaexcitadaporessaatrocidade.Umclamorde reprovaçãoede repulsa seelevouemtodaaMênfis;onomedonigromante,malditoeapupado,tornou-sesinônimodecrime;suapersonalidade,agrandadapeloterrorepelasnarrativasexageradas,alcançoudimensõesdeumserfantásticoehorrífico,quedavamorteatodosqueselheaproximassem.

Opaláciofoifechadoevoltouaserinacessível,comohaviasidonotempodoseuesplendor;seu acesso proibido, sob penademorte; seu recinto guardadopor sentinelas, qual fortaleza; nassalas, vazias e quietas, instalado Antef, com uma companhia de soldados e alguns oficiaissubalternos.

NeitheseuacompanhanteatingiramSaissemempecilho,eforamrecebidosdebraçosabertospelovelhoGrandeSacerdote,parentedeHoremseb.Opríncipetiveraocuidadodenãoconfiarao

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venerávelAmeniasverdadeirascausasdasuafugadeMênfis,impingindo-lheumaintrigadeCorte,complicada com rivalidade de amor, o que lhe suscitara inimigos poderosos, obrigando-o, porprudência, a ocultar-se com a jovem que desejava desposar, até que o assunto ficasse resolvido;rogavaaAmenilheconceder,poralgumtempo,asiloeproteção.

O velho padre, não tendo dúvida alguma quanto à veracidade dessa história, e após haverconsagradoelegalizadoemboaformaauniãodopríncipeedeNeith,escondeuojovemcasalempequenacasaquepossuía,foradacidade.Essahabitação,àqualsechegavaporumaextensaaléiade plátanos e sicômoros, comunicava, pelas serventias, com vastos jardins, plantados de árvoresfrutíferasedehortaliças,servidosporaléiasumbrosasecomunicantescomcampinas.

Temendo, apesar de tudo, ser localizado, Horemseb mantinha, noite e dia, um cavaloaparelhado, numpátio precedendo os jardins, para fuga, ao primeiro alarme. Propunha-se enviarNeith a Tebas, para defender sua causa anteHatasu, e ela esperava, para tal, apenas a ocasiãoseguraecômodaqueAmenilhehaviaprometido.Emcasodeperigo,Horemsebcontavarefugiar-seno retiro inacessíveldeSpazar,e láaguardaro indultoe reabilitação; fracassadaesta,deixariaoEgito.

Neith estava informada de todos esses projetos, e o príncipe lhe confiara os detalhescircunstanciados, tanto com relação à furna onde vivia Spazar, quanto ao meio de penetrar nopalácio de Mênfis, pela porta secreta do muro exterior; ela devia ter todas as facilidades decomunicar-secomele,emqualquerimprevistaeventualidade.

Certa tarde, três dias mais ou menos depois do casamento de Horemseb, um grupo dehomens,compostodeumsacerdote,umescribareal,umoficialedestacamentodesoldados,veiobater à porta do templo deNeith; eramRoma, Keniamun e um funcionário doDepartamento daJustiça que chegavam de Mênfis para prender o criminoso príncipe e solicitar a extradição àjurisdiçãodotemplo,sealisehouvesserefugiado.

— De que é acusado o príncipe? — indagou Ameni, quando os enviados chegaram à suapresença.

— Esta carta, que te envia o Grande Sacerdote Amenófis, dará todos os esclarecimentosnecessários,venerávelpadre—respondeuRoma,apresentando-lheamissiva.

Apenas,porém,terminoudeler,tomadodehorror,deixou-secairnumacadeira.

—Deusesimortais!QuetecidodecrimesmerevelaAmenófis!Oculpadoconvenceu-mecommentiras,mas,vouindicarseuesconderijo, imediatamente,evosfornecereiservidoresdotemplo,paraensinarocaminhoeauxiliaraprisão.

Embora acreditando-se em segurança, sob a proteção de Ameni, Neith e Horemsebpermaneciam sombrios e entristecidos; desesperada raiva corroia o príncipe, e invencívelpressentimento de próxima desgraça perseguia a jovem. Desde o amanhecer desse dia,principalmente, inquietude e angústia aumentavam, de hora em hora, e, cedendo a uma súplica,Horemseb subira com ela à sotéia do prédio. Apoiando os braços na amurada,Neith avidamentesondavaaplaníciecircunvizinha.Derepente,estremeceueoolharseconcentrouemumanuvemdepoeiraqueseaproximava,ebemdepressapercebeudoiscarrosocupadosporpadreseoficiaiseporumdestacamentodesoldadoseservidoresdotemplo.

—Olha!—gritouela,pegandoobraçodopríncipe,quesonhava,desupercíliosfranzidos.

Endireitando-se, viu, juntamente com a jovem, a caravana deter-se na aléia dos sicômoros,dividir-se,combinada,distanciando-sealguns,novisívelintuitodecercarahabitação.

—Devofugir;éamimquevêmprender!—murmurouHoremseb,comalividezdeummorto.

—Sim,sim;apressa-te.EuficareiaquieireidefendertuacausaemTebas—respondeuNeith,arrastando-o,tremente.

Semperdadeum instante,opríncipeapanhousuasarmaseenvolveu-seemescuromanto;depois,atraindoasiajovemmulher,lhedeuincendidobeijo.

—Adeus,minha bem-amada; emudece, quanto ao passado; não esqueças que é teu esposoquemvaisdefender,equearainhadoEgitoétuamãe.Setiveresboanotíciaacomunicar-me,nacasa de Spazar ou no esconderijo de meu palácio tu me encontrarás. Mena servirá de teumensageiro.

Neithretribuiuoabraço,comocorpoafremirdepaixãoededesespero;depois,afastando-o,

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exclamou:

—Foge!Cadaminutoéprecioso.

O príncipe lhe dirigiu derradeiro adeus com a mão, e precipitou-se para fora. Neith caiu,alquebrada, sobre uma cadeira; mas, violentos golpes na porta de entrada arrancaram-na daprostração,e,cominstantâneaenergia,levantou-se,pegouumamachadinhadeixadasobreamesa,esaiucorrendo.Continuavamosgolpesnaporta,comaintimativa:

—EmnomedoFaraóedoGrandeSacerdoteAmeni,abri,sobpenademorte!

Um escravo, a tremer, abriu os ferrolhos, e os soldados iam ingressar no interior da casa,quando, no estreito corredor de entrada, surgiu um vulto de mulher, vestindo de branco.Momentaneamentesurpreendidos,oshomensretrocederam,eNeithapareceunolimiar,brandindoaarmaegritando,emvozvibrante:

—Paratrás!Aquinãosepassa,eoprimeiroqueseaproximar,euomatarei!

A jovem mulher estava soberba na sua desesperada exaltação: olhos fulgurantes, lábiosfrementes de orgulho e de virilidade, semelhava um gênio da guerra, aparição fantástica. Pormomento,todosrecuaram;mas,destacando-sedoscompanheiros,Romaavançou.

—Neith,tornaati,desditosacriança!

Ao som daquela voz melodiosa, à vista daquele que tanto amara, Neith tremeu, como quedespertandodeumaembriaguez;osbraços,erguidos,descaíram;amachadinharolouaochão,e,correndoparaoSacerdote,exclamou,comavozembargada:

—Roma!Tu,aqui?—Oh!entãotudoestábem.

—Sim,Neith,todososteussofrimentosfindaram;estáslibertadeHoremseb.

—Horemseb?Elemeémaispreciosodoqueavida.Salva-o,Roma,semeamas!—implorouela,demãospostas.

Ojovemrecuou,comoquepicadoporumaserpente.

—Salvaresseassassinoinfame?Nunca!

Vendoqueamoçaestavaemmãosseguras,Keniamun,oescribaeossoldados invadiramaresidência.Neithcobriuorostocomasmãos,echorouamargamente.

—Minha bem-amada—murmurou Roma, pegando as duasmãos deNeith— torna a ti, ecompreende estares cega por um sortilégio que te faz amar esse homem abominável; Horemsebroubou-te o sossego, envenenou tua alma, enlodou teus olhos e teu corpo comummalefício queacorrentaossentimentos.Essapaixãonãoemanadeteucoração,porqueéprodutodovenenoqueexcitateussentidoseaviltaatuadignidadedemulher.MinhaaltivaNeith,tornaati,despertadessepernicioso sonho; restitui-me teu coração, a mim que te amomuitomais do que amimmesmo.Podestupreterir-meporesseassassinocheiodesanguehumano?

Ela baixou a cabeça, aniquilada. Tudo quanto ouvira era verdade, ela o sabia,mas, aquelefogo, que queimava em seu peito, devorava ódio e desprezo, para só deixar de pé a paixãoindomável.

— É feitiço ou amor que me devora? Não sei — ciciou ela, curvando a fronte. Mas, emqualquercaso,nãoexistemaissalvaçãoparamim,minhaexistênciaestádestruída,meucoração,devastado, só tem lugar para sua imagem; não posso viver sem seu olhar de fogo, sem o amorentorpecente;deveresentimentoprendem-meaele.Nãosabesquesousuamulher,desdehátrêsdias?

Romaemitiuumgrito.

—TutecasastecomHoremseb?Ah!oinfamecorooubemdignamenteacriminosacarreira,ligandoainconscientevítimaaoseufuturodevergonha.

Penososilênciofez-se;omoçosacerdotefoiquemprimeirosedominou.

— Apesar de tudo, permanecerei teu amigo — disse, passando a mão pela fronte. Temconfiançaemmim,edeixa-meacompanhar-teaTebas,deacordocomaordemdarainha.Nãopodes

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ficaraquipormaistempo.

—Sim,sim,queroiraTebas,partamos!—respondeuNeith,comumclarãodeesperançanoolhar.

Roma viu. compreendeu e se voltou, com amargo e irônico sorriso. Esperava ela salvar ocriminoso?Semresponder,porém,envolveu-acomumacapa,conduziu-aaumdoscarros,erumouparaotemplo.

Horemsebconseguira fugir;asalvodacasa,parecia ter-seabismadonosolo,eapósmuitashoras de galopes e de infrutíferas buscas, o escriba regressou ao templo com uma parte dosservidores.Keniamun,cheiodefúria,encarniçara-senaperseguiçãodofugitivo,doqualjulgavaterdescobertoapista,nãosesabendo,porisso,quandoretornaria.

Romadecidira partir omais depressa possível, eNeith, que julgava conquistar em Tebas asalvação do esposo, partilhava desse desejo. Assim, aos primeiros raios do nascente dia, omoçosacerdote instalou sua companheirade viagememvasta barca, comodamentepreparada, e, apóshaverdadoordemdeiçarvelas,colocou-senooutroextremodacabina.Ajovemmulherdeixara-secairsobreaalmofadadesuacadeira;sentia-sealquebrada;aexcitação,asemoçõesdosrecentesdias,somadasaoterrívelvenenoqueHoremseblhepropinara,faziamquasesucumbirseudelicadoorganismo,esomenteà forçadevontadeeladominavaadebilidadequea invadiacadavezmais.Neith convencera-se de que só ela estava em condições de pleitear em favor de Horemseb, e,enquantopudessemanter-sedepé,esperavasalvá-lo.Desdeque,mortaouenferma,desaparecessedocenáriodeação,vozalgumaselevantariaemfavordohomemquetodooEgitoabominava,equenãosouberafazerumúnicoamigo.

Bem quisera dormir e aumentar forças para a luta que a esperava, esquecer também apresença de Roma, cujo silêncio, olhar sombrio e entristecido estraçalhavam-lhe o coração. Vozíntimasegredava-lhequeeletinhadireitodeseofender,queerabemsuperioraohomemimpiedosoquehaviadesencadeadosobreelatantasdoresetantossofrimentos;mas,anteapaixãoinsensataqueadevorava,todooutrosentimentocessava:apresençadeHoremsebeosuavearomaexaladopor ele faltavam-lhe, tal qual a água à planta, aquela atmosfera asfixiante se lhe tornara umanecessidadeparaaexistência,eoarfrescoevivificantedoNiloparecia-lheacreeaniquilador.

Evitando o olhar deRoma,Neith recostou a cabeça e fechou as pálpebras,mas o sono lhefugia.Maquinal-mente,prestououvidoaobarulhoregulardosremos,aodaáguafendida,e,ninadaporessesruídosmonótonos,esqueceuondeestava,suaimaginaçãoevocouimagensdeumpassadorecente. Sentiu-se sob as sombras copadas do jardim misterioso: na relva iluminada pela Lua,viravolteavam,emdançasfantásticas,moçasvestidasdebranco,edofundodosbosquetessubiaumcântico bizarro, tão depressa vibrante e selvagem, no ritmo de elementos desencadeados, tãodepressa doce,melancólico, agonizante, extinguindo-se qual um lamento do zéfiro. E esses sons,dissera-lheTadar, eramo reflexodas sensaçõesdaalma, sua respiração,dealgummodo,na lutacomadivindade.Umaborrasca irresistíveledestruidoranão intumesceopeitohumano,quando,impotenteedolorido,emchoquecomoseudestino?Todosentimentonãoseextingue,amortecidoeembriagado, nos momentos de inefável ventura? Não passava ela própria por uma dessas horasterríveis,quandoaalma lutacontrao inevitável?Umatempestadenãoestrondeavanelacontraodestinoqueaconstringia?

Avozruidosadopiloto,comandandomanobrasnáuticas, tirou-abruscamentedasquimeras;reabriu os olhos; danças, cânticos mágicos, o feiticeiro e seu palácio, tudo desaparecera; arealidade, o porvir, em toda a sua nudez, ressurgiram à memória, e, avassalada por súbitodesespero,desatouasoluçar.

RaivaeciúmeapertaramocoraçãodeRoma:eleestavapresente,eelanãopediaconsolação,nemmaislheestendiaasmãos.Coraçãoepensamentospertenciamaumoutro.

Neithchoroudurantelargotempo,e,sucumbindoàfadigaeesgotadadelágrimas,terminouporadormecer,numsonopesadoefebril.SomenteentãoRomaseavizinhou,e,comolhardemortalaflição,fixouosemblantedesfeitoeemagrecidodamulheramada.

—Neith!Neith!—murmurouele—estarásemverdadeperdidaparamimportodoosempre,joguete infortunado de impura mão que te roubou àqueles que te amam, para te destruir eacorrentar tua alma?Não; deve existir ummeio de curar-te, de libertar-te do carrasco pelo qualqueresinterceder.

O jovemsacerdote estavadevoradode cólera e amargura, pensandona ironiada sortequearrastava aquela inocente vítima, cega por infame enfeitiçamento, a defender, com amor, odestruidordasuaprópriavida.

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A noite tombava, quando se aproximaram de Mênfis, onde Roma devia deter-se, para darcontasaAmenófisdoresultadodaviagemaSais,eaguardarodiaparaprosseguimentonorumodeTebas.

Com a rapidez típica de tais regiões, a escuridão se fazia, afogando tudo em uma noiteimpenetrável. Inclinada sobre a borda da barca, Neith havia contemplado, com olhar velado, oquadrofeéricodosolcadente;seusolhoseseupensamentobuscavamapenasumacoisa:opaláciomisteriosoqueabrigaratantossofrimentosetantoscrimes,atestemunhadetãorevoltanteviolênciafeitaaofracopeloforte.Ofarolacesoàproadabarcailuminavaorioqueseestendia,eaessaluzajovemmulher percebeu omuro imenso que cercava os jardins deHoremseb. Subitânea angústiacomprimiu-lhe o coração; tomou-a invencível convicção de que seu amor seria impotente paradefenderopríncipe.Otemerárionãohaviadesafiadotodasasleis,divinasehumanas?AsmaldiçõesdasvítimashaviamchegadoaosImortais,e,abandonadoàsforçasdomal,oculpadoiadespenhar-senoabismoqueelatinhavistoabrir-seaospésdele.

Nessemomento,apareceuaescadariadasesfinges,iluminadaporumatocha:duassentinelasvigilavamnosdegraus...Mas,quemeramessas,comoquesombras,voluteandoentreossoldados,parecendo estenderem-se sobre a escada, ou, à semelhança de longos listrões, com reflexossanguinolentos, ondulavam sobre as águas?Os olhos deNeith concentraram-se nessas estranhasaparições,mas, subitamente, o coraçãoparoudebater; as negrasnuvens tomaram formas, e elareconheceuasmulhereshorrendas,extravasantesdeódio,quehaviavisto,empurrandoHoremsebparaoabismo.Duasdentreelaspareciamnadarnadireçãodabarca,e,erguendoforadaáguaotorsocobertodechagas,brandiamnasduasmãos,erguidas,tufosdefloresvermelhas,gritando:

—Nãoesperes arrancar-nos omonstro cheiodonosso sangue, recreando-se comasnossasvidas;elevairolarnoabismo,entregue,afinal,ànossavingança!

Mortalmentepálida,Neithatirou-separatrásesoltouumgritodeangústia,paradepoiscairsemsentidosentreosbraçosdeRoma,queacorrera.Elenãoviracoisaalguma,eatribuiuapenosaemoção à vista do palácio de Horemseb. Sombrio, sobrecenho franzido, prestou cuidados àdesfalecida,quesóvoltouasiaotermodealgumashoras,enumtalestadodeabatimento,que,naopiniãodosmédicosdotemplo,eraindispensávelobservarunsdiasderepouso,antesdeprosseguirviagemparaTebas.

Cincodiasdepois,maisoumenos,dasocorrênciasprecedentes,depoisdojantar,abarcadojovemsacerdotedeHatoraproximava-serapidamentedeumaescadaservindoparadesembarque.Pálidaedesfeitaainda,Neithestavadepé,procurandoavistarRoant,aquemderaavisoporummensageiroedeviavirbuscá-la,poiseraemcasadaamigaquedesejavaalojar-se,aguardandoosacontecimentos.OpaláciovaziodeSargoncausava-lhemedo,e,depoisdavisãonoturnadeMênfis,ficaranervosaeimpressionável.QuantomaisseaproximavadaCapital,maisdiminuíaaesperançade salvarHoremseb.TalvezRoant, a sempre risonha,aquem jamais faltavaumrecurso,pudessedar-lheumconselho.

Quando a barca atracou, Neith divisou, não sem surpresa, Chnumhotep, que descialestamente,ajudou-aasaltareaconduziuaumaliteirafechada,dizendo-lhecordialmente:

—Graçassejamrendidasaosdeusesquemepermitemrever-teviva,pobrecriança!Roanttemumpémachucadoenãopôdevir,masespera-te,impaciente.

Tendoinstaladoajovemmulher,ochefedasguardasvoltou-separaocunhado,queoseguirasilencioso,e,apertando-lheamão,disse:

— Felicito-te, por haveres triunfado em tuamissão; vem nomeu carro, e conversemos emcaminho.

—Agradeço,masdevodeixar-te, entregoNeithem tuasmãos.Minhapresença lheé inútil;nãopossoremediarseusofrimento;elarecusatodotratamento;retorno,assim,acasa.Amanhã,ireiabraçarRoanteascrianças.

Surpreendidocomaamarguradetaispalavras,Chnumhotepnãofezobjeçãoalguma,eolhoucuriosamenteNeith,que,olhosbaixos,nãopareciaouvir;e,apóscurtassaudações,separaram-se.

Roant recebeu a jovem amiga com alegria mesclada de dor. Notando-lhe a fisionomia deenferma, celebrou sua vinda compalavras entrecortadas, e, apertando-a de encontro ao coração,inundou-a de lágrimas e beijos. Neith retribuiu-lhe silenciosamente as carícias, com o corpo atremer nervosamente. Assim, o chefe das guardas julgou oportuno pôr um termo à comoçãorecíproca.

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—TuarecepçãonãofarámuitobemaNeith;nãovêsquetemnecessidadederepouso,deumaalimentaçãoreconfortante,enãodepranto?—dissecomasuavivacidadefranca.

Aesposavoltou-sedepressa,erespondeu,asorrir:

— Tens razão; vou imediatamente levá-la ao aposento e acomodá-la para dormir, e depoisconversaremos.Dá-meobraço,Neith,evamos!porqueaindaclaudicoumpoucocomopé.

Chegandoàcâmaraquelheeradestinada,Neithfoirecebidapelavelhanutrizque,loucadealegria, rindo e chorando, de joelhos, apalpava, com ansiosa incredulidade, sua senhorazinhaadorada,que,durantetantotempo,choravapormorta.Profundamenteemocionada,Neithenlaçouosbraçosemvoltadopescoçodasua fielguardiã,e, talqualnos temposda infância,encostouorosto,inundadodelágrimas,deencontroàcabeçaencarapinhadadapreta.

—Calma-te, minha velha, e ajuda a deitar tua senhora, que necessita de repouso— disseRoant.

Anutrizlevantou-see,celeremente,despiramedeitaramNeith,que,exaustaeapática,tudodeixoufazersilenciosa.Arogosdaamiga,bebeuumpoucodevinhoeserviu-se,comesforço,deumpedaçodeaveassada,fria,masRoantsentiuocoraçãocontraídodeconsternação,aoconstatarasdevastações que o sofrimento e a doença haviam produzido em toda a pessoa de Neith. Tendodespedidotodos,Roantinclinou-separaajovem,abraçou-aedissecomternura:

—Minhapobreamiga,estamosasós,eesperoque,talqualoutrora,medesvendestuaalma.Vejoquemuitosofreste,mas,eisqueestásliberta,e,comaliberdade,saúdeealegriavoltarão.Seagoraalgooprimeespecialmente teu coração, confia-meesseparticular, e tudoenvidarei para teajudar.

—Agradecida,Roant;seiquemecompreendes,enãomecondenarás,comoofezRoma,queseafastoudemim,colérico—murmurouNeith.Emverdade,estoulivre,masofuturonãomedeixaesperançaalguma.

—Compreendo;amasHoremseb,apesardetodasasacusações—respondeuRoant,hesitante.Mas, reflete, minha querida, que esse fatal amor é um produto do terrível feitiço, com o qualdestruiumuitasmulheres!

—Dequefeitiçariafalastu?—perguntouNeith,admirada.SeiqueseatribuiinjustamenteaHoremsebtodasortedecrimes:acusam-notambémdeusarfeitiçosparafazer-seamar?

—Esemdúvidaalguma.Todoomundosabeagoraqueelepossuiumveneno,desconhecido,porémterrível;esseveneno,queexaladeliciosoaroma,eleoderramasobrerosasvermelhas,queenvia às mulheres nas quais pretende despertar insensata paixão. Tu mesma, delas recebeste,porque,nodiaimediatoaodatuadesaparição,encontrou-seumaflorenvenenadapresaaovéuqueperdestenaescada.Algumasvezes,aoquesediz,elefaztambémbeberdoveneno.

—Existemprovaspalpáveisdofeitiço?—indagouNeith,emvozsumida.

— Tenho certeza. Em Tebas mesmo foi descoberta toda uma série de delitos e de floresenfeitiçadas.

Comumroucosuspiro,Neithcobriuorostocomasduasmãos.Nãopodiaduvidar;recordava-se das rosas que ele lhe dava, cada vez que ela ousava uma veleidade de resistência. Antes dapartidaparaSais,não lhehaviaele feitobeberumvinhoestranhamentepicante?E,apóshavê-loingerido,nãohaviaaumentadoapaixãoinsana?Oh!covardeaquelequesefurtaaoamoreimpõeamor!Entretanto,malgradoodesprezoeotormentoquelhetorturavamaalma,sentia-sepresaaele,easpalavrasdeHoremsebretiniam-lhenoouvido:

—Ser-me-ásfiel,adespeitodetudoquetedigam?Nãorevelarásnadadoquantoviste?

Movidaporinstantânearesolução,levantouacabeça.

—Feitiço ou amor, estou acorrentada a ele; nãome desprezes tal qualmereço, Roant, poramar um homem que me aniquilou frivolamente, sem me amar, e para quem fui apenas umbrinquedonosdiasdesuaopulênciaeesposanahoradasuaruína.

Roantrecuou,comumgrito.

—Tuéssuaesposa?Éimpossível;hásomentequinzediasqueSargonmorreu!

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—Algunsdiasdepoisderecebidaessanotícia,oGrandeSacerdotedo templodeNeith,emSais,casou-nos,emboaforma,eseráoperdãodemeuesposoqueimplorareideHatasu.

Comumgestodeafetuosacompaixão,Roantatraiu-aasi.

—Então,minhapobrequerida,arma-tedecoragem.Devoprevenir-tedequetodaaesperançaestáperdida.OscrimesdequeacusamHoremsebsãodetalmodoenormes,queossacerdotes,eassima lei, têmdepuni-lo impiedosamente,e,aindaqueopretenda,arainhanãopodeopor-seàjusta satisfação reclamada pelo povo contra o sacrílego homem que zombou de todo sentimentohumano.

Neithbaixouacabeça,comprostração.

—Não importa! Devo tentar comover a rainha e os sacerdotes; talvez o sacrifício de tudoquantopossuoconsigaabrandá-los.

Roantnãoquisinsistir,compreendendoquequaisquerpalavrasredundariamempuraperda.

—Sim!Esperamosquesejasbemsucedida!Eagoratratadedormir;necessitasdetodasastuasforçasparaodiadeamanhã.

Totalmente exaurida, a jovem mulher deitou-se e fechou os olhos. Roant agasalhou-acuidadosamente,esóseretirouquandoaviuentregueaprofundosono.

Quando Neith despertou, no dia seguinte, sentiu-se mais forte. Levantou-se, ajudada pelanutriz, e apenas terminava de vestir-se, quando Roant veio avisá-la da presença de Semnut,trazendo ordem para conduzi-la, sem demora, à presença da rainha. Neith pegou um véu, naintençãodesair,mas,mudandodeidéia,disse,subitamente:

—QueridaRoant,rogaaSemnutvirfalar-me,poisdesejoconsultá-lo,semtestemunhas.

—Então,vemparaestegabinetecontíguo,ondeestarásacobertodequalquercurioso.Voutransmitirteupedidoaele.

Trêmuladeemoção,Neitharrimou-seaummóvel,comocoraçãobatendoatermoderomper-se,quando,poucodepois,oreposteirofoierguido,eopoderosoconselheirodeHatasuencaminhou-separaela,saudando-a,combenevolência.

—Benditossejamosdeusesquemeconcedemrever-teviva,nobreNeith—disse,apertandoafetuosamenteasduasmãosqueelalheestendera.

—Semnut,emmemóriadaamizadequesempremetestemunhaste;tu,quetantasvezesmecarregasteemteusbraços,quandoeuerapequenina,nãorecusesouvir-meeaconselhar-me.Minhaalmaestácheiadetemorededesespero.

— Tu o sabes; mas, sossega e fala, nobre Neith; minha amizade e minha ajuda te estãoasseguradas.

Fê-la sentar-se, sentando-se ele também; mas, notando molesta a hesitação da suainterlocutora,disse,gravemente:

—Calculo,emparte,doquemevaisfalar.Estamanhã,Romaesteveemminhacasa,emefezcientedequeomaldito,cujoscrimesafinalcansaramosdeuses,ousoufazerdetisuaesposa.

—Oh!Semnut, não fales assim tão cruelmente—exclamouela, unindoasmãos; não é tãoculpadoquantojulgas,esetratademeumarido.Ajuda-meaobteroperdãoparaHoremseb;tutenstantopoderjuntodarainha!

OsobrecenhodeSemnutfranziu.

—Estássonhando!SeriamaisfácildeslocarapirâmidedoreiQueops(22)doquesubtrairauma justa expiação semelhante criminoso. Só o feitiço que te acorrenta a ele e obscurece o teusensodesculpatalpedido.

(22)PIRÂMIDEDOREIKHEOPS-(Queops)-EstesoberanoteriaarruinadooEgitodurantemeioséculo,fazendoconstruiragrandePirâmide,famosapelosrequintesquelhesãocaracterísticoseque,paraosnossostempos,parecemexageradoseatéincríveis.Naobratrabalhavammilharesdehomens,revezáveistrimestralmente,durante4lustros;apedraeracortadanomontedaArábiaetransportada,inclusiveemtravessiaderio,peloscaminhosespecialmenteabertosparaessefim(equeexigiramumdecênioparasuaconclusão);apedramenoreradecercade10metros(30pés).Aobra,nãodestruída

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pelotempo,consumiuquantiasfabulosas,inclusiveparasustentoevestimentadostrabalhadoresforcados.(Heródoto-LosNuevelibrosdelaHistória,vol.II,ed.J.Gil,BuenosAires,1948,págs.124-7.)

ArdenteruborinvadiubruscamenteasfacesdeNeith,cujosolhosfuzilaram.

—Tutambém,tucondenasHoremseb?Poisbem:éprecisoarriscarmeuderradeirorecurso,porqueasuavidaéaminha;implorareiaminhamãe,poiselanãoquererámatar-me,comomesmogolpequeomatar.

Semnutergueu-se,empalidecendo.

—Desgraçadacriança,quedizestu,equemteinsinuousemelhantepensamento?

—Quemmodissenãoimporta:seiqueNaromatherameupai,queHatasuamou,talqualeuamoHoremseb,eelamecompreenderá.

SemnutpegouumbraçodeNeith,e,vergando-separaela,sussurrou,severamente:

—Guarda-te de tocar imprudentemente nesse perigosomistério, que só um infame te teriadesvendado. Os reis não gostam que se fale daquelas coisas que preferem silenciar, e tu podiasacarretarprejuízo,emvezdeajuda,àqueleaquemdesejassalvar!Nãoteesqueças,alémdisso,deque teu casamento com Horemseb pode ser declarado nulo: os sacerdotes decidirão se ummatrimônio com tal sacrílego, e ainda quando o corpo de Sargon não foi sepultado, pode tervalidade.Sêprudente,pois.E,agora,vamos;arainhanosespera.

Vacilanteedesfeita,Neithseguiu-o.Deixou-seinstalarnaliteira,silenciosamente,eduranteotrajetonenhumapalavrafoipronunciada.

Arainhaestavanopequenogabineteparticular,jádescritoquandodaentrevistadedespedidadeTutmés,eestudavaatentamenteoplanodeumacasadecampoquesepropunhaconstruir.Aoouvir os passos de Semnut, que acabava de chegar, com a sua acompanhante, Hatasu ergueu acabeça,e,reconhecendoNeith,que,pálidaetrêmula,permaneciadepépertodaentrada,estendeu-lheasduasmãos.

—Minhafilhaquerida,aproxima-te;deixa-meabraçar-te,tu,quechoreipormorta.

Neith correu para ela, e, caindo de joelhos, enlaçou os da rainha,murmurando, com a vozestranguladapelossoluços:

—Perdão!Perdão!

Hatasuabraçou-aelhebeijouadescoradaboca.Mas,talvezpelasmuitasemoçõesdemasiadofortes para o enfraquecido organismo deNeith, subitamente descaiu e deslizou sem sentidos nopavimento.Semnutprecipitou-separaelae,erguendo-a,acolocousobreumleitoderepouso.

—Quão mudada está a desgraçada criança! O que fez dela aquele miserável, em poucosmeses!—murmurouarainha,comosolhosúmidos.Mas,dequeperdãofalouela?

—DodeHoremseb,queesperaobterde ti,Faraó.Esouobrigadoa fazerumarevelação,órainha!Neith foi informadadosegredodoseunascimento,que,semdúvida,ocriminosorevelou-lhe,poissóeleopodiaterconhecido,porintermédiodohitenoqueviviaemsuacasa,equedecertotinharelaçõescomhomensdoseupovo.

Fugitivoruborpassoupelomóbilrostodarainha,eossupercíliosfranziram.

—Compreendoagoracomqueintuitoeleseuniuaestapobrecriança.Apenas,eleseengana(e a voz vibrou duramente); não fugirá à puniçãomerecida, e nós a curaremos. Agora, Semnut,manda ao templo de Amon chamar os mais peritos médicos, e dizer a Rameri que venhaimediatamenteveradoente.

Ovelhoesculápiochamadopelarainhanãotardouemvir,egraçasaseuscuidadosNeithbemdepressa reabriu os olhos, em plena consciência, mas em tal estado de debilidade que Rameriaconselhounãolhefalar.Semdemora,ossacerdotesdeAmonchamadosreuniram-senogabinetedetrabalhodeHatasu,depoisdehaveremexaminadoNeith.

—Eentão?Qualovossoparecer,veneráveispadres?Possoesperarquecurareisestacriança?—perguntoua rainha.As rosasenvenenadasqueseencontramemvossasmãosvos revelaramosegredodofeitiçoqueseligaaesseveneno?

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—Potente filha de Ra, seria necessário muito tempo para aprofundar todas as qualidadesdessenefastosuco—respondeugravementeumvelhosacerdote,deaspectovenerável.Entretanto,podemosdizer-tequeseanobreNeitholfatouapenasodeletérioaroma,poderemosrestabelecê-latotalmente do cego amor que, sem dúvida, tem por Horemseb; mas, se ele a fez beber o sucoenvenenado,serámaisdifícil,porque,emtalhipótese,serianecessáriodar-lheocontraveneno,queéosucodaplantagêmea,enósnãoopossuímos.Emtodoocaso,nós terogamos levara jovemparaotemplo,ondeficaráalgunsdias.Énecessáriopurificá-laeestudaroseuestadoparalhedaralívio.

A rainha achou razoável esse alvitre e aquiesceu imediatamente. Neith ficou indiferente atudo,e,algumashorasmaistarde,estavainstaladaemumadasconstruçõesdependentesdotemplodeAmon,paraseralipurificada,antesdepenetrarnosantolugar.

Sobadireçãodeumvelhosacerdotecentenário,célebrepelosconhecimentosdemedicina,foiela submetidaa sério tratamento: remédios internos, abluções, fumigaçõesdeviampurificar-lheocorpo dos miasmas deletérios, da sobrecarga de aromas sufocantes que nele se acumulara. Porvezes,umdospadresimpunha-lheasmãossobreacabeça,pronunciandoinvocaçõesaosdeuses,eentãoelamergulhavaemprofundosono,queseprolongavapormuitashoras,parecendomorta,edo qual despertava mais forte e mais calma. Após oito dias desse tratamento, Neith pareceurestabelecidaexteriormente;belascores,maisvigorosa,readquiriraacalmaexterior;mas,aalmacontinuava enferma, tanto quanto anteriormente, algo queimava no imo, e cada fibra seu serchamavaporHoremseb.

Os sacerdotes de Tebas desconheciam o veneno que a devorava, e não podiam,consequentemente, administrar-lhe o antídoto; contudo, declararam-na restabelecida, e foiautorizadaaregressaradomicílio,apósumaderradeiraesolenepurificação.Nodiadacerimônia,Neith foi conduzida, pelas virgens consagradasdo templo, ao sacro lago, e, depois de sete vezesimersanaáguasanta,asdonzelasvestiram-naderoupasnovas,deespelhantealvura,ornaram-nade jóias, e, por entre cânticos e danças simbólicos, conduziram-na à entrada do templo, onde foirecebida pelo Grande Sacerdote, que, após havê-la benzido e posto ao seu pescoço amuletosconsagrados,eseguidodosmaisveneráveispadres,introduziu-anolugarsanto,ondeelasacrificouaosdeuseserezoufervorosa,orou(ai!dela!)peloseuperseguidor,implorandoaosImortaissubtraí-loàsortequeoesperava.

Terminadaacerimônia,subiuparaaliteira,ornadadeflores,e,seguidapelafamíliadePair,de Chnumhotep e esposa, e ainda de numerosos amigos e dignitários da Corte, que se haviamreunidonotemplo,rumouparaopaláciodeSargon,ondeumarefeiçãoestavapreparada.Todavia,tudofoisimpleseteveoaspectodereuniãoíntima,poisamorterecentedopríncipehiteno,aindainsepulto,impunhaàviúva,adespeitodoestranhocasamentoposterior,amaiorreserva.Emtodoopercurso do cortejo, havia gente em multidão, curiosa de ver a jovem egípcia miraculosamenteressuscitada,ecujaestranhasorteemisteriosasaventurashaviamtomadoproporçõesdelenda.

Ànoitedessamesmadata,Neithfoiaopalácioreal,paraaudiênciaaqueforachamadaporHatasu. Introduziram-na no gabinete, e, vendo-se a sós com a soberana, atirou-se-lhe aos pés,fundidaempranto.Hatasuatraiu-aaelaelhedeuumbeijonostrêmuloslábios.

—Filhaquerida,enfim,nãoexistemaismistérioentrenós;sabesqueoamordetuamãevelaporti.Oh!porquenãotedissehámaistempoaverdade!Muitasinfelicidades,semdúvida,teriamsidoevitadas.

—Mãe,salva-o!—implorou,comindescritívelconsternação.

—Minhapobre filha,nãoestáscurada,eaindasonhascomo impossível?—dissearainha,comtristeza.Compreende,Neith,eunãopoderiasalvá-lo,mesmoquetivessetalintenção.

—Teupoderioétãogrande!

—Sim,mas,porgrandequeseja,meupoderio,eassimminhavontade,esbarraanteasleis,quesouchamadaasustentar,enãoaafrontar.Essehomem,quecalcouaospéstodasasprescriçõesdivinasesociais,pertenceàJustiçadoReinoeaojulgamentodossacerdotes:nissoresideabarreiraonde omeu poder termina. O povo clama e pede vindita para o sangue de suas filhas. Quantasinfortunadaspereceram,semsequertersepultura!Horemsebdestruiu-lhesoscorposearruinouasalmas.Porsemelhantesdelitos,asfamíliasultrajadastêmdireitoaumareparaçãomeridiana.

—Nãohá,pois,salvaçãoparaele?—murmurouela,desatandoemsoluços.

— Salvação terrestre, não. Mas, esse homem ímpio e criminoso merece verdadeiramentetantas lamentações? Levanta a cabeça, Neith, e dize-me, com franqueza: acreditas no amor de

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Horemsebporti?

Neith curvou silenciosamente a fronte. Não, ela sabia não ser amada por ele, e que nãopassavadeumInstrumentodesalvação.

—Tuamudarespostaébastanteeloquente—disse,grave,arainha.Esclarecidoesteúltimoponto,façoumapeloà tuadignidadedemulher: lembra-tedosoberbosanguequecorreemtuasveias;revigoratuavontade,eexpeleofeitiçoimpuroquetecega.Comoesquecimento,afelicidadevirá.

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IX

HARTATEFEmconsequênciadestaconversaçãocomarainha,profundodesânimoapoderara-sedeNeith,

e Hatasu, receando que a tristeza da filha e o isolamento a que se condenara no seu palácioreagissem fatalmente sobre a saúde, designou-lhe, na residência real, um apartamento, no qualNeith devia passar grande parte do seu tempo, quer ao serviço da soberana, quer recebendo asnumerosasvisitantes,queacuriosidadeeabajulaçãofaziamacorrerparaela.

AamizadedeRoantcontinuavasendoconstanteesteio.Ajovialeditosamulhersabia,melhordo que ninguém, distrair a amiga, transmitindo-lhe fielmente todos os constas referentes aHoremseb,quecirculavamnaCapital,e isso,apesardaproibiçãodomaridoedeSemnut;Roant,tagarela e romanesca, não podia privar Neith das novidades cujo interesse para esta elacompreendia, e, também, em verdade, a sorte do formoso Horemseb inspirava-lhe curiosidade ecompaixão.Poresseveículo,NeithsoubedosdetalhesdavisitadospadresaopaláciodeMênfis,ebemassimqueosassassínios,emmassa,dosinfelizesservosdopríncipe,haviamexasperadotodooEgito.

Malgradoaabominaçãoqueessesnovoscrimesdespertaram,Neithcontinuavaescravadasuapaixão,eopensamentodaespantosasortequeaguardavaHoremsebcausava-lheestremecimentos.Com o coração batendo fortemente, ela esperava, de hora em hora, a notícia da prisão; mas, otempo decorria... E já se passara um mês desde sua chegada a Tebas, e o príncipe continuavadesaparecido.TeriaeleconseguidodeixaroterritóriodoEgito,oupereceraemalgumesconderijo?Emvãotentouadivinhar.

Certamanhã,Roant,quevierapassarjuntodelaalgunsminutos,contouqueHartatefchegarade Mênfis, trazendo com ele Ísis, agora em convalescença, e a quem se pretendia submeter ainterrogatório,porserumadasprincipaistestemunhascontraHoremseb.Hartatef,quemostravaomaior interessepela suaprotegida,havia instalado Ísis em suaprópria residência, cercando-adecuidadoseconforto.

Apósapartidadaamiga,Neithentregou-seapensamentosagitadíssimos,sentindoquaseódiocontraapobreÍsis,quetraíraopríncipeenãodeixariadenarrar,comvigorosasminúcias,todososmistérios da vida fantástica que o bruxo tinha tanto interesse em esconder. Recordou ointerrogatório a que ela mesma fora submetida; mas, ficara — impenetrável — e, a todas asperguntas de Ranseneb e do funcionário encarregado da instrução do inquérito, limitara-se aresponderquetudoignoravaequenãoviracoisaalguma,porquehabitarasempreumapartamentoisolado,doqualseafastavaapenasparaasrefeiçõescomopríncipe,ouparapassearnosjardins,sempre desertos nessas ocasiões. De Ísis, o pensamento passou para Hartatef, revivendo naimaginação a imagem quase apagada do antigo noivo. Que sentimento o levava a proteger Ísis?Seria ainda ressentimento, desejando vingar o desdenhado amor, com o aniquilamento do rivalpreferido?

A chegada da nutriz veio interromper as reflexões. A boa velha anunciou que um homem,dizendo-seenviadodeMena,pediaserrecebidoimediatamenteparatransmitirmensagemdiretaaela e da mais grave importância. Surpreendida e intrigada, ordenou o imediato ingresso domensageiro, e sem demora a nutriz guiou um homem, obeso, pele negra, provido de enormecabeleira,evestidocomroupasdeservodecasarica.

Picandoasós,oenviadotiroudocintopequenorolodepapiroeoestendeu,dizendo,baixinho:

—DapartedonobreHartatef.

Neithdesenrolouvivamenteoescritoeleu,comestupefação:

“Tenhonotíciasdaqueleemquempensasdiaenoite,eaesserespeitoquerodizer-tecoisastão graves, que uma entrevista secreta parece-me indispensável. Não desconfies: — juro pelosquarentaedoisjuizesdeAmentiquevenhonaqualidadedeamigoleal.Marca-mehoraepontodoencontro; não recuses, pois tu o lamentarias amargamente. O portador é pessoa de confiança;destróiesterecado,imediatamente.”

Nãohaviaassinatura,masomensageirodeclinaraonomedoautordaestranhamissiva;milpensamentoscontraditóriosesbarravam-senoespíritodeNeith:quelhequeriaHartatef?Quesabiaeledopríncipe?(poisaalusãoaHoremseberainiludível.)Oardentedesejoderecebernotíciasdo

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fugitivo calou todos os escrúpulos de Neith. Demais, que recear? Era livre em suas ações, econhecia bastante Hartatef para estar segura de que nenhuma insolência de sua parte havia atemer.Soboimpulsodetaissentimentos,pegouemtabuinhaseescreveu:

“AopôrdoSol,estareinojardim,juntodopequenopavilhãoqueabreparaorio.Aportaficaráaberta.”

Não assinou, igualmente. Fechando o recado, estendeu as tabuinhas ao mensageiro, que,saudandohumildemente,seretirou.

Odiapareceuinterminável.QuelheiriadizerHartatef?Quefimvisavaele,trazendo-lhenovasdofugitivo,cujacabeçaestavaaprêmio?Comestranhosentimento,pensounotempoemquePairafizera, a contragosto dela, noiva desse homem tenaz e apaixonado... Então, ela supunha amarKeniamun,emaistardeRomahaviadominadoseucoração,edepoisaimagemdeRomasumira,aseuturno,anteapaixãodesenfreadaqueachumbaraaHoremseb,amorquelhedevoravaocoraçãoe o corpo, porém a razão e o orgulho condenavam. Esse sentimento onipotente parecia haverempanadotodososoutros,destruídosua faculdadedesentir; todoopassadodir-se-iaembaciado,longínquo;opoucotempodecorridosemelhavaumalongaexistênciadelutasedesofrimentos,naqual tinham soçobrado sua felicidade e seu repouso. Outrora, detestara Hartatef; agora, só lheinspiravaindiferença.

Quando,enfim,oSolcomeçouadescambarnohorizonte,Neith,seguidaporsua fielnutriz,desceuaojardim.Chegadaaopequenopavilhão,ondesederaonefastoencontrocomRoma,nodiadocasamentocomSargon,abriuaportaquedavaparaorio,esentou-senumbancopoucodistantedaentrada,ordenandoaBekificassenaaléiacontígua,aoalcancedasuavoz.

Nãoesperoumuitotempo.Escassosminutoshaviam-seescoadodepoisquesentaranobanco,quandoaelevadaestaturadeHartatefsurgiunaporta.Envolvia-senummantoescuro,eum“claft”raiado,degrosseiroestofo,lhedavaaparênciadehomemdopovo.

AdoispassosdeNeith,parou, saudando-a respeitoso,eapenasoolhar rutilantecomqueaenvolveu mostrou que o seu irredutível amor não se extinguira. A jovem mulher, absorvida pelapreocupaçãoexclusiva,nãoreparouemnada.

—Sêbem-vindo,Hartatef,eexplica-me, semdemora,o sentidodo teumisterioso recado—disse,indicando,comimpacientegesto,lugaraseulado.

Orecém-chegadosentou-se,edisse,sempreâmbulos:

—ConheçoorefúgiodeHoremseb,mas,nelenãopoderápermanecerpormuitotempo.Detidependequeeuodenuncieeodeixeperecer,ouqueeuosalve.Nãojulguesquetevenhoiludir—acrescentou, surpreendendo no semblante descorado de Neith uma expressão de sombriadesconfiança.EstáocultonasproximidadesdeMênfis,naantiganecrópole,emumavelha tumbavioladaondevivia famoso feiticeiro,quedesapareceu logoapósaspesquisasnopalácio.Suponhoque esse homem era um hiteno e tinha relações com o criminoso sábio que perdeu Horemseb,porquetambémelesumiu,semdeixarrasto.Nãotedescrevereiacustodequetrabalhosencontreiapistadopríncipe:emresumo,seiqueseescondenanecrópole,ondeoreconheci,quandosai,ànoite,pararespirararpuro;mas,éclaroque,comotempo,morrerádefome,ouseráapanhado,seabandonarorefúgio.Possosalvá-lo,eofareipordevotamentoati...semederesarecompensaquedesejo.

Neithescutara,ofegante.Nãomaisduvidava.

—Tu,Hartatef,tu,consentiriasemsalvá-lo?Dequemodo,eaquepreço?

—Omeioésimples:ireibuscá-lo,ànoite,e,explicandoquesouamigo,fá-lo-eimeter-senumacaixademúmia,comperfuraçõesparaquerespireàvontade.Semdespertarsuspeitas,aosolhosdetodos, conduzi-lo-ei a qualquer cidade do delta, onde poderá juntar-se a uma caravana, rumo deBabilôniaoudeTiro.Quantoàrecompensa(inclinou-seefogosoolharmergulhounosperturbadosolhosdeNeith),éstumesma,porquejamaiscesseideteamar.TeucasamentocomHoremsebseráanulado, em qualquer hipótese; Sargon morreu; nada pode impedir me desposes, escoado ointervalodoluto.Promete-meseresminhamulher,esalvareiaqueleaquemamas!

— Tu ainda queres desposar-me, apesar do ardente amor que tenho por Horemseb? —balbuciouNeith.

— Tu nunca me amaste, e Horemseb estará longe — respondeu Hartatef, com amargura.Ninguém,tantoquantoeu,teseráfiel:sereiumesposoindulgenteeterno,contentando-mecoma

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possedatuapessoa,semexigiroteuamor,atéqueteucoração,curado,modê,voluntariamente.Aconvicção de haver salvo o homem teu amado, restituir-te-á a calma. Deixa-me amar-te; meudevotamentovencerátuaaversão,enosdaráfelicidade.

—Oh!nãoéventuraoqueeudouaosquemeamam,esimdesgraçaemorte.Noentanto,sedesejas ligarmeunefastodestinoà tuavida,que seja segundoa tuavontade; salvaHoremseb, eserei tua mulher. Eis minha mão, em penhor da minha palavra. Apenas, concede-me vê-lo, umaderradeiravez,antesquedeixeoEgitoparasempre.

—Combinado!Nãohesitariaemteconcederesteencontroderradeiro;mas,avalia,tumesma,se tal é possível: não podes sair de Tebas, e trazer aqui o fugitivo é um risco quase mortal. Sequeremossubtraí-loaumasorteespantosa (eleserá torturadoemuradovivo,seoapanham),eledeve...

—Murado vivo! Sim, sim, Hartatef, faz com que saia do Egito o mais rápido possível; nãoquero mais vê-lo, contanto que se salve. Mas, conseguirás isso sozinho? E de que viverá o mal-aventurado?

—Tranquiliza-te;sereiacompanhadodealgunshomensdeconfiança,emunireiHoremsebdeumasoma,quecombinaremos,e,emTiroouemBabilônia,encontraráoapoiodospadresdeMoloc.Trareiumadeclaraçãodele,queteprovaráhavereucumpridoaminhapalavra.

—Euteagradeço,Hartatef,erenovominhapromessadesertua,oudenenhumoutro.Agora,deixa-medar-tealgunsesclarecimentosquetepoderãoserúteisnatuadifíciltentativa.

Rapidamente, transmitiu as particularidades que lhe comunicara o príncipe, sobre a portasecreta do muro, os esconderijos do jardim e sobre o meio de se comunicar com ele, e aindaindicações topográficas que permitiam orientar-se no palácio e nos jardins. Tudo tratado,minuciosamente,Hartatefergueu-se.

—Devopartir,porquecadahoraépreciosa.Adeus,pois,Neith!Arriscoaminhacabeçaparate conquistar, porque vales para mim muito mais do que a vida. Possam os deuses conceder-merever-teditosamente!

Atraiu-a,brusco,deu-lheumbeijo,eprecipitou-separafora.Naporta,parouefezumacenocomamão.

—Atébreve,minhanoiva!

Dividida entre o temor, a esperança e um tristonho abatimento,Neith voltou ao aposento edeitou-se,proibindoapresençadequemquerquefosse.

De acordo com o que Roant narrara à amiga, Ísis retornara a Tebas, sob a proteção deHartatef, e os padres haviam-no autorizado a conservar em sua residência a órfã que salvara demorte inevitável. A convalescente fora instalada empequeno apartamento, comunicando comumjardimbastantevasto,evelhagovernanteestavaincumbidadeassisti-la.

Tendotomadoconhecimentodessacombinação,Hanofer,cheiadedesconfiançaeciúme,vieraoferecer seus serviços, que a jovem egípcia aceitou, sob a influência do estranho poder que amegera exercia sobre Hartatef. Ísis estava muito diferente, embora em convalescença plena; apalidez e o enfraquecimento eram extremos, e os cabelos renascentes, que cobriam a cabeçaraspada,davam-lheaaparênciaderapaz.Orumordachegadadacorajosamoça,quearriscaraavidaparavingarairmãedesmascararoscrimesdeHoremseb,espalhara-serapidamentenacidade,e,durantetodoodia,senhorasdehierarquiasocial,Roantinclusive,iamvisitá-laeexpressaroseuinteresse,interrogando-acuriosamentesobreasuaestadaemcasadonigromante.

Nessa tarde, Ranseneb e Roma visitaram-na também e examinaram o estado do ferimento,fazendo algumas interrogações e assegurando à jovem que seu estado não oferecia mais perigoalgum,equesóseriainquiridaquandoseachassesuficientementedescansadaefortalecida.

Depoisdaretiradadospadres,Ísisafinalficouasós.Hanofertambémseeclipsara,apretextode indispensável caminhada, mas, em realidade, para imiscuir-se nas dependências, ondepapagueava e perguntava as serviçais, intrometia-se nos serviços e dispunha sem cerimônia dasprovisõeseoutrascoisasdeHartatef.

Semembargodafadigaextrema,Ísis iaao jardim.Tinhanecessidadedesolitude,e temiaoregressodaenfermeira,cujofalatórioebrutalcuriosidaderepugnavam-lhe.Chegadaaumbosquetecerrado,aocentrodoqualhaviaumbanco,sentou-secansada,e,encostando-seaotroncodeuma

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acácia,abandonou-seavagasquimeras.Orumordedoishomens,que,caminhando,falavamameiavoz,arrancouÍsisdoseulangorcontemplativo.

Prestou atenção, e reconheceu Hartatef e Smenkara, que pareciam passear, margeando obosquete,indoevindoregularmente.Súbito,estremeceue,inclinando-se,ávida,procurouentenderas palavras da conversação. E quanto mais escutava, mais a agitação crescia; a raiva e o pasmoalternavam-senaexpressãodoseulívidorosto,e,quandoenfimospassosdosdoisinterlocutoresseperderam distanciados, Ísis retomou, quase a correr, o caminho do seu aposento. O escuro e aemoçãofizeram-lheerrarorumoesomentequandoaluzdaLualhepermitiuorientar-seconseguiuchegar;mas,oesgotamentoeasuperexcitaçãofizeram-naperderossentidos.Aotornarasi,anoiteavançara,eHanofer,quelheprestavacuidados,indagoucuriosasobreoquehaviaacontecido.

— Ah! — murmurou Ísis em desfalecido tom — querem libertar Horemseb, e, se fugir àpuniçãomerecida,omiserávelacharámeiodevoltaraquiesevingardetodos.

— Tu deliras, minha filha. Quem iria livrar um ímpio, cuja cabeça vale cinco talentos deprata(23).Sesesoubesseondeoencontrar,pegá-lo-iam,seguramente,masnãoparalhedarfuga.

(23)CINCOTALENTOSDEPRATA-Valendocadaum1/10dodeouro,correspondeaototalde600cruzeiros.

Ísissoergueu-se:ódioesededevingançasufocavam-na,quaseapontodeesquecerarepulsaporHanofer.

—ÉteumaridoeHartatefquequeremajudá-loafugirparaBabilônia,escondidonumacaixademúmia.Estão combinados comuma certamulher que desposaráHartatef, em recompensa doserviço.

Obronzeadorostodamegeraenrubesceuinstantaneamente,e,sobrecenhofranzido,dobrou-se para Ísis, e obteve desta a repetição, palavra por palavra, do quanto conseguira apanhar dacombinação.

—Nãopudeouvir tudo,porqueseafastavam, indoevindodeumaoutroextremodaaléia,masoprincipaléperfeitamentecerto.

—Nãoduvido;esseasnodeHartatefé incorrigível— falouHanofer,numarisadaroufenha.QuantoaovelhocrocodiloSmenkara,nãopodeviversemembrulhadas;mas,tranquiliza-te, Ísis,edeixa-meocuidadodefazerfalharessacoisa,quedesaprovoequeacarretaráaomeudignoesposobofetões como nunca apanhou iguais. Se os dois imbecis ainda não partiram, segundo pensas,tambémnãosemoverãodeTebas.Casocontrário,inútilseráaviagemaMênfis.

Curta indagação convenceu Hanofer de que os dois homens haviam partido num barcopreviamentepreparado.Transbordandodeira,meditouomeiomaissegurodeimpediraexecuçãodo projeto, e, apenas os primeiros albores da alvorada apareceram no horizonte, rumou para otemplo de Hator, e pediu para falar a Roma. Com um bem natural espanto, o jovem sacerdoteescutouaestranhadenúncia,aqual,malgradodaslacunas,lhefoitãocompreensívelquantoparaHanofer.Recomendando-lheabsolutosilêncio,eleadespediu,e,semperdadeuminstante,dirigiu-se ao templo de Amon e informou ao Grande Sacerdote o que se passava. Foram dadas ordensimediatas, e, duas horas mais tarde, um correio partia para Mênfis, munido de uma carta paraAmenófis, com instruções para impedir a evasão com o menor escândalo possível, caso não seconseguisse abortar previamente a tentativa. Hartatef era considerado possesso, cujo cego amorobscurecia-lhearazão,equemaisvaliasalvá-lodoquedestruí-lo.

Penosamenteagitado,Romaregressouacasa.OpensamentodequeNeithhaviaconsentidoem entregar-se a Hartatef para salvar o miserável que a enfeitiçara, desencadeava nele umatormenta;nenhumatorturalhepareciasuficienteparasatisfazerasanhacontraHoremseb.Sobopeso dos seus tumultuosos sentimentos, o moço sacerdote não suportou a solitude da casa, e foiparaadeRoant,onde,desagradavelmentesurpreendido,encontrouNeith.

Igualmentemovidaporsurdairritação,vieraelabuscardistraçãojuntodaamiga.EsbarrandonoolharsombrioeestranhamenteescrutadordeRoma,baixouosolhos.Nãotinhaelarenunciadodefinitivamenteaele,ofielegeneroso,parasalvarohomemqueeledesprezava,comrazão?Quediriaele,quandosoubesseaverdade?...

Notandoodesagradávelconstrangimentoreinanteentreoirmãoeaamiga,Roant,procurouumdesviodeatenção.

— Estiveste, ontem, em casa de Ísis, conforme tencionavas, Roma? Eu lhe fiz uma visita,duranteodia.Comoestáformosaaindaapobrecriança!

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— Sim, lá estive, com Ranseneb, e constatamos que está em vias de completorestabelecimento.

Neithergueraabruptamenteacabeça;osolhosfuzilavameoslábiostremiam.

—Como!Romaetuvisitaisaindaessamiserável?—exclamouela,comavozsofreada.

—Nãocompreendo—disseRoant,surpreendida—porquenãonosinteressaríamosporessainocentevítima,que,voluntariamente,sofreumedonhasorteparaprestarumserviçoaoEgito?

—Elateveoquemereceu,essatraidora!—explodiuNeith,foradesi.Asemelhançadedoisladrões, ela e seu digno aliado insinuaram-se onde ninguém os chamara, para espionar e trair.Sargonachouajustarecompensa,econsidero-mefelizpornãohavertornadoaavistá-lo,poistê-lo-ia repelido com a ponta do pé, a esse ser abominável que perdeu Horemseb! Quanto a Ísis, opríncipefez-lhemuitahonra,ferindo-acomasuaprópriamão.Éessaserpentequevairecuperarasaúdeparaacusaropríncipecommilmentiras,que têmacumuladosobreaminhacabeça tantasdores,desgraça!...

Avozfaltou-lhe.Roantescutara,pálidaeconsternada,esseveementedesabafo,mas,orostodeRomacobrira-sedeardenterubor;osolhos,tãoserenosetãodoceshabitualmente,flamejavam,eumacólera,mescladadedesprezo,vibrava-lhenavoz,quando,pousandoamãosobreobraçodeNeith,disse,severamente:

— Pára, a fim de que as tuas indignas palavras não recaiam sobre ti mesma, feitas lodo.Compreendo e perdôo teu estado, porque conheço o império do veneno que te cega, mas, esseimpériosóseestendeaossentimentos,enãodestróio raciocínio.Tuparecessentirprazernesserebaixamento,porquenãotentasesforçoalgumparasacudirojugo,tunãobuscasacura.Seja!Nãotenhodireitodeteacusar,maspossuoodeapreciarainjustiçaquetestemunhasàinditosaÍsis,que,corajosamente, se sacrificoupara salvaroutrasvítimas.QuantoaSargon,ele te testemunhouumdevotamentomaisabsolutodoqueomeupróprio,quetantoteameieamo;paralibertar-tedeumaescravidão vergonhosa, ele deu o mais precioso bem que se possa possuir: a vida! Com umacoragem,comumsangue-frioheróico,eleseentregouaopoderdessehomemsanguinário,doqual,pelomenoracaso,podiatornar-se identificadoequedelesevingaria,tãodesumanamentequantode Neftis. Sem dúvida, Sargon não podia prever que a sobranceira Neith beijaria as algemas edetestaria até amemória dohomemquemorrera por ela. Tua indignapaixão corrói-te qual umalepra,enãoquerescompreenderqueHoremsebtepoupou,nãoporamor,masporcálculo.Apenastuqueressalvaroréu,doqualtodooEgitoreclamaacabeça.Teusesforçosserão,porém,empuraperda,porqueosdeusesseafastaramdele!

Àmedida que falava o moço sacerdote, lívido palor cobrira o semblante deNeith; as mãospremidascontraopeito,respiravadificilmente;cadapalavrasoavaqualpancadademartelo.TudoquantoRomadiziaeraverdade,eacondenava,mas,podiaelaarrancardocoraçãoessesentimentoincendiário ante o qual tudo se empanava e diluía? Não; ela bem lutara, bastante sofrerá; essascensuras,porissomesmoquemerecidas,irritavamachaga.Abandonando-seaoirascívelorgulho,àteimosia,Neithendireitou-seerespondeu,emtomglacial:

—Teudiscursosómedemonstrouumacoisa:empartealgumaestouaoabrigodecensurasedeumatutelademasiadopesada.NaCorte,arainhaésurdaàsminhassúplicas,enãotemperdõesparaHoremseb;aqui,verificoque,paracondenar,tusabessersuficientementeduroecruel.Vou,pois,retirar-meparaomeupalácio,eláaguardareioquetiverdeacontecer,masnãomedesviareidoinfortunadoquetodosabandonaram,eseráprecisoquemeconvençamdequeé feitiço,enãoamor,oqueacorrentameucoração!

Voltoucostasecaminhourapidamenteparaaporta,porém,Romaaantecedeu.

—Neith!—disse,apenas.

Mas, esse único vocábulo chumbou a jovemonde estava, e lhe fundiu o orgulho: é que ummundodeternuraedepiedadevibravanaquelavoz,outroratãoamada,quesempreexercerasobreelaumbenfazejopoderio.Ergueuosolhos,e,encontrandooolhardoSacerdote,queafixavacheiodedoredecensura,desatouemsoluços,e,atirando-se-lhenosbraços,balbuciou:

—Roma,nãosejasrigoroso,nãomecondenes!

O jovempadreaconchegou-adeencontroaopeito;os lábios tremiamdolorosamente,masocoraçãogenerosojátriunfara,sacrificandooprópriosofrimento.

—Tensrazão,Neith;paracontigo,queamoacimadetudonomundo,devoserconfortador,e

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nãojuiz;façamospazes,pobrecriança,esquecemeuciúme,minharaivalegitimacontraaquelequeteroubouamim,evoltaàcalma,àconfiança.Desdeestemomento,soudenovooteuamigo,oteuesteio,oconfidentedastuasdores,talqualfuioutrora,etalvezHatormepermitasararteucoraçãoenfermo.

—Ésomelhordoshomens,Roma.Ah!sesoubessesumacoisa!Mas,não,nãoapossodizer,porque,comisso,bastanteeusofreriaainda.

Melancólicosorrisodeslizoupeloslábiosdomoçosacerdote.

— Nada quero saber no momento; espero na sabedoria e na misericórdia dos deuses; elesfarãotudopelomelhor.EagoravoltemosparajuntodeRoant,queestáabatida.

Sentaram-senovamenteàmesa.Roant,sentindo-seditosapelobomtermodadiscussão,deuàpalestraumcunhomaisgeneralizado,e,quandoNeithregressouacasa,ofezmaistranquila,maisfelizdoque,dehámuito,nãosesentia.

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QuartaParteAsvítimasseagrupam

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I

OBRUXOEMPODERDASSOMBRASVINGATIVAS

Sombra,tuserásapresadasombra;tuquevensdanoite,retornaaoErebo(riodoinferno).

(MistériosdeDionisos)

FelizacasofizeraHoremsebsalvar-sedossoldadosqueoperseguiam,eoótimocavaloporelemontadofizera-lheganharconsiderávelavanço;mas,bemdepressacompreendeuqueessamontadadenunciá-lo-ia,e, forçadoaabandoná-la,deveriaprosseguirpedestrementeparaorumo,andandoduranteanoite,escondendo-seduranteodianoscampos,nasrochasounoscaniçais.Quebradodefadiga e pelas privações, atingiu afinal Mênfis, e teria sido difícil, mesmo a um familiar antigo,reconhecerosoberbopríncipeHoremsebnaquelevagamundoandrajoso,comabarbainculta,que,exausto,searrastavapenosamente.

Em uma grande povoação, próxima de Mênfis, onde entrou forçado pela necessidade deprocurar algum alimento, uma derradeira emoção aguardava-o; fanfarras luzidas emocionaram eatraíramapopulaçãoparaasbordasdorio,ondeumescribarealleuaordemdarainhaedepoisaproclamaçãodoConselhodosSacerdotes,ordenandoatodoegípciobuscareentregarà Justiçaopríncipe Horemseb, acusado de crime capital, e proibindo, sob pena de morte, dar-lhe asilo,alimentoouproteção.Quemoentregassereceberiaarecompensadecincotalentosdeprata.

Consternadoecheiodeterror,opríncipedeixouaaldeia,e,chegadaanoite,alcançou,commil precauções, a necrópole e o esconderijo de Spazar, onde esperava encontrar seu mestre ecúmplice. O misterioso refúgio, porém, estava deserto, pois Tadar e seu companheiro haviampartido, deixando apenas um escrito, comunicando haverem seguido para Tebas, onde seconsideravammaisemsegurança,eaconselhando-onãoperderacoragemeaesperança.

Malgradoessacontrariedade,Horemsebsentiu-sebemfeliz,porquenoabrigoexistiamvestes,alimentosemesmoobjetosdeluxoemabundância.Durantealgunsdias,oesgotamentomergulhou-oemverdadeiraprostração;mas,osonoeanutriçãorestabelecerambemprontoasforçasdoseujovem e robusto corpo, substituindo o sofrimento físico por uma tortura moral cada vez maisintolerável.Forçadoahaurirumpoucodearfresco,apenasànoite,começavaasentirpalpitaçõesdocoraçãoesufocações;oambienteespessoeaquecidodolocal,destinadoamortos,tornou-se-lheinsuportável,porissoque,aocontráriodeSpazar,elenãopodiasairdatocaaqualquermomento.

Osdias tornavam-sesemanas,enotíciaalguma,nemmensagemlhechegavam;asprovisõestocavamseutermo,eopróprioesconderijonãomaislhepareciaseguro,porquesurpreenderaumhomemrondando,ànoite,nanecrópole,aespionarsuassaídas.

O príncipe ainda mais se confinou, e, embora houvesse desaparecido o misterioso espião,receava uma surpresa a qualquer momento. Torturado pela inquietude, levada ao extremo pelosilêncioobstinadodeNeith,pelaausênciacompletadenotíciasdoexterior,ameaçadodemorreràfome, dentro de alguns dias, resolveu abandonar o vale dos túmulos e alcançar seu palácio. Látambém poderia ocultar-se e, principalmente, talvez saber algo a respeito de Neith, sua últimaesperança. Estaria elamorta? Ou, igualmente, ter-se-ia afastado dele, a despeito do veneno queingerira?

Tomada tal decisão,Horemsebacomodouemuma sacola os restantes alimentos, e, à noite,esgueirou-separaforadoabrigo,encetouamarchaparaoseupalácio,ondeatingiusemembaraçosaportasecreta,epenetrounojardim.Tudoestavasilencioso,talqualaotempodoseupoderio,mas,que total mudança! Com inseguros passos, atravessou as aléias tão suas conhecidas, todos osrecantos que lhe recordavamou as orgias, asmortes, ou os divertimentos comquedistraía suasnoites.

ALua,emseusegundoquarto,acabavadesurgir,inundandodepálidaluzograndelago,nãolonge do qual se elevava, sombrio e isolado, o vasto palácio, com os seus terraços e galerias,esfingesevasosdebronze;mas,osfogachosavermelhadosnãomaisestavamacesos,nenhumservocorriapararecebê-lo,nenhumdeliciosoaromaseespalhavanoar.Tomadoporvertigem,arrimou-seaumaárvoreecomprimiuatestacomambasasmãos;estavaaniquilado,perdido,abandonadodetodos,ereentrava,qualmíserofugitivo,naquelepalácioonde—senhorabsoluto—cadaolharseuvaliaporumaordem,ondetodosserojavamaseuspés.Umaespéciedeestertorfugiu-lhedaboca;desesperomescladoderaivaloucasacudiu-lheocorpo,comosetivesseumacessofebril.

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De todaaqueladesventura,de todoaqueledesmoronamentodasuaexistência foraNeftisacausadora!Àlembrançadequemoatraiçoara,rangiaosdentes,eumselvagemdesejodetorturá-lanovamente invadia-lheaalma.Nessemomento,oolhar incidiuparao lago,eassimpermaneceu,comsurpresa:dasuperfíciedaágua,dosombreadodasárvoressobreasbordassurgiamvaporescinzentos,queseexpandiamecondensavam,tomandoaspectodemulheresdesgrenhadas,envoltasem roupagens pretas. Os estranhos seres deslizavam para ele, tornando-se cada vez maisindividualizáveis,àmedidaqueseaproximavam;aaragemnoturnasacudia-lhesosnegrosmantos,descobrindooscorposdesnudosepintalgadosdesangue;oslongoscabelos,emdesordem,pendiamsobre o peito; os rostos, descorados, denotavam sofrimento e paixão; entre os crispados dedos,entrelaçavam-serosasrubras.

Essecortejo,medonhoesempreaumentado,caminhouparaele, rodeando-oqualcírculodefogo.Àfrentedessasmulheres,estavaNeftis,comoseairadeHoremsebahouvesseevocado:osruivos cabelos envolviam-na, qual manto de fagulhas; os olhos, queimando de sanha feroz,fascinavamoseualgoz.Sacudidodehorror,olhosdilatados,Horemsebcontemplavaamultidãodeespectros, cujo círculomais emais se fechava. Ele as conhecia, a todas, a todos aqueles rostos,outrora tão formosos, aquelas jovens criaturas, cheias de vida e de amor, que ele assassinaralentamente,divertindo-secomasuaagonia,abeberando-sedoseusangue.E,agora,Neftissacudia-lhe, quase junto do rosto, a vermelha rosa que apertava na mão crispada. O aroma sufocanteatingiu-lhe o olfato, mas, desta vez, despertando desgosto e repulsão. Como se estivesse ébrio,Horemsebcambaleou,edepoisseatirouparaafrente,nointuitodefugir;mas,pareciachumbadoao solo, faltava-lhe a respiração, o cérebro dir-se-ia prestes a estourar, e as sombras vingadorascomprimiam-se contra ele; braços gélidos enlaçavam-lhe o pescoço, lábios álgidos, exalandopútridosodores,colavam-seaosseus,dedosenrijadosdentavam-se-lhenosbraçosenasvestes...

Desatinadoemeiosemfôlego,ensaioudesembaraçar-se.Acabeçagirava:ficarialouco,ouumpesadelo o esmagaria? Por sobre-humano esforço, estendeu os braços, repelindo os fantasmas;depois,qualcervosob ladridos,atirou-separaopalácio,mas,apósele,voavam,àsemelhançadeflocos de penugens sopradas pelo vento, as sombras das suas vítimas. Guiado pelo instinto, naausência de reflexão, encaminhara-se ele para o terraço comunicante com os seus antigosapartamentos, e ali chegou feito um furacão. As portas estavam abertas, e respirou aliviado: opalácio não se achava abandonado, conforme supusera; lá, na galeria brandamente iluminada,deslizavam,talqualoutrora,servosricamenteajaezados,e,nofimdagaleria,doisjovensserviçais,acocorados junto de tripés, pareciam nestes derramar perfumes. Foi para eles que dirigiu seuspassos; à proporção, porém, que se apropinquava, parecia que recuavam, e desapareceramsubitamente.Tomadodeterror,aindaumavez,precipitou-separaoutragaleria,àqualforaatraídoporumanovaluz:eraadasaladasrefeições,onde,juntodasuacadeira,elevadanumestrado,seviamChamus eHapzefaá, seguidos de um grupo de eunucos. Rodearam imediatos o seu senhor,porém,osrostosestavamestranhamente lívidosecrispados,suasmãosagitavamcoposcheiosdeumlíquidonegroeasvozes,ensurdecidascomosefossembramidolongínquo,diziam:

—Bebeestevenenoquenosderamemrecompensadenossosserviços,denossafidelidade.

OpríncipeignoravaosúltimosenvenenamentoscometidosporTadar,e,aopensamentodequelátambémencontrariaespectrosdesuasvítimas,dequeapenaselevivoerrariaporentreaquelesmortos,oscabelosselheeriçaramdepavor,eseabateusobreaslajesdochão.Nomesmoinstante,asluzesextinguiram-seesóumraiofracodeclaridadeescassacontinuouabrilharnoterraçoqueseparavaasaladasrefeições.

Comgritoselvagem,Horemsebretesou-se,e,comoqueperseguidopormildemônios,pulouparaojardim;mas,lá,aguardava-oocortejodesgrenhadodasmulheressangrentas;precedendo-o,rodeando-o, a ondular em seu derredor, pareciam arrastá-lo de aléia em aléia, colando-se a ele,atravessando-o com uma friagem de gelo, quando ele tentava deter-se. Na caminhada louca,desembocoudesúbitonoredondelaofundodoqualseelevavaoestradodepedraondeoutroraseentronizava,enquantoaseuspéschafurdava-seaembrutecidamultidãodesereshumanosquelheserviamdediversão.Acadeiradouradahaviadesaparecido,asguirlandasdefloresausentes;sóaluzdoluarbrincavasobreosdegrauspétreosesobreasalvascolunasquesustinhamodosseldonicho.Pareceu-lhe,nessaconjuntura,quelá,naquelaelevação,estariaacobertodosperseguidores;encontrava-se,deresto,nolimitedasforças.Manandosuor,arquejante,tropeçandoacadapasso,subiuaescadariaeagachou-senofundodaconcavidade.

Tudoemtornoeracalma;oséquitohorríficodesaparecera.Extenuado,querendocomprimircom as mãos o agitado coração, fechou os olhos; mas, de pronto, estremeceu: sons confusos,cânticos distantes atingiram seu ouvido. O rumor aproximou-se, pouco a pouco, aumentando deintensidade; lembrava o sibilar de uma ventania de temporal, entremeado de ruídos surdos,esvaindo-sequalaqueixadeummoribundo,edepoisumaselvagemmelodiaatroantequalfanfarra,acompanhadadegritosdissonantesedesussurrosdeorgia.

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Fremente, endireitou-se, e o olhar, espavorido, voltou-se para a clareira que começava apopular-se: lá, deslizavam, em fila, as cantoras, com as harpas nos braços, os dedos lívidospercorrendoascordas,oslábiosazuladosentreabertos,enquantoasdançarinas,tãovaporosasquedeixavamverosobjetoscircundantesatravésdeseuscorposdiáfanos,bailavamsemdescansonemtrégua, sacudindo as brancas vestimentas, torvelinhando num rodar desenfreado. Em redor,agrupava-seumaturba,muda,defaces lívidase imóveis:eraacortequeeletiveraprisioneiranopalácio encantado, e que vinha, tal qual outrora, rodeá-lo e distraí-lo... Apenas, todos quantostinham vivido, trabalhado e divertido o amo, estavam mortos, ceifados na flor da idade, e arecreaçãoqueofereciamaoantigocarrascoeraumadiabólicavingança.

Acocorado,qualquadrúpededaselva,nofundodonicho,ocorpoencharcadodetranspiraçãogelada, fixava o terrificante espetáculo; quisera fugir, mas não ousava tal, porque nos degrausestavamigualmenteagachadasNeftisesuascompanheiras,eseelepousasseopénosdegrauselesafundariam,eoatroabismo,antevistoporNeith, o engoliria.Não; estavaprisioneiroali, edeviaassistir às danças, escutar os cânticos que, na sua discordante e selvática melodia, como queincorporavam as paixões insaciadas daquelas almas sofredoras, e excitavam os desejosdesordenados do coração humano, que tomavam vida, bramindo qual tempestade. Quem nãoconheciaaqueladolorosamúsica, imagemda lutaentreohomemeadivindade,entreobemeomal,entreadestruiçãoeaconservação?

Essessons trespassavam, talqualagudas flechas,odoloridocoraçãodohomemencarnado,criminoso,sucumbindosobaexpiação,igualaoEspíritoqueerrasemrepousonoEspaço,ouvindogritaremtodasassuasvibrações:

—As leisdivinasqueafrontastevingam-sesobretimesmo; teusprópriosabusoscriaramossofrimentos.Criaturacega,que,emtuaira,matas,ficasabendoquedestróisapenasumaformadeargila,eacentelhaimortal,quehabitavanela,transforma-seeeleva,namarchagrandiosadolaboreterno!Não teolvidesdequeogozodocrimeésempreumtransitóriomomento,emseguidadoqualpesadamenteseestendeapunição.Porincoercívelleideequilíbrio,omalpraticadorecaisobreti,apossa-sedoteufrágilcoraçãoeotriturasobadorexpiatória,atéque,tornadotenroeflexível,sejaaptopararefletiradivindadenasuaperfeiçãoinfinita.

Sem o compreender, Horemseb pagava, durante aquela infernal noitada, os criminososprazeres;eleseconsiderarainvulnerávelnosmomentosemquetudosequebravaaseuspés.

O primeiro raio do Sol no Levante pôs, afinal, um termo às horas de angústia; as trevasdesapareceram e com elas as sombras vingativas; benfazejo calor penetrou os membrosentorpecidosdoculpado,dissipando-lheotorpor.Rapareciadizer-lhe:

—Vê!Eusouaclaridade,inimigadastrevas,emeusfulgentesraiospõemocrimeemfuga.Semehouvessesficadofiel,nãotemeriasanoite;repouso,quentura,amor,tudoatieuteriadado!

Lentamente, cabeça baixa, Horemseb desceu e arrastou-se para o pavilhão onde Neithdormiraosonoencantado.Oleitoaindaaliestava,e,afastandoascobertas,opríncipemergulhounum sono de chumbo, exaurido totalmente de todas as forças. Quando, afinal, despertou, o Soldescia no horizonte; sentiu-se alquebrado, a cabeça pesada e atormentado pela fome e sede.Aproximando-sedeumnicho,abriupequenoarmáriosecretoedeleretirouumaânforacomvinhoeuma caixeta com frutas confeitadas emmel, com o que acalmou a fome, voltando novamente aoleito,paracoordenaridéias.

Ohorrorda suaposiçãoapareceu-lheem todaanudez: estavaperdido, suacabeçapostaapreço,aquelepaláciodesertoseuúltimoasilo;osmortos,écerto,serviam-noalifielmente,porém,só em lembrar-se da noite, gelado arrepio percorreu-o. Pensou em Neith, a única vítima quepoupara, não por amor, e sim por interesse, e que, evidentemente, o abandonara, ou tiverainfrutífera a intercessão junto à rainha... Decididamente, tudo terminara. Amargodesencorajamento, uma lassitude sem classificação avassalava-o; não valeriamais terminar tudo,entregar-seelemesmo?

Anoitesurpreendeu-onasreflexões,e,comastrevas,ressuscitaramosterrores;cadarumorfazia-o estremecer; de cada canto acreditava ver surgir um dos terríveis espectros. Com súbitaresolução, ergueu-se: arriscar tudo era melhor do que permanecer sozinho naquele local.Avizinhando-sedoarmáriosecreto,retirouumarchote,queacendeu,e,evitandoolharparaadireitaou para a esquerda, rumou para o palácio. Parecia-lhe que, por detrás, pisava no chão a turbainvisíveleque,dasombradeumacoluna,sedestacavaacabeçadesfiguradadeNeftis,olhando-ocomraivosochacotear;mas, reunindo todaacoragem,passoualém,atravessoucorrendoosseusapartamentos, e bem depressa se encontrou na parte reservada antigamente ao pessoal dosserviços.Derepente,confusomurmúriochegou-lheaoouvido.

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Parouparaorientar-se,ecompreendeuqueumgruponumerosodehomensdeviaencontrar-seno pátio contíguo, dependente dos aposentos ocupados outrora por Hapzefaá, Chamus e outrosservidoresdeconfiança.

Apagou o archote, e, abrindo uma porta oculta, achou-se sob a arcada sombreada de umperistilo, contornando vasto pátio no meio do qual se encontrava uma escudela. Respirandocustosamente, encostou-se à parede e fixou, com sombrio olhar, os imprevistos hóspedes que sealbergavam em seu palácio. Em redor de muitos braseiros, estavam acocorados soldados,conversando e brunindo suas armas, enquanto num pequeno terraço, fortemente iluminado, doisoficiaisseentretinhamnojogodedamas.Umaescolta,comandadaporumterceiro,entravaentão,regressando de ronda. Resolvendo-se bruscamente, o príncipe abandonou o esconderijo e andouretoparaoterraço;mas,aoaparecernocírculodaluz,ossoldadospularam,aosgritos,osoficiaispegaramasarmas,e,numabrire fechardeolhos,estavanocentrodeumarodaameaçadoradelançaseespadas.

— Todo este tumulto é desnecessário — disse Horemseb, calmo —, eu me entrego,voluntariamente.

— Ages sabiamente— respondeu Antef, baixando a espada— em poupares uma luta. VoucomunicaraoGrandeSacerdoteAmenófisatuaprisão,e,aténovoaviso,ficarásaqui,prisioneiro.

Tendo dado algumas ordens, Antef pôs a mão no ombro de Horemseb, que permaneciasilencioso,edisse:

—Segue-me;vãoservir-teumarefeiçãoeprepararumacama.Alimenta-teedorme,poismeparecesexausto.

Meiahoramais tarde,opríncipeestavaàmesa,anteumbomjantar,emsaladoseuantigoapartamento.Aomenos,nãoestavasó.

—Come,semtemor;nadaestáenvenenadocomoestavamasprovisõesquedeixasteaquiequemataramosteusservidores—disseAntef,comamargura.

Horemseb baixou a cabeça; com esforço comeu um pedaço de caça e bebeu um pouco devinho.Depois,voltando-separaooficial,perguntou,hesitante:

—Sabesondeseencontra,agora,Neith,minhaesposa?

—A nobreNeith está em Tebas,mas, se contas com ela para obter teu perdão, esperarásinutilmente, a menos que consigas inocentar-te dos crimes e sacrilégios que te imputam —respondeu,irônico,Antef.Deita-te,dorme;tucarecesdeforças.

Silenciosamente, Horemseb estendeu-se no leito que lhe haviam preparado, e seuesgotamentomoralefísico,absoluto,fezquebemdepressaadormecesse.

Natardedessemesmodia,Hartatef,Smenkaraeumvelhopreto,devotado,haviamchegadoaMênfis, dissimulando no fundo da sua embarcação uma grande caixa para múmia, destinada aesconderemseuinterioroperigosoréuprocuradoemtodooEgito.

Quandoanoiteceu,Hartatefe seucúmplice rumaramparaovaledos túmulos;mas,emvãoprocuraramopríncipeechamaramporele;guiadospelasindicaçõesdeNeith,foramaoesconderijodeSpazar,econvenceram-sedequeHoremsebabandonaraorefúgio.

—Acabaramasprovisões,erefugiou-senopalácio—monologouHartatef.

E,maldizendo a infeliz eventualidade, resolveuprocurar o príncipe, imediatamente, em seunovo retiro. Penetraram semestorvonos jardins, deixando a embarcação escondidanos caniçais;mas, infrutiferamente vasculharam todos os latíbulos indicados por Neith: o príncipe não eraencontrado.

—Estaránopalácio—murmurouSmenkara,enxugandoosuorquelheescorriadatesta.

—Vamoslá,eoacharemos,salvosefoipreso.Eusei,felizmente,ondesealojamossoldados—respondeuHartatef.

E os dois aventureiros penetraram resolutamente na casa, que, de início, examinaram, semresultado.Derepente,porém,oaudazhomemparou,estremecendo,epegouobraçodeSmenkara:porumaportaaberta,viuumasala,iluminadaporarchotepresoàparede,e,sobaluzavermelhada,reconheceuHoremseb, estendido, olhos fechados, sobre um leito de repouso. Soldado etíope, de

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costas,estavadesentinela,encostadoaumacoluna.Serpeando,qualréptil,Hartatef,deslizouparaovigilante,e lheenterrouumpunhalnascarnes.Semumgrito,o soldadoestendeuosbraçose,sustido pelo assassino, resvalou para o chão, sem ruído. Então, Hartatef, célere qual sombra,aproximou-sedoleitodopríncipe,e,apoiando-lheamãonaboca,sussurrou:

—Nãogrites,Horemseb;souumamigoenviadoparatesalvar—acrescentou,aoverqueoprisioneiroabriaosolhos.

Semdiscutir, animado de nova esperança, o príncipe levantou-se e seguiu o seu libertador.Smenkara reuniu-se a eles, e, sem obstáculos, atravessaram grande sala contígua, quando,inesperadamente, uma porta abriu, e, mudos de espanto, encontraram-se face a face com umaesquadradesoldados,sobcomandodeoficial,queregressavaderendersentinelas.

—Traição!—gritou,reconhecendoopríncipe.

Este,porém,eosdoiscompanheirostentaramabrircaminho,atirando-secomfurorcontraapatrulha,eencarniçadocombatese travou,por issoqueHartatef tambémarmaraopríncipecomumamachadinhaepunhal.

Osgritoseobarulhodalutaalarmaramtodoopalácio,eAntef,seguidodeumadezenadosseus,irrompeunasala.Instantesdepois,tudoterminara:Horemseb,desarmado,estavaseguroporvinte braços, enquanto, por entre sete ou oito cadáveres espalhados, se viamHartatef, comumafacaenfiadanopeito,eSmenkara,comocrâniofendidoporgolpedemachadinha.

— Não acreditaria houvesse no Egito um homem, e principalmente um dignitário, quepretendessesubtrair-teàJustiça—disseAntef,embainhandoaespada—mas,parecequepossuisbonssortilégios,suficientesparaperturbarumcérebrotãosólidoquantoodeHartatef.Comonãotenhovontadedearriscaraindaumavezaminhacabeça,portuacausa,vouacorrentar-te,evigiar-te,eumesmo.

Uma hora mais tarde, mensageiro do templo cientificava-o do projeto de evasão que sesouberapeloenviadodeTebas.Antefrespondeua isso, levandooportadordoavisoaté juntodoscadáveresdosdoiscúmplicesemostrando-lheoprisioneiroacorrentado.

Aoamanhecer,Amenófis,acompanhadodemuitossacerdotes,veioaopalácio,e,apóscurtointerrogatório, ao qual Horemseb não deu resposta alguma, declarou que dentro de duas horaspartiriamparaTebas,ordenandoaAntefconduziroprisioneiro, sobconvenienteescoltaaopontoonde estava reunida a flotilha destinada a transportar para a Capital o Grande Sacerdote, oprisioneiro,ossoldadosealgumastestemunhasdeimportância.

A notícia de que o feiticeiro fora preso espalhou-se na cidade, qual rastilho de pólvora, esanhuda multidão, ávida de ver o terrível homem, afinal derribado, atropelou-se na direção dopalácio, congestionando todos os acessos e espiando, sôfrega, a saída do cortejo. Verificando aexistênciadessetumulto,AntefpensouemconduziroprisioneiropelasaídasobreoNilo,masoriotambémestavacobertodebarcos,quebloqueavamaescadaria,eojovemchefetevederenunciaratalprojeto.

Apósumaespera,quepareceueternaparaapopulaçaaglomerada,amaciçaportafoiaberta,dandopassagemaumdestacamentomilitaredepoliciais,queforçouaturbaaabriremfilas.Emseguida,apareceuHoremseb,pésemãos ligadosacorrentes,escoltadoporAntef,empunhandoaespadadesembainhada,rodeadoporumdestacamentodesoldados.

Àvistadaquelequedurante tão longotempo fora temido,dessebruxoquesedivertiracomtodosossentimentoshumanos,haviamatadotantosinocentesesemeadoemseucaminhodesgraçaeloucura,febrilagitaçãoapossou-sedamultidão,eumclamordeódioereprovaçãoelevou-sequalrugido. Horemseb ergueu a fronte e seu velado olhar perpassou pelos milhares de cabeçasondulantes, tanto quanto a vista podia alcançar; mas, vendo os punhos erguidos e ouvindo asvociferações,retesou-searrogantemente,e,fervilhantederaivosodesprezo,continuoucaminhando.Osclamoresaumentaram,porém:

—Assassino!Sacrílego!Enfeitiçador!—ululavamcentenasdevozes.

E pedras, lama, imundícies nauseantes, e até facas, começaram a voar sobre o prisioneiro,ferindo-oemachucando-o,ebemassimaosdaescolta.

Abrindocaminhodificultosamente,ocortejodirigiu-separaoNilo,acrescidodealgunspadresquerumavamparaseusbarcosecujaautoridadeevitouasviasdefato;mas,sobessatempestadede reprovação e de sanha, sob esse alarido de injúrias e maldições, Horemseb fraqueou.

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Cambaleante,comoseestivesseembriagado,acabeçabaixa,sucumbidoàhumilhaçãoeàvergonha,arrastava-seacusto,e,subindoaobarco,perdeuossentidos.

Tornando a si, fechou-se em irado mutismo, absorvendo-se nos seus desesperadospensamentos. Por vezes, parecia-lhe que um pesadelo atormentava-o, e ser impossível que ele,príncipedesanguereal,opoderosoericosenhor,descesseàquelegraudeaviltamento.Verdadeirociclonededesesperovarreu-lheaalma,quando,àclaridadedosolnascente,percebeu,desenhando-senoazuldocéu,os temploseospaláciosdeTebas.Sonharaacaso retornarassimàesplêndidaCapital,quedeixaraumanoantes,porentrehonrarias?Oh!setivessepodidopreverofuturo,nãoteriadecertoarrebatadoNeith!

Paraprevenircenaslamentáveis, idênticasàsocorridasemMênfis,asautoridadesdeTebas,avisadasporummensageiro,haviamtomadoprecauções,ealasdesoldados,enfileiradosemtodoopercursodocortejo,continhamas torrenteshumanasquehaviamacorrido igualmenteparaverocriminoso, cujo nome fazia fremir o Egito. Graças às prudentes disposições, o trajeto fez-se semincidentes,ebemdepressaasbrônzeasportasdoimensoâmbitodotemplodeAmon-Kafecharam-sesobreHoremsebesuaescolta,eamultidão,tumultuosamenteagitada,dispersoupoucoapouco.

Oprisioneiro,sempreacompanhadoporAntef,foiconduzidoaumasaladosubsolo,ondesereuniram Amenófis, Ranseneb, substituindo o Grande Sacerdote de Amon, enfermo desde algumtempo, e grande número de dignitários do templo. Sombrio, mas de cabeça erguida, Horemsebparou,fixandoosassistentescomarroganteeImpassívelolhar.

—AcóleradeAmon-Raenfimtealcançouetrouxeaqui,cobertodecorrentesedeopróbrio—disseafinalRanseneb,apósummomentodesilêncio—eousasaindaaltearacabeça,emvezdeteaproximaresdosjuizes,ajoelhado,arrependidoecomhumildade!

Um lampejo de ameaça jorrou dos olhos do príncipe;mas, não semoveu: aversão, raiva erebeldia quase o sufocavam.Murmúrio de descontentamento correu entre os padres, e um velhopastóforoexclamou,indignado:

— Malfeitor infame, prosterna-te, rosto no chão, ante os representantes dos deuses, oureceberásotratamentoquetornaflexíveisosmaisrecalcitrantes.

Vendo Horemseb sorrir, motejador, e os sacerdotes franzirem as sobrancelhas, o velhopastóforo, rubro de cólera, ergueu um relho de correias, que empunhava, e um golpe sibilanteabateu-sesobreascostasnuasdoprisioneiro,abrindoumextensovergãosangrento.

Gritodeanimalselvagemouviu-sedos lábiosdeHoremseb:espumandodeódio,voltou-see,apesardascorrentesqueoprendiam,pulou,comagilidadetigrina,sobreopastóforo,derrubou-oelheferrouosdentesnagarganta.Issofoifeitocomtalrapidez,queoscircunstantes,petrificados,sócompreenderamarealidadequandoosdoishomensrolarampelochão.Antefedoisjovenspadresatiraram-se ao furioso, mas em vão tentaram separá-lo do velho, cujo corpo se contorciaconvulsivamente:Horemsebpareciachumbadoaele,coladaabocaàgarganta,sangrando,queseusdedosapertavamtalqualtenazes.Derepente,seusbraçosafrouxarameelependeupesadamenteparaolado,olhosfixoseimóveis,espumasanguinolentanoslábios:asuperexcitaçãocausadapeloultraje,aliadaàviolênciadoseucaráter,pareciahavê-lomorto.

—Bemsevêqueosespíritos impurosmoramnestemalfeitor—disseAmenófis,recobrandodo estupor. É preciso verificar se está morto; caso contrário, transportá-lo à prisão e dar-lheassistência.

—Vouexpedirasordensnecessárias,efareidobrarassentinelas,afimdequeonigromantenão fuja, antes de haver confessado seus segredos — falou Ranseneb, que examinara ambos oscorpos. O miserável está simplesmente desmaiado, mas do pobre Penbesa a alma reentrou emOsíris.Vede:aartériafoicortada,comoqueportesoura,pelosdentesdessechacal.

Alguns servidores do templo, sob a supervigilância de Antef e de um moço sacerdote,transportaramHoremsebàprisãosubterrâneaespecialparaosgrandesculpadose iluminadaporumalâmpadapostaemnicho.Quandoopríncipefoiestendidosobreumabarra,servindodeleito,omédicoordenouque lhe tirassemascorrentese trouxessem luz.Emseguida,bandouo ferimentoqueabrangiadoombroaosrins.

—Seuestadoédeperigo?—indagou,curiosamente,Antef.

—Creio que sim, e despertará numa febre dasmaismalignas— respondeu, gravemente, opadre.Seria lamentávelquemorresse,antesdehaverreveladoosegredodoterrívelvenenoedorespectivoantídoto.

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—Ele jádesmaiouemMênfis,porefeitodos insultosemaldiçõescomque foialvejadopelopovo,durantetodootrajetodopalácioaoNilo.Foiespantoso;penseiqueofizessemempedaços.

—Sim,nãoé fácilsuportar talquedadosdegrausdo tronoaumatalabjeção—suspirouomédico,lavandoorostodoprisioneiro.

Nesseinstante,Horemsebreabriuosolhos,masoperturbadoolharpareceunãoreconhecerninguém,eseucorpocobriu-sedegélidosuor.Vendoopadreocupadoempromoverobem-estardopríncipe e preparar-lhe um leitomais cômodo, Antef retirou-se, apressado em repousar. A sorte,porém,decidiudemaneiradiferente.

Numaesquinaderua,encontrouChnumhotep,queregressavadopaláciorealeseachegouaele, tão logoopercebeu, desejosode conhecer todos osdetalhesdaprisão.O chefedasguardasconvidou o oficial para subir ao seu carro e acompanhá-lo a casa, para conversação e paraalmoçaremjuntos.Antefalegoufadiga,paradesculpar-se,masChnumhotepnãoaceitouescusas,ecarregoucomele.

Chegando com o hóspede na sala que abria para o jardim, onde o esperavam Roant e umrepastopreparado,ochefedasguardasencontroutambémocunhado;mas,osemblanteanimadodo jovem sacerdote e algumas veementes palavras ouvidas da esposa, provavam que houveraaltercação.

—Creio,porAnúbis,quecaímosnomeiodeumaquerela—disse,arir.

—Perdeste,pornãochegaresmaiscedo;teriasouvidooshinosdeadmiraçãocantadosportuaesposaemhonradoirresistívelímpioquechegouhoje—respondeuRoma,irritado.

—Disse, e repito: é lastimável que um homem do porte de Horemseb possa ter cometidotantos crimes; sua sorte corta o coração; compreendo que a mulher que haja fruído do seuembriagadorafetoame-oatéamorteenãooesqueçanunca.

—Essemiserável,dequemtodooEgitoreclamaacabeça!—resmungouRoma.

—Acalmai-vos,ambos,eescutaiantesasestranhasnotíciasqueAntefnostraz.ÉindubitávelserHoremsebumextraordináriomago,parapoderconquistarumcérebro tãosólidoquantoodeHartatef,quesefezmatarparasalvá-lo.

— Ah! ele morreu! — murmurou Roma, enquanto Roant assediava de perguntas o jovemoficial.

Estenarrouentãoospormenoresdacapturadopríncipeeafrustradatentativadeevasão,quecustaraavidaaHartatefeaSmenkara.Emseguida,contouascenasterríveisquesedesonrolaramnopercursodoprisioneiroatéaoNilo.

—Ehoje—concluiuAntef—obeloHoremsebrecebeuaprimeiravergastadanasalainferiordotemplo,porhaverrecusadoprosternar-se.

Roant,queescutarapalidíssima,emitiuumgritoeescondeuorostocomasmãos.

—Nãoqueresbeberumpoucodevinho?Temoquedesfaleças—disse,ironicamente,Roma.Pensamentoesmagador;dorsoprincipescoetãoformosoreceberumgolpedevergalho!Ameuver,umachicotadaébempouco.Esperemosqueorestovenha!

— Não te reconheço mais, Roma — exclamou a irmã, faces afogueadas. Tal crueldade éindignadeumservidordosdeuses;oteuciúmefaz-tecegoeenraivecido.

— O restante não teria faltado, nobre Roma — disse Antef, a rir — se Horemseb tivessedeixadoaoexecutortempodeagir,mas,atirou-seaele,elheseccionoucompletamenteagargantacomosdentes.Emseguida,deraiva,todooseucorposeinteiriçouedescaiunochão.QuantoaopobrePenbesa,jáestavamortoquandooergueram.

—FoiPenbesaqueelematou?Eisoqueédoloroso!—murmurouRoma,aturdido.

—Éumverdadeiroanimalferoz.Teriaeleexplodidoderaiva?perguntouChnumhotep.

—Aprincípio,acreditamosisso,maseraapenasumdesmaio.Levaram-noàprisãoeumpadreministrou-lhe cuidados, porque se pretendia arrancar o segredo da planta misteriosa, da qualSargonfalou,venenomalditoquequasemecustouacabeça,quandodafugadeTutmés.Oh!oquedariaeuparasaberaverdadedessahistória!ÉclaroqueNeftiscasou-me,paradesembaraçar-sede

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mim;mas,desempenhouelaumpapelnafugidadeTutmés,eajudou-oaobterasgraçasdarainha?Essesolícito favor, logoqueTutméschegoudeBouto, terminouporumexíliodourado,depoisdamortedeSargon,cujamisteriosaquerelacomoherdeirodotronojamaisfoiesclarecida.

—Sim,nósnãochegaremosnuncaaoencontrodaverdadenessedédalo—suspirouochefedasguardas.QuantoaHoremseb,pagaráduramenteseuscrimes.

—Quesorteoaguarda?—indagouRoant.

—Amorte,emorteafrontosa:seráenforcadoeseucorpodadoaoscorvos,oumuradovivo.

— É doloroso! De quemodo suportaráNeith o saber que assim foi condenado? Por agora,escondem-lhe a prisão, e não sabe da sua chegada; mas, com o tempo, não lhe poderão serocultadastaiscoisas.

— O mais razoável seria enviá-la em peregrinação a algum templo distante — observouChnumhotep. Dessemodo, estaria longe durante o julgamento e suplício, todas essas pungentesemoçõesser-lhe-iampoupadas,e,umavezmortoHoremseb,elaoprantearia,e,emconsequência,esquecê-lo-iapoucoapouco.

Todos concordaram com esse parecer, mas, porque Neith se encontrava no palácio real, eninguém ousasse aconselhar Hatasu nesse sentido, por isso que a rainha decidia de tudo comreferência à sua protegida, força era sobrestar no assunto. Pouco depois, cada um tomou rumo:Antef para regressar a casa, Chnumhotep para fazer a sesta e Roma para ir ao lar da filha dePenbesaedarconsoloàfamíliatãoinopinadamenteatingidapelamortedovelhopastóforo,queridoeconsideradodetodos.

Trabalhadapelainquietudeeexpectativa,consumidapelosutilvenenoquelheardianasveias,Neith confinava-se o mais possível na solitude do apartamento, e somente quando os serviços achamavam junto da rainha, sacudia o torpor, e espreitava avidamente nos olhos da soberana ummomento favorável para lhe arrancar a promessa de perdão. Depois do jantar, no dia em que ofeiticeiro fora reconduzido aos muros de Tebas, circunstância da qual apenas ela ignorava asemocionantes peripécias,Neith estava deitada, quando lhe anunciaramqueMena desejava vê-la.Mandouqueointroduzissem,e,tãologoficaramasós,ooficialdisse,misterioso:

—Quiserainformar-tedegravesnotíciasdele,tumecompreendes,masjurasnãodivulgardequemasobtiveste?Porqueéproibidofalarnestesassuntosemtuapresença,earriscoacabeçapeladesobediência.

Neithlevantara-se,muitopálida.

—JuropelosquarentaedoisjuizesdeAmenti:morrereiantesdeteatraiçoar;mas,suplico-te,dizeoquesabesdele.

Sem se fazer rogar pormais tempo,Mena narrou tudo quanto conhecia sobre a prisão dopríncipe,amortedeHartatef,acenaocorridapelamanhãnotemplo,e,porfim,aenfermidadedeHoremseb.

Ajovemmulherescutaraanelante;noepisódiocomPenbesa,teveumgritodehorror:

—Maltratá-locomosefosseumescravo,éespantoso!DesventuradoHoremseb!—exclamou,retorcendoasmãos.Éevidentequeosdeusesoabandonaram;Hartatefmorreu;minhasoraçõeseassimmeussacrifícios foramvãos,e,nasuaenfermidade, jazsozinho,privadodonecessário.Oh!Mena,ajuda-me,aconselha-me:quepossofazerparaaliviá-lo,aomenos?

Menacoçouaorelha.

— Não é fácil imaginar; no entanto, eis o que me parece mais eficaz: implora à rainhapermissão para enviar-lhe socorros em vestimentas, trastes e nutrição substanciosa. Sei queamanhã, cedo,Amenófis eRanseneb têmaudiência a propósito do processo. Espreita-os, finge-teinteiradadetudoepede,aelestambém,autorizaçãodeconfortaroenfermo.Paradispô-losafavor,envia,aoamanhecer,dádivasaotemplo.Eumeencarregodeasofereceremteunome,seassimodesejas.

—Sim,meubomMena,fazisso—concordouNeith,apertando,comreconhecimento,asmãosdoirmão.Voudarordensparaomeuintendente.

—Tupoderiastambémajudar-meumpouco,poisestouemgrandeembaraço.

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—Tensnecessidadededinheiro?Porquenãoodissesteantes?Quantoprecisas?

Mena jamais foramodesto,eapontouumacifraredonda,queNeithconcedeu,semdiscutir.Depois,escreveuumalistadosobjetosdepreçoqueofereceriaaotemplodeAmoneaodeÁpis,emMênfis.Nomomentoemqueooficialsedespedia,lembrou:

— Leva também uma pele de tigre que Tutmés me presenteou; as garras são de ouro, eRansenebnãodeixarádeadmirá-la.

A jovemmulher passou uma noite de insônia. A superexcitada imaginação desenhava-lhe aprisão de Horemseb, todos os sofrimentos do enfermo, e sua alma estava transbordante dedesesperoecompaixão.Decidira-seatentar,umaderradeiravez,enternecerarainha,porlheestarfacilitadooaproximar-se,nodiaseguinte,semdespertaratenção,poisestavadeserviço juntodasoberana.Ashoras,atéessemomento,pareceram-lheumaeternidade.

Hatasu eramadrugadora. Assim, quandoNeith penetrouno apartamento real, a velhaAmaapontou-lheasotéiaondearainhajátomavaoseupequenoalmoço.Paraessarefeição,nãoadmitianunca a embaraçosa comitiva que rodeava, pela etiqueta, os reis do Egito, desde o levantar aodeitar.Amulherespiritualeoriginal,quetãovirilmentesustinhaopesodocetroedaduplacoroa,deraprova,naquestãodaetiqueta,da independênciadeespíritoquecaracterizava todasassuasações; sacudindo o esmagador cerimonial que regia cada gesto do Faraó, reservara para ela,exclusivamente,ashorasquemediavamentreolevantar-seeadaprimeiraaudiência,eapenasumadasdamasdehonra,deserviço,tinhapermissãodeaproximar-se,duranteesseperíodo.

QuandoNeithpenetrounasotéia,arainhaestavacomoscotovelosapoiadosàmesa,naqualse via a refeição, visivelmente intacta, nos pãezinhos vermelhos postos na cestinha de pratacinzeladaenocopohiteno,lavrado,dequeseserviasempre,cheiodeleiteatéasbordas.ObeloeseverosemblantedoFaraóestavapálido,eeraevidentequetristes,penosospensamentosoprimiamarainha,quenãoseapercebeudachegadadeNeith,esomentequandoestaseajoelhouebeijouafímbria,estremeceuesevoltou:

— És tu, Neith! Tens mau semblante, pobre filha! — disse Hatasu, passando, num gestoacariciador, a mão pela abaixada cabeça da jovem. Vamos! Não recomeces a chorar; tua dordesgarrameucoração,porquedelacompartilho, sempoder remediá-la.Compreende,pois,minhaquerida,quesourainhadoEgito,oFaraóguardiãonatodasleis,equeesseloucofurioso,ébriodeassassínios, não me deixou, ele próprio, meio algum de poder salvá-lo. Submete-te, por isso, aoinevitável; o tempo, que sara todas as chagas, fará que esqueças esse homem Indigno; a vidareconquistaráseusdireitos.Sei,porexperiênciapessoal,porqueperdimaisdoque tu:Naromathera umherói, tão nobre quanto formoso, valente guerreiro, que tomboudefendendo sua pátria ecujasfaçanhasdespertavamaadmiraçãodospróprios inimigos.Osdeusessãoporvezescruéis,enão concedem nunca aos mortais ventura completa: deram-me o poderio, mas recusaram-mequalqueroutraalegria.Tu,pobrefilha,eutedevonegaranteomundo,equandoquis,aomenos,dar-tefelicidade,fuiimpotenteanteoDestino...

—Nãome julgues ingrata,minhamãeebenfeitora—murmurouNeith,premindoos lábiosescaldantesnamãodarainha.Emtodasashorasdaminhavida,eutebendigo,e,porti,quiseravencer o sentimento infernal queme devora,mas não posso.Nãome condenes por isso, porquetenho lutado contra esse poder que me aniquila. É feitiço ou amor— quem o sabe? Não possodescreveroquesepassaemmim,porém, longedeHoremseb,definho,quala florsemágua,eopensamentodeperdê-lopriva-medarazão.

AentradadavelhaAmainterrompeuajovem,aoanunciarqueoGrandeSacerdoteAmenófiseRanseneb,oprofetadotemplodeAmon,solicitavamagraçadeviràpresençadoFaraó.

—Estábem—disseHatasu.Quesejamintroduzidosnasalacontíguaaogabinetedetrabalho.Aliestareidentrodeinstantes.

Aoanúnciodachegadadosdoispadres,vivíssimoruborcobriuorostodeNeith,e,quandooreposteirorecaiu,àsaídadaescrava,correuparaarainha,quebebiarapidamentealgunsgolesdeleite,e,erguendoasmãospostas,murmurou:

—SeiqueHoremseb,doenteeprisioneiro,estáemTebas.Concede-me,nãooseuperdão,masofavordealiviá-lo,elicençadepediraossacerdotesquelhefaçamentregadoqueeulheenviar.

Hatasu ouvira surpreendida e com os supercílios franzidos: sombrio clarão jorrou de seusolhosnegros.

— Quem ousou desobedecer minhas ordens, e te informou da prisão do malfeitor? —

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perguntou.

—Ah!pode-seocultaroquetodaaTebassabe?Epensasquemeucoraçãonãosoprouqueeleestavapróximo?Tempiedade,concede-meamíseraalegriadealigeirarseussofrimentos.

Umaruderecusachegaraaoslábiosdarainha;mas,aoverafisionomiadesfeitadeNeith,seufebricitanteolhar,asuperexcitaçãofebril,comoveu-se.

—Seja!Vaierogaaospadrestalconsentimento;sepermitirem,autorizo-teaenviardiversascoisasparaalíviodoprisioneiro.

Comumgritodecontentamento,Neithcurvou-se,beijouavestedarainha,ecorreuparafora.Atravessou,correndo,osapartamentosreais,epenetrounacâmaradesignada,nomomentoemqueospadresalientravam,poroutraporta.Eraumagrandesala,algosombria,deparedesincrustadasdeouroedecornalina,apoiadaemcolunasdepinturamuitoviva.Ao fundo, juntodeumaporta,encobertaporpesadoreposteirodepúrpurabordadaaouro,vigilavamdoisoficiaisarmados,eumterceiro funcionário, ornado com um colar de distinção, estava de pé, próximo de uma coluna.Retirado o camarista que introduzira os sacerdotes,Neith aproximou-se, e, ajoelhando, elevou asmãos súplice. As dádivas feitas pela manhã ao templo, por Mena, em nome da irmã, haviamprevenidoospadres,e,assim,nãoduvidaramdequeamudapetiçãodajovemmulhersubentendiaalgumfavorquedesejavaobterparaHoremseb.

Ambosaabençoaram,e,depois,Ransenebperguntou,combondade:

—Desejasalgumacoisadenós,pobrefilha?Vejo,peloteuolhar,quetensaalmaaindabemenferma!

—Santoseveneráveisservidoresdosdeuses—murmurou,comavozlacrimosa—,sevossoscoraçõessentemalgumapiedadepelomeusofrimento,concedei-meagraçadeconfortarHoremseb,meuesposo.Estáferido,doente,privadodetodaacomodidadeaquesehabituara.Permitienviar-lheroupas,umleitoeconfortantenutrição.

Osdoissacerdotesconsultaram-secomoolhar.

—Seja,minhafilha;acedemosaoteupedido—respondeuAmenófis.Remeteaoprisioneirooquedesejaresparasocorrê-lo;vinho,frutas,cobertaseroupa.

—Epossoesperarquetaiscoisasserãofielmenteentregues?—indagou,timidamente.

—Nãotenhasreceio—respondeuRanseneb.Enviaumdosteusservos,eendereçaosobjetosaopadreSepa,quecuidadoprisioneiro.Dareiordensparaquetudolhesejaentregue.

—Poisquea tuabondadeé tãograndeparacomigo, concede-me reverHoremseb,duranterápidosinstantes.

Oprofetameneouacabeça.

—Isso,minhafilha,nãodependedemim,masdarainha.Seelaautorizarquevejasoculpado,euteconduzireijuntodele,comacondiçãodelhefalaresnaminhapresença.

Nessemomento,sommetálico,vibranteeprolongado,retiniudogabinete.

—Arainhanoschama—disseprecipitadamenteRanseneb—,masaguardaaqui.TransmitireiteupedidoaSuaMajestade,edar-te-eiaresposta.

Quinzeminutos talvez eram decorridos (uma eternidade de angústias para Neith), quando,inopinadamente, o reposteiro foi erguido, e Ranseneb chamou-a por um gesto. O primeiro olharsobrearainhafez-lhecompreenderqueasoberanaestavairritada.

—Contenta-tecomoquetefoiconcedido,porquejáégraçaimerecidaamenizaremimaressecriminoso e sacrílego inaudito. Não autorizo um encontro, porque não teria objetivo, e somenterevigorariaopoderdovenenoquetedefinha.

VendoNeithcambalear,mortalmentepálida,Hatasuacrescentou,maisbondosa:

—Emtodocaso,nãoéquandotevejoassimagitadaquetepermitireivê-lo.Torna-tecalmaerazoável,etalvezentãopodereiautorizaroquehojeproíbo.Eagora,filha,retira-te!

Compaternalbenevolência,Ransenebavizinhou-sedeNeith,e,abençoando-a,disse:

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—Nãodesesperes;abondadedenossoFaraóéinesgotávelquantoadoseudivinopai,Amon-Ra. Se, pois, Sua Majestade abrandar-se, vem buscar-me e conduzir-te-ei junto ao prisioneiro.Apenas,lembra-tedequedevesapresentar-meosinetereal.

Depoisqueajovemmulherdeixouogabinete,arainha,voltando-separaospadres,indagou:

—Nãosepoderiaapressarainstruçãodoprocessoeaexecuçãodocriminoso,parapôrfimàexpectativaeincertezadestainfortunadavítima?Aconsumaçãodofatoquiçáquebreofeitiço.

—Teudesejo,Faraó,éleiparanós,mas,digna-tedeobservarqueoculpadoestádoente,eéindispensável obter dele o depoimento concernente à planta venenosa e seu antídoto. Por outraparte,cadadianoschegamnovosdepoimentos,eaprincipaltestemunha,a jovemÍsis,ainda temnecessidadedealgum tempopara recuperar forças.Emúltimo lugar,ocúmplicedeHoremseb,omiserávelhiteno,nãofoiapanhado,etodaviaseriaútilacareá-los.

—Não estão na pista do infame causador de todas estas desgraças?— exclamou a rainha,subitamentecolérica.Quero,entendeis,Querosejaencontrado.Fazeiduplicarasomadaprometidarecompensaaquementregaroímpio,queousouesconder-senocoraçãodoReino,paraempestaredestruir umpríncipedoEgito!Eu lhe ensinarei, e assima todoestrangeiro insolente, o custodesemelhanteaudácia; fareiqueimá-lo vivo sobreodeus impuroquantoele, inventareiparaeleumsuplícioquefarátremerdeespaventoosdemôniosdoAmenti!

—Decerto os deuses satisfarão tua justa cólera, divina filha deRa, e lavarás o coração nosanguedocriminoso,que,comotempo,nãopoderáfugir,poispareceaveriguadoquenãotranspôsasfronteirasdoEgito;apenas,vistoseresteteudesejo,nãoaguardaremosaprisãodohitenoparacondenarHoremseb—disseRanseneb,respeitoso.

—Perfeitamente.Horemsebmereceuamorteea sofrerá,porqueopovo temdireitoaestasatisfação.Nãodesejo,porém,queaexecuçãosejapública.Quesuplíciolhereservais?

—Serámuradovivo,noâmbitomesmodotemplo—respondeuduramenteAmenófis.Equaissão,órainha,tuasdisposiçõesquantoaoshaveresdoculpado?

— Faço doação aos Imortais. Em teu regresso aMênfis, tomarás posse de tudo, Amenófis.Relativamente ao palácio maldito, desejo seja arrasado e que no respectivo terreno se erga umtemploaPtah,afimdeque,comapresençadodeuseseusservidores,sepurifiqueaquele lugarmanchadodesangue.

—Tua generosidade, Faraó, iguala a do teu divino pai, de igualmodo que a tua sabedoriaconfundeoshumanos—disseAmenófis,cheiodesatisfação.

Ranseneb,queescutaraatentamente,perguntou,imediato:

—AmortedeHartatefdeixatambémsemdono,nemherdeiropróximo,considerávelcabedal.Quedestinoterá?

ImperceptívelsorrisopairounoslábiosdeHatasu.

—CreiojustodoaressepatrimônioaÍsis,acorajosafilhaquearriscouavidaparadesvendarcrimes inauditos.Umavezqueosdeusesmiraculosamente lhepreservaramosdias, temdireitoaumarecompensa.Nãovosretenhomais,veneráveispadres,e,namarchadoprocesso,entrego-meàvossasabedoria.

Arainhasaudou-oscomamão,eelessaíram.

Apósdeixarogabinete real,Neith fizeraconduzir-seaoseupalácio,eprepararaa remessadestinadaaHoremseb:maciascoberturas,roupa,perfumes,ebemassimvinho,leiteealgumasavesassadas,emumadasquaisenviouumbilheteassimredigido:

“Cadadiareceberásdemimtudoquenecessitares,paraoqueobtivepermissão.—Neith."

Mas,quandooportadorseguiu,desatouachorar.Queseriadela,nodiaemquetaisremessasdevessem cessar, porque ele não mais delas necessitaria, porque o teriam matado? A essepensamento,oolharselheobscureceu,edesejoumorrercomele.

Otempoqueseseguiufoicustoso;oextraordinárioprocesso, instruídonotemplodeAmon-Ra,caíasobretodosqualpesadelo;asramificaçõesdodramatornavam-secadavezmaisextensas;descobriam-se novas vítimas, das quais muitas não haviam tratado diretamente com Horemseb,mas,poracaso,tinhamtidocontactocomasenvenenadasrosas,comoaconteceraaosembalsama-

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doreseà jovemcurada tambémpor intervençãodeRoma.Eaindahaviaosquecalaram,doquedavamexemploAntef, Satati, sendo que esta só agora compreendia a inconcebível fraqueza comMena,namemorávelnoitadaemquequasetevedecepadoonariz.OsmaisimplacáveisacusadoreseramasfamíliasdasmoçasquesehaviammiseramentesuicidadodepoisdapartidadeHoremsebdeTebas.

Ísis recuperava rapidamente a saúde. A doação real, que a tornara dona do palácio deHartatef, contribuíra consideravelmente para ajudar a cura. Também estava livre da antipáticaenfermeira,porqueafinaljustapuniçãohaviaalcançadoaabominávelmulher.

AosaberdamortedeHartatefeSmenkara,Hanoferforacomoquefulminada,e,emseguida,um acesso de raiva e desespero tomara-a: rugindo, arrancando os cabelos aos punhados,arranhando o rosto, rebolcara-se no chão, invectivando e maldizendo-se, porque à sua denúnciaatribuíaamortedomaridoedoamante.Depoisdedoisdiasdecriseedemência,Hanoferacalmara,entrandoemfebril,massecretaatividadeemtodososlugaresondeofalecidoHartatefguardavaosobjetospreciosos.Osfrutosdessemisteriosolabor,acumuladosnocômodoqueocupava,deviamser,duranteanoite,transportadosparaaresidênciadela,quandoafatalidadeaatingiu.Emprimeiro,àchegada do comissário real para comunicar que Ísis era herdeira de Hartatef, quase teve umderramebilioso;araiva,porém,mudou-seemespavento,quando,horasmaistarde,aaprisionaram,nãosóporseramulherdeSmenkara,mortoematodetraição,mastambémporsercúmpliceemdiversosnegóciostenebrosos,descobertosrecentemente,eaindapordoisassassíniospraticadosnasuabaiúca.

Alguns meses decorridos, a megera, convicta de seus crimes, rumava para os trabalhosforçadosnasminas,ealimorreu.

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II

OJULGAMENTOMaisdeummêsseescoaradesdeaprisãodonigromante,semqueaagitaçãofebricitanteque

mantinhaosespíritosemalertahouvessedemodoalgumacalmado.Umacontecimentoverificadoaesse tempohavia igualmenteemocionadoapopulação: fora trazidodeMênfiso ídolodeMoloc,etoda a Tebas acorrera ao vale pedregoso e árido, confinante do deserto, onde o colosso estavaprovisoriamente colocado, com que intento, ninguém o sabia. Mas, com a avidez emocional quecaracteriza as multidões, cada qual queria contemplar o deus sanguinário, sobre cujos rubrosjoelhostantasinocentesvítimashaviamsidodestruídas,nocorpoenaalma.

Sabia-se que Horemseb estava restabelecido e que o julgamento devia, consequentemente,realizar-se de um dia ao outro. Neith sofria acima de qualquer expressão, e teria — decerto —procuradonosuicídioumtérminoàdor,senãohouvessesidotomadapelaingênuaidéiadequeasuavidarepresentavaumagarantiaparaHoremseb,umaespéciedeescudocontraqualquercoisadeodioso.

Nodiadesignadoparaojulgamento,lúgubreatividadedominavanotemplodeAmon-Ra:emvastaesombriasala,iluminadaporlâmpadassuspensasaoteto,foramcolocadas,emsemicírculo,cadeirasreservadasaosjuizes.Dadasagravidadedacausaeaqualidadedoculpado,tinhamsidoconvocados os pontífices e Grandes Sacerdotes dos principais templos do Egito, na sua maioriaidosos,eseusrostosseveroserugosos,asvestimentasbrancas,ampliavamaindamaisasolenidadedo cenário. Bem ao fundo, em gabinete dissimulado por um reposteiro, estava uma poltronadestinadaaHatasu,quedesejavaassistiraojulgamento.

Logoquea soberanaocupouseu lugar,omais idosodos juizesordenou fosse introduzidooréu. Houve um momento de solene silêncio. A luz vacilante das lâmpadas projetava-sefantasticamentesobreaspinturasqueornavamasparedeserepresentavamojulgamentodeOsírise os horrores do Amenti, espelhava-se nos crânios luzidios dos juizes, concentrando-se sobre osescribas, que, sentados sobre os calcanhares, nas esteiras, estavam atentos para escrever asrespostasdoculpado.

Entre os sacerdotes mais jovens, sentados nas últimas filas, encontrava-se Roma, que, àentrada do criminoso, de mãos acorrentadas, fixou o olhar cheio de rancor sobre o homem queNeithamavaapesardetudo,ocarrascoqueadestruírae,nãoobstante,afascinava.

A palidez de Horemseb era lívida; magro e envelhecido; em seus olhos, porém, lia-se umalúgubrepertinácia,quando,silenciosamente,parouanteosjulgadores.

A um sinal de Amenófis, levantou-se um escriba, e, em alta voz, leu o libelo acusatório,enumerando os crimes cometidos e a influência nefasta das rosas envenenadas, tão frivolamenteatiradasàsmãosdasvítimas.

— Queres confessar todos os delitos de que te acusam, e revelar o segredo da plantamisteriosa, e bem assim a maneira pela qual veio ela ao teu poder? — perguntou o GrandeSacerdote.

Horemsebbaixouacabeçaepermaneceuobstinadamentesilencioso.

Foramentãointroduzidasastestemunhas:parentesdasjovensdesaparecidas;Keniamun,querelatou as revelações de Neftis, o “complot” em que agiram em comum, e o encontro do corpohorrivelmentemutilado;Roma,quefaloudassuasdescobertas;orapazelhomudo,miraculosamentesalvo damorte. Por fim, veio depor umadama velada;mas, ao desnudar a fisionomia,Horemsebrecuou,comumasurdaexclamaçãodeterror:reconheceraÍsis,que,elepróprio,haviaapunhaladoeatiradoaoNilo.Osmortosregressavamdotúmuloparaacusá-lo?...

Pálida, porém resoluta, a moça, depois de se inclinar ante os juizes, descreveu, em vozvibrante,avidaterrívelnopaláciodeMênfis,amutilaçãodosservos,oluxodesenfreado,asorgiasnoturnas, a tortura lenta das vítimas, que eram envenenadas aos poucos, antes de assassinadas.Todosesseshorrores,todosessescrimescomoquereviveramanteoauditórionapalavracoloridaeatraentedanarradora.

Quandoelaterminou,Ransenebvoltou-separaoacusado.

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—Vês—disseele—queteuscrimesestãoamplamenteprovados,mesmosematuaconfissão.Só nos resta saber o que concerne à planta venenosa e as circunstâncias extraordinárias que tepuseram em relações com o feiticeiro hiteno, e fizeram de um príncipe do Egito um bebedor desangue,umassassino,uminimigodosdeusesdeseupovo.Fala,pois,edize,semrestrições,oquesabes,senãodesejasquetearranquemosaconfissãopelatortura.

Um estremecimento agitou o corpo de Horemseb, e seus olhos lançaram flamas; mas,dominando-se,comesforço,respondeu,comavozenrouquecida:

—Direioquesei;meusilêncio,de resto,não teriamaisobjetivo.Foimeupaiquem trouxeTadar,osábiohiteno,aoEgito,edomodoseguinteoconheceu:duranteaguerravitoriosadoFaraóTutmés I, no país vizinho do Eufrates, sangrenta batalha foi travada, não longe da cidade deGergamich.Existiaaliumtemplonoqualserefugiaraumapartedosguerreiros,queodefenderamtenazmente, fazendo-se preciso verdadeiro sítio para ser tomado. Quando, enfim, nossas tropasinvadiram-no, a luta prosseguiu no interior do templo, e só terminou pelo massacre de todos osinimigos.Duranteo terrívelentrevero,meupai foraseparadodoamigoecompanheirodearmas,Rameri,e,nãoovendoregressar,ficouinquieto,e,adespeitodoextremocansaço,deixouoleitoefoiaolocaldocombateembuscadoamigo,paralhedarsocorro,casoestivesseferido.Recordando-sedequeoperderadevistanosterrenosdotemplo,paraláseencaminhou,e,enquantoerravaporentre os escombros e cadáveres, de sombrio recanto surgiu um homem, de meia idade, que sedirigiuparaele, suplicando lhepoupassea vidaeprometendo, em recíproca, tesouros imensosesecretopoderdedominarforçasdaNatureza.Meupaideixou-setentar,poisavozeoolhardaquelehomem, que era o Grande Sacerdote do templo devastado, fascinava-o estranhamente, e jurou,solene,garantiravidadohiteno,seestemantivesseaspromessas.

“Então,opadre,porsecretocaminho,conduziu-oaumacriptaondeseachavamamontoados,nãosomenteostesourosdotemplo,masaindaasriquezasdoreiedosmaisnotáveispatriotas.Meupai ficou deslumbrado: era um espólio mais do que régio. Ocultou, pois, Tadar, e, em seguida,trouxe-oparaTebas, tãosecretamentequantoostesouros,dosquaisninguémteveconhecimento.Duranteaviagem,porém,osábiohitenohaviaadquiridosobreelepoderabsoluto.

“Eu contava três lustros de idade quando meu genitor retornou a Mênfis e encetou, sob adireção de Tadar, a reconstrução do palácio. Cultivou-se a planta da qual o sábio trouxera asemente, e instituiu-se, em secreto, ali, o culto deMoloc. Apesar disso,meu pai não se confinoujamais,conformeeufiz,eprosseguiufrequentandoasociedade.Duranteotriênioderradeirodesuaexistência, esteve constantementeenfermo,pois o corponãomais suportouosexcessosaque seentregava.

“Aosdezessete anosde idade, viemosaTebas, tomarnossopostonaCorte, emeupai aquimorreu, então, e, antes de expirar, confiou-me a realidade. Tudo quanto me disse dos mistériosdessecultoedaplantasagradafascinou-me.

“Apressei-me em regressar a Mênfis, e fui inteiramente subjugado por Tadar. Concluírapidamenteasconstruçõesencetadaspormeugenitor,e,aconselhodosábio,opaláciofechou-separa todos; meu serviço íntimo foi inteiramente separado e nele interditada a palavra, quandofaltavamsurdos-mudos.Poucoapouco,habituei-meaessavidaencantada,deondearealidade,coma sua nudez e misérias, estava banida; a claridade do dia tornou-se-me odiosa; somente naescuridão, debaixo das sombras dos meus jardins, eu me sentia feliz. Rodeado de perfumessufocantes,embaladopormaravilhosamúsicaecânticoscelestes,queTadaradoravaeensinava,elepróprio, esqueci tudo.Eudevia sacrificaraMoloc,o sábioassimoqueria, ea suavontadeeraaminhalei.Foiassimqueseinstituíramasorgiasefestinsnoturnos,quehaviamdestruídoasaúdeeavidademeupai,quenãosoubefruí-lasmoderadamente.Amimeledeuumabebidaquegelavameusangue,emeimpôsumaexistênciarígidadejejumeabstinênciaquemedavaaforçadegozarpelavistasementregarmeucorpoàdestruição.

“Aprimeira vezquebebi sangue, fui embriagadopelo sabor estranhodessabebidaquemedeviadaravidaeterna,e,sepretendeisagoramatar-me(egargalhouroucamente),nãoopodereis,porqueamortenão tem força sobremim:na vidadomeu ser se concentram todas as vidasquearrebateidoscoraçõespalpitantesdasmulheressacrificadas.Eumedeslumbreinacontemplaçãodessaslindasmulheresque,desfalecidasdeamor,morriamemmeusbraços:amarmeeravedado,porqueaalmadeviadominaraspaixõesdocorpo,mas,apesardisso,morriamditosas.Umadelastraiu-me:eutinhaodireitodepuni-la,eNeftisrecebeumortemerecida.Nadamaistenhoadizer.”

—E que fizeste da planta venenosa?— inquiriuRanseneb, o qual, e assim todos os juizes,escutarasilenciosamenteaconfissãodoculpado.

—Queimamos—respondeuHoremseb,sempestanejar.

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—Porquê?

—Omestreassimoquis.Prevenidodavossainquirição,desejeiesconderostraçosdocultodeMoloc,porémotempofaltouparatanto,eTadarnãoquisqueasagradaplantacaíssenasmãosdosseusinimigos,eadestruiu.

— E dos teus tesouros, que fizeste? Não foi encontrada a mor parte dos preciosos objetosdescritosporSargon.

— A dispendiosa vida que mantive absorveu grande parcela das minhas riquezas, e já meencontravaemembaraços.Quantoaosobjetosdepreço,baixelas,jóias,atirei-osaoNilo.Aquitudoestavafindo,eesperávamosfugirdoEgito.

— Mentes! — Interrompeu, gravemente, Amenófis. Teu palácio foi doado aos deuses peloFaraó, e será arrasado, para que no seu terreno se eleve um templo. Durante os trabalhos dedemolição, já em início, encontrou --se uma adega cheia de objetos preciosos. Isto te digo, paraprovarquãobaixocaíste,tu,aquem,nestahora,nãorepugnaenlodar-seemmentiras!

À notícia de que seu palácio estava em demolição, Horemseb estuou e seus punhos secontraíram,mas,nãopôdedizercoisaalguma,porqueosguardasretiraram-nodasala.

Apósdemoradadeliberaçãodosjuizes,oculpadofoidenovotrazido,eAmenófis,levantando-se,pronunciou,solenemente:

— Teus espantosos crimes, Horemseb, mereceram um castigo proporcionado. Príncipe doEgito, renegaste os deuses do teu povo e assassinaste mulheres inocentes, das quais, por tuaorigem, devias ser protetor; pelos teus malefícios, semeaste a vergonha e a desgraça nas maisnobresfamílias;aosteusservidoresmutilasteedestruíste:todosessesdelitosmerecemamplamenteamorte,aquetecondenamos.Disseste,hápouco,queamortenãotempodersobreti:seja!Émaisumarazãopara seres sequestrado,demodoquenãopossasmaismaleficiar.Serás, pois,muradovivo,mesmonoperímetrodestetemplo;sobreexiste,pois,nessaestreitasepultura,atéquandoosdeuses o permitam; mas, quando morreres, morrerás de alma e de corpo, visto que oembalsamamento não conservará teus restos, e teu Ka (duplo) errante não encontrará asiloterrestre,eserádevoradopelosdemôniosdoAmenti.Teunomeseráesquecido,porqueseproibiráatodoservivo,sobseveraspenas,pronunciá-lo,eemtodosos lugaresseráriscadoeapagado;aposteridade não saberá dos teus crimes, que espavoriram o Egito; serás triplicemente morto,destruído em tua alma e olvidado. À aurora do dia de depois de amanhã, esta sentença seráexecutada.

Lívido, olhos dilatados, Horemseb escutara a terrível condenação. Não somente a carne serevoltava nele contra o horror da sorte que o esperava; ele era, apesar de tudo, suficientementeegípcioparadeixardetremeràidéiadenãosersepultado,nãoterembalsamamento,alémdonomevotado ao esquecimento. Com rugido rouco, pegou a cabeça com as mãos, e, qual massainconsciente,abateu-senochão.

EnquantoestaemocionantecenasepassavanotemplodeAmon-Ra,trêspersonagensestavamreunidas em uma sala, quase escura, da casa de Abracro. Dois homens, com vestimenta deoperários,estavamsentadossobreoscalcanhares,numaesteira,aalgunspassosdeumtripé,cheiode carvão, do qual a dona da casa alimentava a queima, nele atirando, de tempo a tempo, umpunhadodepóbranco,quefaziajorrarvivachama,iluminandocomasualuzbaçaostraçosdedoisnossos velhos conhecidos, Tadar e Spazar, o solitário do vale dos mortos. Ambos estavamemagrecidosepálidos.Orostodosábiopareciapetrificadopelafúria,misturadadeangústia.Cadavezquealabaredaseelevavacrepitante,Abracrocurvava-se,comoqueparaestudarasfasesdessefogo,queseconsumia,serpenteandoemlinhasbizarrassobreo fundonegrodoscarvões;depois,elamurmurou:

—Amorte!Sempreamesmaresposta:todososesforçosemvão.

Desencorajada, abandonouo tripé, sentando-se, cabeçabaixa, num tamborete.Houve longosilêncio.

—QuandoTiglatprometeuvir?—perguntouafinalTadar.

— Logo que tivesse detalhes seguros sobre o julgamento; penso que não tardará muito —respondeuAbracro,suspirando.

Decorreumaisdeumahoraainda,emtristonhaexpectativa,quando,enfim,umtinido,leveedistante, fez-se ouvir: era o sinal convencionado. A velha levantou-se célere, e, semdemora, deu

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entradaaumhomem,enroladoemescuromanto,queatirousobreumescabelo.EraTiglat.

—Eentão!...Quenovasnostrazes?—indagouTadar,erguendo-seeaproximando-sedamesaondeAbracropuseraumalâmpada.

—Tristes,emboraprevistas,mestre!CondenaramHoremsebasermuradovivo,eaexecuçãofar-se-á depois de amanhã, cedo. Ele nada acrescentou aos depoimentos feitos anteriormente.Quantoànossaesperançadesalvá-lo,émisterrenunciaraela,porquevãomurá-loemterrenodotemplo,eserialoucuratentaralgo.

Nervosoespasmocontraiuostraçosangulososdovelhosábio.

— Contudo, não posso abandoná-lo a tal morte atroz; devo atenuar-lhe a sorte, se não épossívelsalvá-lo—exclamouTadar,energicamente.Evoltando-separaavelha:

—Abracro,poderás,semlevantarsuspeitas,chegaratéNeith,eentregar-lheumacaixinha?

—Creioquesim,mestre.

— Tu lhe desvendarás então a verdade; ela ama Horemseb, e, quanto humanamente sejapossível,iráatéjuntodeleelhedaráoquelhevouremeter,istoé,asalvação.

— Refletiste, venerável mestre, no perigo de semelhante tentativa? — perguntou Tiglat,preocupadamente.Um acaso pode trair Abracro, e acarretar tua própria prisão. Pormilagre dosdeuses, fugiste, atéodiadehoje, àsperseguiçõesdos inimigos;mas,escutameuconselho: foge,semdemora,senãoqueresperder-te,perdendotambématodosnós.

—DentrodetrêsdiastereideixadoTebas,comSpazar;mas,nãopossoabandonarHoremseb.Abracro levará a Neith a caixeta que lhe vou confiar, e se chegar ao seu destino, o condenadobeberáumasubstânciaquelhedaráaaparênciademorte,porém,emrealidade,apenasumsonodoqualpodereidespertá-lo,numprazomínimodedozeluas.Sabesondeserámurado?

—Numpequenopátiodonorte,queestáfechadodesdequandoaliseenforcouumpadre.

—Nãopodiasermelhor.Dentrodoprazodeumano,poder-se-áacharmomentoazadoparalibertarocorpo.Estoupersuadidodequeospadresconservarãoaliodetido;eutedeixarei,Tiglat,todas as necessárias instruções para despertares Horemseb, depois do que o encaminharás aencontrar-meemKadesch,paraondecontoir.Agora,voutrazeroquedisse,etu,Abracro,prepara-te.

Saiu e voltou, sem tardança, com uma caixinha de cedro, em que se viam dois frascos decristal, com tampos de prata, e um copo, ao fundo do qual depositou pequeno rolo de papiro.Fechada, entregou-a a Abracro, fazendo-lhe as derradeiras recomendações. Em seguida, a velhaenvolveu-senummantoescuro,cobriuacabeçacomespessovéu,edeixouacasa,porumasaídaoculta.

Neith havia passado o dia em indescritível inquietude. Embora ignorasse as ocorrências dojulgamento, jamais sofrerá semelhante angústia, e, quando anoiteceu, estranho estado dela seassenhoreou: parecia-lhe ver Horemseb, falando-lhe, ainda que sem entender o sentido das suaspalavras; vagas imagens, representando ora uma sala onde padres se alojavam, ora ummuro naespessuradoqualeraabertoumnichonegro,e,porfim,umcalabouço,nofundodoqualumhomemacorrentadoestavaestendidonosolo,deslizavamimprecisasanteseuobscurecidoolhar.Esgotada,terminouporadormecer,numpesadoefebricitantesono.Quandodespertou,viuafielnutriz,que,dobradasobreela,lheespreitavaoprimeiroabrirdeolhos.

—Senhorazinha,estáláforaumadesconhecida,quetequerfalardeassuntograve,esperandoháumahora.

—Quemé?

—Não sei; está comespesso véu, e recusa revelar o nome, afirmando somentequepensasnoiteedianoqueelatevemdizer.

—Manda-aentrar,eretira-te,disseNeith,empalidecendo.

Uma voz íntima segredava-lhe que ia saber algo a respeito de Horemseb. Alguns instantesdepois,Abracrofoiintroduzida,e,quandoajovemreconheceuavisitante,asuposiçãotransformou-seemcerteza.

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—Vensfalar-mearespeitodele?—indagou,emvozbaixa.

—Sim,nobremulher,trago-tenotíciasdeteuesposo,equerofazerapeloàtuacoragemparapouparaesseinfortunadohomemtorturasatrozes.

E,ameiavoz,relatouojulgamentodavésperaeacondenaçãodopríncipeasermuradovivo,na alvorada do dia seguinte. Neith, que a escutava lívida e palpitante, deu um abafado grito, edesmaiou.Abracrotirouaobolsoumagarrafinhaazulefezainconscienterespirardoconteúdo,aomesmotempoquelhefriccionavatestaetêmporas.Quaseinstantaneamente,recobrouossentidos,mas,asuperexcitaçãoeraassustadora.

— Que posso fazer, deuses imortais, para subtraí-lo a esse inumano suplício? — exclamou,retorcendoasmãos.

— Vim indicar-te o caminho da salvação — murmurou Abracro. Vê esta caixeta: homemdevotadoaHoremsebtaenvia.Seconseguiresfazê-lachegaraele,estanoite(masdevesincumbir-tetumesma),nelaacharáumremédioqueprovavelmentelhesalvaguardaráavida,e,emqualquercaso,pouparáohorrordosuplício.Nãotepossodizermaisdoqueisto,porém,setiveresêxito,oteu esposo te bendirá, neste e no outromundo.Ameu ver, se te apossares do sinete ou anel darainha,deixar-te-ão,semdificuldade,penetrarnaprisão.

—Euoterei,Abracro,tereiosinete,e,estanoite,acaixinhaseráentregueaHoremseb,oumorrerei—exclamouNeith,comenergiafebril.

—Osdeusesteprotejam,nobremulher;mas,deixa-medar-teestasgotas,poiselastetrarãoaserenidadeindispensávelparaagirenãodeixarperceberoqueacabodetetransmitir.

— Dá-me, porque compreendo que jamais, quanto agora, tive necessidade de calma e deprudência.

Após haver feito a jovem beber o cordial, que lhe preparou num copo de vinho, Abracroretirou-se,deixandoNeithtranquilacomoqueporencantamento.

Cheiadeenergiaefriaresolução,fez-sevestirpelascamareiras,foiparaoapartamentorealeimediatamenteintroduzidajuntodeHatasu,queterminavaofrugalalmoço.Adespeitodapalidez,Neithestava tãocalma, tão senhorade si, quea rainhanãodesconfioucoisaalgumaeacreditouque,emverdade,ainsôniaeraacausadoradosemblantedesfeito.Conversoucombenevolência,e,comindulgentesorriso,aquiesceuaopedidodeNeithdepermanecernogabinetedetrabalho,atéahoradoConselho.

AnunciadoSemnut,arainha,seguidadeNeith,passouaogabinete,ebemdepressaabsorveu-se nos diversos assuntos que lhe eram expostos pelo fiel conselheiro: tratava-se de regularizarmuitas contas e despesas imprevistas, suscitadas pelas construções que se faziam no templo deAmon.Hatasuassinoueapôsosinete-seloimediatamentenaordemaoseutesoureiroparaentregaraSemnutassomasdequeterianecessidade.

Até então, jamais Neith havia prestado a assuntos oficiais, tão pouco interessantes, umaatenção ininterrupta assim; febrilmente agitada, acompanhava cada movimento dos doisinterlocutores;depois,oolharparounoanel,deengastemóvel,dequearainhaseservira:eraoseusineteouseloparticular, conhecidode todos,eàvistadoqual, seconseguissedeleapossar-se,aportadaprisãodeHoremsebseriaabertasemdificuldade.

Comoseavontadesuperexcitadada jovemmulherhouvesse atuado sobre a soberana, estapareciateresquecidooanel,coberto,casualmente,porumafolhadepapiro.Arainha,comefeito,estava preocupada: a fisionomia alucinada de Neith inquietava-a. Depois, apressou-se, por estarsendoesperadanoConselho.TendodadoasderradeirasordensaSemnut,levantou-se,deixandoospapéisesparsossobreamesa,recomendouaNeithrepousasseorestododia,esaiu.OreposteirocaíraapenasàretiradadoFaraó,eNeithjápegaraoaneledeixavaogabinete,ondeninguémtinhaodireitodepenetrarnaausênciadarainha.Entretanto,apartidaaindanãoestavaganha,porqueHatasupodialembrardoesquecidoanel.

Assim não aconteceu. Após o Conselho, deixou o palácio para assistir a uma solenidadereligiosa,eporqueemseguidadeviadirigir-seàcidade-dos-mortos,parasacrificarnotúmulodosparentes,Neith tranquilizou-se,pois,namanhãseguinte,acharia fácilocasiãode reporoanelnolugar, e mesmo, se necessário, confessar o furto (que lhe importava!), uma vez que a preciosacaixetaestivesse,desdeavéspera,emmãodeHoremseb.

Logoqueocortejodeixouopalácio,Neithfoiàsuacasa,nabordadoNilo,ondeestariamais

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em liberdade.Nunca,porém,umdia lhepareceu tão longo.E se, apesarde tudo, fossenotadaadesaparição do anel, e viessem retomá-lo? Assim, a cada ruído, estremecia, e a mórbidasuperexcitaçãoaumentavadehoraemhora.

Afinal, anoiteceu, e chegou o momento de agir. Ordenou o aprestamento de uma liteirafechada,paraquatrocarregadores,eemseguidavestiuroupagemrica,envolveu-seemamplovéude lã,emcujasdobrasocultouapreciosacaixeta.Comenormepasmodanutrizedo intendente,instalou-se sozinhana liteira, recusouosbatedorese condutoresdearchotes, jápreparadosparaacompanhá-la,eordenoumarchassemaolongodoNilo;mas,distanciadadopalácio,determinouaoscondutoresmudaremdedireçãoetransportá-laaotemplodeAmon.

Oacessoaosagradolocaljáestavafechado,masoguardiãodaportaconheciaperfeitamente,de vista, a jovem favorita doFaraó, e não fez embaraço emdeixar entrar a liteira, designando ocaminhoaseguirparachegaràpartedasconstruçõesondeseencontravaocélebreprisioneiro.

Empequenopátio,ocupadoporsoldados,aliteirasedeteve,eNeithpediuaooficial,queseaproximou,conduzi-lajuntodeHoremseb,poisarainhalhepermitiradespedir-sedoprisioneiro,emprovadoquelheestendeuoanelreal.Ojoveminclinou-se,masdeclaroudeverentender-secomosacerdoteincumbidodavigilânciadocondenado,ecorreuaencontrá-lo.Frementedeimpaciênciaetemor,Neithesperava;porém,aoavistaroanciãoquechegava,acompanhadopelooficial,suspiroudesafogada:conheciaovelhopadre,porhavê-loencontradoemcasadeRoant,esabia-oamigodeRanseneb.

— Venerável Amenefta, deixa-me entrar na prisão de meu esposo. Comovida por minhaslágrimasesúplicas,nossagloriosarainhapermitiudar-lheoúltimoadeus.Ransenebsabequeeuesperavaestagraça,eeisaquioanelrealqueteconfirmaráminhaspalavras.

Osacerdotepegouoaneleoexaminouatentamenteàluzdeumatocha.

—ÉosinetedoFaraó;desce,nobremulher,esegue-me.Ovenerávelprofetaprevenira-medapossibilidadedatuavinda.

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III

ÚLTIMASHORASDOCONDENADONamanhãdoderradeirodiaquepassariaentreosvivos,Horemsebforatransferidodaprisão

subterrâneaparaoutra, próximado localdo suplício: umacâmaraquadrangular, paredesnuas, esem teto. Apenas um telhado de pranchas tapava-a quase pela metade, sob o qual havia mesa,cadeiradepedra,eummontedepalha.Duranteodia,aresoltinhampenetradolivrementenesteúltimorefúgiodocondenado;agora,océu,refulgentedeestrelas,desdobravaporcimadaprisãooseuzimbórioazul-escuro,e,noladodesombra,umalâmpadadebronze,fixadaporcimadamesa,derramavaluzembaciadaevacilante.

Horemsebestavasentado, cotovelosapoiadosnamesa,o rostocobertopelasmãos:algodeterrívellutavaemsuaalma,eaangústiaqueadissoluçãodoserinspiraatodomortalfaziatremertodososseusrobustosmembros.

Saindo do longo esvaecimento, entrava em completa prostração, mas a benfazeja apatiaprontamentesedissipara,paradarpostoadesesperadasuperexcitação.Estavacondenadoàmorte,e,noentanto,seoqueeleacreditava fosseverdade,nãopoderiamorrer,eessa imortalidade tãodesejada,paraobtençãodaqualsacrificaratantasvidasinocentes,transformar-se-iaemindefinidosuplício, em atroz ironia do destino. E cada hora aproximava-o do horrendo momento em que,muradonumestreitonicho,privadodearealimento,separadodomundovivo,definhariaemumaagoniasemfim.Os.dentesrangeramegélidosuorinundou-lheocorpo.Ese,nessascondiçõestãocontra a Natura, morresse, apesar de tudo, que tortura aguardaria a alma, no envoltório carnal,privadodeembalsamamentoedesepultura,cairiaempoeiranumantroimundo?Atalpensamento,ohorrordonadaassaltava-o,aquelaincertezaqueagitaoshomensdetodosostempos,porqueossentimentoshumanosnãomudamnunca.

Hodiernamente,eassimhácentenasdeséculos,oódioeoamor,acupidezeaambiçãosãoaseternas alça-premas das nossas quedas; e o culpado de todas as épocas, ao aproximar da morte,sente-seesmagadoemseuforo íntimo,o instintodaresponsabilidade—quetrazconsigodesdeanascença — desperta no fundo da consciência adormecida, e o faz tremer ante o desconhecidoabismoqueovaideglutir,ondenãomaispoderápecar—talqualofazianaTerra—eondenãotemcertezadeestaraoabrigodasconsequênciasdosseuscrimes.

Todo o dia decorrera para Horemseb nessa tortura moral, e quando as sombras noturnasespalharamaescuridãoeosilêncioemseuderredornovosentimentoavassalou-ocomapunhalanteamargura: o do seu completo isolamento. Naquela hora terrível em que, reprovado, degradado,condenado,iadesaparecerdomundo,estavasozinho,ninguémopranteava,nenhumpensamentodecompaixão e de afeto vinha buscá-lo na sua prisão; naquele Egito, onde a sorte lhe doara tãoformosolugar,todosoabominavam,desejando-lhemorte;odesprezoeamaldiçãoseaferravamaoseunomedetestadoatéquandofosseesquecido.Pelaprimeiravez,aquelesentimentodecompletasolitude como que lhe arrochava, com indizível martírio, o brônzeo coração, e, com um gemidorouco,apertouafronte,comoselhequisesseafundarosossos.

Absortoemtãoamargospensamentos,nãonotouqueaportadaprisãoforaabertaefechada,equeumvultofemininodetivera-sejuntodolimiar.Porummomento,Neithcontemplou-o,emmudodesespero. Era mesmo Horemseb, o elegante, o perigoso e sedutor feiticeiro, aquele míseroencarcerado, abatido, ali, numa cadeira de pedra? Ante seu espírito perpassou, qual visão, oencantadopaláciodeMênfis,eimensapiedade,umaondadeamorafogou-lheocoração.Pousounosoloacaixeta,libertou-sedomantoedovéu,e,avançando,demãosestendidas,chamouHoremseb,comsufocadavoz.

Eleestremeceuesevoltou.AvistandoNeith,porinstantespareceupetrificado;depois,olhosbrilhando, saltou para ela e a apertou de encontro ao peito. Nos primeiros momentos,permaneceramcalados;mas,dominando-seprimeiro,Horemsebconduziu-aparaobancodepedra,e,sentando-seaseulado,murmurou:

—Neith, apenas tu me ficaste fiel, pobre criança que tanto atormentei. Tu me perdoaste ohaver-te feitoassim tãodesditosa?Oh! se tivesseatendidoà tuavozprofética,prevenindo-medequevergonhaeinfortúnioesvoaçavamsobreminhacabeça!...

Aemoçãotomou-lheavoz.Pelaprimeiravez,quiçá,umsentimentodeafetoeagradecimentoaqueceu-lheogeladocoração,e,quandoNeithparaeleelevouoolharplenodeamor,eeleviuas

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lágrimasqueinundavamasfacesdasuavítima,cingiu-aardentementedeencontroaopeito.

—Nãopoderiaeuviver,paraconsagrar-meatierepararmeuserros?Mas,tudoterminou,etu,Neith,reveste-tedecoragemparasuportarogolpeque,emalgumashoras,teatingirá.

Ajovemmulherestremeceu,e,imediatamente,lembrou-sedamensagemquetrazia.

— Meu bem-amado, não desesperes; eu te trouxe a liberdade! — exclamou, correndo aapanhar a caixinha, que pousou na mesa. Vê! um amigo envia-te isso; essa caixeta contém a tuasalvação!

Nervosamente agitado, o príncipe abriu a pequena caixa, examinou o conteúdo e,desenrolandoopapiro,leuávidoamensagem.Imediatamente,umruborresplandecenteinvadiu-lheorostoeumabafadogritodejúbiloetriunfosaiu-lhedoslábios.Numtransportedebrutalpaixão,pegouNeitheaergueu,qualpluma,acimadafronte.

—Salvadoradaminhavida,mensageiradivinaquemetrazesa liberdade!—murmurouele,cobrindo-adeardorosascarícias.

—Fugirás,Horemseb?—indagouela,radiante—elevar-me-áscontigo,nãoéverdade?

—Sim,fugirei,masdemaneiradiferentedaquepossaspensar,equemsabe?talvezmesejadadopossuir-teepagarestahoradedevotamento,comumavidadeamoregratidão.Mas,dize-me,mensageiradealegrias,comochegasteàminhaprisão?

Neithrelatousucintamentequantosepassara,desdeaseparaçãoatéavindadeAbracro,eofelizacasoquelhepermitiraapossar-sedoaneldarainha.

—Mas,dize-me,recebestetodasasremessasdevinho,provisões,vestes,eoutrascoisas,que,diariamente,tefiz?—indagouela,aoterminar.

—Recebi,duranteminhaenfermidade,vinhoemantimentos,enadamais.

—Oh!osinfamesenganaram-me,atéRanseneb,depoisdasrégiasdádivasquefizaotemplo.Roubaram-te,ati,oinfortunadoqueelesdestruíram!—balbuciou,lívidadeindignação.

—Quiseramtranquilizar-te, pela convicção de que eu seria confortado pelos teus cuidados;mas, deixa isso,minhabem-amada, e não te aflijasmais; eu lhes fugirei à ira, pela aparênciademorte.Lá,diantede ti,adormecerei,porémnãoseráamorte,esimumsonopovoadodesonhostranquilos e felizes.Nomomento, não te possodizermais doque isto, porque, pobre criança, tupoderias,semquerer,emsonho,revelaraverdade,eentãoeuestariaperdido.Agora,agir!Otempoapressa;acadainstantepodemvirbuscar-te.

—Nãocompreendoastuaspalavras—exclamouNeith,desesperada.Seisomentequetevouperderpormuito tempo,parasempre talvez;que tequeremfazerperecer (epremiuacabeçadeencontroaopeitodeHoremseb).Oh!dize-me seé verdadequenãomeamas, equeo amorquetenhoportiéprodutodeumenfeitiçamento,eaplacaoincêndioquemedevora...

Oprantoimpediu-adeprosseguir.Horemsebpassouamãopelafronte:sentimentosestranhose multíplices agitavam-no, e, pela primeira vez também, arrependimento, piedade, gratidão paracom aquela jovem criatura — a única — que lhe ficara fiel, despertaram em seu coração duro efrígido.Inclinou-se,eseuolharimergiu,comindefinívelexpressão,nosolhosúmidosdeNeith.

—Oamordossentidosqueteinspiroéenfeitiçamento;aslágrimasquevertessobremiméosentimentopuroedivinodoamor—disseemvozbaixa.Obruxedopodedominareentorpecerocorpo,porém, jamais, fazersofrerocoração.Ofeitiço,minhaNeithquerida,nãomedefendeudoódio,dociúmeferozdeNeftisedeÍsis;ambasbeberameolfataramoveneno,seuscorposfremiramsobmeuolhar,enãoocoraçãoquemeodiouedestruiu.Tu,porém,nãosofrerás,nemarderásmais:qualquer que seja o futuro, quero guardar teu coração, teu puro afeto, sem o feitiço que teentorpece.

Aproximando-se da mesa, pegou um pano, molhou-o na água da bilha e com ele limpou asmãos e o rosto afogueado de Neith. Depois, retirou da caixeta um dos frascos e o copo, ereavistandooescrito,enviadopelosábio,reduziu-oapedacinhosmínimos.Nessemomento,aparteaberta da prisão foi inundada de luz tão suave, embora viva, que a claridade da lâmpada ficouofuscada: era a Lua, elevando-se, o astro amado de Horemseb, e o avistá-la arrancou-lhe umaexclamaçãodealegria.Erguendoosdoisbraçosparaoargênteoglobo,recitou,emvozcadenciadaecomexpressãodeentusiasmo,umainvocaçãoaAstarté.Ocupando-sedenovocomajovem,queficarainterdita,disse,jovialmente:

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—Agora,agir!Arainhadanoiteouviuminhaspreces;compassivaeradiosa,veiocalmar-mecomseusdocesraios,dar-mecoragem,embalar-menomisteriososono.

Respirou a plenos pulmões, passou as mãos pelos cabelos. Após isso, pegou o frasco ederramounocopoametadedoconteúdo,ecomaoutrametadefriccionouatesta,astêmporaseopeito.Terminado,estendeuocopoaNeith,dizendo-lhe:

—Bebe!

—Éamorte?—perguntou,estremecendo.Euaprefiro,deresto,aviversemti.

—Nãoéamorte,esimacalma,orepouso,adestruiçãodofeitiço.Teucoração,euoespero,permaneceráfiel—respondeuele.

Eseuolharmergulhou,quallabareda,nosolhosdeNeith,quelevavaocopoàboca.Apenasbebeu, desconhecida sensação, uma friagem glacial correu-lhe pelas veias. Presa de debilidade,vacilou, mas Horemseb fê-la sentar-se no banco, agora iluminado pela Lua. Em seguida, tirou dacaixetaosegundofrascoeoesvaziounocopo.Vivificanteesuavearomaembalsamouoambiente.Sentando-sejuntodeNeith,deu-lheasegurarocopo.

—Detiqueroreceberabebidamisteriosaquemeprometevidaefuturo,e,semorrer,liberto-me,aomenos,davergonhaedasatisfaçãocrueldospadresinsolentes.Vivermurado,seriatorturahorrenda!

Trementeedesfeita,ajovemmulheraproximouocopodoslábiosdoamadohomem;mas,tãologobebeu, ela o deixoudesprender-se dosdesfalecidosdedos, e o cristal caiu e se espatifounosolo.

— Agradecido! — murmurou Horemseb, e, atraindo Neith a ele, acrescentou: Fica assim;queroadormecercontemplandoteulindorostoeteuafetuosoolhar.

Encostou-seaomuroefixouoastroquerido,aoqualpareciaestarligadopormisteriosoelo;eraopálidoconfidentedeseussonhos,osilenciosotestemunhodeseuscrimes,dasignóbeisfestasdopaláciodeMênfis...E,naquelahorafatalemque,degradadoeabandonado,nemmesmosabiasevidaoumorteoaguardava,oastrovierailuminar-lheaprisão,enosseusraiosdeluzimpregnavam-seostétricosetumultuosospensamentosdocondenado.EssasimpressõesindeléveisaLuaasleva,deséculoemséculo, impassível,porémnãoesquecendodetalhealgum, identificandoemtodososlugares, sob cada nova fisionomia, aquele que lhe confia suas dores e suas alegrias, reatando,silenciosamenteassim,osmisteriososlaçosdopassado.

Ohomemencarnadomudadeaspecto,decor,deposição;esqueceonde,emqueséculo,apósquegraveacontecimento,sobopesodequaissentimentosviueleaquelamudaconfidentevirvisitá-lo no leito de morte ou no calabouço, testemunha única de obscuro crime ou de júbilosdesconhecidos dos homens. Ele ignora em que horas de angústia seus perecíveis olhos fixaram,veladosdepranto,esseargênteoglobo;mas,este,sabe,ereencontraHoremsebsobostraçosdoreiinfortunado,cujofimtrágicoemocionouomundo.

NãoerasemmotivoqueLuísIItantoamavaanoiteeasquimerasàluzdoluar,eseapenasvagamentecompreendiaomurmurardosseusraiosluminosos,falando-lhedelongínquopassado,decrimes esquecidos, de vida de sofrimento e de expiação, recebia o fascínio estranho de um elomisterioso, o atrito de incógnito sentimento que o atraía para o astro das noites que adoraraoutrora.

Mergulhadonospensamentos,esqueceratudoqueorodeava,quando,repentinamente,Neithergueuacabeça,quelheapoiaraaopeito,ebalbuciou,espavorida:

—Estãoaliasmulheresterríveis.Oh!Horemseb,seremosseparados.

—Quevêstu,Neith?—murmurouele,estremecendo.

— Serás separado de mim, de nós todos, por muito tempo; somente teus inimigos ficarãocontigo,e tusofrerás,sentindo-te isolado,semprevencidopelodestino.Desprezasteoverdadeiroamor,esóo feitiçopermanecerá juntodeti;coraçãovazio,almaenferma,tuprocurarásreaverachamaqueaquece,porémsóoconseguirásquandooamorfloriremteuprópriopeitoedominaraspaixõeseoódio.Oh!aprendedepressaaamar,paraquenosreencontremos!

— Farei por isso — murmurou Horemseb, invadido por estranha e geral dormência, emaquinalmenteapertando-adeencontroaele.

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Súbito,Neithrepeliu-o,atirando-separatrás,olhosdilatados.

—Deixa-me.Emquete tornas?És tu,estasangrentaborboleta,vermelhacomose fossedefogo?Deixa-me;tumequeimasesufocas;tuvomitassangue!

Debatendo-se feito louca, empurrou Horemseb; mas, as débeis pernas recusaram-lhe apoio,resvalouparaosolo,e,comacabeçaretesadaparatrás,pousadanosjoelhosdoprisioneiro,perdeuossentidos.Elemuidébilresistênciapuderaoferecer,porqueprofundoentorpecimentoinvadia-lheocorpo;comoqueatravésdenuvem,viuNeithabater-sejuntodele,elhepareceuqueelemesmorodopiava,qualpluma,emumbáratronegro.Depois,perdeuaconsciência.

Mais ou menos quinze minutos decorridos, o oficial de serviço abriu a porta, e disse,respeitoso:

—Nobresenhora,étempoderetirar-se.

Nãoobtendoresposta,entroueestarreceuaodepararcomajovemmulherabatida,comoseestivesse morta. Crente de que a emoção a privara dos sentidos, aproximou-se vivamente, e, aoprimeiro golpe de vista sobre os olhos vítreos do prisioneiro, ao contacto da mão gelada, soltouabafadaexclamaçãoecorreuparafora.

No apartamento de Ranseneb ainda estava reunida uma dezena de sacerdotes, discorrendosobre a execução da sentença, no dia seguinte, e sobre a contrariedade de não se haver obtidoinformaçõesprecisasarespeitodamisteriosaplantadoamor.Entreosinterlocutoresretardatários,encontravam-seRomaeAmenófis,amboshóspedesdeRansenebnaquelanoite.

A impetuosa entrada de Amenefta, acompanhado do oficial, interrompeu a conversação, e,quandoovelhopadrerelatou,pálidoetrêmulo,avisitadeNeitheadescobertafeitapelomilitar,todosseerguerameencaminharam,quaseacorrer,norumodaprisão.

Alguns minutos mais tarde, os sacerdotes rodeavam, sombrios e consternados, o estranhogrupo;mas,Roma,trepidantededesesperoeciúme,arrancoua jovemmulherdejuntodoodiadorival,e,ajudadoporumdosassistentes,tentou,infrutiferamente,reanimá-la.

Velhomédicoaproximou-seprimeiramentedeHoremseb,examinou-oedeclarouestarmorto.QuantoaNeith,vivia,apenasdesmaiada,aconselhandoretirá-ladonefastolocaleministrar-lheoscuidadosqueindicou.Paracumprirestaprescrição,Romatransportou-a,elemesmo,àliteiraparaconduzi-la aopaláciodeSargon,por issoquenãodesejava, emhora tão imprópria, levá-la aodarainha.

DepoisdasaídadeRoma,ossacerdotesreuniram-sedenovo.Examinaramcuidadosamenteacaixeta,osfrascosvazioseospedacinhosdopapiro,masessesobjetospoucolhesadiantaram.

—Ainsensatajovemevidentementetrouxe-lheodesconhecidovenenoqueomatou,etambémoescritodeumcúmplice.Mas,quemteriadadoaelaessesobjetos?—disseRanseneb.

—Sópodiasertalvezomiserávelhitenoque,foradedúvida,seescondeemTebas,epossuiessevenenotãomisteriosoquantoaplantamaldita—observouAmenófis,que,inclinando-se,tateouomorto.Estranhocadáver!Nenhumtraçodesofrimentos;flacidezdosmembrose,contudo,palorcadavérico,frioglacial,coraçãoparado.

—Issoimportamenosagora,doquearevoltantecertezadequeoceleradofugiuaumajustapunição.Equedecidiremos,àvistadisto?

Após curto conciliábulo, ficou resolvido que se silenciaria sobre o ocorrido, de que poucoseram conhecedores, e seria consumada a execução da sentença como se coisa alguma houvesseacontecido. E, em virtude de tal deliberação, tudo se realizou conforme estava programado, empresençadetodasastestemunhasdesignadas.OcorpodeHoremseb,amparadopordoishomens,comoseomedootivesseaniquilado,foiconduzidoaopequenopátio,ondealtaeestreitacavidadeestavaabertanaespessamuralha.Ocorpo,aindaflácido,foisentadonumcurtobancocolocadoaofundo, junto do muro, e bem depressa os obreiros colocaram, céleres, os tijolos, fazendodesapareceraosolhosdosassistentesorostodofacinorosoenfeitiçadorquetantoderaquefalar.

Naqueleestreitonicho,deviareduzir-seapóocorpotãoávidodeluxoedeprazer,océrebroorgulhoso, cruel, inventivode voluptuosidade sanguinárias.Bempronto foi a abertura totalmentefechada, e apenas a argila úmida assinalava o lugar onde estava sepultado o criminoso ilustre,acreditando-se ficarem todos desembaraçados dele para toda a eternidade, os sábios padres nãosuspeitandosequerque,porummistériodaNatureza,asombrafataldofeiticeirodeMênfisdevia

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ressurgir,e,aindaumavez,fazertremeroEgito.

Ajudadoporumsacerdoteamigo,RomaconduziraNeithdaprisãodonigromanteaopalácio,sempredesacordada.Impondosilêncioànutriz,quesoltavagritosdesustoedor,fezdeitarajovemsobre o leito e lhe administrou os primeiros cuidados. Mas, enquanto executava, com auxílio deBeki, as instruções do chefe dos médicos do templo de Amon, o espírito de Roma trabalhava,combinandotodasasparticularidadesdoacontecimentoquesubtraíraHoremsebàpunição.Apesardo enraivecido ciúme e do temor que o estado de Neith lhe inspirava, o jovem sacerdote vira acaixinha,osfrascos,ocopoestilhaçadoeosfragmentosdopapiroroto;escutaraasobservaçõesdosoutros padres sobre o desconhecido veneno que matara o condenado. Tal veneno somente Neithpodia tê-loconduzido;mas,dequem tiveraelaamisteriosacaixeta?Quem lha levara?Dominadoporestepensamento, ordenouaduasescravas friccionassemcomessênciasospéseasmãosdaenferma,elevouanutrizparaacâmaracontígua.Pegando-apelobraço,perguntou,severamente:

— Quem contou à tua senhora a condenação do bruxo, e quem lhe deu a desconhecidacaixinha, que ela conduziu, esta noite, ao sair? Confessa, mulher, sem restrição, e guarda-te dedivulgar,aquemquerqueseja,asperguntasquetefizagora.

Todaassustada,avelhaajoelhou.

—Bekiestáinocente,nobreRoma;Bekinãorelatoucoisaalgumaàsenhorazinha,eninguémveioaqui,salvoumaveladamulher,quenãodisseonome.

—Neithfaloucomessamulher?

—Sim.Apóslerumpapiroqueeulhetrouxe,ordenouintroduziradesconhecida,edespediu-me.Amulherescondiaumvolumequalquersobomanto,mas,seeracaixeta,nãosei.Emseguida,pornãoestardistantedaporta,parece-mequeasenhorazinhapronunciou:“Abracro”...

Súbitaclaridade fizera-seemseuespírito:Abracro,ahitena,mantinhasemdúvida relaçõescomomaldito e escondido sábio; por instigaçãodeste, ela viera instruirNeith sobre a sortequeaguardavaHoremseb,elhetrouxeraacaixinhacomovenenoeamissivaqueaacompanhava.Soboimpériodasuainsânia,ajovemmulhertinhaobtidooufurtadooanelrealquelheabriraasportasdaprisão.Milpensamentos,sanhudosedolorosos,encontroavam-senocérebrodomoçosacerdote;suaalma,clementeeharmoniosa,estavaulceradapeloszelosetemorquelheinspiravaoestadodamulher adorada. Destruir o miserável estrangeiro, que desencadeara tantas desgraças sobre oEgito,parecia-lheobrasanta.Assim,ochãocomoquelhequeimavaospés,porque,súbitalheveioaidéiadeque, senaquelamesmanoite, se fizesseumabatidana casadeAbracro, ali seria talvezdescoberto,senãoTadar,aomenosumfiocondutor.

À chegada no palácio de Sargon, Roma expedira um mensageiro a Satati, rogando-lhe virimediatamente,eovelhomédicodotemplo,quejácuidaradeNeith,prometeraacorrer, logoqueestivesse livre. Fiel à promessa, o velho chegou, munido de farmácia portátil, e, pouco depois,Satati,azafamada.Assimqueentregouaenfermaaosseuscuidados,Romacorreuparaocarro,quefizeraatrelar,e,atodaabrida,rumouparaopalácioreal,ondesabiaque,nessanoite,Chnumhotepestavadeserviço.

Encontrou o chefe das guardas em conversação com Ranseneb, que acabara de chegar,trazendo o anel real para ser entregue a Hatasu, logo que despertasse, e lhe dar parte dosacontecimentos supervenientes. Ambos escutaram atentos as palavras de Roma, e Chnumhotepexclamou,comanaturalvivacidade:

—Temrazão.Émisteraprisionarimediatamenteafeiticeira.Quemsabe?Talvezponhamosamãonaraizdetodoomal,nohitenomaldito.Osímpiosnãocontamsertãodepressaperseguidos,porque esta trama é obra de mais de um desses estrangeiros, que permanecem nossos inimigos,apesardetodososfavorescomquesejamcumulados.AlgumdelesdevetercomunicadoaAbracroasentençapronunciada.

— Esse deve ser Tiglat, único dos hitenos que foi imediatamente informado — observouRanseneb. De resto, Abracro deverá confessar quem a mandou junto à pobre Neith, cujo estadodoentio a torna irresponsável. Mas, apressa-te, Chnumhotep: seria uma felicidade podermosanunciaràrainhaqueoculpadofoipreso.Anotícia,decerto,atenuar-lhe-iaacólera.

Mela hora mais tarde, um destacamento de soldados, sob o comando de Antef, dirigiu-sesilenciosamenterumoàcasadeAbracro.Depoisdecercadaevedadastodasassaídas,ooficialeuma esquadra nela penetraram. Roma não se equivocara: Tadar, surpreendido com Spazar eAbracro,foipreso,eotrio,acorrentado,conduzidoàprisão.

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Hatasuinteirou-se,comtantasurpresaquantocólera,dasocorrênciasdanoite.UmrecadodeSatatiinformara-adequeNeithreabriraosolhos,emboraestivessepresadefebreviolentaedelírio.Aopensarqueomiserávelcausadordetantosmalesàfilha,equecomasimpurasmãosquebravatãojovemexistênciafugiaaocastigo,ocoraçãodarainhaintumesciadeimpotenteraiva.Assim,ànotíciadequeoverdadeiroinstigadordomalestavadetido,tudoquantohaviadecruezaesededevingançanoânimodaorgulhosasoberanadespertou,eimplacáveldurezacoruscava-lhevibrantenavoz,quando,apóscurto silêncio, sevoltouparaSemnuteRanseneb,que,humildese silenciosos,aguardavamasordens:

—Dehámuito,oimpuroídolodeMolocempestaoEgitocomasuapresença;mas,antesdeser destruído, acho conveniente oferecer ao deus um sacrifício digno dele: o do seu própriosacerdote.Providenciarás,Semnut,paraque,dentrodetrêsdias,Tadarsejaexecutado.Paraesseréu,sedutordepríncipesegípcios,constituiaindainvejávelmorteoserassadovivoentreosbraçosdoseudeus.QuantoaSpazar,seráenforcado,ebemassimAbracro,etambémTiglatseforprovadaasuaconivênciacomosoutrosdois,eseuscorposserãoabandonadosaoscorvos,porqueambosabusaram da minha confiança e pagaram com ingratidão meus inumeráveis benefícios. A ti,venerável profeta, eu agradeço, e bem assim aos teus confrades, a prudência demonstrada nestacircunstância,eaprovoasvossasdecisões.Quantoaofurtodoanel-sinete,sejaesquecido,porqueadesditosaNeithestádoenteeIrresponsávelpeloquefaz.

Doisdiasdepoisdestediálogo,imensamultidãoestavareunidaemáridovaleconfinantecomodeserto.Ao centrodeumcordãode soldados, erigia-se o sombrio ídolohiteno, já arroxeadopelofogoquelheroncavacrepitantenasentranhas,e,aalgumadistância,erguiam-setrêspatíbulos.Osprisioneiroshaviamsidotransportadossobaguardadeumdestacamento,docomandodeAntef,e,em atitudes bem diferentes, aguardavam a sua hora final. Sombrios, selváticos, porém resolutos,Tiglat e Spazar não demonstravam temor algum; Abracro, estupidificada, enlouquecida de terror,pareciahaverperdidoacompreensãodascoisas;Tadarestavaespantoso,horrendodever.Aosaberquedestinooesperava,ódioepavortomaram-no:começavaaduvidardaeficáciadasuaciência,eossofrimentosfaziam-lhemedo.Cômodolheforafazeroutrossofrerem...Apanhadode improviso,nãopuderamunir-sedeumvenenoqueosubtraísseàtortura.

Ao avistar o seu deus incandescente, ficou como que dementado; rugindo, feito animalselvagem, olhos injetados de sangue, espuma na boca, rebolcava-se, fazendo soar as correntes eresistindo, com força sobre-humana, aos homens que o queriam pegar. Então, à ordem de umfuncionário,foitrazidoumgancho,comoqualoprenderampelacintura,apesardeagarrar-secomfúriaaochão,suspendendo-oparalançá-lonafornalha.Gritos,semsemelhançacomavozhumana,sacudiram o eco das rochas, e fizeram recuar de horror a vultosa assistência aglomerada. Sob opesodetalimpressão,oenforcamentodeTiglateseuscompanheirospassouquasedespercebido.

Docriminososábio,quecondenaraaosofrimentoeàmortetantosinocentes,sórestoudentroempoucoumpunhadodecinzas;mas,essascinzasdeviamreviver,séculosmaistarde,sobonomede Richard Wagner, para vazar, em melodias selvagens e inarmônicas, todo o caos fervilhantedaquela alma; despertar e seduzir, também, pelo feitiço do passado, seu discípulo de outrora.Semelhante ao marulhar das ondas, essas melodias, tão depressa insinuantes e voluptuosas, tãologoselváticas,feriramoouvidodorei,quehaviasidoHoremseb;doaltodotrono,estendeuamãoaomaestrodesconhecido,elheaplainouaestrada.

LuísIInãosedavacontadapotênciadaquelessonsqueevocavamalembrançadopaláciodeMênfis, com as rosas rubras e suas vítimas sanguinolentas; mas, o inconsciente despertou nosoberano, fazendo-o buscar o isolamento, a Lua e os perfumes entorpecentes: foi uma dessasesfingesindecifradasqueaCiênciadenominaumlouco.

Osincrédulos,euosei,sorrirãodesdenhosamenteaolerestaslinhas,queimaginarãofrutodecérebro enfermo ou fantasista, mas, o porvir dar-me-á razão. Enquanto se obstinarem no seuorgulhoenasnegações,osmédicosserãoimpotentesanteasdoençasdaalma,tãoinatingíveisetãoestranhas, e somente quando buscarem no passado a fonte do obscurecimento da alma do loucoencontrarão a chave do enigma, e o mal poderá ser tratado na sua raiz, porque o presente é acontinuação,aconsequênciadopassado.

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IV

OBRUXOREVIVEEMMENAAexecuçãodomagoedosdoishitenos, tão longamenteprotegidospelarainha,causou,em

Tebas,profundasatisfação,e issoporumduplopontodevista:aaversão inveteradadosegípcioscontra todo estrangeiro estava afinal atendida, e desfeito o receio inspirado pelo perigoso sábio.Quem poderia adivinhar o que teria inventado, em sua sede de vingança? E milhares de peitosrespiraramaliviados,àidéiadequeeleestavamorto.

Aalegriageral,causadaporaqueleafastamentodesanguinosopesadelo,nãoerapartilhadapelarainha,porqueNeithcontinuavaflutuandoentreavidaeamorte;osterríveisacontecimentosdasuaestadaemMênfis,ovenenobebidoeolfatado,as lutaseasangústiasdosúltimos temposhaviamjáquebrantadosuasaúde;mas,aderradeiraentrevistacomHoremseb,eareaçãoviolentaoperada pelo antídoto que ele lhe fizera ingerir, arrasaram definitivamente o débil organismo.Devoradaporardentefebre,perseguidanodelíriopelasvisõesderecentepassado,adesventuradacriaturadescreviaascenashorrendasaqueassistiranopaláciodeMênfis,eonomedeHoremsebnãolhedeixavaoslábios.

TudoquantoTebascontavaemcelebridadesmédicasreunia-sejuntodoleitodaenferma,queRoant e Satati assistiam com absoluto devotamento, ajudadas pela nutriz fidelíssima, a qual nãopermitiaanenhumaoutraservatocarnaadoradasenhorazinha.Muitasvezestambémabarcaoualiteira real parava no palácio de Sargon, e, olhar sombrio, fronte preocupada, a soberana seinclinava sobre a filha amada, cujo estado, quase desesperador, lhe penetrava o coração deamargura.Quandopensavanaquele jovemrebento,tãoricamentedotado,que,descuidadoefeliz,desabrocharaparaavidaqualflororvalhadamenteaberta,equeagoraseencontravaemumestadopiordoqueamorte;quandoviaNeithdestruídapelocriminosodivertimentodeumhomemaquemelanãofizeramalalgum,eque,sabendoaque'personagematacava,havia,comasmãossacrílegaseinsolentes,enxovalhadoedespedaçadoaquelainocentevida;umaraivasemclassificaçãoinflava-lhe o peito e fazia crispar os dedos. Desejaria torturar esse miserável, saciar-se dos seussofrimentos,eelehaviaachadomeiodeiludirocastigo,empregandoporinstrumentodesalvação—supremaironia—aprópriavítimaqueelecegara.

Mais de três semanas eram decorridas desde a morte de Horemseb. Numa tarde, o velhomédicodotemplodeAmon-Raveiovisitaradoente,acompanhadodeRoma,eambossecurvaramansiosamentesobreela,que,exauridaemagra,repousava,olhosfechados,insensívelatudo.

—Ofimseaproxima,e,salvoalgumaimprevistareação,essedébilrespirarcessaránaaurorasolardeamanhã—murmurou,tristemente,ovelho.

Palor profundo cobriu o rosto do moço sacerdote, igualmente emagrecido. Em seu olhar,habitualmentetãodoceecalmo,desenhava-seamargodesespero.

— Então, ficarei aqui até final eministrar-lhe-ei as gotas que trouxeste— respondeu, cominseguravoz.

—Estábem,fica;nãoaperturbes,porém,seoestadoatualsemantiver.Dentrodeduashorasvoltarei,eentãoveremos.

Quandoovelhomédicosaiudoaposento,Romadeixou-secairnumacadeira,juntodoleito,eseusolhosrepararamporacasonadedicadanutriz,acocoradaàcabeceira,acochilardefadiga.

—Vaidescansarporumahora,Beki.Roantdevechegar,eatéláeuvelareipeladoente,edireiasprecesnecessárias.

Aescrava retirou-sedocilmente.Felizporencontrar-sea sós,naquelahora suprema,comoenteamado, eque iaperder, ajoelhoueapertouentreas suasapequeninamão,úmidaegélida,estendida sobrea finacobertade lã violeta.Neithpareciamergulhadanumaespéciede letargia:olhossemifechados,bocaentreaberta,respiraçãoimperceptível,ostraçosfisionômicosjádenotandoqualquercoisaderigidezdamorte.

Olhosobscurecidospelaslágrimas,ojovemsacerdoteinclinou-sesobreela;jamaislheforatãoquerida quanto naquele instante. Que importava, se, por indigno artifício, lhe tinham roubado ocoraçãodeNeith!Seuprimeiroepuroamorpertencera-lhe.Oh!sepudesseprolongaraquelavidaqueseextinguia,fosseissomesmosemnenhumaesperançaparaele!Oshomenseramineficientes,

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semdúvida,mas, asdivindadesqueeleadorava—elas—não tinhampoderdeafastaramorte?Apertandofebrilmenteapequeninamãoqueretiveraentreassuas,Romaergueuosolhosparaoazuladocéuquesepercebiapelavaranda,eardenteprecesubiudeseuatormentadocoraçãorumodasforçasdoBem.Qualquerquesejaonomequese lhedê—Amon-.RaouDeus,ÍsisouVirgemMaria, é sempreparao—princípiodivino, a fontepurae renovadoraque retemperaa almaeocorpo—queohomemabrecaminho,implorandodoCriadorsocorroparaasuacriatura,láondeacegasabedoriahumana,impotente,sedetém.

Ardentequallabareda,porémpuraedespidadeegoísmo,subiaainvocaçãodeRoma;todaasuaalmapareciafundir-seemumúnicodesejo:arrancaràdestruiçãoamulherqueeleamavamaisdoqueasimesmo.Ignoravaelequeatorrentedevibraçõesqueseexalavamdoseuser,unidasaofluidodivino,desciamemquentesevivificanteseflúviossobreoorganismoenfermo,purificando-o,enchendo-odenovasforças,realizandoaquelemilagrederessurreiçãoqueimplorava.

Absorvidoemsuafervorosaprece,nãoseapercebeudeque,pordetrásdele,oreposteiroforaafastadoequeHatasuaproximara-se, semruído.Sombriaedesesperadano fundodaalma,vierapassar os derradeiros instantes junto da filha agonizante, pois os médicos lhe tinham dito nãoalimentaresperançaalguma.AvistadeumhomemajoelhadoàcabeceiradeNeithasurpreendera,mas, reconhecendoRoma e notando a sua concentração extática, compreendeuque ele orava, e,comosetãoardenteinvocaçãoacontagiasse,foitomadaigualmentedodesejodeorar.

A piedade humilde e confiante faltava totalmente à orgulhosa filha de Tutmés I, que seautomirava por descendente dos deuses. Os desenganos e os sofrimentos que a haviam atingidodurante a existência, despertaram-lhe cólera e rebelião; as vitórias pagara às divindades, comdádivasesacrifíciosdignosdelasedela.EparaobteracuradeNeithoferecerasacrifíciosemtodosostemplosdeTebas;mas,aidéiadeorar—elamesma—nuncalheocorrera.

Nomomento,àvistadaquelefinorostoimobilizado,fielimagemdoúnicohomemqueamara,aalma cedeu, e ela se sentiu tão fraca e impotente quanto o mais pobre dos seus súditos. Juntodaqueleleitodemorte,cessavaoseupoder;contraaforçaincoercívelqueiaapossar-sedoserqueelaamava,sólherestavaumrecurso:aprece.Baixandoaaltaneirafronte,mãosjuntasdeencontroao peito, Hatasu orou, pela primeira vez quiçá, do fundo da alma, aproximando-se, súplice, dadivindade.

Enquanto os dois amorosos corações por ela assim rogavam, ligeiro rubor coloriu as facesdiáfanasdeNeith,suarespiraçãoacentuou-se,aspálpebrasfecharameotorpormudou-seemsono.

Erguendoacabeça,arainhanotou,deimediato,essatransformação,estremeceu,aproximou-se vivamente e, cheia de nova esperança, inclinou-se sobre a doente. Tal movimento despertouRomadoêxtase;recuourapidamente,parasaudarHatasu,segundoaetiqueta,masesta,voltando-separaele,comamaiorbenevolência,pousou-lheamãosobreoombro,edisse:

—Tuaprece,Roma, esclareceu-me, e juntei à tua aminha rogativa. Talvez os Imortais nosdêem o que recusaram às dádivas e sacrifícios e à ciência dos nossosmédicos: a vida deNeith!Convenci-metambémdequenenhumcoraçãomaisfieldoqueoteuvibraporestacriança,queteamoudetodaaalma,antesdovenenolheperturbararazão.Euteprometo,pois,nestahorasolene,que,seNeithrestabelecer-seeseucoraçãovoltarati,fareidelatuaesposa.

Fremente,sobaaçãodemúltiplossentimentos,omoçosacerdoteprosternou-seeagradeceuàrainha;depois,colouoslábiosnosdedosmornosdeNeith.E,quando,meiahoramaistarde,veioomédico,esteconstatouqueaenfermadormiaprofundamente,ocorpoinundadodeabundantesuor.Emurmurou,comosolhosabrilhar:

— Filha de Ra, um grande milagre acaba de operar-se, pela vontade de teu divino pai: aprincesaviverá!

DuranteaconvalescençadeNeith,quecomextremalentidãoretornavaàvidaeàsaúde,umaoutra vítima de Horemseb olvidava suas desventuras e sofrimentos, com a despreocupação damocidade:Ísis,que,dediaparadia,recobravaasforçasebeleza.Poroutro lado,suaposiçãoemTebaseratãoagradável,quecontribuíaconsideravelmenteparaorestabelecimentomoralefísico.

Tornara-se herdeira rica, graças à generosidade da rainha, que, aos haveres de Hartatef,juntaraaindaasoberbamoradiadoadaporTutmésaNeftisequeficaratambémsemdono.Alémdisso, aparteque tomarano sangrentodramadonigromante rodeara-ade romanescaauréola, eexcitara geral interesse em seu favor. Nasmais aristocráticas casas, recebiam-na com agrado, eRoant tomara verdadeira amizade por ela. Ísis era, pois, frequente visitante do lar do chefe dasguardas,agoraaumentadodeumasobrinha,filhadeumirmão,daqualforarecentementenomeadotutor.AsnatheÍsissimpatizaram-serápidaemutuamente,emuitasvezesumcírculodeadoradores

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epretendentesreunia-senahospitaleiramansãodeChnumhotep,emtornodasduasmoças.

Entreosmaisfrequentesvisitantes,emelhoracolhido,contava-seKeniamun,aoqualochefedas guardas e esposa mostravam constante gratidão, pela auspiciosa interferência que lhespropiciaraocasamento.Roant,principalmente,nãopodiapensarsemtremoresnasorteamargaquelheestariareservadaseseunisseaMena,olibertino,egoístaeperdulário,eolhavaKeniamun,queapreveniratãooportunamente,comosendoofundadordasuafelicidade.Asvisitas,cadavezmaisamiudadas,dooficialtinham,aliás,umdeterminadofim:desposarÍsis,agorabastantericaparalheassegurarindependência,edaqualapreciaraoespírito,ahonestidadeeodenodo.

Ajovemtambémsehabituaraaele:asuavidaemcomumemMênfis,desdeaconjuracontraHoremseb, havia criado entre ambos uma intimidade e uma solidariedade excepcionais. Assim,acolhia favoravelmente as aproximações do moço oficial, que Roant protegia abertamente,persuadindoÍsisdequeprecisavadeumprotetor,edequejamaisencontrariaesposomaisdignodoqueKeniamun.

Ísisdeixou-se convencer semmuitadificuldade; o amorque lhe inspiraraSargondormitavasemprenofundodocoração,mas,opríncipeestavamorto,semjamaishavercorrespondido,porumolhar sequer, ao seu tácito e fiel afeto. Keniamun era jovial, bom, amável, conhecia o seu antigopendoramoroso,eaperdoava.Quepoderiadesejardemelhor?Emvistadetãoboasdisposiçõesdeambos os lados, não demorou o noivado, e, quatro meses após a morte do bruxo, festejou-se omatrimônio de Ísis e Keniamun, na residência de Roant, que assim quis fazer-se de mãe dadesposada.

Mais de um, entre os jovens, invejou a boa fortuna de Keniamun, porém, nenhum com odespeitodeMena,nãoqueestepensasseemcasar-secomÍsis,pois,emsuavaidade,considerava-amuito inferior pela origem, e sim porque toda a felicidade alheia o irritava. Em verdade, elepretendiarepararsuasituaçãopormeiodecasamentorico,mas,depoisdofracassocomRoant,nãotinhatidosorte,emuitossoberbospartidoslhehaviamfugidodasmãos,eopensarqueKeniamunencontraraumaformosaericamulher,ofuscava-o,numaespéciedeofensapessoal.

Apesardoseupatrimônio,dossubsídiosdeNeithedasconsideráveissomasquehouveradeHoremseb,estavasemprecarentededinheiro,eseuconceito,emTebas,deixavamuitoadesejar.Nosúltimos tempos,principalmente,perderamuitono jogo,esua ligaçãocomcelebradacortesã,dera bastante que falar em toda a cidade. Tal reputação de dissipador e libertino, afastava asmulheres ricas e sensatas; Mena, porém, disso não desconfiava, e, na sua fatuidade cega,considerava-se irresistível. Entretanto, a contrariedade que experimentara com o matrimônio docolegaseriaesquecida,quantooutrasdomesmogênero,seumfútilincidentenãootivesseimpelidoparaumanovapista.

MenaeraassíduofrequentadordacasadeTuaá:apreciavaas festasoriginais,osbanquetessoberbos que a viúva e sua filha organizavam, com refinadogosto, e eramponto de encontro da“juventudedourada”deTebasedetodasasbelasmulheresquenãofaziamquestãodeprudênciaevirtude.

Emumadessas reuniões, algunsdiasdepois do casamentodeKeniamun, falava-seda festaqueRoantderaporaquelaocasião.

— Sim, foi soberba, diverti-me maravilhosamente, e desejaria que semelhante festa serepetisse em breve — exclamou um oficial, que fizera entusiástica descrição da felicidade deKeniamun e da formosura da noiva. E acrescentou, a rir: Mena, tu bem podias ensejar essaoportunidade,casando-te.Asnath,asobrinhadeChnumhotep,parecetersidocriadacomendereçoati:éencantadoraeimensamenterica.

—Ocasoofereceapenasumadificuldade:elenãofrequentaacasadochefedasguardas,poisalivêsempre,emRoant,odesdémqueafezcolocaracoroadenoivadonacabeçadovizinhodaesquerda,emvezdodadireita—observou,maliciosamente,Nefert.

Menaenrubesceuvivamente,erespondeu,despeitado:

—Sóposso felicitar-mede taldesdém,quemepoupoudeumaesposaciumenta, coqueteepassavelmente madura. Chnumhotep bastante se enciumava a esse tempo, e, à conta própria,mentiumuitoameurespeito,e,porsuasintrigas,chupitouaviúva.Foibempunido,porquenãoéele,esimamulher,quemmandaemcasa.

—Tomacuidado,paraqueelenãoteprejudiqueaindaumavez,fazendoqueasobrinhasaibaqueésjogador,perdulárioecaçadordemulheres—disse,chacoteando,aincorrigívelNefert.

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—Seriaduvidosoparaelevencerdestavez,seeutentaraaventura;nãosoudaquelesqueasmulheresrecusemparamarido—respondeuMena,empertigando-se,comfatuidade.

Esta palestra, provocada por acaso, chamou a atenção deMena para Asnath, e, por duplomotivo,lheinspirouodesejodedesposá-la.Primeiramente,soube,desegurafonte,queoshaveresda jovemeramdosmaisconsideráveis;depois,nelefervilhavaavontadedecausarumdissaboraRoanteaomarido,forçando-osaconceder-lheasobrinha,malgradoafriezaenenhumaestimaquelhetestemunhavam,desdeocasodamúmiapenhorada.

Contudo, o projeto era de difícil execução, e, após algumas infrutíferas tentativas deaproximação,Mena,queseestimularacadavezmais,resolveuempregarummeioextremo.

Mas, para boa compreensão do plano que forjou, durante uma noite de insônia, é misterretrogradar e referir alguns fatos supervenientes, desde a descoberta dos crimes de Horemseb.Quando da prisão do príncipe Tutmés, após o assassínio de Sargon,Mena estava de guarda nosapartamentos do prisioneiro, e foi colocado na porta da câmara onde o situaram. Tutmés, aorecobrar os sentidos, estava extremamente agitado, e encarava a sua situação sob as coresmaissombrias.Pensou,comsecretaaflição,emque,seuminquéritodescobrisseserNeftis,amulherqueele enriquecera, possuidora do formidoloso veneno do feiticeiro, isto constituiria perigosa armacontraele.AtormentouoespíritoparaencontrarummeiodesuprimirdasmãosdeNeftisofrascovermelho, odelator testemunho.ApresençadeMena,que julgava ser-lhe inteiramentededicado,pareceu-lheumfavordosdeuses,e,aproveitandooprimeiromomentopropício,ordenouaooficialdirigir-se secretamente à casa de Neftis, inabitada naquela ocasião, e procurar, entre as coisasdomésticas da jovem ausente, um frasco que descreveu minuciosamente, pelo achado do qualprometeurégiarecompensa.

Ao amanhecer, quando substituído, Mena executou a incumbência, sem êxito, porém, nabusca, e só os fala-tórios nas ruas, a respeito dos sortilégios deHoremseb, abriram-lhe os olhossobre o conteúdo do frasco desejado por Tutmés, e esclareceram para ele, com uma nova luz, osúbito favor do príncipe. Lamentou não ter encontrado o precioso vidro, mas, com a habitualduplicidade,resolveuprevenirHoremsebdoperigoqueoameaçava.Jádescrevi,emlugarpróprio,avisitadeMenaaopaláciodeMênfis,masdeixeidemencionar,que, tendoouvidodeHoremsebanotíciadamortedeNeftis,dirigiu-se,aosairdopalácio,acasadesta,guiadopelas indicaçõesdopríncipe,e,lápenetrandosemdificuldade,atordooucomimprevistabordoadaopobrevelhoescravoquevigiavaaporta.Destavez,foifeliz,porqueachouofrasco,pelametadecomoperigosolíquido.Primeiramente, pensou em captar, com esse achado, as graças de Tutmés ou da própria rainha,conformeascircunstâncias,mas,regressandoaTebas,encontroudiferentessituações:ojovemvice-rei da Etiópia deixara a cidade nessa manhã, e, pelo rumo que tomava o processo, julgou maisprudenteocultaraviagemaMênfis,eesconderofrasco.

FoiaessemeioinfalívelqueMenaresolveurecorrer,paraassegurar-sedoamoredamãodeAsnath;mas conhecia todooperigodo cometimento, e agia com tantaastúciaquantoprudência.Precisavaprincipalmenteprecaver-sedeRomaeNeith,quepoderiamidentificaroperfumedelator,Isso porque, além do mais, escolhera a casa da irmã para principal teatro da sua maquinação.Asnath ia ali muitas vezes, sozinha ou acompanhada de Roant, e em nenhum lugar teria tantafacilidadedeaproximar-sedajovem.

Cautelosamente,espreitandocadaocasiãofavorável,pôsemexecuçãooprojeto.Impregnaradeperfumeumpreciosoamuleto,queprendiaaocolar,quando,semserobservado,seencontravacomAsnath,e,então,buscavameiodefazê-laexaminara jóia,cujoaromaagiatãoviolentamentesobreamoça,queelasesentiamal,semsuspeitar,comoeranatural,qualaorigemdaindisposição.Mena, ele mesmo, também sofria idênticas consequências, cada vez que usava o amuleto, istoporque Ignorava qual a dosagem suficiente. Contudo, o projeto triunfou, Asnath cativou-seviolentamenteporele,visitouNeith,cadavezmais,e terminoupordeclararasuapaixão.Àvistadisso, Mena fez-lhe beber algumas gotas do líquido, para prendê-la definitivamente e tornarimpossívelumrecuo.

Emconsequênciadetalingestão,Asnathficougravementeindisposta,tevefebre,emisturouonomedeMenaatodasasfasesdasdivagações;porém,ajovemerobustanaturezavenceuoveneno,restandoapenasumairritaçãoexcessivaeumcegoamorpelooficial.

Roanteomaridoestavamdesolados:opensamentodedarasobrinhaaolibertinojogador,quetanto desprezavam, exasperava-os, e Asnath estava a tal ponto exaltada e rebelde a qualquerpersuasão,quetemiamumescândalo.Deresto,nemporuminstantesequertiveramIdéiadequeesse amor tivesse causa oculta, e uma única pessoa disso teve desconfiança: Roma.O langor deAsnathmescladodesuperexcitação, lembravaoestadodeNeith,emuitasvezessurpreenderaemMenaumolhar estranhamente inflamadoe olhosperturbados, semelhantes aosde ébrio, embora

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sabendoqueooficialnãopodiaembebedar-seassimsubitaneamente,nadatendobebido.

Emvãoomoçosacerdoteobservouefezperguntasàjovem:nadasurpreendeudedecisivo,easrespostasdeAsnathconvenceram-nodequejamaislhehaviamsidooferecidasrosasvermelhas,edequetalamornãoevocavacomelasqualquerfatoparticular.

Algum tempo depois, Mena fez o seu pedido, e, se bem que a contragosto, foi aceito erecebido,naqualidadedenoivo,nacasadochefedasguardas,eocasamentomarcadoparatrêssemanasapartirdessadata.Mena,noaugedotriunfo,azafamou-seativamenteemprepararumaprincipescaresidênciaparareceberalindaesposa;anchodeorgulho,atiravaouroamancheiaseaarrogância não tinha limites; experimentava uma satisfação toda particular com a cólera, apenasdisfarçada,deChnumhotepedaesposa.

Semembargodabrilhantevitóriadetodososseusprojetos,avaidadesuperexcitadasonhavanovos triunfos, e, querendo assinalar o matrimônio com algo de especial e grandioso, buscandoalgumainvençãoadequadaaessefim,teveadesastradaidéiadefecharasuavidadesolteirocomváriasconquistasforadocomum.Nãopossuíaeleoirresistívelmeiodefazer-seamar?Equeciúmesdespertaria a sua boa sorte, se as belasmulheres de Tebas se apaixonassem por ele,mesmo navésperadocasamento,esuspirassemaseuspés,abandonandotraidoramentemaridoseamantes!

Talprojetoarrebatou-o,positivamente,e,semmesmopensarnaspossíveisconsequênciasdetãoinfameabusodeconfiança,dirigiu-seàcasadeTuaá,quehaviaescolhido,nãoparaconfidente,masparainstrumentodesuasfuturasconquistasamorosas.

Após amistosa conversação, Mena declarou à viúva ter ido solicitar-lhe o grande favor deorganizar em sua casa uma grande festa, custeada por ele, e que ali reuniria uma vintena demulheresdesignadasporele.

—Quero, uma última vez, em plena liberdade, estar em festa, com pessoas amáveis, quesempremetestemunharammuitabondade,eofereceracadaumadelasumalembrança—disse,arir.Nãoaspossoconvidarparaminhacasa,emaistardetereimesmodemanobrarcomosciúmesdeAsnath,quesãoferozes.

—Issoquerdizerque,poralgumtempo,seremosprivadosda tuaconvivência,porque,semdúvida, a tua futura nos detesta, tanto quanto essa delambida de Roant — respondeu Tuaá,alegremente.Nãoimporta!Aquiesçoaoteupedidoereunireiminhasamigas,emtuahonra,mas,aminhasexpensas.

Mena protestou, e, após discutirem, ficou assentado que o oficial ofereceria as frutas e ovinho, e Tuaá o restante necessário para o festim, que foi marcado para a antevéspera docasamento.

Nodiadareunião,Menaremeteudesdecedoasprovisõescombinadas,mas,fechadonasuacâmara,preparousozinhoabebidaenfeitiçadaquelhedeviaproporcionarumtriunfo,comoqualjáse deleitava por antecipação. Decidira oferecer a Tuaá magnífica ânfora esmaltada, cujas alças,ornamentosetampa(emformadecabeçadebode)eramdeouro;àsoutrasmulheres,emnúmerode vinte duas, Nefert inclusive, copos ricamente incrustados. Fez encher a ânfora do mais carovinhoeneladespejou,sempestanejar,umaquantidadedoperigosolíquidoqueteriabastadoparaHoremseb gastar em suas orgias durante um mês. O vinho fervilhou por momentos, pareceuenegrecer,mas,aotermodeumminuto,retomouaprimitivacoloraçãoeaparência;oaroma,suaveporématordoante,queimediatamenteseespalharanoambienteecausaraumruborflamejantenasfacesdeMena,evaporou-serápido.Perfeitamentesatisfeito,trauteandolicenciosacanção,repôsofrasco,quasevazio,nacaixinhaondeoescondia.

Chegando à casa de Tuaá, encontrou todos reunidos. As frívolas e lindas criaturas, dereputaçãoumtantoesfolada,frequentadorasdaviúva,formavamumenxamebrilhanteeenfeitado,querodeouoheróidafesta,duplamenteherói,porqueeraoúnicohomempresente.

Palestrou-sealegremente,e,depois,foramparaamesa.Aomeiodorepasto,Menavoltou-separa a dona da casa e pediu desse entrada aos escravos que aguardavam fora com as dádivasdestinadasaosconvivas.Avistadaadmirávelânforaedoscoposmagníficos,aprópriaTuaáficoumaravilhada,eumverdadeirocorodelouvoreselevou-separagabaragenerosidadedodoador.

Menarecusouosagradecimentos,comamávelmodéstia,e,pegandoaânfora,fezelemesmoogiroemtornodamesa,enchendooscopos,queasmulheresesvaziaramdeumavez,àsuasaúde.Emseguida,voltouaoseulugareobservou,comastutacuriosidade,oqueiaacontecer.

Bem pronto, a jovialidade tomou estranho colorido de animação: rubores súbitos correram

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pelorostoepescoçodasmulheres,olharesardenteseapaixonadosfirmaram-sesobreooficial,que,extremamente divertido e fingindo indiferença, aguardava o momento em que todas seprosternariam a seus pés. Saboreando de antemão esse triunfo, considerava-se um segundoHoremsebemseupaláciodeMênfis.

Apesardaastúciaedaduplicidadequedesenvolviaporvezes,quandoasuarapacidadeestavaemcausa,Menaeraumhomemcurtoedeinconcebívelcegueiranavaidade.Semdúvida,fosseelehomem de inteligência, não teria jogado imprudentemente com o terrível veneno, cujo emprego,quandonãoestritamentedosado,acarretava,infalíveis,aloucuraouamorte.Semtalcegueira,ter-se-ia amedrontado ante a cor violácea que tingia as faces das vítimas, com o brilho sinistro dosolhos, com os tremores convulsivos que lhes sacudiam os corpos, com os olhares, ávidos eselvagens,queaquelasbelasaleonadasfirmavamsobreele,curvadassobresimesmas,àmaneiradostigresquandoseaprestamparasaltar.

Mas,couraçadonasuaorgulhosaestupidez,nãoenxergava,nemcompreendiacoisaalguma,quando,subitamente,doisbraçosfecharam-sesobreoseupescoço,emumnóférreo,eumhálitodefogo queimou-lhe a face: era Nefert, que, olhos injetados de sangue, espumando na boca, seprensava contra ele. Tomado de assombro e de contrariedade, quis repeli-la, mas, como quehidrófoba,elamaisseagarrouelheferrouosdentesnorosto.Menagritou,debateu-se,quisfugir,porém já outros braços enlaçavam-lhe o talhe e as pernas; de todos os lados, corpos flexíveiscomprimiam-no,semblanteshorrendamentecrispados,debestialexpressão,inclinavam-separaeleelhemetiamasunhasnacarne,comuivosdeanimalferoz.Menaerarobusto,oterrordecuplicava-lhe as forças e resistiu, por instantes, ao furioso ataquedamatilha embravecida, que elemesmohaviaexcitado.

Calcado de todos os lados, de pernas para cima, meio sem respiração, rolou por terra,retorcendo-seporentregritosatrozes,nomeiodapequenaturbahumanaquerugiaemseuredor.

Todaestacenadesenrolara-setãorapidamente,queosescravos,petrificados,nãosabiamquepensar.Afinal,algunshomens,dosmaiscorajosos, tentaramdesprenderMena,mas,atacadosporsuavezpelasloucasfuriosas,tombaramcobertosdemordeduras,oufugiramespavoridos.Gritosealarido encheram todo o prédio, e, não sabendo mais que fazer, dois dos servos, desvairados,correramàcasadeRoant,queeraamaispróxima.

Roma estava precisamente palestrando com a irmã e Chnumhotep, que chegara do palácioreal. À notícia do inexplicável acontecimento, os dois homens correram para o carro, ainda nãodesatrelado,dochefedasguardas,e,atodaabrida,rumaramparaaresidênciadeTuaá.Compactamultidão já atravancava os acessos da morada nefasta, mas, avistando Chnumhotep e o jovemsacerdote,ambosconhecidosemTebas,oscircunstantesrecuarameabrirampassagemaosrecém-vindos.

Guiados pelo velho intendente, que, em voz entrecortada, referia o quanto soubera dacatástrofe, Roma e seu companheiro penetraram na sala do festim, transformada tãoinopinadamenteemcampodecarnagem.

Espetáculohorrorosoecomovedorofereceu-seaseusolhares:sobreochão,juncadodecacosda louça, nomeio de poças de vinho e sangue, retorciam-se, em atrozes dores ou convulsões deagonia,escravosemulherescomasvestesdespedaçadas,semblantesdescompostos,enchendooarcomgemidos.Juntodamesa,ummontedecorposmovia-sefracamente.

Mudo de horror, Roma avizinhou-se de uma jovem que fora amiga de Noferura e estiveraalgumasvezesemsuacasa.Agachada,olhos foradasórbitas, apertandoacabeçacomambasasmãos, a infortunada criatura vomitava jactos de sangue negro e espuma, mas, quando o jovemsacerdote se curvou para ela, cheio de piedade, no intuito de erguê-la, soltou uma exclamação,recuando:oterrívelaromatãoconhecido;agora,porém,acreenauseantecomojamaisconhecera,feriu-lheoolfato.

—Água!Água!—gritou,correndoparaasaídaearrastandoChnumhotep.

Imediatamente,expediuumrecadoaotemplodeAmon,chamandoosmédicos,eumsegundomensageiroparavirforçaarmadaecercaracasa.

Sobadireçãodeambos,baldesdeágua foramderramados sobreoscorposemmonteeasoutrasvítimas,e,graçasaesserecurso,foipossívelsepararosinfortunados,presosunsaosoutros.Algunsjaziammortos,outrosmoribundos,e,quantoaMena,estavahorríveldever:ocorpocobertodeferimentosemordeduras;ocadáverdeNefertpermaneciaaferradoaele,àalturadaface,comosdentesconvulsivamentecerrados.Nenhumadasmulheressobreviveuatéchegaremosmédicos,eos sete escravos mordidos expiraram algumas horas mais tarde, apresentando sintomas de

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hidrofobia: ao todo, trinta e uma vítimas, vinte e três mulheres e oito homens, sucumbidos nosinistrobanquete,graçasàincrívelestupidezdeMenaecujocustopagoucomaprópriavida.

OinquéritoconstatouqueovinhofornecidopelooficialestavaenvenenadoequeotóxicoeraomesmodequeseserviaHoremseb;umabusca,levadaaefeitonoaposentodeMena,fezdescobrirofrascovermelho,queÍsisreconheceu,porhaverpertencidoaopríncipe.

Mas,porqueacasoovenenodonigromantedeMênfiscaíraempoderdooficial?Istoficouemmistério.

NOTADOAUTOR—AevoluçãoascensionaldoEspíritofaz-selentamente.Arrastadopelosmauspendores,atordoadopelasInevitáveisconsequênciasdassuas faltas,permaneceporvezesestacionárioduranteséculos,criando,porseuorgulhoeegoísmo,nuvensdeInimigos.

O Espírito Mena, do qual acabo de descrever o lastimável fim, está neste caso. Os que leram meus livros, publicadosanteriormente,Jáoreencontraram:Radamés,ocondutordocarrodoFaraóMerneftah;Dafné,emHerculanum;CourtdeRabenau, na Abadia dos Beneditinos, esclarecem suficientemente as fases que tem percorrido, e cujo resultado seresumirá na narrativa O Judas Moderno, que tenciono publicar. Neste será reencontrado Mena, em sua existênciacontemporânea,sobonomedeAlexandreHasenfeldt.Inteligênciaestreitaemesquinha,coraçãoingratoeávido,penosaslutasesperam-nonoporvir,paratorná-loaptoasubiraescaladadoprogressoespiritual.

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V

AFESTADONILOAmortedeMenaedasvítimasdesuaimprudênciateveimensarepercussãoemTebas,eas

mais diversas murmurações circularam sobre o acontecimento; mas a verdade verdadeira só foiconhecida de poucas pessoas, porque a rainha e os sacerdotes julgaram ser preciso pôr fim aoescândaloprovocadoporHoremseb,enãoressuscitarnovamentealembrançadosseuscrimes.

Acreditou-segeralmentequeovinhoouosalimentostinhamsidoenvenenadosemvirtudedelamentável e inexplicado acidente. Depois, novos acontecimentos fizeram esquecer a lúgubrehistória.

Neithtambémconheceuestaúltimacitadaversão,evaledizerqueacolheuanotíciadamortedoirmãocombastantecalma,pois,desdeoincidentedapenhoradamúmiapaterna,Menaselhetornaraantipático;desaprovava-lhea conduta frívola, asdissipações, e viunaquelamorte trágicacomoqueumapuniçãomerecida.

A jovem viúva de Sargon estava agora completamente restabelecida, ao menos no físico;recobrara o frescor, toda a elasticidade da juventude; seu sono e apetite não deixavam nada adesejar; mas, no moral, sofrerá estranha metamorfose: tanto Neith fora impulsiva, teimosa,caprichosa e exaltada, quanto agora era dócil, apática e silenciosa. Durante horas, sonhava,estendidanumleitoderepouso:nãoestavatriste,seubrilhanteolharnãoespelhavapreocupaçãoalguma;apenas,eraindiferenteatudo,epareciaagirmaquinalmente.

Roma visitava-a assiduamente, rodeando-a, tal qual outrora, de cuidados e de amor. AdistraídabenevolênciaqueNeith lhe testemunhavanãodesencorajavaomoçosacerdote:atribuíaaosefeitosdovenenoenfeitiçanteaquelaapatiamoral,eporquejamaiselapronunciavaonomedeHoremseb,nemdelepediainformações,Romaesperavaqueotempo,osupremoremédio,apagariaasrecordaçõesnefastas,equeemseusbraçosNeith,finalmente,reconquistariaafelicidade.

Estaesperançaera,noíntimodocoração,partilhadapelarainha,deinícioseriamenteinquietapela transformaçãodeNeith;auniãocomo jovemebeloRoma,quetinhasidooprimeiroeveroamor,devia constituir omelhor curativoparaa suaalmadolorida; sobaégidede tãopuroe fielafeto,eladeviarenascerparaatotalventura.

HatasuatribuíaamiraculosacuradeNeithàsprecesfervorosasdeRoma,e,desdeodiaemqueosurpreenderajuntodaagonizante,testemunhava-lheespecialbenevolência.Recompensandoosserviçosprestadosporele,quandodosinconcebíveisenvenenamentosproduzidosemTebaspelasrosasenfeitiçadas,concedeu-lheelevadocargonopalácio,edistinguia-oemtodasasocasiões,peloque ninguém duvidou de que estes favores evidentes do Faraó pressagiavam a Roma brilhantecarreira.

Certodia,aproximadamenteoitomesesdepoisdamortedo feiticeiro,arainha,regressandodeumacerimôniareligiosa, retirou-separaosaposentos,a fimderepousar.Despediu todos,comexceçãodeNeith,e,quandoficaramasós,abraçou-aedisse,afetuosamente:

— Desde há muito, minha querida filha, desejo falar-te seriamente: vejo-te restabelecida,formosa, com belas cores, tal qual outrora, e, apesar disso, teu coração parece deserto, tuajovialidadedesapareceu.Creioquesóumverdadeiroamorenovosdeverespoderãodarforçaàtuafatigadaalma.

— Queres que me case, mas com quem? — perguntou Neith, estremecendo e firmando,ansiosamente,osolhosnorostodarainha.

— Sim, esse é meu desejo, porém, se consentires nisso e se teu coração aprovar minhaescolha. Mas, ouve o que me inspirou esse pensamento: durante a tua recente enfermidade,acreditamos num fim fatal, pois foras considerada agonizante, e, tendo-me Amenefta prevenidodisso, fui, comodesesperonaalma,velaros teusderradeiros instantes.Aoentrar, viumhomemajoelhadoà cabeceirado teu leito: orava, como jamais euhavia vistoorar.Semelhante invocaçãodeviachegaraotronodosImortais,eapresençadadivindadeiluminavaafisionomiadosuplicante;umsentimentodesconhecidotocou-meemefezcompreenderqueossacrifícioseasoferendasnãosão sempre dádivas suficientes, e que o nosso coração, sofredor e cheio de humildade, é o quedevemosdeporaospésdosdeuses,sequeremosserouvidos...E,então,pelaprimeiravez,tambémeuatraí,súplice,adivindade,implorando-a.OhomemqueassimoravaeraRoma,e,quandoambos

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rogávamosaRaconceder-teavida,ummilagreoperou-se:oteuestadodeagoniatransformou-seembenfazejosono,e,aoregressar,Ameneftadeclarouqueestavassalva.Foi,então,que-prometiaojovemsacerdoteque,seterestabelecesseseteucoraçãoconfirmasseminhapalavra,eutefariasuaesposa.

Durante esta narrativa, um refulgente rubor inundara as faces de Neith, e seus olhosbrilharamtalqualemoutrostempos.

—AcreditasqueRomaaindameama,eque,unindo-seamim,seráfeliz?

—Éminhaconvicção;seuafetopassoupelasmaisdurasprovas,equemseriamaisdignodeti, do que o homem cujo amor te arrancou à inexorável morte? Contudo, minha querida, não teconsideres,demodoalgum,ligadapelasminhaspalavras.Jáumavezerreimeualvo,pensandodar-teventura:éslivre,esomenteseoamas,sedesejasestaunião,euporeiatuamãozinhanamãodeRoma.

Neith ficou pensativa por alguns momentos; depois, curvando-se para a mão da rainha,murmurou:

—Tuavontadeéadoteupovo,tuasabedoriaguiatodooEgito,desdeoprimeiroaoúltimo;sótua filha buscaria uma outra autoridade? Seja feito como dizes: que a vida por ele salva a elepertença!

***

Tal qual o dia emque começouanossanarrativa, Tebas festejava a enchentedoNilo: comexcepcional abundância, as benfazejas águas inundavam os campos e enchiam, até às bordas, osnumerososcanaisquecortavamemtodosossentidosavastacapital.Aparentemente,nada,desdeentão,haviamudado:talqualumquinquênioantes,umaalegreeenfeitadamultidãoatopetavaasruaseocais,e,juntodalargaescadariadegranito,aflotilhadeaparatoesperava,paraconduziraotemploarainhaeseuséquito.

Semdemora,apareceuocortejo,eHatasutomoulugaremsuabarca.EntreosportadoresdoslequesqueaseguiamestavaRoma,elevadoaessaaltadignidadeporocasiãodoseumatrimôniocomafavoritadoFaraó.

Das embarcações mais notáveis que se juntaram à procissão real, notava-se uma ampla,magnificamente ornada, movida por possantes remeiros, ricamente vestidos, e ocupada por seispessoas.OslugaresdehonraforamreservadosparaNeitheRoant;“vis-à-vis”aelas,Keniamuneaesposa;depois,Asnath, recentementenoivadeAssa (o filhomais velhodeSatati), ao ladodeste.Todosconversavamalegremente;apenasNeithpermaneciacaladae,emsombriasmiragens,olhavaoriocoalhadodecentenasdeembarcações;emseusatavios,cobertade jóias,a jovemesposadeRomaestavaadmiravelmenteformosa,masdenovoemagreceraeempalidecera,umarugaduraeamargavincava-lheapequeninaboca,e,soba friacalmados traçosedoolhar,pareciaescondersurdairritação.

Neith pensava no passado, na solenidade, igual àquela, a que assistira um lustro antes:Hartatef, então, a perseguia com obstinado amor, enciumando Keniamun, que ela julgava amar;agora,Hartatefestavamorto,Mena também,e tantosoutros,um—principalmente—cujonomenuncapronunciavaedequem ignoravao fimque tiveraeque, semdúvida,pereceraporalgumaafrontosa morte. Ela mesma quanto suportara, desde aquela festa do Nilo em que, descuidada,caprichosa e tagarela, havia desdenhado o tenaz adorador e sonhara desposar Keniamun, agoracasadocomoutra!Parecia-lhehaverdecorridoumaeternidade,queenvelheceraequequadrosdelongínquopassadoestavamdesfilandoalidiantedoseuespírito.

— Em que devaneias tu, Neith? — indagou Keniamun, vendo-a suspirar e inclinando-se,jovialmente,paraela.

Ainterrogadaestremeceuecontestou,comumpálidosorriso:

—PensavaemtodasastransformaçõesverificadasdesdeaenchentedoNiloquefestejamosháumquinquênio:recordavaque,então,Hartatefnosconduziaemsuabarca;nósteencontramos,Keniamun,eemseguidaTuaáeNefert,quequasefizemosnaufragarecarregaremMenacomelas.TodosquatrojádesceramaoAmenti...Poisbem:eumeditavasobreopoucotempoqueénecessárioparaaniquilartantasvidas,oudestruiruma,comoaconteceucomaminha!

—Tunãopensasnoquedizes,enoquepensariaRoma,seteouvisse—comentouRoant,emtomdeseveracensura.

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—Romanãoignoraistoquepenso;elecompreendequeminhavidaestádestruída,eencaraocasocomcalma—respondeu,supercíliosfranzidos.Elemecondenaaperderapaciência,efaztãopoucocasodemim,quetenhorazãodecrerquelamentaseucasamento—concluiu,tãobaixo,quesóaamigaaouviu.

Notandoocursoqueaconversaçãotomava,Keniamunvoltara-se,entabulandoálacrepalestracomosoutroscompanheiros;todavia,seufinoouvidoapanhouarespostaquemurmuraraRoant:

— Tu não crês no que dizes, Neith; tu própria repeles Roma, e, sem compaixão, o tornasinfeliz.Mereceuissopeloseufielamor?Porumhomemdoseuvalor,nãovalefazeresumesforçoparateergueres,parasacudiressaapatia,essamolezadealmaquetecorrói?Temumpoucodeboa-vontadequeseja,renunciaàsquimerasmalsãsesemobjetivo,buscaconvivênciaedistrações,eopassado seapagará.Aexistêncianão semostra radiosadiantede ti?Recuperastea saúde, teuesposo, cumulado de honrarias pelo Faraó, eleva-te a uma altura digna de ti, ele te ama... e turecusasventuraeamor!

Neith voltou-se, sem responder, e, durante o resto do passeio, fechou-se num mutismoobstinado;mas,quandoretomaramocaminhodolar,tornouàcunhadaedisse-lhe,taciturna:

—Peço-te,Roant,quemeconduzasàminhacasa,sinto-mefatigadaeligeiramenteindisposta;escusa-mepornãotomarpartenafestaquedás.

—De novo te distancias e foges dos teus — observou, descontente, a esposa do chefe dasguardas.QuediráRomanãoteencontrando,aoregressardepalácio?

OslábiosdeNeithtremeramnervosamente.

—Nada,eporquejamaisdiznada,talveznemseapercebadaminhaausência!

—Nãocompreendocoisaalgumadoteuazedume,enãopossocrerquetehajatratadocomcólera—observouRoant,surpresacomoacerbotom.

Não recebendo resposta, calou, e, quinze minutos mais tarde, a barca detinha-se junto daescadariadopaláciodeSargon.Neithdesceu,ajudadaporKeniamun,saudouatodoscomacenodemão,erumouapressadaparaosseusaposentos.

Comimpaciêncianervosa,desembaraçou-sedasjóiasqueaadornavam,dapesadavestimentabordada,do“claft”quepareciaapertar-lheatesta,e,enfiandoligeirovestidodelinho,envolveu-senumvéudegaze,evoltouao terraço,ondeseestendeunum leitode repouso,abandonando-seaprofundodevaneio.

Pelacentésimavez,tentava,comdolorosatenacidade,escrutarosseusprópriossentimentos,e julgar de sua situação. E, ainda uma repetida vez, pungente sensação de isolamento e deabandonofechou-lheocoraçãoefezdescerpelasfacesalgumassilenciosaslágrimas.Haviaapenasseis meses que casara e já a felicidade lhe fugira. Mas, podia ela queixar-se? A consciênciarespondia: “não”! E, com profundo desgosto, dizia a si mesma que se comportava mal; estava,porém, aclimatada àquela negligência, àquela apatia, comprazia-se na indiferença. Acolhera comindolentefriezaaapaixonadaadoraçãodojovemesposo,suportava-lheoamorcomosefossetributoobrigatório,retribuindotudocombenevolênciamorna,atéqueRoma,profundamentemelindrado,desistiu,abandonando-aaelaprópria,nãomaislheimpondoaconvivência,nematernura.

Esse isolamento despertou-a; algo da antiga Neith nela se agitou; o espírito de oposiçãoergueu a grimpa, primeiramente, e depois lhe subiu ao cérebro; Roma, o dócil escravo, ousavarevoltar-se, fugir-lhe,comdesdéme indiferença!Subitamente,desejouoamorquemenosprezara,mas,obravoedesmesuradoorgulho,quedominavatodososoutrossentimentos,soprava-lhe:

—“Irásmendigarumamorqueeleretira,etalvezextinto?Nunca!”

Comglacialfriezaafastouomarido,cobrindocomtriplovéuovaziodocoração,anecessidadede afeto que se reanimara... E, com verdadeira paixão, voltou a sonhar com Horemseb e com otempo que passara junto dele. No entanto, não mais amava o príncipe, sua lembrança nãodespertavaaperturbaçãoentorpecente,nãodesejavavê-lo,esomenteaincertezaquantoaofimdobruxo por vezes lhe torturava a alma. Mas, à medida que o passado empalidecia e apagava, oprimitivoamorpelojovemsacerdoterenascia,eaconvicçãodequeperderaoafetodomarido,dequedenovooporvirestavadestruído,tornava-lheodiosaavida.

Aopensarnohumilhantepoucocasocomqueoesposoatratava,ruborepalidezalternavam-senasfacesdeNeith.Aindanessemesmodia,Romanãovierasaberporquedeixaraeladeassistir

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àfestadeRoant.Deixara-seficarnobanquete,quandoelapodiaestardoente,tendoatéditoquesesentiaindisposta.Comasnarinastrepidando,ergueu-se,emandouquelheservissemumarefeição.Todavia, não comeu quase nada: cólera e orgulho ferido sufocavam-na. Regressando ao terraço,retomouahabitualdistração: sonhar comHoremseb,procurando ressuscitaromomentoemque,nessemesmoterraço,eleviera,fascinara-acomoolharealevaraemsuabarca.

Umruídoderamagemesvaneceubruscamentetodosessesquadrosdopassado,e, instantesapós, firmes e ágeis passos subiram a escada, e a alta e esbelta estatura de Roma apareceu naentrada do terraço, iluminado pelo sol poente. Avistando a esposa, parou, e, depois de curtahesitação,aproximou-se,saudando-anumacenodemão,efoidebruçar-senabalaustrada.

NeithcorresponderaporumaInclinaçãodacabeça.Osilênciofez-se.Romacontemplavaoriopalhetado de rubis de luz espalhados pelo sol cadente; ela, deixando que o olhar passeasse pelapessoadomarido,cujoesplêndidotrajedecerimôniasrealçavaobelosemblante.

—Nãoteconstrangeaminhapresença?—indagouele,voltando-separaNeith,comsorrisoligeiramenteirônico.

—Poderiadirigir-teigualpergunta,senãoestivessepersuadidadequeminhapresençateétãototalmenteindiferente,quenãoanotassequer.Nossauniãofoiumequívoco:eunãodeviaterligadominhaexistênciadestruídaàtuavidacheiadevigoredeaspiraçõesdefuturo.Quantoati,teu amor de outrora degenerou em hábito; teu capricho, uma vez satisfeito, e meus olhosdesiludidos,oabismoabriu-seentreambos,eaconvicçãodestedeplorávelerroesmaga-nos.

Romafirmou-seemirouajovemmulher,comolharseveroeprofundo:

—Sim, houve equívoco, mas apenas de minha parte: acreditei que, com a saúde do corpo,retornasse a da alma; tive por impossível que a memória abominável de um criminoso, quedesprezoutoda lei,escarneceude todosentimentohumano, tornar-se-ia ídoloda tuaalma.Existealgumultrajequetenãohajafeitosofrer?Mulherdeestirpe,queés,eletesequestroueteveporescrava;cominfamefeitiço,inspirou-teumapaixãovil,quetedesconsiderouantetodooEgito;teuolhar,puroevirginal,eleoenlodoucomaexibiçãodehorroresquefariamtremerumacortesã!Etodasestasreminiscênciasnãorevoltamatuadignidadefeminina?Teuorgulho, tãosensívelparacomigo, emudecequando se tratadele, enão tensumpensamentodepesaroudegratidãoparaSargon,oin-fortunadohomemquedestruíste,eque,apesardisso,sacrificouavidaparalibertar-tedevergonhosaescravidão.Sondaatuaconsciência,Neith,antesdemeacusares:enquantoestivestedoente,tivepaciênciaeesperei,atribuindoaoefeitodovenenoteutristeestadodealma;nãoposso,contudo, ser eternamente cego... Como devo interpretar esta indiferença, esses inacabadosdevaneios,afugaatodasasdistrações,àsreuniõesdefamília?Mesmosofrendoocoração,minhadignidadedehomemproíbe-meesmolarumamorquesevotaobstinadamenteaumserdesprezível;nãopossosuportarparasempreahumilhaçãodeserapenastoleradojuntodeti,edevoabandonar-teatimesma.Oabismodequefalaséobratua,masoteuazedumeéinjusto;jamaisfalteicomoscuidadosquetedevo,esenãopossomaisserumternoesposo,permaneçoteuamigoeprotetor,sempre pronto a amparar-te, assistir, se enfermares, mesmo a distrair-te, se de tal sentiresnecessidade.Sónãotepossoimporaminhapresença!

Àmedidaqueele falava,mortalpaloredepoisvermelhidãoardentealternaram-senomóbilrosto de Neith: tudo quanto dissera o marido não era verdade? A sua lembrança vieram ostratamentoshumilhantesquesofreráemMênfis;recordouasásperasrecusasdeHoremsebemlevá-la empasseiopeloNilo, a ordemdeamarrá-la, como se fosseumanimal, para forçá-la a olhar aabominávelorgiaàqualsenegavaassistir,eosisolamentoscomquepuniacadaumadastentativasderevolta,forçando-a,peloveneno,aimplorar,dejoelhos,operdão.

Todaadesesperadafúriaquerecalcara,acordou,naquelealtaneiroorgulhodajovemmulher...Respirandoacusto,comoquecrispouasmãosdeencontroaoseio.

— Que tens, Neith? — perguntou Roma, que lhe notara, inquieto, a súbita transformação.Calma-te,pobrecriança,eesqueceminhasacrespalavras,acrescentou,pondo-lheamãonafronte.

—Tuaspalavrassãoverdadeiras,merecidas—murmurouela,estremecendo.Mas,dize-meaverdade sobre um ponto obscuro para mim: pela tua honra, seja qual for essa verdade, eu teacreditarei.Queéfeitodele?

—Aindaele,sempreele—disseRoma,voltando-se,comtristeza.Poisbem,ficasabendo,umavezqueodesejas:morreu,foiencontradojáfrio,tendopostofimàcriminosavidacomumvenenoquelhehaviaslevado.Tuestavasagonizante,pois,semdúvida,elequismatar-teigualmente,mas,porfelizacaso,fostesalvadamorte.Agora,tudosabes,e,semeestimas,nuncapronuncies,diantedemim,onomedomaldito,quetambémdestruiuaminhavida.

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—Morto!Tudo terminou!Nuncamais reaparecerá!—balbuciouNeith, respirandoaplenospulmões. Oh! louvados sejam os deuses! Perdoa-me Roma, restitui-me teu amor — acrescentou,atirando-se impetuosaaopescoçodomarido.Queroapagardemeucoração todoessepassado,eamar-te,unicamenteati,quejamaiszombastedaminhafraqueza,cujoamorsempremeperdoou.Mas,podescrer-meainda,Roma,eajudar-meaencontraraforçadeviver,detornar-medignadoteuafeto?

Umatorrentedeprantoimpediu-adeprosseguir.

—Podes duvidar de que tudo perdoe e tudo esqueça, desde que tu me és restituída, e tuaalma,libertadasombrafatalqueaobscurecia,minhaqueridaesposa?—murmurouele,abraçando-acomamor.

Sentaram-se no leito de repouso, e, em íntima conversação, expandiram os corações tãolongamente separados. A noite chegara, depois o luar surgira, sem que os ditosos de tal seapercebessem. De repente, Neith estremeceu e retesou-se, tremente; seus olhos, dilatando-se,fixavam-senumângulodoterraço.

—Quetens?—interrogouele,pegando-lheamão.

— Não viste ali a sombra de um homem? Parecia rubro, da cor de sangue, e seus dedosestavamestendidosparamim.

—Assimtepareceu;porém,repara!Noterraçonãoháninguém.

Neithacolheu-seaele.

—Oh!Roma,dissestequeelemorreu,mas,ignorasquenãopodemorrer,porquetemcomeleavidaeterna?Seviessevingar-sedemim,vendoqueoesqueci!Nãoseiporque,tenhomedo!

Calma-te,querida,eolvidaessessonhosmalsãos;eleestábemmorto,enadamaisperturbaráteurepouso.Agora,vem,étempodeentraremcasa.

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VI

OVAMPIROA noite estava esplêndida; no céu azul-escuro, a Lua refulgia, com brilho desconhecido no

Ocidente,esuaargêntealuzinundavaaTebasadormecidaapósotrabalhododia,eapenasalgunsvagosrumoresdenotavamqueavidadocolossonuncaseextinguiatotalmente.

Nas imensas construções do templo de Amon-Ra reinava profundo silêncio, interrompidosomentepelos“alerta”dosvigilantes.Osservidoresdopotentedeusrepousavam.Nãodeviamestaraprestados, desde os albores da aurora, para saudar a sua vitoriosa renascença do reino dassombras?Emumpequenopátio, deserto e isolado,nos confinsdo sacroâmbito, os raios lunaresdesciam de cheio sobre alto e largomuro, pintado a cal. Súbito, nessa superfície de um brancoprateado,apareceuumagrandenódoacinzenta,depoisnegraeafinalvermelha.Essaexalaçãooufumo condensou-se, e a forma distinta de um homem, de elevado talhe, pareceu ressumbrar domuro.Seusgrandesolhosabertoseramternosefixos,terrificanteaexpressãodorosto,os lábiosentreabertos, narinas dilatadas. O estranho ser, de transparência vaporosa, mas de palpávelrealidade,deslizou,semtocarosolo,atravésdopátio,edesapareceunointeriordotemplo.Braçosestendidos para a frente, como se procurasse algo, o fantasmapassou rente pelos corredores, e,atravessando uma parede, penetrou numa sala onde dormiam muitas mulheres, sacerdotisas ecantorasdotemplo.

Ovultofantásticoparou,movendooslábios,asnarinasabertas,aspirandoavidamente,eseuvítreoolharpousouempequenoleito,iluminadoporumraiodaLua,quesefiltravaobliquamentedajanela,enoqualrepousavaumajovem,mergulhadaemprofundosono.Ofantasmadeslizouparaelae pendeu a cabeça para o peito da adormecida, que se agitou, e, bruscamente desperta, tentoudebater-se; mas, fascinada pelo terrível olhar que por um instante mergulhou no seu, recaiuimobilizada.Ofantasmaendireitou-se,parecendoatordoadoemaiscompacto,esemolharavítima,tornada lívida,comoseosangue lhehouvesse,atéaúltimagota,abandonadoasveias,elevou-sepesadamente, pareceu escorregar no raio lunar para fora da janela, e, alguns momentos após,eclipsou-se,absorvidopelomurodeondehaviasurgido.

NOTA DO AUTOR— O que vou escrever provocará, na mor parte dos meus leitores, um sorriso Irônico. Aqueles quedesejam apenas o enredo do romance passarão, sem ler, por esta dissertação: sei isso, porque Talar seriamente emvampirismo,emnossaépocapositiva,nãoé fácil tarefa.Aciênciaoficial,queapenasquerconheceroqueoseubisturipodesondar,negaaexistênciadosvampiros,eosfatosIndiscutíveis,ocorridosemdiferentespaíses,têmsidovituperados,negadosousilenciados,ebemassimoutros fenômenosnãomenospositivos,osquais,apesardisso,se impõem,poucoapouco,àatençãodossábios,porqueofatoéumargumentobrutal,quenãosepodeeternamentesuprimir.

Ditoisto,creiodomeudeverexplicar,omelhorquepossa,aosmeusleitoresespíritas,ofenômenodovampirismo,poucoaprofundado ainda, se bem que, sendo um fato natural, sempre existiu, tanto na época de Hatasu quanto nos temposmodernos.

Queocorpoevolui,setransformaeprogride,ebemassimaalma,éfatoconhecido.Nasdiversascondiçõesdostrêsreinos,e, enfim, na Humanidade, a alma desenvolve-se e progride; o perispírito, seu inseparável companheiro, adapta-se àsdiversascondições,conservandofielmenteemsi,atéàsmaisfinasnuanças,amarcadetodasastransformaçõessofridas.Nacomposiçãoquímicadoperispíritosãoencontradastodasassubstâncias,oreflexodetodososinstintos,qualidadesependoresdoserduranteasinúmerasexistênciasetransformaçõesatravésdomineral,dovegetal,doanimale,enfim,dohomem,osermaisperfeitoconhecidosobreaTerra.Oátomo indestrutível, lançadopela forçacriadorano turbilhãodoEspaço,e representandoapenasumprincípiovital, reveste-se imediatamentedeumduploetéreo, intermediárioentreacentelhadivinaeapartematerial—ocorpo.Esseintermediárioéoagenteprincipalquepõeemvibraçãoasfunçõesdaalma,istoé,avidadaalmaproduz-sepelavidamaterialsobreessetecido(invisívelparavós)constituídopormilharesdefiosluminososdeindescritíveltenuidade.

De igualmodoquenascélulasdacerasecondensaomel,assim,sobreoperispíritocondensam-seoselementosesuassubstanciascompostas. “Almavestidadear”,disseumgrandesábioepoetagentil,para indicaracomposiçãodonossocorpo,oqual,desdequeoEspíritodelesedesprende,épresadápodridãoesedecompõeemseuselementosprimitivos.Umaregra,semexceção,estipulaquedepoisdaalmavemoperispírito,depoisdoperispíritoocorpo,istoé,assubstânciasquepodem,deacordocomimutávellei,aglomerar-sesobreotecidofluídico.

Assim,operispíritodeummoluscosópodeatrair,nasuacondensaçãomaterial,substânciasgelatinosas,esomentepelotrabalhodavidaoseradquireeseapropriadenovasforcasdecalorelétrico,asquais,empróximacondensação,tornarãooperispíritodomoluscodeoutroraaptoaformarumcorpomaisperfeito.

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Faleinocalor,essegrandeeuniversalagentedetodaavida,aoqualquasesepodiadaronomedeDeus,tãopotenteéasua ação, e com o qual se depara em toda parte para onde se voltem os olhares. Em toda parte, efetivamente, onde océrebrodosábioesquadrinha,eleencontraocalor,a fontedaVida:estápostonasentranhasdaTerraeencobertonasnuvens. O calor funde todamatéria, amalgama, solda demaneira Indestrutível; o calor une a alma àmatéria e dela asepara;esseeloéotraçoluminosovisívelpelossonâmbulosclarividentes.

OgrandecalorqueimatantoquantoofogoeofrioIntensoproduzamesmasensaçãodequeimadura;quantomaiscalorexiste na cratera perispiritual,mais desenvolvidos a alma e o corpo. Tudo que é pesado, preguiçoso, carece de calor epertenceaumgrau inferiordedesenvolvimento; todoser,emesmotodoplaneta,mais trabalhadopelocalorvivificante,distingue-seporumgrausuperiordeatividadeededesenvolvimentointelectual.Enfim,aperfeiçãonãoseresume,emsi,apenasnaconcepçãodequeoEspírito,desembaraçadodetodasubstânciamaterial,tornaaserfaúlhapuraeregressaaofocodeondesaiu,cego,paraaeletornar,Inteligente,eserviraoCriador,queseseparadenós,porémJamaisrompeoeloquenosligaaEleeque,atravésdetodosossofrimentosevicissitudesdadepuração,deveconduzir-nos,cedooutarde,aessecentrodivino.

Essa longa viagem, através dos três reinos, deixa profundos sinais nos gostos, necessidades e Instintos do homem, serimperfeito, ainda bem próximo dessa animalidade que ele, no entanto, despreza, a ponto de lhe negar uma alma, umainteligência,umdireitoàsuaproteção.Équeoorgulhodepossuirumavontademenosrestrita,ummaislargohorizonte,maisamplitudeparaosvícios,sobeaocérebrodohomeme lhefazesquecerqueeleapenassubiuumdegraunaescalasocial da Criação, que ele foi o que são agora esses irmãos inferiores, e que, na embriaguez e na satisfação de seuprogresso,ohomem,tãoorgulhosodoseulivre-arbítrioedodomdapalavra,retrogradamuitasvezes—pelossentimentos— e pelos abusos, para mais baixo do que o bruto que ele menospreza. Sim, esquecido de todas as semelhanças deestrutura,denecessidadeedesentimentosqueoligamaindaetãoestreitamenteaoanimal,ohomemconsidera-sesenhorabsolutodeste,soberanoferozdessaspopulaçõesmudasesemdefesa,entreguesàsuamercê;ohomemabusacruelmentedosseusImagináriosdireitossobreesseirmãomaisnovo,porIssoqueaInteligênciadesteémaislimitadaeseusinstintosmaisacalmadospelasleisdaNatureza.

Tomemosalgunsexemplos:acrueza,eassimavoracidade,doanimaltempormetaasatisfaçãodeumanecessidadeouadefesa;umavezsaciadoouaoabrigodeumataque,elenãoprocuralutaalguma.Mas,vedeaquerefinamentosessesdoissentimentosconduziramohomem!Atorturafisicaemoral,aavidezinsaciável,enquantohouveralgoapilharemseuredor,sãoapanágiodohomem;eletambémImaginouatraição,amorteemmassaeoassassínio,enquantooanimallutacorpoacorpo;enfim,seapalavrafaltaaoanimal,paramentiredissimularopensamento,elenãotemmultoquesequeixardisso,epoucasvirtudesexistemsobreestemundoqueoorgulhososerhumanopossareclamarpordistinçãoexclusiva.

Semdúvida,oquevenhodedizerseaplicaàturbaque,cegadeorgulho,ImaginaserocentroeorematedaCriação,enãoàsalmasmaisdesenvolvidas,quereconhecemnaanimalidadeumafasedoseuprópriopassadoecondenamseveramentetodacrueldadesupérflua.

Voltandoaoassuntoqueespecialmentenosocupa, lembrareiaoleitornexistênciadeumanimalchamadovampiro,que,preferindoanoiteaodia,seatiraàsvacas,cavalosetambémaoshomens,seospodeatingir,elhessugaosangue.

Tendoemvistan tenacidadecomqueos Instintosdoanimal seconservamnohomem,estehábito, estanecessidadedesangue, permanece em estado latente na criatura, e se a educação, as circunstância, a compreensão domal nãolevarem o homem a dominar o instinto sanguinário, que ainda vibra no seu perispírito, a necessidade bestialdespontaecriaseresdogênerodossugadoresdesanguedaÍndia,osquaissãomuitoconhecidosparaquesepossanegarasuaexistência.Mas,ninguémtemprocuradoaprofundaroquepôdeinspiraraessaseitaoritoselvagemqueelaacobertacomummotivoreligioso,quandotalorigemtemraizemumestadoparticulardoperispírito,adquiridopeloseremsuasexistênciasvegetaiseanimais.

Emconsequênciadediferentescausas,taisoterror,comoçãomoral,certoveneno,asfixia,semelhantesserescaememumestado particular de letargia, com todas as aparências da morte, e são enterrados como se houvessem falecido. Umdespertaremcondiçõesnormaisnãoseproduzparaessasentidadesespeciais,eamorparteperece;mas,àsvezes,emcondiçõesfavoráveis,taiscadáveresaparentesaguardamapenasoclarãodaLuaparadespertar,sobainfluênciadasualuz,paraumasinistraatividade.Todosaquelescujoperispíritoconservaalgumadisposiçãoaovampirismosãolunáticose,multasvezes,sonâmbulosvidentes;sobapotenteinfluênciadaluzlunar,excepcionalestadoproduz-seneles,misturadelunatismoedesonambulismovidente,masemgraubemmaisextensoemaiselevado.

Todos os sentidos desses estranhos letárgicos são de uma acuidade extraordinária; ouvem, vêem, farejam a distanciasconsideráveis,eporqueocorpo,aindapresoaoperispírito,agenumacertamedidaeaintervalosmaisoumenoslongos,tem necessidade de se reabastecer, o vampiro entrega-se à pesquisa de uma vitima humana, cujo sangue quente,sobrecarregadodefluidovital,dar-lhe-áanutriçãoindispensávelàscondiçõesdeexistência,eaomesmotemposatisfaráosvelhosapetites.

Oataúdeeasparedesnãoservemdesgraçadamentedeobstáculoparaessefantasmahorrendoeperigoso,porqueparaeleaLua éumauxiliar: ela absorve opesodo corpo e odesmaterializa atéumgraude expansãoquepermite ao vampiroatravessarportas,muroseoutrascoisascompactas.

Meus leitores espíritas sabem, e numerosas sessões Já provaram à evidência, que a passagem da matéria através da

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matériaéumfato:ostransportesdefrutas,deflores,dediversosobjetos,emesmodeanimais,nãosãoraros,eissoemtodasascondiçõesdefiscalizaçãodesejáveis.Mas,porqueoeloindissolúvelligaostrêsreinoseohomem,tambémumaleiregeosfenômenos;oqueépossívelparaaflor,ofrutoouometal,épossíveligualmenteparaohomem,e,nascondiçõesdesejadas,podeoseucorpo,tãobemquantoumalaranjaouumacharuteira,atravessarparedes.

Deixando,pois,olugarondeestásepultada,ovampirosedirige,comInfalívelprecisão,aondeestáavitimaescolhida,daqual, graças aos aguçados sentidos, identifica, a distância, a idade, o sexo e a constituição; Jamais atacará velhos ouenfermos(salvoescassezabsolutadeJovensesãos).ChegadoJuntodapresa,ovampiroseabatesobreela,fascinando-acomoolhar,e,preferencialmente,procuraatingirocoraçãoparasugarosanguenafonte;mas,seavitimaestávestidadesvia-separaopescoço,quasesempredescoberto,abreaartériaesorvetodoosangue,amenosquesejaimpedido.Mas,sepercebeaproximaçãodeumvivo,foge(porquecompreendeperfeitamentequesuaaçãoécriminosa)nadireçãodeondeveio. Guiando-se e servindo do mesmo rastilho de luz, regressa ao lugar de onde saiu, tal qual o lunático retornainfalivelmente ao leito, se por nada for impedido. Então, se está suficientemente saciado, recai na imobilidade por umtempomaisoumenoslongo,atéque,emumanoitedeplenilúnio,recomeceahomicidaperegrinação.

Osvampiros femininos sãomais rarosdoqueosmasculinos,porque seusorganismos,menos robustos, sucumbemmaisfrequentemente;osvampiroshomensescolhemdepreferênciaparavitimasmulheresecrianças.Noscasosemque taisserestêmsidoIdentificados,oinstintopopularInspirouaidéiadedesenterraromortoIncriminadoecortar-lheacabeça,ou espetar o Inferior do corpo comum ferro embrasa.O processo é selvagem, Igual a todo ato Inspirado por paixõesdesenfreadas,mas,emprincipio,atingeameta,porque,umavezavariadoocorpodemodoirremediável,oslaçosqueoprendiamaoperispíritosãodestruídos,aletargiacessa,eaalma,eassimocorpo,retomamascondiçõesordinárias.Seaviolência não interrompe o estado letárgico, este pode prolongar-se por muito tempo, e o vampiro vegetará nessascondiçõesatéqueumacidentequalquervenhaadestrui-lo.

Nospaísesfrios,ovampirismoocorremultoraramente;nosmaisaproximadosdoEquador,naÍndiaprincipalmente,temsuaverdadeirapátria,terramisteriosaeestranhadaqualmultopoucosesondamosenigmas.Quemsuspeita,porexemplo,dequeexistemalimuitos vivosque se alimentam,quaseexclusivamente,da força vital de seresque subjugaramedosquaistodaaexistênciaseescoanumêxtaseembrutecido,dosquaistodasasfunçõesvitaise intelectuaissãosuspensas,porqueumoutrosenutredaforçaqueasdeviasustentar?Essespobresentessãoolhadoscomespantoedesdém,alvosdemotejos,masninguémdesconfiaque sejamas vitimasdumvampirismocultivadoporumacategoriadehomens, sábios,aliás.

Emtodasasdireções,ohomemesbarracommistérios,emmeiodosquaisperegrina,cego;todaanossaexistênciaéumaluta durante a qual buscamos, nas trevas, o porquê do passado, do presente e do porvir, e, entretanto, repelimosobstinadamenteachavedoenigmaquesenosoferecesobaformadediversosfenômenosinexplicados.

SomentequandoamuitoorgulhosaCiênciaseafastardoseuobstinadononpossumus, quandoabordar francamente oestudodasmisteriosasforçasdaalma,dasquaisomagnetismo,amediunidade,ohipnotismosãomínimaparte,quandosedesvendarem,poucoapouco,uhocultasleisqueregemoUniverso,tudosetornaráclaro,nãohaverámaismilagres,nemfeitiçarias,esimleisnaturaisefatosdelasdecorrentes.

Antesdeterminarestanotasobreovampirismo,direiaindaalgumaspalavrassobreosvampirosinconscientes,nãomuinumerosos,porémmenosrarosdoqueestesúltimosdescritos.Suaorigeméamesma,mas,nestes,oinstintovoraz,motivadopelacomposiçãodoseuperispírito,manifesta-seinconscientemente,porumfluidoacreedevorantequeexalam,eabsorveasforçasvitaisdosqueocercame,porassimdizer,osdevora.Taisseres,habitualmente,sãopequenos,secos,nervosos,deolharpenetrante,deatividadefebrile Incessante;emseuredortudosetornamesquinho, fraco,doentio,eapenaseles,vampiros,gozamsaúdeflorescente;mas,nãoselhespodeImputaramaladestruiçãodosseuspróximos,poisaforcadequefazemusoêInconsciente.

Horemsebmuito havia abusado do sangue humano para não superexcitar tudo quanto nelerestava de instinto animal; o veneno com o qual voluntariamente mergulhara em letargia tinhaimpedidoarupturados laçosdoperispírito,e,portodasestascircunstânciasreunidas,tornara-sevampiro.

Aestranhaeinexplicávelmortedajovemsacerdotisaexcitougrandeemoçãonotemplo,eessaemoção transformou-se em terror quando, na noite seguinte ao do amanhã, houve nova vítima.Destavez,foraafilhadeumsacerdote,eaIrmãdesta,despertadapeloabafadogritoqueouvira,enxergaraovultodeumhomemresvalarparaforadoaposento.

Asmaisseverasmedidasforamadotadasparaapanharoassassino,queassimousavaprofanarolugarsagrado,mas,avigilânciafoiineficaz,porque,aotermodedoisdias,umacriançadequatroanosdeidadeeumajovem,pertencentesambasafamíliasdemercadores,domiciliadosembairrodistante de Tebas, foram encontradas mortas, apresentando na altura do coração um ferimento,semelhanteamordedura,esemgotadesanguenoslívidoscorpos.Todaacidadesecomoveu,earainha,indignada,ordenouseveroinquérito,oqual,entretanto,nadaapurou:ocriminosocontinuouincógnito,supondo-sequehouvessefugido,porqueosassassíniosnãoserenovaram,

Apesardisso,osterroresnãocederam;ospaiseasmãestremiamporseusfilhos,tenrosou

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adultos, e as mulheres acreditavam-se igualmente ameaçadas pelo misterioso malfeitor. Roant,principalmente,tinhaoespíritoatingido,emalseanimavaaseparar-sedosdoisfilhos,velandoasnoitesjuntodeles,enenhumapersuasãodomaridoedaspessoasamigasconseguiatranquilizá-la.Umanoite,ochefedasguardas,queestavadeserviçonopalácioreal,ajustavaaocintoasarmas,aprestando-se para sair, e falava discretamente à esposa, que, pálida e inquieta, ajudava-o,repetindo:

—Oh!quantodetestoasnoitesquetensdepassarfora.decasa!Semti,operigoparece-memaispróximo,enãopossodefender-medopressentimentodequeumadesgraçaameaçaanossaNitétis!

—Minhaqueridamulher, sê razoávelenão teatormentescomquimeras:háquaseummêsque os atentados não se repetiram; sem dúvida, o facínora fugiu. Por que, de resto, procurariaprecisamenteNitétis?Porquematouumacriança?Talvezofizessepormeroacaso,esedesejanovavítimacontentar-se-á,porcerto,comaquelaquepossamaisfacilmenteapanhar.

Chnumhotepafivelouaespada,pôsocapacetepolidosobreosespessoscabelos,e,abraçandoRoant,acrescentou:

—Semeamas,serásmaiscalmaerepousarás.Poisqueascriançasdormemjuntodeti,quelhespoderáacontecer?

Após haver acompanhado omarido, tornou apressada ao quarto de dormir, que era grandepeça, de chão forrado com esteiras, de paredes pintadas e incrustadas, simulando tapetessuspensos;altaelargajaneladavaentradaaofrescorembalsamadodojardim,ealuzdoplenilúnioinundavaoaposentocomasuaprateadaclaridade.

Junto do leito, sobre uma camazinha improvisada, dormiam placidamente um menino deaproximadosquatroanoseumafilhinhadevinteequatromeses.Acercando-sesuavemente,ajovemmãelevantouovéudegazequeoscobriaecontemplou,amorosa,asgraciosasepequenascriaturascujoscorpos, rechonchudosedesnudos,porejavamsaúde.Premiuos lábiosnasaneladascabeçasdosdois inocenteseosrecobriucomotransparentetecido.E,meiotranquilizada,encaminhou-separaajanela,juntodaqualamplapoltronaconvidavaaodescanso.

Nãotendosono,eestandosoberbaanoite,osilênciotambémconvidavaadevaneios:sentou-se,apoiouospésnumescabelo,e, tirandouma florde lótusdegrande jarraesmaltada,postanodebruçadorda janela, cheirou-a, abandonando-se aospensamentos.Chnumhotep tinha razão: porqueenvenenarasuaexistênciatãoventurosa,tãocalma,comapreensõessemfundamento?Equalprobabilidadeparaumcriminoso,pormaisaudazquefosse,atacarafamíliadopoderosochefedasguardas, em cuja casa formigavam escravos, que ao menor rumor estariam a postos?Insensivelmente,esemquedetalseapercebesse,umpesadumeplúmbeoinvadiu-lheosmembros,seus pensamentos perturbaram-se e apoiou a cabeça fracamente no encosto da poltrona; tentou,primeiramente,libertar-sedotorpor,paradepois,preguiçosamente,desistirdisso.Paraquê?Queriarepousardepoisdacanículadodia...

Inopinadamente, no vão da janela, fartamente iluminada pela Lua, se alçou uma formahumana:umhomemdealta estatura, cabeleira anelada, cujo rosto indistinto, desviadodeRoant,despertou nesta uma recordação confusa. Com extrema flexibilidade, o desconhecido pareceuescorregarmaisdoquesaltar,paraoaposento;Roantquisdetê-lo,gritar;mas,comoqueinvadidaporsúbitaparalisia,ficouimobilizada,incapazdeabriraboca,eacompanhouapenascomosolhosoaudazintruso,que,semruído,atravessouoaposento,e,chegadoàcamazinha,sedobrousobreasadormecidascrianças.

Umpensamentoinfernal,fulminante:“Éosugadordesangue!”—atravessounesseinstanteocérebro deRoant, e desesperada luta travou-se entre a vontade e o torpor que lhe chumbava osmembros;opeitosufocava,comoquesobenormepeso;acabeçapareciaprestesaestalar,masoslábioscontinuavammudos.Por fim,resvaloude joelhos,ergueuosdesfalecidosbraçoseumgritoroucoedestimbradosaiu-lhedagargantacontraída.

Nomesmoinstante,asombrahumanaendireitou-se,passoujuntodeRoant,comvertiginosarapidez,edesapareceuparaforadajanelacomosesehouvessefundidonoclarãodaLua.Atraídospelogritodasenhora,muitosescravosacorreramebemassimaamadascrianças, trazendoumalâmpada.ErgueramRoant, que, incapazde falar, apontava a camazinha, por cimadaqual a amasuspendiaa luz.Todoessemovimento,eoruído,acordaraopequenoPentaur,masNitétisnãosemovia,e,aoprimeiroolharqueapobremãedeitousobreesta, compreendeuqueocrimeestavaconsumado.Semumaqueixa,caiuinanimadanosbraçosdasmulheres.

Em poucos momentos, todos despertaram, e o velho intendente decidiu informar o senhor

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imediatamente,e,poroutrolado,chamarosparenteseíntimosparajuntodeRoant.Chnumhotepnãopodiaabandonarseupostonopalácio,e,poristo,enviouumescravoembuscadeRomaeoutroàcasadeÍsis,cujaresidênciaeramaisvizinha.

OmoçosacerdoteeNeithaprestavam-separadormir,quandoaopaláciodeSargonchegouomensageiro,todoesbaforido,efezumanarrativa,meioembrulhada,doacontecido.Profundamenteperturbado,ocasalfezprepararumaliteira,e,enquantooitovigorososcondutoresatransportavam,em passo acelerado, à casa do chefe das guardas, Neith apoiou a cabeça ao ombro do marido,murmurando:

—Podesduvidardosdesígniosdomalfeitor?Não tedissequeelenãopodemorrerequeaesteapetece,talqualaele,sanguefrescodejovens?...Oh!meusanguegela,aopensarnoquenosaguardaainda!

Roma estremeceu, porém, não deu resposta, pois não tinha palavras para exprimir a surdaangústiaquelheapertavaocoração.

Já encontraram Ísis atarefada junto de Roant, que havia recuperado os sentidos, masdesesperada, parecendo enlouquecida.Comgritos e gemidos, arrancava os cabelos, esmurrava opeito emaldizia a incompreensível debilidade que a impedira de agarrar omiserável, e salvar afilha.

Somentedepoisdealgumashorasoscuidadoseconsolaçõesdosíntimosconseguiramacalmá-la suficientemente, para que pudesse responder às perguntas do irmão e fazer uma narrativadetalhadadoacontecimento,descrevendoo talheeaaparênciadoassassino, cuja fisionomianãoidentificara,emboraapersonalidadelheparecesseconhecida.

Completamente esgotada, aquiesceu, afinal, em deitar-se, e adormeceu num sono febril eagitado.Asduasamigasretiraram-se,então,paraumacâmaracontígua, tambémnecessitadasdeumpouco de repouso;Roma seguiu para palácio, a fimde falar ao cunhado. Ísis eNeith tinhamintenção de dormir, porém o sono lhes fugia; Ísis, principalmente, parecia sobressaltada, e,erguendo-se,veiosentar-sejuntodacadeiradeNeith.

—Dize-me— começou ela, pegando a mão da amiga—, não tens desconfianças quanto àpessoa do misterioso assassino? Tive uma idéia que me torna positivamente louca. Olha! (e foibuscardesobreamesaumtecidodobrado).EstevéuqueocultaocadáverdeNitétisecomoqualaamacobriraambasascrianças:exalaumodorbemestranho!

Aproximou-odorostodeNeith,masestarecuou,comumaexclamaçãodeespanto:

—Oaromafatal!Meupressentimentonãomeenganou.

— Ah! Adivinhaste, tal qual me aconteceu, que nenhum outro podia ser assim infame?Desgraçaparanós,então!

—Acreditasquedesejarávingar-se?—perguntouNeith,arrepiando-se.

— Decerto! Se o carrasco de Neftis ainda possui o poder de matar, não deixará viver aaudaciosa que o denunciou, e a mulher que o esqueceu — murmurou Ísis, com sombrioacabrunhamento.

AmortedapequenaNitétiseadeumaaguadeira,quepereceunanoiteseguinte,provocaramemTebasverdadeiropânico:moçaalguma,nenhumacriança,aodeitar-se,estavaseguradeveroSolnodiaseguinte,e,apesardetudo,omalfeitorcontinuavadesaparecido.AssuspeitasdeNeitheÍsis haviam sido rebatidas pelosmaridos, que as consideravam verdadeira impossibilidade, e nãohaviamtranspiradoparapúblico.

Todavia, o sinistro pressentimento da esposa deKeniamunnão se realizava; não somente ovampironãoaassaltava,nemaela,nemaNeith;dir-se-iahaverdesaparecidocompletamente.Trêsmesesescoaram,enenhumnovoassassínioacusaradenovoasuapresença.Todos,Neithinclusive,se tinham acalmado pouco a pouco; a vida, com os seus diversos interesses, desvanecera aassustadoraimpressão.SóÍsiscontinuavasombria,nervosaeinquieta:perderaosonoeoapetite,e,atodasaspersuasõesdomarido,respondia:

—Quequerestu?Parece-mequeumadesditapairasobremim;àsvezes,denoite,despertobanhadaemsuorgelado,ou,então,sintojuntodemimapresençadeumserinvisível;umhálitofriofustiga-meorostoeumaânsiasemnomeaperta-meocoração.

Certa noite, a Jovemmulher sentia-se mais oprimida ainda do que habitualmente, estando

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Keniamun em serviço, embora devesse regressar de um para outro momento. Triste e fatigada,deitou-se; mas, não querendo adormecer antes do retorno do esposo, ordenou a duas escravasficassemjuntodela.

— Pega o teu alaúde, Nesa, e toca;mas, guardai-vos bem de adormecer até a chegada dosenhor.

As duasmulheres acocoraram-se perto do leito, e Nesa cantou, acompanhando-se, longa emonótona cantiga lamentosa. Ísis escutava-a distraidamente, e bem depressa se engolfoucompletamente em pensamentos. O passado visitava-a, incessantemente, apresentando-lhe àmemória opaláciodeMênfis, as orgiasnoturnas, adescobertada sua traição, e, enfim, abela eselvagem figura do feiticeiro. Perdida na sua quimera, não percebeu que o canto cessara e queambasasmulherescochilavam.Súbito,estremeceueretesou-se:umabaforadadeenervanteolor,bemconhecido,chegara-lheaorosto,fazendo-lhepalpitarocoraçãoeoprimindoofôlego.

Quis gritar, porém louco terror tolheu-lhe a voz e paralisou os membros: junto do leito,iluminadodeplenoporumraiodeluar,estavaHoremseb.Osolhoshaviamperdidoaternafixidezemiravam-nacomaselvagemcrueldadedeumtigre;nos lábiosentreabertoserravaumsorrisodeinfernalmaldade;ofrioquesedesprendiadoespectropesavasobreÍsisqualvéudechumbo.

Comoqueemsonho,viuasinistraapariçãoinclinar-separaela,sentiuosdentesenterrando-senasuacarne,edepoisosangueafluiràmordedura,abandonandoasveiasdocorpo.Contudo,ohorroreomedodamorteerampoderososnajovemmulher,que,poresforçoquasesuper-humano,tentou lutar: torcendo-sesobomonstroqueaenlaçava,deuumsurdogemido.Aomesmotempo,umavozgritou:

—Olá!Quesepassaaqui?

EraKeniamunqueregressava,e,aoclarãodaLua,avistaraumhomemcurvadosobreoleito.Furioso, empunhouamachadinhapresaao cinturão, enquantoqueasescravas,despertadaspeloduplogrito,seendireitavam,alarmadas;mas,antesmesmoqueooficialpudessebrandiraarma,odesconhecido passou junto dele, como se fosse um clarão, e desapareceu pela janela. Todavia,Keniamunjulgoureconheceroperfileaestaturadonigromante,e,movidopornovopensamento,correuparajuntodamulher,aqual,derribada,comumferimentonagarganta,pareciaexpirante.

—Ísis!—exclamou,soerguendo-a.

Imediatamente,elaabriuosolhos;aferrando-secomdesfalecidamãoaocolardomarido,meioquesefirmou,lívida,olharextinto,moveuoslábiosporsegundos,edepoisgritou,comavozroucaeirreconhecível:

—Éele,Horemseb,osugadordesangue!

Esseesforçoromperaoderradeiroelo:Ísisestavamorta.

As últimas palavras de Ísis foram ouvidas pelas duas escravas, e, enquanto Keniamun,profundamente consternado, saía para tomar as indispensáveis providências, as duas mulherescorreramparaointerior,comgritoselamentações,einstruíramacriadagemdoacontecido.

PropagadapelosfâmulosdeKeniamuneespalhadacomavelocidadedeumacorrenteelétrica,anotíciadequeHoremseberaosugadordesangueexpandiu-seemtodaaTebas.Ampliadaaindapeloterror,essanovidadetomouproporçõesgigantescas,eodiaqueseseguiuàmortedeÍsisaindanãofindara,eastrêsquartaspartesdaCapitalestavamconvencidasdequeopríncipehavia,porqualquer acaso, eximido-se da condenação; que se escondia na cidade e se vingava da suadegradação,praticandoaquelasériedemortes.Apopulaça,superexcitada,juntara-seemmassanotemplo de Amon, exprimindo em altas vozes suas dúvidas quanto à morte do bruxo, e, emboraexortadapelospadres,retirara-seresmungandosobreocaso,paraaglomerar-se,denovo,diantedaresidênciareal.

Comahabitualresolução,Hatasuapareceunumajanela,e,escutandoasqueixasdamultidão,prometeu convocar o Conselho e adotar providências para esclarecer o tenebroso assunto,acrescentandoque,nodiaseguinte, seriamconhecidasassuasdeliberações.Nessamesmanoite,reuniram-seossacerdotes;mas,detodoconvencidosdequeofeiticeiroestavamorto,tacharamdeinsânia os boatos populares, e Ranseneb declarou, com incrédulo sorriso, que os mortos nãovoltavamparacomerosvivos,equeumvivonãopodiapassaratravésdeparedes.

— Tens razão, profeta — observou a rainha —, o fato parece inverossímil; no entanto, orelatórioqueacabamdemefazerKeniamuneChnumhotepconsignaumestranhodetalhe:ospanos

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quetocaramoscadáveresdeÍsisedafilhadeRoantexalavamoaromanefastodovenenodequeseservia Horemseb. Em qualquer caso, o povo necessita ser convencido de que o criminoso foiexecutado. Ordeno seja o corpo desmurado, em presença, de delegados de todas as castas, dosquaisfixareisonúmero,edefuncionáriosdesignadospormim.

Emcumprimentodarealordem,natardedodiaseguinte,numerosaassembléiareuniu-senoúltimopátiodotemplodeAmon.CadaquarteirãodeTebasenviaradeputados,pertencentesatodasasclassesdapopulação:nosprimeiroslugares,estavamalgunssacerdotesdealtahierarquiaeosdelegadosdarainha,oporta-lequeRomaeoquemodernamentesedenominariachefedepolíciaeerao“ouvidodorei”,assimchamadoessefuncionário,aotempodeHatasu.

Aparede, intacta,nãoconservavanenhumtraçodonichoqueali foraabertodezoitomesesantes, mas os alviões dos pedreiros fizeram nela uma abertura, ao fundo da qual bem depressaapareceramdoispés.

—Vede!Ospésestãoperfeitoseprovamàevidênciaoabsurdodosboatos—observouumdospadres.

—Ospésnãoprovamcoisaalguma,porquetodosospésseassemelham,eocorpopodetersidomudado—respondeuumricomercador.

Algumas vozes apoiaram essa opinião. Silenciosamente, o desmuramento continuou, e semdemora apareceu o corpo integral de Horemseb, perfeitamente reconhecível: a aparênciacadavérica,osolhosabertosevítreosnãohaviamsofridoqualqueralteração.

— Vede! Eis o corpo do criminoso — disse solenemente Ranseneb: privado das honras desepultura,aguardaaquisuadestruição,masaalma,lamentosa,repelidaporOsíris,perambula,semdúvida, ávida de crimes, tal qual outrora. Se, pois, Horemseb é culpado dasmortes que afligemTebas,éapenassuaalmaquepodeisacusardetal:ocorpoaquiencerradonãopodetertidopartenisso.Eagora,aproximai-vostodos,doisadois.Haveisconhecidoopríncipe:certificai-vosdequeémesmoelequemseencontranestenicho.

Terminadoolúgubredesfile,aaberturafoinovamentefechadaeosassistentesdispersaram-se,tristesepreocupados.Romatambémregressouaolarcomocoraçãooprimido.

AoterconhecimentodofimdeÍsis,Neithsentira-semal,esuasprimeiraspalavras,aotornarasi,foram:

—Agoraéaminhavez;depoisdela,éamimqueelematará!

E,adespeitodosprotestosdoseuraciocínio,asinistraprediçãotinhatransformadoaalmadojovem sacerdote: a possibilidade de perder tão miseravelmente sua esposa querida, afinalreconquistada,transbordava-odedesesperadaira.

DuasnoitesdepoisdaverificaçãodapresençadocorpodeHoremseb,umpardenovasmortesemocionou a Capital. Desta vez, haviam sido cometidas na residência real: uma criança de doislustrosde idadeeumatocadoradeharpa, favoritadarainha,haviamperecido,e,poroutro lado,trêspessoasafirmavamterreconhecidoHoremsebnasgaleriasecorredoresdopalácio.

Nesta ocasião, o pânico chegou ao auge, inclusive entre os sacerdotes. Que significava tãoinaudito caso? Habitualmente, amorte bastava para tornar inofensivo omais perigoso celerado;neste caso, o Amenti parecia fechar suas portas e repelir para a Terra aquela alma enodoada enefasta.O vampirismo era quase desconhecido noEgito, uma vez que amumificação dos corposimpediaapossibilidadedetalmanifestação.

Ranseneb,chamadoapalácio,foicobertodecensuraspelarainha,indignada;elaacusou-o,ebem assim aos demais confrades, de culpada negligência, deixando em torno delesmatar tantosinocentes,semencontraremnasuaciência,imensadecerto,umremédioasemelhantecalamidade.

Àtarde,umconselhosecretoreuniu-senotemplodeAmon.Cincosacerdotes,dosmaissábios,a ele assistiam e também Amenófis, chegado dias antes de Mênfis, e Roma, admitidoexcepcionalmente, apesar de moço, não só em vista da importante ação que tivera em todo oassunto em causa,mas tambémna qualidade de esposo damais ameaçada vítima. Após debatesmuitoanimados,disseAmenófis:

—Emvistadagravidadedo casoedanecessidadedeagir rapidamente,parapreservardadestruição seres inocentes e sem defesa, proponho, meus irmãos, mergulhar uma das jovens dotemplonosonosagrado;osolhosdoseuespíritoabrir-se-ãoeelaveráoquenosestáoculto;porsua

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boca,adivindadeindicarácomodeveremosagir.Seadotardesmeualvitre,rogaremosaRansenebdesignaraqueladasvirgensconsagradasmaisaptaanosservir.

Apóscurtodebate,todossedeclararamdeacordo,eRansenebmandoubuscarasacerdotisapor ele escolhida. Uma frágil e delicada jovem, de grandes e brilhantes olhos, apareceu semtardança, e, intimidada pela grave assembléia, inclinou-se, de mãos cruzadas. Vestida de longatúnicabranca,pesadasargolasrodeavamseusbraçosetornozelos,eumaflordelótusestavapresanatestaporumafaixaincrustada.

—A divindade reclama teu serviço,Nekebet; ela nosmanifestará, por teu intermédio, suasvontades— disse gravementeRanseneb. Eleva tua alma, pela oração, e agradece aos Imortais ofavorcomquetehonram.

A jovem ajoelhou um instante, e, com olhar extático, ergueu os olhos para o céu; depois,levantando-se,murmurou:

—Estoupronta.

Roma fora indicado para provocar o sagrado sono e obter, por sua ação, as preciosasindicaçõesqueosdemaispadrespreparavam-separaescreveremsuastabuinhas.Aproximando-secom benevolência, conduziu a donzela para uma cadeira, pronunciou curta invocação, e, depois,firmoudominadorolhar,elevandoasduasmãosporcimadacabeçadeNekebet.

Quase imediato estremecimento agitou a moça, que empalideceu e fechou as pálpebras.Então,Romalheapoiouosdedosnatesta,e,aotermoderápidominuto,perguntou:

—Dormes?

—Sim.

—Evês?

—Vejo.

Romavoltou-separaossacerdotes:

—Veneráveispadres,eladormeosagradosono,ealuzdeOsírisInunda-lheeIluminaaalma.Queordenaislhepergunte?

—Queelaprocure a almado sugadorde sangue e a encontre, aindaque sejano fundodoAmenti — respondeu Ranseneb. Para guiá-la, põe-lhe na mão este amuleto que pertenceu aHoremseb.

Romapegou o escaravelho demadeira odorante e o encostou, primeiramente, na fronte dajovem,e,emseguida,lhodeixouemumadasmãos,dizendo:

—Vaiedescobreaalmadopríncipe.Calma-te—acrescentou,notandoqueaadormecidaseagitavaegemia—esegueacorrentequesedesprendedesteobjeto.

Pormomentoreinouomaisabsolutosilêncio;mas,subitamente,asacerdotisaatirou-separatrás,comtodosossinaisdehorroredemedo.

—Não posso... sufoco... Oh! quanto sangue!... E, além disso,mulheres, empunhando rosas,repelem-meeimpedem-medepassar.

—Quefazemessasmulhereseporqueteembaraçam?

—Cercamumhomem,sentadoimóvelemumnicho;sóseusolhosvivemeseuolharéterrível;nãopossoaproximar-me.

E retorceu-senumaconvulsão.As veias inflaramna frontedeRoma, e seusolhos lançaramflamas.

—Rechaçaasmulheres,passaeidentificaohomem.

—ÉHoremseb,easmulheresasvítimasqueelesacrificou;oterrívelvenenoencheaindasuasatormentadasalmas;têmciúmesdemim.

—Aalmaestáseparadadocorpodocriminoso?—indagouRanseneb.

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—Emumapalavra,estámortoouvivo?acrescentouAmenófis.

Romatransmitiuasduasperguntas.

—Aalmaaindaestáligadaaocorpo—murmurouaclarividente.Eleviveumavidaàparte.

—Porque seu corpo,morto emaparência, privadodesdehádezoito luasdear e alimento,resisteàdecomposição.

—Porquesenutredesangue,eseucorpo...

Asacerdotisaparoudefalar;suafisionomiadenotavapavor,eocorpoestremecia...

—Nãoposso;elemeproíbedefalar;seuterrívelolharprendeminhalíngua.

—Fala,euteordeno!Queénecessáriofazerparadestruirocorpodobruxoeatirar-lheaalmaparaoAmenti?

A sonâmbula não respondeu: duas vontades contrárias, visivelmente, lutavam nela quasequebrando seu débil organismo. O peito deNekebet ofegava, espuma subia-lhe aos lábios e seufrágilcorpotorcia-seemconvulsõesdeterror;mas,Romalutavapelafelicidadedoseuviver,pelaexistência de inúmeros inocentes, e sua vontade, decuplicada, terminou por triunfar. Por brevetempoaadormecidapareceutranquilizar-se,paradepoisatirar-separatrás,comoquealquebrada.

—Eu...eunãoposso—dissemurmurante,emtomquaseininteligível—mas,trazeiaotemploamúmiadeSargon.Depoisdesetediasdeorações,eempresençadeNeith,evocaisuaalma:ele,oinimigomortaldeHoremseb,indicar-vos-áasalvação...

Nova crise interrompeu-a. Roma refez-se, e, enxugando o suor que lhe manava da testa,repetiuaospadresaspalavrassussurradasporNekebet.Comoseesseinstantedetréguahouvesselibertado a jovem da influência contrária, um ardente rubor inundou imediatamente o contraídorosto;osofrimentocedeuaumaextáticafelicidade,e,caindodejoelhos,estendeuasmãosjuntasparainvisívelobjeto.

— Ah! que suave aroma! — murmurou, olfatando avidamente. Não, não, Horemseb, nadatemas,amo-teenãotetraireinunca,mesmoqueissomecusteavida!

—Vede—disseRanseneb—oterrívelvenenoenfeitiça-lheaalma;desperta-a,Roma,porém,antes,ordena-lheabominarHoremseb.

O moço sacerdote concentrou toda a sua energia, e, impondo as mãos sobre a cabeça dasacerdotisa,dissecomforça:

—Ordeno-tedetestaretemeramemóriadeHoremseb,esqueceroodornefastoecalmar-teemseguida.

Brusca transformação operou-se no semblante da adormecida: espelhou primeiro medo ehorror,depoiscalmaprofunda.Romadeu-lhe,aseguir,muitospasses,eafinaladespertou.Ajovemnãoserecordavadecoisaalguma,eestavavisivelmenteexaurida.Ospadresfizeram-nabeberumpoucodevinho,abençoaram-naemandaramquefosserepousar.

Aseguir,decidiramadotararecomendaçãorecebida,eencetar,nessamesmanoite,ojejumeas preces após as quais seria invocado o Espírito do príncipe hiteno, para dele obter omeio dedestruirovampiro.Romafoiincumbidodeprepararaesposaedecidi-laaassistiràevocação.

Aosaberoquedela sepretendia,Neith foipresadeverdadeiropavor:o sópensamentodereveraalmado in-fortunadoesposo,cujoamorporelaodestruíra, fazia-a tremer;Roma,porém,persuadiu-a de que, se alguma coisa neste mundo podia abrandar a alma de Sargon, era ochamamento, a prece daquela por quem sacrificara a vida. Pelo seu próprio futuro, pela piedadeparacomos inocentescotidianamenteameaçados,eladeviaser forte,e,dominandotodoopuerilmedofeminino,ajudarossacerdotesnasuamissão.Neitheradenaturezavirilegenerosa,deixou-seconvencer,e,nessamesma tarde, recolheu-seao templo,no intuitodepreparar-se,duranteossetediasdejejum,abluçõesepreces,paraaterrívelentrevistacomofinadomarido.

Fixadaanoiteparaaevocação,oscincosacerdotesdeAmon,AmenófiseRomareuniram-seemumacriptadotemplo.Setelâmpadas,decoresdiversas,suspensasaoaltodepequenoaltardepedra, iluminavamvagamente a sala, refletindo-se em fantásticos efeitos sobre os vasos de ouro,destinadosàslibações,esobreasesplêndidasincrustaçõesdeumacaixademúmiapostadepéemumnicho.Nessaarcafunerária,pintadaedourada,estavaocorpopreciosamenteembalsamadode

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Sargon,trazidodesdeavésperaaotemplo,ejuntodoqualhouveravigíliaeorações.

Agora,ospadres,comasvestimentasbrancasdecerimônia,adornadoscomas insígniasdasuahierarquia,ostentandoapenadeabestruz, sinalde iniciaçãosuperior, estavamcolocadosemredor do nicho, braços solenemente levantados para a abóbada. Acabavam de pronunciar asconjurações,quechamavampelaalmadomortoeintimavam-naamanifestar-seaeles.

Terminadaessapreliminarcerimônia,foiIntroduzidaNeith,que,pálidaefacesinundadasdelágrimas,ajoelhouanteamúmia.Estavavestidadebrancoecomsimplicidade,os longoscabelossoltoseumapequenafaixadeouroprendia-lhenatestaumaflordelótus.

—ÓSargon,divinoesposotornadoOsíris—disseela,emtomsúplice—,perdoaminhafaltadeamorporti,omalquetefiz,porimprudênciainfantil!Agora,quepodeslivrementeleremminhaalma,devesvermeuverdadeiroarrependimento,ashonrasqueprestoàtuamemória.Tempiedadedemim, a vítima designada pelo sugador de sangue; tem igualmente compaixão dasmães e dosfilhosameaçados,e indicaomeiodebanirparaoAmentiaalmadonigromante,poisqueelenãodevepermanecerentreosvivos.

Sua voz foi afogada pelo pranto; mas, tudo continuou em silêncio. Tomada de súbitodesespero,suplicante,estendeuosbraçosparaonichoeexclamou,ardentemente:

—Sargon!Sargon!teuamorfoitãograndequesacrificasteatuavidapormim:deixastedemeamar,paraquefiquessurdoàsminhaslágrimaseàsminhasorações?

Nesse instante,muitos golpes surdos e secos fizeram-se ouvir, parecendo vibrados contra aurnadamúmia;umestranhocrepitarsucedeu-se,eluzesfosforescentesapareceramnonicho.

Avozdamulheramadahavia,emverdade,atingidoaalmadomoçohiteno,eelevinha,doreino das sombras, salvá-la de Horemseb, por segunda vez, dar-lhe, do além-túmulo, essá provasupremadeafeição?

Todoscruzaramosbraços,emrespeitososilêncio;Neithcontinuouajoelhada,olhosvoltadospara a múmia, que parecia velar-se com um transparente vapor, que se condensou, ampliou,enchendoonichoqualnuvemcintilante,sulcadadelampejos;emseguida,umjactoelétricojorroudamassanevoentaeencheuonichodesuaveluz,azuladaetãointensaquetudoesmaeceujuntodela, iluminandodistintamentea criptaeosassistentes.Sobreesse fundobrilhante,desenhou-seentão a forma esbelta de um homem, de pé, diante do nicho, a um passo de Neith, petrificada.Nenhumadúvidapodiahaverquantoàpersonalidadedovisitantesurgidodoreinodassombras:erabemorostopálidoecaracterístico,osolhossombriosesonhadoresdopríncipehiteno,trazendoo“claft”eatúnicadelinho,easpedrariasquelheornavamocolareosbraceletesrutilavamcomoseestivessem sob a luz solar. O materializado ergueu a mão e pronunciou estas palavras, em vozdistinta,porémcomoqueveladapeladistância:

—Vósme chamais para ajudar a consumar a libertação do Egito: seja! A súplica deNeithchegouaomeucoração, e venhodizer-vosque,aindaestanoite, antesqueRa seeleve, émisterdesmurarobruxo,eumdevósdevemergulhar-lhenagargantaasagradafacadossacrifícios.Issofeito,Tebasestarálivredosugadordesangue:nãomaisatacarápessoaalguma.Etu,Neith,tunãomeamastenunca! (Oespectro inclinou-se, compálido sorriso,paraa jovem,pousando-lheamãosobreacabeça.)Nãoimporta!Viveesêfeliz,afimdequeosacrifíciodaminhavidanãotenhasidoemvão!

Aluzextinguiu-sebruscamente,avisãodesapareceuedenovoaslâmpadasjorraramafracaevacilanteclaridadesobreonichomisterioso,remergulhadonassombras,esobreaalvavestimentadeNeith,abatida,semsentidos,sobreaslajes.

Cheiosdeemoçãoedejúbilo,ossacerdotescombinarameresolverampôremexecução,semperda de umminuto, o aviso que lhes viera por uma graça dos deuses.Munidos de tochas e deinstrumentos apropriados, rumaram para o funesto local, e, por não quererem testemunhassupérfluas,desmuraram,elesmesmos,onicho,noqualembreveapareceu,iluminadopelachamavermelhadastochas,acabeçalívida,deolhosternos,dofeiticeirodeMênfis,cujocorpo,inatacadopeladecomposição,pareciaumaestátuadebasalto.Houveummomentodesinistrosilêncio.Depois,Ranseneb, que, voluntariamente, de tal se incumbira, ergueu a faca dos sacrifícios, e, com ummovimentoseguro,enterrouareluzentelâminanagargantadocadáver.

Comoborbulharsemelhanteaojorrodastorneiras,umatorrentedesanguevermelhosaiudoferimento,provocandoemtodosumaexclamaçãodepasmo.NomesmoinstanteRansenebrecuou,comumestremecimentodeterror:parecera-lhequeosolhosternosdocadáverhaviam-seiluminadocomumraiodevida,voltando-separaelecomindizívelexpressãodeangústia,desofrimentoede

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ódiomortal.Talveznãopassassedeilusão,porquejáoterrívelolharseextinguiaeretomavaaternaimobilidade;mas,osangueprosseguiacorrendoaolongodocorpo.

Silenciosamente, foi retiradaa facado ferimento, fechadodenovoonichoe recolocadososladrilhos,àpressa.Depois,disseRanseneb,enxugandoafrontecobertadesuor:

—Amanhã,meusirmãos,voltaremosparaapagarosderradeirosvestígiosdanossapassagemporaqui.Agora, regressaipara repousar; voudirigir-meaoFaraó,para lhedizerdeque formaohiteno,queelaprotegeu,veiopagarasuadívidadegratidão,epôsfimàcalamidadequedesolavaopovoegípcio.

Roma encontrou Neith tornada a si, porém, alquebrada. Sem proferir palavra, deixou-seinstalar na barca e também em silêncio fizeram o percurso, até. quando a embarcação encostoujuntodaescadariadopaláciode

Sargon.Amparadapelomarido,subiuparaoterraço,àentradadoqualambossedetiveram.Ocrepúsculoesmaecianohorizonte,torrentesdeouroedepúrpurainundavamocéu,anunciandoaaproximaçãodoastrorei,quelogoapareceu,enchendoaTerracomseusvivificantesraios.

Umsuspirode imensodesafogoalçouopeitodeNeith:agora,adesgraçaestavavencida,obruxo não reapareceria mais, dissera-lhe Roma, a vida estendia-se diante dela, sem nuvens, e aapariçãobenfazejadodeus-sol,nomomentodesseregresso,pareceu-lhefelizaugúrio.Numimpulsodeentusiasmo,levantouosbraçosparaoSol:

—Vês,Roma,depoisdastrevasdestaterrívelnoite,Rasaúdaanossavolta:éopresságiodequeasafliçõesterminaramedequeavidaserá,doravante,deluzecalor.

—Seráoqueosdeusesordenarem;nossoamor,porém,nosdaráapazdaalma—respondeuele,emocionado.Agora,minhaquerida,vem,eagradeçamosaosImortaissuasinfinitasgraças.

Poucodepois,ocasalajoelhavadiantedopequenoaltarfloridodesuasdivindadesdomésticas,esuaardenteaçãodegraçaselevou-senorumodessas forçasdoBem,que,emtodososséculos,sobdiversosnomes,protegemasfrágeiscriaturashumanasqueaelassedirigem,comféeorações.

Quemverdadeiramentesabeorar,possuiachavedocéu.

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EPÍLOGOTãoinsensivelmentequantoaluzdodiadesaparecenastrevasdanoite,assimoTempodevora

tudoquefoicriado;giganteinsaciável,seulemaédestruição;nadalheésagrado,nemmonumentoscélebres, nem obras de arte, nem beleza, nem poder: ele passa Insensível, imutável, e tudo seaniquila. Tudo, menos uma coisa, também tenaz, tão eterna quanto o próprio Tempo: a Alma, oprincípiodevida,semprerenascentedosescombrosdopassado,criandoatravésdotempoumlaborinterminável.

Énoite.Aexemplodecentenasdeséculosantes,aLuainundacomseusraiosprateadosumaplanície da velha terra Egípcia, e se reflete nas águas do Nilo. O rio sagrado não sofreutransformação,mas sobre suasmargenspassou o gigantedestruidor e delas fez umdeserto. Porcima dos montículos de areia, dos templos derribados, das estátuas mutiladas, tristes restos deTebas — a soberba, a cidade das cem portas, flutuava vacilante e esbranquiçada nuvem,desenhando,pormomentos,umasilhuetahumana,vaporosaequaseimpalpável.

Essa nuvem era uma Inteligência, centelha divina e indestrutível, que pairava, pensativa etristonha,sobreesseslugaresondetinhavivido,evocando,nareminiscência,aépocalongínquaemqueessasruínaseramesplêndidosmonumentos,emquegerações,dehámuitoextintas,animavam,comasuaruidosavida,aorgulhosaCapitaldovelhomundo.

Junto da necrópole, o Espírito parou para examinar, suspirando, imensa e devastadaconstrução,meiosepultadapelaterra:elehaviavistodepé,emtodooseuprimitivoesplendor,essetúmuloda rainhaHatasu, comseuspátios imensos, seus terraços, suascolunatas sem fime suaspinturasdevistosascores.Otempodestruíraoesplendordomonumento;nenhumtraçorestavadaimensaavenidadeesfingespelaqualmarchavamnoutrostemposaspomposasprocissõesqueiamsacrificaraosmanesdossoberanos.

As tumbas reais estavam vazias, as vicissitudes dos séculos dali enxotaram os corposembalsamados dos belicosos Tutmés e da orgulhosamulher criadora do originalmonumento, tãodiferentedetudoqueseconstruíanoEgito, imperecível lembrançadasconquistasdeseugenitornasmargensdoEufratesedasuaprópriavitóriasobreospreconceitosdosseuscontemporâneos.

Dolorososuspiro irrompeudocoraçãofluídicodoEspírito:avistadetodaaqueladestruiçãoera-lhepenosa,e,apesardisso,asruínasdessepassadoatraíam-noinvencivelmente.Comarapidezdopensamento,deixouosescombrosdeTebasepenetrou,qualfugitivoraio,numaconstruçãocujassalas estavam atravancadas com a reunião dos mais diferentes objetos. Tudo quanto ali se viaprovinha do Egito antigo, e que não se encontrava naquela miscelânea? Estátuas e objetosfunerários, jóiaseutensíliosdetodaespécie,desdeasbugiariaspertencentesaopaláciodoFaraóaté os grosseiros petrechos de operários, e lá, numa das salas, as longas caixas, numeradas,sarcófagos de Faraós. Um raio de luar descia sobre a madeira enegrecida, sobre as pinturasdesbotadasesobreasfaixasdesenroladasquemostravamosrostosdealguns,daquelamesmalua,queiluminaracomseuclarãoaquelesmesmoshomens,quandovivos,cheiosdeforçaeorgulho.

Dolorosa agitação trabalhava o invisível visitante doMuseuBoulacq, enquanto olhava, parasatisfazer a curiosidade, aquelas amontoadas coisas. Pensava nas mãos sacrílegas que haviamvioladotodasaquelastumbas,arrancadodoretiro,quesupunhameterno,ospacíficosadormecidos,cujascabeçasestavamcingidaspelosséculoscomumanovaevenerávelcoroa.

Pobres Faraós do Egito, átomos presunçosos, que imagináveis poder desafiar o futuro emvossos refúgios inacessíveis!... O tempo fez justiça ao vosso orgulho, não fostes despertados emvossossepulcrosenquantoosestrangeirosinvadiamapátria,devastavamvossascidades,destruíamvossos impérios, só deixando de pé os indestrutíveis escombros dos templos, das pirâmides, quemesmoasanhadosbárbarosnãopôdedarcabo!

Como que por irrisão da sorte, o frágil despojo humano sobrevivera aos monumentos degranito,eeles,aquemeramrendidashonrasdivinas,aosquaissechegavacomafacenochão,nãopassavamagoradeobjetosnumerados,expostosàbanalcuriosidadedecadavisitante.

Lá repousava agora o altaneiro Ramsés II, ainda enrolado em panos tecidos para ele pelasmãos dos súditos; seu rosto, enegrecido pelos séculos, refletia ainda o orgulho que o animavaoutrora,eosvisitantesexaminavamcuriosamenteaquelasmãosossudasquebrandirama“hachad’armas”nasbatalhascontraodesaparecidopovodoshitenos,aquelaboca,delábiosfechados,daqualumapalavradecidiadavidaoumortedemilharesdehomens.

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Lá também se encontrava a múmia de Tutmés III. Mãos bárbaras quebraram o corpo dogrande conquistador que subjugou a Ásia e construiu os maravilhosos templos que lheimortalizaramonome.

Também lá estava um desses tipos dos velhos soberanos do Nilo, tenazes e armipotentes,primeirosnãosónavitória,masnabatalha,conseguindotriunfos,eletrizandoseusguerreirospeloexemplo,persuadidosdequeosdeusesprotegiamassuassagradascabeças.

Talgeraçãodeheróismorreu,extinguiu-se;ostemposeosusosmodernostudomudaram;asbombaseadinamitesubstituíramamachadinhaeas flechas;amatançaadistânciasubstituiuaslutascorpoacorpo;ossoberanosatuais,sevãoàguerra,assistemdoaltodeumacolina,rodeadosde brilhante estado-maior, ao massacre dos súditos, não combatem mais: condecoram com uma“cruzdeferro”osheróismelhorrecomendadosaoseufavor.

A cabeça fluídica do visitante inclinou-se pesadamente, à lembrança do glorioso passadodaquelapátria, tãoamada,pelaqualmuitopecaraemuito trabalhara; tambémele tiveraacoroamística dos soberanos do Nilo... E um invencível desejo lhe veio de rever, em todo o primitivoesplendor, os lugares onde vivera. Sem dúvida, para o olhar humano, Tebas, Mênfis, Tânisdesapareceramdosolo:obarbarismodoshomensdeixaram-Iheapenassobre-existironome;porém,nascamadasluminosasdopassado,elasseconservamintactasevivas;amãopiedosadaCriaçãoempilhanosseusarquivosfluídicoseeternosoreflexofieldetudoqueexistiu,desdeoscontinentessubmersos,ascivilizaçõesdesaparecidas,comosseusmonumentosecostumes,atéasfiguras,atosepensamentosdessasraçasextintas.Lá,adestruiçãonãoexiste,ebastaumapotentevontadeparafazerressurgiraFataMorgana(24)domaislongínquopassado.

(24)FATAMORGANA-Estaexpressão,prediletadeRochester,estáempregadaemváriosdeseusromances,ecorresponde-emrigor-amiragem,ocuriosofenômenoópticododeserto.Mas,emverdade,éumaassimilaçãodeantigaeselvagemdeusa belicosa, Irlandesa (que figurou nos romances medievais, do gênero “cavalaria andante”, que inspiraram o D.Quixote), cuja ilusória influência era tãoperigosaquantoa ficçãodooásis. (Veja-seMitologiaUniversal, deAlex.Hagg.Krape,ed.Payot,Paris,1930,pág.229.)EssefenômenoeraconhecidonoEgito,dadasassuascondiçõesatmosféricas.

Umtalimpulsodevontadeanimavaavaporosaepálidasombra,queplanavanoaredespediadesiprópriacomoqueum fluxode fogo, iluminandooespaço,arrastandooEspíritoatravésdascamadas fluídicas dos séculos escoados. Bem pronto surgiu de todas as partes, em torno do serespiritual,maravilhosa cidade, cheia demovimentos e vida, tal qual na remota época; templos epaláciosespelhavam-senaságuasdoNilo,coalhadodeembarcações,porém,tudodiáfano,afogadoemazuladaclaridade,suave,vacilante,ecomoqueatravessadoporessaluminosidade.

Comumesmaecidosorriso,ovelhosoberanodoNilocontemplouasoberbacidadeevocadadoabismopela sua vontade, porque, se o Tempodomina nas ruínas do passado, acimadele reina oPensamento,paraoqualnãoexistenemtempo,nemdestruição.

Era Mênfis (do tempo de Hatasu) que revivia aos olhos do Espírito que a evocara econtemplavaaqueleslugaresoutroratãoconhecidos.Nadamudara:aquelaaltaeespessamuralhacinturava,talqualnovelhotempo,osjardinseomisteriosopaláciodonigromante.Otransparentevisitante deslizou, pelas aléias sombreadas, para o silencioso e esplêndido edifício, que pareciaenvolver umanuvem volatilizada de aroma suave e sufocante. Parou. A alguns passos, apoiado aumacoluna,estavaumser,tambémpertencenteàpopulaçãodopassado,nãoapersonalidade,esima sombra ou reflexo, cujos traços lembravam os de Horemseb, mas as insígnias reais que oadornavameramdeummonarcamoderno.

—Mau príncipe do Egito, triste rei de Baviera, quemalsãs quimeras, remotos e deletériosodoresdopassado,arrastaramaoabismo—murmurouoFaraó.É,pois,nosreflexosdopassadoquebuscas olvidar os sofrimentos do presente, e não sozinho — acrescentou, prestando ouvido aestranhasharmonias,tãodepressasuaves,tãoprontodiscordanteseselvagens,quefaziamvibraraatmosfera. O grande maestro, que protegeste, veio reencontrar-te aqui? Para calmar a almaInquieta, misturou suas criações atuais com os sons selváticos que acompanhavam os ritossangrentosdopadreTadar!

Comexpressãodetristeza,ovisitanteelevouatransparentemão,fazendodelajorraracreedevoranteflama,queparalisouossonsdaquelamúsicapungente,aqualdeprontocessou.

—Porquenosvensperturbarereprimendaroquerer,comasrecordaçõesdopassado,olvidaro presente?— dirão, com ira, Luís II e RichardWagner.Não fizeste omesmo, átomo impotente,despidodocetroedacoroa?Tuamãonãomaisempunhaochicote,nãobrandea“hachad’armas”,nãotravasmaisbatalhas:tuaglória,eassimteupoderio,époeira...E,fugindoaotristepresente,nãovens,talqualofazemos,retemperar-tenoreflexodatuasepultadagrandeza?

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OEspíritorefez-seepareceuiluminar-seporinteirocomfulgenteedoceluz.

—Enganai-vos,pobrescompanheirosdopassado;nãoevitoopresente,nemme fazemfaltabatalhasmaisgloriosasdoqueasdaquelestempos;nãomaismeornocomacoroadoEgito,mastrago a do trabalho espiritual; manejo a afiada “hacha” do pensamento e a descarrego sobre astrevasqueobscurecemainteligência;meusprisioneirossãoaquelesquearrastoparaoprogresso,parao arrependimento, paraa fé; emvezdo cetro, tragoa luzque iluminao verdadeiroalvodaAlma,eolátegoquemostroaoshomens—olha!(grandeeluminosacruzselhedesenhounopeito)éosímbolodaeternidade,àqualninguémfoge,eque,porimutávellei,punecadaumpeloquehajapecado!

“A luta entre Ra eMoloc prossegue igualmente, e os celebrantes deMoloc não morreramconvosco.ÉoEspiritismo,mensageirodeluzedeamor,quedevecombateromodernoocultismo,estaciênciaqueseenvolvedetrevasetemeaclaridade,cujossacerdotesnãomaisbebemosanguedassuasvítimas,porém,sobreumaltarenlodado,devoramavitalidademoral,matamodespertarda Alma, o impulso ao arrependimento e à renovação espiritual. Esses servidores do mistériodesfiguramaVerdadeporumegoísmoinaudito,praticamritosimpuros,e,apesardisso,prometemaosdesmoralizadosadeptosauniãocomadivindade, sabendoperfeitamenteque tantaescuridãonão pode unir-se à fonte luminosa de todas as coisas.Não se pode, pormeio de orgias, abrir asportasdoInvisíveleevocaradivindade;nãoédadoaosquetêmasmãosimpurassoerguerovéudeÍsis,parafirmarosolhosnosseussublimestraços.

“Os sacerdotes e as sacerdotisas, ante o sacro altar, devem ser puros de alma e corpo, eabandonar,nosdegrausdotemplo,todososmausdesejos;parainvocaroInvisível,ohomemdeveespiritualizar-se,reaqueceraalmaporumapreceisentadetodointeressematerial.SeaoencontrodoInvisívelenviardesluz,aLuzvosresponderá;seumensageiroserápuroquantoavossafé,vossaoração,vossosdesejos;elevostraráasaúdedocorpoeapazdaalma,semvospedircoisaalguma—dematerial— por preço da sua presença.Mas, se viciosos sacerdotes,materialões, enviaremtrevaspormensageirasaoshabitantesdomundoinvisível,umEspíritodastrevasapareceráefarápagar,pelasuavinda,umtributomaterial.

“Tornoavós,meusirmãos:quebuscaisnessepassadoquesóvosdeusofrimento?Quisestesgozo, semamor,e sóhaveis recolhidodorevaziodaalma: sacudioerroeoegoísmo,dominaiamatéria, paraque ela não vos arraste ao abismodas trevas, no seio dasquais nãomais vereis aclaridade.Avóseatodosaquelescujaalmaestáobscurecida,quiseragritar:

— Fazei um esforço para o Bem, e tudo se tornará luminoso em redor de vós, e nãomaisbuscareisovícioparaesteiodaexistência,quevosparecevaziasemele!”

UmadeslumbranteluzsehaviaconcentradopoucoapoucoemtornodoEspírito;amiragemdacidadedosFaraósesmaeceraese fundirasobaabóbadaazuladaevaporosaqueestaprópriarasgara,descobrindoumhorizontesemlimites,cheiodeesplêndidosluzeiros.OspobresEspíritossofredores acompanharam, com atristado olhar, o audacioso e célere vôo daquele que lhes haviafalado,equenãoestavasó,nesseoceanodeluminosidade.

Numerosa falangede combatentes pelo progresso e pela perfeiçãodescia para espancar astrevasdaTerra,eaoseuencontrosurgiam,detodososrecantos,inteligências,ávidasderepouso,desaberedefé,dispostasaconduziroarchotedoprogressoaoambienteondedeviamagir.Etodasessasalmasquebrantadas,fatigadasdastrevasdamatéria,murmuravam,atravésdasesferas:FiatLux!Faça-seaLuz!

FIM