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TOUT EST BON QUI FAIT DU SON Prof. Dr. Ronel Alberti da Rosa * O título desta comunicação é uma frase do compositor e jornalista Michel Chion, constante de uma entrevista sua com Pierre Boulez. Ela remete sem volteios a uma antiga concepção do estatuto da arte da música: de que todo o som, de que tudo o que produza som seja bom. A concepção não é apenas antiga, ela é também antiquada, ainda que continue viva, sob forma de afeto, na vivência estética da Pós- modernidade. O bom, o belo e o verdadeiro foram fundidos num único amálgama por Platão (Fedro, 246e) e, desde aí, atravessando toda a Idade Média na forma das categorias bonum, verum e pulchrum, se entronizaram no pensamento europeu. A natureza da arte musical, ao mesmo tempo matematicamente severa e figurativamente abstrata, só fez reforçar, com o passar do tempo, a idéia de que pudesse encarnar a expressão ideal de uma arte metafísica: matemática e uma inadequação natural à mimesis só fizeram aproximar-se sempre mais das correntes neoplatônicas de pensamento. Procuremos, então, refletir acerca deste bom e belo – de saída, afirmo não posso imaginar que Chion, compositor de música eletrônica do século XX, queira argumentar de outra forma que não procurando legitimar uma categoria do ruído – isto é, som não organizado, gerador de ondas não regulares – como integrante das colagens de sons de objetos, instrumentos e sintetizadores, como as que emprega em Le prisionnier du son (O prisioneiro do som) ou La tentation de Saint Antoine (A tentação de Santo Antônio). O belo da nossa epígrafe abriga, portanto, traços que tendem ao teológico, ao exigir a inclusão de * PUCRS.

Ronel Alberti Da Rosa PUCRS

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TOUT EST BON QUI FAIT DU SON

Prof. Dr. Ronel Alberti da Rosa*

O título desta comunicação é uma frase do compositor e jornalista

Michel Chion, constante de uma entrevista sua com Pierre Boulez. Ela

remete sem volteios a uma antiga concepção do estatuto da arte da

música: de que todo o som, de que tudo o que produza som seja bom.

A concepção não é apenas antiga, ela é também antiquada, ainda que

continue viva, sob forma de afeto, na vivência estética da Pós-

modernidade. O bom, o belo e o verdadeiro foram fundidos num único

amálgama por Platão (Fedro, 246e) e, desde aí, atravessando toda a

Idade Média na forma das categorias bonum, verum e pulchrum, se

entronizaram no pensamento europeu. A natureza da arte musical, ao

mesmo tempo matematicamente severa e figurativamente abstrata, só

fez reforçar, com o passar do tempo, a idéia de que pudesse encarnar a

expressão ideal de uma arte metafísica: matemática e uma inadequação

natural à mimesis só fizeram aproximar-se sempre mais das correntes

neoplatônicas de pensamento.

Procuremos, então, refletir acerca deste bom e belo – de saída, afirmo

não posso imaginar que Chion, compositor de música eletrônica do

século XX, queira argumentar de outra forma que não procurando

legitimar uma categoria do ruído – isto é, som não organizado, gerador

de ondas não regulares – como integrante das colagens de sons de

objetos, instrumentos e sintetizadores, como as que emprega em Le

prisionnier du son (O prisioneiro do som) ou La tentation de Saint

Antoine (A tentação de Santo Antônio). O belo da nossa epígrafe abriga,

portanto, traços que tendem ao teológico, ao exigir a inclusão de

* PUCRS.

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qualquer som, organizado ou não, proveniente de instrumentos de

orquestra ou não, musicais ou não, ocidentais ou não. “Tudo o que

respira louve JHVH”- assim termina o Salmo 150, reinterpretado por

Ernesto Cardenal sob a forma de “Louvai-o com o toca-discos e com

fitas magnetofônicas”.

O belo em Mozart, o belo em Richard Wagner ou no madrigalista do

Cinquecento Adriano Banchieri esconderiam, segundo este raciocínio,

um fundamento comum. Não importando o que fizessem, todos

estariam cumprindo um plano se inclusão cada vez mais abrangente de

sonoridades originalmente marginais. O que para o canto gregoriano ou

para a incipiente polifonia da Escola de Notre Dame era feio – e ruim –

no século XIII, era bom - e belo e virtuoso - na Veneza de Adriano

Banchieri, e já carregava um cansaço escolástico secular ao chegar às

praias de Tristão e Isolda. Ao bater no século XX, a mesma figura

sonora já estava madura para ser des-classificada pelo frankfurtiano

Theodor Adorno, na medida em que categorias como a tonalidade e a

consonância – simbolizadas pelo tradicional acorde de DO maior – estão

completamente desvalorizadas, isto é, como dinheiro velho, perderam

seu valor: “No Wozzeck, como também em Lulu, o acorde perfeito de

DO maior aparece em contextos completamente desvinculados da

tonalidade, cada vez que se fala em dinheiro. O efeito é de algo banal e,

ao mesmo tempo, obsoleto. A moedinha do DO maior é denunciada

como falsa (Philosphie der neuen Musik, 60).”

A pergunta que continua valendo, então, é aquela de um fundamento

metafísico para o belo musical. Para supor a plausibilidade de um tal

sistema, teríamos primeiro que admitir a dualidade do universo musical

– Platão triunfará sobre Marx? Será esta a ironia da pós-história?

Acompanhemos a hipótese: imaginemos a música como um satélite - se

não terrestre, pelo menos orbitando nossa percepção. Uma das suas

faces, a iluminada e visível, gira à nossa frente, oferecendo, aos golpes

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e arrancos da história, soluções sempre renovadas para as questões

técnicas que se oferecem em profusão infinita. Daí falar-se do belo em

expressões tão díspares quanto as músicas de Perotinus Magnus, em

Adriano Banchieri, em Mozart, em Wagner, em Stockhausen. A outra

face do satélite, não iluminada e escondida de nossos olhos, abrigaria as

infinitas possibilidades de sons, ruídos e suas combinações, a qual

alimenta periodicamente com soluções o lado iluminado, socorrendo-o

de petrificar-se em música unilateral.

O Wozzeck de Alban Berg é belo? Se assim o afirmarmos, e se

porventura julgarmos uma bela composição também o Canto dos jovens

na fornalha ardente de Karlheinz Stockhausen, teremos aqui no mínimo

um problema de coerência estética. Se a dissonância era considerada

diabolus in musica pelos primeiros polifonistas de Notre-Dame, temos

que concordar que era carta fora do baralho. A dissonância ali não

desempenhava nenhuma função porque simplesmente não era material

nem categoria, e não podia, portanto, ser objeto de juízo. Não posso

aceitar a insistente tese de que a história da música ocidental seja a

história da dissonância e de seu tratamento. Isto pode valer para a

história dos procedimentos técnicos, e vale – explica-se aí a confusão, já

que é uma arte que depende em mui grande parcela do apuro técnico: a

técnica é constitutiva para a música, mas não basta somar-se todos os

momentos técnicos para obter-se uma obra.

Do outro lado da história, temos a música contemporânea – tomemos,

como paradigma, o compositor alemão Karlheinz Stockhausen.

Mencionei antes uma de suas composições, o Canto dos jovens na

fornalha ardente, uma colagem de vozes e gravações com fitas

magnetofônicas. É impossível aplicarmos aqui o conceito de dissonância,

tão impossível quanto na música medieval da alvorada da polifonia.

Desde que Schönberg escreveu o seu ensaio Die Komposition mit Zwölf

(12) Tönen, Compondo com 12 notas (concluído em 1941), a relação

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entre os sons não se baseia mais na intensidade de atração e repulsão

recíproca. A música de Stockhausen é tão pouco dissonante quanto a de

Perotinus Magnus pode ser chamada de consonante.

O diabolus in musica, portanto, paradigma do feio e do ruim, encontra-

se tão distante de uma como de outra ponta da história da música. O

grau zero de dissonância equivaleria, neste caso, a um grau máximo de

beleza? Vejamos: o canto dos monges tibetanos é uma forma de

meditação mântrica que consiste na entonação de um único som pelas

vozes dos parcicipantes – portanto, um som cantado. Partindo desta

uma nota, deste um som básico, os chamados sons harmônicos (em

alemão: Obertöne, designação que explica melhor sua natureza física de

múltiplos do som original) vão se agregando naturalmente mais e mais.

Estes sons, que originalmente já vibram, contidos enquanto múltiplos da

vibração da nota fundamental, realizam então suas potencialidades. Por

exemplo, se a nota original for um DO muito rave, no limite da tessitura

humana, este vibrará 66 vezes por segundo (66Hz), a 2ª vibrará o

dobro, 132 Hz, a 3ª 198 Hz, e assim por diante, conforme o quadro

abaixo.

Assim por diante até onde? Até formar uma cadeia fechada de

sucessões harmônicas, um grande acorde cósmico pitagórico de relações

boas, verdadeiras e belas, nas quais podemos confiar para teorizar um

modelo ético platônico? Não, a verdade é que a chamada série

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harmônica - ou série de Obertöne - progride até certo ponto

comportada, e depois começa a apresentar dissonâncias.

O canto dos monges tibetanos, portanto, que se inicia com uma nota

fundamental, a partir da qual, pouco a pouco, vão sendo reforçadas as

sonoridades parciais, oriundas das vibrações múltiplas contidas na série

original, não reproduz a imagem estática e ordenada de um universo

harmonioso e bom – aqui harmonioso e bom tomados como categorias

metafísicas da filosofia ocidental. O que se expressa aqui é, isto sim,

uma concepção de totalidade em que estão contidos todos os sons,

todos os seres, os ordenados e os desordenados, os consonantes e os

dissonantes, os belos e bons e os feios e maus. Entenderemos melhor

isto se desconsiderarmos o paradigma neo-platônico renascentista de

uma teologia da beleza.

O não-belo clássico, cristalizado em obras como o Quarteto 19, As

dissonâncias, de Mozart, ou o Concerto Tempesta di Mare, de Antonio

Vivaldi, pode ser considerado uma disputa lúdica entre ético e estético.

Pergunta: para garantir uma ética máxima teríamos que prescrever um

grau zero de dissonância e de feiúra? E mais: a abolição da categoria da

dissonância não passaria porventura de um estratagema sofístico, já

que, ao decretar-se a inexistência de dissonâncias por meio de um novo

sistema – atonal – este não sugeriria, por conseqüência, corresponder a

uma nova ordem amoral? Qual o sentido, então, de falar-se de música

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boa, de som bom? Diante de tal tabula rasa, o aconselhável seria

procurar, como Descartes o fez com a moral, uma estética provisória?

Talvez Beethoven e Hegel já tenham dado resposta a isto: a grande

fuga do Quarteto opus 133 nos diz muito claramente que a música, a

partir dali, teria que procurar outros parâmetros para se expressar: o

belo já não seria possível. De outra forma, tout est bom qui fait du son

resulta em uma tautologia que nos fará correr eternamente em círculos,

buscando o belo em novas dissonâncias para daí em seguida decair ao

grau de belo acadêmico, isto é, feio, e assim eternamente. A reação já

existe dentro da própria série harmônica, como demonstrei no exemplo

do canto dos monges tibetanos. O feio musical é parte constituinte do

belo musical, e o fato de que o conjunto de punk rock Os Ramones

tenha destilado seu estilo se insurgindo contra o rock bem comportado

de sua década nasce da mesma raiz que fez, há quatro séculos, Claudio

Monteverdi fundir, nas Vespro della beata Vergine, todas as correntes

estéticas que tinha à mão, não se importando com os cânones estéticos

metafísicos então agonizantes do Renascimento. Monteverdi e os seus

sons são bons porque foram colocados juntos, lado a lado, mais que

isto: superpostos, assim como belo e bom na música não podem ser

categorias exclusivas. O convite de Beethoven é o mesmo de Hegel.