26
Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil Colonial Luiz Mott ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-0316 cadernos idéias I U H

Rosa Egipcíaca - ihu.unisinos.br · do em quando, um encanto tão grande, que a gente esquece a cor... As negrinhas são, geralmente, fornidas e sólidas, com ... sidências. No

  • Upload
    tranque

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Rosa Egipcíaca:

Uma Santa Africana no Brasil Colonial

Luiz Mott

ano 3 - nº 38 - 2005 - 1679-0316

cadernos idéiasI UH

UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS

ReitorAloysio Bohnen, SJ

Vice-reitorMarcelo Fernandes de Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos

DiretorInácio Neutzling, SJ

Diretora adjuntaHiliana Reis

Gerente administrativoJacinto Aloisio Schneider

Cadernos IHU IdéiasAno 3 – Nº 38 – 2005

ISSN: 1679-0316

EditorProf. Dr. Inácio Neutzling – Unisinos

Conselho editorialProfa. Esp. Águeda Bichels – Unisinos

Profa. Dra. Cleusa Maria Andreatta – UnisinosProf. MS Dárnis Corbellini – Unisinos

Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – UnisinosProf. MS Laurício Neumann – Unisinos

MS Rosa Maria Serra Bavaresco – UnisinosEsp. Susana Rocca – Unisinos

Profa. MS Vera Regina Schmitz – Unisinos

Conselho técnico-científicoProfa. MS Angélica Massuquetti – Unisinos – Mestre em Economia Rural

Profa. Dra. Berenice Corsetti – Unisinos – Doutora em EducaçãoProf. Dr. Fernando Jacques Althoff – Unisinos – Doutor em Física e Química da Terra

Prof. Dr. Gentil Corazza – UFRGS – Doutor em EconomiaProfa. Dra. Hiliana Reis – Unisinos – Doutora em Comunicação

Profa. Dra. Stela Nazareth Meneghel – Unisinos – Doutora em MedicinaProfa. Dra. Suzana Kilpp – Unisinos – Doutora em Comunicação

Responsável técnicaRosa Maria Serra Bavaresco

RevisãoMardilê Friedrich Fabre

SecretariaCaren Joana Sbabo

Editoração eletrônicaRafael Tarcísio Forneck

ImpressãoImpressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos SinosInstituto Humanitas Unisinos

Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS BrasilTel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467

www.unisinos.br/ihu

Cadernos IHU Idéias: Apresenta artigos produzidos pelos con-vidados-palestrantes dos eventos promovidos pelo IHU. A di-versidade dos temas, abrangendo as mais diferentes áreas doconhecimento, é um dado a ser destacado nesta publicação,além de seu caráter científico e de agradável leitura.

ROSA EGIPCÍACA:UMA SANTA AFRICANA NO BRASIL COLONIAL

Luiz Mott

Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é, certamente, a mulhernegra africana do século XVIII de quem existem mais documen-tos detalhados sobre sua vida, sonhos, escritos e paixão, tantona África como na diáspora afro-americana e no Brasil. Foi a pri-meira afro-brasileira a escrever um livro, do qual restaram algu-mas páginas manuscritas. Dos seus 46 anos de fantástica exis-tência, viveu 20 no Rio de Janeiro, de 1725 a 1733, quando foivendida para as Minas Gerais, onde permaneceu por 18 anosseguidos, retornando à cidade de São Sebastião do Rio de Ja-neiro, em 1751, ficando até 1763, quando foi enviada presa paraos Cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa.

Foi considerada, na época, como “a maior santa do céu”, aquem brancos, mulatos e negros, inclusive toda a família de seuex-senhor e respeitáveis sacerdotes, adoravam de joelhos, bei-jando-lhe os pés, venerando suas relíquias, intitulando-a “a flordo Rio de Janeiro”. Fundou o Recolhimento de Nossa Senhorado Parto, ocupado, predominantemente, por negras e mestiças,cuja capela, reformada, permanece até hoje, no Centro desta ci-dade, na rua da Assembléia. Melhor que ninguém, Rosa tipifica ariqueza e força do sincretismo religioso católico afro-brasilei-ro-carioca. Todos os detalhes de sua vida encontram-se em trêsprocessos conservados na Torre do Tombo em Lisboa, divulga-dos em meu livro Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil.1

Rosa era uma negrinha nascida na Costa de Mina, de naçãocourana, também conhecida como Coura, que desembarcou deum navio negreiro no Rio de Janeiro, em 1725. Tinha, então, seisanos de idade. Pouquíssimas informações encontramos nos li-vros a respeito desta nação africana. Dentre as centenas de etniasnegras trazidas para o Novo Mundo, nos três séculos de tráficonegreiro, os nativos desta nação aparecem referidos nos docu-mentos luso-brasileiros com diferentes grafias: courá, curá, cura-mo, curano, couxaina, courã, karam, e pelos compostos cou-

1 MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro: Ber-trand, 1993. 750 p.

rá-mina, courano da Costa da Mina, courá-baxé. Todos esses no-mes provêm, com certeza, de três importantes acidentes geográ-ficos situados entre a Fortaleza de Oudah (Judá ou Ajuda) e o Rei-no de Benin: o rio Curamo, a lagoa e a ilha do mesmo nome. Senos debruçarmos sobre os poucos mapas antigos da África relati-vos a esta região, podemos descobrir, bem próximo à costa, aosul do Porto de Judá e ao norte do Rio Benin, esses três pontosgeográficos, assim como a pequena vila de Curamo, que, na Des-crição do Reino de Benin, de 1748, diz-se que se situa a dez lé-guas do Rio Formoso, povoação que tinha todo seu espaço cir-cundado por paliçada dupla, distante treze léguas da vila de Ja-bum.2 Revela a mesma fonte que os couranos distinguiam-se dosvizinhos pela excelente qualidade e beleza dos tecidos que aíconfeccionavam, sendo vendidos por altos preços na Costa doOuro. Segundo ensina Pierre Verger (1987), os courá, inimigos doRei do Daomé, habitavam as margens da lagoa de Curamo, nosarredores da atual cidade de Lagos. Provavelmente, foi numa dasbatalhas ou escaramuças entre essas etnias inimigas que nossamenininha courá foi pilhada, vendida com outros cativos e despa-chada no porto de Judá em direção ao Brasil.

Nada sabemos sobre a parentela de Rosa. Na sua confis-são, no Tribunal da Inquisição de Lisboa, quatro décadas maistarde, declarou “não saber quem são seus pais”. Em nenhummomento de sua biografia, esta negra courana fez qualquermenção à sua família africana nem a seu nome original. Somen-te quando adulta foi que construiu sua família espiritual, pois,não só se tornou comadre e madrinha, como também teve deze-nas de “filhas” em seu Recolhimento de Nossa Senhora do Par-to, além de muitas outras dezenas de “filhos espirituais” e devo-tos no interior de Minas Gerais e na cidade do Rio de Janeiro.Rosa teve também diversos “pais espirituais”, seus confessores,com os quais manteve cordial e devota relação filial. Com o prin-cipal deles, foi mesmo infamada de ser sua amante carnal.

Quando desembarcou no porto do Rio de Janeiro, o co-mércio de escravos fazia-se nas imediações da Rua Direita, empleno centro comercial desta cidade, sendo, somente no gover-no do Marquês de Lavradio, por volta de 1760, destinado o Va-longo como mercado negreiro. Foi comprada por um tal senhorJosé de Souza Azevedo, o qual a mandou batizar na Igreja daCandelária, que, no “tempo do Onça”, não passava de uma pe-quenina igreja, sede da Freguesia da Várzea, humílima em com-paração à grandiosidade do templo neoclássico que hoje co-nhecemos. Era certamente a igreja carioca, onde mais escravosse batizavam: entre 1725-1726, dos 444 batismos aí realizados,62% eram escravos, permitindo-nos levantar a hipótese de que a

2 Luiz Mott

2 BOSMAN, William. A New and Accurate Description of the Coast of Guinea: Divi-ded into The Gold, The Slave, and The Ivory Coasts, 1705. New York, 1967.

familiaridade com a patrona desta igreja talvez explique a gêne-se da associação entre Nossa Senhora das Candeias com o cul-to à Rainha do Mar, Iemanjá. Infelizmente, não conseguimos lo-calizar, nestes livros de registros batismais, qualquer pista sobrea negrinha Rosa Courá.

Não é difícil reconstruir sua vida de menininha escrava ur-bana, residente na freguesia da Candelária nos inícios do séculoXVIII: realizando pequenos serviços domésticos compatíveiscom sua pequenez, cuidando de crianças, carregando objetos,dando recados, ajudando na limpeza da casa ou na cozinha.Provavelmente, nesta primeira fase de adaptação à sua recentecondição de escrava, com novo nome, aprendendo língua estra-nha e costumes completamente diferentes dos de sua tribo na-tal, esta pretinha de seis anos foi informada, por outros negrosseus conterrâneos, de que era nativa da nação courana, proce-dente do Porto de Judá, identificação que guardou por toda asua vida. Talvez possuísse algumas marcas tribais ou cicatrizesdecorativas em seu rosto e barriga. Teria sofrido mutilação clito-riana, prática comum em muitas tribos da Costa da Mina?

Dizem os manuscritos da Torre do Tombo que o senhor deRosa, “após desonestá-la e tratar torpemente com ela”, ven-deu-a para as Minas Gerais: tinha 14 anos. Triste destino de tan-tas adolescentes da cor de ébano, presas fáceis da volúpia dosmachos de todas as cores: segundo o viajante alemão CarlSchlichthorst (1943), em seu livro O Rio de Janeiro como é,

doze anos é a idade em flor das africanas. Nelas há, de quan-do em quando, um encanto tão grande, que a gente esquecea cor... As negrinhas são, geralmente, fornidas e sólidas, comfeições denotando agradável amabilidade e todos os movi-mentos cheios de graça natural, pés e mãos plasticamentebelos. Dos olhos irradia um fogo tão peculiar e o seio arfa emtão ansioso desejo, que é difícil resistir a tais seduções...

Foram, certamente, tais encantos primaveris e a impunida-de dos abusos sexuais, que devem ter despertado a concupis-cência do proprietário de Rosa, pois conforme contou ela pró-pria ”em companhia deste senhor esteve até a idade de 14 anos,o qual a deflorou e tratou com ela torpemente”. Malgrado osanátemas do clero contra a mancebia e a simples fornicação dossenhores com suas escravas, o que aconteceu à nossa negrinhaadolescente devia ser a regra para a maioria das cativas, nesteperíodo tão cruelmente marcado pelo machismo e mandonismodos donos do poder. Como lembra, acertadamente, GilbertoFreyre, “não ha escravidão sem depravação sexual. É da essên-cia mesma do regime”.3 Teria a adolescente Rosa ficado grávi-

Cadernos IHU Idéias 3

3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Recife: Companhia Editora de Per-nambuco, 1970. p. 341.

da, abortado ou parido? Não há qualquer informação em seuprocesso sobre sua vida reprodutiva.

Após oito anos no Rio de Janeiro, novamente Rosa sofreoutra separação de seus conhecidos, a ruptura de uma rotina desua vida de adolescente, a angústia e temor face ao desconheci-do. Por mais fome que tenha passado desde que atingira a ida-de da razão, por mais pancadas, beliscões, palmatoadas oumesmo chicotadas que tenha recebido na casa de seu senhor,certamente esta menina-moça africana criara laços afetivos e deamizade com outros escravos, talvez com gente de sua mesmanação, de modo que, provavelmente, tenha derramado muitaslágrimas ao se despedir do pequeno grupo de seus entesqueridos.

A viagem para as Minas – por volta de 500 quilômetros per-corridos a pé, foi a segunda grande caminhada forçada na vidadesta garota: a primeira, há uns nove anos passados, de sua al-deia tribal até o Porto de Judá; agora esta outra, atravessandodensas e úmidas florestas, ferindo seus pés descalços, subindo aserra da Mantiqueira em direção às Minas Gerais. Este trajetodeve ter levado pelo menos de 10 a 12 dias de viagem, seguindoo mesmo itinerário referido por Antonil no seu Roteiro do CaminhoNovo para as Minas (1711): “marchando à paulista, isto é, andan-do bem desde a madrugada até as 3 horas da tarde, quando searranchavam para terem tempo de descansar e buscar algumacaça, peixe, mel, palmito ou outro qualquer mantimento”.

No ano em que Rosa chegou a Minas Gerais, 1733, esta ca-pitania estava no seu apogeu, absorvendo, cada vez mais emais, mão-de-obra escrava: de 1715 a 1727 saem do Rio de Ja-neiro mais de 26 mil cativos em direção às Minas, uma média de2300 negros todos os anos. Ao chegar a esta região, existiam,na capitania, por volta de 96 mil cativos, dos quais, somente emMariana, sede da comarca, residiam mais de 26 mil. Os brancosrepresentavam tão somente um quarto da população mineira.4

Na Capitania das Minas, Rosa foi comprada por Dona AnaGarcês de Morais, mãe de um de nossos mais destacados litera-tos do período colonial, Frei José de Santa Rita Durão, indo mo-rar na freguesia do Inficcionado, a duas léguas de Mariana.

O Inficcionado, na verdade, não passava de um humilde ar-raial de mineiros, encravado num vale cercado por altas monta-nhas, um arruado que nunca abrigou sequer uma centena de re-sidências. No alto de um morrote, logo à entrada do arraial, paraquem vinha de Catas Altas, estava a Fazenda Cata Preta, de pro-priedade do sargento-mor de milícias urbanas, Paulo RodriguesDurão, pai do futuro agostiniano e escritor Santa Rita Durão. Aíviveu Rosa dos 14 aos 32 anos, entre 1733-1751. Tivemos opor-

4 Luiz Mott

4 GOULART, Mauricio. A Escravidão Africana no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega,1975

tunidade de visitar as ruínas do sobrado desta fazenda, quandode nossa pesquisa de campo na região.

Como tantas escravas de norte a sul da Colônia, a negracourana viveu de vender seu corpo e favores sexuais aos concu-piscentes mineiros, que, com ouro em pó, compravam merca-dorias e prazer das poucas mulheres que percorriam as faisquei-ras. Era a única escrava negra num plantel de 77 escravos ma-chos! Segundo mais tarde confessou, perante o Comissário doSanto Ofício do Rio de Janeiro, passou 15 anos “a se desonestarvivendo como meretriz, tratando com qualquer homem secularque a procurava, em cuja vida assim andou até o tempo que teveo Espirito Maligno”. Este comércio venéreo deu à escrava africa-na um traquejo social e um verniz civilizatório que muito vai auxi-liá-la em seu futuro grandioso. Não é difícil imaginar todos osconstrangimentos, violências e doenças que esta jovem africanadeve ter sofrido, na condição de prostituta escrava-negra, numaregião abarrotada de aventureiros e carente de filhas de Eva.Estes 15 anos de meretrício, dos 14 aos 29 anos, foram funda-mentais na constituição da personalidade e desenvoltura socialdesta negra que, na qualidade de mercadoria sexual, deve terprivado do relacionamento com centenas de homens de diferen-tes raças e classes sociais: escravos, negros forros, mestiços,brancos aventureiros, quiçá portugueses favorecidos pela sortedo vil metal. Auri sacra fames! Relacionamentos sempre marca-dos pela dominação machista, deboche, malandragem, com-portando certamente elevado, consumo de aguardente e altasdoses de almíscar, o perfume preferido pelas negras no ”tempodo Onça”. Muita dança, batuque, fandango: até o fim da vida,mesmo vestida de freira no Recolhimento, Rosa não resistira àtentação de dançar. Nas Minas, na época do Barroco, a dançafazia parte integrante do culto divino, seja nas igrejas doiradas,nas procissões ou “triunfos”, seja nas clandestinas casas de cul-to de matriz africana. Segundo o historiador J.F.Carrato, o batu-que era a coqueluche da época, e Tomás Antônio Gonzagaimortalizou, em suas Cartas Chilenas, os gingados e bamboleiosdos parceiros neste baile descarado:

Fingindo a moça que levanta a saiaE voando nas pontas dos dedinhos,Prega no machacaz, de quem mais gosta,A lasciva embigada, abrindo os braços;Então o machacaz, mexendo a bunda,Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,Ora dando alguns estalos com os dedos,Seguindo das violas o compasso,Lhe diz – eu pago, eu pago – e de repente,Sobre a torpe michela atira o salto.Ó dança venturosa! Tu entravasNas humildes choupanas, onde as negras,

Cadernos IHU Idéias 5

Aonde as vis mulatas, apertandoPor baixo do bandulho a larga cintaTe honravam, c’os marotos e brejeiros,Batendo sobre o chão o pe descalço.5

Ao completar 30 anos, a cativa courana foi atacada de es-tranha enfermidade: ficava com o rosto inchado, sentia tumor noestômago, caindo ao chão desacordada. Rosa decidiu, então,deixar de ser “mulher da vida”. Por volta de 1748, vendeu seusparcos bens – jóias e roupas amealhadas com a venda de seucorpo, distribuindo tudo aos pobres. Adotou vida beata, fre-qüentando os ofícios divinos e liturgias, que, abundantes, eramcelebrados nas barrocas igrejas mineiras, muitas delas acaba-das de construir nessa mesma década. Foi numa dessas andan-ças pias que encontrou, na Capela de Bento Gonçalves, vizinhaao arraial do Inficcionado, o Padre Francisco Gonçalves Lopes,realizando fantásticos exorcismos em alguns energúmenos.Este sacerdote português, nascido no Minho, em 1694, era, en-tão, vigário da freguesia de São Caetano, no mesmo distrito, etão eficaz e useiro era em tirar o demônio do corpo de brancos epretos, que tinha por apelido Xota-Diabos.

Impressionada com a cerimônia do exorcismo, Rosa revelouela própria também estar possuída por sete demônios: segundopalavras do exorcista, “caiu no chão fazendo diferentes visagense muitos trejeitos com o corpo, levantando-se e dizendo que eraLúcifer que a vexava e lhe causava grandes inchações que tinhana cara e ventre”. Uma testemunha destes exorcismos revelouque Rosa “fazia gestos e movimentos que parecia o Demônio!” Aprópria energúmena descreveu assim seu transe: “viu e sentiuque do ar lhe deitaram um caldeirão de água fervendo, com o quecaiu logo desacordada, e, quando se restituiu, se achou lançandosangue da cabeça, que estava rachada e metida os pés de SãoBenedito”. Não deixa de ser emblemática a coincidência de seuprimeiro transe religioso ter acontecido exatamente ao pé de umsanto negro, ex-escravo e depois irmão leigo franciscano da Sicí-lia. Um segundo exorcismo, realizado nessa mesma freguesia,confirma ao sacerdote que, de fato, a escrava do casal Durão erauma possessa especial, pois quando vexada, fazia sermões edifi-cantes, sempre preocupada que todos mantivessem perfeitacompostura nos templos, retirando à força para a rua a quantosconversassem ou desrespeitassem a presença do Santíssimo Sa-cramento. Quando possuída por satanás, falava grosso, caía de-sacordada e dizia ter visões celestiais, vendo por diversas vezesNossa Senhora da Conceição, ouvindo diversos coros de anjosque lhe ensinaram algumas orações, recebendo até a revelação

6 Luiz Mott

5 GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas (1786). Rio de Janeiro: MEC, INL,1958, apud CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras colo-niais. São Paulo: Nacional, 1968.

de uma fonte de água milagrosa ao pé de uma montanha, ondedevia ser construída uma igreja em honra de Senhora Santana. Oculto aos avós de Cristo substitui, certamente, no imaginário mís-tico de Rosa, a perda e desconhecimento de seus próprios an-cestrais, culto muito forte na maior parte das tribos da Costa daÁfrica. O século XVIII representa igualmente o auge da devoção aSant’Ana na América Portuguesa, utilizada como reforço da domi-nação dos mais velhos às novas gerações.

Após os exorcismos, Rosa dizia ser arrebatada por um mis-terioso vento:

quando saía de casa para ir à igreja, logo na rua sentia umvento tão forte que lhe impedia os passos e com grande vio-lência a fazia retroceder para trás e se bater com o corpoem uma cruz, sendo em dias que não havia vento e só porvirtude dos preceitos que punha o exorcista é que podia re-sistir ao dito vento e entrar na igreja.

A partir de então, os exorcismos passaram a fazer parte es-sencial do dia-a-dia desta beata africana, e dado o caráter públi-co destes rituais e dos locais onde o diabo a atacava, Rosa pas-sou a ser vista e considerada como uma “vexada pelo demônio”:de mulher pública tornou-se “espiritada”, sendo outra agora aassistência de curiosos que passam a circundá-la. Ainda hojeexiste, no Inficcionado, uma grande cruz, quase defronte daIgreja de Nossa Senhora do Rosário: teria sido neste cruzeiroque Rosa sentia os tais acidentes e ventanias? O vento, muitoantes de filósofos pré-socráticos elegerem-no como um dos ele-mentos constitutivos da vida, foi apontado por outros povoscomo a própria manifestação da divindade ou um de seus atri-butos. Na tradição bíblica, o vento, o ar, o hálito, são identifica-dores da força de Javé. O próprio Espírito Santo, a terceira pes-soa da Santíssima Trindade, em grego é chamado de Pneuma,isto é, ar, a mesma raiz da palavra moderna pneumático, câmarade ar. E, mais recentemente, nos meados do século XIX, a apari-ção de Nossa Senhora de Lourdes à Santa Bernadette ocorreuem seguida a “um pé de vento”. Entre nossos escravos trazidosda Costa da Mina, de onde provinha Rosa Egipcíaca, alguns im-portantes orixás, sobretudo a poderosa Iansã, são identificadoscom ventos, ou melhor, o vento é a materialização da manifesta-ção destes espíritos. Encontramos mesmo outras africanas con-temporâneas de Rosa que nas Minas Gerais já haviam sido de-nunciadas às autoridades eclesiásticas exatamente por cultua-rem tal elemento etéreo: “Maria Canga, inventava uma dança debatuque, no meio da qual entrava a sair-lhe da cabeça uma coisaque se chama vento e entrava a adivinhar o que queria”.6

Cadernos IHU Idéias 7

6 FIGUEIREDO, Luciano R. A. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulherem Minas Gerais no século XVIII. Brasília/Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

A fama de visionária de Rosa espalhou-se por Mariana, OuroPreto, São João Del Rei, sempre acompanhada do padre Xo-ta-Diabos e de seus exorcismos. Nesta última cidade, na Igreja doPilar – o mesmo templo onde Tancredo Neves era irmão daOrdem Terceira – certa vez Rosa Courana interrompeu a prega-ção de um missionário capuchinho, gritando que ela era o própriosatanás ali presente: foi presa e enviada para a sede do Bispadode Mariana, sendo flagelada no pelourinho com tal rigor que, porpouco, não morreu, ficando, contudo, para o resto da vida, com olado direito do corpo semiparalisado. No aljube, recebeu visita dopróprio Santo Antônio! Recuperada da tortura, procurou o re-cém-empossado bispo da Diocese, D. Frei Manoel da Cruz, queencarregou uma junta de teólogos para investigar se a incorrigívelenergúmena era mesmo possessa ou embusteira. Após uma sé-rie de provas – inclusive testando a resistência da pobre vexada àchama de uma vela, que por 5 minutos suportou acesa debaixoda língua! – concluíram os teólogos que tudo não passava de fin-gimento, passando, então, o povo a chamá-la de feiticeira.

Para evitar novos problemas, Rosa fugiu para o Rio de Ja-neiro, sempre auxiliada e protegida pelo seu inseparável padreXota-Diabos, que a comprou de sua dona, tornando-se seu pro-prietário legal e que, nesta época, passava dos 50 anos. O retor-no à cidade de sua segunda infância se dá em condições bemmelhores de quando subiu a serra num magote de cativos: emvez de, simplesmente, Rosa, agora se apresentava, após uma vi-são celestial, com o nome de uma verdadeira religiosa: RosaMaria Egipcíaca da Vera Cruz. Montada num cavalo, dormindoem estalagens, intercalava visões celestiais com tentações car-nais, tendo o Xota-Diabos como o eleito de seu coração, relaçãoíntima insinuada e comentada pelos seus próprios contemporâ-neos, embora nunca comprovada e jamais assumida pelos dois.

Chegaram à heróica e leal cidade do Rio de Janeiro, emabril de 1751. Depois de Salvador, capital da América Portugue-sa, que, na época, contava com 7 mil fogos e pouco mais de 40mil habitantes, o Rio de Janeiro era nossa segunda cidade emimportância demográfica e econômica: entre 1750-1760, possu-ía de 24 a 30 mil moradores, com 7723 fogos. Cidade barrocacom vivíssimo décor religioso: 23 igrejas distribuídas em quatroparóquias: São José, Catedral (São Sebastião no morro do Cas-telo), Santa Rita e Candelária; 70 oratórios, 26 confrarias, 380 fra-des, mais de uma centena de padres seculares.7 Nessa mesmadécada, foi iniciada ou concluída a construção de diversas igre-jas neste bispado, sendo eleita Senhora Santana a padroeiraprincipal do Rio de Janeiro.

8 Luiz Mott

7 COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1965; LUIZ EDMUNDO. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Rio deJaneiro: Imprensa Nacional, 1932.

Rosa instalou-se, inicialmente, numa casa em frente à Igrejade Santa Rita (na atual Rua Visconde de Inhaúma), tendo sua pri-meira visão na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, aparecendo-lheo Menino Jesus vestido de azul celeste, tendo na cabeça uma tia-ra pontifícia, “caindo no chão sem sentidos e como morta”. Porsugestão de uma beata das muitas que freqüentavam assidua-mente os templos cariocas, Rosa revelou sua vida atribulada edons espirituais ao Provincial dos Franciscanos, Frei Agostinhode São José, que passou a ser seu diretor espiritual. Este frade fi-cou na história carioca por ter sido o responsável pela edificaçãodo segundo andar do convento de Santo Antônio, ainda hoje do-minando altaneiro o alto do morro do Largo da Carioca. A vidamística de Rosa impressionou vivamente os franciscanos, que aviram cumprir todos os exercícios pios muito em voga nos sécu-los passados: jejuns prolongados, autoflagelação, uso de silício,novenas intermitentes, comunhão freqüente. Deram à preta Rosao maravilhoso título de Flor do Rio de Janeiro.

Nesta época, convém esclarecer, malgrado a discrimina-ção legal e institucional contra a raça negra, sujeita à escravidãoe aos mais cruéis tormentos, procurava a Igreja Católica ofere-cer modelos de santidade para este enorme contingente demo-gráfico representado pelos africanos e afro-descendentes quepululavam por toda a colônia. Foi nestes meados do século XVIIIque o papado estimulou, por todas as partes do mundo escra-vista, o culto a São Benedito, Santo Elesbão, Santa Efigênia,Santo Antônio de Noto (ou Catigeró), todos negros como Rosa,todos exemplos de humildade, resignação e santidade.8 O mo-narca da época, D. João V, ele próprio, com lágrimas nos olhos,escrevia ao clero da América Portuguesa, insistindo que não dei-xassem os cativos morrerem sem o batismo, quando transporta-dos nos tumbeiros da África para o Brasil, e cuidassem da rápidaevangelização destes pobres descendentes do Prestes João, opatriarca evangelizador da Etiópia.

A beata Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, portanto,ex-prostituta como sua patrona Santa Maria Egipcíaca, vinha acalhar neste aggiornamento da Igreja colonial e poderia ser –certamente assim o desejavam os franciscanos – uma futurasanta. E ter uma santa em casa, ensinava a tradição, redundavaem romarias, polpudas doações para o convento, a garantia,portanto, de manutenção das velas dos altares e demais gastosdos atos litúrgicos e do próprio convento.

Tão logo chegara ao Rio, através de uma visão celestial,Nossa Senhora obrigou a negra courana a aprender a ler e es-crever, tarefa que cumpriu razoavelmente, sendo até agora a pri-

Cadernos IHU Idéias 9

8 OLIVEIRA, Anderson José Machado. Os Santos Pretos Carmelitas: Culto dosSantos, Catequese e Devoção Negra no Brasil Colônia. UFF, 2002. Tese (Douto-rado), Universidade Federal Fluminense, 2002.

meira africana de que se tem notícia em nossa história a teraprendido os segredos do abecedário. Também por inspiraçãosobrenatural, Rosa Egipcíaca decidiu fundar um Recolhimentopara “mulheres do mundo” que pretendiam como ela trocar oamor dos homens pelo do Divino Esposo. Ajudada por polpudadoação de um sacerdote de Minas Gerais, seu devoto e admira-dor de suas excelsas virtudes, contando com o beneplácito dobispo do Rio de Janeiro, D. Antônio do Desterro, em 1754, foilançada a primeira pedra do Recolhimento de Nossa Senhorado Parto, aproveitando a existência de pequena capela, localiza-da não muito distante do Largo da Carioca, onde hoje se situa aRua da Assembléia. Construído o Recolhimento, chegou a abri-gar uma vintena de moças-donzelas e ex-mulheres da vida, sen-do metade delas negras ou mulatas. Viviam de doações dos fiéise dos parentes das recolhidas, seguindo a rotina comum a taisinstituições leigas com religiosas sem votos perpétuos, incluin-do a recitação coletiva do Ofício de Nossa Senhora e outras litur-gias e sacramentais, além do trabalho de manutenção da casapia e demais exercícios comunitários. Entre as recolhidas, esta-vam três filhas de um ex-senhor de Rosa de São João del Rei,compadre do Xota-Diabos.

Madre Rosa – como então passou a ser chamada por deze-nas de seus devotos – sofisticou suas visões, passando a escre-vê-las ou ditando para que suas escribas anotassem tudo o quevia e ouvia, revelado seja pelos santos, seja por Maria Santíssi-ma, seja pela própria boca de Deus. Sempre aplaudida e venera-da pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes, pelo seu frade con-fessor e por um capuchinho italiano, a negra courana escreveumais de 250 folhas do livro Sagrada Teologia do Amor de DeusLuz Brilhante das Almas Peregrinas, no qual diz que o Menino Je-sus vinha todo dia mamar em seu peito e, agradecido, penteavasua carapinha; que Nosso Senhor trocara seu coração com odela; que, no seu peito, trazia Jesus Sacramentado; que morrerae tinha ressuscitado; que Nossa Senhora era Mãe de Misericór-dia; que ela, Rosa, recebera de Deus o título e encargo de serMãe de Justiça, dependendo de seu arbítrio o futuro de todas asalmas, se iam para o céu ou para o inferno; que ela própria era aesposa da Santíssima Trindade, a nova Redentora do mundo.

Em seu misticismo, como católica fervorosa assistida pordiversos diretores espirituais, Rosa incorporou em sua espiritua-lidade o que de mais moderno existia em termos de devoção naépoca, tal qual era praticado por outras santas em Roma, Lisboae demais metrópoles da cristandade: a ex-escrava, agora Madredo Recolhimento do Parto, foi a principal vidente e divulgadoraem terras brasileiras do culto aos Sagrados Corações, iniciadonos meados do século XVII pela visitacionista francesa SantaMargarida Marie Alacoque. Só que nossa beata courana foialém: propagou não apenas a devoção oficial aos sagrados co-

10 Luiz Mott

rações de Jesus e Maria, mas de toda a família do Nazareno, asaber, os corações de São José e dos avós de Cristo, São Joa-quim e Santana. Foi graças às visões de Rosa, e para represen-tá-las visualmente, que os franciscanos construíram, no Conven-to do Largo da Carioca, a maravilhosa Capela dos Sagrados Co-rações, até hoje perfeitamente conservada e aberta à visitaçãopública, muito embora sem se dar os créditos à sua verdadeirainspiradora: “Santa” Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz!

Em seu recolhimento, instalou-se verdadeiro culto idolátri-co à sua pessoa, com os devotos venerando-a de joelhos, dis-putando suas relíquias, guardando seus escritos como se fos-sem revelações divinas. Algumas liturgias pecavam pela hetero-doxia, notando-se elementos de forte inspiração africana. Nãoesquecer que mais da metade das recolhidas, entre estas, asquatro principais assessoras de Rosa, eram afro-descendentes.Além do “vício” de pitar cachimbo, Rosa comandava certas ceri-mônias em que era nítido o sincretismo afro-católico:

Numa ocasião, conta a recolhida Irmã Ana do Coração deJesus, negra crioula, natural de Ouro Preto, que, na noite dafesta da Visitação de Nossa Senhora a Santa Isabel, que erao dia das sortes da congregação, estando a comunidaderezando a novena no coro, caiu Rosa de joelhos, e cantan-do o Ave Maris Stella (Ave Estrela do Mar), começou a dan-çar em frente do altar, fazendo muitas visagens, até cair des-maiada no chão. Levantou-se e, então, de um balainho pe-quenino, tirou quatro papelinhos trazidos à maneira de sortenos quais estavam escritos São Mateus, São Lucas, SãoMarcos e São João, e deu cada um a quatro irmãs, (três ne-gras e uma branca), dizendo que elas eram suas evangelistas...

Em que medida tal imposição de novos nomes poderiaevocar rituais congêneres, praticados nos cultos afro-brasileiros,quando as yaôs saem da camarinha e têm revelados seus no-mes de santo, passando, a partir de então, a serem identificadase incorporar diferentes orixás?

A descrição destoutra cerimônia faz-nos lembrar de umaseção de gira num terreiro de umbanda ou candomblé:

Na capela do Parto, Rosa tirava às vezes algumas imagensdo altar, dizendo que [ela] era Deus, e metia as imagens namão de algumas irmãs e ia dançando até ao pé delas, e láas deixava e ia buscar outra, e entrava a apertar a dança, ar-rodeando-as, e caía no colo de alguma irmã e ficava como[estivesse] a fora de si, e depois de muito tempo, se tornavaa si e começava a perguntar aquilo o que era, quem a tinhatrazido para ali, e isto era quase sempre, e se não críamos,levantando-se da sua passividade, roncando, se agarravapela goela e entrava a bater pelo chão, dando murros...

Noutras oportunidades, a negra courana parecia estar pos-suída de algum erê, tanto que certa manhã, “entrou Rosa no

Cadernos IHU Idéias 11

coro com uma vara de marmelo dando na cabeça das recolhi-das, dizendo: ABC com o que, mataste o meu Iapê, com umavara de dimpê... Explicando que Iapê era Nosso Senhor e a varade dimpê era a contradição que as recolhidas tinham”. Infeliz-mente, nenhum lingüista conseguiu até agora dar-nos a pistadestas expressões idiomáticas utilizadas pela “Abelha Mestra”do Recolhimento do Parto. O ritual lembra um erê, quando usavarinhas para, de brincadeira, açoitar as pernas dos freqüenta-dores dos terreiros de candomblé.

Outro aspecto da religiosidade de Rosa Egipcíaca, revela-dor do sincretismo afro-católico, remete-nos ao próprio espíritoque passou a acompanhá-la desde que se converteu: uma enti-dade que, por mais de quinze anos, vexou-a, primeiro identifica-do como Lúcifer, mas depois referido como Afecto. Curioso que,em vez de comportar-se como o Príncipe do Mal, este espírito in-duzia-a para o bem, para zelar e defender a honra de Deus. Talespírito faz-nos pensar em Avrektu – cuja semelhança fonéticacom Afecto é evidente, um anjo ou mensageiro de luz da culturaGêge da Nigéria, vizinha próxima da região natal de Rosa Coura.O Avrektu é um misto de mensageiro do além e espírito protetor,através do qual seu portador profetizava o futuro – exatamentecomo se comportava nossa biografada.

No recolhimento do Parto, as freirinhas entravam em transequase diariamente, às vezes, diversas vezes por dia. Quando oEspírito baixava na comunidade, “sempre ficava ao menos umaou duas espiritadas sem estar atacadas”, da mesma formacomo ocorre nas casas de culto de matriz africana, onde se insti-tucionalizou costume semelhante pela figura da ekédi, mulherauxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as em seus“ataques”, enxugando-lhes o suor, etc. As ekédis não entram emtranse, e nos xangôs de Recife são chamadas de iabás ou ilais, enos candomblés de Angola, “macotas”.

Prevalecia, contudo, na espiritualidade desta negra mina, ainspiração, o imaginário e a linguagem próprios do catolicismoromano. Eis uma bela página manuscrita por Mestra Rosa, data-da de 24 de novembro de 1760, em que se revela fiel discípulada espiritualidade de São Francisco de Assis:

Meu Menino Jesus da Porciúncula: amo Jesus, adoro Je-sus, bendigo Jesus, reverencio Jesus, agradeço a Jesus,exalto Jesus, santifico o nome Santíssimo de Jesus por ago-ra e sempre e no último suspiro glorifico a Jesus no Santíssi-mo Sacramento da Eucaristia. Peço ao céu e à terra, peçoàs flores do campo, e peço às estrelas do céu, peço ao solnos seus raios, peço à lua na sua luz, peço às aves do céu:cantai! Peço aos peixes nas suas conchas, peço aos rios noseu curso e belo correr, peço aos anjos, peço aos santos,peço aos homens e às mulheres, peço a todas as línguas enações remotas, me ajudem a dar graças a meu Jesus Cru-

12 Luiz Mott

cificado porque nos criou e nos remiu com o seu preciososangue! Peço à Sagrada Família, a São João Batista, a SãoJoão Evangelista, ao meu Anjo Custódio, à Santa do meunome, que louvem por mim ao Senhor por tantos benefíciose tão grandes misericórdias que de suas liberantíssimasmãos tenho recebido e que me faça uma criatura tal qual elequer que eu seja. Amem! Jesus, Maria, José, eu vos dou omeu coração e minha alma. Rosa.

Madre Rosa não resistiu à tentação e desenvolveu fantasio-sa megalomania religiosa, tendo no padre Xota-Diabos seu esti-mulador, o qual mandara pintar um quadro sobre cobre, onde anegra courana posava como se fosse uma bem-aventurada,vestida de hábito franciscano, com as cinco chagas, cordão erosário do lado, pisando alguns diabos e salvando uma alma dopurgatório, enquanto um esbelto São Miguel a coroava com es-plêndido buquê de flores. Numa mão, segurava o Menino Jesuse, na outra, trazia uma pena, símbolo de sua erudição teológica,posto que o Padre Xota-Diabos, agora Capelão do Recolhimen-to, proclamara mais de uma vez que “Rosa deixava Santa TeresaDe Ávila a léguas de distância” e que aquela Doutora da Igrejanão passava de uma “menina de recados” da mestra africana.Ao rezarem a Ladainha de Nossa Senhora, na estrofe Mater Mi-sericordiae, suas recolhidas se inclinavam respeitosas para aMadre Superiora, que era reverentemente incensada pelo sacer-dote, o qual trazia no pescoço preciosa relíquia: um dente deSanta Rosa Egipcíaca!

Muitos fiéis freqüentavam o Recolhimento do Parto, algunspara ouvir os conselhos da Mestra, outros para buscar suas relí-quias, notadamente uma espécie de biscoito feito com a salivade Rosa, amassada com farinha, que era guardada para essefim, e a que seus devotos atribuíam o poder de curar todas asenfermidades. Verdadeiros rituais de adoração eram autoriza-dos pelo Padre Xota-Diabos, estimulando as recolhidas e os fre-qüentadores deste “Sacro Colégio” a adorar a bem-aventuradaeleita da Divina Providência. Eis os títulos laudatórios com osquais seus fiéis devotos saudavam à ex-prostituta negra à modade ladainha (atente o leitor para a riqueza e puerilidade do imagi-nário religioso do barroco luso-afro-brasileiro):

Menina dos Olhos de Cristo, Teatro do Amor divino, Arca doTestamento Novo e Velho, Nau da Divindade, Irmã consortede Nossa Senhora, Filha de Santana, Breve e Arca do PaiEterno, Relicário do peito de Deus Filho, Arca e cofre daSantíssima Trindade, Judith gloriosa que haverá de cortar acabeça do dragão infernal, Carta e Guia de todas as almaspara a Santíssima Trindade, Cave de ouro no peito de Nos-so Senhor, Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rosa no pei-to do Rei Salvador, Intercessora dos pecadores, Símbolo daobediência, Colar no pescoço de Jesus, Jóia de seu peito,Jardim florido das convertidas, Paraíso dos bem-aventura-

Cadernos IHU Idéias 13

dos, Rainha dos vivos, Juíza dos mortos, Embargo dosdescrentes.

Vários desses títulos, além de reproduzir a mesma simbolo-gia temática comum das ladainhas de Nossa Senhora e demaissantos, evocam a troca que a beata Rosa fez de seu coração como de Jesus, que permanecia vivo e palpitante no seu peito, daí serreferida como arca, nau, relicário, breve e cofre da própria divin-dade. Outros encômios declaravam-na predileta do Divino Espo-so: sua menina dos olhos, sua rosa, enfeite e colar. Toda esta ido-latria altamente herética sendo praticada sob os olhos coniventesdo prior franciscano do Convento dos Franciscanos.

Além desta rica coleção de títulos honoríficos, alguns hinosforam inventados pelas recolhidas – negras e mestiças em suamaioria, reafirmando, pedagogicamente, as virtudes superioresda santa fundadora. Tal hinário tornou-se conhecido e cantadonão apenas no Rio de Janeiro, no Recolhimento de Nossa Se-nhora do Parto, mas também por seus devotos nas Minas, pois,entre os papéis da família de seu antigo senhor, em São João delRei, foram encontrados alguns destes preciosos manuscritos.Apesar dos pés quebrados e assimetria poética, tais estrofescomprovam o alto grau de veneração a que uma negra africanapôde chegar na sociedade escravista brasileira:

Cheguemos a nossa Mãecheguemos com devoçãopois nela esta encerradatoda a nossa salvação.Vitória demos a nossa boa fortunaPorque tivemos a ditaQue Rosa fosse mãeDe tão pecadoras filhas.O amor de Rosa é tão firmePorque nem um só instante dela se retiraNem se pode retirarAquele amante divinoPorque todo o seu empenhoÉ abrasado e contínuo.Quem seguir minha MãeDe todo o seu coraçãoBem pode ter esperançaDa sua salvação.Rosa é flor fragranteDo peito de seu amanteQuem a amar com firmezaAchará a contrição.Rosa é palma ditosaDe eterno Rei sem fimQuem a seguir com verasA terá naquele último diaPor sua grande valia.Jesus é cravo

14 Luiz Mott

Rosa é a flor de seu amorCheguemos todos a elaPois que somos abelhinhasChupemos o mel da flor.

A partir de 1756, Rosa insistiu na profecia que o Rio de Ja-neiro ia ser inundado e destruído do mesmo modo como aconte-cera no ano anterior com o terrível terremoto de Lisboa. MadreRosa convenceu dezenas de famílias a refugiarem-se no Reco-lhimento, garantindo que seriam os únicos sobreviventes ao di-lúvio e que essa nova Arca de Noé iria cruzar o mar oceano paraencontrar-se triunfalmente com o Rei D. Sebastião, “o Encober-to” – desaparecido há dois séculos nas areias do Marrocos, oqual tinha escolhido a negra Rosa para sua esposa, e que, destematrimônio e de seu ventre, nasceria o novo Redentor da huma-nidade. Rosa foi dentre todos os sebastianistas, a que mais ou-sou em suas profecias!

Era voz corrente, no beatério do Parto e entre seus devotosque freqüentavam a capela onde Rosa era a figurante de maiordestaque, que, naquele tenebroso dia em que a Divina Providên-cia castigaria a América Portuguesa, quando “o dilúvio das Mi-nas vier dar ao mar salgado, derrubando todos esses montes equando todos os mais rios se hão de soltar e o mar há de sairfora dos seus limites, ficando toda a cidade do Rio de Janeirodentro de suas entranhas”, neste momento fatídico, o Recolhi-mento do Parto se transformaria, milagrosamente, na Arca dosCinco Corações, começando milagrosamente a flutuar, ocorren-do aí seu feliz encontro com a nau capitaneada por D.Sebastião,o Desejado. Nesse momento, “Rosa ia se casar com Dom Se-bastião, e suas quatro evangelistas também se casariam comseus vassalos ou criados, voltando para reformar o mundo e fun-dar o Império de Cristo“ Cumprir-se-ia, assim, a tão desejadaprofecia feita pelo Todo-Poderoso ao fundador do Reino Portu-calense: “Quero em ti e na tua descendência formar para umImpério!” Esse novo império seria mestiço, mulato, pois três dasevangelistas eram da mesma cor da negra mina.

Não contente em proclamar-se “Esposa da SantíssimaTrindade”, Rosa Egipcíaca aspirou enlaçar-se com a família realportuguesa, iniciando com suas auxiliares mais fiéis, nova e re-formada geração, mulata na cor, mas de costumes tão alvoscomo a neve. Nigra sum, sed formosa… A concretização final domito sebástico, resgatado e adaptado pela negra Rosa, era o co-rolário de sua vida profética: seu casamento com Dom Sebas-tião, após o dilúvio universal na América Portuguesa, iniciaria oreinado visível dos Sagrados Corações. Em Rosa, cumpria-se oprometido, tão ardorosamente esperado por incontáveis gera-ções lusitanas, desde Bandarra, Anchieta, Vieira, e tantos outrossebastianistas: nenhum, contudo, ousara imaginar que o Enco-berto iria fazer de uma africana sua esposa, a rainha do novo

Cadernos IHU Idéias 15

Império e mãe de seus herdeiros. Como salientou um expert nosebastianismo,

em épocas de exceção, numa situação de catástrofe, porexemplo, quanto é vital que homens descubram dentro desi formas de resistência psicológica à adversidade, não ésenão natural que os mitos, de raízes porventura profundasno inconsciente desta coletividade ameaçada, regressemou ressurjam do seu adormecimento. É o que explica a su-bida irresistível de um mito como o sebástico. O Desejadopassa a Encoberto, o jovem Rei desaparecido há de voltardas brumas onde se esconde para ser a cabeça universalde novo Império. Ele tirará toda a erronia, ele fará a paz emtodo mundo, ele consubstanciará todas as aspirações ideaisda época.9

Não foram tanto os vaticínios não cumpridos, nem seus êx-tases e revelações com nítidas características epileptóides, di-ga-se en passant, a causa da derrota de Madre Egipcíaca: seuerro gravíssimo foi indispor-se com o clero carioca por ter ralha-do com alguns sacerdotes que davam mau exemplo, conver-sando nas igrejas durante as cerimônias sacras, sendo denun-ciada ao bispo sobretudo após ter retirado à força da igreja deSanto Antônio uma senhora da sociedade que se comportavacom menos compostura. Por este escândalo – uma negra des-compor uma branca de status elevado – o bispo entrou em açãoe, a partir de fevereiro de 1762, dezenas de testemunhas passa-ram a denunciar as excentricidades desta preta beata. Revela-ram-se, então, todos os seus desatinos religiosos:

Tivera notícia o Bispo de que a negra Rosa há muitos anosé, ou se finge, vexada do Demônio, e que o Espírito que falapor ela se chama Afecto, e lhe fora dado por Deus para puri-ficar e zelar pelo seu culto nos tempos, agredindo as pes-soas na mesa da comunhão; que o Padre Francisco Gon-çalves Lopes, seu senhor, é o principal pregoeiro de suasfingidas virtudes, e quem manda escrever em verso e trovasuas profecias; que o Recolhimento de Nossa Senhora doParto flutuaria como a arca de Noé; que o Verbo Divino ia seencarnar de novo numa criatura para estabelecer um mun-do mais perfeito que o presente; que tais profecias tinhamprovocado escândalo e descaminho de pessoas idiotas ede fácil convenção, causando perniciosas confusões e es-candalizando a toda esta cidade em geral, de sorte que unsignorantes e materiais acreditam, e outros a condenam porherege e feiticeira; e para que não fique sem emenda e sa-tisfação o escândalo e perturbação que ela tem causadocom seus erros e culpas, que seja presa e feito sumário deculpas.

16 Luiz Mott

9 QUADROS, Antonio. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa: GuimarãesEditores, 1982.

Após quase um ano presos no aljube do Rio de Janeiro,Rosa e o padre Xota-Diabos foram enviados para Lisboa, sendopresos no Tribunal da Inquisição, a partir agosto de 1763. O pa-dre, em poucas sessões do inquérito, declarou ter sido engana-do pela falsidade da negra, alegando ser pouco letrado em teo-logia e ter-se fiado na boa opinião que o Provincial dos Francis-canos dela fazia. Pediu perdão de sua boa-fé e excessiva credu-lidade: teve, como pena, o degredo de cinco anos para o extre-mo sul do Algarve, além de perder o direito de confessar e exor-cizar. Sua sentença foi proclamada no Auto de Fé, de 27 de ou-tubro de 1765. Se verdadeira ou falsa sua arrenegação da fé emsua ex-escrava, filha espiritual e possível amante, nunca podere-mos saber.

Rosa, em contrapartida, deu um heróico espetáculo de au-tenticidade, insistindo em muitas sessões que nunca mentiunem inventou coisa alguma: confirmou que todas as suas vi-sões, revelações e êxtases foram reais. De fato, ela acreditavaser uma predestinada e que Deus, em sua misericórdia, a tinhaescolhido para revelar ao mundo seus fantásticos desígnios.Enquanto os inquisidores estimulavam para que dissesse a ver-dade, revelando que tudo não passara de fingimento para cha-mar atenção sobre sua pobre figura, Rosa disse o contrário:“Tudo vi e ouvi!” Sua coragem e autenticidade a qualificamcomo verdadeira heroína da fé em Cristo!

Numa destas sessões, narrou uma de suas visões beatíficas:

Disse a ré que, no ano de 1759, estando na igreja do Reco-lhimento do Parto, pedindo as recolhidas ao Capelão quedeixasse ela entrar para receber com elas o santíssimo sa-cramento (pois tinha sido então expulsa do beatério por or-dem do Bispo do Rio de Janeiro), assim lho permitiu, e de-pois da comunhão, estando devotamente rezando ao pé docaixão onde estava o Senhor Morto, viu da parte do mesmocaixão sair um clarão como de sol e logo um pilar da alturade uma vara, e sobre eles uma coisa encarnada muito viva,coberta com um pano muito cândido, mas tão fino, que pelomesmo se via uma multidão de abelhas. E ao mesmo tempoouviu uns cânticos que diziam: Chegai, chegai, abelhinhastodas a la divinidad, a la divinidad! O doce suco na flor, Je-sus que hoje nasceu, nasceu para vós! A cujas vozes sentiuela em si uma extraordinária comoção para dançar, o qualimpulso reprimiu com pejo das recolhidas que estavampresentes...

Quatro de junho de 1765 foi a última sessão de perguntas àvidente afro-brasileira: neste dia, ela narrou uma de suas muitasvisões: Estando para comungar ouviu uma voz sobrenatural quelhe dizia: “Tu serás a abelha-mestra recolhida no cortiço doamor. Fabricareis o doce favo de mel para pores na mesa doscelestiais banqueteados, para o sustento e alimento dos seusamigos convidados.”

Cadernos IHU Idéias 17

A partir daí, inexplicavelmente, interrompeu-se o processode Rosa. Dos mais de mil processos de feiticeiras, sodomitas, bí-gamos, falsas santas e blasfemos pesquisados, não encontra-mos outro que ficasse inconcluso, pois sempre os inquisidoreseram muito minuciosos em anotar o desfecho do julgamento: apena a que fora condenado o réu, se morrera de doença no cár-cere, ou até se houvera suicídio, se fora mandado para o hospi-tal de loucos, para a fogueira ou para o degredo, etc. Inexplica-velmente, o processo de Rosa tem como última página este re-gistro costumeiro do notário do Santo Ofício: “Por ser avançadaa hora lhe não foram feitas mais perguntas, e sendo lidas estasanotações e por ela ouvidas e entendidas, disse estar escrita naverdade, e assinou com o Senhor Inquisidor, depois do que foimandada para o seu cárcere”.

Comparando suas culpas com a de outras beatas e embus-teiras processadas pelo Santo Ofício da Inquisição, avaliamosque deveria ser condenada à pena dos açoites, sentenciadanum auto de fé, e degredada por cinco anos para o Algarve,aliás, como foi o caso de outra afro-brasileira, a angolana LuizaPinta, esta sim, verdadeira “mãe-de-santo” de um calundu emSabará, muito mais ligada às raízes africanas do que MadreRosa.10

Duas hipóteses quanto ao inédito fim desta história: ou apreta Rosa, como era depreciativamente referida no processoinquisitorial, ex-Madre Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, mor-reu incógnita no cárcere inquisitorial, de doença natural ou velhi-ce e pela sua insignificância esqueceram-se o notário ou o médi-co do Santo Ofício de registrar no processo o seu falecimento,ou, então, quem sabe, o próprio Menino Jesus encarregou-sede salvar da prisão e levar sua velha mãe-de-leite direto para océu, agradecido e saudoso do aconchegante colo de sua mãepreta tão querida!

Tal é, em rápidas pinceladas, a vida fantástica desta negri-nha de nação Courana, desembarcada na cidade de São Sebas-tião do Rio de Janeiro, no ano do senhor de 1725. Seu processopermaneceu completamente inédito até 1983, quando tivemos aventura de descobri-lo e divulgá-lo integralmente em livro em1993.

Através da vida dessa ex-escrava africana, alguns aspectoscruciais da sociedade colonial brasileira merecem maior refle-xão, quiçá revisão. Por exemplo, o fato de que, num contexto,onde negro equivalia à escravidão e indignidade, e aos africanosdesprezava-se como raça inferior, bruta, “sangue impuro”, nãodeixa de ser notável a veneração e verdadeira idolatria como inú-meros brancos – incluindo ex-senhores e membros do clero –

18 Luiz Mott

10 MOTT, Luiz. O Calundu Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do Institutode Arte e Cultura, Ouro Preto, 1994 (10), 171:128-30.

cultuaram com tamanha veneração a uma negra africana,ex-prostituta. A inteligência, determinação e esperteza desta ne-gra courana fazem-na merecedora, muito mais do que a legen-dária escrava Anastácia, de ostentar o título de principal santa eFlor do Rio de Janeiro!

O erro fatídico de Rosa Courana foi ter-se afastado, diame-tralmente, da doutrina oficial da Igreja, propondo certas novida-des claramente opostas aos dogmas tradicionais. Tornou-se he-rege e heresiarca ao propalar que o Filho de Deus ia encarnar-sepela segunda vez, em seu útero, que era esposa da SantíssimaTrindade, que tinha poder de julgar vivos e mortos, que eraDeus! Santo algum dos oficializados por Roma ousou atribuir-setamanhas honrarias em seus devaneios místicos. Por mais vir-tuosa que fosse sua vida e mais sangrentos seus sacrifícios, nãohavia como absolvê-la de erros teológicos tão cabeludos. Con-tra o dogma não ha apelação!

Nesse sentido, embora no tempo em que nossa santinhaviveu, o racismo constituísse ideologia dominante, aceita e prati-cada por todos, inclusive abençoada pela própria Santa MadreIgreja, não seria correto acusar o alto clero do Brasil, assimcomo os inquisidores que julgaram Rosa, de terem sido levadospelo racismo, quando a prenderam e desmascararam sua con-duta heterodoxa. Pelo contrário, a história desta africana de na-ção courá está repleta de situações, que evidenciam a complexi-dade das relações inter-raciais no Brasil escravista, a começarpor sua própria identidade étnica, pois, embora sendo africananata, pelo fato de ter sido arrancada de sua tribo natal antes daidade da razão, mesmo conservando diversos africanismos emseu cotidiano, comportou-se muito mais como se fosse uma ne-gra crioula típica, exemplo notável do assimilacionismo da cultu-ra luso-brasileira. Apesar de inspirar-se mais no modelo de santi-dade do mundo dos brancos, assumiu o revolucionário papel deprofetisa negra e feminista, ao quebrar dois tabus basilares dasociedade escravocrata: desrespeitou o interdito milenar da tra-dição judaico-cristã, que impedia as mulheres de falarem em pú-blico, passando igualmente por cima das barreiras culturais e le-gais que segregavam os negros e escravos dos postos de co-mando da sociedade colonial. Poucas mulheres, no mundo es-cravista, revelaram possuir carisma e determinação tão fortescomo esta negra mina. Assim, se, de um lado, observamos, aolongo da biografia de Rosa, vários elementos terríveis do siste-ma escravista – o pelourinho, o abuso sexual das adolescentes,a cruel discriminação racial subjacente à associação da negritu-de com a feitiçaria e o diabolismo – não se pode negar a realpossibilidade de, nesta mesma sociedade desumana e racista,haver lugar para a inversão total das regras do jogo do poder: aescrava Rosa é adorada de joelhos e tem seus negros pés beija-dos por seu ex-senhor; a escrava africana espanca e expulsa

Cadernos IHU Idéias 19

dos templos brancos ilustres a quem julgava irreverentes ou malcomportados; a negra retinta é disputada pelo alto-clero coloniale saudada com o invejável título de Flor do Rio de Janeiro. Por-tanto, não foi por ser negra ou ex-escrava que Rosa Egipcíaca foipresa pelo Santo Oficio: o humilhante tratamento, dado pelos in-quisidores ao capelão do Recolhimento do Parto, comprova queo fator racial não era levado em conta, quando estavam em jogoa integridade do dogma e a unidade da fé. Rosa foi vítima deseus erros teológicos, não de sua cor.

Referências bibliográficas

ABBÉ PRÉVOST. Histoire générale des Voyages. Paris: Didot, 1744-1759.ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas eMinas. (1711). São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1982.BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos(1700). São Paulo: Grijalbo, 1977.BOSMAN, William. A New and Accurate Description of the Coast of Gui-nea: Divided into The Gold, The Slave, and The Ivory Coasts, 1705. NewYork, 1967.COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Ja-neiro: José Olympio, 1965.FIGUEIREDO, Luciano R. A. O avesso da memória: cotidiano e trabalhoda mulher em Minas Gerais no século XVIII. Brasília/Rio de Janeiro: JoséOlympio, 1993.FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Recife: Companhia Editorade Pernambuco, 1970.GONZAGA, Tomás Antônio. Cartas Chilenas (1786). Rio de Janeiro:MEC, INL, 1958, apud CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e es-colas mineiras coloniais. São Paulo: Nacional, 1968.GOULART, Mauricio. A Escravidão Africana no Brasil. São Paulo:Alfa-Omega, 1975LUIZ EDMUNDO. O Rio de Janeiro no tempo dos Vice-Reis. Rio de Janei-ro: Imprensa Nacional, 1932.MOTT, Luiz. Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janei-ro: Bertrand, 1993. 750 p.______. O Calundu Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do Insti-tuto de Arte e Cultura, Ouro Preto, 1994 (10), 171:128-30.OLIVEIRA, Anderson José Machado. Os Santos Pretos Carmelitas: Cultodos Santos, Catequese e Devoção Negra no Brasil Colônia. UFF, 2002.Tese (Doutorado), Universidade Federal Fluminense, 2002.QUADROS, Antonio. Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista. Lisboa:Guimarães Editores, 1982.SCHLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é. Rio de Janeiro: ZelioValverde, 1943.VERGER, Pierre. Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo deBenin e a Baía de Todos os Santos. São Paulo: Corrupio, 1987.

Artigo enviado ao IHU em23 de maio de 2005

20 Luiz Mott

TEMAS DOS CADERNOS IHU IDÉIAS

N. 01 A teoria da justiça de John Rawls – Dr. José Nedel.

N. 02 O feminismo ou os feminismos: Uma leitura das produções teóricas – Dra.Edla Eggert.O Serviço Social junto ao Fórum de Mulheres em São Leopoldo – MS Clair Ri-beiro Ziebell e Acadêmicas Anemarie Kirsch Deutrich e Magali Beatriz Strauss.

N. 03 O programa Linha Direta: a sociedade segundo a TV Globo – Jornalista So-nia Montaño.

N. 04 Ernani M. Fiori – Uma Filosofia da Educação Popular – Prof. Dr. Luiz GilbertoKronbauer.

N. 05 O ruído de guerra e o silêncio de Deus – Dr. Manfred Zeuch.

N. 06 BRASIL: Entre a Identidade Vazia e a Construção do Novo – Prof. Dr. Rena-to Janine Ribeiro.

N. 07 Mundos televisivos e sentidos identiários na TV – Profa. Dra. Suzana Kilpp.

N. 08 Simões Lopes Neto e a Invenção do Gaúcho – Profa. Dra. Márcia Lopes Du-arte.

N. 09 Oligopólios midiáticos: a televisão contemporânea e as barreiras à entrada –Prof. Dr. Valério Cruz Brittos.

N. 10 Futebol, mídia e sociedade no Brasil: reflexões a partir de um jogo – Prof. Dr.Édison Luis Gastaldo.

N. 11 Os 100 anos de Theodor Adorno e a Filosofia depois de Auschwitz – Profa.Dra. Márcia Tiburi.

N. 12 A domesticação do exótico – Profa. Dra. Paula Caleffi.

N. 13 Pomeranas parceiras no caminho da roça: um jeito de fazer Igreja, Teologiae Educação Popular – Profa. Dra. Edla Eggert.

N. 14 Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros: a prática política no RS – Prof. Dr.Gunter Axt.

N. 15 Medicina social: um instrumento para denúncia – Profa. Dra. Stela NazarethMeneghel.

N. 16– Mudanças de significado da tatuagem contemporânea – Profa. Dra. DéboraKrischke Leitão.

N. 17 As sete mulheres e as negras sem rosto: ficção, história e trivialidade – Prof.Dr. Mário Maestri.

N. 18 Um initenário do pensamento de Edgar Morin – Profa. Dra. Maria da Concei-ção de Almeida.

N. 19 Os donos do Poder, de Raymundo Faoro – Profa. Dra. Helga Iracema Lad-graf Piccolo.

N. 20 Sobre técnica e humanismo – Prof. Dr. Oswaldo Giacóia Junior.

N. 21 Construindo novos caminhos para a intervenção societária – Profa. Dra. Lu-cilda Selli.

N. 22 Física Quântica: da sua pré-história à discussão sobre o seu conteúdo es-sencial – Prof. Dr. Paulo Henrique Dionísio.

N. 23 Atualidade da filosofia moral de Kant, desde a perspectiva de sua crítica aum solipsismo prático – Prof. Dr. Valério Rodhen.

N.24 Imagens da exclusão no cinema nacional – Profa. Dra. Miriam Rossini.

N. 25 A estética discursiva da tevê e a (des)configuração da informação – Profa.Dra. Nísia Martins do Rosário.

N. 26 O discurso sobre o voluntariado na Universidade do Vale do Rio dos Sinos– UNISINOS – MS. Rosa Maria Serra Bavaresco.

N. 27 O modo de objetivação jornalística – Profa. Dra. Beatriz Alcaraz Marocco.

N. 28 A cidade afetada pela cultura digital – Prof. Dr. Paulo Edison Belo Reyes.

N. 29 Prevalência de violência de gênero perpetrada por companheiro: Estudoem um serviço de atenção primária à saúde – Porto Alegre, RS – Profº MS.José Fernando Dresch Kronbauer.

N. 30 Getúlio, romance ou biografia? – Prof. Dr. Juremir Machado da Silva.

N. 31 A crise e o êxodo da sociedade salarial – Prof. Dr. André Gorz.

N. 32 À meia luz: a emergência de uma Teologia Gay - Seus dilemas e possibilida-des – Prof. Dr. André Sidnei Musskopf.

N. 33 O vampirismo no mundo contemporâneo: algumas considerações – Prof.MS Marcelo Pizarro Noronha.

N. 34 O mundo do trabalho em mutação: As reconfigurações e seus impactos –Prof. Dr. Marco Aurélio Santana.

N. 35 Adam Smith: filósofo e economista – Profa. Dra. Ana Maria Bianchi e AntonioTiago Loureiro Araújo dos Santos.

N. 36 Igreja Universal do Reino de Deus no contexto do emergente mercado reli-gioso brasileiro: uma análise antropológica – Prof. Dr. Airton Luiz Jungblut.

N. 37 As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômicade Keynes – Prof. Dr. Fernando Ferrari Filho.

Luiz Mott (1946), natural de São Paulo/SP, é pro-fessor titular de Antropologia na Universidade Fe-deral da Bahia (UFBA), desde 1980. É graduadoem Ciências Sociais, pela Universidade de SãoPaulo (USP), 1968; mestre em Etnologia, pela Uni-versité de Paris IV (Sorbonne), França, 1971; edoutor em Ciências Sociais, pela UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP), 1975. Sua tesede doutorado intitula-se A Feira de Brejo Grande.Sergipe. É pós-doutor em Etno-História, peloArquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Por-tugal, 1983.

Algumas publicações do autor:Crônicas de um gay assumido. Rio de Janeiro: Record, 2003. p.317; Ho-mossexualidade: Mitos e Verdades. Salvador: Editora Grupo Gay da Ba-hia, 2003 p.132Matei porque odeio gay. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia 2003,v.1. p.256O crime anti-homossexual no Brasil. Salvador: Editora Grupo Gay da Ba-hia, 2002. p.180Causa Mortis: Homofobia. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2001,v.1. p.164A Cena Gay em Salvador em Tempos de Aids. Salvador: Editora GrupoGay da Bahia/Ministério da Saúde, 2000. p.150.Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand,1993. 750 p.