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Ronaldo de OLIVEIRA

Ronaldo de OLIVEIRA - humanitasvivens.com.br · 2.3 O Advento do Epicurismo e do Estoicismo ... primeiro capítulo discorrerá sobre a biografia de Epicuro e seu legado para a humanidade

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Ronaldo de OLIVEIRA

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Humanitas Vivens Ltda

Uma Instituição a serviço da Vida!

Sarandi (PR) 2009

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Copyright 2009 by

Humanitas Vivens Ltda

CONSELHO EDITORIAL:

Prof. José Aparecido PEREIRA

Prof. Fábio Inácio PEREIRA

Prof. Leomar Antônio MONTAGNA

REVISÃO GERAL:

André Luis Sena dos SANTOS

Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS

Paulo Cezar FERREIRA

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Agnaldo Jorge MARTINS

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Oliveira, Ronaldo de

O48f Felicidade: o sentido último da vida em

Epicuro (341-270a.C.) [recurso eletrônico] /

Ronaldo de Oliveira. -- Sarandi,

Pr:Humanitas Vivens,2009.

ISBN: 978-85-61837-05-1

Modo de acesso:

<www.humanitasvivens.com.br>. 1. Felicidade. 2. Epicuro (341-270a.C.)-

Crítica e intepretação. 3. Sentido da vida..

CDD 21. ed. 100

Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de

responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de

vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por

qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou

banco de dados sem permissão escrita do Autor e da

Editora Humanitas Vivens Ltda.

Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR

www.humanitasvivens.com.br – [email protected]

Fone: (44) 3042-2233

7

AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador que se dedicou auxiliando-me nas

diversas etapas deste trabalho.

A Dom Geraldo Verdier, bispo da Diocese de Guajará-

Mirim – Rondônia, pelo apoio material e espiritual

contribuindo para que eu concluísse o curso de Filosofia.

À Maria Martins Corrêa e família pelo carinho e estima que

me motivaram neste percurso filosófico.

À Nádia Maria de Souza, minha noiva, pelo apoio e alento

que me ajudaram a continuar o percurso sem desistir.

À Judith Rodrigues Dias, psicóloga, que muito colaborou na

minha vida, ajudando-me a superar limites e barreiras.

Ao professor e amigo José Francisco de Assis Dias (Chico

Dias) que não mediu esforços em colaborar com minha

formação acadêmica e humana.

Ao Padre Antônio Carlos que me acolheu em sua casa

possibilitando-me concluir o curso, pois sem essa

colaboração eu sucumbiria pelas estradas da vida.

A todas as pessoas, professores, colegas de sala,

funcionários da PUCPR, que colaboraram com minhas

pesquisas e estudo.

8

9

“De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a

felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da

amizade”.

(EPICURO, 1973, p. 28)

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11

RESUMO

O presente trabalho versará sobre o tema o sentido

último da vida humana na perspectiva de Epicuro. Pretende-

se dispor a filosofia do autor seguindo o método histórico

crítico seguindo a divisão clássica de classificação da

filosofia: canônica, física e ética. Analisando o contexto

político, histórico, social e religioso perceber-se-á que a

emergência de Epicuro e do epicurismo é uma resposta aos

anseios dos indivíduos que desejavam a felicidade, mas que

não sabiam como alcançá-la. Atinge-se a felicidade pelo

caminho da ética. Esta discursa sobre o agir humano.

Agindo-se bem, vive-se bem. Analisando a ética de Epicuro

sugere-se o remédio para a cura da alma: o tetrafármaco.

Discorre-se nesse trabalho sobre a figura do sábio, visto que

esse é o modelo de homem bem-aventurado. É na

companhia de amigos que se desenrola a verdadeira

felicidade. A amizade inicia-se pela utilidade, mas depois se

torna fonte de prazer em si mesma. Acentua-se o aspecto

ético como condição de possibilidade para ser feliz.

Palavras-Chave: Epicuro. Ética. Felicidade.

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13

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ...............................................................

2 CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO DA

GRÉCIA ANTIGA AO HELENISMO ..............................................

2.1 A Polis Grega e o Cidadão ..............................................................

2.2 O Helenismo e a Emergência do Indivíduo .....................................

2.3 O Advento do Epicurismo e do Estoicismo .....................................

2.4 Dados Biográficos de Epicuro e seu Contexto ................................

2.5 Epicuro e o Jardim ...........................................................................

3 A FILOSOFIA DE EPICURO ........................................................

3.1 Canônica ..........................................................................................

3.2 A Física ou Ciência da Natureza .....................................................

3.3 Finalidade da Física Para Epicuro ...................................................

3.4 A Ética .............................................................................................

3.5 O Sábio e a Felicidade .....................................................................

3.6 A Amizade ......................................................................................

4 CAMINHO DA FELICIDADE:

O TETRA-FÁRMACO .....................................................................

4.1 Não Temer os Deuses Nem a Morte ..............................................

4.2 O Prazer é o Bem Supremo e a Dor é Suportável ...........................

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................

REFERÊNCIAS ...................................................................................

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1 INTRODUÇÃO

O tema a ser desenvolvido neste trabalho Felicidade:

O sentido último da vida humana na perspectiva do filósofo

Epicuro (341-270 a.C.). A razão desse trabalho se dá por

perceber que em todas as épocas e em todos os tempos os

homens se preocuparam, uns mais outros menos, com o

sentido da vida humana. O sentido é a satisfação de alguma

carência que não sendo satisfeita faz o humano sofrer.

Para se aportar na discussão central do presente

trabalho primeiro se fará o resgate histórico que antecedeu a

Epicuro e que a ele foi contemporâneo. Mais precisamente

se deverá reportar ao contexto histórico, político, religioso e

também intelectual dele. Esse caminho que será percorrido

tem como meta evidenciar o como e o por quê Epicuro se

inscreveu na história da filosofia como uma figura

importante no assunto em discussão.

Algumas perguntas subjazem a este trabalho. A vida

humana tem sentido Em que condições a vida humana

possui sentido Vale a pena viver Ao longo do trabalho

outras perguntas são implicitamente dirigidas ao autor.

O trabalho será dividido em três capítulos.

No primeiro capítulo se tratará da organização da

pólis e o papel do cidadão na Grécia Antiga; sobre a

importância e o surgimento do Helenismo que influiu no

16

pensamento dos pensadores dessa época e, portanto, na

filosofia desenvolvida por Epicuro. Abordar-se-á sobre o

fenômeno conhecido como a emergência do indivíduo e o

indivíduo como a sede da nova ética. Perceberá que o

filósofo é alguém comprometido com seu tempo, isso pode

ser visto com clareza na pessoa de Epicuro. Ainda no

primeiro capítulo discorrerá sobre a biografia de Epicuro e

seu legado para a humanidade.

O segundo capítulo do presente trabalho se dedicará à

análise da filosofia de Epicuro. Este, como se verá, também

é conhecido como o Mestre do Jardim. O autor em

discussão desenvolveu sua filosofia na forma de um sistema

que se pode dividir em três grandes partes. A primeira parte

é chamada de canônica. Na canônica trabalha sobre a

possibilidade do conhecimento e suas regras. A segunda

parte é a física ou ciência da natureza. Na física se estudará

como as coisas, inclusive a alma, são formadas. Também

falará sobre a importância de conhecer as causas da

natureza. A terceira parte do sistema de Epicuro trata sobre

a ética. Na ética ver-se-á que ela é a condição necessária

para se atingir a sabedoria e, por conseguinte, a felicidade.

No terceiro capítulo da presente pesquisa se abordará

sobre as conclusões éticas do sistema de Epicuro

discorrendo sobre o tetrafármaco, ou seja, os quatro

remédios propostos por Epicuro.

17

2 CONTEXTO HISTÓRICO E POLÍTICO DA

GRÉCIA ANTIGA AO HELENISMO

Neste capítulo iremos abordar o contexto histórico da

Grécia Antiga até o Helenismo. Nessa abordagem

dedicaremos atenção aos aspectos da relação da pólis e

cidadão; trataremos do fenômeno chamado Helenismo e

suas implicações para o pensamento filosófico da época; e

analisaremos a vida e o itinerário intelectual de um filósofo

do Helenismo que é Epicuro (341-270 a.C.) e concluiremos

falando da herança deixada para a história da filosofia por

nosso filósofo Epicuro.

2.1 A Pólis Grega e o Cidadão

Para melhor compreender o pensamento de um povo,

de uma cultura, se faz importante compreender os aspectos

sociais, políticos e religiosos que o marcaram ou que o

marcam. Analisaremos, nesse momento, a relação intrínseca

que havia entre o cidadão e a pólis.

Os gregos eram convencidos de que a pólis era

modelo ideal de organização social. A pólis tornou-se assim

18

a forma mais bem estruturada e perfeita de aglomeração de

pessoas, de associação de cidadãos. Pois ela “constitui a

forma mais evoluída de um fenômeno urbano característico

da bacia do Mediterrâneo desde a Antiguidade...”

(MORAES, 1998, p. 53). Para os gregos ela era

conseqüência de um processo de associação natural e justo

tornando-se, assim, o grau máximo de perfeição. Não era

concebível, para a mentalidade grega, uma organização mais

bem estruturada e organizada do que a pólis. Por isso

mesmo os gregos “consideravam a pólis, mais ainda do que

a obra-prima, a condição por excelência de sua civilização”

(MORAES, 1998, p. 55). Porque ela tem a característica de

comportar em si as formas de comunidades primitivas que

são as aldeias e as famílias. Nela as necessidades do cidadão

eram atendidas e satisfeitas, quando que no passado, não

conseguiam satisfazer mais que as necessidades primárias

da família, ou mesmo da aldeia (BOWRA, 1967, p. 103).

A pólis é o fenômeno social e político mais sublime

na concepção grega. Alguns filósofos de grande

envergadura teórica defenderam-na com entusiasmo e

espírito aguçado. Exemplos são Platão, Aristóteles, etc.

Este, na obra Política, diz que “a cidade tem como objetivo

satisfazer todas as necessidades dos homens. Os homens

formam as cidades para assegurar uma subsistência básica”

(ARISTÓTELES, 2007, p. 79)1. A cidade tem como

objetivo último e primordial promover a vida boa para os

seus habitantes. A cidade à qual Aristóteles se referiu na

citação acima é a pólis. É ela que deve satisfazer aos

1 A tradução que foi utilizada não traz a numeração dos parágrafos somente dos livros e capítulos. Portanto a citação acima utilizada se encontra no livro II, capítulo II.

19

cidadãos e conceder-lhes tudo aquilo de que necessitam para

que vivam realizados e tranqüilos.

Para os gregos, de modo geral, a idéia de que a pólis é

o modelo ideal, era tão forte e arraigada na cultura que nem

sequer viam para além dela uma unidade mais vasta, um

império, por exemplo. Essa concepção os fazia

convictamente ser comprometidos com a vida e sustentação

da pólis. Portanto esta permaneceu sempre o suporte de

atração de toda a sua dedicação e de todos os seus

pensamentos (BOWRA, 1967, p. 103).

Na pólis grega havia o cidadão e também aqueles que

não eram considerados cidadãos. Somente era cidadão da

pólis aquele indivíduo que gozava do direito de cidadania,

ou seja, para ser cidadão era preciso participar da gestão

política e legislativa da comunidade. Por conseguinte, nem

os colonos, nem os membros de uma cidade conquistada,

nem os operários, por faltar tempo livre, nem as mulheres e

crianças não poderiam ser cidadãos.

Como nos parece evidente o cidadão era alguém de

status elevado sendo superior aos demais indivíduos que

não gozavam desse privilégio concedido pela natureza.

Portanto ele gozava dos prazeres que a pólis proporcionava

como a filosofia, a arte, a ciência, etc.

A pólis é formada por indivíduos, contudo ela é

superior a eles, pois a organização coletiva (cidade-estado)

tinha a primazia sobre o indivíduo. Isto porque os gregos

concebiam o “indivíduo em função da Cidade e não a

Cidade em função do indivíduo” (REALE, 2003, p. 221). A

esse modo grego de pensar Aristóteles expressa definindo o

20

homem como “animal político”, isto é, “não simplesmente

como animal que vive em sociedade, mas como animal que

vive em sociedade politicamente organizada” (REALE,

2003, 221). A pólis é superior ao homem que a habita

porque quando ele nasce, já nasce nela. Ela é condição de

possibilidade para que o indivíduo nasça, cresça e se

desenvolva.

Em suma, havia, na Grécia antiga, uma íntima relação

entre o cidadão e a pólis. Aquele era comprometido com a

organização e sustentação desta. Sendo a pólis que acolhia o

indivíduo este devia necessariamente estar submetido às leis

que a governavam.

2.2 O Helenismo e a Emergência do Indivíduo

Com Alexandre Magno (334-323 a.C.) inaugura-se

uma nova época na história da Grécia e do Ocidente, é o

Helenismo2. Alexandre conquistou a Grécia tornando-a

parte do Império Macedônico. Esse evento provocou o

rompimento com a ordem política e social vigente e suscitou

a emergência de uma outra ordem que foi erigida

historicamente. Por conseguinte “a conseqüência mais

2 Marilena Chauí conceitua o Helenismo como o “último período da filosofia Antiga, quando a pólis grega desapareceu como centro político, deixando de ser a referência principal dos filósofos(...). Os filósofos dizem, a partir de então, que o mundo é sua cidade e que são cidadãos do mundo” (2003, p. 45).

21

importante produzida pela revolução de Alexandre foi o

desmoronamento da importância sociopolítica da pólis”

(REALE, 2003, p. 249).

Com o desmoronamento da importância sociopolítica

da pólis junto dela decaíram os valores morais e éticos que

estavam intimamente ligados a ela. A filosofia especulativa,

que antes era o centro da atenção na Grécia, agora com as

conquistas de Alexandre, não dá ao indivíduo satisfação,

isto é, não responde aos seus anseios e às suas necessidades.

Na pólis o estudo, a especulação, tinha como meta preparar

o cidadão para o exercício da vida pública. Sob o domínio

de Alexandre o cidadão grego ficou impossibilitado de

participar no governo da coisa pública, em conseqüência o

conhecimento teórico como fora estruturado, em vista da

pólis, não dava condição ao indivíduo de realização pessoal

nem coletiva. O período helenístico é caracterizado pela

ruptura com os referenciais da pólis e pela busca de um

outro modo de vida, de um novo referencial.

Após 323 a.C. com a morte de Alexandre Magno,

como não deixou herdeiro, seu imenso império foi dividido

entre os seus chefes. O império, que era um único reino,

tornou-se quatro: Egito, Síria, Macedônia e Pérgamo.

Depois da divisão do poder a Grécia ficou nas mãos dos

novos monarcas e, por conseqüência, as pólis foram

perdendo pouco a pouco sua liberdade e sua autonomia e

deixaram de fazer história como no passado (REALE, 2003,

p. 250).

Diante dessa nova situação política e histórica o

pensamento grego se refugiou no ideal do

“cosmopolitismo”, isto é, “considerando o mundo inteiro

22

uma cidade, a ponto de incluir nessa cosmopólis não só os

homens mas também os deuses” (REALE, 2003, p. 250).

Frente ao cosmopolitismo perde-se a correspondência entre

homem e cidadão e aquele que outrora foi cidadão agora é

obrigado a buscar sua nova identidade.

Na idade helenística surge, por conseqüência do

declínio e fim da pólis, o advento do indivíduo. Este

conceito, do ponto de vista da concepção de homem, toma o

centro da reflexão filosófica da época. A categoria de

indivíduo na idade helenística assume características

próprias, pois foi forjado em um contexto intelectual

marcado pela busca de conduzir o homem à felicidade, e

“seria um erro tentar compreendê-lo à luz do individualismo

moderno” (VAZ, p. 43, 1991). A eudaimonia, que quer

dizer felicidade, não é encontrada fora do homem, mas no

seu interior, ou seja, o indivíduo é sede da eudaimonia. O

esforço teórico das escolas helenísticas tem como

fundamento não a preparação do homem para o exercício da

vida política, como outrora fora, mas se ocupa basicamente

do aprimoramento interior do homem. Por conseguinte, o

problema ético é desenvolvido a partir da categoria de

indivíduo (ENCICLOPÉDIA ABRIL, apud EPICURO,

2006, p. 87).

Nesse período o problema da eudaimonia passa a ser

a questão central da reflexão sobre o homem. Sobretudo

porque ela é o estado no qual as carências e desejos do

indivíduo identificados como tais são plenamente satisfeitos

com base na razão (VAZ, p. 44, 1991). A ética, ciência que

discursa sobre o agir humano, pela primeira vez na história

da filosofia moral se estrutura de modo autônomo tendo

23

como referência o homem na sua singularidade isso graças à

descoberta do indivíduo (REALE, 2003, p. 250).

2.3 O Advento do Epicurismo e do Estoicismo

O período helenístico, como pudemos observar, é

marcado fortemente pela mudança e alterações da ordem

vigente. As alterações bruscas ocorridas na esfera política

afetaram também a religião pública porque esta passou a ser

usada como instrumento de dominação do povo grego pelos

dominadores que assumiram o grande império deixado por

Alexandre. As transformações sociais que foram operadas

nesse período afetaram também a filosofia. Os grandes

filósofos antigos (Aristóteles, Platão) já haviam morrido e

ainda não se tinha instaurado nenhum sistema filosófico que

respondesse às exigências do novo tempo que se tinha

chegado. Contudo é nesse contexto de instabilidade e de

ruptura social que surgem duas grandes escolas no

helenismo: a estóica e a Epicurista.

Os sistemas filosóficos no âmbito da ética

desenvolvidos por Sócrates, Platão e Aristóteles têm como

pressuposto a existência de uma sociedade democrática

limitada e local que é a pólis. A cidade-estado perdendo

suas forças possibilita-se assim que as filosofias estóica e

epicurista surgissem na tentativa de dar luzes éticas ao

tempo histórico que se apresentava, pois não havia mais

correspondência entre o indivíduo e a comunidade como

24

outrora se observava na pólis. Segundo Brun (1959, p. 17),

“o epicurismo – e o estoicismo que lhe é contemporâneo –

aparecem em Atenas num momento especialmente

perturbado da história política e intelectual da cidade que

resplandeceu no mundo mediterrâneo”. Essas duas correntes

filosóficas, o epicurismo e o estoicismo, desenvolveram

suas filosofias tendo como fundamento o indivíduo na sua

singularidade.

2.4 Dados Biográficos de Epicuro e seu Contexto

Epicuro nasceu em 341 a.C. em Samos e não em

Atenas, como alguns autores afirmam. O pai de Epicuro era

Neoclés, tinha ofício de mestre de letras e gramática; a mãe

dele era Queréstrata. Esta tinha como ofício adivinhar o

futuro daqueles que lhe solicitavam. Epicuro acompanhava

sua mãe nos rituais e recitava as fórmulas propiciatórias

quando ela ia às casas dos pobres conjurar o mau-olhado e

espantar daquela casa as doenças. Desde cedo, então

Epicuro teve a oportunidade de perceber e de conhecer as

superstições populares e os males que a credulidade dos

homens podiam causar.

Desde jovem, 13 anos de idade, Epicuro iniciou seus

estudos de filosofia e tinha forte estima por ela. A sua

afeição pela filosofia, isto é, sua curiosidade de espírito, foi

notado quando citado diante dele o verso de Hesíodo “No

princípio todas as coisas vieram do caos”. Epicuro indagou

25

o professor sobre a origem do caos. Este lhe disse que

deveria formular o problema aos filósofos e daí por diante

Epicuro direcionou seus estudos nessa perspectiva. Por

conseguinte, percebeu logo a importância da filosofia e se

interessou por ela.

Na carta a Meneceu, Epicuro expressa-se sobre a

importância que se tem de dar à filosofia, pois é ela que

possibilita aquilo que o homem almeja, isto é, a felicidade.

Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem

canse de fazê-lo quando se é velho, pois ninguém é jamais

pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a

saúde da alma. E quem diz que a hora de filosofar ainda não

chegou ou já passou assemelha-se ao que diz que ainda não

chegou ou já passou a hora de ser feliz (EPICURO, 2007, p.

97).

Platão morreu no ano de 347 a.C. e Epicuro nasceria

seis anos mais tarde. No entanto, Epicuro em seu percurso

intelectual, nos anos de 427-347 a.C., teve contato com o

pensamento de Platão, por intermédio do platônico Pânfilo,

em Samos. Porém julgou não ser necessário se aprofundar

na teoria platônica por não lhe ser interessante. Depois disso

Epicuro foi enviado por seu pai a Téos para ter como

professor Nausífanes, que fora discípulo do atomista

Demócrito. Por causa desse contato, por conseguinte, a

visão de mundo aceita por Epicuro foi o atomismo. E ainda,

segundo Ullmann (1996, p. 13), Epicuro estudou a doutrina

de Pirro (360-270 a.C.), isto é, o ceticismo pirrônico.

Porém, o que o interessou dessa doutrina foi a ataraxia

(impertubalidade ou tranqüilidade da alma), causando-lhe

26

profunda impressão e introduziu-a na sua concepção de vida

hedonista.

Aos 18 anos Epicuro, na condição de cidadão

ateniense, viajou para a metrópole para cumprir o serviço

militar. Em 322 a.C. Perdicas, general poderoso que

assumira a regência do Império legado por Alexandre

Magno, tomou Samos e expulsou dali todos os colonos

atenienses. O pai de Epicuro e família refugiaram-se em

Cólofon, uma importante cidade da costa asiática

(MORAES, 1998, p. 21). E foi nessa cidade que se deu o

reencontro de Epicuro, que contava nessa época com 19

anos de idade, com seu pai. Foi ali que se completou o

desenvolvimento espiritual de Epicuro. Por ser pobre, não

participou de nenhuma escola de renome filosófico

(ULLMANN, 1996, p. 33). Segundo Moraes, “terá sem

dúvida forjado, na década em que permaneceu em Cólofon

(até 310 a.C.), seu caráter e sua filosofia, esta inseparável

daquele” (1998, p. 21).

Aos 30 anos de idade, Epicuro deixa Cólofon após ter

construído o essencial de seu pensamento, desenvolvendo,

sobre os fundamentos do atomismo de Leucipo e

Demócrito, seu original hedonismo, orientado não para os

prazeres vulgares e imediatos, mas para aqueles que são

duradouros e que acompanham a firmeza do caráter e a

lucidez da inteligência (MORAES, 1998, p. 21).

Epicuro viveu em uma época marcada por grandes

mudanças, grandes transformações, de ordem religiosa,

social e política como já demonstramos acima no tópico 2.2.

Assim “para entender as razões por que surgiu o epicurismo,

torna-se necessário ter presentes as circunstâncias político-

27

sociais e ético-religiosos do tempo do mestre do Jardim”

(ULLMANN, 1996, p. 33). Segundo Mewaldt (apud

EPICURO, 2006, p. 15), “Epicuro, homem do século IV

a.C., viu-se cercado dessa vida político-religiosa e das suas

emanações, da herança artística e literária do seu povo, tanto

na sua mocidade quanto mais tarde”. Portanto, Epicuro teve

de se entender com esse panorama político-religioso.

A moralidade no século IV estava em declínio em

todo o mundo grego. Epicuro não olhava, com bons olhos,

com apreço, para a chamada pólis, cuja Atenas era. Na pólis

estava alastrada a vida leviana e a injustiça social. Os vícios

eram incontidos. A riqueza estava concentrada nas mãos de

poucos. Os aristocratas detinham-na. O poder político estava

concentrado nas mãos de algumas famílias. A angústia e o

sofrimento espiritual também aumentavam causando

grandes tormentos de ordem psicológica no povo

(MEWALDT, apud EPICURO, 2006, p. 19-20).

Epicuro, frente ao cenário de sua época, opta pela

vida simples, justa, virtuosa. Ele se opõe ao seu tempo, no

sentido de perceber e sentir que a ética clássica não mais

auxiliava os seus contemporâneos, porque os homens não

eram felizes, e lança sua filosofia na expectativa de restaurar

a felicidade do indivíduo. Pois, enquanto na pólis o homem

era visto a partir da coletividade, no período helenístico o

indivíduo é visto a partir da sua interioridade.

O mundo ético-religioso no tempo de Epicuro estava

contaminado de superstições. Pois a prática religiosa que

deveria dar ao crente, ou ao seguidor, paz de espírito ela o

enchia de temores, isto é, de medo das divindades. A

conseqüência é “que, para muitíssimas pessoas, a religião se

28

tornara uma horrível servidão, pesando, tremendamente

sobre as almas, presas de um formalismo estéril”

(ULLMANN, 1996, p. 36).

Epicuro foi um homem que não estava fora do caos

da sociedade, dos problemas que afetavam diretamente a

seus contemporâneos, e justamente por ele presenciar os

horrores pelos quais passavam foi que ele desenvolveu e

sistematizou sua filosofia. Pois o problema da eudaimonia

(da felicidade) passou a ser a questão central da reflexão de

Epicuro. Portanto, desejoso de dar paz às consciências,

propagou a sua filosofia como um serviço à humanidade

(MEWALDT, apud EPICURO, 2006, p. 20).

Enquanto muitos buscavam o luxo e a ambição,

Epicuro prezava a vida simples e sem ambições, pois este

modo de vida permite a imperturbabilidade da alma, já que

aquela tumultua a alma.

Em suma, o epicurismo surgiu como sistema

filosófico para reconduzir os homens à eudaimonia

(ULLMANN, 1996, p. 40). Quando, à volta de Epicuro, as

pessoas ou são exploradas ou exploradoras, ele se inquieta e

procura ajudar as consciências a encontrarem a paz e a

felicidade. Pois “todo o empenho do fundador do Jardim

endereçava-se, precisamente, para a felicidade dos homens”

(ULLMANN, 1996, p. 23).

29

2.5 Epicuro e o Jardim

As dificuldades enfrentadas por Epicuro para tornar

conhecidas suas idéias não foram pequenas. Com trinta anos

ou pouco mais, em 310 a.C., abriu sua primeira escola de

Filosofia em Mitilene, na ilha de Lesbos que se situa na

costa asiática, ao norte de Samos. Nesta cidade já se tinha

uma escola de Aristóteles há trinta anos. Não obstante

Epicuro obter licença do magistrado do lugar para ensinar

logo foi cassada por instigação da escola adversária

(ULLMANN, 1996, p. 15). NO entanto não foi de tudo vão

a estada dele em Mitilene, pois ali tornou seu discípulo

aquele que mais tarde viria a ser o sucessor de Epicuro na

direção da Escola, que é Hermarco.

Depois de Mitilene Epicuro vai para Lâmpsaco onde

obteve grande aceitação. Nesta cidade os platônicos já

tinham uma escola, porém estava em descrédito por motivos

de falcatruas financeiras de um político (ULLMANN, 1996,

p. 15).

Em Lâmpsaco Epicuro teve apoio financeiro de

lampsaquenses de grandes posses. Estes proporcionaram ao

filósofo segurança por três motivos: “pois angariara um

pugilo de discípulos fiéis; estava convencido do alcance de

sua doutrina; não tinha preocupações com necessidades

materiais” (ULLMANN, 1996, p. 15).

30

Foi somente no ano 306 a.C. que Epicuro transferiu a

Escola para Atenas, pois era o lugar ideal para difundir suas

idéias. Em Atenas ele comprou um Jardim com posses

adquiridas em Lâmpsaco. Daí a razão de os seguidores de

Epicuro serem denominados “filósofos do Jardim” ou “os

do Jardim”. Segundo Giovanni Reale (2003, p. 259) “o

próprio lugar escolhido por Epicuro para sua Escola é a

expressão da novidade revolucionária do seu pensamento:

não uma palestra, símbolo da Grécia clássica, mas um

prédio com jardim (no entendimento hodierno, uma horta),

nos subúrbios de Atenas”. O Jardim é lugar afastado do

tumulto da cidade, onde se pode cultivar o silêncio e a

companhia dos amigos, pois a amizade tem bastante

relevância na filosofia de Epicuro.

Na escola, o mestre não excluía ninguém do acesso às

suas comunidades; todos eram bem-vindos: homens,

mulheres, velhos, moços, crianças e até escravos. Entre os

seguidores do Jardim se destacaram Hermarco, que

substituiu o mestre na direção da comunidade de Atenas

após a morte deste ocorrida em 270 a.C; Metrodoro de

Lâmpsaco; Filodemo de Nápoles, e Lucrécio (99-55/54

a.C.).

Epicuro morreu, em 270 a.C., com 72 anos de idade.

Diôgenes Laêrtios é um historiador antigo que, graças a ele,

foi conservado parte das obras de Epicuro e de sua doutrina.

Diôgenes descreve sobre a morte do mestre do Jardim:

Epicuro morreu em conseqüência de cálculos renais,

depois de passar quatorze dias enfermo, como diz Hermarco

nas Epístolas. Hermarco registra um detalhe, segundo o qual

Epicuro, entrando numa tina de bronze cheia de água

31

quente, pediu vinho puro e o bebeu avidamente, e depois de

recomendar aos amigos que se lembrassem de sua doutrina,

expirou (1977, p. 286).

Epicuro, segundo testemunho de Diôgenes, escreveu

mais de trezentas obras. Foi um extraordinário escritor

superando os seus antecessores pelo número de obras. Na

íntegra resistiram ao tempo e aos ataques feitos ao

epicurismo ao longo dos séculos três Cartas do mestre e

quarenta Máximas ou Sentenças, e ainda os Aforismos. A

primeira carta é dirigida a Heródoto tratando de assuntos da

física; a segunda dirigida a Pítocles trata dos fenômenos

celestes; e a terceira endereçada a Meneceu que trata das

concepções sobre a vida humana, ou seja, da ética

epicurista. As Máximas ou Sentenças Principais constituem

formulações breves com acento na ética.

32

33

3 A FILOSOFIA DE EPICURO

Neste capítulo nos dedicaremos ao estudo e análise do

pensamento de Epicuro. Como dissemos no capítulo

anterior Epicuro foi um autor de muitas obras, mais de

trezentas. Porém, muitos de seus escritos se perderam ao

longo do tempo.

Na organização da filosofia do mestre do Jardim

podemos distinguir três partes diferentes que se

complementam no todo. São elas: a canônica, a física e a

ética. Elas se complementam no todo, isto é, uma dá base e

sustentação para as outras. Sem a física não seria possível

sustentar a doutrina ética; sem a canônica, que trata das

regras e critérios do pensamento indubitavelmente correto,

não seria possível entender a física ou ciência da natureza; e

sem a ética, que é a ciência do agir corretamente do homem,

não seria possível ao homem ser feliz. Porém aquelas, isto é,

a canônica e a física, são estruturadas em função desta

última.

3.1 Canônica

Na canônica Epicuro elabora as regras e critérios da

evidência, isto é, do conhecimento indubitavelmente certo.

34

Pois a canônica constitui a disciplina que tem por objetivo

determinar as regras e os critérios do conhecimento.

Para Epicuro a fonte suprema de todo o conhecimento

é a sensação. Pois aquilo que percebo é real e verdadeiro

enquanto tal. E, portanto, as sensações não nos enganam

nunca. Assim, “não há argumento, não há dialética que me

faça não ter sentido o que senti, não ter visto o que vi”

(MORAES, 1998, p. 29), pois a existência efetiva das

percepções imediatas é a garantia da veracidade da

sensação. Por essa razão as sensações são sempre infalíveis.

Como se dá a sensação para Epicuro A sensação se

dá por meio do contato, do choque entre nossos órgãos dos

sentidos com os átomos tênues que escapam dos objetos que

são semelhantes em tudo aos próprios objetos. Pois estes

átomos tênues são pequenas “imagens” ou “simulacros” dos

objetos que afectam nossos sentidos nos dando a conhecer

por meio da sensação aquilo que nos atinge.

A sensação nos dá a possibilidade de colher o ser de

modo infalível. Isto porque ela é sempre verdadeira e nada

pode contradizê-la nem mesmo “a razão, porque a razão

depende totalmente das sensações” para poder elaborar os

raciocínios (EPICURO, apud DIÔGENES, 1977, p. 291). A

sensação é uma afecção e, por conseguinte, passiva; ela é

sempre “produzida por alguma coisa da qual é o efeito

correspondente e adequado” (REALE, 2007, p. 261).

Para Epicuro a sensação é objetiva e a-racional.

Giovanni Reale (2003, p. 261) diz que a sensação "é

objetiva e verdadeira porque é produzida e garantida pela

própria estrutura atômica da realidade”. E é a-racional

35

porque nada, nem por si mesma nem movida por causas

externas, pode ser acrescentado ou tirado dela seja o que for.

O segundo critério de verdade desenvolvido por

Epicuro é o das antecipações. As antecipações são o mesmo

que “prolepses” ou “pré-noções”. Jean-Francois (1993, p.

22) define prolepse como “um vestígio de uma percepção

atual sob noções tão gerais quanto seja necessário”. A

prolepse é uma representação mental ligada diretamente à

sensação da qual esta é causa e aquela é efeito. A prolepse

está no âmbito da memória. As experiências do passado

ficam guardadas na memória deixando, por sua vez,

“impressões”. Essas impressões permitem conhecer as

qualidades das coisas mesmo sem tê-las atualmente diante

do sujeito cognoscente. Por se ter tido muitas experiências

com determinado objeto este por meio das sensações produz

uma idéia universal na mente do sujeito. A prolepse, ainda,

“é a memorização de um objeto externo que apareceu

freqüentemente”. Quando se diz “homem” sua figura, sua

forma e qualidades se apresentam imediatamente ao nosso

pensamento por via de antecipações. Estas antecipações são

sensações sofridas no passado que agora são chamadas a se

manifestar ao pensamento por meio da noção geral de

“homem”. Cada nome está imediatamente ligado às

sensações. Investigar algo só se é possível desde de que se

tenha já algum conhecimento anterior sobre esse algo. Para

exemplificar: “aquilo que está à distância é um cavalo ou

um boi”, para dizer se é um boi ou um cavalo deve-se ter,

por antecipações, conhecido em alguma ocasião anterior a

figura ou a forma de um cavalo ou de um boi. Portanto,

somente a partir de um conhecimento prévio se pode

nomear as coisas. Por conseguinte as prolepses são

imediatamente evidentes e verdadeiras.

36

A opinião, também chamada pelos epicuristas de

suposição, depende também das sensações. Se for uma

opinião nova precisa-se de uma visão anterior

imediatamente evidente, isto é, de uma prolepse. Uma

opinião é verdadeira se os sentidos com evidência a

confirma ou não a contradiz; é falsa se os sentidos não a

confirma ou a contradiz.

O terceiro critério de verdade estabelecido por

Epicuro é o do sentimento (afecção). Este por sua vez se

divide em dois: o sentimento de prazer e o sentimento de

dor. O sentimento de prazer “é conforme a natureza

humana”, já o sentimento de dor “é contrária” à natureza

humana. As escolhas são, todavia, efetuadas em base ao

critério do sentimento de prazer. Se causar prazer é bom; ao

contrário se causar dor, é ruim. Portanto, aquilo que causa

prazer é escolhido, aquilo que causa dor é rejeitado,

rechaçado.

Porém, nem tudo aquilo que causa prazer deve ser

escolhido. Somente os prazeres nobres devem ser objetos de

escolha do sujeito. Se algo produz um prazer e em seguida

esse prazer traz consigo dor ou provoca desconforto, este

prazer deve ser rejeitado, pois não é nobre e, portanto não

merece ser objeto de escolha.

Na ética de Epicuro abordaremos mais sobre quais

prazeres devem ser escolhidos e quais devem ser rejeitados.

É sobre esse critério, isto é, o do sentimento, que Epicuro

desenvolve sua ética.

37

A sensação, como dito acima, é o critério último da

verdade. E como tal ela não nos engana nunca. E como

acontece o erro O erro acontece por julgamento ingênuo

acerca da realidade, ou seja, por opiniões que não têm a

confirmação da sensação. Ou melhor, o erro não se dá por

causa da sensação, pois ela é sempre verdadeira, mas ocorre

o equívoco por causa da má interpretação feita dessa

sensação. A sensação sempre nos dá a evidência de algo

imediatamente. Inversamente a interpretação é feita por

meio do raciocínio, e este por sua característica que lhe é

inerente é mediato, isto é, é uma operação de mediação, que

usa meios, que passa de idéia para idéia até delas se extrair

uma conclusão. É por meio do raciocínio que surgem as

opiniões e estas, por sua vez, carecem de aprovação ou

reprovação das sensações. Se a opinião, como dissemos

acima, tiver a comprovação na sensação esta é, por

conseguinte, verdadeira; caso obtiver reprovação pela

experiência, isto é, pela sensação, é falsa e deve, portanto,

ser rejeitada.

3.2 A Física ou Ciência da Natureza

Conforme Epicuro, para saber como o cosmos é

formado e conhecer as verdades fundamentais da natureza

temos de ultrapassar não somente a sensação, mas também

as noções gerais ou universais. Isso implica que temos de

partir das coisas sensíveis para atingir aquelas que são

invisíveis. As sensações nos dão a conhecer aquilo que é

visível e sensível, porém o cosmo e as verdades

38

fundamentais são invisíveis. Para atingir essas verdades

fundamentais precisa-se fazer uso dos “olhos” da

inteligência, isto é, do raciocínio que nos permite concluir

do perceptível aos sentidos para o não-perceptível à

sensação.

Epicuro elabora o estudo da física ou da ciência da

natureza com um propósito bem preciso: dar fundamento à

ética. A física é uma das grandes partes da estrutura do

pensamento de Epicuro.

Epicuro ficara quando jovem intrigado com um verso

de Hesíodo: “No princípio todas as coisas vieram do caos”.

Ele, porém perguntou: de onde veio o caos Na perspectiva

de entender e responder a esse problema foi que ele

elaborou o seu sistema sobre a física. Não obstante, seus

estudos foram direcionados sobre a perspectiva de saber

como o cosmo é formado e como ser feliz nele.

Para Epicuro “nada nasce do não-ser”. Mas o todo

existe assim e assim sempre será assim. Nada poderá ser-lhe

acrescido ou tirado. Afinal, o que se entende por todo O

todo é justamente o composto dos átomos e do vazio. “O

todo é constituído de corpos e vazio” (EPICURO, 1977, p.

292). A evidência dos corpos é atestada pelos próprios

sentidos em toda parte. E é nos sentidos, pois estes captam o

conhecido, que a razão se apóia para inferir o desconhecido.

Os sentidos captam os corpos. E o espaço pode-se ter

dele sensação O espaço não é passível de captação pelos

sentidos, pois este é por natureza intangível. O espaço é

produto de inferência e de necessidade lógica. Tendo

observado os corpos se percebe que eles se movem. E um

39

corpo só se pode mover em um espaço ou vazio, portanto, o

espaço ou o vazio (que é o mesmo) é real. O espaço é real

porque sem ele onde ficariam os corpos e onde se moveriam

estes mesmos corpos, visto que nós atestamos pelos sentidos

que há movimento nos/dos corpos O espaço é, portanto, o

lugar dos encontros, dos choques, casuais e necessários de

átomos que formam, desse modo, os compostos

(DUVERNOY, 1993, p. 20). É nesse espaço que se é

possível os compostos existirem. Sem o espaço onde

poderiam existir os objetos e existindo como poderiam se

mover

Os corpos e o espaço existem. Basta-nos saber do que

são formados os corpos. Existem corpos compostos e corpos

simples. Os corpos compostos são percebíveis pelos

sentidos, já os corpos simples são percebidos somente pela

razão. Os corpos compostos são formados pelos corpos

simples.

O que são os corpos simples “Esses elementos são os

átomos, indivisíveis e imutáveis” (EPICURO, 1977, p. 292).

A dissolução dos corpos compostos não se reduz ao nada,

mas os átomos se desintegram daquele grupo e tornam-se

novamente invisíveis aos sentidos. Os átomos são os

princípios das coisas, são indivisíveis e de natureza

corpórea. Portanto, segundo Epicuro, tudo o que existe é

formado pelos átomos. Os átomos mesmo sendo invisíveis

aos sentidos são, todavia, corpos.

Em síntese, a realidade em sua totalidade sempre foi

assim e sempre assim será. Nada poderá ser diminuído à

totalidade e do mesmo modo nada poderá ser acrescido a

ela. A totalidade é formada por dois princípios essenciais: o

40

vazio e os corpos. A existência dos corpos é provada pelos

próprios sentidos; a existência do vazio é inferida por meio

dos movimentos dos corpos. Para que se haja movimento é

necessário que haja espaço. Porque, se não houvesse espaço,

os corpos não se moveriam de um lado para o outro. Como

percebemos essa mobilidade dos corpos concluímos que o

espaço existe necessariamente.

Segundo Epicuro, a totalidade é infinita3 e argumenta

dizendo que aquilo que é finito tem uma extremidade

quando confrontado com outra coisa. Porém, o todo não é

confrontado com outra coisa, portanto não possui

extremidade. Não tendo extremidade não tem limites e, por

conseguinte, o todo é infinito e ilimitado.

Outro raciocínio utilizado por Epicuro para provar

racionalmente a infinitude da totalidade é o seguinte:

O todo é infinito também pelo número enorme de

corpos e pela grandeza do vazio, porquanto se o vazio fosse

infinito e os corpos fossem finitos, os corpos não

permaneceriam em lugar algum e se moveriam

continuamente, dispersos pelo vazio infinito, nem teriam um

suporte, nem um impacto para a volta ascendente; se por

outro lado o vazio fosse finito, os corpos, que são infinitos,

não teriam onde estar (EPICURO, apud DIÓGENES, 1977,

p. 292).

Para que a totalidade do real seja infinita cada um dos

seus constitutivos também devem ser infinitos. Assim

3 Lembrando que a totalidade é constituída de corpos e vazio.

41

infinita é a quantidade de corpos e infinito também é a

extensão do vazio.

Os átomos são corpos indivisíveis, imutáveis, e como

tal, eterno. Podem os átomos ser todos iguais Epicuro

afirma que, mesmo tendo as qualidades da indivisibilidade,

da imutabilidade e da eternidade, os átomos ainda têm uma

variedade infinita de figuras, de formas. Porém essas formas

dos átomos não são absolutamente infinitas, só são

ilimitadas diante da capacidade de nossa mente. São

inconcebíveis à nossa mente.

Os corpos e o vazio são eternos. Os átomos são o

substrato, o fundamento, dos corpos compostos. E por sua

vez os átomos são eternos. E desde a eternidade eles estão

em movimento, por isso não há um início para esse

movimento porque os átomos e o vazio existem desde

sempre.

O movimento dos átomos é entendido por Epicuro,

“como um movimento em queda para baixo no espaço

infinito devido ao peso dos átomos, com um movimento tão

veloz quanto o pensamento e igual para todos os átomos”,

(REALE, 2003, p. 265) independente do peso.

Afinal, como são formados os corpos compostos

Para explicar a formação dos corpos compostos a partir do

movimento dos átomos Epicuro introduz em seu sistema a

teoria da declinação (clinámen) ou do desvio. Se os átomos

não se encontrarem com outros como poderia formar os

compostos Para formar os compostos é preciso haver um

aglomerado de átomos. De acordo com a teoria “da

declinação dos átomos (clinámen) os átomos podem

42

desviar-se a qualquer momento do tempo e em qualquer

ponto do espaço num intervalo mínimo da linha reta e,

assim, encontrar outros átomos” (REALE, 2003, p. 265)

formando, por sua vez, os corpos compostos. Portanto, o

clinámen é o efeito que os átomos sofrem desviando-se por

mínimo que seja da linha reta que anteriormente vinham

caindo. Nesse desvio os átomos se chocam uns com os

outros formando, como dito anteriormente, os corpos

compostos, isto é, o cosmo.

Epicuro afirma que

Os átomos estão em movimento contínuo por toda a

eternidade. (...) Alguns deles são projetados a grande

distância uns dos outros, enquanto outros, ao

contrário, recebem o impacto onde estão, quando se

encontram com um aglomerado de átomos ou

permanecem aglomerados e, portanto, compactos, ou

então contidos e protegidos pelos átomos

aglomerados entre si, e, portanto, fluidos (EPICURO,

apud DIÓGENES, 1977, p. 293).

Os átomos se movimentam no espaço, pois é o espaço

que possibilita o movimento. O espaço não cria nenhuma

resistência aos átomos para que estes se movimentem

justamente porque ele é intangível. Os choques se dão no

encontro dos próprios átomos repelindo uns para longe,

outros desviando, outros se unindo. O fato é que tanto a

formação dos corpos compostos quanto a dissolução dos

mesmos se dá nos choques que ocorrem entre os átomos.

Epicuro afirma existir um número infinito de

intermundos tanto semelhantes ao nosso como diferentes

43

dele. Isso porque os átomos, sendo infinitos, se

movimentam muito longe no espaço, isto é, a uma distância

cada vez maior. E como os átomos não foram todos

consumidos na formação de um mundo, ou seja, no nosso,

nada obsta que formam outros mundos semelhantes ao

nosso ou diverso deste, pois os átomos têm infinitas formas

(EPICURO, 1977, p. 293).

3.3 Finalidade da Física Para Epicuro

Em outras palavras: por que Epicuro desenvolve sua

teoria sobre a natureza, isto é, sobre a física Ele desenvolve

sua teoria física para dar suporte, base, fundamento à ética.

Ele diz na carta a Heródoto: “devemos ainda sustentar que a

função da ciência da natureza é a determinação precisa da

causa dos elementos principais e que nesse conhecimento

consiste a felicidade” (EPICURO, apud DIÓGENES, 1977,

p. 301) e a felicidade é atingida a partir de um agir sem

medo dos fenômenos naturais. Para não temê-los precisa

saber como eles se formam ou como se dão.

Para epicuro os fenômenos naturais podem ter várias

explicações. Porém a explicação tem de estar em

conformidade com a sensação recebida dos fenômenos. O

importante é que se tenha uma boa explicação para que se

mantenha o espírito em paz. O sábio é aquele que tem

44

autodomínio e por isso bem sabe interpretar os fenômenos

naturais.

Atormenta o ser humano ignorar as causas daquilo

que lhe é apresentado. Se não conhece o que lhe acontece

então o desconhecido transforma-se na sua mente um

terrível monstro. Mas uma vez obtendo uma explicação

louvável4 sobre o fenômeno que lhe era desconhecido, este

cessa de atormentar-lhe a mente.

O método de explicação deve ser baseado na

sensação, isto é, naquilo que se observa. Buscar uma

explicação racional tendo como base os critérios da

sensação e do raciocínio liberta o indivíduo do mito. Pois o

mito é uma narração a-racional que atribui a causa dos

fenômenos aos seres de natureza divina ou a uma força

estranha à própria natureza. Por isso Epicuro rejeita toda e

qualquer explicação que transfira a causa de qualquer seja o

fenômeno aos deuses, pois cumpre-nos deixá-los livres de

qualquer tarefa e em perfeita bem-aventurança. Falaremos

mais adiante sobre a existência dos deuses.

4 Foi dito uma explicação, pois para Epicuro um mesmo fenômeno pode ter várias

explicações. O que vale aqui é a explicação que causa a ataraxia, isto é, que acalma,

tranqüiliza a alma do indivíduo.

45

3.4 A Ética

Epicuro desenvolveu sua ética com base no

atomismo, porque o corpo e a alma humanos são formados

por átomos e, portanto, é na sensibilidade que se estrutura o

critério último do conhecimento humano. A ética é a

doutrina do bem viver. Ela se preocupa, tem como

finalidade, a felicidade do indivíduo. Epicuro desenvolve

uma ética hedonista.

O Mestre do Jardim reforma o hedonismo proposto

pelos cirenaicos dando a ele nova concepção adequando-o

ao seu sistema. O hedonismo de Epicuro é a doutrina

filosófica que tem o prazer como sumo bem e que a

felicidade, fim último da vida humana, consiste na busca do

prazer. Num fragmento Epicuro diz que “chamamos ao

prazer princípio e fim da vida feliz” (2006, p. 106).

Giovanni Reale comentando a doutrina de Epicuro

conceitua o hedonismo como “a doutrina que encontra no

prazer o sumo bem e na busca do prazer o fim da vida do

homem” (2003, p. 269). Duvernoy com outras palavras em

concordância com Epicuro e Giovanni Reale diz que o

hedonismo é a “filosofia para a qual o prazer é um bem”

(1993, p. 20).

Na Carta a Meneceu epicuro exorta seus discípulos ao

estudo da filosofia dizendo “que ninguém hesite em se

dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo

depois de velho” (2002, p. 21) isso porque pela filosofia se

alcança a saúde da alma ou do espírito. Negar a filosofia é o

mesmo que negar a própria felicidade. Tanto para os jovens

46

quanto para os velhos a filosofia é útil, pois para estes traz a

feliz recordação das coisas que já passaram e para aqueles

produz a satisfação de crescer livres dos temores das coisas

que poderão vir acontecer. Viver sem temores é gozar do

prazer da tranqüilidade e, por conseqüência, quem assim

procede pode ser considerado um indivíduo feliz.

Qual é, segundo Epicuro, o sentido último da vida

humana É a felicidade, pois, segundo Epicuro “é

necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a

felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem

ela, tudo fazemos para alcançá-la”, escreve Epicuro na Carta

a Meneceu (2002, p. 23).

É contemplando o tema da felicidade que Epicuro

forja sua ética. A fonte da felicidade está no prazer.

Portanto, a ética epicuréia é hedonista, por ser fundada na

noção de prazer. Em que consiste o verdadeiro prazer para o

Mestre do Jardim Consiste, portanto, “na ausência de

sofrimentos físicos” (aponia) e na “ausência de perturbações

da alma” (ataraxia) (EPICURO, 2002, p. 43).

O prazer é o critério de toda escolha e também de

toda rejeição. É apoiado nesse critério que se escolhe todo o

bem de acordo com aquilo que provoca prazer ou dor. Se

algo provoca prazer este por sua vez é objeto de escolha,

todavia se este provoca dor é objeto de recusa. Apesar de o

prazer ser o bem último e ser o critério de escolha, porém

não é qualquer prazer que o indivíduo deve escolher, diz

Epicuro. Pois em algumas ocasiões é melhor evitar certos

prazeres quando deles vier efeitos desagradáveis; é

preferível nesses casos sofrer algum dano se dele advier

prazer maior que os sofrimentos padecidos. Epicuro escreve

47

que “todo prazer constitui um bem por sua própria natureza;

não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo

modo, toda dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre

evitadas” (2002, p. 39).

Sobre o prazer Epicuro classifica os que:

- São naturais e necessários;

- Aqueles que são naturais mas não necessários; e

- Aqueles que não são naturais e nem necessários.

Assim, com essa classificação, Epicuro estabelece

uma hierarquia entre os tipos de prazer, explicitando quais

classes de prazer conduzem o indivíduo à verdadeira

felicidade. Pois a meta a ser alcançada é a aponia e a

ataraxia. É seguramente conhecendo os tipos de prazer que

o homem efetua suas escolhas tendo claramente aqueles que

o levarão a atingir a finalidade, que é a eudaimonia.

Os prazeres naturais e necessários são aqueles que

dizem respeito à manutenção da vida biológica do

indivíduo, e são esses que realmente têm validade, pois

subtraem toda dor do corpo. Por exemplo, comer quando se

tem fome, beber quando se está com sede, dormir quando se

tem sono. A satisfação dessas necessidades é fundamental

para o bem-estar do corpo do indivíduo.

A segunda classe de prazeres classifica os desejos e

prazeres supérfluos. Alimentar quando se está com fome é

natural e necessário, porém não é necessário suprir a

necessidade de alimento com iguarias refinadas. Isso é

inútil. Do mesmo modo é o caso do vestir. Não é necessário

se vestir com vestes aperfeiçoadas, e assim por diante.

48

A terceira classe de prazeres é aquela que deve ser

evitada e desprezada, pois é inútil ao indivíduo. A esta

classe Epicuro cita os desejos de riqueza, poder, honra e

outros do gênero. Os prazeres deste grau não eliminam as

dores no corpo e ainda causam perturbações na alma.

Portanto, devem ser rejeitados e reprovados.

O primeiro grau de prazer refere-se àqueles desejos

que devem ser satisfeitos e queridos, porque uma vez tendo

saciado os desejos dessa ordem elimina-se a dor do corpo e

suprime as perturbações da alma. O segundo grau não tem

por limite a satisfação da necessidade, mas apenas a

intensidade do deleite. E pode, em conseqüência provocar

grandes danos ao indivíduo. O terceiro grau não tem a

finalidade nem de subtrair a dor do corpo nem tampouco de

livrar o indivíduo das perturbações na alma. A segunda e a

terceira classe de prazeres descreve aquilo que é inútil e

desnecessário. Epicuro para estabelecer essa ordenação

parte do pressuposto de que “tudo o que é natural é fácil de

conseguir; difícil é tudo o que é inútil” (EPICURO, 2002, p.

41). O ideal de vida nessa perspectiva é o da vida simples,

sem ambições além daquilo que é necessário à manutenção

da vida humana no aspecto biológico.

49

3.5 O Sábio e a Felicidade

Epicuro é hedonista, como acima mencionamos, no

entanto, não é qualquer prazer que o indivíduo deve

escolher. Para que o homem escolha corretamente os

prazeres ele tem de fazer uso da razão. É a razão que julga e

discrimina qual prazer deve ser objeto de escolha e qual não.

Usar a razão de maneira apropriada é ser autárquico, é ser

sábio. O sábio é aquele que está submisso ao logos, pois

esta é a condição natural que o indivíduo possui para

alcançar a eudaimonia (LIMA VAZ, 1991, p. 44).

O sábio é o indivíduo mais feliz, isto porque é

virtuoso. As virtudes estão ligadas intimamente à felicidade,

e a felicidade não se dá separada delas. A prudência é a sede

de todas as virtudes: da beleza e justiça, etc. A prudência é o

principio e o bem mais elevado, até mais que a filosofia

(EPICURO, 2002, p. 45). Perseguindo a virtude da

prudência as demais virtudes virão por conseqüência. E, por

conseguinte, quem assim age é sábio e feliz.

O sábio pensa naquilo que deve pensar para ser feliz.

Portanto, o sábio possui uma boa saúde espiritual e não

precisa, por conseguinte, de médico ou de remédio para ter

tal saúde, porque ele já a tem, já a possui. Em contrapartida

a filosofia não é a saúde da alma, mas é a disciplina

intelectual (o remédio) que expulsa os males, dissipa as

perturbações que a afeta permitindo assim ao indivíduo a

possibilidade da felicidade.

50

A sabedoria é sublime até mais que a filosofia porque

para ser feliz basta saber escolher bem os prazeres, visto que

a sabedoria tem sua função prática, cotidiana. Porém nem

todos os homens são sábios, portanto, a partir disso se tem a

necessidade da filosofia. Um fragmento Epicuro citado por

Duvernoy diz o seguinte:

É vazio o discurso do filósofo que não trata

(therapeueta) de nenhuma paixão humana. De fato, do

mesmo modo – osper – que o médico de nada serve se não

extirpa as doenças do corpo, assim também – outos – a

filosofia de nada serve se não expulsa para fora da alma as

coisas que a afetam (EPICURO, Apud DUVERNOY, 1993,

P. 78).

É fazendo um exame cuidadoso que explicite as

causas das escolhas e das rejeições efetivadas que remove as

opiniões falsas acerca da realidade, pois estas opiniões

falsas perturbam os espíritos. À medida que o homem (que

não seja ainda sábio) se livra, por intermédio da filosofia,

dos temores da alma ele se torna feliz.

A filosofia é bem vista por Epicuro por causa da

utilidade que ela presta ao indivíduo. A filosofia não deve

ser uma atividade teoricamente vazia, isto é, que o discurso

filosófico não seja elucubrações sobre nada. Mas que o

discurso filosófico traga luz para a ação cotidiana do

indivíduo e seja remédio para a alma do homem doente do

espírito.

Pelo uso da filosofia o indivíduo poderá ascender ao

grau máximo da felicidade que é o patamar no qual se

enquadra o sábio. Porém nem todos são ou serão sábios,

51

mas todos os indivíduos têm o direito de ser feliz. Todos,

crianças, velhos, escravos, homens livres, mulheres, etc.

podem ser felizes, basta se pôr no caminho da filosofia do

Mestre do Jardim.

3.6 A Amizade

Epicuro, como vimos acima, viveu a queda da Grécia

enquanto cidade-estado. Com a derrocada desta diluiu-se

também os valores a ela intimamente ligados. Um exemplo

dos valores é o do homem-cidadão. Já não havia, no

contexto em que viveu o Mestre do Jardim, coerência entre

cidade e cidadão. Portanto, “o homem deixou de ser

homem-cidadão para tornar-se puro homem-indivíduo”

(REALE, 2003, p. 272).

Na pólis os cidadãos se uniam e reuniam em torno de

discussões que dissesse respeito à cidade-estado. No novo

cenário político e social, para unir os indivíduos entre si

seria preciso de uma força que não fosse estranha a eles e

esta se chamou: amizade. Amizade, porque esta é “o laço

livre que reúne juntos aqueles que sentem, pensam e vivem

de modo idêntico” (REALE, 2003, p. 272).

Viver na companhia de amigos é o mesmo que ser

feliz. Epicuro elogia a conquista da amizade. Um fragmento

seu nos diz: “de todas as coisas que nos oferece a sabedoria

para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição da

52

amizade”; e um outro fragmento afirma: “toda amizade é

desejável por si própria, mas inicia-se pela necessidade do

que é útil” (EPICURO, 1973, p. 28).

A amizade, como diz Epicuro, nasce a partir daquilo

que é útil, porém uma vez nascida torna-se fonte de prazer e,

portanto, um fim em si mesma. Na vivência da amizade

nada é imposto de fora e de maneira que não seja natural.

Dessa forma não se viola a intimidade do indivíduo.

O surgimento de uma amizade pode acontecer de

várias maneiras, porém surge a partir da necessidade pessoal

de cada indivíduo. Às vezes se inicia uma amizade por

causa de um favor feito por alguém a outrem. Após o feito

se cria laços que perdura pela existência dos envolvidos

nessa relação de amizade.

Numa amizade consolidada podemos sentir o

prazer da segurança. Quando estamos amargurados,

chateados ou algo do gênero, é o ombro da pessoa amiga

mais próxima que requeremos para sermos consolados. A

expressão “ombro da pessoa amiga” significa aqui a

necessidade de se ter a atenção total do amigo procurado no

momento em que solicitamos. Pois o que se procura na

maioria das vezes não é alguém que fala, mas alguém que

nos escuta atentamente e que respeita nosso momento de

angústia.

Podemos perceber em consonância ao que falamos

acima que a amizade possui utilidade. Todavia a utilidade

numa amizade deve ter limites, pois se assim não for não é

amizade. A amizade tem de ser fim em si mesma e não meio

para conseguirmos a realização dos nossos caprichos

pessoais.

53

Quem exige ajuda constantemente, e, do mesmo

modo, quem nunca a presta, não é um amigo. O primeiro

quer comprar o nosso esforço com o seu afeto; o segundo

nos rouba, para todo o futuro, a esperança consoladora

(EPICURO, 2006, p. 77).

Epicuro estabelece limites de utilidade numa

amizade para que ela possa ser conservada. Como sabemos,

a amizade tem sua genes naquilo que é útil, mas deve cessar

o utilitarismo para que a amizade seja ela mesma fonte de

prazer. A alegria de viver entre amigos é contagiante.

Podemos sentir fortemente a alegria da amizade quando

reencontramos alguém que nos marcou positivamente e que

por razões e outras teve de nos deixar. A presença dessa

pessoa tão estimada por nós desperta emoções que dizemos

sem hesitar: é bom tê-la como amiga.

54

55

4 CAMINHO DA FELICIDADE:

O TETRAFÁRMACO

O Mestre do Jardim desenvolveu sua filosofia com

um propósito bem claro: curar as almas enfermas. Ao longo

da Tradição filosófica ficou conhecida a síntese da ética de

Epicuro como Tetrafármaco, ou os quatro (tetra) remédios

(pharmaco).

Àqueles que, por uma razão e outra, têm algum

desequilíbrio na alma é útil a aplicação sobre si mesmos do

tetrafármaco, pois este serve para todas as pessoas que

queiram ser felizes. Serve tanto para homens livres, para

escravos, mulheres, crianças e até estrangeiros. A felicidade

é o escopo da filosofia do Epicuro. Todos anseiam em ser

felizes, porém o caminho e o método pelo qual e com que

direcionam suas vidas nem sempre conduzem à beatitude.

A bem-aventurança não é alcançada diretamente, ela é

conseqüência das escolhas e das ações do homem sensato.

Por essa razão Epicuro propõe uma forma de aprendizagem

da felicidade ao mesmo tempo ampla e irrestrita, mas não

utópica. Não utópica porque ele, Epicuro, considera o

homem na sua singularidade, na cotidianidade, na

concretude do indivíduo. E, portanto, a proposta dele está

aberta para todo e qualquer indivíduo e não para apenas

alguns eleitos marcados pela graça divina, ou para alguém

superdotado de inteligência.

56

A todos, portanto, a filosofia de Epicuro proporciona

os quatro remédios que curam a alma e o corpo e, por

conseguinte, o indivíduo alcança a felicidade. Os remédios

são:

a) não temer os deuses;

b) não temer a morte, pois ela não é nada;

c) o prazer é o bem supremo e está a disposição de

todos; e

d) a dor é suportável.

Esses são os remédios terapêuticos que levam o

indivíduo a reencontrar a felicidade. Aquele que souber

aplicar esses remédios a si mesmo poderá alcançar a paz de

espírito e a bem-aventurança.

Os remédios propostos por Epicuro, que se refere à

maneira de agir e, portanto, à ética, estão em conformidade

com a sua física. A alma e a morte são vistas e entendidas a

partir da ótica da física desenvolvida por ele.

Assim, tudo o que existe é formado pelos átomos,

inclusive nosso corpo e nossa alma. A alma é corpórea, no

entanto é formada de partículas sutis, delicadíssimas que se

expande por todo o organismo. A alma, por sua sutileza e

por estar em todo o corpo humano, é responsável pelas

sensações. Contudo, a alma é amparada pelo corpo, isto é, a

alma sem o corpo não teria sensações, mas o corpo sem ela

não poderia também sentir. A alma é a causa principal das

sensações, mas não seria se não se servisse de um corpo,

porque o corpo é ocasião para efetivá-las.

A alma é um aglomerado de átomos. E como

conseqüência lógica do sistema de Epicuro ela não é

57

imortal, mas mortal. O que é a morte para Epicuro A morte

já não é mais a separação da alma do corpo, como dissera

Platão, pois a alma não é imaterial, nem imortal. A alma

sendo um conjunto de átomos sutis que está em estreita

relação e consenso com o corpo e que dá ao corpo a

capacidade da sensação e o corpo é a ocasião da sensação a

morte é justamente a perda da sensação tanto de dor quanto

de alegria. A morte é o término de todas as sensações, tanto

das que alegra quanto das que causam sofrimento. Assim

um dos fragmentos de Epicuro (2006, p. 61) expressa: “a

morte nada é para nós, pois aquilo que já foi dissolvido não

possui mais sentimento. Aquilo, porém, que não possui mais

sentimento, não nos importa”.

Um organismo sem a alma é sem vida, isto é, não é

dotado da capacidade de sentir. Um corpo quando perde

parte sua, por exemplo, um braço, ele continua tendo

sensação, porém a parte extraída daquele conjunto perde a

sensibilidade. Mas se o corpo todo for mutilado e

desmembrado a alma também se dissolve, pois o corpo que

é a base da sensação já não existe mais. Contudo se um

corpo permanece inteiro e a alma se esfacela o corpo perde a

sensação constituindo, assim, a morte.

58

4.1 Não Temer os Deuses Nem a Morte

Os deuses são conhecidos somente pelo pensamento,

pois possuem natureza extremamente sutil e captamos seus

simulacros somente pelo pensamento. Contudo é evidente o

conhecimento que temos deles. Eles de fato existem, afirma

Epicuro. Como tudo o que existe, eles também são

corpóreos. Porém são formados por átomos sutis,

delicadíssimos.

A concepção errônea que a maioria tem dos deuses

faz com que os indivíduos sofram. As idéias erradas sobre

os deuses escravizam e atormentam o espírito do homem. O

medo da ira e das intemperanças (o que é estranho aos seres

bem-aventurados) dos deuses fazem com que continuamente

os crentes ofereçam sacrifícios para abrandar as fúrias deles

e que no fim da vida o homem piedoso seja afortunado com

a vida feliz e não seja lançado no Hades, onde sofrerá duras

penas. Essa preocupação que perturba os espíritos humanos

baseia-se na “crença de que os deuses causam os maiores

malefícios aos maus e aos maiores benefícios aos bons”

(EPICURO, 2002, p. 25).

Mas não se deve temer os deuses, justamente porque

eles não se preocupam com os homens, isto é, eles não

interferem em nada na natureza e nem nas ações humanas. É

inútil e desastroso para o espírito humano temê-los. Os

deuses são seres imortais e bem-aventurados, e como tal,

não têm preocupações com nada e nem com ninguém. Eles

somente “aceitam a convivência com os seus semelhantes e

59

consideram estranho tudo o seja diferente deles”

(EPICURO, 2002, p. 27). Portanto, não devemos esperar

nada dos deuses e nem temê-los, pela simples razão de que,

vivendo em eterna satisfação, eles conosco não se

preocupam (MORAES, 1998, p. 65).

Os deuses não interferem em nada na vida dos

homens e nem na natureza. Não são os deuses, mas sim os

átomos que estão em constante movimento que regem o

Universo. Portanto, não há necessidade de temê-los, pois

eles não são vingativos ou odiosos como o vulgo

costumeiramente julga. Nessa perspectiva Epicuro escreve

que “um ser ditoso e eterno (a divindade) não conhece penas

e nem transfere para um outro ser”. Nem tampouco os

deuses são complacentes e benevolentes. Pois, de acordo

com Epicuro (2006, p. 61) os deuses não conhece nem ira

nem benevolência. Ter sentimento de ira ou de benevolência

é característica de seres fracos. Portanto, nada disso condiz

com a natureza divina, porque são seres eternos e felizes,

não têm preocupações e nem perturba a ninguém. Eles são

indiferentes aos homens.

Ter opinião correta sobre as divindades é um grande

remédio para conduzir o indivíduo à eudaimonia. Em vez de

temer os seres bem-aventurados deve-se tê-los como

paradigma, como modelo a ser perseguido para atingir a

verdadeira felicidade.

Tudo o que existe é corporal, portanto se os deuses

existem, são corpos, e o conhecimento que se pode ter deles

é por meio de percepções. A prolepse que se tem dos deuses

é conhecida por meio do pensamento, pois os deuses são

corpos, mas o são invisíveis. De acordo com Moraes,

60

“Epicuro, coerente com sua canônica, leva a sério a

constatação de que todos os povos, em todas as regiões,

possuem uma prenoção dos deuses”. Isso mostra que os

indivíduos têm percepção dos deuses, porém é uma

percepção confusa, enigmática, no sentido de que não é a

prolepse de um deus específico, mas é uma sensação da

divindade enquanto tal. Por causa dessa universalidade da

prolepse da divindade prova-se, então, que a prenoção dos

deuses não é ilusória.

Na Carta a Meneceu Epicuro (2002, p. 25) afirma que

“os deuses de fato existem e que é evidente o conhecimento

que temos dele”. O que não existe é a imagem que a maioria

das pessoas concebem desses seres divinos. O vulgo

considera que os deuses castigam os maus e recompensam

abundantemente os bons. Mas os deuses são seres bem-

aventurados e não se preocupam os homens e nem com o

mundo.

O filósofo é aquele que tem o juízo correto acerca dos

deuses. Os deuses não são seres que criam as coisas e nem

são senhores do mundo nem dos homens. A relação dos

deuses conosco não é nada, pois eles são “deuses-para-si-

mesmos, isso exclui que eles sejam deuses-para-outrem, é

justamente essa plenitude contente consigo que faz deles

deuses, e que faz com que os conheçamos como tal”

(DUVERNOY, 1993, p. 62).

Os deuses por serem deuses são imortais e bem-

aventurados. Eles são seres que vivem em plenitude a

ataraxia, isto é, eles vivem totalmente sem perturbação

alguma. É importante para o ser humano reconhecer que

existam os deuses. Porque ao notar que eles existem o

61

homem percebe que a idéia de felicidade não é algo

impossível de ser atingido, visto que os deuses a vivem em

plenitude. Por essa razão eles merecem respeito como

paradigmas da felicidade. Mas, no entanto, os deuses não se

preocupam conosco.

Temer a morte é um desconforto que imediatamente

perturba o espírito do indivíduo humano. Epicuro (2002, p.

27) percebendo isso escreve na Carta a Meneceu

“acostume-te à idéia de que a morte para nós não é nada,

visto que todo bem e todo mal residem nas sensações, e a

morte é justamente a privação das sensações”. A morte é

tida muitas vezes como algo doloroso e danoso, pois impede

de o homem ser imortal. Há, todavia, um desejo de

imortalidade que toma conta dos sentimentos do indivíduo e

este, por final, sofre amargamente quando se vê impotente

frente à impossibilidade de realizar tal desejo.

Um justo entendimento do que seja a morte supera

esse terrível medo e conduz o indivíduo ao caminho da

felicidade. Como a morte é perda da sensibilidade escreve

na Carta a Meneceu que “o mais terrível de todos os males,

a morte, não significa nada para nós, justamente porque,

quando estamos vivos, é a morte que não está presente; ao

contrário, quando a morte está presente, nós é que não

estamos” (EPICURO, 2002, p. 29). A morte cessa todo o

movimento humano, pois ela é dissolução do composto em

elementos, isto é, é a dissolução do aglomerado de átomos

em suas partículas atômicas, tanto do corpo quanto da alma.

Ao dissolver o corpo e a alma não há mais sentimento.

Entendendo que a alma não é imortal é inútil alimentar a

crença na imortalidade da dela, pois essa idéia é

incompatível com a natureza das coisas, pois a morte é

62

simplesmente a separação dos átomos componentes do

organismo.

Portanto, não se deve temer a morte porque ela nada é

para nós visto que em quanto somos ela não é, e quando ela

é nós é que não somos. É vã a preocupação com a morte,

pois essa idéia tolhe a alegria do homem em viver. Cabe ao

indivíduo viver honestamente e também de morrer

honestamente, porque “o sábio nem desdenha viver, nem

teme deixar de viver; para ele, viver não é um fardo e não-

viver não é um mal” (EPICURO, 2002, p. 31).

4.2 O Prazer é o Bem Supremo e a Dor é

Suportável

O prazer é o supremo bem, pois ele “é o início e o fim

da vida feliz” (EPICURO, 2002, p. 37). Em que consiste o

verdadeiro prazer para o Mestre do Jardim Consiste,

portanto, “na ausência de sofrimentos físicos” (aponia) e na

“ausência de perturbações da alma” (ataraxia) (EPICURO,

2002, p. 43). Quando se está com fome o prazer advém à

medida que o indivíduo se alimenta com o mínimo

necessário. Quando, por exemplo, se tem medo da morte à

medida que se tem o justo entendimento de como a natureza

é constituída tal medo é dissipado dando espaço à

tranqüilidade do espírito. No entanto “o apogeu do prazer

será alcançado quando todas as dores forem eliminadas.

63

Pois onde entrou o prazer não existem, enquanto ele reinar,

nem dores nem padecimentos” (EPICURO, 2006, p. 61).

Aquilo que é necessário para suprir as carências

humanas nos é fácil obter. Quando estou com fome terei o

mínimo sem grandes dificuldades para suprimir minha

carência de alimento. Assim, o prazer imediatamente sucede

àquilo que instantes antes me fazia sofrer. A razão disso é

que o prazer está indistintamente ao alcance de todos.

Segundo Epicuro “tudo o que é natural é fácil conseguir;

difícil é tudo o que é inútil” (2002, p. 41). Perseguindo o

exemplo acima, quando estou com fome se apenas quero

eliminá-la, um alimento simples é fácil de ser conseguido;

porém é difícil quando quero uma iguaria requintada. Assim

“os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer

que as iguarias mais requintadas, desde que se remova a dor

provocada pela falta: pão e água produzem o prazer mais

profundo quando ingeridos por quem deles necessita”

(EPICURO, 2002, p. 41). No entanto, o sábio compreende

que o bem supremo está nas coisas simples e fáceis de

adquirir.

A dor tanto física como espiritual não deve tolher a

felicidade do indivíduo, mas para isso se deve ter uma

opinião acertada a esse respeito. A dor tem por natureza a

característica de perturbar o corpo e a alma. Por essa razão

se torna imprescindível conhecer sua natureza. A despeito

disso escreve o Mestre do Jardim:

A dor não permanece ininterruptamente na carne. Por

mais violenta que ela seja, mais curta é a sua duração. Se

ela, porém, existir ao lado do gozo, logo que ultrapasse este

último na carne, não dura muitos dias. Num sofrimento mais

64

demorado, entretanto, o prazer é sempre um pouco maior do

que o padecimento da carne (EPICURO, 2006, p. 61-62).

A dor é o oposto do prazer. Quando se está com

alguma dor e esta cessa significa que há nesse instante a

prevalência do prazer. O prazer está ao alcance de todos,

porém quando o indivíduo é acometido por alguma

enfermidade este, se não conhece essa realidade, fica

perturbado e por essa razão não consegue obter o mínimo de

prazer nas ações que poderá vir a realizar. Portanto, frente

ao sofrimento, o homem deve enfrentá-lo com

imperturbável serenidade de espírito para que no cessar a

dor possa gozar o mais consistente prazer.

Dor e prazer são faces da mesma e única moeda, ou

seja, a vida humana está sujeita ao prazer e à dor. Quando

alguém está preocupado, angustiado com algo que sucedeu à

sua existência, então esse indivíduo busca a todo custo se

livrar do incômodo para desfrutar da alegria do prazer. A

busca pelo prazer é uma característica inerente à ação

humana. Portanto saber que a dor tem limites poderá dar

coragem para o indivíduo enfrentar as dificuldades que

acometem tanto a alma quanto o corpo.

Mas como agir frente à dor É em momentos assim

que se faz necessário a filosofia. Pois é momento de

perceber as circunstâncias na totalidade e avaliar qual

atitude será melhor para aquele específico momento. Saber

avaliar e escolher é mérito da razão e portanto da filosofia.

Epicuro, ao formular o tetrafármaco, deu resposta às

angustias dos indivíduos de seu tempo. No entanto o

quádruplo remédio responde às principais causas da

65

infelicidade do homem de modo geral: o medo dos deuses; o

apavorar-se mediante o conhecimento de que o homem

morre; a dificuldade de escolher os objetos do desejo que

proporcione prazeres mais duradouros; e o problema de

angustiar-se frente ao sofrimento.

O indivíduo que puser em prática o tetrafármaco este

será feliz, conquistará para si a eudaimonia. O

conhecimento acerca da natureza e do modo como o ser

humano conhece tem a finalidade de ajudar o indivíduo a

agir bem. É conhecendo bem a natureza das coisas e agindo

bem, isto é, escolhendo bem, que se encontra a verdadeira

ataraxia. Portanto, a felicidade está ao alcance de todos e

não é difícil, basta seguir a terapia do Jardim.

66

67

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No primeiro capítulo, do presente trabalho,

discorremos sobre a pólis e o cidadão. Nela havia uma

perfeita integração entre o cidadão e a cidade-estado.

Portanto, a pólis tornou-se assim o modelo ideal e perfeito

de aglomeração de pessoas, de associação de cidadãos. Nela

as necessidades dos homens pertencentes a ela eram

satisfeitas. Para o grego, de modo geral, a idéia de que a

cidade-estado é o modelo ideal, era tão forte e arraigada na

cultura que nem sequer viam para além dela uma unidade

mais vasta, um império, por exemplo. Com o tempo, por

causa de sucessivas guerras entre as pólis da própria Grécia

e invasões circunvizinhas, a pólis grega entrou em ruína. A

derrocada da cidade-estado se deu finalmente com as

invasões operadas pelo império macedônico. Com as

conquistas de Alexandre Magno, imperador macedônico,

iniciou-se assim o fenômeno denominado Helenismo.

Com a queda da pólis caíram também os valores a ela

intimamente ligados. Já não há mais aquela integração

natural entre a pólis e o cidadão. Surge, então, a idéia de

indivíduo, que é novidade para a época. O indivíduo é a

nova sede da ética. Pela primeira vez na história da filosofia

moral a ética discursa tendo o homem na sua singularidade.

O centro das discussões éticas acerca do indivíduo é a

eudaimonia, ou seja, a felicidade.

Nas discussões que se referem à felicidade dos

indivíduos no período helenístico encontramos com Epicuro

68

uma resposta, apesar de não ser o único a se pôr o problema.

Epicuro, como muitos outros filósofos, era comprometido

com seu tempo, com os problemas que afetavam tanto a si

mesmo quanto aos seus contemporâneos.

No itinerário espiritual de Epicuro destacamos que a

visão de mundo que ele aceitou foi a atomista. Introduziu

em sua doutrina a ataraxia que extraiu do ceticismo

pirrônico. A ataraxia é o estado de impertubalidade ou

tranqüilidade da alma.

Epicuro concebeu a vida baseada no prazer. Portanto

sua filosofia é chamada de hedonista por ter o prazer como

fundamento da vida feliz. A eudaimonia é o que os

indivíduos querem e buscam em suas ações. Para auxiliar as

pessoas a alcançarem a ataraxia Epicuro divulga suas idéias

sobre a vida feliz.

No segundo capítulo tratamos sobre o sistema

filosófico elaborado por Epicuro. Vimos que seu sistema é

composto por três partes diferentes que se complementam

no todo. São elas: a canônica, a física e a ética. Elas se

complementam no todo, isto é, uma dá base e sustentação

para as outras. Sem a física não seria possível sustentar a

doutrina ética; sem a canônica, que trata das regras e

critérios do pensamento indubitavelmente correto, não seria

possível entender a física ou ciência da natureza; e sem a

ética, que é a ciência do agir corretamente do homem, não

seria possível ao homem ser feliz. Porém aquelas, isto é, a

canônica e a física, são estruturadas em benefício desta

última.

Na canônica elucidamos que o conhecimento é

possível e que o critério último de fundamentação do

69

conhecimento humano está assentado na sensação. A

sensação é a fonte do conhecimento e ela não nos engana

nunca, segundo Epicuro. Com base nas sensações surgem as

antecipações. Esta é o segundo critério de verdade de acordo

com a canônica epicurista. As antecipações estão no âmbito

da memória. Por se ter visto várias vezes um mesmo objeto

somos capazes de extrair uma noção geral do objeto e de dar

a ele um nome. O terceiro critério de verdade estabelecido

por Epicuro é o do sentimento (afecção). Este por sua vez se

divide em dois: o sentimento de prazer e o sentimento de

dor. O sentimento de prazer “é conforme a natureza

humana”, já o sentimento de dor “é contrária” à natureza

humana. O sentimento é o meio pelo qual efetuamos nossas

escolhas e recusas.

No estudo da física de Epicuro vimos que o todo é

formado pelo espaço e pelos corpos. O espaço não é

passível de ser percebido pelos sentidos, mas é uma

necessidade lógica que nos obriga a aceitá-lo. O espaço é

aquilo que é destituído, por natureza, de matéria.

Tudo o que existe é formado por átomos. Até mesmo

a alma humana é feita por átomos, porém de átomos

sutilíssimos. A alma é responsável pela sensibilidade do

corpo. A morte humana é a perda da sensibilidade e a

desintegração daquilo que é composto em seus elementos

simples.

É importante, segundo Epicuro, conhecer as causas ou

a estrutura da natureza para que o indivíduo não tema os

fenômenos naturais. Entender as causas mais remotas da

física é a base para a ética epicurista.

70

Epicuro desenvolveu sua ética com base no

atomismo, porque o corpo e a alma humanos são formados

por átomos e, portanto, é na sensibilidade que se estrutura o

critério último do conhecimento humano. A ética é a

doutrina do bem viver. Ela se preocupa, tem como

finalidade, a felicidade do indivíduo. Epicuro desenvolve

uma ética hedonista, porém não é qualquer prazer que se

deve escolher. Quem melhor sabe avaliar quais prazeres

escolher é o sábio e, por conseguinte, é o mais feliz de todos

os homens porque, não somente escolhe, mas escolhe bem.

O sábio é aquele que está submisso ao logos, pois esta é a

condição natural que o indivíduo possui para alcançar a

eudaimonia.

No terceiro capítulo abordamos as conclusões éticas

do sistema de Epicuro que ficou conhecida na história da

filosofia como tetrafármaco. Tetrafármaco como o próprio

nome diz significa os quatro (tetra) remédios (pharmaco).

Os quatro remédios são: não temer os deuses; não temer a

morte; o prazer é o bem supremo e a dor é suportável.

Vimos que o tetrafármaco tem a finalidade bem

precisa: curar as almas doentes e conduzi-las à eudaimonia.

O medo é uma doença causada pelo juízo errado acerca

daquilo que é temido. Quando se tem um juízo equivocado

sobre as divindades e sobre a morte pesa na consciência do

indivíduo o medo. Por isso a paz da alma se estabelece no

indivíduo quando este possui um justo entendimento da

realidade divina e da morte.

Ao mesmo tempo em que há a libertação dos temores

dos deuses e da morte o indivíduo é instruído de que o

prazer é o bem supremo e está ao alcance de todos.

Aprende-se com o tetrafármaco que a dor é suportável, por

71

isso se deve aprender a lidar com ela. Portanto aquele que

souber aplicar esses remédios a si mesmo poderá alcançar a

paz de espírito e a bem-aventurança.

A vida tem sentido, segundo Epicuro. As nossas

ações visam sempre uma finalidade específica: a felicidade.

O sentido último da vida humana é, então, a felicidade ou a

eudaimonia. Como o indivíduo é a sede da ética helenística

em todos os lugares e condições é possível a vida humana

ter sentido; basta saber escolher bem. Desejamos por nossa

própria natureza ser felizes. Por essa razão a vida vale a

pena ser vivida segundo a nossa natureza: a razão. O sábio

como vimos é o indivíduo mais feliz porque sua vida é

governada pelas leis da razão.

A melhor forma comunitária onde a eudaimonia é

preservada e garantida é a amizade. A amizade é o modo de

manter relações com outras pessoas sem ferir a liberdade

alheia e até mesmo a própria. Porém a amizade, como diz

Epicuro, nasce a partir daquilo que é útil, porém uma vez

nascida torna-se, fonte de prazer e, portanto, um fim em si

mesma. Na vivência da amizade nada é imposto de fora e de

maneira que não seja natural. Dessa forma não se viola a

intimidade do indivíduo.

Será que a filosofia de vida desenvolvida por Epicuro

é capaz de irradiar luz em nosso tempo para que possamos

entendê-lo Em outros termos: o pensamento de Epicuro é

válido para os homens de hoje A resposta é positiva. A

razão disso é que nós, depois de 2300 anos de distância,

temos algo em comum com “os do Jardim”: o desejo de

felicidade. Mudou-se o tempo e os indivíduos, todavia

somos ainda instigados a trilhar caminho que nos leve a

72

viver com alegria. Porque não basta viver, temos de viver

bem.

Assistimos e lemos constantemente nos noticiários

reportagens que mostram horríveis crimes cometidos contra

a pessoa humana, contra o povo no âmbito político, etc.

Queremos nos ater ao aspecto econômico que nos é bastante

pertinente. Na maioria dos casos, os crimes são feitos por

desejos de riqueza. A vida fausta, luxuosa de muitos, suscita

noutros indivíduos, que costumamos qualificar de bandidos,

o desejo de roubar a riqueza alheia. Um vive protegendo o

que tem e o outro procurando forma de tomar o que aquele

possui. Torna-se um círculo violento, causando muito

sofrimento aos envolvidos nessa disputa pelo ter. O atrito

aflige não somente os grandes detentores de bens materiais,

mas até os pobres que pouco têm ou nada possuem.

É a luta pelo ter que faz muitos não perceberem que

ser é a base para uma vida feliz, bem-aventurada. Epicuro

nesse aspecto é radical. O homem não deve se preocupar

com riquezas e glórias a ponto de perder aquilo que tanto

busca nas riquezas e glórias: a felicidade. O indivíduo deve

ser autônomo (autárquico) e para isso deve se descobrir e

sentir quem se é e, também, o que se é. Para fazer esse

percurso na descoberta do próprio ser ele conta com o

instrumento universal a todos: a razão.

Enfatizar o ser da pessoa humana não é negar a ela o

acesso aos bens materiais. Mas é, por meio da razão,

submetê-los ao serviço do homem e não o contrário.

Quando a vida do indivíduo está presa aos objetos,

concomitantemente ele é escravo deles e põe neles sua razão

73

de viver e estes não conseguem dar ao homem o sentido

último para uma vida boa.

Epicuro serve de referência teórica para motivar

nossos contemporâneos a empreender a busca de ser.

Conseguindo atingir o objetivo de ser muitos problemas

atuais poderiam se resolver, porque não será mais necessário

recorrer à violência para conseguir aquilo que é necessário

para uma vida feliz. Afinal, aquilo que é necessário é fácil

conseguir. Segundo Epicuro (2002, p. 41) “tudo o que é

natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil”.

74

75

REFERÊNCIAS

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2003.

ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Epicuro: O Filósofo da

Alegria. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Antropologia Filosófica I.

São Paulo: Loyola, 1991.

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Epicuro desenvolveu sua ética com base no atomismo, porque o

corpo e a alma humanos são formados por átomos e, portanto, é

na sensibilidade que se estrutura o critério último do

conhecimento humano. A ética é a doutrina do bem viver. Ela se

preocupa, tem como finalidade, a felicidade do indivíduo. Epicuro

desenvolve uma ética hedonista, porém não é qualquer prazer que

se deve escolher. Quem melhor sabe avaliar quais prazeres

escolher é o sábio e, por conseguinte, é o mais feliz de todos os

homens porque, não somente escolhe, mas escolhe bem. O sábio é

aquele que está submisso ao logos, pois esta é a condição natural

que o indivíduo possui para alcançar a eudaimonia.

A melhor forma comunitária onde a eudaimonia é preservada e

garantida é a amizade. A amizade é o modo de manter relações

com outras pessoas sem ferir a liberdade alheia e até mesmo a

própria. Porém a amizade, como diz Epicuro, nasce a partir

daquilo que é útil, porém uma vez nascida torna-se, fonte de

prazer e, portanto, um fim em si mesma. Na vivência da amizade

nada é imposto de fora e de maneira que não seja natural. Dessa

forma não se viola a intimidade do indivíduo.

Epicuro serve de referência teórica para motivar nossos

contemporâneos a empreender a busca de ser. Conseguindo

atingir o objetivo de ser muitos problemas atuais poderiam se

resolver, porque não será mais necessário recorrer à violência para

conseguir aquilo que é necessário para uma vida feliz. Afinal,

aquilo que é necessário é fácil conseguir. Segundo Epicuro (2002,

p. 41) “tudo o que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o

que é inútil.