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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Rosele Maria Branco Michel Foucault e a medicina sobre o nascimento da clínica moderna DOUTORADO EM FILOSOFIA SÃO PAULO 2018

Rosele Maria Branco Michel Foucault e a medicina sobre o

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosele Maria Branco

Michel Foucault e a medicina –

sobre o nascimento da clínica moderna

DOUTORADO EM FILOSOFIA

SÃO PAULO

2018

1

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosele Maria Branco

Michel Foucault e a medicina –

sobre o nascimento da clínica moderna

DOUTORADO EM FILOSOFIA

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título

de Doutora em Filosofia sob orientação da Profª

Dra. Salma Tannus Muchail.

SÃO PAULO

2018

3

Banca Examinadora

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha orientadora, Profª Salma Tannus Muchail, pela sua

companhia nesse caminho, nas leituras, nas vezes em que me ouviu pacientemente,

nas conversas, na proximidade que me concedeu, nas coincidências da jornada,

sempre com palavras de confiança e de rigor respeitoso pelos textos filosóficos.

Aos meus professores da PUC/SP, pelas horas de ensino e dedicação, Márcio

Alves da Fonseca, Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, Peter Pál Pelbart, Jeanne Marie

Gagnebin, Dulce Mara Critelli, Ivo Assad Ibri, e também de outras instituições, Celso

Kraemer e Selvino José Assmann (in memoriam).

À Claude Imbert, que me recebeu na ENS com gentileza e me ajudou a chegar

à conclusão de tese, com seus comentários surpreendentes.

Aos amigos dessa trajetória, que me incentivaram por momentos duradouros

ou apenas breves, mas decisivos, Claudia, Maria Luiza, Edélcio, Fabrina, Larissa,

Kelson, Carla, Joyce, Lygia, Denise, Lucas.

Aos meus pais, irmãos e cunhadas, por me apoiarem.

À minha família, Renato, Thomas e Max, que sempre me compreenderam e

acreditaram no meu trabalho.

4

RESUMO

Título: Michel Foucault e a medicina – sobre o nascimento da clínica moderna

Autora: Rosele Maria Branco

Partiu-se das vivências da morte e do encontro com o pensamento de Michel

Foucault, para interrogar as práticas discursivas médicas sobre a pretensão da

construção de um saber totalizante e hegemônico sobre os indivíduos. A tese seguiu

dois trajetos paralelos: um buscando compreender as descrições do livro Naissance

de la clinique sobre a medicina moderna, denominada por Foucault de medicina

clínica; e o outro, preocupado em contribuir com a formação dos médicos. Apostou-

se em organizar o trabalho seguindo as demarcações de Foucault acerca do saber

médico que constam, principalmente, no livro L’archéologie du savoir, porque faziam

sentido para explicar a dispersão generalizada do saber médico na atualidade.

Incluíram-se referências aos estudos biopolíticos de Foucault, visto que esse

momento indica outro tema importante da reflexão acerca da medicina. Concluiu-se

que a força do saber médico está na forma como ele percebe, penetra e apreende o

corpo, a despeito de que suas verdades sejam parciais e provisórias. Propõem-se

duas direções de diálogo para uma nova arte médica mais flexível, crítica e justa: uma

na discussão de novas camadas que possam ser acrescentadas ao saber médico;

outra, na análise das vivências da prática médica.

Palavras-chave: arqueologia, discurso médico, medicina, biopolítica.

4

ABSTRACT

Títle: Michel Foucault and medicine – on the birth of the modern clinic

Author: Rosele Maria Branco

This work starts from the death experiences and the encounter with Michel

Foucault thoughts, to interrogate the medical discursive practices about the pretension

of the construction of a totalizing and hegemonic knowledge about the individuals. This

thesis followed two parallel projects: one seeking to understand the descriptions of the

book Naissance de la Clinique about modern medicine, denominated by Foucault as

clinical medicine; and the other, concerned to contribute with medical formation. It was

decided to organize the work following Foucault demarcations about the medical

knowledge that are, mainly, in the book L’archéologie du savoir, because they made

sense to explain the generalized dispersion of the medical knowledge in our days.

References to Foucault biopolitics studies were included, whereas this moment

indicates another important theme from the reflection about medicine. It was concluded

that the power of the medical knowledge is in the way that it perceives, penetrates and

approaches the body, even though its truths might be partial and provisory. Two

dialogue directions are proposed to a new medical art, more flexible, critical and fair:

one in the discussion of the new layers that can be added to the medical knowledge,

and another, in the analysis of the experiences of medical practices.

Key words: archeology, medical discourse, medicine, biopolitics.

7

ABREVIATURAS UTILIZADAS

HL Histoire de la folie à l’âge classique

NC Naissance de la clinique

RR Raymond Roussel

MC Les mots e les choses

AS L’archéologie du savoir

DE I Dits et écrits I

DE II Dits et écrits II

STP Sécurité, territoire, population

8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 9

1. Considerações iniciais: reflexões sobre os 30 anos da morte de Michel Foucault

(1926-1984) ................................................................................................................... 9

2. Considerações sobre a biografia de Michel Foucault .......................................... 13

3. Considerações sobre a tese ............................................................................... 20

CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA............................................................................................................ 22

1. Arqueologia vertical ........................................................................................... 23

2. Arqueologia horizontal foucaultiana ................................................................... 27

3. Conclusões sobre arqueologia ........................................................................... 32

CAPÍTULO II – SABER MÉDICO ............................................................................................................... 34

CAPÍTULO III – DISCURSOS DESCRITIVOS CIENTÍFICOS ..................................................................... 45

1. Medicina clássica do século XVIII ....................................................................... 45

2. Medicina clínica do século XIX ........................................................................... 47

3. Protoclínica, lógica da linguagem ....................................................................... 50

CAPÍTULO IV – OLHAR MÉDICO E SEUS DESLOCAMENTOS ......................................................... 72

1. Doença, corpo ............................................................................................................ 72

2. “Abram alguns cadáveres” ................................................................................. 74

3. Dissolução das febres ............................................................................................ 78

CAPÍTULO V - DISCURSO, MORTE, VIDA ......................................................................................... 81

1. Linguagem médica, literatura, distância ............................................................. 82

2. Morte, finitude, vida .................................................................................... 86

CAPÍTULO VI – RELAÇÕES DISCURSIVAS DO SABER MÉDICO ......................................................... 96

1. Hospitais, corporações médicas, faculdades ......................................................... 98

2. Medicina das epidemias .................................................................................. 115

3. Relações estratégicas ........................................................................................... 122

CAPÍTULO VII – DIREÇÕES DO DIÁLOGO ....................................................................................... 136

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................... 147

9

INTRODUÇÃO

1. Considerações iniciais: reflexões sobre os 30 anos da morte de Michel Foucault

(1926-1984)

Em 1984, eu era uma médica recém-formada e fazia minha residência em

Clínica Médica no Rio de Janeiro, cidade onde, por conta disso, morei durante alguns

anos. Foi a época em que vimos surgir uma doença desconhecida – a Síndrome da

Imunodeficiência Adquirida (AIDS, sigla em inglês). Esse nome genérico designava

um conjunto de manifestações clínicas caracterizadas por: tendência a contrair

diversas infecções oportunísticas; presença de lesões cerebrais e de pele –

infecciosas ou tumorais, diarreia crônica, febre persistente e progressiva caquexia,

atingindo principalmente os homossexuais masculinos. A síndrome havia sido descrita

em 1981, os primeiros casos foram relatados em São Francisco e em Nova Iorque

(EUA); e o isolamento do vírus causador (HIV) aconteceu em 1983, simultaneamente

na França e nos EUA.

No Brasil e no mundo, sabia-se, em geral, nada mais que isso. Não havia um

teste laboratorial disponível para o diagnóstico da doença, tampouco qualquer tipo de

tratamento específico para o HIV. O primeiro tratamento aprovado nos EUA pelo FDA

(Food and Drug Administration) foi o AZT, em 1987.

O HIV tem suas peculiaridades. É um vírus perene e causa uma infecção

prolongada. Ele tem tropismo pelos linfócitos T e macrófagos, suas partículas virais

replicam-se no interior dessas células, levando-as à morte. Isto provoca o colapso e a

desregulação do sistema imunológico do hospedeiro, resultando na ocorrência de

diversos tipos de infecções chamadas oportunísticas – aquelas que se manifestam

quando há uma brecha nas defesas do corpo humano. Também surgem formas de

tumores raros, principalmente na pele e no sistema linfático. Um órgão especialmente

envolvido é o cérebro, onde o vírus causa uma encefalite subaguda, a qual se

10

manifesta em 80% dos casos em um ano e progride rapidamente para um complexo

demencial. Contribuindo para agravar o quadro, o vírus ativa a produção desregrada

de proteínas que provocam febre persistente e sintomas consuntivos, emagrecimento

e prostração.

Não era uma doença que passaria despercebida e, reunindo os achados

clínicos invulgares e os elementos da história do paciente, chegávamos à hipótese

diagnóstica, embora, no início, a AIDS parecesse uma epidemia distante do nosso

meio. O que podíamos fazer era tentar nutrir esses pacientes e tratar as infecções e

as neoplasias. Tudo em vão. Eles eram internados em quartos isolados, com medidas

para evitar o contágio, as famílias eram alertadas para possíveis outros casos.

Assistíamos a uma morte certa, dolorosa para o paciente e para todos ao seu redor.

Lembro-me especialmente de um caso, que ficou sob meus cuidados. Era uma

jovem mulher, cujo marido era marinheiro e havia sido contaminada provavelmente

por ele. Quando ela se internou, já estava num estágio avançado da doença. Para

visitá-la, lembro-me do longo trajeto: ter de atravessar dois pavilhões do hospital, subir

escadas de mármore, seguir pelo corredor, onde seu quarto era o último daquela ala.

Sempre a encontrava sozinha, deitada, silenciosa. Penso, agora, que talvez a luz

excessiva daquele quarto a incomodasse, porque havia grandes janelas. Não me

recordo do que ela se queixava ou do que eu falava para ela. Recordo-me, contudo,

de sentir a presença da doença como um peso moral naquele silêncio e na solidão

que parecia ainda mais vazia; e perceber uma desesperança quase palpável. Nem

todos os pacientes eram internados naquela ala distante das enfermarias da clínica

médica, mas havia um mal-estar comum aos casos de AIDS.

Poucos anos mais tarde, vi meus colegas hemoterapeutas praticamente se

transformarem em infectologistas. Seus pacientes hemofílicos foram infectados pelo

HIV nas transfusões de sangue, durante o tratamento das manifestações

hemorrágicas da doença. E os jovens hemofílicos passaram a apresentar várias

infecções graves, deterioração da saúde e foram sucumbindo. Foi uma época difícil

para todos.

Alguns anos se sucederam até que houve medidas de prevenção e de

tratamento para a AIDS. Atualmente, existem medicações antirretrovirais que podem

assegurar uma vida longa aos portadores do HIV, minimizando a carga viral no

11

organismo e obtendo um controle efetivo da infecção. Os médicos de hoje não

conhecerão aquele quadro penoso, embora haja médicos como eu, que vivenciaram

o período da doença rapidamente fatal pelo HIV.

Michel Foucault foi a primeira figura pública a morrer de AIDS na França.

Comove-me relembrar sua morte, ocorrida em 1984, momento em que a doença

emergia, e na lacuna de tempo em que nada podia ser feito. Procuro pensar que papel

a medicina teve em sua morte – talvez não tenha tido papel algum em sua agonia.

Qual poderia ter tido?

O que disseram as pessoas mais próximas dele?

Daniel Defert, seu companheiro durante muitos anos, sempre se recusou a

evocar a morte de Foucault. Contudo, em 2004, na rememoração de vinte anos

daquela data, ele autorizou a publicação no Libération de uma entrevista concedida

em 1996.1 Defert, naquela ocasião, lançara um livro sobre a luta contra a AIDS. Nesse

depoimento, ele deixa saber que Foucault tinha conhecimento do diagnóstico provável

da AIDS, vinha em tratamento médico e se esforçava por terminar dois livros. A equipe

médica compreendia que ele tinha pouco tempo de vida e mantinha silêncio, para

deixá-lo concluir a escrita. Em poucos meses, contudo, Foucault precisou ser

internado no Hospital Pitié-Salpêtrière, ali permanecendo por 3 semanas, até sua

morte. Nesse período hospitalar, Defert relata ter decodificado certo número de

coisas.

Primeiramente, surpreendeu-se com a forma como a equipe médica e a

administração do hospital gerenciaram as informações, tentando ocultar o diagnóstico

da AIDS. Relata que houve sonegação de informações mesmo aos mais próximos,

como ele, e proibição de visitas dos amigos. O temor do escândalo reforçava o

afastamento da imprensa. Ele afirma que houve “mentiras” e “hipocrisia”, porque o

diagnóstico da AIDS havia sido estabelecido no momento da internação, embora

continuasse sem formalização. Expõe a angústia do desconhecimento e de descobrir

por si mesmo informações escritas nos registros. Nessas circunstâncias, ele diz,

reconheceu a ocultação e o jogo das relações de poder. Defert reclama um “direito de

1 DEFERT, Daniel. Foucault. Les derniers jours. Interview avec Eric Favereau. Libération, Paris, 19

nov. 2004. Culture, Livres. Disponível em: http://www.liberation.fr/livres/2004/06/19/les -derniers-

jours_483626. Acesso em: 05 nov. 2014.

12

saber”, direito à verdade sobre a doença e, ainda, denuncia a invocação de razões

médicas para impor frustrações relacionais inadmissíveis.

A seguir, nos dias logo após a morte de Foucault, ele percebeu o horror que a

doença causava, fazendo-a parecer o “impensado social”, esse medo social que

levaria ao desejo de apagar a doença e ocultar toda relação de verdade, mesmo nas

respostas dos médicos. E, ao mesmo tempo, tornando-a objeto de voracidade, que

desnudava as relações homossexuais, transformando a AIDS em mais um modo de

discriminação social. Ao entender essas coisas, ele decidiu transformar seu luto em

um combate.

Um amigo próximo, Mathieu Lindon, confirma essas sequências de ocorrências

na internação de Foucault e comenta como o diagnóstico da AIDS foi revelado

somente nos papéis das formalidades, após a morte dele.2

Paul Veyne, no livro que escreveu sobre Foucault, trata a morte do amigo como

um evento inesperado, mal compreendido por aqueles mais próximos dele. Conta que,

numa conversa, chegou a perguntar a Foucault sobre a própria existência da AIDS, a

qual parecia uma realidade distante, ele respondeu que havia pesquisado sobre a

AIDS e procediam os relatos sobre ela. Veyne conclui que ele parecia ter

conhecimento da sua doença, e a enfrentava com certo sangue-frio.3 Em sua biografia

de Foucault, Didier Eribon relata esse clima de perplexidade com a morte dele,

fulminado por uma doença pouco esclarecida, mas cercada de boatos indiscretos. Os

jornais, nas manchetes, falavam das homenagens póstumas ao filósofo ilustre,

escritas por seus amigos do meio intelectual; e deixavam nos rodapés as linhas

crispadas do preconceito contra a nova doença.4

Será que, passados trinta anos, pode-se compreender melhor as circunstânci a s

da morte de Foucault e dos pacientes com AIDS? O que a medicina não soube tratar

e estava presente naquele mal-estar suspenso em cada quarto de hospital, mesmo

que se tivesse a convicção que nada poderia ser feito? Um mal-estar que importava

2 LINDON, Mathieu. O que amar quer dizer. Tradução de Marília Garcia. São Paulo: Cosac Naify,

2014. Ver em p.145-55. 3 VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio

de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. Ver em p.248-53. 4 ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991. Relato sobre a morte de Foucault

em p.350-5. Tradução em: ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990. p.304-11.

13

tanto quanto a doença. O que foi impensado, silenciado, desconsiderado? A medicina

nada fez? e, inversamente, o que mesmo ela fez? Nessas circunstâncias, em que um

saber objetivo sobre a doença não existia, o murmúrio de uma falta foi intensificado.

Essa falta parece ter duplo sentido, um existencial e outro estratégico.

É desta experiência inquietante que pretendo partir. Para isso é preciso

retornar.

É preciso retornar ao tema da morte, abordado por Foucault com certa

insistência nas suas primeiras publicações sobre a medicina e a literatura. Retornar a

Naissance de la clinique (NC) [1963], em que ele faz a investigação arqueológica da

medicina; à análise dos discursos, do início de sua trajetória filosófica. Essa volta, na

contramão dos estudos atuais que se detêm nas novas publicações disponíveis – os

últimos cursos de Foucault no Collège de France –, mas com o auxílio da recente

divulgação de seus manuscritos inéditos pela Bibliothèque Nationale de France (BNF),

cumpre um caminho deliberado e está relacionada ainda a outro retorno. É também

preciso voltar e tentar construir o que poderia ter sido dito para uma jovem médica

sobre a morte dos pacientes com AIDS, sobre a morte de Michel Foucault.

Há vários elementos nessas circunstâncias da morte dos pacientes com AIDS

que podem ser investigados: o hospital, o discurso médico, o silêncio, a exclusão e o

isolamento dos pacientes, o corpo e a doença, o sofrimento físico, a dor existencial, a

solidão. E é dentro desse conjunto de elementos que pretendo pesquisar sobre

Foucault e a medicina. Outros caminhos poderiam ter sido escolhidos: através da

analítica do poder médico ou, ainda, da história epistemológica das ciências. Esses

não são caminhos excludentes e poderão se entrecruzar no decorrer desse trabalho.

2. Considerações sobre a biografia de Michel Foucault

Para situar o tema, deve-se mencionar episódios da biografia de Foucault que

remetem ao livro NC, embora com o cuidado de não reduzir os escritos sobre a

medicina a aspectos pessoais, como ele nunca o fez. Certo ainda, porque Foucault

14

recusava uma identidade pessoal, conforme escreveu na conhecida passagem no

final da “Introdução” de Arqueologia do saber, “não me pergunte quem sou e não me

diga para permanecer o mesmo”. A primeira menção é sobre a sua herança vinda de

uma família de cirurgiões, a qual Foucault talvez possa invocar nas metáforas

médicas, ora cirúrgicas, “cortar o papel portando a caneta como um bisturi”; ora de um

“diagnosticador”, cuja utilização aparece várias vezes nos seus escritos, sendo

especialmente aludida em NC, quando ele escreve sobre o gesto do diagnosticador.5

Citando suas palavras, “o golpe de vista não sobrevoa um campo: atinge um ponto,

que tem o privilégio de ser o ponto central e decisivo; [...] vai direto: escolhe, e a linha

que traça sem interrupção opera, em um instante, a divisão do essencial”, atitude que

parece se aplicar a ele mesmo.6 Igualmente uma invocação, poderia ser a figura

central de Bichat em NC, como o anatomista que se destaca pela precisão e

minuciosidade em dissecar, pela capacidade de reunir fragmentos e de tornar visível

o invisível, qualidades que alguns podem comparar à própria operação filosófica das

pesquisas de Foucault.7

Outro episódio biográfico, citado por ele em várias entrevistas, é que os seus

trabalhos partiam de alguma experiência direta, nesse caso, deve-se lembrar que

Foucault trabalhou em hospitais psiquiátricos, como o Hospital Sainte-Anne, e

também no hospital prisional. Essa experiência no tratamento psiquiátrico hospitalar

e o contato com os médicos foi identificada por ele como um dos focos para, mais

tarde, escrever a Histoire de la folie (HF). 8

Sabe-se que Foucault compôs parte de HF no período em que morou em

Uppsala, na Suécia [1955-1958], essa cidade de longo inverno e língua estrangeira

deve ter favorecido a sua escritura, por certos motivos. Foi em Uppsala que Foucault

5 GROS, Frédéric et al. Foucault: a coragem da verdade. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo:

Parábola Editorial, 2004. p.27. 6 FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2008. p.134. Leia-se em FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7e ed.

Paris: Quadrige/PUF, 2007. “Le coup d’œil, lui, ne survole pas un champ: il frappé en un point, qui a le

privilège d’être le point central ou décisif; [...] va droit: il choisit, et la ligne qu’il trace d’un trait opère,

en un instant le partage de l’essentiel”. 7 VANDEWALLE, Bernard. Michel Foucault – Savoir et pouvoir de la médecine. Paris: L’Harmattan,

2006. p.9-10. 8 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991. p.68-9. Tradução em:

ERIBON, Didier. Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras,

1990. p.62. Passagem em que Foucault fala sobre seu trabalho no Hospital Sainte-Anne, quando

estudava psicologia.

15

conviveu com Georges Dumézil, quem foi talvez “um modelo para ele: modelo de rigor

e paciência no trabalho; modelo também pela diversidade de centro de interesses,

pela minuciosa atenção dedicada aos arquivos”; ensinando-lhe a forma de analisar os

discursos segundo suas transformações e relações com as instituições, como relata

Eribon.9 Ali estava, também, a grande Biblioteca Carolina Rediviva, cujo acervo

contava com uma coleção de livros de história da medicina, doados por um

colecionador, dr. Erik Waller. Nessa biblioteca Foucault passava muitos dias

estudando e fazendo anotações. Perto de Uppsala, havia ainda outro lugar que

Foucault gostava de visitar, a casa de Lineu.

Na cronologia estabelecida para Dits et écrits [1994], Daniel Defert diz que a

redação de NC fora concluída em 1961, e Foucault a apresentava como “remates de

História de Loucura”.10 Pode-se reconhecer que ele pesquisava para NC na mesma

época em que compunha HF [a apresentação da sua tese de doutorado na Sorbonne

foi em 1961].

Na publicação de 2015 de NC, pelas edições La Pléiade, Delaporte relata a sua

consulta aos manuscritos desse texto. No arquivo Foucault da BNF, encontram-se o

caderno das notas preparatórias, onde ele fez anotações das leituras, reflexões de

ordem histórica ou crítica e possíveis linhas de pesquisa; e o dossiê das notas de

leitura para NC, arquivadas em uma quarentena de pastas.11 Essas pastas estão

identificadas pela mão do próprio autor e remetem à distribuição dos capítulos de NC,

colocando a bibliografia consultada em relação ao conteúdo dos capítulos. Delaporte

reconhece nessa organização coerente da condução dos trabalhos, a escrita de NC

como “um projeto autônomo, simétrico e inverso à HF.”12 Além das leituras

relacionadas especificamente à medicina, há notas sobre as transformações da

medicina nos séculos XVIII e XIX, não relacionadas ao tema de HF, que seguem o

9 Ibid., p.97. Trad., p.87. 10 Como “des chutes d’Histoire de la Folie”, em: DEFERT, Daniel. Chronologie. In: FOUCAULT,

Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. p.29-30. Trad. em: FOUCAULT,

Michel. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria e psicanálise. Coleção Ditos e Escritos, vol.

I. Tradução de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Organização de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de

Janeiro: Forense Universitária, 2010.p.16. 11 DELAPORTE, François. Note sur le texte. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une archéologie du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallima rd,

2015.p.1526-7. Ele informa “boîte XCI du fonds Foucault déposé à la Bibliothèque nationale de

France (NAF 28730)”. 12 Ibid., p.1527. Leia-se: “Alors, il apparaîtra clairement que la Naissance de la clinique est un projet à

la foi autonome, symétrique et inverse de l’Histoire de la folie.” (Tradução minha)

16

desenvolvimento de um projeto paralelo. E a bifurcação observada na trajetória dos

dois projetos pode ser avaliada nos capítulos de NC em que Foucault mostra como a

medicina clínica se descolou da percepção metafísica da doença de uma

contranatureza e a integrou epistemologicamente ao corpo vivo dos indivíduos,

enquanto a psiquiatria (em HF) permaneceu muito tempo vinculada ao espírito da

taxonomia.

NC apareceu na França em abril de 1963, e propunha descrever as condições

de surgimento da medicina clínica no século XIX, quais foram as possibilidades

históricas que levaram à constituição de um saber médico fundado na anatomia

patológica. A publicação foi seguida de silêncio. Delaporte atribui isso à

incompreensão dos historiadores da medicina, ao não reconhecerem a filiação de

Foucault à epistemologia histórica de Georges Canguilhem; ou mesmo por não

seguirem essa vertente da epistemologia francesa, o que tornaria o livro inacessível.

Inserindo-se na epistemologia francesa via Gaston Bachelard, Alexandre Koyré

e Georges Canguilhem, Foucault se apropriara de noções fundamentais. De

Bachelard, veio o conceito de “ruptura epistemológica”, a qual, para esse filósofo, dá-

se entre o pré-científico e o científico. O nível pré-científico é o da linguagem dos

“fantasmas”, que se opõe às descrições objetivas; do abstrato, ao concreto; da

experiência sensível, ao método racional; dos pensamentos falsos e monstruosos que

se opõem aos pensamentos verdadeiros.13 Para Foucault, contudo, a ruptura

epistemológica se dá entre a medicina da idade clássica e a medicina clínica, por isto

sua condução se afasta de Bachelard. Foucault diz que não realizará uma

“psicanálise” do conhecimento, nem encontra falta de objetividade, mas o que

percebeu foi a substituição de uma racionalidade médica por outra, cuja positi vidade

está determinada pelo aprofundamento no próprio corpo.

O pensamento de Alexandre Koyré permitiu a Foucault analisar a

reorganização da periodização da história da medicina. Koyré tinha uma abordagem

retrospectiva, e procurava esclarecer qual novo quadro de pensamento houvera que

ser construído, para que novas leis simples, conceitos, evidências, e até uma nova

concepção da ciência se tornassem possíveis e fossem compreendidas.14 Por

13 DELAPORTE, François. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une archéologie

du regard médical. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1514-5. 14 Ibid., p.1515.

17

exemplo, Galileu e Descartes precisaram construí-lo, para transformar o pensamento

na física e suplantar a física aristotélica. Esse novo quadro geral do pensamento

científico delimita o seu interior como “no verdadeiro”, e outros quadros se tornam

“falsos”. Foucault também parte do presente e identifica o quadro geral da medicina

moderna: “a ancoragem da doença no corpo do doente e o ‘golpe de vista’ do

médico”.15 Sua pergunta é: o que tornou isso possível, o corpo doente e a invenção

do olhar médico? Foucault, então, descreve a racionalidade prática nas experiências

de Bichat e Broussais, como elementos que acabaram por constituir o novo horizonte

teórico verdadeiro da medicina, e assim, a medicina do antigo pensamento

classificador tornou-se falsa. Contudo, essa nova emergência da verdade fundamenta

a vida e a doença justamente no seu extremo oposto, porque é na morte que se

disseca o verdadeiro.

Delaporte continua, sobre a filiação filosófica de Foucault, e afirma que a leitura

de Canguilhem foi determinante.16 Relaciona-se à compreensão de que a história da

ciência deve ser abordada como um conjunto coerente, mas transformável, de

modelos teóricos e instrumentos conceituais. Esse campo coerente possuiria regras

internas de caráter normativo, as quais estabelecem o verdadeiro e o falso. Para

Foucault é, portanto, no interior do espaço epistemológico da medicina clínica que se

reconhecem as proposições verdadeiras ou falsas, as quais tornaram a medicina

classificatória, anterior a ela, incoerente, infundada, inatual, falsa, de ditos agora

monstruosos. Delaporte destaca o uso da metáfora da monstruosidade para se referir

às proposições falsas, que perpassavam a ciência; e mostra que, no pensamento de

Foucault, as monstruosidades serviram para pontuar o contraste e o limite entre o

verdadeiro e o falso. Esta distinção e exclusão se daria não somente em relação aos

dizeres anteriores, mas também ao estranho inserido no próprio saber da atualidade

– o que ele chama de “monstros verdadeiros”. Esses vêm a ser os dizeres verdadeiros

incongruentes aos campos epistemológicos vigentes. Aqui, Delaporte cita o exemplo

da técnica de percussão do tórax para inferir alterações nas suas camadas profundas,

que não fora compreendida por uma medicina do espaço classificatório, que é o da

superfície e da representação. Para deter-se na história arqueológica da medicina e

passar a examinar as propostas de Foucault, pretende-se adentrar mais adiante a NC.

15 Ibid., p.1515. 16 Ibid., p.1515.

18

Há outra menção interessante sobre a sua cronologia biográfica em Raymond

Roussel (RR). Este livro de Foucault sobre o poeta e escritor, fora publicado no mesmo

ano de NC (1963).17 O próprio Foucault fizera questão de que fossem lançados quase

no mesmo dia.18 Seria por que, de alguma forma, falavam da mesma coisa? pergunta

Eribon.

Philippe Sabot vasculhou os arquivos dos manuscritos de Foucault na BNF

acerca de RR, e constatou que as suas notas preparatórias estão arquivadas em

conjunto a NC, na boîte XCI, cashier n.1.19 RR é um livro peculiar na trajetória de

Foucault, porque é o único no estilo de ensaio e que dedica o título a um autor. Sabot

faz algumas reflexões que remetem à conferência de 1969, “Qu’est-ce qu’un auteur?”,

em que Foucault faz uma distinção entre “nome próprio” e “nome do autor”.20 O “nome

próprio” designaria o indivíduo real e o princípio que reúne o conjunto de uma obra e

seu autor. O “nome do autor” indicaria uma possibilidade de ruptura num campo de

discursos, um lugar de transformação discursiva. Raymond Roussel seria o nome do

autor de uma experiência radical e nova.

O estudo que Foucault faz da experiência de Roussel não é de caráter

biográfico, tampouco é uma análise arqueológica, como ele desenvolveu em NC, diz

Sabot. No entanto, há elementos comuns nos dois livros quando se observa, num

primeiro plano, a articulação do visível, do dizível e da morte. Em NC, esses elementos

são as condições arqueológicas para a reorganização do olhar médico; em RR,

17 FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection Folio / Essais.

Paris: Gallimard, 1963, pour le texte et 1992 pour la présentation. Tradução brasileira: FOUCAULT,

Michel. Raymond Roussel. Manoel Barros da Motta e Vera Lucia A vellar Ribeiro. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 1999. (RR) 18 Ver em ERIBON, Didier. Michel Foucault. 2.ed. Paris: Flammarion: 1991, p.171: “Pourtant, Foucault

ne ménage pas sa peine. En, 1963, il publie deux ouvrages fort différents. Il s’agit de son étude sur

Raymond Roussel, qui paraît chez Gallimard, dans la collection ‘Le Chemin’ que dirige Georges

Lambrichs, et de Naissance de la Clinique. Il a pris soin de les faire paraître le même jour. Pour

manifester l’égale importance des deux centres d’intérêt qui mobilisent son attention? Ou plus

profondément pour montrer qu’il parle ici et là de la même chose?”. Tradução em: ERIBON, Didier.

Michel Foucault. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.150. “No

entanto, Foucault trabalha muito. Em 1963, publica duas obras bem diferentes. Um estudo sobre

Raymond Roussel, lançado pela Gallimard na coleção ‘Le chemin’, que Georges Lambrichs dirige, e

Naissance de la clinique. Foucault cuidou para que as duas obras fossem lançadas no mesmo dia.

Para mostrar a importância igual dos dois centros de interesse que mobilizavam sua atenção? Ou,

mais profundamente, para mostrar que numa e na outra está falando da mesma coisa?” 19 SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.

Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1554-5. 20 FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, cenférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque de la Pléiade.

Paris: Gallimard, 2015.p.1264-67. (Qu’est-ce qu’un auteur?)

19

formam a ontologia de uma experiência literária singular.21 Observe-se que Foucault

articula o estudo sobre Roussel em três “ciclos”:22 1. Le regard et les choses (La Vue,

La Doublure); 2. La mort et les appareils (Locus Solus; Impressions d’Afrique); 3. Le

langage et les métaphores (Nouvelles impressions d’Afrique).

Ora, o olhar, a morte e a linguagem também são os eixos das análises em NC.

As distinções, contudo, vêm dos dois lugares diferentes em que esses livros

são desenvolvidos, diz Sabot, porque RR nasce no espaço heterotópico da biblioteca

e percorre uma experiência da linguagem no espaço da literatura; enquanto NC vem

dos arquivos e dos discursos na sua historicidade.23 Sabot conclui que RR substitui o

relato arqueológico por “uma reflexão de caráter ontológico sobre a literatura e o ser

da linguagem.”24

A compartilhamento das notas para NC e RR nos manuscritos e a

concomitância das publicações mostram os interesses que Foucault perseguia

naqueles anos. Pode-se começar a descrevê-los pelos campos da medicina e da

literatura; em seguida, pelos discursos científicos e pela linguagem; pela forma de

organização do pensamento na experiência médica e na literária; pelas práticas

discursivas complexas e normalizantes e pelas práticas do indivíduo fora das normas.

Percebe-se, além do mais, que Foucault procura aproximar os discursos,

desconsiderando demarcações rígidas, talvez testando novas perspectivas. O que

coincide nos dois casos são as linhas de condução que Foucault identifica: o olhar, a

morte e a linguagem. Pode-se pensar, simplificadamente, que sejam: o olhar do

diagnosticador ficcional que imagina e mostra o invisível do visível; a morte

considerada o desfecho fundador do discurso; e a linguagem, como o princípio

21 Ver em SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.

Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1554-5. 22 Sabot cita: Fonds Foucault, BNF, boîte XCI, cahier nº 1, note du 29 du mai 1962. 1. O olhar e as

coisas; 2. A morte e as máquinas; 3. A linguagem e as metáforas; tradução minha. 23 Ver em: SABOT, Philippe. Notice. In: FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Oeuvres. Tome I.

Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.p.1555: “Là où Naissance de la clinique s’écrit dans

une relation privilégiée à l’archive et à la sédimentation historique des choses dites, alliant la

systématicité des discours et leur historicité (c’est -à-dire le système de leur transformation), Raymond

Roussel s’écrit plutôt dans l’espace hétérotopique et heterochronique de la bibliothèque.” (Tradução

minha). 24 Ibid., p.1554-5. Leia-se: “Mais l’étude monographique de Foucault se développe en dehors de toute

trame ‘historique’ et substitue au récit archéologique une réflexion à caractère ontologique s ur la

littérature et l’être du langage.” (Tradução minha)

20

organizador, elementos esses que constituiriam o modo de pensar e de agir na

modernidade.

3. Considerações sobre a tese

O objetivo desse trabalho é compreender a racionalidade médica moderna tal

como descrita nos trabalhos de Michel Foucault, especialmente em Naissance de la

clinique (NC), como ela se constituiu e se materializou, e porque parecem existir

lacunas nas práticas médicas da atualidade. Esses momentos lacunares de silêncio e

do impensado podem ser percebidos quando surge certo mal-estar, como aquele

descrito no tratamento dos pacientes com AIDS.

A hipótese levantada de início é que (1) o discurso médico poderia ser

insuficiente para abordar aspectos da existência humana e excessivo em sua

autoridade estratégica; seguindo-se paralelamente mais duas questões, a saber, (2)

o tipo de relação do discurso médico com a morte, e (3) as novas direções para os

médicos em formação.

O saber médico sustenta que se pode chegar à verdade da doença e do corpo

pela formalização de um discurso construído por um raciocínio neutro e baseado em

observações e experiências. O discurso seria fundamentado na sua objetividade,

porque supõe uma relação direta entre o objeto a conhecer e o sujeito que conhece.

Contudo, essa fundamentação racionalista tem sido considerada demasiadamente

otimista e ingênua, desde que nessas relações de saber se introduziram gestos de

complexidades inusitadas e perigosas. E também se tornou claro que os saberes

mantêm relações com os interesses sociais, políticos e econômicos. Esse mesmo

saber científico que se mostra difuso e estrategicamente envolvido nas suas relações,

parece, ainda assim, excluir uma dimensão, esta que poderia ser definida como

existencial, e da qual ele teria se separado na sua emergência e constituição histórica.

A dimensão existencial é aquela dos medos, dos afetos, da confusão que surge

quando se está doente, mas também da condução de si mesmo.

21

Para desenvolver a hipótese principal desse trabalho, pretende-se pesquisar

os estudos de Michel Foucault sobre a medicina, seguindo o livro Naissance de la

clinique (NC), como mencionado, mas também outros textos correlacionados ao tema,

nas suas pesquisas arqueológicas.

Nos capítulos iniciais de I a III, o objetivo é reconstruir as condições de

possibilidade do discurso médico, conforme apontadas por Foucault, abordando o

significado da arqueologia, o saber médico e a lógica da linguagem. De início, para

entender os procedimentos da arqueologia foucaultiana, recorreu-se a seus

estudiosos. Em seguida, para desenvolver uma visão mais geral sobre o saber

médico, utilizou-se principalmente Arqueologia do saber (AS). Diferentemente, para

entender a sua constituição discursiva entre “o olhar” e “a linguagem”, foi realizada

uma leitura metódica de NC, para tornar mais compreensíveis as teses de Foucault

sobre o método clínico.

O capítulo IV é dedicado a perceber os deslocamentos do olhar médico e,

assim, a forma e as consequências da apreensão do corpo em sua profundidade,

seguindo a leitura metódica do livro NC.

O capítulo V centra-se na morte, e percorre as linhas desse tema que se

condensam no discurso médico.

O sexto capítulo versará sobre as relações decisivas com outras áreas

discursivas, os locais e instituições de exercício da função do médico, a dispersão e a

regularidade do saber clínico. E também abordará de forma sintética como a medicina

se entrelaçou aos trabalhos seguintes de Michel Foucault sobre o biopoder, apenas

indicando outras fontes de pesquisa para futuros trabalhos.

No sétimo, ao se permitir sugerir qual caminho seguir, talvez se possa encontrar

na filosofia de Michel Foucault certas direções para abrir diálogos sobre o discurso

médico.

22

CAPÍTULO I – ARQUEOLOGIA

Considerações iniciais

Ciência, política e práticas sociais não podem ser separadas, mesmo quando

se pretende estudar apenas um campo de saber. Isto se mostra no desenvolvimento

dos capítulos de Naissance de la clinique (NC).25 Esse livro trata da emergência da

“clínica médica” no fim século XVIII, a qual, para Foucault, é o tipo de racionalidade

prática que organizará a medicina moderna. No livro, há uma alternância interessante

entre capítulos que tratam das lutas e das conquistas políticas da época, reconhecidas

como o período da Revolução francesa, e outros, da busca das corporações médicas

da França para regulamentar a profissão médica e fundamentá-la como uma ciência.

Foucault mostra como a confluência de alguns acontecimentos políticos, sociais e

científicos, no fim do século XVIII, puderam formar o saber médico moderno. Além

das violentas reviravoltas políticas da sociedade, das epidemias, das novas técnicas

de investigação médica que passaram a ser adotadas, há um foco em algumas

personagens médicas, das quais Pinel, Tenon, Cabanis, Laennec, Bichat, Broussais

são os principais exemplos. São médicos que provavelmente ocuparam certo status,

pelo que puderam estabelecer relações e funções em diversas instituições, na sua

época.

NC é um livro árduo para ler ou retornar a ele, porque reúne eventos históricos,

termos médicos de antigo significado e interpretações desconcertantes. Várias

passagens sobre a Revolução Francesa, decretos feitos e desfeitos, idas e vindas das

datas embaralham-se em detalhes que aparentemente já não são importantes.

Acrescentem-se ainda as descrições dos achados físicos da tuberculose, das

inflamações e das febres como já não são compreendidos; e chega-se à morte como

um dos conceitos fundadores da medicina atual. Aparentemente, não é um livro

contínuo e encadeado. Essa é a primeira impressão. Para compreender melhor NC,

25 FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique. 7e ed. Paris: Quadrige/PUF, 2007. FOUCAULT,

Michel. O nascimento da clínica. Tradução de Roberto Machado. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2008. (NC)

23

é preciso conhecer o pensamento arqueológico de Foucault, e como foi seu uso no

desenvolvimento das pesquisas. É preciso, também, encontrar um ângulo de

afastamento para reconhecer determinados pontos-chave que possam esclarecer as

condições da emergência da racionalidade médica moderna, entre eles a formação

discursiva científica, os deslocamentos do olhar médico e as relações externas ao

campo médico.

Para melhor compreensão das propostas elaboradas por Foucault, decidiu-se

iniciar examinando o procedimento foucaultiano dos anos 60, década em que ele

publicou os livros: Histoire de la folie, descrito como uma “arqueologia do silêncio”26;

Naissance de la clinique, que possuía inicialmente o subtítulo “uma arqueologia do

olhar médico”; o reconhecido Les mots et les choses, “uma arqueologia das ciências

humanas”; e, finalmente, Arqueologia do saber (L’archéologie du savoir), publicado

em 1969.

1. Arqueologia vertical

Na publicação de Luca Paltrinieri, a qual será percorrida nas próximas páginas,

pretende-se reunir os pontos principais do uso da abordagem arqueológica por

Foucault e sua originalidade.27 A metáfora arqueológica já fora utilizada por outros

filósofos, cada um elaborando uma aproximação inserida em seu próprio método

filosófico. Archéologie [fr.1844] tem sua etimologia derivada do grego arché, que

significa início, princípio, origem. Na filosofia, a esse termo é metaforicamente

atribuído o significado de escavar o solo ou o subsolo, buscando os fundamentos de

um saber. Há também um significado temporal, porque o que se busca são ideias a

priori que persistem sob as ruínas e podem estar sedimentadas, ocultas, esquecidas.

26 No primeiro Prefácio de Histoire de la Folie à l’âge classique, 1961. Em FOUCAULT, Michel. Dits et

écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. p.188. (DEI) 27 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.15-30.

24

Portanto, Michel Foucault não foi o primeiro a utilizar o termo arqueologia, deve-

se isso a Kant. Para Kant, a arqueologia filosófica designava a história do que torna

necessária certa forma de pensamento.28 Era delimitada pela história das

racionalidades, ou das ideias como fatos da Razão, solo sobre o qual repousa o

conhecimento humano. Permitia reconstruir “o quadro histórico das ideias filosóficas”,

em que toda filosofia deve se situar temporalmente; e isto demostrava a relação

arqueológica da filosofia com a sua própria história, relação pela qual os eventos do

passado continuavam a ter efeitos no presente.29 Não tratava de uma cadeia de causa

e efeito ou do progresso das racionalidades, mas de l’arché filosófica donde provém

seu próprio fundamento constitutivo e justificativo.

Martial Guéroult segue a tarefa kantiana, ao recomendar a investigação da

estrutura dos textos filosóficos, tratando as obras filosóficas como “monumentos” que

resistem ao tempo em virtude de seu valor intrínseco.30 Isto se deve ao fato de que

ele definia a filosofia como a atividade racional que se dedica a propor novas soluções

para os problemas não resolvidos, requerendo assim uma aproximação histórica

própria. Adicionalmente, a arqueologia filosófica teria um caráter instrutivo porque

desenterra das ruínas a própria matéria filosófica ao investigar os sistemas de provas

e a estrutura objetiva dos textos filosóficos. A aproximação histórica da filosofia seria

um exercício propriamente filosófico, porque investiga soluções dadas a uma série de

problemas que continuam a se apresentar.

Paltrinieri lembra que Georges Canguilhem pensou justamente nesse conceito

de Guéroult ao definir a arqueologia foucaultiana como uma “ciência de monumentos”,

tendo afirmado: “a geologia conhece sedimentos, a arqueologia, monumentos”, ao

resenhar Les mots et les choses.31 Definida assim, ela não estaria reduzida a um

28 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.16. Este autor cita: “Dans ses Fortschritte der Metaphysik , contenus dans les Lose

Blätter, Kant avait en effet utilisé le mot pour désigner l’histoire de ce qui rend nécessaire une certaine

forme de pensée.’” O texto de Kant é Fortschritte der Metaphysik (redigido em 1793 e publicado em

1804), em Gesalmmelte Schriften, t. XX, Berlin, Walter de Gruyter, 1942, p.341. Traduzido para o

francês por L. Guillermit, Les progrès de la métaphysique en Allemagne depuis le temps de Leibniz et

de Wolff, Paris, Vrin, 1973. 29 Ibid, p.17. 30 Ibid, p.18. Citando M. Guéroult, Leçon inaugurale au Collège de France, 4 déc. 1951. 31 CANGUILHEM, Georges. Mort de l’homme ou épuisement du Cogito? Critique, nº 242, juillet, 1967.

p.599-618. Republié dans Les mots e les choses de Michel Foucault. Regards critiques 1966-1968,

Caen, Presses universitaires de Caen – IMEC, 2009. Leia-se na p.254: “La géologie connaît des

sédiments et l’archéologie des monuments.” (Tradução minha)

25

estudo do solo histórico (uma geologia), mas vem a ser uma investigação ampliada

das próprias condições de possibilidade da história. Canguilhem esclarece que

mesmo que Foucault se expresse num vocabulário da geologia quando se refere ao

solo silencioso e imóvel e às rupturas sobre as quais se caminha hoje, não é para

remeter às camadas ocultas e sedimentadas por fenômenos naturais; na verdade, o

que ele investiga são os “desníveis da cultura ocidental”, os “limiares” dos saberes.32

Note-se que naquele ponto, diferentemente de Guéroult, para Foucault os problemas

também mudam em cada época, acompanhando as modificações de organização do

sentido e da coerência dos diferentes saberes. Explicando melhor, a arqueologia é um

movimento histórico que conduz às próprias condições de possibilidade do

conhecimento; como afirma Foucault: “[...] as modificações que alteraram o próprio

saber, nesse nível arcaico que torna possíveis os conhecimentos e o modo de ser

daquilo que se presta ao saber.”33 Essas mutações se dão no nível mais profundo,

aquele de l’arché histórica, por isso representam rupturas, ou descontinuidades, que

impedem a reconstrução de uma lógica contínua de uma época para outra. Ora,

Paltrinieri indaga, então como investigar esse a priori histórico se ele muda? Por onde

começar? Ele mesmo prossegue: resta buscar nas condições que determinam o

próprio presente. Relendo-o: “a operação arqueológica consistirá então num trabalho

de escavação de nosso ‘solo’ à procura de uma evidência mais fundamental capaz de

revelar o senso do desenvolvimento histórico.”34

Resumidamente, até aqui se contam três pontos principais que dão uma visão

geral da pesquisa arqueológica foucaultiana. Primeiramente, ela investiga os saberes

e, desde o início, vincula-se a uma abertura kantiana para a história do pensamento

32 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots

e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1045. Leia-se: “En essayant de remettre au

jour cette profonde dénivellation de la culture occidentale, c’est à notre sol silencieux et naïvement

immobile que nous rendons ses ruptures, son instabilité, ses failles; et c’est lui qui s’inquiète à

nouveau sous nos pas.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia

das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes,

2007.p.XXII. 33 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. Les mots

e les choses: une archéologie des sciences humaines , p.1101. Leia-se: “[…] les modifications qui ont

altéré le savoir lui-même, à ce niveau archaïque qui rend possibles les connaissances et le mode

d’être de ce qui est à savoir.” Tradução: FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma

arqueologia das ciências humanas. Tradução de Salma Tannus Muchail. 9.ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2007.p.75. 34 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.21. Leia-se: “[…] l’opération archéologique consistera alors en un travail

d’excavation de notre “sol” à la recherche d’une évidence plus fondamentale capable de révéler le

sens du développement historique.” (Tradução minha)

26

racional e seu quadro de fundamentações. O segundo ponto, é que a arqueologia é a

busca dos sistemas ou das formas de pensamento que persistiram e influenciam o

presente em que se vive, pelo fato de organizarem o que se pensa. Por terceiro ponto,

tem-se onde buscar: é escavando historicamente o solo mesmo em que se apoiam as

convicções atuais, as quais são descontínuas das anteriores. Uma elaboração inicial

mostra, então, que a arqueologia foucaultiana é uma abordagem histórica própria que

busca o senso das racionalidades da atualidade.

Seguindo o artigo de Paltrinieri, para encontrar o significado e a originalidade

da arqueologia de Michel Foucault, ele diz que a fenomenologia husserliana também

se referiu à metáfora arqueológica. Husserl a definiu como a operação de escavar o

solo do mundo da experiência, em busca dos fundamentos ocultos ou dissimulados

das evidências do senso comum.35 Estas “arquievidências” que tornariam as

percepções e as experiências possíveis também são chamadas por ele de “a priori

histórico”. Diferentemente de Foucault, o a priori histórico de Husserl seria um

horizonte de historicidade universal e cultural, constante, invariavelmente presente e

encontrado sob os sedimentos das experiências. No mesmo sentido, para Merleau-

Ponty, o a priori experiencial remete a um primordial, que estaria enterrado sob os

sedimentos das coisas ditas e dos conhecimentos ulteriores.36 Os fundamentos das

experiências da vida estariam num tempo histórico que antecede aos saberes, sendo

que poderiam ser revelados pela linguagem, e ao qual a arqueologia tem por objetivo

retornar.

Não é somente a fenomenologia que trata de desenterrar no passado as

“arquievidências”, “essas fundações esquecidas que habitam e influenciam nosso

presente”, também a psicanálise e a etnologia o fazem.37 Lévi-Strauss escrevera que

se pode realizar uma arqueologia das atitudes corporais e encontrar verdadeiros

sistemas de transmissão entre as gerações de um passado recuado da humanidade. 38

Portanto, diz Paltrinieri, a arqueologia pode ser estendida à pesquisa “de um arcaico

35 Ibid, p.21-2. 36 Ibid, p.23. 37 Ibid, p.23. Leia-se: “Mais les modèles de cette ‘fouille dans notre passé’ à la recherche des archi -

évidence – ces fondations oubliées qui habitent et influencent notre présent – sont innombrables et ne

se limitent pas au courant phénoménologique.” (Tradução minha) 38 Ibid, p.23-4.

27

psicológico e sociológico, fundação esquecida dos hábitos e dos modos de pensar

que continuam a influenciar as práticas quotidianas.”39

Foi “evidentemente Freud quem transferiu o imaginário arqueológico ao

domínio psicológico, ao pensar a consciência como uma série de camadas

justapostas, cujo acesso é permitido pelo exercício psicanalítico.”40 O núcleo arcaico

dela estaria localizado no inconsciente, formado por uma estrutura atávica

reconhecida como o princípio de prazer recalcado nos tempos históricos. Haveria

assim, para Freud, uma estrutura histórica arcaica e oculta que poderia dar sentido

aos desejos e aos sintomas do presente. Outros temas psicanalíticos, como o retorno

à infância e o ressurgimento do antigo, suscitam também o envio do sentido ao

passado histórico individual. Assim, segue Paltrineri, a interpretação psicanalítica é

um evidente exemplo de uma arqueologia, ao escavar o passado individual e cultural

em busca de uma “arché fora dos tempos, uma fundação imóvel cujos rastros ainda

são visíveis no horizonte comum da experiência histórica.”41

Após percorrer os vários sentidos e usos da noção de arqueologia, pretende -

se agora delimitar quais foram eles para Michel Foucault, por contraposição ou

comparação. Recolhendo a pequena síntese anteriormente apresentada aqui, isto é,

de que a arqueologia foucaultiana é uma investigação histórica das racionalidades da

atualidade, a seguir se deve caracterizá-la melhor.

2. Arqueologia horizontal foucaultiana

As ideias de escavar e de vasculhar fundamentos esquecidos e ainda atuantes,

no sentido fenomenológico ou psicanalítico, podem ser reconhecidas na arqueologia

39 Ibid, p.24. Segue: “En ce sens, l’archéologie n’est pas seulement une fouille dans notre passé, mais

aussi une recherche d’un archaïque psychologique et sociologique, fondation oubliée d’habitudes et

modes de pensées qui continuent d’influencer les pratiques quotidiennes.” (Tradução minha) 40 Ibid, p.24. Leia-se: “Bien évidemment, Freud lui-même qui avait transféré l’imaginaire archéologique

dans le domaine psychologique, en pensant la conscience comme une série de couches juxtaposées

auxquelles l’exercice psychanalytique doit permettre l’accès […].” (Tradução minha) 41 Ibid, p.24. Segue: “[...] l’arché hors du temps, une fondation immobile dont les traces sont encore

visibles dans l’horizon comum de l’expérience historique.” (Tradução minha)

28

foucaultiana. E Paltrinieri cita alguns exemplos, como no prefácio à edição inglesa de

MC, em que Foucault define o objeto da arqueologia como “o inconsciente positivo do

saber”; ou ainda em entrevistas sobre esse livro, descrevendo sua condução como

“trabalho de escavações sobre seus próprios pés” e “o subsolo de nosso

consciente”.42 Essas citações não deveriam indicar uma forma vertical de arqueologia,

esta que tende a dirigir-se a uma estrutura, significado ou causa originária subjacente;

porque houve também um movimento constante e progressivo de afastamento dessa

metáfora do “vasculhar vertical” em favor de uma “operação lateral”, que tenta evitar

toda valorização do sentido oculto.43 Esse direcionamento horizontal da arqueologia

é destacado por Paltrinieri, e reunirá as principais características do trabalho

arqueológico de Foucault, descritas a seguir.44

Inversão do “documento” em “monumento”

Na “Introdução” de L’archéologie du savoir (AS), Foucault diz que seu método

histórico poderia ser “a descrição intrínseca do monumento”, ou a restituição histórica

dos “documentos” precedendo a sua transformação em “monumentos”.45 Isto implica

dizer que Foucault age diferentemente da historiografia clássica a qual considera os

monumentos do passado como documentos, ou seja, possuidores de traços ou

vestígios que precisam ser interpretados para que se encontrem os sentidos ocultos,

as verdades e o seu valor. Estendendo a remissão à AS, Foucault se refere a essa

nova forma de fazer história, na qual a arqueologia se integra, como aquela que trouxe

uma mudança de posição em relação ao “documento”: não usar o ponto de vista do

intérprete, e sim trabalhar do seu interior: “ela o organiza, recorta, distribui, ordena e

reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é,

identifica elementos, define unidades, descreve relações.”46 Trata-se de elaborar no

42 FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 (DEI),

respectivamente: “Je voudrais mettre au jour un inconscient positif du savoir”, p.877; “Une telle activité

de diagnostic comportait un travail d’excavation sous ses propres pieds [ ...]”, p.641; e “Et c’est le

sous-sol de notre conscience moderne de la folie que j’ai voulu interroger”, p.528. (Tradução minha) 43 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.25. 44 Ibid., p.25-9. 45 Leia-se: “la description intrinsèque du monument”, em: FOUCAULT, Michel. L’archéologie du

savoir. Paris: Gallimard, 1969, p.15 (AS). Tradução brasileira: FOUCAULT, Michel. A arqueologia do

saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária: 2009, p.8. 46 AS, p.14. No original: “[...] l’histoire a changé sa position à l’égard du document: ele se donne pour

tâche première [...] de le travailler de l’intérieur et de l’élaborer”: ele l’organise, le découpe, le

distribue, l’ordonne, le répartit en niveaux, établit de séries, distingue ce qui est pertinente de ce qui

ne l’est pas, repère des éléments, définit des unités, décrit des relations.” Tradução brasileira, p.7.

29

próprio “tecido documental mesmo” e buscar definir “unidades, conjuntos, séries,

relações”, em que se mapeia e elabora a “materialidade documental”.47 E Foucault

cita como exemplos de matéria de análise os “livros, textos, relatos, registros, atos,

edifícios, instituições, regras, técnicas, objetos, costumes, etc.”, que são encontrados

em todas as sociedades, de forma espontânea ou organizada.48

Herança kantiana

Mantendo a mesma coerência, Foucault recusa terminantemente a arqueologia

freudiana e se aproxima da herança kantiana, na qual as metáforas de escavar e de

buscar vestígios estão ausentes.49 É interessante lembrar que Foucault não utiliza as

expressões que remetem à deposição de camadas sucessivas, nem procura redobrar

o nível das suas análises investigando algo oculto ou subjacente. 50 É preciso escutar

o que ele diz:

Ela não trata o discurso como documento, como signo de outra coisa, como elemento que deveria ser transparente, mas cuja opacidade importuna é preciso atravessar frequentemente para reencontrar, enfim, aí onde se mantém à parte, a profundidade essencial; ela se dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento. Não se trata de uma disciplina interpretativa: não busca um “outro discurso” mais oculto. Recusa-se a ser “alegórica”. 51

Nessa passagem, fica claro que Foucault não crê numa essência profunda

discursiva a ser revelada, mas se atém ao que o discurso mesmo pode ser.

Estudo comparativo e descritivo

Não se trata de encontrar as estruturas dos problemas eternos, como na

arquitetônica gueroultiana; mas de efetuar uma comparação entre os discursos das

diferentes épocas, e ver os que persistem, na superfície dos próprios discursos,

47 AS, p.14. Continuando: “[...] elle cherche à définir dans le tissu documentaire lui-même des unités,

des ensembles, des séries, des rapports.” Na tradução brasileira, p.7. 48 AS, p.14. Acrescentando: “[...] livres, textes, récits, registres, actes, édifices, institutions,

règlements, techniques, objets, coutumes, etc. [...].” Na tradução brasileira, p.7-8. 49 DE I, p.1089-90. Onde Foucault menciona a arqueologia kantiana, distinta da freudiana. E, ainda

em DE I, p.1107, onde cita em qual escrito kantiano surge a referência à arqueologia. 50 Ver em: PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque,

n. 48, novembre 2015, p.25. 51 AS, p.182, Leia-se: “L’histoire archéologique ne traite pas le discours comme document, comme

signe d’autre chose, comme élément qui devrait être transparent, mais dont il faut souvent traverser

l’opacité importune pour rejoindre enfin, là où elle est tenue en réserve, la profondeur de l’essentiel;

elle s’adresse au discours dans son volume propre, à titre de monument. Ce n’est pas une discipline

interprétative: elle ne cherche pas un “autre discours” mieux caché. Elle se refuse à être ‘allégorique’.”

Na tradução brasileira, p.157.

30

continua Paltrinieri.52 Isto é, estabelecendo as relações e os jogos de diferenças, as

aproximações e as distâncias, sendo comparáveis ou diferentes. E nisso se pode

captar porque a arqueologia foucaultiana é descritiva, e não interpretativa, porque ela

trata de construir um quadro, no modelo kantiano do quadro dos fatos da razão, o qual

descreve as diferentes etapas do seu desenvolvimento, sem os interpretar. Diz

respeito a descrever a ordenação dos discursos, como se agrupam ou se dispersam

e como podem formar séries históricas.

Condições históricas de possibilidade dos saberes

Essa “análise serial e diferencial” não deixa de lembrar uma análise

estruturalista, como em Dumézil e Lévi-Strauss, diz Paltrinieri.53 Para Foucault, refere-

se a mapear as diferenças profundas que modificam os sistemas de pensamento, sem

buscar explicações ou causas, e sim tentando reconhecer as transformações

históricas dos saberes, no sentido de revelar suas condições de possibilidade no

campo da história. Para essa investigação importam mais as relações lógicas, e não

as causais, na ordem histórica das formas de pensar. Enfim, a arqueologia abandona

a ideia de escavar em busca das “causes premières”, e se define por outros termos,

como Foucault mesmo relata em uma entrevista:

Esse termo “arqueologia” me embaraça um pouco, porque ele recobre dois temas que não são exatamente os meus. Inicialmente, o tema da origem (archè, em grego, significa começo). [...] São sempre começos relativos que procuro, antes instaurações ou transformações do que fundamentos, fundações. E, depois, me incomoda da mesma forma a ideia de escavações. [...] Tento, ao contrário, definir relações que estão na própria superfície dos discursos; tento tornar visível o que só é invisível por estar muito na superfície das coisas.54

É precisamente a investigação das relações horizontais entre os discursos que

pode mostrar o invisível na superfície das coisas de cada época.

52 Ver em: PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque,

n. 48, novembre 2015, p.26. 53 Ibid., p.26. 54 DE I, p. 800. Em “Michel Foucault explique son dernier livre” [1969]: “Ce mot “archéologie” me gene

un peu, parce qu’il recouvre deux thèmes qui ne sont pas exactement les miens. D’abord l e théme du

commencement (archè en grec signifie commencement). [...] Ce sont toujours des commencements

relatifs que je recherche, plus de instaurations ou des transformations que des fondements, des

fondations. Et puis me gêne également l’idée de fouilles. [...] J’essaie au contraire de définir des

relations qui sont à la surface même des discours; je tente de rendre visible ce qui n’est invisible que

d’être trop à la surface des choses.” Na tradução brasileira, em Ditos e escritos II, p.145-6.

31

Diagnosticar

A arqueologia é um exercício de diagnosticar o presente. Paltrinieri cita o

manuscrito inédito de Foucault, datado de 1967, em que ele define a atividade

arqueológica como o diagnosticar, dentro do jogo entre o visível e o invisível: o

exercício arqueológico “não consiste justamente em ir além do visível, do audível, do

sentido, para revelar o significado oculto”, mas, ao contrário, é a “tarefa enigmática de

diagnosticar sem escutar uma palavra profunda, sem perseguir um mal invisível.”55

Paltrinieri acrescenta dois elementos interessantes relacionados a essa tarefa de

diagnosticar: o primeiro, se Foucault não pretende recuar verticalmente a l’arché,

conclui-se que a arqueologia se dedica justamente ao tempo presente. Em seguida,

se ela identifica mudanças profundas nas formas dos saberes entre as épocas, haverá

sempre um desnível, e hoje já não se pode pensar como se pensava antes, por isso,

é preciso reconstituir pacientemente o que foi dito.

“Ciência do arquivo”

As formas de experiências possíveis também são diferentes a cada época, e

se pode chegar a elas através das descrições comparativas. No livro NC, encontra-se

a referência ao domínio no qual as análises comparativas podem ser feitas: no

“domínio das coisas ditas”, conforme Foucault, “estamos historicamente consagrados

à história, à paciente construção de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o

que já foi dito”.56 Esse é o sentido da arqueologia como “ciência do arquivo”; em que

o “arquivo” não se relaciona à massa do que foi conservado, mas ao princípio de

escolha “que recolhe e que rejeita” e que, por isso, “permite a análise de uma cultura

no sentido amplo.”57 Arquivo compõe o domínio em que as experiências arqueológicas

podem encontrar a constituição e as diferenças dos discursos, sua formação e sua

55 Paltrinieri cita o manuscrito inédito de Michel Foucault: Le discours philosophique, depositado no

arquivo Michel Foucault da BNF, caixa 58, pasta 1. “[...] l’exercice archéologique ‘ne consiste

justement pas à aller au-delà du visible, de l’audible, de sens, pour révéler la signification cachée’

mais se confronte à la ‘tâche énigmatique de diagnostiquer sans écouteur une parole plus profonde,

sans pourchasser un mal invisible.’” (Tradução minha). 56 NC, p.XII: “nous sommes voués historiquement à l’histoire, à la pat iente construction de discours

sur les discours, à la tâche d’entendre ce qui a été déjá dit.” Na Tradução brasileira, p.XIII. 57 Sobre “arquivo”, ver em DEI, p.527; em “Les mots et les choses”: “[...] il faut avoir à sa disposition

l’archive générale d’une époque à un moment donné.” E também, DEI p.623, em “Sur les façons

d’écrire l’histoire”: “[...] mon objet n’est pas le langage mais l’archive, c’est -à-dire, l’existence

accumulée des discours. L’archéologie, telle que je l’entends, n’est parente ni de la géologie (comme

analyse des sous-sols) ni de a généalogie (comme description des commencements et des suites),

c’est l’analyse du discours dans as modalité d’archive.”

32

regulação. Paltrinieri salienta que a própria definição de arquivo insere as condições

de possiblidade dos discursos no mesmo nível da sua aparição; ele configura o plano

horizontal da investigação comparativa arqueológica. O arquivo “é o sistema geral da

formação e da transformação dos enunciados”.58 Ou ainda,

[...] temos na densidade das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados (acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar de arquivo.59

Considera-se que tanto as coisas ditas quanto o seu funcionamento estão

integrados nos enunciados e no domínio dos arquivos-discursos.

3. Conclusões sobre arqueologia

Uma exploração histórica e espacial dos discursos, conclui Paltrinieri.

Considerando-se as soluções kantiana e husserliana para a arché trans-histórica, as

quais mantêm o solo inalterável das ideias filosóficas e das “arquievidências”

fundadoras, a arqueologia foucaultiana é mais radical, diz ele, porque “assumiria a

ideia de uma transformação radical dos quadros do conhecimento e da experiência.”60

O a priori histórico para Foucault é um conjunto transformável e empírico, que não

escapa à historicidade, sendo um jogo de regras interiores às próprias práticas

discursivas.

A principal consequência dessa abordagem é que o empreendimento críti co

filosófico é transportado para o plano histórico, visto que as condições de possibilidade

58 AS, p.171: “c’est le système général de la formation et de la transformation des énoncés”. Na

tradução brasileira, p.148. 59 AS, p.169: “[...] on a, dans l’épaisseur des pratiques discursives, des systèmes qui instaurent les

énoncés comme des événements (ayant leurs conditions et leur domaine d’apparition) et des choses

(comportant leur possibilité et leur champ d’utilisation). Ce sont tous ces systèmes d’énonc és

(événements pour une part, et choses pour une autre) que je propose d’appeler archive.” Na tradução

brasileira, p.146: 60 PALTRINIERI, Luca. Notion "Archéologie". Presses universitaires de Caen. Le Télémaque, n. 48,

novembre 2015, p.28. Leia-se: “[…] l’archéologie foucaldienne assumait l’idée d’une transformation

radicale des cadres de la connaissance et de l’expérience.”

33

do conhecimento e das experiências são determinadas por recortes históricos.61 Outro

aspecto é que a condução arqueológica manifesta a limitação histórica humana: por

se viver na atualidade, somente se dispõe de “arquivos” limitados para recompor os

enunciados e seu sentido. E também o reverso, ao expor que a história é o produto

do empreendimento humano, que tenta conservar tudo em “discursos” no extenso

arquivo chamado cultura. Portanto, a arqueologia foucaultiana se direciona à

“exploração horizontal do espaço do discurso” nos arquivos de uma cultura, ela é

“eminentemente histórica e espacial ao mesmo tempo.”62

Em suma, para encontrar as condições de possibilidade históricas, a

arqueologia deve descrever o espaço onde se desdobram os pensamentos e os

saberes: as suas condições de emergência, a constituição, as transformações

possíveis. Ela é uma pesquisa histórica e comparativa nos espaços das possibilidades

discursivas presentes na atualidade.

*

Essa remissão à arqueologia foucaultiana foi importante porque fará

compreender melhor as pesquisas desenvolvidas em NC. Pode-se acompanhar com

mais discernimento as descrições detalhadas das práticas discursivas em seu espaço

histórico, as análises comparativas, igualmente perceber o enfoque no limiar de

transformação dos saberes e as condições de possibilidade do nascimento da clínica

médica. Especialmente em NC, pode-se reconhecer o trabalho arqueológico

foucaultiano ainda em sua fase inicial, próximo da epistemologia histórica e de HF,

mas já adentrando de forma original no estudo dos discursos da verdade científica

sobre os homens.

61 Ver em: Ibid., p.29. 62 Ibid., p.29. Leia-se no extrato: “Cette existence intégralement historicisée de notre culture impose

d’en finir avec l’enquête verticale sur les fondements et oriente l’archéologie vers l’exploration

horizontale de l’espace du discours. […] Foucault met l’accent sur sa nature éminemment hi storique

et spatiale en même temps.”

34

CAPÍTULO II – SABER MÉDICO

“Este livro trata do espaço, da linguagem e da morte; trata do olhar.”

Primeira linha de NC.

O desenvolvimento das reflexões sobre o discurso médico requer retomar três

noções relacionadas aos primeiros trabalhos de Foucault, sendo elas: acontecimento,

saber e arqueologia, esta última já tratada no item anterior.

O termo “acontecimento” [l’événement] aparece nos projetos de Michel

Foucault geralmente com o sentido daquilo que irrompe historicamente em sua

materialidade e singularidade. Na investigação dos saberes, ele tratará dos

“acontecimentos discursivos”, conforme pode ser apreendido na passagem

esclarecedora a seguir, na qual Foucault distingue a sua investigação da historiografia

tradicional do pensamento.

Vê-se igualmente que essa descrição do discurso se opõe à história do pensamento. [...] A análise do pensamento é sempre alegórica em relação ao discurso que utiliza. Sua questão, infalivelmente, é: o que se dizia no que estava dito? A análise do campo discursivo é orientada de forma inteiramente diferente; trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar os seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi- silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar. A questão pertinente a uma tal análise poderia ser assim formulada: que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte? 63

63 Leia-se: “On voit également que cette description du discours s’oppose à l’histoire de la pensée. [...]

L’analyse de la pensée est toujours allégorique par rapport au discours qu’elle utilise. Sa question est

infailliblement: qu’est-ce qui se disait donc dans ce qui était dit? L’analyse du champ discursif est

orientée tout autrement; il s’agit de saisir l’énoncé dans l’étroitesse et la singularité de son événement;

de déterminer les conditions de son existence, d’en fixer au plus juste limites, d’établir ses corrélation

aux autres énoncés qui peuvent lui être liés, de montrer quelles autres formes d’énonciation il exclut.

On ne cherche point, au-dessous de ce qui est manifeste, le bavardage à demi silencieux d’un autre

discours; on doit montrer pourquoi il ne pouvait être autre qu’il n’était, en quoi il est exclusif de tout

autre, comment il prend, au milieu des autres et par rapport à eux, une place que nul autre ne pourrait

35

Acima, compreende-se duas asserções interligadas que definem a abordagem

dos discursos como “acontecimentos”: a suspensão da função interpretativa sobre os

discursos, para considerá-los nos seus próprios enunciados; e a aceitação de um

recorte histórico para análise. Adiantando-se em explicitar outras afirmações de

Foucault, a interpretação teria por função unificar os discursos, sob tais formas que

devem ser suspendidas: a unidade do livro, da obra, do autor, da noção de influênci a,

evolução, ou tradição, unificação sob os temas da teleologia, do retorno à origem e da

repetição do mesmo. Ao tomar os discursos como acontecimentos e suspender a

aplicação dessas unidades aceitas, ele pretende tornar-se livre para descrever

relações entre grupos de enunciados, mesmo que não tenham o mesmo nível formal,

que pertençam a domínios vizinhos ou distintos, ou que sejam de diversos autores e

de ordens diferentes. Resumindo, o acontecimento discursivo é considerado em sua

singularidade desde a sua instauração, através dos conjuntos finitos que pode formar

no jogo da sua instância, e conforme se dispersa, transforma-se e acaba por se apagar

“na poeira dos livros”.64

A palavra “saber” [le savoir] é justamente o referencial da arqueologia. É

designado por Foucault como o campo das formações discursivas, constituindo-se por

um recorte histórico e pela escolha de um domínio, no qual se pode reconhecer leis

ou regras comuns aos diversos enunciados. O saber é um espaço histórico em que

se pode descrever os acontecimentos discursivos relacionados, desvencilhando-se

das “distinções dos grandes tipos ou gêneros de discursos, ciência, literatura, filosofia,

religião, história, ficção, etc.”; e desdobrando, assim, o campo das análises, embora,

para haver um ponto de partida, a “ciência” possa ser promissora como o principal

domínio escolhido.65 Fora preciso, também, estabelecer alguns critérios que

delimitassem as investigações e que pudessem funcionar, ainda que provisoriamente,

para relacionar as formações discursivas em conjuntos que teriam permanecido

invisíveis. Sob relações invisíveis, não porque fossem secretas, mas porque nunca

foram formuladas e analisadas dessa maneira, a partir da coexistência dos

occuper. La question propre à une telle analyse, on pourrait la formuler ainsi: quelle est donc cette

singulière existence, qui vient au jour dans ce qui se dit, – et nulle part ailleurs?, em FOUCAULT,

Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.39-40 (AS). Tradução brasileira:

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de

Janeiro: Forense Universitária: 2009, em p.30-1. 64 Ver em Ibid., p.31-8. Trad., p.23-9. 65 FOUCAULT, Michel. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.p.33. Trad. brasileira, p.24.

36

enunciados, de seu funcionamento mútuo, das transformações, das diferenças e das

dispersões. Essas relações eram regidas por leis, regras ou jogos, aos quais ele

denomina de “positividades”. Foucault pontua quatro critérios de positividades nas

relações que poderiam constituir um campo de “saber”, sintetizados no extrato a

seguir.

Em resumo, estamos diante de quatro critérios que permitem reconhecer unidades discursivas que não são absolutamente as unidades tradicionais (sejam elas: o “texto”, a “obra”, a “ciência”; ou o domínio ou a forma de discurso, os conceitos que ele utiliza ou as escolhas que manifesta). Esses quatro critérios não somente não são incompatíveis, mas eles se reclamam uns aos outros: o primeiro define a unidade de um discurso pela regra de formação de todos os seus objetos; o outro, pela regra de formação de todos os seus tipos sintáticos; o terceiro, pela regra de formação de todos os seus elementos semânticos; o quarto, pela regra de formação de todas as suas eventualidades operatórias. 66

Esses quatro critérios delimitam os conjuntos discursivos que: (1) se

referenciam ao mesmo objeto; (2) tem a mesma forma sintática; (3) tem os mesmos

elementos conceituais ou (4) operam na mesma estratégia. Sabe-se que foram

critérios iniciais e que, no decorrer das pesquisas, foram amplificados para recobrir as

dispersões, as regularidades e as práticas de cada campo.

Em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”

[1968], Foucault responde a questões sobre seu trabalho, e inclui referências

retrospectivas à NC, entre os campos de saber descritos por ele. É exatamente ao

exemplificar o segundo critério de formações discursivas escolhido por ele, que se

deterá na ciência médica.67

O critério “sintático” para o discurso médico, como um campo de saber em NC,

organiza-se sob três elementos, abordados a seguir.

66 No original: “En résumé, nous voici en présence de quatre critère qui permettent de reconnaître des

unités discursives qui ne sont point les unités traditionnelles (que ce soit le “texte”, l’“oeuvre”, la

“science”; ou que ce soit le domaine ou la forme du discours, les concepts qu’il utilise ou les choix qu’il

manifeste). Non seulement ces quatre critères ne sont pas incompatibles, mais ils s’appellent les uns

les autres: le premier définit l’unité d’un discours par la règle de formation de tous ses objets; l’autre

par la règle de formation de tous ses types syntaxiques; le troisième par la règle de formation de tous

ses éléments sémantiques; le quatrième par la règle de formation de toutes ses éventualités

opératoires.”, em FOUCAULT, Michel. Dits et écrits I, 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001. (DE

I), em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.747. Trad. brasileira

Ditos e Escritos Vol II, p.106. 67 Ver DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.740-2 e

p.750-3. Trad. Vol II, p.99-101 e p.109-12.

37

Enunciados descritivos

Foucault diz ter reconhecido na medicina, a partir do século XIX, um estilo de

enunciado descritivo, o que foi o ponto de partida para tentar analisá-la como uma

“ciência descritiva”. Parecera-lhe que, desde então, a medicina poderia ter-se formado

como uma ciência que supunha o mesmo olhar sobre as coisas. Na medicina clínica

o conhecimento se dava pela percepção e análise do fato patológico no espaço visível

do corpo, e pela sua transcrição usando um vocabulário próprio, ou seja, a

formalização do saber médico se daria pelos enunciados descritivos. Ele logo

reconheceu que essa primeira hipótese era insuficiente, porque além dessas

formulações descritivas, o campo do discurso médico compunha-se com grande

dispersão, e por dois motivos: a complexidade das relações discursivas e os

deslocamentos constantes do saber médico.

Complexidade dos conjuntos discursivos

O grande discurso clínico também era formado por um “conjunto de prescrições

políticas, decisões econômicas, regulamentos institucionais, modelos de ensino”,

sendo que este não podia ser abstraído daquele conjunto das descrições.68 Não era

possível tratar a ciência médica como se fosse independente e soberana, ela, na

verdade, articulava-se e se dispersava em relações com sistemas exteriores a ela.

Deslocamentos dos enunciados descritivos

Ele reconheceu que os discursos médicos descritivos não cessaram de se

alterar, deslocando seu ponto de vista ou o tipo análise. Vejam-se as alterações. (1)

Os referenciais mudaram, entre Bichat – que descrevia as alterações dos tecidos, e a

patologia celular. (2) Os Instrumentos e o sistema de informação mudaram, entre a

inspeção visual, palpação e ausculta e o uso do microscópio e dos exames adicionais.

(3) O léxico dos sinais e sua interpretação mudaram, entre a correlação

anatomoclínica simples e a análise mais fina dos processos fisiopatológicos. (4) A

posição do médico como sujeito que olha mudou, porque deixou de ser o lugar de

registro e interpretação da informação, para passar a usar o que foi constituído fora

dele, em forma de massa de registros, instrumentos de correlação e técnicas de

análise. Essas transformações fizeram com que na atualidade não se esteja mais na

68 Ibid., p.741. Trad. Vol.II, p.100.

38

medicina clínica como formulada no século XIX, por conta de que ela vem se

desfazendo desde o seu surgimento. Ou seja, ao olhar do médico em si, foram sendo

lentamente adicionados instrumentos, métodos de análise de registros, e outros

recursos descritos por Foucault numa redefinição do discurso clínico, reproduzida

abaixo.

De fato, a unidade do discurso clínico não é uma forma determinada de enunciados, mas um conjunto de regras que, simultânea e sucessivamente, tornou possível não somente descrições puramente perceptivas, mas também observações mediatizadas por instrumentos, protocolos de experiências de laboratórios, cálculos estatísticos, constatações epidemiológicas ou demográficas, regulamentos institucionais, decisões políticas.69

Ao levar em consideração esses três elementos – descrições,

complexidade e deslocamento dos discursos, ele explica: a medicina clínica é

caracterizada justamente por esse conjunto heterogêneo de enunciados, pela maneira

como se repartem, se implicam, se excluem e se transformam. O estilo do enunciado

médico não tem papel central, é a própria heterogeneidade ou dispersão dos

enunciados que será a regra geral do saber médico. O discurso clínico é uma

formação complexa. Pode incluir ciências como a microbiologia, a fisiologia, a

bioquímica, mas não é todo ele uma unidade buscando em conjunto a condição

científica; pode englobar codificações de experiências, como a semiologia; pode

conter reflexões e determinações administrativas, políticas, econômicas, morais em

seu campo. Concluindo, diz Foucault, a clínica

é um conjunto enunciativo simultaneamente teórico e prático, descritivo e institucional, analítico e prescritivo, composto tanto de inferências como de decisões, tanto de afirmações como de decretos.70

Em Arqueologia do saber (AS) [1969], novamente aparece a dispersão que

compõe o discurso médico, a partir do século XIX. Eis o que se pode encontrar, diz

ele: “descrições qualitativas, narrações biográficas, demarcação, interpretação e

recorte de signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas estatísticas,

verificações experimentais, e muitas outras formas de enunciados.”71 Foucault

69 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.741. Trad. Vol II,

p.100-1. 70 DE I, em “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, p.750. Trad. Vol II,

p.109. 71 AS, p.68. Trad., p.56.

39

acentua a maneira como a medicina clínica instaura um sistema de relações que não

estaria dado a priori, através das suas práticas discursivas. Ele reconhece que a

unidade do saber médico se dá por permitir a articulação dos diversos tipos de

discursos. As condições de possibilidade para isto estariam ligadas a elementos que

ele tentou identificar, pontuados abaixo.72

Status do médico

É o médico quem ocupa o lugar reconhecido por competência e por direito para

proferir os discursos (segundo os critérios das normas pedagógicas ou das

regulamentações e limitações legais). Além disso, seu lugar compreende estar

inserido em um sistema de relações com outros indivíduos que têm status próprios

em diferentes instituições ou corpos profissionais – políticos, jurídicos e religiosos.

Nesse sistema de relações o médico cumpre “divisão das atribuições, subordinação

hierárquica, complementaridade funcional, demanda, transmissão e troca de

informações.”73 Seu status compreende também os papéis que deve desempenhar

quando requisitado por uma pessoa, profissionalmente, ou pela sociedade, em

funções reconhecidas pelo direito de decisão e de intervenção; porque ele deve ser o

responsável pela saúde dos indivíduos, da família, dos grupos ou da população.

Foucault conclui que o status do médico é bastante singular dentro da sociedade, não

sendo intercambiável com outros profissionais. Portanto, o discurso que ele profere é

indissociável da sua personagem, definida por seu status, o qual lhe dá o direito de

proferi-lo, e através dele “reivindicar para si o poder de conjurar o sofrimento e a

morte.”74

Lugares institucionais

São as instituições em que o médico obtém legitimamente seu discurso e,

também, onde o aplica. Eles podem ser: o hospital, o laboratório, a prática privada e

o campo documentário. Os principais lugares foram sendo constituídos assim: (1) a

partir do século XIX, o hospital passou a ser o local de observação sistemática da

doença, não mais deixada em seu ambiente natural, mas nele submetida a uma

observação constante e codificada, por pessoal médico diferenciado; (2) passou-se a

72 AS, p.68-74. Trad., p.56-61. 73 AS, p.68. Trad., p.56. 74 AS, p.69. Trad., p.57.

40

adotar registros sobre a frequência das doenças e o seu processo de evolução, a fim

de analisar as oportunidades para uma forma homogênea de abordagem, portanto, a

estatística e a documentação tiveram crescente importância; (3) o laboratório foi

integrado à prática médica, adotando-se as normas experimentais da física, química

e biologia. Numa conclusão importante, na qual Foucault resume as modificações

ocorridas no século XIX, o hospital será: “o local de aparecimento da doença, não

mais como espécie singular que desdobra seus traços essenciais sob o olhar do

médico, mas como processo intermediário com seus marcos significativos, seus

limites, suas oportunidades de evolução.”75 É, portanto, através desses locais,

principalmente do hospital, que a doença se transforma em um meio para a atuação

das práticas discursivas.

Situação ocupada pelo sujeito em relação aos objetos e aos diversos domínios.

Primeiramente, é o ponto de vista do “olhar médico” e como ele questiona,

escuta e observa, conforme um programa estabelecido, adotando uma distância

perceptiva ótima para delimitar as informações pertinentes, e depois anota

descritivamente. Ou quando adota instrumentos intermediários que deslocam o nível

perceptivo e aprofundam sua relação com o objeto, das manifestações dos sintomas

para os órgãos, dos órgãos para os tecidos, dos tecidos para as células. Uma segunda

situação é aquela que o médico ocupa em relação às redes de informações: no ensino

teórico ou na pedagogia hospitalar; como receptor e fornecedor de informações para

estatísticas, relatórios, proposição de teorias, projetos e participação em decisões. No

século XIX, houve uma reorganização dessas duas situações do sujeito do discurso

médico, a saber. (1) O campo perceptivo deslocou-se e também se aprofundou, pelo

uso de novos instrumentos, técnicas cirúrgicas e métodos de autópsia centrados no

foco da lesão; os novos registros tornaram-se mais descritivos e detalhados na

notação e na classificação, integrando-se às estatísticas. (2) Instituíram-se novas

formas de ensino, com mais circulação das informações e, também, houve a

integração a outros domínios teóricos, em que Foucault destaca as ciências e a

filosofia; e a integração a outras instituições (políticas, administrativas, econômicas).

A doença passou a ser reconhecida nos focos das lesões, ou seja, no próprio corpo

75 AS, p.70-1. Trad., p.58. Leia-se: “{l’hôpital devient] le lieu d’apparition de la maladie, non plus

comme espèce singulière déployant ses traits essentiels sous le regard du médecin, mais comme

processus moyen avec ses repères significatifs, ses limites, ses chances d’évolution.”

41

do doente, sendo analisada inicialmente pelo olhar médico, e logo em seguida, com

auxílio de instrumentos ópticos, técnicas de exploração do corpo, análises estatísticas

e laboratoriais, experimentações e outros. A doença também se dispersou em uma

série de domínios, levada pelas situações relacionadas às funções do médico na

sociedade.

As condições de possibilidade do discurso clínico, no século XIX, foram

basicamente essas três: as posições adotadas pelo médico; as instituições,

principalmente o hospital; e as relações discursivas, estas que se articularam numa

rede de práticas e se integraram no saber médico. Contudo, essas condições de

possibilidades são históricas, ou seja, não são universais nem constantes e, para

Foucault esses elementos decorreram de escolhas e podem ser nomeadas como

“estratégias”. Os sistemas de estratégias podem ser reconhecidos quando se analisa

as regularidades, a formação de séries, as funções dos enunciados, as apropri ações

e as relações com as escolhas. As estratégias não devem ser tomadas como uma

visão de mundo ou como expressão hipócrita dos interesses; nos conjuntos

discursivos, as estratégias são as maneiras diferentes de tratar os objetos, os

conceitos, as coerências; “são maneiras reguladas (e descritíveis como tais) de utilizar

possibilidades de discursos.”76 Note-se, Foucault enfatiza que o ponto de análise em

NC fora a maneira pela qual o discurso médico mudou no fim do século XVIII e início

do século XIX; não se tratando mais de buscar escolhas conceituais ou teóricas, mas

de avaliar as modalidades enunciativas relacionadas ao status, ao lugar institucional

e à função do sujeito falante.

Para Foucault, o discurso médico moderno não é caracterizado por uma

formalização específica, um tipo de enunciado necessário, um horizonte de

racionalidade e de progressos contínuos, ou por modelos teóricos e experimentai s

influenciados ou liberados das tradições, nem pela unidade de um sujeito fundador do

conhecimento. Ele conclui, como segue.

Na análise proposta, as diversas modalidades de enunciação, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão [Foucault coloca essa nota: por isso, a expressão “olhar médico” empregada em Naissance de la clinique não era muito feliz]: nos diversos status, nos diversos lugares, nas diversas

76 AS, p.93, lê-se: “Ces options [les stratégies] […] ce sont des manières réglées (et descriptibles

comme telles) de mettre en œuvre des possibilités de discours. ” Trad., p.77.

42

posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. [...] antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade.77

A manifestação do discurso clínico não se deveu a um sujeito transcendental,

nem a uma subjetividade psicológica, mas se deu num “espaço de exterioridade e se

desenvolveu numa rede de lugares distintos.”78 A “síntese” dessa dispersão foi

estabelecida pelas práticas discursivas, num sistema de relações exteriores ao que

se poderia chamar de “sujeito do conhecimento médico”.

Então, a forma de pensar e de agir da medicina moderna foi constituída por

escolhas que se fizeram no ambiente anônimo das formações discursivas,

relacionadas ao papel que foi designado ao médico, aos espaços em que se moveu e

às funções que ocupou? Não se trata de perguntar quais discursos os médicos

proferiram, mas sim quais discursos constituíram os médicos na modernidade? Sim,

essa é a proposta de Foucault, é inverter o problema tradicional.

Na conferência “Qu’est-ce qu’un auteur?” [1969] Foucault analisa a “função

autor” na literatura moderna, e talvez se possa tentar pensar a “função médico” na

medicina clínica, com certa analogia às afirmações de Foucault transcritas abaixo.

Trata-se de inverter o problema tradicional. Não mais colocar a questão: como a liberdade de um sujeito pode se inserir na consistência das coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, do interior, as regras de uma linguagem e manifestar assim as pretensões que lhes são próprias? Mas antes colocar essas questões: como, segundo que condições e sob que formas alguma coisa como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu

77 Em AS, p.74, lê-se: “Dans l’analyse proposé, les diverses modalités d’énonciation au lieu de

renvoyer à la synthèse ou à la fonction unifiante d’un sujet, manifestent sa dispersion. [Note. A ce

titre, l’expression de “regard médical” employée dans Naissance de la Clinique n’était pas très

heureuse.] Aux divers statuts, aux divers emplacements, aux diverses positions qu’il peut occuper ou

recevoir quand il tient un discours. A la discontinuité des plans d’où il parle. Et si ces plans sont reliés

par un système de rapports, celui-ci n’est pas établi par l’activité synthétique d’une conscience

identique à soi, muette et préalable à toute parole mais par la spécificité d’une pratique discursive. [...]

plutôt un champ de régularité pour diverses positions de subjectivité.” Trad., p.61 78 AS, p.74. Trad., p.61. Lê-se: “Il est un espace d’extériorité où se déploie un réseau d’emplacements

distincts”

43

substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso.79

Sob o impacto dessa proposta foucaultiana, a leitura de NC desenvolvida neste

trabalho, será organizada sob os três elementos que operariam no discurso médico

moderno, conforme destacados por Foucault em AS. Sabe-se que AS pode ser

considerado uma revisão do projeto arqueológico, na qual, contudo, os livros

anteriores não podem ser inteiramente assimilados, porque Foucault procurou

reformular e dar novas bases à sua história arqueológica.80 Mas, especialmente, em

se tratando da medicina, a revisão realizada em AS parece fazer sentido para

diagnosticar a medicina da atualidade. Igualmente, para se propor uma articulação

dos capítulos de NC, por exemplo, ao abordar a dispersão e as relações discursivas

que constituíram a medicina clínica. Por isto, a aposta em organizar os capítulos

seguintes deste trabalho, conforme os três itens abaixo.

(1) Discursos descritivos científicos: trata-se inicialmente do olhar e da linguagem;

trata-se de como se constitui o sujeito que sabe e age, a partir de que posição e de

quais regras. Esses aspectos serão desenvolvidos no capítulo III.

(2) Olhar médico e seus deslocamentos: trata-se também das práticas discursivas e

do seu funcionamento, das escolhas, das decisões, das regularidades, das novas

racionalidades práticas sobre o corpo. A serem abordadas no capítulo IV.

(3) Dispersão das práticas discursivas: quais são as relações discursivas, quais são

as relações sociais em que o médico participa? Quais são as funções preparadas para

os médicos, quais instituições o reclamam? E também, o que bloqueia, anula, reduz

o discurso médico? São questões investigadas no capítulo VI.

79 FOUCAULT, Michel. Articles, préfaces, conférences. Oeuvres. Tome II. Bibliothèque de la Pléiade.

Paris: Gallimard, 2015.p.1279 (Qu’est-ce qu’un auteur?) (QA ?). Tradução brasileira, FOUCAULT,

Michel. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e Escritos, vol. III. Tradução de

Inês Autran Dourado Barbosa. Organização de Manoel Barros da Motta. 2.ed. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2006.p.287. No original: “Il s’agit de retourner le problème traditionnel. Ne plus

poser la question : comment la liberté d’un sujet peut-elle s’insérer dans l’épaisseur des choses et lui

donner sens, comment peut-elle animer, de l’intérieur, les règles d’un langage et faire jour ainsi aux

visées qui lui sont propres ? Mais poser plutôt ces questions : comment, selon quelles conditions et

sous quelles formes quelque chose comme un sujet peut -il apparaître dans l’ordre des discours ? Quelle place peut-il occuper dans chaque type de discours, quelles fonctions exercer, et en obéissant

à quelles règles ? Bref, il s’agit d’ôter au sujet (ou à son substitut) son rôle de fondement originaire, et

de l’analyser comme une fonction variable et complexe du discours. ” 80 Ver em MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,

2009.p.156-62.

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Inserido entre eles, encontra-se o capítulo V – “Discurso, morte, vida”, porque

é o coração da tese. Como também, o discurso da morte e da finitude se constitui o

coração do saber médico moderno, e igualmente, o fulcro central do livro de Foucault,

exposto no capítulo VIII – “Abram alguns cadáveres”.

O capítulo VII é o prolongamento das reflexões sobre as relações discursivas

da medicina, contudo, nele se busca o desfecho deste trabalho.

45

CAPÍTULO III – DISCURSOS DESCRITIVOS CIENTÍFICOS

É nas transformações do saber médico entre os séculos XVIII e XIX que

Foucault delimita seus estudos para mostrar como a medicina clínica moderna

nasceu. NC descreve as condições históricas que possibilitaram um novo discurso

médico, que se distinguirá daquele da idade clássica.

1. Medicina clássica do século XVIII

Para Foucault, a compreensão da doença era inteiramente diferente no século

XVIII em relação à medicina clínica do século XIX, a forma emergente da racionalidade

médica moderna.

Compreender como era a medicina antes do fim do século XVIII exige um

trabalho persistente, pela dificuldade de reconstituir como se pensava anteriormente.

Por isto, é preciso se deter e acompanhar os pontos principais da configuração da

medicina clássica levantados nos escritos de Foucault, para perceber as

transformações do saber médico. Também se propõe aqui inserir, alternadamente,

como exemplo ilustrativo, os escritos sobre a tuberculose, essa doença que é um dos

males que atravessam os séculos.

A medicina clássica também foi chamada de medicina classificatória por

Foucault, porque ela seguia o modelo da História Natural, conforme proposto por

Lineu, em que todos os seres vivos deveriam ser classificados em nome, teoria,

gênero, espécie e atributos. Assim como nos mostruários de animais ou nos jardins

de plantas para organização da taxinomia, as doenças eram representadas em

quadros naturais de distribuição nos gabinetes médicos. Interessante observar que as

doenças eram compreendidas como entidades ideais, com suas características

naturais próprias, entidades que poderiam se inserir no organismo vivo e produzir as

morbidades. Diagnosticar era, portanto, decifrar e classificar a doença e localizá-la no

46

quadro das espécies, sendo que esse quadro nosológico era o meio de formalizar um

diagnóstico. Era preciso articular os achados concomitantes e encontrar homologias

para concluir a classificação. Quais eram as configurações primárias das doenças?

No primeiro capítulo de NC, “Espaços e Classes”, Foucault identifica quatro: (1) pelo

desenrolar dos fenômenos mórbidos, que eram fundados historicamente, e não por

causa e efeito; (2) por analogia ou parentesco das sensibilidades e dos movimentos

que se estreitam e se repetem levando a uma identidade; (3) pela ordem racional

segundo as leis naturais; (4) pelas espécies naturais e ideais. O paciente ou o médico,

contudo, poderiam perturbar a experiência ideal da doença. O paciente devia ser

abstraído, como um acidente na expressão da doença a ser decifrada; e o médico

dirigia sua atenção não ao corpo concreto do doente, mas à rede de combinações que

ficava diante dele e ao seu histórico, para reconhecer a configuração essencial da

doença e saber a hora certa de agir, nem cedo, nem tarde.

A febre héctica era uma doença reconhecida pela oscilação de temperatura do

corpo durante períodos longos de meses ou anos, acompanhada de emagrecimento ,

e levando progressivamente à caquexia. A febre héctica, quando seus traços

essenciais iam emergindo no doente, levava a essa sequência e combinação de

fenômenos. O curso natural da febre era o que permitia o seu diagnóstico, por esse

motivo é que o doente devia ser mantido no seu ambiente natural até o

desenvolvimento claro da doença. Era melhor que ele permanecesse em casa, com

sua família, livre de influências que pudessem mascarar o seu curso próprio. As febres

tinham parentesco, mas o que decifrava a variante héctica era seu histórico, suas

frequências, suas combinações, suas qualidades, e o médico devia ter uma conduta

expectante para diagnosticar pacientemente. As qualidades que deviam ser

percebidas eram certas faltas ou excessos, secura ou umidade, tipo de movimentos,

temperatura, coloração. A febre héctica, ou tísica, era reconhecida pela inflamação

seca dos pulmões, pela tosse e finalmente pela hemoptise, que é a eliminação de

sangue pela boca provinda dos pulmões. As classes das qualidades da tísica eram,

portanto, a secura, o esgotamento e a hemorragia. Tais qualidades podiam sofrer

deslocamentos no espaço do organismo, e vir a atacar diversos órgãos, baixar ao

abdômen, ou subir à cabeça, mantendo suas qualidades.

Foucault tenta mostrar que o plano da doença não é exatamente o corpo, mas

um espaço ideal em que estavam representadas as afecções e onde se desenrolava

47

o raciocínio médico. O quadro nosológico era o espaço primário da doença. O corpo

do doente era o espaço secundário onde a doença se singularizava. Os sofrimentos

do doente seriam traços das morbidades, percebê-los e combatê-los quase se dá num

espaço exterior aos seus padecimentos. Vê-se que a medicina clássica, cujos

fundamentos pareciam demasiadamente abstratos, levava à dissociação entre a

doença e o doente. Mas, adentrando no século XIX, o vínculo entre a doença e o corpo

do doente foi sendo constituído.

2. Medicina clínica do século XIX

É dessa data a percepção de que a tuberculose escava o corpo. Tendo o olhar

médico passado a reconhecer a doença no próprio corpo, isso permitiu relacionar os

sintomas da doença aos achados clínicos das novas técnicas de exame físico. Por

exemplo, as lesões pulmonares tuberculosas passaram a ser pesquisadas,

reconhecidas e depois confirmadas pelo exame anatomopatológico. Os próprios

sintomas e os achados físicos passaram a significar a doença e, após a morte, o signo

tecidual a confirmava.

A tuberculose era uma doença muito antiga, de evolução crônica e incurável,

sendo que a partir do século XVIII tornou-se epidêmica e devastadora na

concentração das populações das cidades. Embora existissem várias descrições das

lesões teciduais, foi Laënnec, em 1819, quem estabeleceu a lesão cavitária pulmonar

como inequivocamente diagnóstica da tuberculose. Outros marcos cronológicos

mostram que a cura em sanatório foi descrita em 1854, o seu caráter contagioso foi

estabelecido em 1865, e foi somente em 1882, que Robert Koch divulgou o isolamento

do bacilo da tuberculose e o reconheceu como causador da doença. Lembre-se que

desde 1857, Pasteur havia aberto o caminho da microbiologia.

Nos seguintes extratos de NC, selecionados em vários momentos do livro, e

enumerados aqui em itens de 1) a 5), pode-se acompanhar como o saber médico em

sua percepção sobre a tuberculose foi se aprofundando no corpo. Inicialmente, a

tuberculose era uma reunião de sintomas, o seu significado estava nas próprias

48

palavras. No extrato 1), vemos um médico como Cabanis diagnosticar a pleurisia, mas

bem poderia ser a tuberculose, utilizando o método dos signos sintomáticos. Em

seguida, nos extratos 2) e 3), para o estabelecimento do diagnóstico, fora preciso

encontrar um sinal patognomônico ao examinar o doente, qual era perceber um som

distinto na ausculta do tórax, de Bayle a Laënnec. Enfim, nos extratos 4) e 5), com

Bichat, as próprias lesões mórbidas características é que significaram a doença, assim

entrelaçando a vida e a morte num mesmo ato de percepção.

1) Um homem tosse; cospe sangue; respira com dificuldade; seu pulso é rápido e forte; sua temperatura se eleva: tantas impressões imediatas, tantas letras, por assim dizer. Todas reunidas, formam uma doença, a pleurisia: “Mas o que é, portanto, uma pleurisia?...É o concurso desses acidentes que a constituem. A palavra pleurisia nada faz além de retraçá-los de maneira mais abreviada.” A “pleurisia” não leva consigo mais ser do que a própria palavra; “exprime uma abstração do espírito”; mas, como a palavra, é uma estrutura bem definida, uma figura múltipla “na qual todos ou quase todos os acidentes se encontram combinados. Se falta um, ou vários, não é a pleurisia, pelo menos a verdadeira pleurisia.”81

2) Foi aplicando esse princípio [da tipologia das alterações dos tecidos de Dupuytren] que Bayle pode seguir totalmente a evolução da tísica, reconhecer a unidade de seus processos, especificar suas formas e distingui-la de afecções, cuja sintomatologia pode ser semelhante, mas que respondem a um tipo absolutamente diferente de alteração. A tísica se caracteriza por uma “desorganização progressiva” do pulmão, que pode tomar uma forma tuberculosa, ulcerosa, calculosa, granulosa com melanose, ou cancerosa; e não se deve confundi-la com a irritação das mucosas (catarro), nem com a alteração das secreções serosas (pleurisia), nem sobretudo com uma modificação que também ataca o pulmão, mas sob a forma de inflamação: a peripneumonia crônica.82

81 NC, p.120. Trad., p.131. Leia-se : “Un homme tousse ; il crache du sang ; il respire avec difficulté ;

son pouls est rapide et dur ; sa température s’élève : autant d’impressions immédiates, autant de

lettres, pour ainsi dire. Toutes réunies, elles forment une maladie, la pleurésie : ‘Mais qu’est-ce donc

qu’une pleurésie ?... C’est le concours de ces accidents qui la constituent. Le mot pleurésie ne fait

que les retracer d’une manière plus abrégée. La ‘pleurésie’ n’emporte pas avec soi plus d’être que le

mot lui-même ; elle ‘exprime une abstraction de l’esprit’ ; mais, comme le mot, elle est une structure

bien définie, une figure multiple ‘ dans laquelle tous ou presque tous les accidents se trouvent

combinés. S’il en manque un ou plusieurs, ce n’est point la pleurésie, du moins la vraie pleurésie.’”

Foucault está citando Cabanis, Du degré de certitude, 3ª ed., Paris, 1819, p.86. 82 NC, p.154. Trad., p.166. Leia-se: “C’est en appliquant ce principe que Bayle a pu suivre de bout en

bout l’évolution de la phtisie, reconnaître l’unité de ses processus, spécifier ses formes, et la

distinguer d’affections dont la symptomatologie peut être semblable, mais qui répondent à un type

d’altération absolument différent. La phtisie est caractérisée par une ‘désorganisation progressive’ du

poumon, qui peut prendre une forme tuberculeuse, ulcéreuse, calculeuse, granuleuse, avec

mélanose, ou cancéreuse ; et on ne doit la confondre ni avec l’irritation des muqueuses (catarrhe) ni

avec l’altération de sécrétions séreuses (pleurésie), no surtout avec une modification qui attaque elle

aussi le poumon lui-même, mais sur le mode de l’inflammation : la péripneumonie chronique.”

Foucault está citando G.L. Bayle, Recherches sur la phtisie pulmonaire, 1810, p.12.

49

3) Bayle, em 1810, foi obrigado a recusar sucessivamente todas as indicações semiológicas da tísica: nenhuma era evidente ou certa. Nove anos mais tarde, Laënnec, auscultando uma doente que ele acreditava atacada de um catarro pulmonar acrescido de uma febre biliosa, tem a impressão de ouvir a voz sair diretamente do peito, e isto em uma pequena superfície de cerca de uma polegada quadrada. Talvez isso fosse o efeito de uma lesão pulmonar, de uma espécie de abertura no corpo do pulmão. Ele encontra o mesmo fenômeno em uma vintena de tísicos; distingue-o, em seguida, de um fenômeno bastante próximo, que se pode constatar nos pleuríticos: a voz parece igualmente sair do peito, mas é mais aguda que a natural; parece argêntea e trêmula. Laënnec postula assim a “pectorilóquia” como o único signo patognomônico certo da tísica pulmonar e a “egofonia” como signo de derrame pleurítico.83

4) O curso sintomático da tísica pulmonar apresenta: tosse, dificuldade de respirar, marasmo, febre héctica e, às vezes, expectorações purulentas; mas nenhuma dessas modificações visíveis é absolutamente indispensável (existem tuberculosos que não tossem); e a ordem de entrada em cena não é rigorosa (a febre pode aparecer logo ou só se desencadear no término da evolução). Um único fenômeno é constante, condição necessária e suficiente para que haja tísica: a lesão do parênquima pulmonar que, na autópsia, “se revela mais ou menos coberto de focos purulentos. Em certos casos, eles são tão numerosos que o pulmão não parece ser nada mais do que um tecido alveolar que os contém. Esses focos são atravessados por grande número de bridas; nas partes vizinhas se encontra um endurecimento mais ou menos grande.”84

5) O Mórbido autoriza uma sutil percepção do modo como a vida encontra na morte sua diferenciada figura. O mórbido é a forma rarefeita da vida, no sentido em que a existência se esgota, se extenua no vazio da morte; mas igualmente no sentido em que ela ganha nele seu estranho volume, irredutível às conformidades e aos hábitos, às necessidades recebidas; um volume singular que define sua absoluta

83 NC, p.163. Trad., p.176. Leia-se: “Bayle en 1810 avait été contraint de récuser successivement

toutes les indications séméiologiques de la phtisie: aucune n’était évidente ni certaine. Neuf ans plus

tard Laënnec auscultant une malade qu’il croyant atteinte d’un catarrhe pulmonaire doublé d’une

fièvre bilieuse a l’impression d’entendre la voix sortir directement de la poitrine, et ceci sur une petite

surface d’un pouce carré environ. Peut-être était-ce là l’effet d’une lésion pulmonaire, d’une sorte

d’ouverture dans le corps du poumon. Il retrouve le même phénomène chez uns vingtaine de

phtisique ; puis il le distingue d’un phénomène assez voisin qu’on peut constatez chez les

pleurétiques : la voix semble également sortir de la poitrine, mais elle est plus aiguë qu’au naturel :

elle semble argentine et chevrotante. Laënnec pose ainsi la ‘pectoriloquie’ comme seul signe

pathognomonique certain de la phtisie pulmonaire, et ‘l’égophonie’, comme signe de l’épanchement

pleurétique.” Foucault está citando Laënnec, Traité de l’auscultation médiate, Paris, 1819, t I. 84 NC, p.140. Trad., p.152-3. Leia-se: “Le cours symptomatique de la phtisie pulmonaire donne : la

toux, la difficulté de respirer, le marasme, la fièvre hectique, et parfois des expectorations purulentes ;

mais aucune de ces modifications visibles n’est absolument indispensable (il y a des tuberculeux qui n

toussent pas) ; et leur ordre d’entrée en scène n’est pas rigoureux (la fièvre peut apparaître tôt ou ne

déclencher qu’au terme de l’évolution). Un seul phénomène constant, condition nécessaire et

suffisante pour qu’il y ait phtisie : la lésion du parenchyme pulmonaire qui, à l’autopsie, ‘se révèle

parsemé de plus ou moins de foyers purulents. Dans certains cas, ils sont si nombreux que le p oumon

ne semble plus être qu’un tissu alvéolaire qui les contient. Ces foyers sont traversés par un grand

nombre de brides ; dans les parties voisines on trouve un endurcissement plus ou moins grand.’”

Foucault está citando X. Bichat, Anatomie pathologique, 1825, p.174.

50

raridade. Privilégio do tísico: outrora se contraía a lepra tendo como pano de fundo grandes castigos coletivos; o homem do século XIX torna-se pulmonar, realizando seu incomunicável segredo nessa febre que apressa as coisas e as atrai. Por isso, as doenças do peito são exatamente da mesma natureza que as do amor: são a paixão, vida a quem a morte confere uma fisionomia que não muda. A morte abandonou seu velho céu trágico e tornou-se o núcleo lírico do homem: sua invisível verdade, seu visível segredo.85

No item a seguir sobre a protoclínica, vai-se acompanhar mais detalhadamente

as transformações semânticas e sintáticas iniciais das práticas discursivas da clínica

médica no século XIX.

3. Protoclínica, lógica da linguagem

No momento inicial da medicina clínica, o qual Foucault denominou

“protoclínica”, a doença deixou de ser considerada uma abstração essencial e passou

a ser abordada no nível dos sinais e sintomas que os doentes apresentavam. As

doenças seriam os próprios signos delas mesmas. A tosse era um sintoma, mas

também era a própria doença. Diagnosticar significava, então, compilar os sinais e

sintomas, compor e decompor os signos da doença, analisá-los na sua forma e

frequência, para redigir a doença numa palavra. A tuberculose, na protoclínica,

poderia ser reconhecida como tosse.

Nesse momento, Foucault seleciona vários escritos de Cabanis. Esse médico

propunha a ordenação lógica de dados obtidos das observações e dos experimentos ,

para constituir a ciência clínica. O método clinico deveria observar, descrever,

colecionar, decompor, recompor, e comparar as impressões obtidas ao examinar os

85 NC, p.176. Trad., p.190. Leia-se: “Le Morbide autorise une perception subtile de la manière dont la

vie trouve dans la mort sa figure la plus différenciée. Le morbide, c’est na forme raréfiée de la vie ; en

ce sens que l’existence s’épuise, s’exténue dans le vide de la mort ; mais en cet autre sens

également, qu’elle y prend son volume étrange, irréductible aux conformités et aux habitudes, aux

nécessités reçues ; un volume singulier, que définit son absolue rareté. Privilège du pht isique : jadis

on contractait la lèpre sur fond des grands châtiments collectifs ; l’homme du XIXe siècle devient

pulmonaire en accomplissant, dans cette fièvre qui hâte les choses et les trahit, son incommunicable

secret. C’est pourquoi les maladies de poitrine sont de même nature exactement que celles de

l’amour : elles sont la passion, vie à qui la morte donne un visage qui ne s’échange pas. La mort a

quitté son vieux ciel tragique ; la voilà devenue le noyau lyrique de l’homme : son invisible vérité, son

visible secret.”

51

doentes nas escolas médicas e nos hospitais. Com isso, sua prática clínica

permanecia no nível teórico da análise das ideias, herdada de Condillac, e na

superfície dos sinais e sintomas. Cabanis não se aprofundou em buscar as causas

das doenças, nem se interessou pelas probabilidades matemáticas, diferentemente

de outros médicos, como Pinel, Corvisart e Bichat. Na sua coleção Rapports du

physique et du moral de l’homme, Cabanis criou ainda uma doutrina que procurava

desfazer a dualidade entre corpo e alma, detalhando as ligações nervosas entre os

órgãos e o cérebro, e descrevendo as influências recíprocas das sensibilidades e dos

pensamentos, do organismo e do ambiente exterior.86 A sua doutrina não foi adiante,

mas ele acabou sendo reconhecido como reformador da saúde pública e da

pedagogia médica.

No longo excerto de NC abaixo, vê-se Foucault descrever os métodos

semiológicos da protoclínica, citando as recomendações de Tissot, outro médico da

época (1785), para se observar com surpresa que os passos do exame clínico vêm

persistindo praticamente os mesmos até hoje. Justifica-se, portanto, investigar as

práticas da medicina do fim do século XVIII, mesmo que pareçam distantes ou

ultrapassadas em relação à medicina atual, porque, como Foucault insiste e sustenta,

é daquela época a herança da atualidade.

A clínica não é um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida: é uma determinada maneira de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la para que ela se desvele sistematicamente. A clínica é uma espécie de teatro nosológico de que o aluno desconhece, de início, o desfecho. Tissot prescreve que se faça com que ele procure durante muito tempo. Aconselha que se confie cada doente da clínica a dois estudantes; são eles e apenas eles, que examinarão “com decência, com doçura e com esta bondade que é tão consoladora para estes pobres desafortunados”. Começarão por interrogá-lo sobre sua pátria e as constituições reinantes, sobre sua profissão e suas doenças anteriores; a maneira como a atual começou e os remédios tomados. Farão a investigação de suas funções vitais (respiração, pulso, temperatura), de suas funções naturais (sede, apetite, excreções) e de suas funções animais (sentidos, faculdades, sono, dor). Deverão também lhe “apalpar o baixo ventre para constatar o estado de suas vísceras”. Mas o que procuram, assim, e que princípio hermenêutico deve guiar o seu exame? Quais são as relações estabelecidas entre os fenômenos constatados, os antecedentes conhecidos, os distúrbios e os deficits observados? Nada mais do que aquilo que permite pronunciar um nome, o da doença. Uma vez designada, serão facilmente deduzidos suas

86 Consultado em CABANIS, P. J. G. Rapports du physique et du moral de l’homme. Tome premier.

Paris: Charpentier, 1855. p.I-IX. (Notice sur Cabanis)

52

causas, o prognóstico e as indicações, “perguntando-se: O que falta ao doente? O que se deve então mudar?” Em relação aos métodos posteriores de exame, o recomendado por Tissot não é menos meticuloso, excetuando-se alguns detalhes. A diferença entre esse inquérito e o “exame clínico” reside em que nisto não se faz o inventário de um organismo doente; assinalam-se os elementos que permitirão encontrar uma chave ideal – chave que desempenha quatro funções, pois é um modo de designação, um princípio de coerência, uma lei de evolução e um corpo de preceitos.87

No capítulo VI de NC, “Signos e Casos”, Foucault explica a transformação

teórica da medicina, no final do século XVIII, possibilitada pela articulação do saber

médico à analítica da linguagem de Condillac (1715-1780) e, também, ao cálculo das

probabilidades de Laplace (1749-1827). Estes dois modelos teóricos, que foram

utilizados pelas práticas médicas, determinaram o papel da percepção na aquisição

do conhecimento e na experiência médica.

Já no início desse capítulo VI, Foucault reproduz um ensaio datado de 1858

sobre a clínica médica de Montpellier, para nele encontrar a descrição das pretensões

da prática médica daquela instituição. Montpellier é a faculdade de medicina antiga e

prestigiosa citada várias vezes por Foucault, possivelmente porque formou médicos

atuantes em vários campos da medicina da época, na clínica, no exército e nos

hospitais, entre eles Pinel e Bichat. A escola atravessou as pressões e exigências

87 NC, p.59-60. Trad., p.64-5. Foucault está citando Tissot, Mémoire pour la construction d’un hôpital

clinique, in Essai sur les études médicales, Lausanne, 1785.p.120-4. “La clinique n’est pas un

instrument pour découvrir une vérité encore inconnue ; c’est une certaine manière de disposer na

vérité déjà acquise et de la présenter pour qu’elle se dévoile systématiquement. La clinique est une

sorte de théâtre nosologique dont l’élève ne connaît pas, d’entrée de jeu, la chef. Tissot prescrit de la

lui faire longtemps chercher. Il conseille de confier chaque malade de la clinique á deux étudiants ; ce

sont eux, et eux seuls, qui l’examineront ‘avec décence, avec douceur, avec cette bonté qui est si

consolante pour ces pauvres infortunés.’ Ils commenceront par l’interroger sur sa patrie, et les

constitutions qui y règnent, sur son métier, ses maladies antérieures ; la manière dont celle-ci a

commencé, les remèdes pris ; ils feront l’investigation de ses fonctions vitales (respiration, pouls,

température), de ses fonctions naturelles (soif, appétit, excrétions), et de ses fonctions animales

(sens, facultés, sommeil, douleur) ; ils devront aussi lui ‘palper le bas-ventre pour constater l’état de

ses viscères’. Mais que cherchent-ils ainsi, et quel principe herméneutique doit guider leur examen ?

Quels sont les rapports établis entre les phénomènes cons tatés, les antécédences apprises, les

troubles et les déficits remarqués ? Rien d’autre que ce qui permet de prononcer un nom, celui de la

maladie. La désignation une fois faite, on en déduira aisément les causes, le pronostic, les indications

‘en se demandant : qu’est-ce qui pèche dans ce malade ? Qu’y a-t-il par là même à changer ?’. Par

rapport aux méthodes ultérieures d’examen, celle recommandée par Tissot n’est guère moins

méticuleuse, á quelques détails près. La différence de cette enquête avec ‘l’examen clinique’ est en

ceci qu’on n’y fait pas l’inventaire d’un organisme malade ; on y relève les éléments qui permettront de

mettre la main sur une clef idéale – chef qui a quatre fonctions puisqu’elle est un mode de

désignation, un principe de cohérence, une loi d’évolution et un corps de préceptes.”

53

sociais e foi um dos cenários da emergência da medicina clínica. No século XVIII, a

faculdade de Montpellier também esteve ligada à teoria biológica do vitalismo.

Foucault considera as pretensões em Montpellier de uma extensão desmedida,

porque tentava abarcar por inteiro o domínio da doença, desde seu reconhecimento,

o diagnóstico, as previsões, a escolha do tratamento, até a forma de dirigir o doente.88

Através da “ciência ocular” e de tantos poderes de esclarecimentos, leituras, cálculos

e possibilidades, dirigindo emoções e decisões, a clínica pretendia instaurar a

“soberania do olhar”: “olho que sabe e que decide, olho que rege.”89

Seguindo adiante, ele lembra que o modelo de ciência que se baseava na

construção de uma ordem pelo olhar já existia na História Natural, desde a segunda

metade do século XVII. Nele era proposto analisar e classificar os seres naturais,

segundo suas características visíveis, e localizar o indivíduo nas chaves

classificatórias. Este modelo naturalista fora adotado pela medicina, mas no século

XIX ele se organizou de modo novo. Primeiramente, porque o médico passou a ter

apoio e justificação de uma instituição (a clínica hospitalar), dando-lhe poder de

decisão e intervenção. Em seguida, porque a observação médica se tornou mais

minuciosa, buscando nuances de desvios da normalidade, e, finalmente, por não

somente constatar as alterações, mas ter passado a calcular riscos e produzi r

prognósticos.

Esse olhar intervencionista, minucioso e calculador produziu o surgimento de

novos objetos, reorganizou o sujeito cognoscente, e a medicina passou a funcionar

de uma forma nova. Para Foucault, todo o conjunto do saber médico mudou no século

XIX, desde mais profundamente, a relação da doença com a percepção médica

mudou, os “códigos de saber” mudaram, “sob suas duas formas principais: a estrutura

linguística do signo e a aleatória do caso”.90 É preciso deter-se na explicação de

Foucault, para compreender melhor essa transformação do saber médico, como o

88 NC, p.87. Trad., p.95-6, Foucault cita I.C.-L., Dumas, Éloge de Henri Fouquet, Montpellier, 1807,

apud A. Girbal, Essai sur l’spirit de la clinique médicale de Montpellier, Montpellier, 1858.p.18. 89 NC, p.88. Trad., p.96. Leia-se : “Tant de pouvoir, depuis le lent éclaircissement des obscurités, la

lecture toujours prudente de l’essentiel, le calcul de temps e des chances, jusqu’à la maîtrise du c oeur

et la confiscation des prestiges paternels, sont aut ant de formes à travers lesque lles s’instaure la

souveraineté du regard. Oeil qui sait et qui décide, oeil qui régit. ” 90 NC, p.89. Trad., p.97. Leia-se : “A ces niveaux, pas de partage à faire entre théorie et expérience,

ou méthodes et résultats ; il faut lire les structures profondes de la visibilité où le champ et le regard

son liés l’un à l’autre par des codes de savoir ; nous les étudierons dans ce chapitre sous leurs deux

formes majeures : la structure linguistique du signe, et celle, aléatoire, du cas.”

54

golpe de vista (“coup d’oeil”) do médico pretendeu esclarecer os problemas insolúvei s

e obscuros do corpo. Ele divide a explicação em duas partes: “signos” e “casos”.

Referente a “estrutura linguística dos signos”, Foucault inicia afirmando que “a

formação do método clínico está ligada à emergência do olhar do médico no campo

dos signos e dos sintomas.”91 Não foi um retorno a um olhar mais puro e livre dos

falsos conhecimentos; foram decisivamente os direitos e os poderes do olhar clínico

que levaram ao desaparecimento da distinção entre signo e sintoma, ao fundi-los num

mesmo significado, falando da doença. Desta forma, compor, dizer, descrever a

sintaxe dos sintomas era revelar diretamente a doença.

Foucault propõe três itens para explicar essa parte da nova ciência médica que se

baseia na sintaxe inteligível, na lógica da linguagem, enumerados a seguir.

1) “Os sintomas constituem uma camada primária indissoluvelmente significante

e significada”92

Não existe mais uma essência patológica, a doença passou a ser a coleção de

sintomas que a compõem no corpo do doente. A doença é o todo, os sintomas são os

fenômenos ou signos que a constituem, os signos ingênuos de uma verdade exposta.

Portanto, reconstituir e analisar a linguagem dos signos patológicos é reconhecer a

natureza da doença; e realizar essa semiótica da doença é enunciar sua verdade.

O sintoma é o fenômeno de uma lei de aparição no nível da natureza, com uma

distinção que o torna significação do patológico: ele designa o que se opõe às formas

da saúde. Na divisão entre saúde e doença, entre fisiológico (normal) e patológico, ele

pertence à doença. É importante salientar como Foucault explica o valor do sintoma:

por essa simples oposição às formas de saúde, o sintoma abandona sua passividade

de fenômeno natural e se torna significante da doença, isto é, dele mesmo tomado em

sua totalidade, “visto que a doença nada mais é do que a coleção de sintomas”.93

91 NC, p.90. Trad., p.99. Leia-se : “La formation de la méthode clinique est liée à l’émergence du

regard du médecin dans le champ des signes et des symptômes” 92 NC, p.90.Trad., p.99. Leia-se : “Les symptômes constituent une couche primaire indissociablement

signifiante et signifiée”. 93 NC, p.91.Trad., p.100. Leia-se : “Par cette simple opposition aux formes de la santé, le symptôme

quitte se passivité de phénomène naturelle devient signifiant de la maladie, c’est -à-dire de lui-même

pris en sa totalité, puisque la maladie n’est que la collection des symptômes. ”

55

O sintoma significa, portanto, o vínculo com o todo e a diferença do que não é.

E, numa espécie de tautologia, ele é significante e significado, e duplamente, porque

significa a si próprio e à doença. Mas, diz Foucault, o ato que o transformou em signo,

foi um ato mais antigo, um ato prévio – e ele está se referindo ao pensamento clínico.

O que o pensamento clínico fez foi se utilizar da teoria conceitual de Condillac,

para que o sintoma apresentasse quase o mesmo papel que a linguagem de ação.

Para Condillac, existia uma ordem natural entre as necessidades do organismo e as

relações estabelecidas com as coisas exteriores. Para conhecer, seria preciso

observar as coisas e as sensações que elas causavam no organismo, e, então, essas

experiências se expressariam naturalmente numa linguagem inata, porém

inicialmente confusa. Para apreender o conhecimento, seria preciso decompor essa

linguagem natural, também chamada por ele de linguagem de ação, analisá-la e

recompor em ideias e juízos. Somente ao retornar às ideias em sua origem singela

nas primeiras sensações e se esforçar para empregar a “arte de raciocinar”,

construindo uma “linguagem bem-feita” é que se poderia chegar às ideias verdadeiras.

Nesse método analítico de Condillac havia uma identificação entre a verdade

interiormente apreendida e a forma exterior das coisas, que poderia ser expressada

como uma linguagem inteligível. Sendo que somente se acederia à verdade através

da observação das coisas, do contrário, pela imaginação ou por suposições se poderia

recair no erro, nas ideias falsas, em superstições, em polêmicas.

2) “É a intervenção de uma consciência que transforma o sintoma em signo”94

O suporte material e morfológico do signo é o sintoma. Foucault coloca a

questão: “como se faz a operação que transforma o sintoma em elemento significante

e que significa precisamente a doença como verdade imediata do sintoma?”95 Como

o signo se torna signo? E a resposta: por uma atividade exterior a ele, “por uma

operação que torna visível a totalidade do campo da experiência em cada um de seus

94 NC, p.92. Trad., p.101. Leia-se no original: “C’est l’intervention d’une conscience qui transforme le

symptôme en signe”. 95 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Comment se fait cette opération qui transforme le symptôme en

élément signifiant, et que signifie précisément la maladie comme vérité immédiate du symptôme ? ”.

56

momentos e dissipa todas as estruturas de opacidade.” 96 Operação e seus momentos

sintetizados em quatro itens a seguir.97

Totaliza e compara organismos: dor, calor, rubor e tumor significam fleimão

(inflamação), ao se comparar as duas mãos ou dois indivíduos.

Rememora o funcionamento normal: a debilitação dos sinais vitais significa a

morte iminente.

Registra as frequências da simultaneidade ou da sucessão: língua pesada,

tremores no lábio inferior, prenunciam os vômitos.

Operação, finalmente, que examina o corpo e descobre na autópsia um

invisível visível: a confirmação das alterações nos órgãos.

Foucault conclui: “o que significa que, no fundo, ele [o sintoma-signo] não é

mais do que a Análise de Condillac posta em prática na percepção médica.”98 Isto

porque, o que os dois métodos analíticos – filosófico e clínico, têm em comum seria a

revelação da ordem natural e originária das coisas, através da leitura clara e exaustiva,

expressando-a na linguagem científica bem construída.

3) “O ser da doença é inteiramente enunciável”99

No pensamento médico, “a doença deve ser considerada como um todo

indivisível, desde seu início até seu término, um conjunto regular de sintomas

característicos e uma sucessão de períodos.”100 Trata-se, diz ele, “de restituir, no nível

das palavras, uma história que recobre seu ser total.”101 Há uma transparência, um

isomorfismo entre a estrutura da doença e a forma verbal que a circunscreve. O ato

descritivo é uma apreensão do ser da doença.

96 NC, p.93. Trad., p.101. Leia-se: “Par une opération qui se rend visible la totalité du champ de

l’expérience en chacun de ses moments, et en dissipe toutes les structures d’opacité”. 97 Ver em NC, p.93. Trad., p.102. 98 NC, p.93. Trad., p.102. No original: “En quoi il [le symptôme] n’est, au fond, que l’Analyse de

Condillac mise en pratique dans la perception médicale. ” 99 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se no original: “L’être de la maladie est entièrement énonçable en sa

vérité”. 100 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “[...] La maladie doit être considérée comme un tout indivisible depuis son début jusqu’à sa terminaison, un ensemble régulier de symptômes caractéristiques et une

succession de périodes”. Foucault está citando Ph. Pinel, Le médecine clinique (3ª ed., Paris, 1815),

introd. P.VII. 101 NC, p.94. Trad., p.103. Leia-se: “Il ne s’agit plus de donner de quoi reconnaitre la maladie, mais de

restituer, au niveau des mots, une histoire qui en couvre l’être total”.

57

Atente-se que na medicina das espécies, a natureza da doença e sua descrição

não podiam corresponder sem um momento intermediário que era, com suas duas

dimensões, o “quadro”; na clínica, ser visto e ser falado se comunicam de imediato na

verdade manifesta da doença, de que é precisamente todo o ser. Só existe doença no

elemento visível e, consequentemente, enunciável, afirma Foucault.

A clínica usa, portanto, a relação do ato perceptivo com o elemento da

linguagem, fundamental em Condillac, para descrever a verdade científica: “a

descrição do clínico como a análise do filósofo, diz o que é dado pela relação natural

entre a operação de consciência e o signo”; sendo que a ordem da verdade é a mesma

da linguagem (discursiva e temporal), assim, a dimensão cronológica desempenhará

o mesmo papel do espaço plano do quadro nosológico da medicina classificatória.102

Para definir, nas palavras de Foucault, essa forma de saber que ele mesmo

denominou “olhar médico” (e sobre o qual não se pode deixar de pensar que tenha

sido um modelo de saber nominalista e redutor), veja-se a seguir.

O olhar do clínico e a reflexão do filósofo detêm poderes análogos, porque ambos pressupõem uma idêntica estrutura de objetividade: em que a totalidade do ser se esgota em manifestações que são seu significante-significado; em que o visível e o manifesto se unem em uma identidade pelo menos virtual; em que percebido e o perceptível podem ser integralmente restituídos em uma linguagem cuja forma rigorosa enuncia sua origem. Percepção discursiva e refletida do médico e reflexão discursiva do filósofo sobre a percepção vêm se unir em uma exata superposição, visto que o mundo é para eles o análogo da linguagem.103

Assim, Foucault supõe o condicionamento da experiência clínica à lógica de

Condillac, como outro domínio de aplicação da Ideologia, a doutrina iluminista do

círculo filosófico do século XIX, que seguia Condillac. Portanto, não que a doença

tenha deixado de ser longínqua e invisível e a medicina se tornado finalmente

empírica; mas que, tanto na clínica médica como na análise filosófica, a existência

102 NC, p.95. Trad., p.104. Leia-se: “La description du clinicien, comme l’Analyse du philosophe,

profère ce qui est donné par la relation naturelle entre l’opération de conscience et le signe”. 103 NC, p.96. Trad., p.105. Leia-se: “Le regard du clinicien et la réflexion du philosophe détiennent des

pouvoirs analogues, parce qu’ils présupposent tous deux une structure d’objectivité identique : où la

totalité de l’être s’épuise dans les manifestations qui en sont le signifiant-signifié ; où le visible et le

manifeste se rejoignent en une identité au moins virtuelle ; où le perçu et le perceptible peuvent être

tout entiers restitués dans un langage dont la forme rigoureus e en énonce l’origine. Perception

discursive et réfléchie du médecin, et réflexion discursive du philosophe sur la perception viennent se

rejoindre en une exacte superposition, puisque le monde est pour eux l’analogon du langage”.

58

fora delineada segundo o modelo da linguagem, em que o visível e o dizível

manifestariam a objetividade total das coisas.

Esse olhar objetivo sobre o corpo e o modelo descritivo do discurso médico

propiciaram um estímulo ao olhar do diagnosticador e possibilitaram a comparação

entre as séries de pacientes tratados, pela sistematização e pelo registro cada vez

maior dos sinais e sintomas.

Para explicar as transformações da medicina abordando a “estrutura aleatória

dos casos”, Foucault relata que a medicina era considerada um conhecimento incerto

que se ocupava de um objeto muito complicado. A falta de fundamentos e de recursos

para enfrentar a complexidade dos sintomas, dava à medicina um caráter conjuntura l.

Foi por essa incerteza e o excessivo número de dados variados e as imensas

combinações, que no século XVIII, inseriu-se um elemento positivo. Era época de

Laplace, e “a medicina descobre que a incerteza pode ser tratada analiticamente como

a soma dos graus de certeza isoláveis e suscetíveis de um cálculo rigoroso”, diz

Foucault.104 A penetração do conhecimento matemático é que trará esse conceito

positivo para o saber médico.

Através dessa mudança conceitual decisiva introduzida pelas teorias de

Laplace, abriu-se na clínica uma forma de investigação em que cada fato isolado

poderia ser comparado a uma série de casos para acompanhar o curso das

convergências ou divergências. Disto evoluíram os procedimentos do registro de

casos, da formação de séries e dos cálculos mensurativos. O que passou a ser posto

em questão nos cálculos não era mais o indivíduo doente, mas nele, o fato patológico;

o conhecimento virá da análise da convergência progressiva das séries de fatos,

teoricamente indefinidos de início, em que o curso do tempo será uma dimensão

integrada aos elementos para análise dos graus de certeza. Foucault diz:

Com a importação do saber probabilístico, a medicina renovava inteiramente os valores perceptivos de seu domínio: o espaço onde devia se exercer a atenção do médico tornava-se um espaço ilimitado, constituído por elementos isoláveis, cuja forma de solidariedade era da ordem da série. [...] A medicina não tem mais que ver o verdadeiro essencial sob a individualidade sensível; está diante da tarefa de

104 NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “A l’époque de Laplace, soit sous son influence, soit à l’intérieur

d’un mouvement de pensée du même type, la médecine découvre que l’incertitude peut être traitée,

analytiquement, comme la somme d’un certain nombre de degré de certitude isolables et susceptibles

d’un calcul rigoureux”.

59

perceber, e infinitamente, os acontecimentos de um domínio aberto. A clínica é isso.105

Contudo, o domínio hospitalar ainda não estava organizado, o que não

permitira a aplicação mais coerente da teoria matemática das probabilidades. Por

exemplo, a forma como Cabanis tentou abordar o grau de certeza dos diagnósticos

em seu livro Du degré de certitude de la medicine (1819), ainda era confuso, visto que

ele se apegou a invocar os movimentos variados da natureza para justificar os

instrumentos técnicos e teóricos da prática médica.

Mas foi mesmo aí, num vazio de compreensão dos movimentos imprecisos da

natureza, que foi se estabelecendo uma nova técnica da percepção dos casos,

constituída para tentar dar uma armadura científica ao discurso médico. Seus

princípios são enumerados por Foucault em quatro itens.

1) “A complexidade de combinação”106

O dado mais simples adotado será o fato básico inicial, é sobre os elementos

simples que se repetem que serão realizados os cálculos combinatórios. Se antes se

partia das diversas formas de ser, para ascender à unidade mais simples e essencial,

na clínica dá-se o inverso. O curso de acompanhamento no tempo, será dos sintomas

simples à complexidade das combinações possíveis; e conhecer as doenças será

restituir o movimento pelo qual a natureza associa as variáveis. Foucault afirma que o

progresso do conhecimento passa a ter a mesma origem e se identifica igualmente

com a progressão da vida.

2) “O princípio da analogia”107

Saber será reconhecer os isomorfismos e as relações entre os elementos, seu

funcionamento ou sua disfunção, atendo-se às semelhanças que poderão identificar

as doenças em uma série de doentes. A coexistência da mesma constelação de

sintomas forma um conjunto de elementos patológicos que pode diagnosticar a

105 NC, p.97. Trad., p.106. Leia-se: “Par l’importation de la pensée probabilitaire, la médecine

renouvelait entièrement les valeurs perceptives de son domaine : l’espace dans lesquels devait

s’exercer l’attention du médecin devenait un espace illimité, constitué d’événements isolables dont la

forme de solidarité était de l’ordre de la série. […] La médecine ne se donne plus à voir le vrai

essentiel sous l’individualité sensible ; elle est devant la tâche de percevoir, et à l’infini, les

événements d’un domaint ouvert. C’est cela la clinique”. 106 NC, p.98. Trad., p.108. Leia-se: “La complexité de combinaison”. 107 NC, p.99. Trad., p.109. Leia-se: “Le principe de l’analogie”.

60

doença em uma série de casos. A complexidade da doença se repete na forma de

uma unidade coerente.

3) “A percepção das frequências”108

Por um raciocínio indutivo, deve-se encontrar o grau de certeza ao observar um

número suficiente de casos. As variações individuais se apagam na multiplicidade e

forma-se uma relação essencial: é no estudo dos fenômenos mais frequentes que se

encontram as leis gerais da natureza. Encontrar as regularidades do normal e do

anormal é utilizar como observador normativo a totalidade dos observadores – repartir

os conjuntos e indicar o perfil das identidades. É que, “na sombra, e sob vocabulári o

aproximado, circulam noções em que se podem reconhecer o cálculo de erro, o

desvio, os limites, o valor da média.”109 A visibilidade do campo médico adquire uma

estrutura estatística, não um jardim das espécies, mas um domínio de

acontecimentos.

4) “O cálculo dos graus de certeza”110

No final do século XVIII, tentou-se usar o cálculo probabilístico para indicar o

grau de certeza de um diagnóstico, frente à complexidade dos sintomas. Para

Foucault, contudo, na época o cálculo fora confundido com uma análise dos sintomas,

porque era através da presença desses signos (os sinais e sintomas) somados ou

subtraídos que a probabilidade aumentava ou diminuía, existindo uma confusão entre

a decomposição do conjunto dos sintomas e a aritmética. Sob a aparência do cálculo

matemático, tentava-se construir a estabilidade da figura de uma doença. Perceba-se

na citação abaixo.

Trata-se de um cálculo que, desde o início, tem valor no interior do domínio das ideias, sendo ao mesmo tempo princípio de sua análise em elementos constituintes e método de indução a partir das frequências; ele se dá, de maneira ambígua, como decomposição lógica e aritmética da aproximação.111

108 NC, p.101. Trad., p.111. Leia-se: “Le perception des fréquences”. 109 NC, p.102. Trad., p.112. Leia-se: “Dans, l’ombre, et sous un vocabulaire approché, des notions

circulent, où on peut reconnaître le calcul d’erreur, l’écart, les limites, la valeur de la moyenne. ” 110 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Le calcul des degrés de certitude”. 111 NC, p.103. Trad., p.113. Leia-se: “Il s’agit d’un calcul qui, d’entrée de jeu, vaut à l’intérieur du

domaine des idées, étant á la fois principe de leur analyse en éléments constituants, et méthode

d’induction à partir des fréquences ; il se donne d’une façon ambiguë, comme décomposition logique

et arithmétique de l’approximation ”.

61

Esse raciocínio valia tanto para os signos diagnósticos quanto para as

indicações terapêuticas, contudo, essa matematização inicial de medicina não

funcionou porque era uma aritmética simples, mas serviu para dar um verniz formal à

aplicação da lógica da linguagem.

Foucault conclui que a clínica foi uma das primeiras aplicações da lógica da

análise na vida concreta, através dos modelos gramaticais e probabilísticos. Abriu-se

na medicina um campo de visibilidade matemático, formalizado e invocado, através

de uma “contribuição dos temas da formalização”; enquanto o modelo gramatical

permanecia implícito, na sombra, como uma “transferência das formas de

inteligibilidade”.112

No capítulo VII de NC, “Ver, Saber”, ele continua a delinear sua tese sobre a

percepção médica, abordando o método clínico nas práticas médicas, e também

mostrando suas fragilidades, as quais ele denomina “mitos epistemológicos”.

Na protoclínica, o olhar médico deixava de ter a atitude hipocrática da medicina

expectante tradicional e passava a ter um olhar diferente. Foucault volta a insistir em

dois fundamentos para essa nova percepção médica, o primeiro seria a “pureza do

olhar”, o segundo era a sua “armadura lógica”. Pela pureza, entende-se um olhar que

pretendia perceber no corpo os sinais da doença de forma límpida e fiel na própria

origem dos fenômenos, sem qualquer interposição e, portanto, ao descrevê-los, diria

a verdade dos signos naturais patológicos, sendo que o correlato no doente nunca era

o invisível, mas sempre o sinal imediatamente visível. O olhar era fundamentado

também pela armadura lógica do raciocínio analítico, cuja adoção pretendia afastar

qualquer empirismo ingênuo e estabelecer a nova medicina objetiva. A pureza desse

olhar tinha outra característica marcante, ela estava ligada ao silêncio, acrescenta

Foucault. O médico observava o paciente silenciosamente à beira do leito, deveria

ouvir apenas a linguagem dos signos e afastar imaginações, ilusões, ou intromissões

teóricas de qualquer tipo. A clínica pretendia extrair uma verdade originária pelo

112 NC, p.105. Trad., p.115-6. Leia-se: “Le modèle grammatical, acclimaté dans l’analyse des signes,

reste implicite et enveloppé sans formalisation au fond du mouvement conceptuel : il s’agit d’un

transfert des formes de l’intelligibilité. Le modèle mathématique est toujours explicite et invoqué ; il est

présent comme principe de cohérence d’un processus conceptuel qui s’est accompl i hors de lui : il

s’agit de l’apport de thèmes de formalisation.”

62

exercício da observação e compor uma verdade sintática, pela lógica das suas

operações analíticas.

O olhar médico era, portanto, “analítico” pois devia restituir como verdade o que

foi produzido segundo uma gênese, reproduzindo o que lhe foi dado como elemento

visível de composição. Por isso, Foucault afirma que a lógica era a base da arte de

observar; “seria a arte de estar em relação com as circunstâncias que interessam,

receber as impressões dos objetos como nos são oferecidas, e delas tirar as induções

que são suas justas consequências”.113 Foucault define-o, então, noutra aproximação

ao olhar clínico, como um ato perceptivo e analítico, que pretendia ser neutro e isento.

Na experiência médica, onde e como essa nova racionalidade médica operava?

Foucault a relaciona ao domínio hospitalar e à constituição do método clínico. Embora

citada aqui, a reorganização dos hospitais será abordada mais detalhadamente por

Foucault num capítulo à parte. Em “Ver, Saber”, ele vai descrever o método clínico,

tomando principalmente o exemplo dos ensinamentos de Pinel.114

Na clínica, é no domínio hospitalar que o ensino se realiza pois é justamente

ali que o fato patológico aparece como singularidade e na série que o cerca. Se antes,

113 NC, p.109. Trad., p.119. No original: “En un mot, [l’art d’observer] serait l’art d’être en rapport avec

les circonstances qui intéressent, de recevoir les impressions des objets comme el les s’offrent à nous,

et d’en tirer les inductions qui en sont les justes conséquences.” 114 Philippe Pinel (1745-1826) era de uma família de médicos, mesmo tendo estudado teologia e

matemáticas, decidiu-se pela medicina e realizou sua formação em Toulouse e Montpellier. Pinel

fixou-se em Paris em 1778, e participou do movimento revolucionário. Tornou-se amigo de Cabanis,

com quem frequentava o salão dos Ideólogos, e partilhou com ele o pensamento científico da época,

baseado na experimentação e na análise filosófica. Pinel foi nomeado médico em Bicêtre, e depois

médico-chefe do Hospital Salpêtrière, em 1795. Ele publicou seu Tratado médico filosófico sobre a

alienação mental ou a mania em 1800. Esse livro teve várias traduções e exerceu grande influência

na psiquiatria, que estava se formando como especialidade médica. A terapêutica proposta por Pinel

para os doentes mentais era baseada no confinamento, no isolamento e na correção moral. O

confinamento em hospícios afastados visava, além de dar segurança à soc iedade, levar o louco a

ambientes onde pudesse ser observado e tratado. Esse local deveria ser calmo e ordenado, sem os

tumultos e os estímulos da vida cotidiana. O isolamento completo era indicado temporariamente para

aqueles excessivamente agitados e coléricos, ou como parte da terapia. Esperava-se a recuperação

da razão pela disciplina e pela repressão medida. O médico alienista deveria conduzir o tratamento

sob “cuja autoridade fosse inquestionável, devido à sua alta estatura moral, e que mesclasse

sabedoria, bondade e firmeza”. Uma personagem fundamental era o seu auxiliar, representado no

livro pelo vigilante-chefe de Bicêtre, Pussin, descrito como “firme, forte, sensato, criativo e

compassivo”. Somente a obtenção da permanente submissão a essas duas autoridades poderia levar

a quebrar das ideias viciosas do louco, conduzindo ao objetivo do tratamento, qual era corrigir os

erros da razão. Pinel também teve influência nos métodos da clínica médica por ter publicado obras

reconhecidas de nosografia e semiologia médica. Ele faleceu aos 81 anos, em Paris. Ver

“Apresentação” por Ana Maria Galdini Raimundo Oda e Paulo Dalgalarrondo em: PINEL, Philippe.

Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental ou a mania. Tradução de Joice Armani Galli. Porto

Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

63

acreditava-se que a família era o local ideal para deixar que a doença seguisse seu

curso natural e se manifestasse em toda a sua verdade, agora se acreditava que em

casa ela possa estar mascarada pelos cuidados que cercam o doente. Ainda que a

casa constitua um “meio natural” onde se desenvolve a doença, a necessidade de

comparação entre os casos demanda um “meio neutro” como o hospital, uma vez que

agora o conhecimento médico se define em termos de frequência. As doenças

similares são agrupadas em enfermarias e podem ser observadas em todas as suas

variações de febres e flegmasias.

Ao se integrar ao hospital, a medicina pode exercer uma observação constante

dos fenômenos patológicos e estabelecer um ambiente homogêneo apropriado para

as comparações. Será através do conhecimento dos fenômenos repetidos e

constantes que as conjunções fundamentais se estabeleceriam e indicariam a

verdade. A gênese da verdade se daria ao mesmo tempo da gênese de sua

manifestação, mais ainda, ela seria partilhada como pedagogia, diz Foucault. Na

experiência médica, o ato de reconhecer e o esforço de conhecer passa a ser de um

sujeito coletivo, do médico que descobre e dos seus alunos.

É interessante notar, como a experiência médica vai se tornando consequênci a

de uma coleção de pacientes e de um conjunto de repetições, bem como da ação

coletiva do olhar médico. Nisso se observa o reforço que o coletivo pode dar para a

verdade. Em contraste, e apesar dos conjuntos, a experiência médica se estabeleceu

sobre um recorte: deu-se por suficiente em seus limites, fechou-se no ambiente

hospitalar, onde os olhares e as doenças se entrecruzam, nas questões que ali

suscitavam.

Era necessário, no entanto, fixar um método clínico pois o conjunto do que pode

ser observado, descrito, questionado e a conjunção destes poderia ser infinito. Pinel,

por exemplo, criticou dois métodos, o da Clínica de Edimburgo e o de Montpellier, que

sugeriam que se levantasse um número grande de sintomas e questões, tornando a

análise ilimitada e impossível. Quando permanecia simplesmente aberto aos domínios

da linguagem e do olhar, o domínio da clínica poderia não ter fim. Por isto, o método

clínico de Pinel procurava delimitar o lugar de encontro entre o médico e o paciente,

64

mediante três meios de articular a interrogação e o exame, como descreve Foucault,

em seguida.115

1) “A alternância dos momentos falados e dos momentos percebidos em uma

observação”.116 Pinel define o seguinte esquema: primeiro momento, visual, anotam-

se os sintomas visíveis e se inquire o doente sobre manifestações ligadas a estes; no

segundo momento, linguístico, faz-se a rememoração das incidências e depois sobre

os hábitos e características da vida passada do doente. O terceiro momento é de novo

de percepção, quando se verifica no decorrer do tempo, a evolução dos sintomas. Por

fim, no quarto momento, novamente linguístico, prescreve-se algum tratamento. Em

caso de óbito, ainda uma última instância era reservada ao olhar: sobre a anatomia

do corpo. O exame físico e a escuta, o questionário, se complementavam para que a

doença pronunciasse sua verdade.

2) “O esforço para definir uma forma estatutária de correlação entre o olhar e a

linguagem”.117 Um dos desafios técnicos enfrentados pelo pensamento médico foi a

elaboração do “quadro clínico”. O desafio era elaborar uma representação legível e

conceitualmente coerente que espelhasse, através do quadro, o que foi percebido

pelos olhos e ouvidos clínicos. Pinel propõe um quadro cartesiano em que no eixo das

ordenadas aparecessem os sintomas perceptivos da doença, e no eixo das abscissas,

os valores significativos diagnósticos que os sintomas podiam tomar. Foucault pontua

que a distinção funcional entre visível e enunciável e, depois, a sua correlação na

geometria analítica foram tentativas ineficazes de estabelecer uma análise para o

trabalho do clínico. Mais que ineficazes, elas foram infundadas, porque a estrutura

analítica não era revelada pelo próprio quadro, mas era anterior a este, mediante o

estabelecimento prévio dos conceitos adotados. Nas suas próprias palavras, no

extrato a seguir.

O trabalho não é, portanto, de correlacionamento, mas de pura e simples redistribuição do que estava dado por uma extensão

115 NC, p.112. Trad., p.122-7. Foucault se refere ao método delineado por Philippe Pinel em Medicine

clinique, Paris, 1802. 116 NC, p.112. Trad., p.122. No original: “L’alternance des moments parlés et des moments perçus

dans une observation.” 117 NC, p.113. Trad., p.123. No original: “L’effort pour définir une forme statuaire de corrélation entre le

regard e le langage. ”

65

perceptível em um espaço conceitual previamente definido. Não faz conhecer; permite, quando muito, reconhecer.118

3) “O ideal de uma descrição exaustiva”.119 A própria maneira até arbitrária e

tautológica de formar o quadro clínico fez com que se buscasse compensar na

demonstração de rigor e de precisão dos enunciados. Nas descrições do método

clínico não podia haver lacunas nem ambiguidades. A linguagem, então, adquiriu mais

uma função na correlação fiel entre visível e o enunciável: além da descrição exata

em relação do objeto, ela deveria ser rigorosa, precisa e regular. Pinel recomendara

que a linguagem médica com rigor descritivo e regularidade denominadora fosse

instaurada no método clinico, como era para a história natural.120 Essa função

denominadora da linguagem se fez pelo uso de um vocabulário constante e fixo, o que

autorizaria a comparação, a generalização e a formação de conjuntos de sintomas

para os médicos. De modo que o rigor do vocabulário da descrição pode ser invocado

como fundamento da prática clínica, para chegar a uma verdade objetiva.

Vê-se, então, que a geometria analítica aplicada à medicina não chegou a

assegurar a análise significativa do percebido. Foi a descrição, o trabalho da

linguagem, que transformou o sintoma em signo, “a passagem do doente à doença,

acesso do individual ao conceitual”.121 Inspirando-se em Condillac, que via na “língua

bem-feita” o ideal do conhecimento científico, o sonho da linguagem aritmética do

quadro é substituído pela pesquisa da linguagem descritiva fiel, firme, rigorosa, uma

linguagem que fosse a abertura primeira e absoluta sobre as coisas e a pesquisa de

seus valores semânticos. Ver e enunciar, se torna a arte da medicina clínica, como

esclarece Foucault.

Descrever é seguir a ordenação das manifestações, mas é seguir também a sequência inteligível de sua gênese; é ver e saber ao mesmo tempo, porque dizendo o que se vê o integramos

118 NC, p.113. Trad., p.124. No original: “Le travail n’est donc pas de mise en corrélation, mais de pure

et simple redistribution de ce qui était donné par une étendue perceptible dans un espace conceptuel

défini à l’avance. Il ne fait rien connaître ; il permet tout au plus de reconnaître. NC , p.114. Trad.,

p.125. 119 NC, p.114. Trad., p.125. No original: “L’ideal d’une description exhaustive”. 120 NC, p.114. Trad., p.125. Foucault se refere aos escritos de Philippe Pinel em Nosographie

philosophique, Paris, ano VI. 121 NC, p.115. Trad., p.125. No original: “C’est la description, ou plutôt le labeur implicite du langage

dans la description qui autorise la transformation du symptôme en signe, le passage du malade à

maladie, l’accès de l’individuel au conceptuel. ”

66

espontaneamente ao saber; é também ensinar a ver, na medida em que é dar a chave de uma linguagem que domina o visível.122

Consequentemente, forma-se neste contexto uma espécie de novo esoterismo

médico, no seio do qual o domínio de uma certa gramática é guardado. Esta gramática

constitui um domínio operatório sobre as coisas. A arte de descrição contém um justo

uso sintático e uma familiaridade semântica destinada a fazer falar apenas os

iniciados na verdadeira palavra. Foucault situa esta fase no cerne da experiência

clínica, fase em que a clínica é a “manifestação das coisas em sua verdade, forma de

iniciação na verdade das coisas”.123 A experiência clínica representava esse momento

de equilíbrio reversível entre a palavra e o espetáculo.

No entanto, Foucault alerta que era um equilíbrio instável e precário, uma vez

que se apoiava no ilusório postulado de que: “todo o visível é enunciável e que é

inteiramente visível porque é integralmente enunciável”.124 Mesmo o modelo lógico

gramatical de Condillac não aceitava o estabelecimento de uma adequação total entre

o visível e o dizível, a filosofia dele ia muito mais na direção de uma lógica dos signos,

num procedimento de compor e decompor as noções geradas para calcular as

descobertas mais favoráveis.

Foucault conclui que a transposição da lógica de Condillac ao pensamento

clínico, como método, se deu com um deslocamento: da gênese e do cálculo

gramatical que se revertem para a exigência de um primado da gênese. Explicando

melhor, o primado da descritibilidade total, numa operação de transcrição sintática.

Ele [o método clínico] desce novamente da exigência do cálculo ao primado da gênese, quer dizer, após ter procurado definir o postulado de adequação do visível ao enunciável por uma calculabilidade universal e rigorosa [quadros], lhe dá o sentido de uma descritibilidade total e exaustiva. A operação essencial não é mais da ordem da combinatória, mas da transcrição sintática.125

122 NC, p.115. Trad., p.125-6. No original: “Décrire, c’est suivre l’ordonnance des manifestations, mais

c’est suivre aussi la séquence intelligible de leur genèse ; c’est voir et savoir en même temps, parce

qu’en disant ce qu’on voit, on l’intègre spontanément au savoir ; c’est aussi apprendre à voir puisque

c’est donner la clef d’un langage qui maîtrise le visible. ” 123 NC, p.116. Trad., p.127. No original: “[…] nous sommes au cœur de l’expérience clinique – forme

de manifestation des choses dans leur vérité, forme d’initiation à la vérité des choses. ” 124 NC, p. 116. Trad., p.128. No original: “Equilibre précaire [de l’expérience clinique], car il repose sur un formidable postulat : que tout le visible est énonçable et qu’il est tout entier visible parce que tout

entier énonçable.“ 125 NC, p. 117. Trad., p.128. No original: “Elle [la méthode clinique] redescend de l’exigence du calcul

au primat de la genèse, c’est-à-dire qu’après avoir cherché à définir le postulat d’adéquation du visible

à l’énonçable par une calculabilité universelle et rigoureuse, elle lui donne le sens d’une descriptibilité

67

Ele continua suas conclusões dizendo que, no período inicial da clíni ca

moderna, a experiência médica parecia ter encontrado o equilíbrio para instalar um

procedimento científico, justamente seguindo a forma de composição do visível e as

regras sintáticas do enunciável, em que ver, dizer, conhecer e aprender se

comunicavam em uma transparência imediata. Mas esse equilíbrio era precário, fora

apenas um sonho dizer a verdade ao exercer o olhar soberano, no qual “o olhar

retomava em seu exercício soberano as estruturas da visibilidade que ele próprio

depositara em seu campo de percepção”.126 Porque havia uma carência científica

nesse procedimento e uma opacidade volumosa impenetrável, sobre a qual o olhar

médico continuaria a se chocar: o próprio corpo. Foucault trata, então, de explicar qual

era a carência epistemológica do método clínico, relacionada ao estatuto da

linguagem, que era o fundamento e justificativa do método, embora sutilmente

mascarado.

Os “mitos epistemológicos” do método clínico foram descritos por Foucault em

quatro itens, destacados abaixo.

1) “A estrutura alfabética da doença”127

No final do século XVIII, os gramáticos postulavam que a melhor maneira de

conhecer e aprender uma língua era pelo seu alfabeto, pois esse método refletia o

esquema ideal da análise e da composição. Este esquema foi transposto para a clínica

na constituição do olhar clínico. Análogo às letras e às sílabas, a menor parte

observável da doença era de um sintoma em um doente, esclarece Foucault. O

sintoma isolado nada significa em si mesmo, somente sua combinação com os outros

lhe daria um sentido, assim como a combinação das sílabas forma a palavra. Foucault

afirma que a medicina clínica, mediante o método da estrutura alfabética da doença,

pretendia remontar o processo patológico à sua origem, à identificação da sua parte

menor, os sintomas. E também, assim como se dá na língua em que o número das

letras é finito, mas a combinação é infinita, o número de sintomas será restrito, ao

totale et exhaustive. L’opération essentielle n’est plus de l’ordre de la combinatoire, mais de l’ordre de

la transcription syntactique. “ 126 NC, p. 118. Trad., p.129. No original: “Le regard reprenait en son exercice souverain les structures

de visibilité qu´il avait lui-même déposées dans son champ de perception.“ 127 NC, p. 119. Trad., p.130. No original: “1. Le premier de ces mythes épistémologiques concerne la

structure alphabétique de la maladie. “

68

passo que o número de combinações possíveis dos sintomas será infinito, mesmo no

interior de uma mesma doença.

2) “O olhar clínico opera sobre o ser da doença uma redução nominalista”128

Assim como as palavras, as doenças não teriam outra realidade além da ordem

de sua composição. A doença é um nome. Nome, em dois sentidos, acrescenta

Foucault, “no sentido em que usam os nominalistas quando criticam a realidade

substancial dos seres abstratos e gerais”; e, noutro sentido que se aproxima da

filosofia da linguagem, “desde que a forma de composição do ser da doença é de tipo

linguístico”.129 Na redução nominalista, a doença não tem um ser, ela tem uma

configuração, por isso Cabanis afirmava que perguntar sobre a natureza da essência

de uma doença é tão incabível quanto perguntar sobre a natureza da essência de uma

palavra.

3) “O olhar clínico opera sobre os fenômenos patológicos uma redução de tipo

químico”130

Ao contrário do olhar do jardineiro que buscava as essências na variedade das

aparências das plantas (e da medicina clássica do século XVIII), o modelo de

operação química do século XIX queria isolar os elementos que dão origem às

composições, tal como o químico tem por objeto isolar os elementos puros e classificar

as combinações. Havia, ainda, mais um elo que permitia outra analogia entre a

química e a clínica: o fogo das combustões. Para Foucault, o fogo depurador da clínica

seria o agente que separa as verdades, o olhar que queima as coisas até sua extrema

verdade.

4) “A experiência clínica se identifica com uma bela sensibilidade”131

128 NC, p. 119. Trad., p.131. No original: “2. Le regard clinique opère sur l’être de la maladie une

réduction nominaliste. “ 129 NC, p. 119-20. Trad., p.131. No original: “Et nom en un double sens: au sens dont usent les

nominalistes quand ils critiquent la réalité substantielle des êtres abstraits et généraux ; et en un autre

sens, plus proche d’une philosophie du langage, puisque la forme de composition de l’être de la

maladie est de type linguistique.“ 130 NC, p. 120. Trad., p.132. No original: “3. Le regard clinique opère sur les phénomènes

pathologiques une réduction de typo chimique.“ 131 NC, p. 121. Trad., p.133. No original: “4. L’expérience clinique s’identifie à une belle sensibilité. “

69

O exercício metódico dos sentidos no ato da observação e na prática do justo

relato culminará no desenvolvimento da noção de “golpe de vista do médico”,

indicando a segurança do julgamento. Este ato único acabaria por demonstrar todo o

talento e a experiência do médico clínico, expressando-o em “bela sensibilidade”, em

“rapidez prestigiosa de uma arte”. A arte médica é relacionada à metáfora do golpe de

vista, do olhar que fulgura e decompõe o corpo, resume sinais, calcula relações,

cronologias e diz a doença.

Na emergência do método clínico, parece que Foucault mostra a operação de

quatro tipos de reduções que se integrarão à nova percepção da doença. A primeira,

é a redução da doença à sua menor parte, o sintoma; a segunda, é a redução a um

nome patológico; a terceira, é como se doença pudesse ser reduzida à sua pureza,

por um olhar fulgurante; e toda arte se reduzirá, enfim, à técnica de um olhar que

pretende abarcar tudo e dizer a doença.

*

O nascimento da medicina clínica esteve relacionado ao pensamento iluminista

do fim do século XVIII, como também todo otimismo científico depositado numa

racionalidade idealizada, objetiva e neutra, cujo desenvolvimento deveria levar ao

bem-estar social.132 O método e as práticas institucionais da clínica também se

constituíram pelos discursos da época, ou seja, as condições materiais de

funcionamento da medicina foram estabelecidas de acordo aos códigos do saber

racionalista.

Conforme afirma Foucault em NC, a noção de objetividade científica advinha

da reorganização da relação entre o visível e o invisível. Ainda no século XVII, a luz

da verdade era anterior a todo olhar, ela se identificava com a idealidade e a essência

das coisas, assim, os corpos deveriam se tornar transparentes para o exercício d o

espírito na direção luminosa. Já no fim do século XVIII, a verdade passou a se localizar

na própria espessura dos objetos, e o olhar deveria permanecer nos limites materiais

132 Ver em PORTOCARRERO, Vera. As ciências da vida: de Canguilhem a Foucault. Rio de Janeiro:

Editora Fiocruz, 2009, p.33.

70

que ele deveria esquadrinhar, descrever, dominar. O olhar seria o feixe de luz q ue

despertaria a objetividade das coisas, a visibilidade seria a fundadora das qualidades

dos objetos a conhecer e da linguagem descritiva. Essa reorganização formal do

pensamento científico fundada na percepção dos objetos é que tornou a experiência

clínica possível.

No mesmo modelo de racionalidade que fundava as ciências modernas, nos

mesmos princípios empíricos das novas ciências, a medicina tentou fundamentar-se

para buscar a sua própria positividade. Nas descrições de Foucault, a lógica da

linguagem de Condillac principalmente, mas também as probabilísticas de Laplace,

os princípios da Química, foram integrantes desse projeto da medicina clínica. Nessa

relação com as ciências da época, o método objetivo clínico elegeu o olhar como

instrumento principal para iluminar diretamente as lesões das doenças nas superfícies

do corpo, e a linguagem era conformada para descrever rigorosamente as

características encontradas. As novas bases para o empirismo científico médico se

propunham a ser um retorno à simples positividade do percebido, tomando os sinais

e sintomas da doença como se fossem uma verdade ingênua e espontânea ao olhar.

O sofrimento do doente, suas dores e as obscuras tensões internas também seriam

deslocados inteiramente para uma avaliação objetiva do corpo, sendo vistos como

objetos a conhecer. Quanto à linguagem, para que pertencesse ao novo discurso

científico racional, ela deveria se articular com o objeto, descrevendo o percebido e

se construindo no espaço vazio, neutro e indiferente onde se desenrolava o encontro

do olhar com as coisas. Na medicina clínica, a doença (o doente) se tornou o objeto

de um discurso, com a mesma geometria de objetividade das novas ciências que se

positivavam nos limites e nas formas de articular o visível ao dizível.

Foucault relata que essa nova racionalidade médica se esforçava por ser livre

das falsas interpretações, mantendo-se na estrita materialidade dos achados físicos,

baseando-se na observação e na lógica de uma linguagem descritiva e formal. De

fato, o método clínico organizou novas possibilidades para o saber médico através

dos registros dos casos e das séries, das comparações e do conhecimento indutivo

que isso permitiu, para verificar as hipóteses sobre as doenças. Contudo, Foucault

mostra que o método clínico também trouxe outras duas consequências.133

133 Ver no Prefácio de NC, p.V-XV. Trad., V-XVI.

71

Primeiramente, ele menciona que esse novo discurso parecia redutor e surdo,

entende-se por isso que todas as dimensões da doença se reduziram à da visibilidade,

e a linguagem não era uma resposta ao que o doente falava, mas nascia da percepção

do médico. Essa nova racionalidade clínica seria uma fórmula empobrecida e pálida,

uma compreensão unilateral, talvez também desumana e impiedosa da doença e do

doente. Pode-se realçar como essa condição histórica de possibilidade do discurso

médico foi limitadora e presa ao espaço da visibilidade, um espaço finito, sem

mistérios. Percebe-se a construção de um saber positivista, fundamentado na

objetividade sobre o corpo. E não importa quão profundamente o olhar médico se dirija

às camadas corporais ou que ele o decomponha até suas partes mínimas, o princípio

de tal objetividade permanecerá o cerne da experiência médica. Esse

condicionamento limitou o que poderia ser dito a uma experiência limpa,

excessivamente luminosa e racional, talvez sem críticas, sem ficção, sem imaginação.

E desconsiderou outros tipos de experiências do corpo, aquelas que não seriam

visíveis ou dizíveis, talvez entre elas a solidão, o sofrimento, o isolamento, a

perplexidade e a incompreensão diante da doença e da morte.

E, numa segunda consequência, pode-se dizer que foi a primeira vez na história

do ocidente que um saber ligou o indivíduo concreto ao discurso da racionalidade. No

início dessa experiência nova, esteve o encontro entre um golpe de vista e um corpo

mudo, numa relação desequilibrada, não recíproca, que pretendia formar uma

observação científica. O método clínico se fundamentava na percepção clara e

deveria ser rigoroso, minucioso, descritivo, exaustivo e incessante. Compreende-se,

pela condução de Foucault, que a visibilidade se tornou o princípio científico que

funcionava nas pesquisas clínicas, e que os enunciados adquiriram a força de uma

verdade operatória sobre a doença. A fraqueza do método clínico foi a lógica da

linguagem, a sua força foi a apreensão do corpo.

72

CAPÍTULO IV – OLHAR MÉDICO E SEUS DESLOCAMENTOS

1. Doença, corpo

No início do século XIX, Foucault identifica um deslocamento do discurso

médico, porque o olhar passará a se aprofundar nos órgãos no volume interno do

corpo. O método clínico buscará, a partir de então, analisar as doenças e o organismo,

tomando o próprio corpo como objeto de conhecimento - objeto empírico, concreto,

finito.

No nível arqueológico, o século XIX representou a emergência da medicina

moderna. Embora a historiografia clássica tenha reconstituído os passos da clínica,

para justificar retrospectivamente o novo apelo da anatomia patológica, Foucault o

considera como um marco da ruptura histórica com a medicina da idade clássica.

Foucault mostra, no capítulo “Abram Alguns Cadáveres”, quais foram as condições

fundamentais de aparecimento da medicina moderna, denominada por ele de

“anatomoclínica”. Para Foucault, quando se admitiu que as lesões é que justificavam

os sintomas das doenças, a anatomia patológica passou a ser fundamental para a

investigação da geografia do corpo e, também por isto, a clínica passou a adotar um

novo modo de ler o tempo, do final para diante, da morte para vida.

Foucault esclarece que as dissecções já eram realizadas há muito tempo, e

que existiram no século XVIII anatomistas consagrados como Morgagni, com livros

que datam de 1760 e 1767, mas foi nas análises de Bichat que a nova percepção

médica pode ser reconhecida. Na medicina clássica, a doença era uma condição

abstrata e a referência aos órgãos era um dos princípios classificatórios; mesmo

inicialmente na clínica, a localização dos sintomas se prestava para as análises de

suas ordens, sucessões, coincidências e analogias. Mas na anatomoclínica, a

dissecção dos órgãos passou a ser realizada como “um princípio de decifração do

73

espaço corporal”, em que Bichat levava em conta cada tecido como o elemento

primário para a análise do funcionamento e das alterações patológicas.134

Apesar de não usar o microscópio, Bichat descrevia os órgãos em camadas:

membranas serosas, fáscias fibrosas, membranas internas mucosas e glandulares,

tecidos celular, muscular, nervoso, arterial e venoso, ósseo, cartilaginoso, sinovial,

medular, dérmico e epidérmico. As diversas combinações desses tecidos é que

formavam os órgãos, constituíam os sistemas e atravessavam o corpo. A unidade

fundamental tecidual e o princípio do isomorfismo nos diversos órgãos é que

explicavam as propriedades vitais, as funções orgânicas e suas alterações. Foucault

afirma que essa forma de fazer uma leitura diagonal, analisando, decompondo e

recompondo os tecidos em sistemas interligados, nada mais era do que o princípio da

análise filosófica posto em prática no volume do corpo. Nas palavras dele:

Trata-se de um modo de percepção idêntico ao que a clínica foi buscar na filosofia de Condillac: a descoberta de um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal, e uma leitura metódica que, percorrendo as formas de decomposição, descreve as leis da composição. Bichat é estritamente um analista: a redução de volume orgânico ao espaço tissular é, provavelmente, de todas as aplicações da Análise, a mais próxima de seu modelo matemático. O olho de Bichat é um olho clínico, porque concede um absoluto privilégio epistemológico ao olhar de superfície.135

Tratava-se da mesma racionalidade analítica dos Ideólogos, que buscavam

aproximar a medicina das ciências empíricas para trazer um conhecimento objetivo

sobre a doença, da mesma vontade de saber que passou, então, a se inserir no

volume impenetrável do corpo. A analítica de Bichat provoca a redução de um órgão

complexo aos elementos simples, os quais se repetem em outros segmentos, e nas

repetições e relações pode-se dar um sentido ao todo. Simplificar, interpretar e

significar. Deve-se adentrar a esse capítulo de NC, para seguir os objetivos de

compreender o discurso médico.

134 NC, p. 128. Trad., p.140. No original: “La découverte majeure du Traité des membrane,

systématisée ensuite dans l’Anatomie générale, c´est un principe de déchiffrement de l’espace

corporel qui est à la fois intra-organique, interorganique et trans-organique.“ 135 NC, p. 130. Trad., p.141-2. No original: “Il s’agit bien du même mode de perception que celui

emprunté par la clinique à la philosophie de Condillac : la mise à jour d’un élémentaire qui est en

même temps un universel, et une lecture méthodique qui, en parcourant les formes de la

décomposition, décrit les loi de la composition. Bichat est, au sens strict, un analyste : la réduction du

volume organique à l’espace tissulaire est probablement, de toutes les applications de l’Analyse, la

plus proche du modèle mathématique qu’elle s’était donnée. L’œil de Bichat est un œil de clinicien

parce qu’il donne un privilège épistémologique absolu au regard de surface.“

74

2. “Abram alguns cadáveres”

Figura 1 – Tronc et bras disséqué et injecté

Auteur de l'ouvrage: GAUTIER D' AGOTY, Jacques

Ouvrage: Anatomie générale des viscères et de la névrologie, angéologie et ostéologie du corps humain

Edition: Paris: Gautier d'Agoty et Delaguette, 1754

Technique: Gravure - Manière noire

Adresse permanente de cette image :

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?01716

75

O imperativo de Xavier Bichat dá nome ao capítulo central de NC, em que

Foucault trata da nova utilização da anatomia patológica no discurso médico.136 Desde

o seu Tratado das membranas (1799), os métodos de Bichat foram adquirindo

prestígio rapidamente, e foi justamente sua nova forma de análise do corpo e da

doença que trouxe uma experiência diferente para a medicina clínica.

Ao dissecar o cadáver, Bichat manteve a sua percepção na superfície dos

tecidos que se destacavam nos órgãos doentes, e observava que cada camada de

tecido tinha uma forma distinta de adoecer, a qual poderia se repetir em outros órgãos

que contivessem o tecido similar (princípio de homogeneidade tecidual). Essa forma

de condução da anatomoclínica mostrava um deslocamento da percepção médica,

identificado por Foucault inicialmente em dois sentidos.

No primeiro, as etapas da análise foram incorporadas nos próprios tecidos, elas

passaram a acontecer nas superfícies reais dos órgãos. Essa análise tissular traria ao

método clínico um “fundamento objetivo, real e indubitável de descrição das doenças”,

no qual poderia ser encontrado o “positivismo” da medicina, porque parecia haver uma

lógica na configuração patológica conforme ela acontecia no corpo.137 E, como tal,

esse fundamento lógico mórbido poderia ser decifrado pelo procedimento de dissecar

os órgãos e examinar os tecidos, o que tornava as doenças analisáveis pelo médico.

Foucault cita o caso das inflamações, doenças que provocam espessamento

dos tecidos. Pelo método de Bichat, os princípios lógicos de sua diferenciação podem

ser estabelecidos pela frequência de acometimento dos tecidos e pelo aspecto das

lesões. Por exemplo, na inflamação das membranas serosas – a pleura é acometida

com mais frequência que outras membranas similares e de forma diferente que as

outras camadas do pulmão; e na inflamação da meninge – as lesões das camadas

que compõem essa membrana cerebral se diferenciam pelos aspectos característicos

da inflamação que sofrem.

No segundo sentido do deslocamento, a doença deixava de ser interpretada

num nominalismo estrito, resultado da transcrição da linguagem; e passava ao suporte

136 NC, p.125. Trad., p.136. No original: “Ouvrez quelques cadavres”, citando X. Bichat, Anatomie

générale, Prefácio, p.XCIX, Paris. 137 NC, p.130. Trad., p.142. No original: “D’où l’allure que prit à son départ l’anatomie pathologique :

celle d’un fondement enfin objectif, réel et indubitable d’une description des maladies ”.

76

material dos tecidos, passava a ser o estado real das lesões nas superfícies

perceptíveis dos órgãos.

A partir disso, Bichat fundamentou sua nosografia, ordenando e classificando

as doenças segundo as alterações comuns e gerais, ou as regionais e particulares

dos tecidos, dando importância à geografia dos órgãos.

Foucault lembra que, na nomenclatura médica, houve quem tentou seguir o

modelo químico, para fixar um vocabulário meticuloso, inspirando-se nas descobertas

de Lavoisier dos compostos químicos. Daí resultava que “as terminações em ose

designavam formas gerais de alteração (gastroses, leucoses, enteroses); as em ite

designavam irritações dos tecidos; as em rea, os derrames etc.”138 Embora não

seguissem explicitamente a nosologia da anatomia patológica, essa nomenclatura

também permaneceu.

Mas como os sintomas puderam ser vinculados às lesões teciduais? Como

diferenciar no cadáver o que seria da doença em curso e o que fora resultado do

iminente esgotamento da vida, ou da morte e decorrente da circulação que parou, da

respiração que cessou, dos tecidos inertes? Bichat contornou essas objeções

aplicando o princípio fundamental do método clínico de que só existe fato patológico

comparado (princípio comparativo diacrítico). Para identificar os achados patológicos

é preciso compará-los aos achados na dissecção de corpos sadios, ou em outros

doentes com a mesmo diagnóstico e ainda aos achados durante a evolução da

doença.

Essa regra da comparação das lesões para sua caracterização foi levada ainda

mais longe, diz Foucault, foi dessa investigação que a lesão tecidual passou a ser

buscada para diagnosticar a doença. Esse foi um passo fundamental para

estabelecer a direção do diagnóstico: via vertical do sintoma para a lesão tecidual e

vice-versa, da superfície dos sintomas para a superfície dos tecidos, percepção que

penetrava no volume do corpo e estabelecia os vínculos significativos. É importante

reler o extrato abaixo:

138 NC, p.134. Trad., p.146. No original: “A l’époque de Laënnec, Alibert, sur le modèle des chimistes,

tente d’établir une nomenclature médicale : les terminaisons en ose désignent les formes générales

de l’altération (gastroses, leucoses, entéroses), celles en ite désignent les irritations des tissus, celle

en rhée, les épanchements, etc. ”

77

Na experiência anatomoclínica, o olho médico deve ver o mal se expor e dispor diante dele à medida que penetra no corpo, avança por dentre seus volumes, contorna ou levanta as massas e desce em sua profundidade. A doença não é mais o feixe de características disseminadas pela superfície do corpo e ligadas entre si por concomitâncias e sucessões estatísticas observáveis; é um conjunto de formas e deformações, figuras, acidentes, elementos deslocados, destruídos ou modificados que se encadeiam uns aos outros, segundo uma geografia que se pode seguir passo a passo. Não é mais uma espécie patológica inserindo-se no corpo, onde é possível; é o próprio corpo tornando-se doente.139

No nível arqueológico, foi nessa transformação do gesto do médico sobre seu

objeto que a experiência médica adquiriu seu caráter moderno: o olhar estaria

autorizado a se aprofundar, decifrar, apreender o corpo, e a medicina rompia com as

abstrações e se fundamentaria cientificamente no corpo real. Isso também modificava

o tipo de exame físico e seus instrumentos de investigação, as formas de registro, os

conceitos do saber médico. Desde então, a doença não seria mais seus sintomas,

nem a reunião de probabilidades, o fato patológico teria localização espacial no corpo,

ela era a lesão tecidual, tinha um foco visível, uma sede, a partir da qual poderia se

ramificar e se intensificar.

A essa noção geográfica de sede, irá se sobrepor o deslocamento final da

percepção médica moderna, que foi dado pela noção de causa. O fisiologista

Broussais, desde seu Examen de la Doctrine généralement admise (1816), iria se

contrapor à interpretação das lesões como signos das doenças, como designava a

nosografia de Pinel, para situar os achados patológicos teciduais como sendo as

causas dos sintomas. O exemplo emblemático, Foucault afirma, é o curso das febres,

que eram classificadas como essências patológicas, com ou sem localização, sendo

que nas interpretações de Broussais, as febres terão um vínculo de causa com as

lesões inflamatórias orgânicas específicas.

139 NC, p.138. Trad., p.151. No original: “Dans l’expérience anatomoclinique, l’œil médical doit voir le

mal s’étaler et s’étager devant lui à mesure qu’il pénètre lui-même dans le corps, qu’il s’avance parmi

ses volumes, qu’il en contourne ou qu’il en soulève les masses, qu’il descend dans ses profondeurs.

La maladie n’est plus un faisceau de caractères disséminés ici et là à surface du corps et liés entre

eux par des concomitances et des successions statistiquement observables ; elle est un ensemble e

formes et de déformations, de figures, d’accidents, d’éléments déplacés, détruits ou modifiés qui

s’enchaînent les uns aux autres selon une géographie qu’on peut suivre pas à pas. Ce n’est plus une

espèce pathologique s’insérant dans les corps, là où c’est possible ; c’est le corps lui-même devenant

malade.”

78

3. Dissolução das febres

A lucidez e a sistematização das teorias de Broussais sobre as formas de febre

se deveram aos diversos campos de experiência médica que ele atravessou.

Broussais teve formação como cirurgião na marinha, prosseguiu na escola dos

clínicos e nas práticas dos anatomopatologistas, tendo retornado à profissão militar

para se reunir ao exército, onde pode praticar a nosografia médica comparada e o

método das autópsias. Foucault avalia, “Broussais é apenas o ponto de convergênci a

de todas essas experiências, a forma individualmente modelada de sua configuração

de conjunto.”140

Em 1808, ele publicou sua Histoire des phlegmasies chroniques, em que fez

um retorno à ideia pré-clínica de que a febre e a inflamação dependiam do mesmo

processo patológico, contudo seguiu também o princípio tissular de Bichat, de que

havia a necessidade de encontrar a superfície do ataque orgânico. Sua teoria

simplificou a análise das febres, explicando as alterações inflamatórias próprias de

cada tecido, as formas de evolução e de transmissão local ou mais geral, às quais se

correlacionavam a sintomatologia. Para Foucault, nisso residiu a grande conversão

conceitual, que o método de Bichat tinha autorizado, mas ainda não esclarecido: é a

doença local que, generalizando-se, apresenta os sintomas particulares de cada

espécie, e quando tomada em sua forma geográfica primeira, a febre nada mais é do

que um fenômeno localmente individualizado com uma estrutura patológica geral.

Os estudos de Broussais mostravam que a inflamação devia ser compreendida

como um processo de ataque funcional e tecidual. Era preciso uma medicina

fisiológica que observasse a vida, que compreendesse as funções e as simpatias dos

órgãos. A anatomia patológica encontrava nos corpos sem vida seu próprio limite, a

fisiologia poderia transpor esses limites, ao reconhecer os distúrbios funcionai s

relacionados aos sintomas, e as vias simpáticas com que as doenças se

manifestavam, com ou sem lesões visíveis.

140 NC, p.188-9. Trad., p.204. Leia-se : “Broussais n’est que le point de convergence de toutes ces

expériences, la forme individuellement modelée de leur configuration d’ensemble.”

79

Foucault afirma que houve uma reorganização do olhar médico porque desde

Bichat e a partir de Traité des membranes (1799), o princípio de visibilidade era a

regra absoluta e a localização constituía apenas sua consequência; mas com

Broussais, a ordem se inverteu: porque a doença é local, ela é, de maneira

secundária, visível.

A importância da lesão não se dá por ser perceptível, mas porque determina o

lugar em que a doença se desenvolve. Com a reformulação daqueles dois grandes

princípios da nosologia presentes em Bichat – o do distúrbio essencial e o da

visibilidade, Broussais pode abrir a experiência médica para um novo campo, que era

inteiramente o dos valores locais – da espacialização, e isto se deu,

interessantemente, pelo esforço de reconhecer a fisiologia do fenômeno mórbido.

Em seguida, Foucault estuda a questão da causa da inflamação, ao que

Broussais respondera com a noção de irritabilidade local a um agente externo ou a

uma modificação interna. Dessa forma, Broussais aborda o que não havia sido

alcançado por nenhum nosologista, a causa das lesões. O espaço local da doença é,

ao mesmo tempo, um espaço causal. Assim, indo mais longe, Broussais atribuiu aos

agentes irritantes internos ou externos a capacidade de provocar a inflamação dos

tecidos e os sintomas correlacionados. Veja-se a passagem abaixo, na qual Foucault

conclui a percepção moderna da doença.

Então – e aí está a grande descoberta de 1816 [do Examen de la Doctrine généralement admise] – desaparece o ser da doença. Reação orgânica a um agente irritante, o fenômeno patológico não pode mais pertencer a um mundo em que a doença, em sua estrutura particular, existiria de acordo com um tipo imperioso, que lhe seria prévio, e em que ela se recolheria, uma vez afastadas as variações individuais e todos os acidentes sem essência; insere-se em uma trama orgânica em que as estruturas são espaciais, as determinações, causais, os fenômenos, anatômicos e fisiológicos. A doença nada mais é do que um movimento complexo dos tecidos em reação a uma causa irritante: aí está toda a essência do patológico, pois não mais existem nem doenças essenciais nem essências das doenças.141

141 NC, p.194. Trad., p.209. No original: “Alors – et c’est là la grande découverte de 1816 – disparaît

l’être de la maladie. Réaction organique à un agent irritant, le phénomène pathologique ne peut plus

appartenir à un monde où la maladie, dans sa structure particulière, existerait conformément à un type

impérieux, qui lui serait préalable, et en qui elle se recueillerait, une fois écartés les variations

individuelles et tous les accidents sans essence ; il est pris dans une trame organique où les

structures sont spatiales, les déterminations causales, les phénomènes anatomiques et

physiologiques. La maladie n’est plus qu’un certain mouvement complexe des tissus en réaction à

80

A importância das análises de Broussais foi promover a “dissolução da

ontologia febril”, porque tornavam necessário localizar e conhecer o órgão sofredor,

relacionar os sintomas, em seguida identificar e tratar as causas, para suprimir os

seus efeitos.142 A noção de sofrimento dos órgãos fixou ainda mais o olhar médico no

espaço do corpo, por se dirigir apenas e diretamente à composição dos órgãos e seu

funcionamento. Perceber o mórbido era uma maneira de perceber o corpo.

Enfim, essa percepção da doença como reação patológica do corpo, dominará

a experiência médica até certo ponto do século XX, afirma Foucault, quando o

reconhecimento dos agentes patogênicos virá trazer novos deslocamentos

metodológicos.

A história da emergência do método clínico, da formação e da transformação

de uma experiência perceptiva, poderia ter sido percorrida até a conclusão do livro ,

caso não existisse outro ponto construído por Michel Foucault no coração de NC, e

que está vinculado à própria questão deste trabalho: qual a relação do discurso

médico com a morte?

une cause irritante : c’est là toute l’essence du pathologique, car il n’y a plus ni maladies essentielles,

ni essences des maladies”. 142 NC, p.125. Trad., p.211. No original: “Cette dissolution de l’ontologie fébrile, avec les erreurs

qu’elle a comportées (à une époque où la différence entre méningite et typhus commençait à être

perçue clairement), est l’élément le plus connu de l’analyse”.

81

CAPÍTULO V - DISCURSO, MORTE, VIDA

No nível arqueológico, a morte representou uma disposição geral que

atravessava o início do século XIX e formava o duplo gêmeo com a vida. Porque as

populações nas cidades morriam, porque os trabalhadores morriam, porque os

soldados morriam nas guerras, porque se morria nas epidemias, porque se morria nos

hospitais, porque muitos morriam de tuberculose, porque os poetas morriam cedo,

fora preciso estudar a morte, para fazer viver.

Foucault, em As palavras e as coisas (MC, Les mots e les choses), afirma que

existe em cada época um solo geral do pensamento que torna possível os

conhecimentos e o modo de ser daquilo que se sabe.143 É um espaço comum, em que

os saberes existem em dispersão, em jogos simultâneos, em redes de elementos

confluentes ou contraditórios. Foucault denomina esse espaço de episteme. As

epistemes são formadas pela singularidade e pelo acaso da convergência dos

acontecimentos históricos de cada época. O nível da episteme moderna é constituído

pelas positividades, que são campos de formações discursivas mais ou menos

delimitados em torno das regularidades formais, das relações temáticas, dos

conceitos ou das opiniões no interior dos temas. É, por exemplo, a positividade do

discurso médico, que o caracteriza como uma área de saber, conforme já foi abordado

neste trabalho no capítulo II.

Enfim, a episteme moderna teria suas próprias disposições gerais, condições

de possibilidade que organizam os saberes, entre elas a historicidade e o pensamento

das ciências empíricas. Para Foucault, foi a modernidade que introduziu a figura do

homem, na posição ambígua de objeto e de sujeito que conhece, através da rede de

saberes que analisam o seu papel na vida, no trabalho e na linguagem.

No capítulo IX de MC, “O homem e seus duplos”, Foucault examina as

características das ciências que constituíram o homem como duplo empírico-

transcendental, denominadas por ele de “analíticas de finitude”. Nesse mesmo

143 FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015. (Les

mots et les choses) (MC)

82

capítulo, Foucault expia essa figura do homem, porque pressente que ela está se

dissolvendo, pois é apenas um reflexo pálido dos seres humanos, e que vem sendo

colocado em cheque pelo “impensado”. Para acessar o que seria o “impensado”, é

preciso rever que, na investigação de Foucault, aparecem dois tipos de duplos do

homem: um, da representação externa que se faz do objeto-sujeito homem pelas

positividades; e o outro tipo, o duplo gêmeo de si mesmo, que se manifesta fraterno,

obscuro, ora confuso, ora ridente, e insiste no que deixou de ser pensado no discurso

das ciências do homem. Embora Foucault também tenha procurado investigar certos

“saberes do impensado”, supostas “contraciências”, que pareciam se opor aos da

finitude, porque elas se dirigiam a estruturas inconscientes que provinham do desejo,

da palavra e da ação – os casos da psicanálise, da linguística e da etnologia, essa

aposta não prosperou.

Neste trabalho, contudo, para abordar o tema da morte em NC, talvez seja

preciso se remeter aos significados da finitude e do impensado em MC. Deve-se

perguntar: NC traria, nos capítulos centrais, a descrição exemplar dessa analítica da

finitude? Quais estatutos da morte se condensam em NC? Parecem ser os

significados epistemológicos e as experiências poéticas. Então, vai-se tentar seguir

entrelaçando as descrições de Foucault nos dois livros.

1. Linguagem médica, literatura, distância

Viu-se neste trabalho (capítulo III.3) que Foucault desenvolve em NC dois

capítulos que tratam da linguagem como cerne da medicina moderna, “Signos e

Casos” e “Ver, Saber”. A linguagem médica compôs a lógica interna do discurso

médico, em que ver e descrever seria enunciar a verdade científica, com momentos

intercalados de percepção, análise, comparação dos achados e das frequências e

significação. O modelo descritivo da linguagem médica deveria ser bastante

minucioso e exaustivo, neutro e indiferente e, para que pudesse atingir sua exigência

formal, deveria se expressar com regularidade polida, quase numa língua esotérica.

Contudo, Foucault mostra que esse modelo científico da linguagem médica

83

representou uma lógica frágil, uma espécie de discurso redutor, imobilizado,

autorreferente. A força da ciência médica moderna veio do deslocamento da

experiência que a fez se aprofundar no corpo.

Em sentido próximo, “No retorno da linguagem” em Les mots et les choses

(MC), Foucault descreve o uso da linguagem na modernidade sob duas formas: a da

interpretação, que seria a exegese, a descoberta de sentidos ocultos, o fazer falar da

linguagem; e a da formalização dos discursos, da busca dos universais, de controlar

pela lei o que é possível dizer. 144 Mas, ele cita ainda um terceiro domínio da linguagem

no século XIX, o da literatura. Para Foucault, a modalidade propriamente denominada

literária surgiu recentemente, como uma experiência independente da linguagem.

Para Foucault, a literatura seria a linguagem que nasce simplesmente do ato de

escrever, remete à própria escrita, seu compromisso é somente com as palavras, e,

nesses termos, ela se afastaria das ciências, da qual, contudo, é a “figura gêmea”.145

Em Raymond Roussel (RR), Foucault mostra, através do método do escritor,

que a linguagem em si não remete a uma verdade, a linguagem apenas expressa os

jogos meticulosos que a caneta-olhar do escritor decidiu seguir. No método ficcional

de Roussel contam as analogias, os avessos, as pequenas mudanças de letras que

deslizam os sentidos, os duplos, os pares, as repetições, as imitações, as listas, os

diversos parênteses classificatórios, as chaves de enigmas, etc. Roussel reagrupa as

palavras e desdobra a linguagem, fazendo emergir uma proliferação de fluxos. Ele

segue a lógica rigorosa da sua técnica da linguagem, cujo enigma deveria ser revelado

somente no texto publicado após a sua morte, chamado Como escrevi alguns de meus

livros. Foucault acredita, contudo, que o segredo póstumo era que não havia enigma,

o procedimento de Roussel já estava à vista nos livros dele, apenas esperando a

morte anunciá-lo.

Tomando diretamente de RR, na citação abaixo.

Todos os aparelhos de Roussel, maquinarias, figuras de teatro,

reconstituições históricas, acrobacias, truques de prestidigitação,

adestramentos, artifícios – são de uma maneira mais ou menos clara,

com mais ou menos densidade, não apenas uma repetição de sílabas

144 Ver em FOUCAULT, Michel. Oeuvres. Tome I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 2015.

(Les mots et les choses) (MC), chapitre “L’homme et ses doublés”, I. Le retour du langage, p.1365-9.

Trad., p.417-23. 145 Ver em MC, p.1364 Trad., p.415.

84

ocultas, não apenas a figuração de uma história a descobrir, mas uma

imagem do próprio procedimento. Imagem invisivelmente visível,

perceptível, presente numa irradiação que rechaça o olhar. É claro que

as máquinas de Roussel são identificáveis ao procedimento, e, no

entanto, esta clareza não fala por si mesma; ela, apenas, só tem a

oferecer ao olhar o mutismo de uma página branca. Para que neste

vazio apareçam os signos do procedimento, foi necessário o texto

póstumo, que não acrescenta uma explicação às figuras visíveis, mas

que lhe dá a ver o que nelas já irradiava, atravessando soberanamente

a percepção, e tornando-a cega. O texto após a morte (que por

instantes tem o ar de ser efeito de uma espera frustrada e como um

despeito feito ao leitor que não vira o que estava lá) era

necessariamente prescrito desde o nascimento destas máquinas e

destas cenas fantásticas, já que elas não podiam ser lidas sem ele e

que Roussel jamais quis ocultar nada.146

Para Foucault, a literatura abriria, como em Roussel, um espaço selvagem, de

existência abrupta, pura manifestação da linguagem. Contudo, é significativo observar

que se percebem semelhanças com as análises de NC, em que o olhar, a linguagem

e a morte também eram os eixos principais. Entende-se, portanto, que o conhecimento

das coisas não estaria na própria linguagem, mas nas escolhas que se faz antes de

dizer: quais conceitos empregar, quais métodos adotar, quais objetos olhar, e o

enunciado seria uma verdade científica, ou não. Depende de quem fala. Nesse

sentido, NC e RR são livros gêmeos, são duplos, da linguagem científica e da

literatura, seu par e seu reflexo.

A distância que separa o discurso médico e a literatura, entre o sujeito que diz

a verdade sobre o doente e o discurso sem sujeito, seria possível superá-la para

construir uma nova experiência? Para Foucault, em MC, essa questão vem sendo

formulada, mas ele não saberia respondê-la. O reencontro desses dois jogos de

146 FOUCAULT, Michel. Raymond Roussel. Présentation de Pierre Macherey. Collection Folio /

Essais. Paris: Gallimard, 1963, p.75-6. Trad., p.48. No original: “Tous les appareils de Roussel –

machineries, figures de théâtre, reconstitutions historiques, acrobaties, tours de prest idigitation,

dressages, artifices – son d’une façon plus ou moins claire, avec plus ou moins de densité, non

seulement une répétition de syllabes cachées, non seulement la figuration d’une histoire à découvrir,

mais une image du procédé lui-même. Image invisiblement visible, perceptible mais non déchiffrable,

donnée en un éclair et sans lecture possible, présente dans un rayonnement qui repousse le regard. Il

est clair que les machines de Roussel sont identifiables au procédé, et pourtant cette clarté ne pa rle

pas d’elle-même ; seule, elle n’a à offrir au regard que le mutisme d’une page blanche. Pour qu’en ce

vide apparaissent les signes du procédé, il a fallu le texte posthume, qui n’ajoute pas une explication

aux figures visibles, mais qui donne à voir ce qui en elles déjà rayonnait, traversant souverainement la

perception, et la rendant aveugle. Le texte d’après la mort (qui par instants a l’air d’être l’effet d’une

attente déçue, et comme d’un dépit que le lecteur n’ait pas vu ce qui était là) était nécessairement

prescrit dès la naissance de ces machines et de ces scènes fantastiques, puisqu’elles ne pouvaient

pas être lues sans lui et que Roussel n’a jamais rien voulu cacher. ”

85

linguagem seria uma questão da atualidade, cujos desfechos talvez possam ser um

novo pensamento ou um fechamento sobre o mesmo anterior.147

*

O dizer do sofrimento e da morte na literatura poderia ressoar num espaço

único com a medicina, seria possível?

Percebe-se aqui, que a experiência de Roussel mostra, num clarão perceptível

apenas por um instante, os mesmos procedimentos de toda a linguagem na

modernidade. As repetições dos discursos ou a sua imprevisibilidade, conforme quem

fala. E ainda, a morte sendo o único fim, talvez seja também o princípio que significa

tudo o que veio antes. Procedimentos gêmeos, no discurso das ciências do homem e

no princípio da linguagem ambígua, invisível no discurso médico, mas no discurso

poético de Roussel, cintilando a verdade sobre a linguagem moderna. Foucault não

opõe a linguagem médica à literatura de Roussel, o que ele faz é tornar visível a

ambiguidade de todo discurso sobre o homem. Ele aborda as imagens poéticas de

Roussel como um arquivo do pensamento da atualidade.

O que se teria a aprender? Talvez fosse possível ampliar o discurso da

medicina, desviando-se para uma experiência de viver sem se pautar na morte. Seria

uma forma de contornar o que reduz a medicina aos discursos mortos. Essa

experiência poderia nascer da lucidez de perceber a repetição dos conceitos ou a

ambiguidade das proposições que, usando as mesmas palavras, constroem sentidos

sucessivos. Ampliar o discurso médico seria tentar pensar o que não foi pensado,

renovar, criar possibilidades simultaneamente às vivências.

Ainda, é preciso compreender o que a morte significa na medicina, para poder

expiá-la.

147 Ver em MC, p.1368-9. Trad., p.421-3.

86

2. Morte, finitude, vida

Figura 2 – Ouvrage : A series of engravings explaining the course of the nerves

Mots-clés : Anatomie. Dissection. 19e siècle

Auteur de l'ouvrage : BELL, Charles

Edition : Londres: T. N. Longman, 1803

Cote : 006493

Dessinateur : Bell

Graveur : Grant, J.

Empl. de l'image : Plate II

Technique: Gravure

Adresse permanente de cette image :

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?01892

87

Nas conclusões do capítulo VIII de NC, “Abram alguns cadáveres”, Foucault

descreve como a morte pode dar os fundamentos da medicina moderna. Sempre

confrontando as diferenças da medicina clássica do século XVIII, ele relata que a

morte antes era o evento limítrofe, que destacava o fim da vida e da possibilidade de

ouvir a doença falar. Anteriormente, procurava-se analisar os próprios sinais e

sintomas, muitas vezes sem conseguir estabelecer um fio condutor que levasse ao

diagnóstico ou ao curso da doença.

Já com as técnicas da medicina anatomoclínica, o exame dos cadáveres

passou a ter um estatuto decisivo. Primeiramente, devido à melhor organização das

clínicas, o que trouxe a possibilidade de realizar dissecções mais cedo, evitando os

efeitos da decomposição orgânica. Assim, a morte passava a ser uma linha vertical

mais fina, que aproximava os sintomas das lesões. Em segundo lugar, Foucault

descreve também como Bichat se aplicou em reconhecer o processo da mortificação,

detalhando os efeitos da progressão da morte em cada órgão, para distingui-los do

processo contemporâneo da doença. Isto resultou numa análise múltipla, dispersa,

repartida no tempo e no espaço do corpo (morte fragmentada), que fez pulular

aspectos relacionados à morte no discurso médico da época.

As análises post mortem levaram Bichat a reconhecer a cronologia da morte

natural, relacionada à “vida animal”: “[...] extinção sensorial, em primeiro lugar,

entorpecimento do cérebro, enfraquecimento da locomoção, rigidez dos músculos,

diminuição de sua contratilidade, quase-paralisia dos intestinos e, finalmente,

imobilização do coração”.148

Essas análises também o levaram a estabelecer as interações espaciais entre

as falências dos órgãos, havendo três centros de transmissão principais: coração,

pulmão e cérebro. A morte do coração leva à do cérebro pela via vascular; a morte do

pulmão leva à do coração por obstrução mecânica ou por alteração das reações

químicas; as lesões cerebrais não causam danos ao coração, a não ser que ocorra a

paralisia muscular e parada respiratória.

148 NC, p.145. Trad., p.157. No original: “Dans la mort naturelle, la vie animale s’éteint la première :

extinction sensorielle d’abord, assoupissement du cerveau, affaiblissement de la locomotion, rigidité

de muscles, diminution de leur contractilité, quasi-paralysie des intestins et finalement immobilisation

du cœur. ” Foucault está citando X. Bichat em Recherches physiologiques sur la vie et la mort, Paris,

an. VIII, p.242.

88

Foucault conclui que “os processos da morte, que não se identificam nem com

os da vida nem com os da doença, servem, no entanto, para esclarecer os fenômenos

orgânicos e seus distúrbios.”149 É na morte natural e na cronologia natural de

desprendimento de cada órgão da vida, que “o sistema das dependências funcionai s

e das interações normais ou patológicas se esclarece, [...] a morte pode servir de

ponto de vista sobre o patológico e permitir fixar suas formas ou suas etapas.”150

Foucault retorna ao exemplo da tuberculose, em mais um momento, além dos

que já tinham sido enumerados aqui (no capítulo III.2), para descrever como os

anatomopatologistas puderem então estabelecer, através dos achados post mortem,

o conjunto e a cronologia das lesões pulmonares: desde os tubérculos firmes iniciais

até os últimos estádios da doença, em que as lesões se tornam escavadas e

destrutivas. Portanto, além de ser um ponto de vista, a morte se tornou o elemento

que permitiu integrar as etapas de evolução da doença ao espaço imóvel do corpo.

Talvez, ainda por isto, se perdeu o medo da morte, sua presença constante, sua

proximidade foi se integrando aos discursos da medicina, na percepção

anatomoclínica.

É preciso reler o parágrafo de NC destacado abaixo.

A vida, a doença e a morte constituem agora uma trindade

técnica e conceitual. A velha continuidade das obsessões milenares que colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença aproximada da morte é rompida: em seu lugar se articula uma figura triangular, de que o cume superior é definido pela morte. [...] Em lugar de permanecer o que tinha sido durante tanto tempo, noite em que a vida se apaga e em que a própria doença se confunde, ela é dotada, de agora em diante, do grande poder de iluminação que domina e desvela tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença...” 151

149 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Les processus de la mort que ne s’identifient ni à ceux de la

vie ni à ceux de la maladie sont de nature pourtant à éclairer les phénomènes organiques e leurs

perturbations.” 150 NC, p.145. Trad., p.158. No original : “Le système des dépendances fonctionnelles e des

interactions normales ou pathologiques s’éclaire aussi de l’analyse de ces morts en détail […] elle

peut servir de point de vue sur le pathologique et permettre d’en fixer les formes ou les étapes. ” 151 NC, p.146. Trad., p.159. No original : “La vie, la maladie et la mort constituent maintenant une

trinité technique et conceptuelle. La vieille continuité des hantises millénaires qui plaçaient dans la vie

la menace de la maladie, e dans la maladie la présence approchée de la mort est rompue : a la place,

une figure triangulaire s’articule, dont le sommet supérieur es définit par la mort. […] Au lieu d’être ce

qu’elle avait été si longtemps, cette nuit où la vie s’efface, où la maladie même se brouille, elle est

douée désormais de ce grand pouvoir d’éclairement qui domine et met à jour à la fois l’espace et le

temps de la maladie…”

89

É interessante notar como Foucault fala de que foi a atemporalidade da morte,

em suas imobilidade e frieza, que constituiu o princípio para a apreensão da verdade

sobre a vida.

Foucault apenas cita o vitalismo de Bichat e sua célebre frase de que a vida é

aquilo que se opõe à morte. Embora, de fato, Bichat tenha estabelecido uma

especificidade da vida fora do domínio inorgânico e dos fenômenos simplesmente da

física, ele, ainda assim, definiu a vida na experiência da morte. Parece que Foucault

prefere crer que Bichat desenvolveu um “mortalismo”.152 O vitalismo apenas invocaria

a distância que separa o discurso clínico e a morte, esta que é o duplo impensado da

vida, porque o saber da verdade sempre fora do domínio da vida, e transpor o limite

da morte “é uma tarefa difícil e paradoxal para o olhar médico”.153 Se antes a morte

era o temor sombrio às costas do médico, o olhar precisava agora girar sobre si

mesmo e pedir que a morte esclarecesse sobre a vida e a doença. No imaginário, a

vida se tornaria noite e a morte, claridade.

“A noite viva se dissipa na claridade da morte”, Foucault conclui, ao final do

capitulo VIII de NC.154 Nessa mesma frase em que mostra o fundamento

epistemológico subliminar e paradoxal que a morte constituiu para a nova experiência

médica, Foucault insere um traço poético. Certo, porque o impensado ressurgira

visível no peito dos poetas, no coração dos modernos existira a invisível verdade.

É com outro paradoxo relacionado que Foucault define novamente o estatuto

epistemológico do método clínico: “a estrutura perceptiva e epistemológica que

fundamenta a anatomia clínica, e toda a medicina que dela deriva, é a da invisível

visibilidade”.155 A visibilidade se dá porque persistirá o signo dominante do visível nas

novas técnicas de exame clínico, mesmo no uso do estetoscópio e da percussão do

tórax. Isto, porque a investigação era sobre os dados espaciais e as alterações das

estruturas do corpo em vida, que posteriormente seriam confirmadas pela necropsia.

A invisibilidade se dá porque o corpo vivo deveria se tornar transparente ao olhar que

examina, ser como um véu que deixe a descoberto os conjuntos e as relações

152 NC, p.148. Trad., p.161. No original : “Le vitalisme apparaît sur le fond de ce ‘mortalisme’. ” 153 NC, p.148. Trad., p.162. No original : “Sans doute était-ce une tâcha bien difficile et paradoxale

pour le regard médical que d’opérer une telle conversion.” 154 NC, p.149. Trad., p.162. No original : “La nuit vivante se dissipe à la clarté de la mort.” 155 NC, p.169. Trad., p.183. No original : “La structure à la fois perceptive et épistémologique qui

commande l’anatomie clinique et toute la médicine dérivant d’elle, c’est celle de l’invisible visibilité. ”

90

internas. Enfim, porque a individualidade dos casos, antes invisível, se tornava visível,

pois a abertura do cadáver explicava as verdadeiras particularidades das lesões de

cada um. Outra vez, Foucault utiliza o exemplo da tuberculose, citando Laënnec e o

caso de uma mulher com tísica pulmonar em forma de lesões pleurais fibrosas que

provocaram alterações circulatórias simulando um quadro cardíaco, mas cujo

diagnóstico específico pode ser esclarecido após a morte.156

Foucault define o olhar médico tal “um olhar local e circunscrito”, “olhar limítrofe

do tato e audição”, “olhar absoluto e integrador”, “olho que se põe sobre a fundamental

visibilidade das coisas”, “olho absoluto do saber”.157 O olhar que domina o campo do

saber possível e se associa ao poder da morte.

Neste momento também, a linguagem médica sofreria nova inflexão, as

palavras tiveram que adquirir mais refinamento descritivo para traduzir inteiramente a

percepção científica das lesões patológicas.158 A importância da cor, da consistência,

do tamanho, das comparações, das referências, etc. tudo o que pudesse apreender a

singularidade dos casos deveria ser detalhado. Um trabalho da linguagem que fazia

ver, fazia descobrir as percepções individualizadas da doença. Nas palavras de

Foucault, a seguir.

A linguagem e a morte atuaram, em cada nível dessa experiência e segundo toda a sua espessura, para finalmente oferecer a uma percepção científica o que durante muito tempo tinha permanecido como o invisível visível – proibição e iminente segredo: o saber sobre o indivíduo.159

É importante concluir que, para ele, a individualização passou a ser dada pelo

modo de adoecer, pelo patológico, ao se colocar a vida em referência ao mórbido, ao

ter a morte como a disposição subliminar. Explica-se, então, o privilégio do tísico na

modernidade: ele era a vida a quem a doença e a morte transmitiam uma fisionomia,

porque elas estavam visíveis em seu núcleo lírico. O entrelaçamento epistemológico

e poético em NC mostra o que existia nos arquivos médicos e nas imagens poéticas,

156 Ver em NC, p.172. Trad., p.186. 157 NC, p.169-70. Trad., p.183-4. No original : “un regard local et circonscrit”, “le regard limitrophe du

toucher et de l’audition”, “un regard absolu, absolument intégrant”, “quand le médecin observe, tous

ses sens ouverts, un autre œil est posé sur le fondamentale visibilité des choses ”, “l’œil absolu du

savoir”. 158 Ver em NC, p.173. Trad., p.187. 159 NC, p.174. Trad., p.188-9. No original : “Le langage et le mort ont joué à chaque niveau de cette

expérience, et selon toute son épaisseur, pour offrir enfin à une perception scientifique ce qui pour elle

était resté si longtemps l’invisible visible – interdit et imminent secret : le savoir de l’individu.”

91

nas lesões escavadas pulmonares e no lirismo poético: o semblante do tísico, sua

individualidade mórbida moderna.

O exemplo da medicina é decisivo porque foi o primeiro discurso científico

sobre o indivíduo. É que o homem ocidental só pode se constituir aos seus próprios

olhos como objeto da ciência, numa experiência discursiva, cuja relação obstinada

com a morte prescrevia sua singularidade, afirma Foucault.160 O princípio da

visibilidade e a nova objetividade levaram a linguagem médica à correlação estrita

entre o visível e o enunciável, e para que isso pudesse ocorrer, fora preciso o instante

de estabilidade visível do cadáver. O aprofundamento no corpo, então, cerrou a

experiência perceptiva à verdade científica. Deve-se reconhecer que foram as

mesmas condições de possibilidade que constituíram o médico como sujeito que

conhece, duplo objeto-sujeito que profere o discurso da medicina. O pensamento

científico que se formou no fim do século XVIII é que trouxe os poderes positivistas

para o médico, organizou seus métodos empíricos, tomou o papel da filosofia nas suas

reflexões, tranquilizou-o na presença da morte e o limitou ao saber da finitude. O

pensamento da finitude foi a condição que transformou os saberes na modernidade,

sendo a medicina o exemplo central das novas ciências do homem, embora existam

outros, como a psicologia e a sociologia.

Em MC, retomando as condições históricas de possibilidade da biologia, pode-

se também reconhecer as transformações no nível arqueológico que permitiram os

saberes da modernidade. Foucault descreve como as investigações de Cuvier, no

início do século XIX, diferiam das teorias taxonômicas da História Natural, e

mostravam outros princípios.161 Principalmente, por se dirigirem à organização interna

dos seres vivos e levarem em conta as funções (de respiração, digestão, circulação,

locomoção, reprodução, etc.) para formar outro plano geral classificatório dos seres

vivos, conforme as identidades funcionais dos seus órgãos. Na prática, esse princípio

reforçou a anatomia comparada, para a análise do espaço interior dos corpos, pois

era preciso recortar, retalhar, fracionar os espaços para fazer aparecerem as

semelhanças que poderiam passar invisíveis. Ainda, esteve interligado ao

estabelecimento da hierarquia dos órgãos, porque os mais visíveis e superficiais se

mostravam menos significativos do que os mais profundos e ocultos. Na teoria, foi se

160 Ver em NC, p.200-1. Trad., p.217. 161 Ver em MC, p.1322. Trad., p.362.

92

formando uma série de oposições entre o visível e o invisível, explicadas

resumidamente a seguir.162

O visível se manifestava nos órgãos secundários superficiais do corpo, mas

também nos órgãos sólidos em geral, por serem visíveis direta ou indiretamente; e era

o espaço da proliferação das diferenças. O invisível advinha dos órgãos primários, os

quais eram ocultos, essenciais, centrais e atingidos somente pela dissecção; pela

disposição da identidade que não se percebia na forma do órgão, mas na função por

debaixo que a prescrevia; e provinha da unidade focal, grande, misteriosa, profunda,

que aproximava e tramava segundo um plano vital invisível, todas as ramificações

possíveis de seres vivos. Assim, surge a noção de vida. A partir de Cuvier, é a vida, e

não mais a natureza, que se manifesta no enigma do ser vivo. No nível da arqueologia,

é o momento em que se instaura o saber da biologia.

Esse fundamento epistemológico da biologia introduziu um deslocamento

importante, porque a abordagem dos seres vivos passa a ser feita a partir da

historicidade e da finitude. O ser vivo deveria ser descrito na sua historicidade própria,

nas suas condições de existência – dependentes da água, do ar, do alimento, e de

outros elementos exteriores para a manutenção da vida, sem os quais a ameaça da

morte irrompia. A vida seria a força e a lei fundamental dos seres, a morte, o limite

inerente a ela.

Passando a palavra a Foucault.

A experiência da vida apresenta-se, pois, como a lei geral dos

seres, aclaramento dessa força primitiva a partir da qual eles são; [...]. Em relação à vida, os seres não passam de figuras transitórias e o ser que eles mantêm, durante o episódio de sua existência, nada mais é que sua presunção, sua vontade de subsistir. De sorte que, para o conhecimento, o ser das coisas é ilusão, véu que se deve rasgar, para se reencontrar a violência muda e invisível que os devora na noite.163

Pode-se reconhecer que a vida é o domínio epistemológico produzido nas

ciências modernas, invisível e exterior aos seres que, contudo, se manifestaria no

162 Ver em MC, p.1328-9. Trad., p.370-1. 163 MC, p.1339-40. Trad., p.384. No original : “L’expérience de la vie se donne donc comme la loi la

plus générale des êtres, la mise à jour de cette force primitive à partir de quoi ils sont ; […]. Par

rapport à la vie, les êtres ne sont que des figures transitoires et l’être qu’ils maintiennent, pendant

l’épisode de leur existence, n’est rien de plus que leur présomption, leur volonté de subsister. Si bien

que, pour la connaissance, l’être des choses est illusion, voile qu’il faut déchirer pour retrouver la

violence muette et invisible qui les dévore dans la nuit ”.

93

espaço obscuro dos seus corpos. E a morte é o limite inerente à vida, é a finitude

essencial dos seres vivos. Vida e morte estão interligadas.

Desta forma, entende-se porque Foucault suspeita dessa noção de vida, ela é

um ponto de articulação obscuro, inacessível, indefinido, e que se expressa no limite

que impõe aos seres, na sua finitude mortal. Foucault adverte, o pensamento

contemporâneo deve redescobrir o que foi esquecido, deve puxar os fios ocultos para

desatar essa trama sombria que formou a experiência da atualidade.

Ainda em MC, a analítica da finitude na modernidade é referida por Foucault

aos saberes que delimitam o homem na biologia, na economia política e na filologia.

Sinteticamente, as características dos saberes da finitude reunidas por ele seriam: (1)

sua anterioridade, pois são sempre prévios aos homens; (2) sua positividade, que

impõe limites materiais concretos; (3) sua indefinição, porque lhes escapa as

instabilidades do desejo, do corpo e da linguagem; (4) seu retorno sobre si, pois

respondem sempre à própria finitude; (4) e a repetição do mesmo.164 Esses saberes

não foram capazes de criar uma “metafísica da vida”, porém construíram a figura do

homem como ser finito empírico e transcendental, tipo positivista da redução e da

promessa não-cumprida, que estaria se dissolvendo.

Ele afirma que essa analítica da finitude deixou um vazio, que é como uma

fenda, denominada “impensado”, um espaço inerente ao próprio pensamento

moderno. É justamente nesse espaço vazio, na distância que separa a finitude e o

impensado, que enfim seria possível pensar novamente. Em MC, o impensado

aparece em dois sentidos, o primeiro é negativo, seria o esquecimento estratégico em

proveito da repetição do mesmo, e também um modo de ação que instala obstáculos

para um pensamento por vir. Por exemplo, esquece-se que a morte geminou no

pensamento moderno sobre a vida; ou se instala um domínio finito da vida, como se

a existência se repetisse ou como se o saber não fosse imprevisível. No segundo

sentido, o impensado é positivo, vem do ainda não-pensado, do não-conhecido, do

novo, explicado por Foucault, no extrato a seguir.

A questão não é mais: como pode ocorrer que a experiência da natureza dê lugar a juízos necessários? Mas sim: como pode ocorrer que o homem pense o que ele não pensa, habite o que lhe escapa sob a forma de uma ocupação muda, anime, por uma espécie de

164 Ver em MC, p.1375-81. Trad., p.430-9.

94

movimento rijo, essa figura dele mesmo que se lhe apresenta sob a forma de uma exterioridade extraordinária? Como pode o homem ser essa vida cuja rede, cujas pulsações, cuja força encoberta transbordam indefinidamente a experiência que dela lhe é imediatamente dada? Como pode ele ser esse trabalho, cujas exigências e cujas leis se lhe impõem como um rigor estranho? Como pode ele ser o sujeito de uma linguagem que, desde milênios, se formou sem ele, cujo sistema lhe escapa, cujo sentido dorme um sono quase invencível nas palavras que, por um instante, ele faz cintilar por seu discurso, e no interior da qual ele é, desde o início, obrigado a alojar sua fala e seu pensamento, como se estes nada mais fizessem senão animar por algum tempo um segmento nessa trama de possibilidades inumeráveis?165

Para o saber médico, o que seria “pensar o impensado”166? É preciso refletir

nos dois sentidos em que ele se apresenta, negativo e positivo, estratégico e

existencial.

Retorna-se, assim, à questão inicial deste trabalho: a lacuna do impensado que

murmura quando a morte expõe um saber científico ausente, e, nessas circunstâncias,

o que seria possível pensar, saber, dizer?

Em MC, Foucault faz um diagnóstico do pensamento da modernidade e

percebe um movimento histórico de transbordamento da analítica da finitude. Por isto,

ele tenta fazer descontrair os discursos do trabalho, da vida, da linguagem,

primeiramente, mostrando seus duplos impensados – o desejo, a morte, a lei –, e a

correspondente instabilidade da economia, da biologia e da filologia. Em seguida,

dizendo do impensado interno, o gêmeo, o outro, fraterno, inesgotável, insistente, sem

certezas, que tenta pensar por si mesmo.

O caminho buscado aqui talvez seja o de, nessa lacuna do impensado, na

vivência do momento, fazer constar a possibilidade dos novos pensamentos, dos

165 MC, p.1387. Trad., p.445-6. No original : “La question n’est plus : comment peut-il se faire que

l’expérience de la nature donne lieu à des jugements nécessaires ? Mais : comment peut-il se faire

que l’homme pense ce qu’il ne pense pas, habite ce qui lui échappe sur le mode d’une occupation

muette, anime, d’une sorte de mouvement figé, cette figure de lui-même qui se présente á lui sous la

forme d’une extériorité têtue ? Comment l’homme peut-il être cette vie dont le réseau, dont les

pulsations, dont la force enfouie débordent indéfiniment l’expérience qui lui en est immédiatement

donnée ? Comment peut-il être ce travail dont les exigences et les lois s’imposent à lui comme une

rigueur étrangère ? Comment peut-il être sujet d’un langage que depuis des millénaires s’est formé

sans lui, dont le système lui échappe, dont le sens dort d’un sommeil presque invincible dans les mots

qu’il fait, un instant, scintiller par son discours, et á l’intérieur duquel il est, d’entrée de jeu, contraint de

loger sa parole et sa pensée, comme si elles ne faisaient rien plus qu’animer quelque temps un

segment sur cette trame de possibilités innombrables ?” 166 MC, p.1391. Trad., p.451. No original : “toute la pensée moderne est traversée par la loi de penser

l’impensé”.

95

novos gestos descontraídos. Esses novos pensamentos não seriam irresponsáveis,

porque deveriam ter estratégias para se haverem com os outros saberes

historicamente constituídos; os novos gestos poderiam ser dos indivíduos que

procuram se conduzir por si mesmos nas duras tramas da existência, criando uma

experiência tolerável, fraterna, flexível.

Deve ser preciso mostrar a ambiguidade e a insuficiência da “claridade da

morte” das ciências do homem; e dizer do espaço para outros discursos, gestos

descontraídos, parte da arte médica, frente à dolorosa angústia da morte.

96

CAPÍTULO VI – RELAÇÕES DISCURSIVAS DO SABER MÉDICO

Deve-se retomar os três itens conjeturados a partir das reflexões sobre o

discurso médico desenvolvidas por Foucault em AS, e propostos para organização

deste trabalho no capítulo II: (1) discursos descritivos científicos; (2) olhar médico e

seus deslocamentos; (3) complexidade e dispersão das práticas discursivas. Trata-se,

a partir de agora, de elaborar o terceiro item, em que constam as interrogações sobre

as relações discursivas do saber médico; as funções sociais dos médicos e as

instituições que os reclamam; e o que bloquearia ou reduziria o discurso médico. A

ênfase será sobre os capítulos de NC que remetem a conteúdos, cujos momentos

podem servir de entrada para que esses objetivos sejam examinados, por exemplo:

os hospitais, as faculdades, as corporações médicas, a medicina das epidemias e as

reflexões sobre as relações discursivas.

Isto é importante porque é preciso situar a medicina em contexto com outros

saberes, ela não é desconectada de outros campos que dão significado à existência

e às condutas. Ainda, há outro motivo. Se já foi visto que os saberes sobre o homem

podem ser epistemologicamente ambíguos, é preciso ainda desafiar as certezas do

discurso médico relativamente à dispersão de suas práticas.

Jeannette Colombel, em seu livro escrito sobre o pensamento do amigo, Michel

Foucault, La clarté de la mort, afirma que ele contribuiu para ensinar uma experiência

crítica difícil e para levar ao desprendimento das certezas políticas e filosóficas da sua

época. Foucault fez irromper uma “incerteza intransponível”, mas fértil e exigente,

porque descomprime, multiplica, relativiza e complexifica a realidade.167

Colombel explica que a incerteza, para Foucault, nasce do acaso e do vazi o

sobre o qual se formam os discursos, as práticas e os espaços de ordem, sempre

emergindo da desordem e da dispersão, e por isto mesmo, produzindo “verdades

167 COLOMBEL, Jeannette. Michel Foucault, La clarté de la mort. Paris: Editions Odile Jacob,

1994.p.49. Leia-se : “Car l’incertitude est insurmontable : on n’a pas à vouloir la dépasser, elle ne

fonctionne pas sous le signe de l’alternative”.

97

fragmentárias e em suspenso”.168 Assim, os enunciados singulares se agrupam e se

cruzam para formar os discursos, se articulam com práticas e procedem aos jogos da

verdade. Ainda mais, quando a arqueologia estabelece as condições de possibilidade

das aparições e dos funcionamentos dos discursos, pode-se então perceber os vários

níveis de análise possíveis nos espaços históricos. No pensamento de Foucault, a

simultaneidade passa a fazer parte do tempo histórico, como uma dimensão em que

os discursos se relacionam e, mesmo nas suas contradições, refletem o mesmo solo

de pensamento de uma época. Em cada espaço comum, é possível identificar noções

que puderam ser pensadas e o funcionamento da ordem dos discursos.

Portanto, nesse capítulo, pretende-se percorrer as reflexões de Foucault sobre

as práticas discursivas da medicina e suas relações, conforme delineadas em NC.

168 Ibid., p.50. Leia-se : [des énoncés, des pratiques, des espaces d’ordre] émergent toujours d’un

désordre et d’une dispersion tels que les vérités auxquelles on parvient sont fragmentaires et en

suspens”.

98

1. Hospitais, corporações médicas, faculdades

Figura 3 – Plan détaillé du premier étage du nouvel Hôtel-Dieu

Auteur de l'ouvrage : POYET, Bernard

Ouvrage : Mémoire sur la nécessité de transférer et reconstruire l'Hôtel-Dieu de Paris, suivi d'un projet de

translation de cet hôpital

Edition : Paris, 1785

Technique: Gravure-Burin

Adresse permanente de cette image :

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?09587

99

O hospital foi o principal espaço relacionado ao novo saber clínico. Foucault

observa isso nos registros dos estudos e dos decretos para reforma dos hospitais e

das escolas de medicina. A recente história do hospital esteve ligada ao saber

científico, mas também aos acontecimentos políticos, visto que a virada nas funções

dessa instituição aconteceu durante o tempo turbulento da Revolução Francesa. O

hospital foi o lugar do desenvolvimento do método clínico, do ensino da medicina, do

cuidado dos doentes e, também, dos objetivos políticos da época.

Nas várias citações que Foucault faz dos decretos acerca dos hospitais –

fechamento, abertura, projetos, reformas, estatutos, etc. – ele usa o calendário

republicano francês, criado durante a Revolução.169 As numerosas propostas, por

conta do vai e vem das resoluções até que o hospital se tornasse a instituição como

se reconhece hoje, faz com que o leitor embaralhe as datas republicanas. É curioso

sentir esse incômodo da insistência em datas descompassadas da ordem habitual,

até se perceber que essas citações têm mesmo o intuito de demarcar o período da

intensa negociação das decisões acerca dos hospitais. E, ainda, que fora preciso o

deslocamento do olhar clínico, que aconteceria logo em seguida, para que as escolas

de medicina aí estabelecessem seu domínio. Isto porque, antes disso, o hospital

abrigava os pobres, os doentes sem família ou sem recursos, era somente um lugar

de caridade, de assistência ou de despejo

Identifica-se, portanto, a inter-relação política, econômica, revolucionária e

médica, em que convergem estrategicamente os diversos discursos para a

constituição de uma nova ordem geral. É interessante perceber que nos fundamentos

da medicina moderna aparecem os médicos, os doentes e as doenças, mas também

as leis, as decisões políticas, a racionalidade iluminista, a violência revolucionária –

todo esse conjunto articulado no tema do hospital.

No capítulo III de NC, “O Campo Livre”, Foucault relata que se estabeleceu uma

oposição política entre a medicina clássica das espécies patológicas e a nova

medicina do espaço social. O motivo era que se tentava neutralizar tudo o que

169 Os revolucionários franceses quiseram criar uma nova divisão cronológica dos anos, meses e

dias, que fosse laica e livre: o calendário republicano ou revolucionário. Esse calendário se iniciou em

22 de setembro de 1792 (1º dia do ano I) e se manteve até 31 de dezembro de 1805, quando o

calendário gregoriano foi reestabelecido por Napoleão I. Os meses do ano eram chamados de

Vendémiaire, Brumaire, Frimaire, Nivôse, Pluviôse, Ventôse, Germinal, Floréal, Prairial, Messidor,

Thermidor, Fructidor.

100

pudesse se opor à constituição de um campo de experiência médica inteiramente

aberto e homogêneo ao olhar médico, e também a um conhecimento fiel, exaustivo e

permanente da saúde de uma população, semelhante ao campo livre para o saber

com que sonhara a Revolução.170

Foucault conclui que “existe, portanto, um fenômeno de convergência entre as

exigências da ideologia política e as da tecnologia médica.”171 Políticos e médicos

usavam quase o mesmo vocabulário, embora por motivos diferentes, para se oporem

ao que pudesse impedir a criação de um novo espaço livre. Opunham-se às crenças

antigas do hospital como modificador das leis naturais da doença, às diferenças das

relações entre riqueza e pobreza, ou às corporações médicas que propunham um

saber centralizado e autossuficiente, e às faculdades que detinham a teoria e faziam

disto um privilégio social. No plano geral, políticos e médicos defendiam que a

liberdade deveria dar passagem à força viva da verdade, ao olhar livre de todo

obstáculo, sob a lei do imediato acesso ao verdadeiro em seu soberano domínio. Leia-

se:

O tema ideológico que orienta todas as reformas de estruturas

médicas, de 1789 até termidor, ano II [1795, queda de Robespierre], é o da soberana liberdade do verdadeiro: a violência majestosa da luz, que é seu próprio reino, abole o reinado obscuro dos saberes privilegiados e instaura o império sem limites do olhar.172

Instalou-se, por isto, um questionamento sobre o funcionamento dos hospitais.

Foucault relata que essa exigência da reorganização das edificações hospitalares se

desenvolvia em várias propostas que levavam em conta os pontos de vista da

consciência livre da doença, dos problemas práticos envolvidos e dos princípios a

serem adotados.

De início, nessa consciência social de livre acesso, foi proposta uma

centralização médica e econômica, que destinava às fundações hospitalares um papel

de assistência à pobreza, deixando os outros doentes aos cuidados domiciliares de

170 Ver em NC, p.37. Trad., p.40. 171 NC, p.37. Trad., p.41. Leia-se : “Il y a donc un phénomène de convergence entre les exigences de

l’idéologie politique et celles de la technologie médicale.” 172 NC, p.38. Trad., p.41. Leia-se : “Le thème idéologique, qui oriente toutes les réformes de structures

médicales depuis 1789 jusqu’à Thermidor an II, est celui de la souveraine liberté du vrai : la violence

majestueuse de la lumière, qui est à elle-même son propre règne, abolit le royaume obscur des savoir

privilégies et instaure l’empire sans cloison du regard.”

101

sua própria família. Contudo, enfrentaram-se dois problemas. Um problema de

natureza política e econômica, e outro, de natureza médica, envolvendo as doenças

complexas e contagiosas.

Da parte política e econômica, aconteceu que a Assembleia Legislativa não

decide por nacionalização dos bens hospitalares para compor a assistência comum à

saúde, em vez disto, prefere destinar verbas a um fundo de assistência. Não confia

também numa administração central única, mas entende que a consciência da doença

e da miséria deve ser geográfica e localmente especificada. A Assembleia decide por

um sistema aberto, com administrações locais, centros de transmissão essenciais,

para avaliar as necessidades e a distribuição da renda, formando uma rede múltipla

de vigilância. Na “comunalização”, descentralizada e confiada às instâncias locais, foi

preciso dissociar o problema da assistência e da repressão, os hospitais e as casas

de detenção deviam ser desvinculados. A consciência da assistência à doença se

tornava, então, descentralizada e autônoma, porque se dirigia a apenas um tipo de

miséria.173

Essa nova descentralização dos meios de assistência exigia a presença do

médico para organização dos auxílios, o que autorizava a “medicalização” dos

procedimentos. Foucault reconhece nas ideias de Cabanis (1819), a presença desse

“médico-magistrado”, descrevendo seus três papéis de vigilante na política da saúde

– técnico, econômico e moral, pois

é a ele que a cidade deve confiar a “vida dos homens” em lugar de “deixá-la à mercê dos astuciosos e das comadres”; é ele quem deve julgar se “a vida do poderoso e do rico não é mais preciosa que a do fraco e do indigente”, é ele, finalmente, que saberá recusar assistência “aos malfeitores públicos”. Além do papel de técnico de medicina, ele desempenha um papel econômico na repartição dos auxílios, um papel moral e quase judiciário em sua atribuição: ei-lo convertido no “vigilante da moral e da saúde pública”174

173 Cf. NC, p.40. Trad., p.44. 174 NC, p.40-1. Trad., p.44. Foucault está citando Cabanis, Du degré de certitude de la médecine, 3ª

ed. Paris, 1819, p.135 e 154. Leia-se : “On reconnaît là une familière à Cabanis, celle du médecin-

magistrat ; c’est à lui que la cité doit confier ‘la vie des hommes’ au lieu de ‘la laisser à la merci des

jongleurs et des commères’ ; c’est lui qui doit juger que ‘la vie du puissant et du riche n’est pas plus

précieuse que celle du faible et de l’indigent’ ; c’est lui enfin qui saura refuser les secours ‘aux

malfaiteurs publics’. Outre son rôle de technicien de la médecine, il joue un rôle moral économique

dans la répartition des secours, un rôle moral et quasi judiciaire dans leur attribution ; le voilà devenu

le ‘surveillant de la morale, comme de la santé publique’

102

Da parte do problema das doenças complexas e contagiosas é que o hospital

entrava nessa configuração das instâncias médicas para ser o local que assegurasse

a vigilância contínua.175 Foucault reconhece a influência das ideias dos médicos

Tenon e Cabanis, nas quais o hospital aparece como uma medida indispensável para

proteção das pessoas.176 Cabanis (1819) propunha, através da internação hospitalar,

a proteção das pessoas sadias contra a doença, o afastamento das práticas

ignorantes e a proteção dos doentes uns em relação aos outros. Tenon (1788)

projetava um espaço hospitalar para abrigar os doentes, conforme dois princípios: o

da “formação”, em que para cada hospital caberia uma categoria de doenças; e o da

“distribuição”, que definia a ordem nosológica a ser seguida no interior do hospital.

Portanto, o hospital, sendo um lugar complementar à família, deveria reproduzir a

configuração do mundo patológico natural. “Sob o olhar do médico de hospital, as

doenças serão agrupadas por ordens, gêneros e espécies, em um domíni o

racionalizado que restitui a distribuição originária das essências.”177 Dessa forma, o

hospital permitiria classificar os doentes para que cada um ocupasse o leito que

conviesse ao seu estado, sem difundir o contágio no hospital ou fora dele. “A doença

aí encontra seu elevado lugar e como que a residência forçada de sua verdade.”178

Foucault conclui que, nos projetos do Comitê de assistência, duas instâncias

estariam justapostas, constituídas por espaços e olhares complementares: a instância

ordinária (médico-social), na qual a distribuição da ajuda implicava na vigilância

contínua do espaço social e na formação de um sistema que interligasse postos

regionais medicalizados; e a instância extraordinária (médico-hospitalar), formada por

espaços hospitalares descontínuos, porque exclusivamente médicos, e estruturados

segundo o modelo do saber científico.179 A doença seria alvo de um duplo sistema de

175 Cf. NC, p.41. Trad., p.44. 176 Cf. NC, p.41. Trad., p.45. 177 NC, p.41. Trad., p.45. Leia-se : “Là, sous le regard du médecin d’hôpital, les maladies seront

groupées par ordre, genres et espèces, en un domaine rationalisé qui restitue la distribution originaire

des essences.” 178 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “a maladie rencontre là son haut lieu, et comme la résidence forcée

de sa vérité.” 179 Cf. NC, p.42. Trad., p.45.

103

observação: um olhar que a toma junto das misérias sociais; e outro olhar que a “isola

para melhor circunscrevê-la em sua verdade de natureza.”180

Seguindo as reviravoltas da Revolução Francesa, Foucault relata que os

hospitais continuavam a representar o estigma da miséria e do sofrimento e, por isso,

a Assembleia Legislativa (1792) pensava, ainda naquele momento, principalmente em

maneiras de suprimi-los. E assim, apesar dos diversos debates e propostas, ela levará

adiante uma organização da assistência pública direcionada ao sonho revolucionári o

de uma desospitalização completa, porque se acreditava que o hospital não resolvia

as necessidades da pobreza, apenas institucionalizava a miséria.

*

Pelo lado das corporações médicas, desde 1707, a prática e a formação dos

médicos tinham sido regulamentadas pelos decretos de Marly, pois já existia uma

preocupação com os charlatãos, que exerciam a medicina irregularmente, e com a

devida reorganização das faculdades de medicina.181 Mas, ao final daquele século, na

época da Revolução, o ensino médico recebera várias críticas, porque os charlatãos

continuavam aparecendo e as faculdades não asseguravam um ensino satisfatório.

Não havia um ensino prático, apenas teórico, fazendo com que o doutor tivesse que

seguir um prático renomado para se formar e, muitas vezes, isto era custoso. Como

resume Foucault a seguir.

A Revolução se encontra, portanto, diante de duas séries de reivindicações: uma, por uma limitação mais estrita do direito de exercer; a outra, por uma organização mais rigorosa do cursus universitário. Ora, as duas se opõem a todo esse movimento de reformas que tem por resultado a supressão das confrarias e corporações e o fechamento das universidades.

Daí uma tensão entre as exigências de uma reorganização do saber, a abolição dos privilégios e de uma vigilância eficaz da saúde da nação.182

180 NC, p.42. Trad., p.45. Leia-se : “La maladie est prise ainsi dans un double système d’observation :

il y a un regard qui la confond et la résorbe dans l’ensemble des misères sociales à supprimer ; et un

regard qui l’isole pour la mieux cerner dans sa vérité de nature.” 181 Decreto real de 18 de março de 1707, que reservava às faculdades francesas o direito de formar

os médicos que poderiam exercer a profissão em todo o seu território e estabelecia a reorganização

do ensino médico. 182 NC, p.45. Trad., p.49. Leia-se : “La Révolution se trouve donc en présence de deux séries de

revendications : les unes en faveur d’une limitation plus stricte du droit d’exercer ; les autres en faveur

d’une organisation plus rigoureuse du cursus universitaire. Or, les unes e les autres vont á l’encontre

104

Os revolucionários perguntavam por um possível livre exercício da medicina,

sem proteção de leis corporativas, sem proibições de seu exercício ou privilégios de

competência, por uma consciência médica que pudesse ser espontânea como a

consciência cívica ou moral.

Por outro lado, os médicos defendiam seus direitos corporativos, argumentando

que estes não representavam um privilégio, mas uma colaboração. O corpo médico

se distinguiria do corpo político, porque ele não tratava de limitar a liberdade ou impor

leis aos cidadãos, as regulamentações da medicina se impunham apenas ao seu

próprio exercício. Ainda, porque o objetivo do corpo dos médicos era a crítica e a

transmissão do saber, sem o qual a experiência adquirida poderia ser apagada. Se

médicos e cirurgiões unidos formavam um corpo necessário à sociedade, exigia-se

uma atenção da autoridade legislativa para prevenir os abusos e não autorizar o

exercício livre da medicina, assim preservando os cidadãos dos erros que isso

acarretaria.

Nesta época, Foucault lembra, existia ligação entre o problema do exercício da

medicina e os anseios políticos da Revolução, a saber, “o problema do exercício da

medicina estava ligado a outros três: supressão geral das corporações, o

desaparecimento da sociedade de medicina e, sobretudo, o fechamento das

universidades.”183 Por isso, Foucault continua, existiam vários projetos de

reorganização das escolas de medicina, que podiam ser agrupados em dois polos:

uns com persistência das estruturas universitárias; e outros, propondo seu

fechamento, conforme o decreto de 17 de agosto de 1792.

No primeiro grupo, o dos “reformistas”, surgem as ideias de manter poucas

faculdades, com cadeiras de qualidade e sob controle do Estado. Sobretudo, seria

necessário adicionar um ensino prático, em que os médicos seriam enviados aos

hospitais ou ao campo para visitar os doentes e conhecer as doenças de cada clima

e se informar sobre os métodos e seus resultados.

de tout ce mouvement de réformes qui aboutit à la suppression des jurandes et corporations, et à la

fermeture des universités. De là, une tension entre les exigences d’une réorganisation de savoir,

celles de l’abolition des privilèges, celles enfin d’une surveillance efficace de la santé de la nation .” 183 NC, p.46. Trad., p.50. Leia-se : “Mais le problème de l’exercice de la médecine était lié à trois

autres : la suppression générale des corporations, la disparition de la société de médecine, et surtout

la fermeture des universités.”

105

Foucault observa uma dissociação entre o ensino prático e o ensino teórico

universitário, e embora a medicina já possuísse conceitos para unificação do ensino,

a unidade da clínica no hospital ainda não fora proposta, nem pelos reformadores. A

formação prática não era a aplicação do saber abstrato da medicina das espécies,

não era confiada aos professores, ela só poderia ser adquirida por outros meios de

atuação do médico na sociedade. A medicina prática era vinculada à utilidade social,

e deixada quase por conta da iniciativa privada, enquanto o Estado controlava o

ensino teórico. Foucault percebe que os reformadores pretendiam deixar a assistência

individual à iniciativa privada e manter os hospitais para as doenças mais complexas;

e sobre o ensino, pensavam de forma inversa, tornar o ensino na universidade

obrigatório e público; e no hospital, privado e competitivo. Ele conclui que as regras

do saber e da percepção médica ainda não estavam sobrepostas, por isso os espaços

não convergiam. A prática médica se dividia entre o campo livre do exercício em

domicílio e o campo fechado e limitado pelas verdades das espécies. O ensino se

dividia entre o domínio fechado do saber transmitido e o campo aberto, em que a

verdade falava por si mesma. O hospital também refletia essa dupla função: de lugar

das verdades sistemáticas para o olhar classificatório do médico e das experiências

livres do ensino prático.

No segundo grupo, estão projetos dos que desejavam o fechamento das

instituições. Alguns, os girondinos, pediam um liberalismo no ensino das ciências e

das artes, em que a iniciativa individual sobrepujaria as corporações. Outros, nos

desdobramentos posteriores, os da Montanha e os próximos a Robespierre,

propunham o ensino centralizado e controlado pelo Estado. Ainda, Bouquier,

ofereceria um plano misto. Contudo, após agosto de 1792 e a dissolução da

Assembleia Legislativa, nada fora concluído e, com a nacionalização dos hospitais, a

proibição das corporações e o fechamento das universidades, acabaram assim se

desfazendo essas dualidades entre teorias e práticas. Foucault afirma que essa

dificuldade de encontrar as soluções é surpreendente, porque havia uma consciência

teórica dos problemas, o que seria redescoberto depois na medicina clínica.

Para Foucault, na reorganização do ensino e da técnica da medicina havia uma

lacuna: a falta de um modelo novo, unitário, coerente, para a formação dos objetos,

das percepções e dos conceitos médicos. Seria necessária uma mutação em

profundidade, para que ocorresse a unidade política e científica da instituição médica.

106

Os temas da luz e da liberdade do olhar, o grande mito do olhar livre que

descobre e dissipa as sombras continuava presente, mas se tornara, na verdade, um

obstáculo a essa unidade exigida do conhecimento e da prática médica. Não foi pela

suposta liberação das ciências e evolução das práticas, foi nos discursos que esta

unidade efetivamente nasceu, na transformação dos saberes. Foucault reflete que em

proveito de uma história que liga a fecundidade clínica a um liberalismo científico,

político e econômico, esquece-se que ele foi, durante anos, o tema ideológico que

serviu de obstáculo à organização da medicina clínica.184

*

Hospitais, corporações médicas e faculdades são temas interligados na

história. No capítulo V, “A lição dos hospitais”, Foucault descreve as transformações

da pedagogia médica no século XVIII. Elas vão desde os escritos de Vicq d’Azyr, do

início daquele século, que conclamava para que as experiências nos hospitais com os

doentes fossem usadas para o ensino, até a ampla reorganização posterior do

conhecimento médico se instaurar na clínica, na qual Cabanis teve importância como

reformador.

Ele lembra novamente que, para que a nova experiência de ensino teórico de

medicina fosse possível, foi preciso retornar à crença ingênua da luz iluminadora do

olhar como fundadora de um novo começo para a verdade, conforme as teorias dos

ideólogos iluministas. Porque antes, a pedagogia se baseava na teoria de

representação clássica e no encadeamento das ideias.

Desde esse período, uma figura emblemática era o charlatão, contra o qual a

medicina e a política deveriam se unir para combater. Ele aparece, como se viu, sendo

um dos motivos da reforma hospitalar, cujo objetivo seria proteger o povo da

proliferação e dos efeitos dos “charlatãos mistificadores”.185 Neste capítulo, essa

figura retorna, como um dos motivos da reforma e do controle do ensino da medicina.

Com a nacionalização dos hospitais e a abolição das faculdades, pelos motivos

revolucionários, a população acabou ficando desassistida, as doenças e os problemas

184 Cf. NC, p.52. Trad., p.56. 185 NC, p.45-6. Trad., p.49. Leia-se : “Le corps de médecins se critique lui-même plus qu’il ne se

protège, et il est, de ce fait, indispensable pour protéger le peuple contre ses propres illusions et les

charlatans mystificateurs.”

107

se multiplicaram, porque os doentes foram enviados para casa e os recursos

confiscados. Além disso, muitos médicos foram recrutados para o exército e partiram

para a guerra, o que trouxe liberdade para que os empíricos pudessem agir com

resultados desastrosos, conforme relatos da época. A formação dos oficiais de saúde,

para atuar entre os militares ou para a população civil, era apressada e insuficiente e

também existiam várias denúncias de estragos e mortes causadas pelos seus erros.

Aconteceu então, que se voltou a reivindicar o controle e uma nova legislação para a

formação dos médicos e o combate aos charlatãos.

Surgiram de todos os lados várias reclamações e reações que exigiam novas

medidas para a criação de hospitais e o retorno das faculdades. Foucault mostra uma

certa divisão nesse momento, porque, ao hospital, continuava-se a pedir uma função

de assistência aos doentes pobres; e sobre as faculdades, eram as classes

esclarecidas e os círculos de intelectuais que propunham a volta da sua legalidade e

o controle daqueles que desejavam exercer a medicina. Paralelamente, antigos

professores continuavam a reunir interessados e realizar o ensino nas visitas ao leito,

em caráter privado, emitindo um diploma não-oficial. Numa passagem esclarecedora

de NC a seguir:

Montpellier oferece um exemplo, bastante raro sem dúvida, de encontro dessas diversas formas de reação: vê-se aparecer, ao mesmo tempo, a necessidade de formar médicos para o Exército, a utilização das competências médicas consagradas pelo Antigo Regime, a intervenção das assembleias populares e da administração e o esboço espontâneo de uma experiência clínica. Baumes, antigo professor da universidade, foi designado, tanto por causa da sua experiência, quanto por suas opiniões republicanas, para exercer a medicina no hospital militar de Saint-Eloi. Devia por essa razão, fazer uma escolha entre os candidatos às funções de oficiais de saúde; mas, como nenhum ensino estava organizado, os alunos de medicina intervieram junto à sociedade popular e esta, por uma petição, obteve da administração do distrito a criação de um ensino clínico no Hospital Saint-Eloi, atribuído a Baumes. No ano seguinte, 1794, Baumes publica o resultado de suas observações e de seu ensino: “método de curar doenças segundo seu aparecimento durante o ano medicinal.” 186

186 NC, p.67. Trad., p.73. Foucault está citando A. Girbal, Essai sur l’esprit de la clinique médicale de

Montpellier, Montpellier, 1858, p.7-11. Leia-se : Montpellier offre un exemple, assez rare sans doute,

de rencontre entre ces diverses formes de réaction : on y voit apparaître à la fois la nécessité de

former des médecins pour l’armée, l’utilisation des compétences médicales consacrées par l’Ancien

Régime, l’intervention des assemblées populaires, celle aussi de l’administration et l’esquisse

spontanée d’une expérience clinique. Baumes, ancien professeur á l’université, avait été désigné, à la

fois à cause de son expérience et de ses opinions républicaines pour exercer à l’hôpital militaire de

Saint-Eloi. A ce titre, il devait faire un choix parmi les candidats aux fonctions d’officiers de santé ;

108

Nesse local exemplar de Montpellier, escola que formou clínicos como Pinel e

Bichat, vê-se o exemplo do entrecruzamento dos interesses sociais, institucionais,

técnicos e científicos que esboçavam o nascimento da medicina clínica. Foucault

explica que ali se formava um campo médico “misto” e “fundamental”. Misto porque

teoria e prática se encontram, e fundamental, porque não se tratava de um

conhecimento anterior demonstrado na prática hospitalar, mas de uma nova forma de

olhar o objeto do conhecimento médico e descobrir a verdade ao mesmo tempo em

que ensinava.

Portanto, paradoxalmente, foi a abolição do velho hospital e das universidades

que permitiu o novo campo concreto da experiência médica, onde se estabeleceu o

modo de ensinar dizendo e de aprender vendo, através do qual o olhar médico passou

a descobrir a verdade da doença na forma de ser da medicina clínica moderna. O

método pedagógico passa a ser também o método de pesquisa e do conhecimento.

Noutra passagem esclarecedora abaixo, observa-se como Foucault explica a

ruptura final que houve, ao término da Convenção (1794), nas propostas de

reestruturação do hospital e do ensino médico. Diz que não se tratou de uma reação

às causas sociais ou de um progresso científico, mas de um momento muito preciso,

no final do século XVIII, em que as coerências históricas levaram ao nascimento da

clínica moderna. A vontade de saber no “campo livre”, tal a necessidade do verdadeiro

no domínio aberto ao olhar, é que irá criar as práticas e os novos modos de

funcionamento das instituições e dos saberes da época.

Não há razão para espanto se, bruscamente, no final da Convenção, o tema de uma medicina inteiramente organizada em torno da clínica ultrapassa o de uma medicina, dominante até 1793, restituída à liberdade. Não se trata, para dizer a verdade, nem de uma reação (se bem que as consequências sociais tenham sido geralmente “reacionárias”), nem de um progresso (se bem que a medicina, como prática e como ciência, dele se tenha, por mais de uma razão, beneficiado); trata-se da reestruturação, em um contexto histórico preciso, do tema da “medicina em liberdade”: em um domínio liberto,

mais comme aucun enseignement n’était organisé, les élèves en médecine intervinrent auprès de la

société populaire ; et celle-ci, par une pétition, obtint de l’administration du district la création d’un

enseignement clinique à l’hôpital Saint-Eloi et celui-ci est attribué à Baumes. L’année suivante, en

1794, Baumes publie le résultat de ses observations et de son enseignement : ‘Méthode de guérir les

maladies suivantes qu’elles paraissent dans les cours de l’année médicinale.”

109

a necessidade do verdadeiro que se impõe ao olhar vai definir as estruturas institucionais e científicas que lhe são próprias.187

Por exemplo, as propostas iniciais de Fourcroy, que fora encarregado de

apresentar à Convenção um relatório sobre a criação de uma nova Escola de Saúde

em Paris, tinham o objetivo de formar oficiais de saúde para os hospitais e o exército,

e de evitar a atuação dos charlatãos. Ele propunha o novo “saber aberto”, identificado

com a natureza, ramificado para todo o corpo social, em que todos poderiam ser

admitidos para aprender a arte de curar, principalmente nas práticas das experiências

químicas, nas dissecções e nas cirurgias, e em que todo o povo seria beneficiado por

sua utilidade. Foucault diz: “a clínica se torna, portanto, um momento essencial da

coerência científica, mas também da utilidade social e da pureza política da nova

organização médica”.188 Vê-se, então, que a clínica moderna é o saber que foi se

constituindo nos hospitais-escola, sob o domínio do olhar médico, e inter-relacionado

às leis sociais e políticas.

No longo excerto de NC abaixo, vê-se Foucault descrever o programa do curso

de medicina na Escola de Paris, uma das três que foram criadas no decreto de 14 de

frimário do ano III (1795) – Paris, Montpellier e Estrasburgo, retomado das propostas

de Fourcroy. Se no capítulo III.3 deste trabalho, ao se abordar a protoclínica, citando

as recomendações de Tissot (1785), observa-se com certa surpresa que o exame

clínico persiste praticamente o mesmo até hoje, na citação a seguir, continua a

surpresa, ao se notar que o programa dos cursos de medicina persiste igualmente

quase o mesmo.

Em Paris, a “classe dos iniciantes” estuda no primeiro semestre anatomia, fisiologia e química médica; no segundo, matéria médica, botânica e física; durante todo este ano, os alunos deverão frequentar os hospitais “para adquirir o hábito de ver os doentes e a maneira geral de tratá-los”. Na “classe dos iniciados”, estuda-se, primeiramente, anatomia, fisiologia, química, farmácia, e medicina operatória; em seguida, matéria médica e patologia interna e externa; durante este

187 NC, p.68. Trad., p.74. Leia-se: “Il ne faut pas s’étonner si brusquement, à la fin de la Convention, le

thème d’une médecine tout entière organisée autour de la clinique, déborde celui, dominant jusqu’en

1793, d’une médecine restituée à la liberté. Il ne s’agit à vrai dire ni d’une réaction (bien que les

conséquences sociales en aient été généralement ‘réactionnaires’, ni d’un progrès (bien que le

médecine, comme pratique et comme science, en ait à plus d’un titre bénéficié) ; il s’agit de la

restructuration, dans un contexte historique précis, du thème de la ‘médecine en liberté’ : dans un

domaine libéré, la nécessité du vrai qui s’impose au regard va définir les structures institutionnelles et

scientifiques qui lui sont propres.” 188 NC, p.70. Trad., p.76. Leia-se: “La clinique devient donc un moment essentiel à la cohérence

scientifique, mais aussi à l’utilité sociale et à la pureté politique de la nouvelle organisation médicale ”.

110

segundo ano, os estudantes poderão “ser empregados no serviço dos doentes” nos hospitais. Finalmente, durante o último ano, os cursos precedentes são retomados e, aproveitando a experiência hospitalar já adquirida, iniciam-se as clínicas propriamente ditas. Os alunos se revezam em três hospitais, ficando quatro meses em cada um. A clínica compreende duas partes: “no leito de cada doente o professor deter-se-á o tempo necessário para interrogá-lo de modo satisfatório, para examiná-lo convenientemente; fará os alunos observarem os signos diagnósticos e os sintomas importantes da doença”; em seguida, o professor retomará no anfiteatro a história geral das doenças observadas nas salas do hospital: indicará as causas “conhecidas, prováveis e ocultas”, enunciará o prognóstico e dará as indicações “vitais”, “curativas” ou “paliativas”.189

A clínica, na sua forma inicial, buscava um equilíbrio entre o ensino prático e

teórico e já passara a incorporar as aspirações sociais, mesmo que ainda estivesse

vinculada ao conhecimento geral da natureza. Contudo, as escolas que foram criadas

não resolveram os problemas, porque não se conseguia formar médicos qualificados,

por falta de adesão e de exames de seleção. A Assembleia recebia reclamações dos

problemas causados pela pouca formação dos práticos, pela atuação livre na

medicina e da falta de legislação eficaz. Portanto, ainda havia duas questões: controle

do exercício da medicina e formação de mais e melhores técnicos.

Neste momento, as sociedades médicas tiveram novo impulso e assumiram a

tarefa de divulgar as queixas por melhor assistência médica, e assim poder

argumentar para exigir a proteção legal da profissão médica e suas competências.

Foucault diz que a primeira sociedade que voltou a se formar, postulava ser uma

entidade liberal e neutra, destinada somente a reunir e prestar informações gerais

sobre as observações e experiências da arte de curar, dentro do espírito social da

época. Contudo, ele afirma que a preocupação verdadeira era reagrupar os médicos

189 NC, p.71. Trad., p.77. Leia-se: “A Paris, la ‘classe des commençants ’ étudie au premier semestre

l’anatomie, la physiologie, la chimie médicale, au second, la matière médicale, la botanique, la physique : tout au cours de l’année, les élèves devront fréquenter les hôpitaux ‘pour y prendre

l’habitude de voir les malades, et la manière générale de les soigner’. Dans ‘la classe des

commencés’, on étudie d’abord l’anatomie, la physiologie, la chimie, la pharmacie, la médecine

opératoire, puis la matière médicale, la pathologie interne et externe ; au cours de cette seconde

année, les étudiants pourront, dans les hôpitaux, ‘être employés au service des malades’. Enfin, au

cours de la dernière année, on reprend les cours précédents, et, profitant de l’expérience hospitalière

déjà acquise, on commence les cliniques proprement dites. Les élèves sont répartis dans trois

hôpitaux où ils resteront quatre mois puis changeront. La clinique comprend deux parts : ‘Au lit de

chaque malade, le professeur s’arrêtera le temps nécessaire pour le bien interroger, pour l’examiner

convenablement ; il fera remarquer aux élèves les signes diagnostiques et les sympt ômes importants

de la maladie’; puis, à l’amphithéâtre, le professeur reprendra l’histoire générale des maladies

observées dans les salles de l’hôpital : il en indiquera les cause ‘connues, probables e cachées ’, il énoncera le pronostics, et donnera les indications ‘vitales’, ‘curatives’ ou ‘palliatives’. ”

111

com competência validada e restabelecer limites para o exercício da medicina. Outras

sociedades vão se formando, e logo foi fundada uma que bem representava essas

aspirações: “no mesmo ano [1795], em 5 de messidor, outra sociedade realiza sua

sessão inaugural em Paris, com Alibert, Bichat, Bretonneau, Cabanis, Desgenettes,

Dupuytren, Fourcroy, Larrey e Pinel.”190

Houve um intenso debate sobre a regulamentação da medicina, por conta do

art. 356 da Constituição do Diretório (1795-1799), o qual previa que todas as

profissões que interessavam à saúde dos cidadãos deviam ser vigiadas. Era preciso

saber como reorganizar o ensino e estabelecer as condições de acesso ao exercíci o

da medicina. De um lado do debate político, estavam os mais próximos do espírito da

Convenção (1792-1794), esses desejavam um modelo aberto de ensino e o livre

acesso; e, de outro, em torno de Cabanis e Pastoret, os que defendiam um corpo

médico fechado. Alguns projetos foram redigidos, seguindo a linha daquele de

Fourcroy, por exemplo os de Daunou, Calès, Pastoret, Vitet, mas não se conseguia

chegar a um acordo quanto ao número de escolas e quanto à instituição de um exame.

Alguns argumentavam que numerosas escolas poderiam não preservar a qualidade

do ensino, e que os candidatos deveriam apresentar aptidão para exercer a medicina.

Foucault percebe que o que estava em jogo implicitamente nesses debates era

o próprio exercício da medicina, tratava-se de um impasse político, mas também

conceitual, para definição da especificidade da profissão médica.191 Por exemplo, Vitet

propõe diante do Conselho dos Quinhentos, em linhas gerais, a necessidade de cinco

escolas de medicina, um conselho de saúde para se ocupar das epidemias e da saúde

da população, da seleção de professores e do exame prático de admissão.

“Encontram-se assim reunidos, pela primeira vez, em um quadro institucional único ,

os critérios do saber teórico e os de uma prática que só pode estar ligada à experiência

e ao hábito.”192

190 NC, p.74. Trad., p.80. Leia-se: “La même année, le 5 messidor, une autre société tient sa séance

inaugurale à Paris avec Alibert, Bichat, Bretonneau, Cabanis, Desgenettes, Dupuytren, Fourcroy,

Larrey e Pinel.” 191 Ver em NC, p.78. Trad., p.85. 192 NC, p.78. Trad., p.84. Leia-se: “Ainsi se trouvent réunis, pour la première fois, dans un cadre

institutionnel unique les critères du savoir théorique et ceux d’une pratique qui ne peut être liée qu’à

l’expérience et l’habitude.”

112

É com a intervenção dos Ideólogos que a reorganização tem andamento em

1802, após Termidor (queda de Robespierre) e o 18 Brumário (no império

napoleônico), retomando principalmente um relatório de Cabanis sobre a polícia

médica.193 Cabanis procurou formular uma “teoria da profissão médica”, abordando

aspectos da prática, da natureza da profissão e de sua fiscalização. Foucault a

considera importante, porque ditará o estatuto que a medicina moderna conservou,

como uma profissão liberal e protegida.

No texto de Cabanis, o acesso à prática médica se dava por critérios de aptidão,

o candidato teria de passar por prova escrita, prova oral e exames de anatomia,

técnica operatória e medicina clínica. “Toda pessoa que exerça a medicina sem haver

feito os exames das escolas, ou sem ter passado perante júris especiais, será

condenada a uma multa e à prisão, em caso de reincidência.”194 A medicina se

tornaria, então, uma profissão fechada. Mas, a questão principal desse texto,

conforme Foucault, era configurar a natureza da profissão médica. Cabanis enfrentava

o problema de tornar a medicina um domínio fechado e reservado, mas sem adotar

as formas corporativas do Antigo Regime, nem permitir o controle estatal, como existiu

na Convenção revolucionária. Ele constrói seus argumentos baseando-se nos

193 Cabanis (1757-1808) desempenhou um papel central na medicina do fim do século XVIII na

França, por ter atuado nas instituições de ensino e nos hospitais, ter participado das resoluções sobre

a profissão médica, e integrado o círculo filosófico e político da época. Ele foi um exemplo de

personagem médica requisitada a exercer funções em domínios exteriores à medicina, pela

legitimidade dada ao seu discurso. Cabanis, no início da sua vida médica, ingressou no “Salão dos

Ideólogos”, na residência da viúva Helvétius, onde conviveu com pensadores da “Ideologia”, que

significava um conjunto de preceitos prestigiosos no período da Revolução e do Império franceses, e

pregava a Análise das ideias, pela observação cuidadosa dos fenômenos. Através desse círculo,

Cabanis entrou em contato com Condillac, Diderot, d’Alembert, Condorcet, Laplace, Mirabeau e Pinel,

entre outros. Por conta da sua publicação Observations sur les hôpitaux (1790), foi nomeado membro

da Comissão de Reforma dos Hospitais (1791-1793). Quando a Convenção organizou as Escolas

Centrais, em 1794, Cabanis foi nomeado professor de higiene. Em 1795, ele foi eleito membro do

Instituto Nacional da França, para as sessões de ciências morais. Na criação das Escolas de Saúde,

que sucederam ao fechamento temporário das Faculdades de Medicina em Paris, Montpellier e

Strasbourg, Cabanis tornou-se professor assistente da École Perfectionnement; em seguida,

assistente de Corvisart na cadeira de medicina interna, e depois professor titular da cadeira de

história da medicina e medicina legal. Em 1797, Cabanis foi eleito deputado para o Conselho dos

Quinhentos, instância legislativa da França revolucionária. Tendo aprovado o golpe de 18 Brumário,

com a dissolução do Diretório, foi então nomeado senador do Império. Mas acabou se afastando do

Senado, por deterioração da sua relação com Bonaparte. Ver em: CANGUILHEM, Georges. Cabanis,

Pierre-Jean-Georges. In: Complete Dictionary of Scientific Biography. 2008. Consultado em:

encyclopedia.com. 14 oct 2014.

194 NC, p.79. Trad., p.86. Leia-se: “Toute personne qui exercera la médecine sans avoir les examens

des écoles ou sans être passée devant les jurys spéciaux sera condamnée à une amende et à la

prison en cas de récidive ”. Foucault está citando Cabanis, Rapport du Conseil des Cinq-Cents sur un

mode provisoire de police médicale, 4 de messidor, ano VI, p.12-18.

113

princípios da liberdade da economia. Cabanis descreve que existem dois tipos de

“indústrias”, aquelas em que o próprio consenso pode determinar seu valor, pois ele

é exterior e está aparente para os consumidores; e há outras, as do mercado do ouro

e da medicina, em que é preciso fixar um valor, pois ele é intrínseco, não visível,

sujeito a erro, e esta tarefa deveria ser delegada ao Estado. No caso do ouro, seria

fixado um valor mercantil, mas no caso da medicina é diferente, porque ela assiste ao

indivíduo humano, sobre quem os erros são funestos. A avaliação da medicina recairia

na fiscalização dos próprios médicos, atribuindo-se um valor pela competência. A lei

de 19 de ventoso do ano XI (1802), enfim regulamenta a profissão médica adotando

a linha das propostas de Cabanis e dos Ideólogos.

Foucault conclui em quatro pontos.195 (1) Para definir o caráter fechado da

profissão médica, dentro de um liberalismo econômico, o princípio e o valor será de

quem realiza o ato médico, em que contará a competência, a experiência e a

“probidade reconhecida”. (2) Introduziu-se uma diferença, de um lado os doutores e,

do outro, os oficiais de saúde, por grau de experiência e pela formação. (3) Isto levaria

à outra divisão, pois enquanto os doutores se dedicariam às doenças mais complexas,

os oficiais poderiam se dedicar às doenças mais simples do povo. (4) Por fim, somente

os médicos terão acesso à formação clínica, os oficiais serão o equivalente a um

prático com atividade controlada.

Concomitantemente, o impasse sobre o retorno dos hospitais também se

resolve. A lei de nacionalização dos bens hospitalares fora revogada em favor da

“comunalização” da assistência, deixada por conta dos municípios. Nesta época,

Foucault chama atenção, a miséria era generalizada e cada municipalidade deveria

dar conta de proteger os pobres e de se proteger. Os hospitais tomam parte nessa

dupla tarefa de proteção e, nesse momento, Foucault diz, surge um pacto estranho e

subliminar. Passa a haver interesse em ajudar aos hospitais, para que ali se

desenvolvam os tratamentos e as curas das doenças, e os mais pobres, que se

internam em busca de auxílio, acabam se submetendo ao ensino e às experiências

médicas. Portanto, diz Foucault, o domínio do hospital se tornou ambíguo moralmente,

porque teoricamente é livre para a relação entre o médico e seu paciente, mas há um

195 Ver em NC, p.81. Trad., p.88.

114

vínculo de utilidade ao qual o pobre se submete, enquanto se torna objeto de instrução

e de observação clínica.

*

O hospital foi um espaço que deu as condições de possibilidade ao nascimento

da clínica, porque nele o olhar médico se tornou absoluto sobre a doença e

estabeleceu o seu domínio nos aspectos práticos, teóricos e técnicos. Além disso, em

torno do tema do hospital se articularam discursos políticos e sociais relevantes para

a constituição da medicina clínica moderna.

Existiram personagens, abordados por Foucault, que possibilitaram

concretamente o novo saber médico, na constituição das suas práticas, teorias e

discursos. Foi uma convergência de médicos que ocuparam posições políticas

decisivas, principalmente entre os Ideólogos. Por exemplo, Cabanis estava ligado à

teoria da profissão medica e à nova proposta de sua regulamentação. Pinel fora

reconhecido por se dedicar ao método clínico. Mas também, Tenon que trabalhou nos

estudos higienistas e projetos hospitalares, especialmente do Hôtel-Dieu de Paris, no

qual a planta privilegiava a distribuição e a vigilância dos doentes. Bichat e a anatomia

patológica. Broussais e os princípios da fisiologia normal ou patológica. Todos são

personagens da constituição da medicina clínica, no final do século XVIII e início do

século XIX, vindos desse momento muito preciso da história carregado de

transformações políticas e sociais. Esse conjunto material discursivo parece que se

continua na medicina da atualidade, como se vê na persistência da mesma maneira

de funcionamento do exame clínico, dos cursos de medicina, dos hospitais, e das

mesmas questões sobre a profissão médica.

Os debates políticos acerca dos hospitais levantaram certas questões que

acompanham a medicina desde o fim século XVIII, e que podem ser resumidas como

sendo: o corporativismo e as sociedades médicas na defesa dos seus interesses e da

pedagogia médica, com os charlatãos no polo oposto; o individualismo da profissão

médica pelo valor de competência do seu exercício; a atribuição à medicina de um

valor não mercantil; a existência de certa oposição entre o Estado e a medicina,

levando mesmo à interferência das leis de interesse do Estado para controlar o

exercício da medicina e, enfim, a emergência da medicina social. Deve valer a pena

115

analisar melhor as dualidades presentes nesse momento histórico, para compreender

porque faz cerca de trezentos anos que se vem repetindo os mesmos argumentos.

Vai-se encaminhando à compreensão de que a medicina se tornou uma

espécie de “elo passivo” que articulava as diversas práticas discursivas políticas aos

corpos dos doentes e às populações. Mas, talvez, desde que as sociedades

profissionais e os espaços hospitalares fechados foram mantidos sob o domínio dos

médicos, justificou-se aceitar que o controle pelo Estado fosse incorporado às práticas

médicas no campo social. Então, a medicina clínica tornou-se mais do que um elo

passivo que possibilitava os mecanismos de controle sobre os indivíduos, porque a

mentalidade política da época passou a fazer parte das condições de emergência do

novo discurso médico. No discurso médico moderno, além do vital, entrou em jogo o

social.

2. Medicina das epidemias

Esquematicamente, conforme o pensamento de Foucault em NC, o saber

médico moderno se constituiu através de certa geometria discursiva dos corpos e de

uma geografia da doença.

Na geometria dos corpos, a analítica de Condillac fora a inspiração para o

estabelecimento de uma lógica orgânica descritiva que se fundava em ver e

dizer a doença, sendo que a anatomia patológica estabeleceu as relações de

geometrização no interior dos corpos. Esses modelos ligavam o saber do

indivíduo à sua própria finitude, e foram inicialmente os principais fundamentos

para o positivismo da medicina.

Na geografia da doença, pode-se acompanhar a experiência médica em três

espaços privilegiados: (1) no corpo anatômico; (2) no hospital e, agora, (3) no

espaço social. Com a expansão do campo de ação do discurso médico, novas

formas de relações discursivas se estabeleceram e outros fundamentos foram

adicionados à positividade da medicina, é o que se verá em seguida.

116

No capítulo II de NC, “Uma Consciência Política”, Foucault analisa como o

acontecimento das epidemias fez com que a medicina do século XVIII voltasse

definitivamente o seu olhar para os fenômenos gerais da população e redobrasse o

seu espaço de atuação para regiões geográficas mais extensas do que o hospital. Era

a cidade inteira que deveria ser o objeto do saber, não somente o indivíduo doente.

Embora não se reconhecesse muito bem como os “miasmas” e os “fermentos”

poderiam transmitir a febre maligna, a varíola, a disenteria, entre outras, essa não era

uma questão fundamental para a medicina da época, porque a epidemia era tida como

a ação de uma causa geral e singular que se abatia acidentalmente uma vez em um

local, por exemplo, Marselha em 1721, Bicêtre em 1780, Rouen em 1769, Paris em

1785. Então, foi a problematização das epidemias que fez com que as análises

populacionais e os fenômenos climáticos, topográficos, físicos, higiênicos, de

distribuição local devessem ser observados, descritos, controlados, regulamentados.

Foucault afirma que no final do século XVIII outra forma de experiência da

medicina estava em vias de se institucionalizar e de se constituir, porque a observação

das epidemias exigia o treinamento de um olhar múltiplo de vigilância, novos conceitos

e novas abrangências.

Aparecem instituições, no nível do Estado, que irão regulamentar o exercíci o

social da medicina: a polícia sanitária e a Sociedade Real de Medicina. A polícia

sanitária tinha funções ambientais de fiscalização da salubridade das instalações, do

comércio, dos cemitérios, etc., em todo o território da província; também funções

educacionais, porque deveria orientar as pessoas desde o modo de se vestir, de se

alimentar, como agir para evitar e curar as doenças; e, por fim, tinha como tarefa

controlar o trabalho dos médicos. A Sociedade Real de Medicina, criada por um

decreto de 1776, e composta por médicos, cujo principal mentor fora Vicq d’Azyr, tinha

o papel de estudo amplo das epidemias, elaboração dos fatos, controle e prescrição

das medidas indicadas aos médicos e à população. Ela acabou se tornando o órgão

oficial, com recursos e poder político, para fazer emergir uma nova consciência social

da medicina.

Pelo lado da constituição do saber, a medicina das epidemias se oporia,

portanto, à medicina classificatória anterior, que era baseada na percepção individual

de uma essência mórbida, porque, agora se trata de analisar uma série de casos,

117

integrá-los no tempo e no espaço, comparar, decifrar, buscar analogias e coerências

que possam determinar a causa. Trata-se também de distribuir e educar as pessoas,

e ainda controlar os médicos para prestar assistência e informações. Nas palavras de

Foucault, contudo, ambas partilhavam o novo aspecto político e social da medicina,

como se lê a seguir.

E, no entanto, no final das contas, quando se trata das figuras terciárias, que devem distribuir a doença, a experiência médica e o controle do médico nas estruturas sociais, a patologia das epidemias e a das espécies se encontram diante das mesmas exigências: a definição de um estatuto político da medicina e a constituição, no nível de um estado, de uma consciência médica encarregada de uma tarefa constante de informação, controle e coação; exigências que “compreendem objetos tanto relativos à polícia quanto propriamente da competência da medicina”.196

E a seguir, ele continua.

A Sociedade [Real de Medicina] não agrupa mais apenas os médicos que se consagram ao estudo dos fenômenos patológicos coletivos; tornou-se o órgão oficial de uma consciência coletiva dos fenômenos patológicos; consciência que se manifesta, no nível da experiência como no nível do saber, tanto de forma cosmopolita quanto ao espaço da nação.197

Foucault assinala que essa nova consciência coletiva foi um acontecimento que

mudou a percepção médica e, assim, tornou-se uma das condições de possibilidade

do saber médico moderno. Foi a medicina das epidemias que possibilitou o

fortalecimento deste espaço que vai da percepção do doente às medidas do Estado.

Neste momento, fica clara a emergência dessa consciência política, que aliás, dá

nome ao capítulo.

196 NC, p.26. Trad., p.27. Leia-se: “Et pourtant, au bout du compte, lorsqu’il s’agit de ces figures

tertiaires qui doivent distribuer la maladie, l’expérience médicale et la contrôle du médecin sur les

structures sociales, la pathologie des épidémies et celle des espèces se trouvent devant les mêmes

exigences: le définition d’un statut politique de la médecine, et la constitution, `’ l’échelle d’un état,

d’une conscience médicale, chargé d’une tâche constante d’information, de contrôle et de contrainte;

toutes choses qui ‘comprennent autant d’objets relatifs à la police qu’il y en a qui son proprement du

ressort de la médecine’ ”. Foucault está citando Le Brun, Traité historique sur les maladies

épidémiques, Paris, 1776, p.126. 197 NC, p.27-8. Trad., p.29. Leia-se: “La Société ne groupe plus seulement des médecins qui se

consacrent à l’étude des phénomènes pathologiques collectifs ; elle est devenue l’organe officiel d’

une conscience collective des phénomènes pathologiques ; conscience qui se déploie au niveau de

l’expérience comme au niveau du savoir, dans la forme cosmopolitique comme dans l’espace de la

nation. ”

118

Ele resume as características desse exercício médico político e social, como

um ”novo estilo de totalização”.198 O movimento de totalização descrito por Foucault,

inclui vários pontos importantes, conforme os itens a seguir.

O modelo de saber torna-se um quadro aberto e indefinidamente prolongável.

Um trabalho coletivo de vários olhares que introduzem numerosas séries

paralelas sobre temas indefinidos. Observações sobre as doenças, o clima, a

água, o ar, o terreno, descrição de casos, etc. são motivo de observação e de

descrição. Não se trata mais de uma reorganização exaustiva em um quadro

fechado.

As informações devem ser constantes e sempre atualizadas em direção a uma

percepção geral infinita, não mais um conhecimento enciclopédico em busca

de uma sistematização final.

Na trama complexa das séries que se entrecruzam é que o conhecimento se

dá, onde o médico pode reconhecer o caso individual. Deve-se acompanhar as

reflexões de Foucault no extrato a seguir.

O que constitui agora a unidade do olhar médico não é o círculo do saber em que ele se completa, mas esta totalização aberta, infinita, móvel, sem cessar, deslocada e enriquecida pelo tempo, que ele percorre sem nunca poder detê-lo: uma espécie de registro clínico da série infinita e variável dos acontecimentos. Mas seu suporte não é a percepção do doente em sua singularidade, é uma consciência coletiva de todas as informações que se cruzam, crescendo em uma ramagem complexa e sempre abundante, ampliada finalmente até as dimensões de uma história, de uma geografia, de um Estado.199

Quando se coloca em destaque esses fatores, observa-se que o encontro do

médico com o doente está intermediado por um olhar médico que procura

circunscrever a patologia individual dentro de uma rede de informações. Veja-se

ainda.

198 NC, p.28. Trad., p.30. Leia-se: “Style nouveau de la totalisation. ” 199 NC, p.29. Trad., p.31. Leia-se: “Ce qui constitue maintenant l’unité du regard médical, ce n’est pas

le cercle du savoir das lequel il s’achève, mais cette totalisation ouverte, infinie, mouvante, sans cesse

déplacée et enrichie par le temps, dont il commence le parcours sans pouvoir l’arrêter jamais : déjà,

une sorte d’enregistrement clinique de la série infinie e variable des événements. Mais son support

n’est pas la perception du malade en sa singularité, c’est une conscience collective de toutes les

informations qui se croisent, poussant en une ramure complexe et toujours foisonnante, agrandie

enfin aux dimensions d’une histoire, d’une géographie, d’un Etat. ”

119

O que define o ato do conhecimento médico em sua forma concreta não é, portanto, o encontro do médico com o doente, nem o confronto de um saber com uma percepção; é o cruzamento sistem ático de várias séries de informações homogêneas […] mas cuja interligação faz surgir, em sua dependência isolável, o fato individual.200

O olhar médico deverá estar presente generalizadamente no espaço social, ele

será, ao mesmo tempo, o ponto de convergência de uma rede múltipla de

vigilância e o ponto de difusão do saber adquirido. Os médicos serão

implantados em todos os lugares do departamento, para recolher, prestar

informações e conduzir a saúde da população.

Entra em jogo o conhecimento estatístico da saúde e da doença, reforçando a

matematização do saber médico. A estatística emerge porque é preciso

controlar os fatos populacionais e os ataques mórbidos. Pede-se o registro dos

nascimentos, das mortes, das razões de reformas, etc. Deve-se, enfim,

estabelecer uma “topografia médica” completa de cada região. Acompanhe-se

a seguir.

Coloca-se o problema da implantação dos médicos no campo, deseja- se um controle estatístico da saúde, graças ao registro dos nascimentos e das mortes (que deveria mencionar as doenças, o gênero de vida e a causa da morte, tornando-se assim um estado civil da patologia); pede-se que as razões de reforma sejam indicadas em detalhe pelo conselho de revisão; finalmente, que se estabeleça uma topografia médica de cada departamento “com cuidadosos sumários sobre a região, as habitações, as pessoas, as paixões dominantes, o vestuário, a constituição atmosférica, as produções do solo, o tempo de sua maturidade perfeita e de sua colheita, assim como a educação física e moral dos habitantes da região.”201

200 NC, p.29-30. Trad., p.32. Leia-se: “Ce qui définit l’acte de la connaissance médicale dans sa forme

concrète, ce n’est donc pas la rencontre du médecin et du malade, ni la confrontation d’un savoir à

une perception ; c’est le croisement systématique de plusieurs séries s’informations homogènes les

unes et les autres, mais étrangères les unes aux autres – plusieurs séries que enveloppent un

ensemble infini d’événements séparés, mais dont le recoupement fait surgir, dans sa dépendance

isolable, le fait individuel. ” 201 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “On pose le problème de l’implantation des médecins dans les campagnes; on souhaite un contrôle statistique de la santé grâce au registre des naissances et des

décès (qui devrait porter mention des maladies, du genre de vie, et de la cause de la mort, devenant

ainsi un état civil de la pathologie); on demande que les raisons de réforme s oient indiquées en détail

par le conseil de révision; enfin qu’on établisse une topographie médicale de chacun des

départements ‘avec des aperçus soignés sur la région, les habitations, les gens, les passions

dominantes, l’habillement, la constitutions du sol, le temps de leur maturité parfaite et le récolte, ainsi

que l’éducation physique et morale des habitants de la contrée’. ” Foucault está citando J.-B.

Demangeon, Des moyens de perfectionner la médecine, Paris, ano VII, p.5-9 ; cf. Audin Rouvière,

Essai sur la topographie physique et médicale de Paris . Paris, ano II.

120

E novamente o conhecimento parece tender para um espaço essencial e

exterior ao indivíduo, localizado no cruzamento dos registros, nas séries

estatísticas. Não mais no nível dos sinais e dos sintomas e de seu tratamento,

mas no nível das análises das informações numéricas, biológicas, seriais,

reticulares, globais, que tentam diagnosticar e antecipar o futuro.

O médico será o conselheiro higienista, chamado para opinar na vida das

pessoas. A educação e o ensino devem ser reforçados para que cada indivíduo

aprenda a vigiar a sua saúde. Mais uma vez, é importante reler abaixo.

E como se não bastasse a implantação dos médicos, pede-se que a consciência de cada indivíduo esteja medicamente alerta; será preciso que cada cidadão esteja informado do que é necessário e possível saber em medicina.202

Portanto, o espaço do exercício médico se constituiu de uma consciência

política na medida em que sua ação não se restringe ao indivíduo, mas se conforma

à vida coletiva da nação.

E, no entanto, essa nova totalização controladora da saúde se estabeleceu

sobre os mitos de um “campo livre” do sonho revolucionário. A medicina viu-se

revestida de dois mitos, Foucault explica, o da profissão médica institucionalizada,

militante e dogmática, que atacaria a doença em todos os lugares e, por outro lado, o

mito de um desaparecimento total da doença, em que a sociedade se veria livre de

todos os males, vícios e paixões, sendo que a saúde seria a consequência de um

retorno à vida simples e natural. Foi apenas um sonho, contudo, isto levou a uma

inflexão no saber médico e também nos mecanismos políticos para controlar a saúde

da população. Como outra consequência, novos parâmetros surgiram para o

conhecimento médico, especialmente a preocupação em manter os indivíduos

saudáveis e a preocupação com o homem normal. Este quadro manter-se-ia até o

século XIX quando, do conceito regulador de “saúde”, passa-se à noção de

“normalidade”, pois o conhecimento passará a se pautar no tipo de funcionamento da

estrutura orgânica normal. E então, as ciências do homem se desenvolverão no

caminho das ciências da vida, porque permanecerão apoiadas na biologia, mas

202 NC, p.31. Trad., p.33. Leia-se: “Et comme s’il ne suffisait pas de l’implantation de médecin, on

demande que la conscience de chaque individu soit médicalement alertée ; il faudra que chaque

citoyen soit informé de ce qu’il est nécessaire et possible de savoir en médecine ”.

121

também na medicina, e assim trarão a polaridade do normal e do patológico em seu

interior. Veja-se uma conclusão importante de Foucault.

Se as ciências do homem apareceram no prolongamento das ciências da vida, é talvez porque estavam biologicamente fundadas, mas é também porque o estavam medicamente: sem dúvida por transferência, importação e, muitas vezes, metáfora, as ciências do homem utilizaram conceitos formados pelos biólogos; mas o objeto que elas se davam (o homem, suas condutas, suas realizações individuais e sociais) constituía, portanto, um campo dividido segundo o princípio do normal e do patológico. Daí o caráter singular das ciências do homem, impossíveis de separar da negatividade em que apareceram, mas também ligadas à possibilidade que situam, implicitamente, como norma.203

Delaporte explica que, para Foucault, a medicina clínica emergiu de um

contexto cultural e do seu meio socioeconômico, sendo que fazer a sua história

requereu uma análise sincrônica das coerências e das noções da época.204 A

Revolução Francesa foi um acontecimento exterior, mas que partilhou com o discurso

médico a mesma mentalidade e o mesmo ambiente cultural, inclusive os mesmos

paradoxos. Um dos elementos constitutivos da clínica foi uma “consciência política

que toma a forma de uma consciência médica generalizada”, levando ao surgimento

de “uma medicalização militante da sociedade” que “liga as questões da medicina ao

destino dos Estados”.205 A medicina não será mais somente um conjunto de técnicas

e conhecimentos que buscam a cura das doenças, ela passará a se preocupar

também com a saúde dos indivíduos. A preocupação com uma concepção de saúde

requeria o estabelecimento dos critérios de normalidade e, também, a investigação

dos modelos fisiológicos normais. Portanto, o projeto de uma medicina de Estado

203 NC, p.36. Trad., p.39. Leia-se: “Si les sciences de l’homme sont apparues dans le prolongement

des sciences de la vie, c’est peut-être parce qu’elles étaient biologiquement sous-tendues, mais c’est

aussi qu’elles l’étaient médicalement: sans doute par transfert, importation et souvent métaphore, les

sciences de l’homme ont utilisé des concepts formés par les biologistes; mais l’objet même qu’elles se

donnaient (l’homme, ses conduites, ses réalisations individuelles et sociales) se donnait donc un

champ partagé selon le principe su normal et du pathologique. D’où le caractère singulier des

sciences de l’homme, impossibles à détacher de la négativité où elles sont apparues, mais liées aussi

à la positivité qu’elles situent, implicitement, comme norme. ” 204 Cf. DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier

dirigé par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011.

p.335. 205 DELAPORTE, François. Foucault, l’histoire et l’épistémologie. In: L’Herne – Foucault. Cahier dirigé

par Philippe Artières, Jean-François Bert, Frédéric Gros, Judith Revel. Paris: L’Herne, 2011. p.338.

Leia-se: “On sait, par ailleurs, que Foucault trouve un des éléments constitutifs de la clinique dans la

politique. Pour être précis, il faudrait parler d’une conscience politique qui prend la forme d’une

conscience médicale généralisée. Apparaît le thème d’une médicalisation militante de la société,

puisqu’il est question de lier la médecine au destin des États. ” Tradução minha.

122

levou a uma organização do saber médico em torno da normalidade, mais do que em

torno dos critérios de conhecimentos verdadeiros ou falsos. Delaporte conclui que a

política não impôs, mas sim abriu “novos campos de referência para os objetos da

medicina, por exemplo: a população, os registros estatísticos, o controle médico no

exército ou as instituições de assistência hospitalar.”206

3. Relações estratégicas

Mais tarde (1968), Foucault resume as condições de possibilidade das

transformações em direção à medicina moderna nos séculos XVIII e XIX dessa forma,

no extrato a seguir.

Se há, com efeito, uma ligação entre a prática política e o discurso médico [...] é de uma maneira bem mais direta: a prática polític a transformou não o sentido nem a forma do discurso, mas suas condições de emergência, de inserção e de funcionamento; ela transformou o modo de existência do discurso médico. E isso por um certo número de operações descritas em outros lugares, que resumo aqui: novos critérios para designar aqueles que recebem, estatutariamente, o direito de ter um discurso médico; novo recorte do objeto médico pela aplicação de uma outra escala de observação, que se superpõe à primeira sem apagá-la (a doença observada estatisticamente no nível da população); novo estatuto da assistência, que cria um espaço hospitalar de observação e de intervenções médicas (espaço que é organizado, aliás, segundo um princípio econômico, visto que o doente, beneficiário dos cuidados, deve retribuí-los pela lição médica que dá: ela paga o direito de ser socorrida pela obrigação de ser olhada, e isso incluída a morte até); novo modo de registro, de conservação, de acumulação, de difusão e de ensino do discurso médico (que não deve mais manifestar a experiência do médico, mas constituir, primeiramente, um documento sobre a doença); novo funcionamento do discurso médico no sistema de controle administrativo e político da população (a sociedade, como tal, é considerada e “tratada” segundo categorias da saúde e do

patológico). 207

206 Ibid., p.339. Leia-se : “La politique n’a pas imposé à la médecine de nouveaux objets comme ceux

de lésions tissulaires ou de corrélations anatomo -physiologiques. Elle a seulement ouvert de

nouveaux champs de repérage des objets médicaux. A titre d’exemples : la population,

l’enregistrement statistique, le contrôle médical dans les armées ou les institutions d’assistance

hospitalière.” Tradução minha. 207 DE I, p.717-8. Trad. em FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e Escritos, vol. VI.

Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro:

123

No nível arqueológico, pode-se reconhecer que as transformações da medicina

fizeram parte de contingências e rupturas no próprio solo do conhecimento e do

funcionamento das práticas discursivas. No contexto, as condições de possibilidade

do saber médico moderno abrangeram as relações discursivas com outros campos

institucionais, políticos, sociais, científicos, como foi descrito nesse capítulo do

presente trabalho. Essas relações fizeram com que o saber médico se dispersasse e

passasse a exercer a sua positividade em toda a sociedade. Porque há também um

sentido de positividade que se refere aos conteúdos positivos, aqueles que têm o

poder de afirmação sobre as coisas e devem ser compartilhados. “A saúde substitui a

salvação”, Foucault cita essa afirmação do médico e historiador da ciência José

Miguel Guardia, na “Conclusão” de NC, para resumir o poder que a medicina terá na

sociedade moderna.208

Cabe ainda reconhecer outro movimento presente nesse capítulo II de NC,

“Uma Consciência Política”, que é a forma como o texto se vincula a trabalhos

posteriores de Michel Foucault. Se o capítulo VIII, “Abram Alguns Cadáveres”, é o

coração do livro, porque descreve, na materialidade das práticas da anatomia

patológica, a finitude fundadora das ciências do homem, “Uma Consciência Política”

é o momento indicativo do caminho adiante, o das análises de Foucault acerca da

genealogia dos poderes.

No livro coletivo publicado em 1976, As máquinas de curar, às origens do

hospital moderno, sobre o mesmo tema dos hospitais e das transformações políticas

e econômicas do final do século XVIII, Foucault escreve um capítulo cujo título é “A

Forense Universitária, 2010, p.18-9. Leia-se : (“Réponse à une question”, Esprit, no 371, mai 1968,

pp. 850-874), “S’il y a bien en effet un lien entre la pratique politique et le discours médical […] c’est

d’une manière beaucoup plus directe : la pratique politique a transformé non le sens ni la forme du

discours, mais ses conditions d’émergence, d’insertion et de fonctionnement ; elle a transformé le

mode d’existence du discours médical. Et cela par un certain nombre d’opérations décrites ailleurs,

que je résume ici : nouveaux critères pour désigner ceux qui reçoivent, statutairement, le droit de tenir

un discours médical; nouvelle découpe de l’objet médical par application d’une autre échelle

d’observation, qui se superpose à la première sans effacer (la maladie observée statistiquement au

niveau d’une population: nouveau statut de l’assistance qui crée un espace hospitalier d’observation

et d’intervention médicales (espace qui est organisé d’ailleurs selon un principe économique, puisque

le malade, bénéficiaire des soins, doit les rétribuer par la leçon médicale qu’il donne: il paie le droit

d’être secouru par l’obligation d’être regardé et cela jusqu’à la mort incluse); nouveau mode

d’enregistrement, e conservation, de cumul, de diffusion et d’enseignement du discours médical (qui

ne doit plus manifester l’expérience du médecin, mais constituer d’abord un document sur la

maladie) ; nouveau fonctionnement du discours médical dans le système de contrôle administratif et

politique de la population (la société, entant que telle, est considérée et ‘traitée’, selon les catégories

de la santé e du pathologique).” 208 NC, p.201. Trad., p.219 Leia-se: “La santé remplace le salut, disait Guardia ”.

124

política da saúde no século XVIII”.209 Nesse texto, observa-se que ele acrescenta uma

camada às análises das reformas da medicina no século XVIII, porque surgem em

relevo as estratégias de poder. Os médicos deixam de ter o protagonismo das

reformas políticas e as análises passam a se dar no nível global e anônimo das

racionalidades que procuram sistematizar a saúde coletiva, as quais Foucault

chamará de “política de saúde”.210 Enfatiza que a questão importante para ele fora

como, num momento dado e em uma sociedade definida, a interação individual entre

o médico e o paciente pode se articular com uma intervenção coletiva sobre a doença.

E diz que a profissão médica, ou melhor, as “formas de profissionalização do médico”

foram um bom ponto de partida.211 Ele afirma que o século XVIII foi um momento

importante para a medicina, pelas exigências quantitativas e qualitativas na formação

dos médicos, pois fora preciso multiplicar o número de médicos e padronizar os cursos

de medicina, vinculando os conhecimentos teóricos e os práticos. Os médicos também

adquiriram mais prestígio e a medicina se destacou de outras formas de cuidado com

os doentes.

Foucault passa, então, a descrever a política de saúde do século XVIII, cujos

discursos formariam os médicos a partir de então. Observa-se que ele a resume em

consonância à consciência política da medicina em NC, e pontua as suas principais

características, como reproduzidas abaixo.212

Uma expansão do objetivo projetado para abranger a prevenção de todas as

doenças.

Um desdobramento da noção de saúde em dois sentidos: tanto normativo, por

se colocar em oposição à doença; quanto num significado descritivo, pois torna

a saúde o resultado observável de um conjunto de dados (frequência das

doenças, gravidade, duração, riscos).

209 FOUCAULT, Michel. La politique de la santé au XVIIIe siècle. In: Les machines à guérir, aux

origines de l´hôpital moderne. 2.ed. Bruxelles: Pierre Mardaga ed., 1979. Tradução parcial em

FOUCAULT, Michel. A política da saúde no século XVIII. In: Microfísica do poder. Tradução de José

Thomaz Brum Duarte. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 26.ed. Rio de

Janeiro: Graal, 2008. Contudo remeterei sempre ao texto original, com tradução minha. 210 Ibid.,.p.7. Leia-se: “une politique de santé”. 211 Ibid., p.7. Leia-se: “L’histoire de la ‘profession’ médicale ou plus exactement des différentes formes

de ‘professionnalisation’ du médecin s’est révélée, pour analyser ces apport, un bon angle d’attaque ”. 212 Ver em Ibid., p.7-8.

125

As variáveis determinantes são caracteristicamente de um grupo ou de uma

coletividade: taxas de mortalidade, vida média, expectativa de vida, doenças

epidêmicas ou endêmicas que atingem uma população.

O desenvolvimento de intervenções que não são propriamente terapêuticas ou

médicas, mas que interferem nas condições e nos modos de vida, na

alimentação, no habitat, no meio, na forma de educar as crianças, etc.

Enfim, uma integração de certas práticas da medicina à gestão econômica e

política, visando racionalizar a sociedade. A medicina não é mais simplesmente

uma técnica importante na vida e na morte dos indivíduos, ela passou a se

integrar às decisões de conjunto, como um elemento essencial para manter e

desenvolver a coletividade.

Nesse texto, Foucault afirma que os cálculos do poder político para gestão da

população, da atividade dos indivíduos e da circulação das coisas e das pessoas

visavam, além do bem-estar, a utilidade para o trabalho. Tratavam-se de intervenções

refletidas, baseadas em saberes específicos que apoiavam as técnicas de gestão

política e administrativa, ele enfatiza, por exemplo, as ações da polícia da saúde sobre

o corpo social. Nesse mesmo texto, ele destaca três itens sobre os temas principais

que se desenvolveram na política da saúde do século XVIII, são eles: (1) o privilégio

da infância e a medicalização da família; (2) a importância da higiene e o

funcionamento da medicina como instância de controle social; (3) perigos e utilidade

do hospital.213 Os médicos participaram desses três temas, seja no suporte às famílias

ou atuando na saúde em geral e nos hospitais, ainda no campo das pesquisas de

saúde, sendo subordinados ou fornecendo suporte e informações técnicas.

Adicionalmente, participaram de forma cada vez mais numerosa em diferentes

instâncias de poder, assumindo responsabilidades administrativas ou diretamente nos

órgãos políticos. Foucault afirma que os médicos se beneficiaram dessa intensificação

do poder médico na sociedade. Citando a seguir.

Dessa interpenetração do político e do médico para a transmissão da higiene, o “excesso de poder” de que se beneficia o médico, comprova-se desde o século XVIII [...]. O médico torna-se o grande

213 Ibid., p.11, 13 e 14. Leia-se: “1. Le privilège de l’enfance et la médicalisation de la famille” ; “2.

L’importance de l’hygiène et le fonctionnement de la médecine comme instance de contrôle social ” ;

“3. Dangers et utilité de l’hôpital ”.

126

conselheiro e o grande expert senão na arte de governar, ao menos naquela de observar, de corrigir, de melhorar o “corpo” social e de mantê-lo em um estado de permanente saúde. E é sua função de higienista, mais do que seu prestígio de terapeuta que lhe assegura essa posição politicamente privilegiada no século XVIII e início do século XIX.214

Em um outro texto, uma entrevista, “O olho do poder” (1977), Foucault relata

que descobrira o Panopticon através dos estudos dos projetos arquitetônicos

hospitalares, na segunda metade do século XVIII, especialmente aqueles após o

incêndio do Hôtel-Dieu, em 1772.215 Ele descreve o Panopticon como uma tecnologia

de poder inventada por Bentham para assegurar a visibilidade e o controle do maior

número possível de indivíduos, com o menor custo. O princípio vem do projeto

arquitetural que reúne uma construção com disposição em anel e uma torre de

vigilância central. As celas periféricas no anel são transparentes, tornando os seus

ocupantes constantemente visíveis, enquanto a torre central não permite visão da sua

parte interna, sendo impossível verificar a presença ou a ausência do vigilante. Isto

colocaria os ocupantes das celas sob vigilância constante, sem mesmo saber se estão

sendo vigiados ou não, o que até acabaria por levar a um controle interiorizado do

comportamento. Esse mecanismo poderia servir para vigiar um louco, um doente, um

condenado, um operário ou um escolar.

Portanto, o tema do hospital e da medicina das epidemias se vincula às análises

que Foucault realiza sobre o que ele denominará o “biopoder” e a “normalização da

sociedade”. Isto foi mapeado aqui, para que se possa perceber melhor a relação da

medicina com as tecnologias de poder. Não está no escopo do presente trabalho se

estender às análises do poder, e sim se ater às pesquisas arqueológicas de Michel

Foucault, na época de NC, porém é preciso indicar o papel crucial da medicina nas

análises “biopolíticas”.

214 Ibid., p.14. Leia-se: “De cette interpénétration du politique e du médical par le relais de l’hygiène, le

‘plus de pouvoir’ dont bénéficie le médecin, porte témoignage depuis le XVIII e siècle […]. Le médecin

devient le grand conseiller et le grand expert sinon dans l’art de gouverner, du moins dans celu i

d’observer, de corriger, d’améliorer le ‘corps’ social et de maintenir dans un état permanent de santé.

Et c’est sa fonction d’hygiéniste, plus que ses prestiges de thérapeute qui lui assure cette position

politiquement privilégiée au XVIIIe siècle et début du XIXe siècle.” 215 Ver em DE II, p.190-207. Tradução em FOUCAULT, Michel. O olho do poder. In: Microfísica do poder. Tradução de Angela Loureiro de Souza. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto

Machado. 26.ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.p.209-27.

127

No curso de 1978 no Collège de France, Sécurité, territoire, population (STP),

Michel Foucault realiza uma análise extensa das estratégias da “biopolítica”.216 Na

aula de 25 de janeiro, ele aborda a forma de atuação dos “biopoderes” em relação à

normalização. Foucault esclarece que existiriam duas formas de aplicação da noção

do “normal”, uma que incide sobre o indivíduo, utilizada pelas técnicas disciplinares, e

outra, vinculada aos dispositivos de segurança da biopolítica, os quais agem sobre a

população.

A normalização “disciplinar” é uma forma de gestão dos indivíduos que procura

demarcar uma linha invisível entre o normal e o anormal. Em primeiro lugar vem a

“norma”, isso quer dizer, parte-se de um modelo ótimo em função do resultado a ser

alcançado. O indivíduo normal é aquele capaz de se conformar ao modelo, e o

anormal seria o incapaz. O poder disciplinar decompõe os indivíduos, os lugares, os

tempos, os gestos, os atos, as operações nos elementos mínimos para percepção e

modificação; classifica esses elementos para melhor função e resultado; estabelece

as sequências e as coordenações ótimas; enfim, aplica os procedimentos de

adestramento progressivo e de controle permanente.

Na segunda forma, a normalização dos “dispositivos de segurança”, aquela que

age sobre um grupo de pessoas, Foucault explica através das ações na epidemia de

varíola. Ele cita como motivos para ter escolhido esse exemplo o fato de que a varíola

era uma doença amplamente endêmico-epidêmica no século XVIII, atingia

praticamente toda a população e provocava surtos intensos. E também, porque a

técnica utilizada para combatê-la possuía características singulares das práticas

médicas da época: eram medidas preventivas, cujos resultados podiam ser

generalizáveis para a população, mas não provinham da teoria médica da época, a

qual desconhecia o princípio de funcionamento da vacinação. O fato de que a

vacinação ou a inoculação puderam constituir práticas sobre a população ou práticas

de gestão, revelam que os métodos utilizados se baseavam no cálculo das

probabilidades e nas estatísticas, e também em práticas que se integravam ao curso

natural da doença para combatê-la ou anulá-la. É o uso do cálculo para estabelecer

216 FOUCAULT, Michel. Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France (1977-1978).

Édition établie sous la direction de François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart.

Paris : Seuil/Gallimard, 2004. (STP) Tradução em FOUCAULT, Michel. Segurança, território,

população. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

128

uma racionalidade sobre o elemento a ser governado e a atuação artificial sobre o

curso natural do mesmo, que caracterizam os “dispositivos de segurança”.

Foucault afirma que essas análises das epidemias de varíola fazem emergir

certas noções importantes sobre os mecanismos da biopolítica, como pontuados a

seguir.217

Noção de caso. Através dos cálculos probabilísticos de acometimento da

doença e de sucesso da vacinação foi possível pensar a doença não como um

mal que se espalha, mas racionalizar a doença como uma série coletiva de

casos.

Noção de risco. Conforme a estratificação pela idade, o local e a possibilidade

de vacinação, estabeleceu-se o risco de morbidade e de mortalidade de cada

indivíduo ou de cada grupo.

Noção de perigo. Quando os grupos de maior risco de mortalidade foram

identificados, houve condições de indicar os fatores de perigo.

Noção de crise. Através do cômputo dos casos foi possível analisar

probabilisticamente uma tendência de acumulação que sinalizava uma crise

iminente, uma ascensão perigosa na curva estatística de casos.

Essas novas noções assinalam os diferentes objetivos das técnicas de governo

das epidemias, enquanto os mecanismos disciplinares atuavam principalmente no

isolamento dos indivíduos doentes em relação aos não doentes, os dispositivos de

segurança atuavam com medidas direcionadas para toda a população, utilizando-se

das estatísticas para sua intervenção. Os cálculos probabilísticos tinham dois

objetivos principais que eram estabelecer qual a mortalidade normal esperada para a

população em geral, e estratificar a população em grupos de risco de acordo com

idade, região, profissão, construindo uma curva de distribuição da mortalidade,

identificando as curvas mais desfavoráveis e tomando medidas para trazê-las para a

normalidade mais geral, mas aceitável. Portanto, o método de normalização

securitária tem sentido inverso ao disciplinar, na medida em que parte do “normal”,

primeiro estabelece uma curva de normalidade e, depois, aplica um procedimento de

217 Ver em STP, p.61-4. Trad., p.78-82.

129

normalização para as distribuições mais desfavoráveis. “O normal é que é primeiro, e

a norma se deduz dele, ou é a partir desse estudo das normalidades que a norma se

fixa e desempenha seu papel operatório.”218

Para Foucault, o fato transformador foi que a questão do natural ingressou nas

técnicas de poder através do conjunto de elementos da população. Ele salienta que

doravante o objeto do poder será a população considerada como espécie humana, e

também como público – sua interface opinativa e que pode ser educada. A população

será como uma corte na realidade sobre o qual incidirão as técnicas de poder, as

técnicas de governo.

*

Foi importante mencionar anteriormente neste trabalho, como vem ocorrendo

a formação dos médicos há cerca de trezentos anos, desde o século XVIII, em que se

percebe que várias coisas permanecem as mesmas, em contraste às transformações

das práticas da medicina social ou populacional. No item III.3 deste trabalho foram

mencionados o método clínico de Pinel (1802) e o exame clínico de Tissot (1785) , os

quais mantêm semelhanças com os métodos atuais de abordagem do doente, e ainda,

no capítulo VI.1, as propostas de Fourcroy para os cursos de medicina (1793) indicam

quase as mesmas regras mantidas até hoje. Pode ser que a formação médica atual

esteja em descompasso com uma atitude crítica que os médicos deveriam ter para se

interrogar e se dar conta dos dispositivos de incitação e de coação na política de saúde

em geral. Seria preciso prestar atenção, porque, como afirma Foucault, as estratégias

de poder são invisíveis e subliminares, enquanto a visibilidade e o enquadramento

são justificados como medidas de segurança e de controle. Pode ser que as

negociações no interior das instâncias de poder tenham trazido benefícios de

autoridade para a medicina e também certa reserva de domínios fechados – como os

hospitais e as faculdades, fazendo parte de uma estratégia para equilibrar o jogo entre

as corporações médicas e as intervenções políticas em seu domínio. Pode ser ainda

que as políticas de saúde, por trazerem benefícios gerais para a população, esses

218 STP, p.65.Trad., p.83. Leia-se: “[Dans les dispositifs de sécurité] C’est le normal qui est premier et

c’est la norme qui s’en déduit, ou c’est à partir de cette étude des normalités que la norma se fixe et

joue son rôle opératoire.”

130

tenham se tornado o motivo da ocultação da sua ambiguidade, relacionada aos

mecanismos que levam aos excessos perigosos de poder.

Como se vê, as análises detalhadas de Foucault sobre a medicina dos séculos

XVIII e XIX na França não se circunscrevem àquele período, mas se desdobram,

suscitando questões importantes mais gerais e atuais. O estudo da medicina, em NC,

mostra como o estatuto dado ao discurso médico nas práticas políticas levaram a uma

análise da sociedade em termos biológicos, e como se produziu a extensão desse

campo de positividade na modernidade. Ele diz que a articulação entre o discurso

científico e a prática política é complexa e poderia ficar mascarada se as análises

fossem apressadas e não baseadas em descrições muito precisas do nível em que

acontecem.219 As análises em NC mostram igualmente, desde o início, como os

princípios da objetividade da percepção do saber médico, levados adiante na

anatomia patológica e na fisiologia, definiram a doença em termos do “normal” e da

“função”, como ainda se apresenta hoje, embora talvez possam existir outras

perspectivas. É interessante observar como essa objetividade excessiva pode ser

percebida nas descrições de Foucault através das metáforas da “luz que cega” ou do

“olhar soberano”, e simultaneamente surge a luz própria do discurso que “cintila” por

breve instante, daqueles que tomam a palavra, ou se trabalha na crítica difícil que “traz

à luz” a distância das verdades esquecidas. São metáforas das ambiguidades

luminosas dos discursos sobre os indivíduos modernos.

Retornando a uma das questões principais desse trabalho, qual teria sido o

papel da medicina nas mortes dos pacientes com AIDS, no momento em que a doença

emergia? O que a ausência de um saber positivo intensificou? Qual falta não soube

tratar o mal-estar da doença que, desde o início, parecia se expressar num silêncio

sobre as dimensões existencial e estratégica?

Existencialmente, as palavras sobre a morte já não são possíveis. Seria um

salto para trás impossível para o saber médico moderno pronunciar palavras na

dimensão existencial do indivíduo, pois a medicina se afastou da filosofia no século

XVIII e se funda no positivismo dos cálculos. E, no entanto, a cada dia, o momento da

morte acontece inumeravelmente, e os médicos fazem silêncio. Eles não têm outros

219 Ver em DE I, p.719-20. Trad. em FOUCAULT, Michel. Repensar a política. Coleção Ditos e

Escritos, vol. VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Organização de Manoel Barros da Motta.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p.19-21.

131

instrumentos, porque a relação com o doente não é mais o suporte do seu discurso,

é a rede lógica e exterior a ela, no cruzamento biológico, histórico e geográfico das

informações, que diagnostica ou antecipa a doença.

Estrategicamente, é preciso notar que as ordens médicas se desenvolvem no

espaço da lei da norma. Por isso, a medicina mantém um outro silêncio, aquele que

procura apagar os conflitos morais e os comportamentos não desejados dos pacientes

com AIDS, por exemplo. A medicina não é neutra, ela escolhe o lado da normalização .

Numa história oficial da medicina, estivera presente a tentativa de estabelecer

dois aspectos, o primeiro, que a clínica seria o saber médico que tem origem no leito

do doente e, o segundo, que esse fora o lugar constante nessa história, enquanto as

teorias é que sempre mudavam. Como se a clínica tivesse sempre preservado a sua

pureza em face das mais variadas revoluções teóricas da história médica.

Contrapondo-se a isso, Foucault afirma que embora as narrativas tradicionais da

história da medicina tentem assumir uma continuidade desde o início deste saber, na

verdade, a experiência clínica data apenas do final do século XVIII.

Todo o esforço de Foucault em NC, como ele explica no capítulo IV, “A Velhice

da Clínica”, foi o de tentar se contrapor a essa narrativa ideal que traz tanto uma noção

de “historicidade contínua”, quanto a de que a história da medicina esteve sempre

apoiada no desenvolvimento das verdades de um saber cuja origem era o encontro

do médico com o sofrimento do doente.220 Foi preciso redescobrir o nascimento da

clínica, com suas rupturas e transformações, e reencontrar a medicina moderna.

A conclusão mais simples a que se pode chegar, inicialmente, é que se a

medicina clínica tem uma história recente, se existiu outra antes dela, também poderá

existir outra depois dela. E ainda, ao lembrar que, para Foucault, nosso campo de

reflexão é a atualidade, as transformações podem acontecer apenas nas demandas

dos problemas do tempo presente, o tempo de existência da atualidade. Decorre daí

também que reflexões e ações sobre nós mesmos sempre terão a chance de provocar

transformações nos saberes e nos poderes.

Quais são as questões médicas da atualidade? Quais caminhos seguir?

220 Ver em NC, p.53. Trad., p.58. Leia-se: “Vieillesse de la clinique”.

132

No Colóquio “Michel Foucault e a Medicina, Leituras e Usos”, pesquisadores

de vários países, diferentes áreas e culturas se reuniram para debater esse tema.221

Sob o eixo “Estratégia e sistema da saúde hoje”, Anne Golse proferiu a conferênci a

“Da medicina da doença à medicina da saúde”, a qual desenvolve parte das questões

suscitadas aqui, como será visto a seguir.

Um esclarecimento inicial é necessário acerca do fato de que, para Foucault, a

norma é uma medida que instaura uma lei arbitrária de separação no interior da

população, como visto anteriormente. Mas, existe um outro ponto de vista para a

norma, aquele de Georges Canguilhem, em que ela é inserida na capacidade

normativa da vida. Para Canguilhem (1943), o estado normal ou patológico do

organismo se regula pela normatividade do organismo em alcançar novo equilíbri o

com o meio em que vive, sendo a faculdade de adaptação uma de suas

características.222 Isto se baseia também na sua concepção de biologia como a teoria

geral das relações entre os organismos e seu meio. Para ele, a medicina é uma

técnica que se utiliza de todas as ciências para colaborar com esta atividade

propulsora das normas da vida.223 As diferenças entre o normal e o patológico são

sobretudo do valor atribuído pela clínica, pelas práticas médicas, ao que se considera

um e outro em relação aos fenômenos biológicos, não podendo ser reduzido apenas

aos critérios objetivos quantitativos.

No texto de Golse, em que a estudiosa analisa a medicina da atualidade, ela

afirma que a noção de saúde expressada pela OMS (1948), como o equilíbrio bio-

psico-social, parece advir dessa nova norma que é da ordem da adaptação.224 Essa

vertente da biologia que toma as relações dos indivíduos com o meio, e que pode ser

reconhecida nas concepções apresentadas por Canguilhem, trará várias

consequências para o discurso médico. A principal seria o fato de que a medicina se

tornará mais “adaptativa” do que “curativa”, dirigindo-se aos estudos capazes de

indicar a melhor forma de adaptação do indivíduo ao meio, e de procurar reconhecer

221 Michel Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et

Emmanuel da Silva. Paris : Éditions Kimé, 2001. Tradução do título é minha. 222 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de Carvalho

Barrocas. Revisão técnica de Manoel Barros da Motta. 6.ed.rev. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2010.p.175-6. 223 Ibid., p.176. 224 Ver em GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel

Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et Emmanuel da

Silva. Paris : Éditions Kimé, 2001.p.275.

133

as causas e os grupos não-adaptados, para instituir medidas de correção ou de

prevenção.225 Isto se dará também em relação às doenças crônicas e degenerativas,

em que a medicina atuará para manutenção de uma adaptação possível à doença.

Outra questão relacionada é a transformação etiológica das causas da doença,

porque passarão a se constituir nos estudos dos dados epidemiológicos, em busca de

traços e correlações que indiquem os fatores multicausais das doenças, incluindo os

vários fatores relacionados aos comportamentos e ao meio, os chamados “fatores de

risco”. Sem desejar se estender demais, são importantes algumas palavras sobre

esse assunto.

A medicina adaptativa desloca cada vez mais os cuidados médicos individuais

curativos para aqueles outros que tomam os indivíduos através dos dados

populacionais e da avaliação dos riscos, a chamada medicina preditiva. Uma

produção contínua e redundante de fatores de risco gera o fato de que não existem

mais indivíduos sem riscos, e também de colocar todos os aspectos da vida sob alvo

de recomendações, medidas de moderação, controle, restrições, etc. os quais ainda

podem ser incessantemente modificados. Ocorre que os achados dos riscos

reinserem continuamente os indivíduos nos sistemas de saúde, decorrendo daí a

ineficiência e a sobrecarga financeira que acabam resultando. Cabe ressaltar que o

risco é uma medida abstrata ou virtual, e que pode dar falsas impressões tanto de

segurança quanto de perigo. A avaliação dos riscos pode levar a excessos de

diagnósticos e de tratamentos.

A medicina participa diretamente dessa totalização das existências nas suas

relações discursivas econômicas, políticas e sociais. Por outro lado, como

consequência, Golse lembra que várias críticas foram endereçadas às instituições

médicas quanto “à insuficiência de seus fundamentos, à insuficiência de seus

resultados e à sua iatrogenia global”.226 Os sistemas de saúde submeteram a

medicina e os indivíduos a esse modelo de saúde coletiva, a partir daí os novos

conceitos se integraram ao exercício da medicina. Mas, ao mesmo tempo, o sistema

225 Ver Ibid., p.276-7. 226 Ibid., p.285. Leia-se : ”Mais parallèlement, à cette transformation d’une partie de l’activité médicale,

il y a émergence d’un nouveau discours, qui cherche à impulser l’idée désormais centrale de santé

populationnelle. Pour asseoir sa légitimité comme dispositif global de santé, la Santé publique va

remettre en cause l’institution médicale en reprenant à son compte une série de critiques quant à

l’insuffisante de ses fondements, à l’insuffisance de ses résultats et à sa iatrogénie globale.”

134

de saúde se viu sobrecarregado pelas exigências incessantes dos indivíduos, o que

deu origem a essas críticas à instituição médica, requerendo transformações. Foi esse

caminho que levou a medicina a centrar as ações de prevenção no individuo, na

medicalização dos comportamentos para que produzam sua própria saúde, com sua

carga de ilusão e culpabilidade.227

Golse acompanha como, aos fatores de risco, se sucederam os “fatores de

saúde” e os “fatores de produção”, para constituir indivíduos continuamente

preocupados em se manterem saudáveis e produtivos.228 Isso acaba provocando uma

fadiga, ao contrário de bem-estar, pelas restrições permanentes, mutantes e

crescentes, pelas exigências de autorregulação do comportamento, enfim, pela

excessiva apreensão da existência. A autorregulação da saúde seria desejável, na

verdade, para prevenir ou controlar as doenças, e assim reduzir a sobrecarga a que

os sistemas de saúde estão submetidos.

Então, na verdade, somaram-se dois níveis de gestão normativa da saúde da

população, um nível geral da “ciência das informações sobre os indivíduos”, embora

cada vez mais individualizante, que pretende a sua gestão adaptativa; e outro, que

incita ao enviar mensagens constantes para que os indivíduos fabriquem sua própria

saúde, interiorizando as normas comportamentais de uma saúde ideal. Cedo ou tarde,

os indivíduos caem nas malhas da gestão das anomalias.

Convém lembrar, contudo, que nas análises dos biopoderes, Foucault propõe

o poder não como uma essência ou um bem de que se toma posse, o poder seria

“relações de poder” compreendidas como relações de forças, em que a resistência

sempre está presente, de diversas formas e no contexto do funcionamento dos

poderes. Portanto, sempre existirá a possibilidade das resistências.

Convém lembrar, ainda, que Foucault explicou em AS, que a medicina clíni ca

não é mais como no século XIX, pois vem ocorrendo o deslocamento constante da

percepção médica, a mudança dos instrumentos de acesso ao corpo e a expansão

227 Ver em Ibid., p.290. 228 Ver em GOLSE, Anne. De la médecine de la maladie a la médecine de la santé. In : Michel

Foucault et la médecine, lecture et usages. Sous la direction de Philipe Artières et Emmanuel da

Silva. Paris: Éditions Kimé, 2001.p.278 e 290.

135

dos registros acessíveis, virtuais, midiáticos de informações para a análise médica,

estabelecidos na exterioridade da posição do próprio médico.

No último capítulo deste trabalho, vai-se delinear as questões suscitadas aqui

para a medicina da atualidade e tentar indicar direções a seguir.

136

CAPÍTULO VII – DIREÇÕES DO DIÁLOGO

Fig. 4 – A disease network model with functional modules229

Network modeling of Crohn’s disease incidence. J.M. Victor, G. Debret, A. Lesne, L. Pascoe,

P. Carrivain, G. Wainrib, J.P. Hugot. PLoS One11, e0156138 (2016). Acesso em:

https://doi.org/10.1371/journal.pone.0156138. 22 fev. 18

229 “Um modelo em rede da doença com módulos funcionais” [tradução minha], proposto pelos

estudos biomoleculares, como um novo modelo virtual de compreensão da fisiopatologia da doença.

[O que, numa análise crítica, poderia representar um retorno à classificação essencialista e à

dissociação entre a doença e o corpo doente.]

137

O ponto de partida para as questões desse trabalho foi a vivência da morte dos

pacientes com AIDS, e a suposição das insuficiências do discurso médico para assistir

aos pacientes e aos jovens médicos que os acompanhavam. Existiu ainda outra

vivência formadora da proposta inicial desse trabalho, que foi o encontro, anos mais

tarde, com o pensamento de Michel Foucault. Esse encontro trouxe à consciência as

estratégias de poder naquele espaço hospitalar e o desejo de as confrontar.

Justamente nesse ponto de partida, pode-se identificar duas questões importantes da

medicina da atualidade, que devem ser problematizadas: a assistência do indivíduo

na morte e a interrogação sobre a biopolítica.

Mas não parece ser somente nesse trabalho que essas questões sobre a

medicina se sobressaem logo de início, então, para resumir outras referências

semelhantes, remete-se ao artigo de Paltrinieri, “L’équivoque biopolitique”.230 Nesse

artigo, ele propõe três relatos que assinalam problemas atuais envolvendo a

biopolítica: um centro de detenção de imigrantes na Europa, o dispositivo de

segurança da obrigatoriedade do uso de cinto de segurança nos veículos e o relato

sobre uma paciente em seu leito de morte no hospital. Após uma revisão das

abordagens filosóficas atuais da biopolítica, ele salienta alguns equívocos. Esses se

resumem principalmente ao fato de que outros teóricos dos poderes criam quadros

desesperantes em que a vida é apreendida de uma forma geral e opressiva. Paltrinieri ,

então, procura apresentar dois caminhos em que o pensamento da atualidade poderia

sair para enfrentar a biopolítica. O primeiro, é lembrar que Foucault definiu os poderes

como relações dinâmicas, em que a resistência sempre tem um ponto de apoio para

se contrapor às abrangências biopolíticas, ou para exercer a crítica sobre as técnicas

de normalização da vida. O segundo caminho de saída seria trazer ao conhecimento

dos indivíduos as estratégias de poder, trazer à luz as inter-relações numerosas e

complexas entre os saberes e os poderes, para se contrapor ao imaginário da

neutralidade e da pureza das ciências, esse que serve somente para impor uma

distância à ambiguidade dos seus propósitos.

No presente trabalho, para compreensão das possíveis insuficiências do

discurso médico, decidiu-se retornar à leitura de O nascimento da clínica. A escolha

desse livro para centrar as reflexões teve certos motivos, o principal foi que nele

230 PALTRINIERI, Luca. L’équivoque biopolitique. Chimères 2010/3, nº 74.p.153-166. Disponível em:

doi: 10.3917/chime.074.0153. Acesso em: 28 fev. 18.

138

Foucault faz uma história arqueológica da medicina e se aproxima do tema da morte

no conhecimento médico. Outro motivo poderia ser que, para um médico, surge a

curiosidade e a apreensão em saber como um filósofo descreve a medicina clínica,

quais certezas podem ser abaladas num discurso que pretende ser científi co e

positivo. E ainda, comparando-o à História da loucura, que teve impacto considerável

na psiquiatria, O nascimento da clínica é um livro pouco estudado pelos médicos,

portanto, realizar essa pesquisa poderia ser um esforço para ressuscitar a sua leitura.

A tese seguiu dois percursos paralelos, um, acompanhando os capítulos de

NC, relacionando-os entre si e nem sempre seguindo a ordem numérica, em busca

da compreensão da arqueologia crítica da medicina; o outro, seguiu a preocupação

com a medicina atual, especialmente com a formação dos médicos, procurando trazer

à luz a constituição do discurso médico, suas regras, seu funcionamento, suas

consequências, suas responsabilidades e, talvez, encontrar direções para o diálogo.

Em mais de um sentido, porque se trata do diálogo sobre a medicina e também do

diálogo entre o médico e o paciente.

Pensando bem, durante a condução desse trabalho também foram

identificados equívocos, eles têm a ver com a racionalidade usada de início para

pensar a medicina, talvez fundamentada a partir do positivismo científico e da

biopolítica, porque enfim, esses modelos vêm constituindo os médicos. O primeiro

deles é desfeito ao se reconhecer que a medicina não pode ser pensada como um

campo exterior às decisões políticas, econômicas, institucionais, a medicina participa

intrinsicamente da biopolítica. O segundo equívoco fora não considerar a linguagem

do paciente como parte efetivamente constituinte da relação que se estabelece no

encontro com o médico, não perceber uma verdade nas palavras do paciente, sem

isso não se poderia propor um diálogo. O terceiro, fora tentar pensar novamente a

medicina como um saber totalizante sobre a vida e a morte, sem compreender que a

morte talvez tenha um significado existencial individual e não deva ser apreendida nas

técnicas da medicina. Deve-se expressar que o reconhecimento desses equívocos,

alcançado através de uma crítica difícil à medicina, produziu um sentimento de lucidez

amarga, porque parece que se passou tempo demais até que fossem trazidos à luz.

Por outro lado, a medicina vem pesquisando, trabalhando continuamente e

encontrando soluções notáveis para o tratamento das doenças, por exemplo, 30 anos

após a morte de Michel Foucault, a AIDS tem um tratamento adequado e existem

139

centros médicos que estão próximos de desenvolver a cura dessa síndrome viral. As

críticas, portanto, não levam a desacreditar a medicina, mas a propor uma experiência

médica mais flexível, mais justa, talvez mais leve, enfim, diferente.

Na sua trajetória, Foucault procurou fazer uma análise dos problemas da

atualidade, para ele, a tarefa da filosofia é sobre o tempo presente. Suas abordagens

arqueológica e genealógica buscaram realizar uma história investigativa de como

chegamos a ser o que somos e do que reatualiza as racionalidades do passado em

nosso presente. Nesse caminho, ele nos diz que mesmo nos tendo tornando sujeitos

e objetos das ciências, essa dupla ascendência não pode definir nossa existência.

Então, cabe perguntar, se não somos sujeitos transcendentais nem objetos do

conhecimento, qual é a nossa ontologia? Ela é histórica, afirma Foucault. A ontologia

de nós mesmos é a ontologia do presente, das práticas discursivas que nos formam

e nos constituem, da história inscrita em nossos corpos, em nosso ser histórico. Num

outro nível de compreensão dessa conclusão, percebemos que, no fundo, nossa

existência é um enigma, porque sendo seres históricos, todo conhecimento sobre nós

mesmos será parcial, provisório, imprevisto. Melhor ainda, estamos nos constituindo

continuamente, nos determinando, nos produzindo.

Nos seus estudos, Foucault fez recortes justamente nas épocas de rupturas

dos saberes, nas quais as racionalidades teóricas e práticas sofreram transformações

mais profundas. São escolhas que deixam perceber melhor as fragilidades das

continuidades que uma história monumental pretenderia construir, como um

progresso contínuo, dando reverência ao encadeamento das certezas. Para Foucault,

a história é feita de escolhas e de contingências.

É na própria contingência histórica dos discursos que constituem a medicina

moderna que se poderá ou deverá encontrar novas direções para tornar o saber

médico mais próximo de um diálogo sobre a existência humana, porque isso parece

desejável. Para tanto é preciso identificar os problemas atuais percebidos nas

vivências do encontro entre o médico e o paciente, analisar criticamente, criar novas

linguagens, novos sentidos, novos enunciados que possam levar a um encontro mais

satisfatório. Os problemas identificados nesse trabalho foram as determinações

positivistas e biopolíticas, e a ausência de um verdadeiro diálogo com o paciente,

140

porque o médico fala sobre a doença e o diagnóstico, usando uma linguagem

científica, num encontro em que a fala do paciente não tem espaço e nem tempo.

Foucault foi levado a reconhecer, nos seus estudos sobre a medicina, que o

saber médico é formado por vários discursos, por uma rede de enunciados científicos,

matemáticos, econômicos, políticos, sociais, estratégicos. O discurso médico é

heterogêneo, disperso. Por que não se poderia acrescentar um estrato da percepção

existencial do doente? Pode-se pensar em estratégias de saber para novas

experiências dessa relação entre o médico e o paciente, novas linguagens e

enunciados que possam ser acrescentados ao que doravante se poderia chamar de

arte da medicina. As novas estratégias envolveriam reconhecer a fala do paciente

como constitutiva dessa relação, levar em consideração seus sofrimentos, suas

dúvidas, seus desejos, seus valores, seus conhecimentos, suas escolhas, suas

decisões. Isto dependeria da maneira como os médicos são formados. É preciso que

os jovens médicos tenham uma formação em que possam ter contato com outros

campos que promovam a percepção de outras linguagens sobre a existência humana,

para que tenham palavras espontâneas de diálogo e ainda assim fundadas numa

reflexão prévia. É preciso também que os jovens médicos tenham lucidez sobre as

estratégias de poder que usam a medicina como instrumento, é preciso estar alertas

para os excessos de poder. Existem experiências sendo desenvolvidas para colaborar

com a introdução do pensamento crítico nos cursos de medicina através do ensino da

filosofia. Isto parece ser um caminho, para que os médicos não se tornem apenas

especialistas, mas desenvolvam uma atitude crítica em geral.231

Laplace (1749-1827) elaborou a teoria analítica das probabilidades, ele era um

pensador determinista, seu sistema matemático de raciocínio indutivo era baseado

nas probabilidades, na regra de sucessão e na predição. Seu método aplicado à

medicina estimava a proporção do número de casos favoráveis comparados ao

número total de casos possíveis. Havia a referência a uma variável e à distribuição

normal das probabilidades, que seriam determinantes e validáveis. Em “Signos e

Casos”, Foucault indica como a lógica da probabilidade entrou na questão da verdade

científica da medicina, e depois em “Uma Consciência Política”, como a

matematização estatística situou o indivíduo numa rede de informações exteriores a

231 Ver em BOSCH, Gundula. Train PhD students to be think ers not just specialists . Nature 554, 277

(2018). Disponível em: doi: 10.1038/d41586-018-01853-1. Acesso em: 22 fev. 18.

141

ele. Essas arqueologias servem para mostrar que a positividade clínica se baseia

sobretudo em hipóteses matemáticas, e não em uma verdade definitiva sobre o

enigma e a imprevisibilidade individual. A percepção desses fundamentos hipotéticos

faz com que a flexibilidade na arte médica se torne possível, desejável.

Outro aspecto da positividade tem a ver com o fato de que a medicina, como

um saber, se organizou, se institucionalizou e se deu uma linguagem própria para

alcançar uma forma científica. Fundamentou-se num objetivismo antropológico, que

reflete sobre o homem a partir de sua finitude. Um tipo de saber analítico e biológico

que decompõe o corpo, busca focos, sedes, causalidades, diferentemente de

considerar o indivíduo como um todo. Essa redução da existência ao princípio

biológico da vida – que também é reduzida aos mecanismos materiais, anatômicos,

fisiológicos, patológicos, é uma racionalidade que limita o corpo, o toma definido pela

morte, circunscrito em uma finitude material. Esquecem-se vários outros aspectos da

existência humana: as atitudes políticas, éticas e filosóficas, os diferentes modos de

ser, de agir e de pensar, os aspectos que foram historicamente herdados e os que

serão legados na transformação do mundo. Pensar sobre isso contribuirá para que a

medicina possa acrescentar outras camadas à sua percepção do indivíduo.

A questão da individualidade do corpo também tem sido percebida apenas

através do patológico, dos modos de adoecer anatômico e fisiológico. Seria possível

pensar diferentemente? Pensar o impensado, o que seria o impensado dentro da

medicina? O reverso existencial e estratégico da racionalidade da medicina clínica?

Qual outra relação entre o homem e a morte que não aquela da finitude? Seria uma

relação estabelecida pelo próprio paciente, pelos próprios indivíduos? Talvez não seja

desejável que a medicina realize uma totalização sobre existência, que apreenda

inteiramente o modo de viver e de morrer dos indivíduos. Essas são todas questões

postas para a medicina da atualidade.

Em NC, Foucault mostra o significado epistemológico e a experiência poética

da morte. Não há propriamente a descrição de uma epistemologia da medicina em

NC, porque o discurso médico como um todo não é uma ciência, são práticas

discursivas, relações discursivas, em campos que incluem as ciências como a

fisiologia e a biologia, e também vários outros conhecimentos. A medicina seria um

campo de relações e, sobretudo, uma arte. A arte médica é esse conjunto de

142

discursos, experiências, práticas, regras, técnicas, vivências, linguagens e momentos

que se organizam num saber. Essa compreensão leva a crer que o saber médico

poderia ter mais estratos ou se organizar diferentemente. A organização de um saber

ou de um campo discursivo tem correspondências nos escritos de Foucault, ela é o

espaço epistêmico em que cada época organiza a desordem dos conhecimentos das

coisas. A imagem do aleatório e da desordem primordial das coisas estão descritos

em MC sobre a mesa de Borges; em NC, na mesa do cirurgião; e em RR, na mesa de

bilhar. Foi o discurso científico, econômico e político datado do fim do século XVIII que

organizou as coisas na modernidade. Outros espaços, outros discursos e outras

organizações estariam surgindo.

Três espaços concretos formaram as condições de possibilidade da medicina

moderna, eles foram o corpo, o hospital e o espaço social. Não é do lado de fora dos

outros discursos sobre o corpo que a medicina se situa, é mesmo no interior dos

mecanismos biopolíticos que a constituem. A medicina é também política, econômica

e social. Ainda mais que ela parece ter sido o vínculo entre os saberes clássicos e os

saberes sobre o homem da modernidade, e também o vínculo que articula as práticas

discursivas biopolíticas e os corpos dos indivíduos e da população. Através da

medicina, as práticas de vigilância, de controle, de correção produzem e disseminam

seus efeitos, talvez sem crítica, sem maior reflexão sobre o que isso pode significar

na existência dos indivíduos. Por que essa passividade do saber médico? Por que não

é justamente o foco de resistência e de crítica sobre a constituição empobrecedora

dos indivíduos modernos? Porque não se opõe à violência adestradora dos corpos?

Dois ou três fatores puderam contribuir para isso: a ruptura no fim do século XVIII, na

qual a medicina se separou da filosofia, e os discursos científicos da época que

passaram a constituir os médicos, como foram descritos desse trabalho; os outros

fatores seriam o hospital e as faculdades – os domínios em que as corporações

médicas mantiveram suas regras. Não se deve esquecer que a aparição da biopolítica

aconteceu nos debates públicos que colocaram em cena a dinâmica de interesses e

de aspirações no mercado e nas práticas de governo. Talvez se atualize certa

passividade do saber médico no espaço social, desde que se mantenha o seu domíni o

nesses espaços fechados.

Contudo, não se pode deixar de notar as características comuns ao discurso

médico e à arqueologia foucaultiana. Ambos são analíticos, descritivos, exploram o

143

invisível do visível na superfície das coisas e buscam diagnosticar. Ambas se atêm ao

conteúdo do que foi visto e dito para tentar estabelecer relações, semelhanças,

diferenças, séries, cronologias, transformações e rupturas. O fato é que ambas são

uma análise dos espaços e dos enunciados, das coisas e dos corpos. Quais as

diferenças? Parece ser que a clínica se denomina um saber científico, se coloca

dentro dos limites da finitude do corpo, e se tornou um saber individualizante,

vinculado aos cálculos e aos perigos dos discursos; por outro lado, a arqueologia,

denominando-se histórica e contingente, é aberta no tempo e no espaço, livre para

analisar e atravessar os campos discursivos. Por sua condição de semelhança com o

pensamento crítico foucaultiano, a medicina teria intrinsecamente a capacidade de

formar um diagnóstico sobre a atualidade, de ultrapassar a finitude e se tornar mais

aberta e valiosa.

Uma entrevista concedida em 1968 é um dos raros momentos em que Foucault

fala de si mesmo e da sua herança vinda de uma família de médicos cirurgiões.232 Ele

explica que, embora procure o encadeamento suave na escolha das palavras, sua

escrita é percebida pelos outros por um caráter cortante e mordaz. Ele compreendeu

que isso se dá pelas análises que faz da aparição e do funcionamento dos discursos,

como se estivesse fazendo uma autópsia, usando o bisturi para cortar o papel, ou

melhor, para cortar o corpo dos discursos dos outros. É porque ele supõe que “os

discursos já estão mortos” quando os disseca, e põe sua organização interna e seus

focos de verdade à mostra.233 Portanto, para ele, há uma relação entre a escritura e a

morte, porque as coisas ditas pertencem ao passado e não é possível revivê-las,

sendo assim, podem ser analisadas anatomicamente, com serenidade, como se fosse

uma análise médica.

Foucault diz que escreve para diagnosticar as verdades interiores dos

discursos mortos, talvez onde elas estejam reduzidas ao silêncio ou mantidas à

distância.234 Por exemplo, em HL, ele fez a história sobre como a loucura e a

psiquiatria foram se constituindo paralelamente, em que uma é reduzida ao silêncio e

a outra se desenvolve como um saber (deve-se lembrar que as paredes do Salpêtrière

232 FOUCAULT, Michel. Le beau danger, entretien avec Claude Bonnefoy. Édition établie et présentée

par Philippe Artières. Paris: Éditions EHESS, 2011. 233 Ibid., p.37. Leia-se: “Je ne les condamne pas à mort [les choses dites]. Je suppose simplement

qu’ils sont déjà morts”. 234 Ver em Ibid., p.40-1.

144

guardam o tratamento moral que Pinel ali instituiu e defendeu: o isolamento, o silêncio,

os castigos para quebrar as ideias dos loucos). Em NC, ele diz que tomou diretamente

como objeto de estudo o conhecimento médico, certamente para questionar a sua

herança médica. Já em RR, ele se interrogou como uma obra como aquela, escrita

por um indivíduo desconsiderado pela sociedade, pode ser aceita e funcionar dentro

de uma cultura. Como esse processo de exclusão e inclusão pode acontecer? Para

ele, isso teve a ver com a inclusão da linguagem de Roussel no universo da

modernidade, porque ela funcionou de uma maneira positiva dentro das regras de

possibilidade dos discursos e, assim, pode figurar na literatura.235 Ele concluiu que o

que configura um discurso louco, ou não, é a sua posição e o seu funcionamento no

interior da normatividade de uma cultura.

Respondendo sobre sua própria prática de escritura, Foucault di sse que

escrever tinha se tornado para ele uma obrigação diária, para que depois pudesse

retornar a outras coisas. Ele pensava também que escrever era tentar esgotar um

discurso, era tentar apagar-se ao depositar as palavras no papel. Ele sabia, contudo,

que isso nunca seria alcançado, porque a vida fora do papel continua, ela sempre

prolifera e jamais poderá ser fixada na linearidade e nas duas dimensões de um

discurso. Assim, escrever é uma obrigação infinita, no momento em que as linhas são

fixadas e se tornam legíveis, ocorre uma mortificação. Ao menos, a cada dia, essa

obrigação o livrava da angústia, da inquietude, e era assim que resultava um prazer

de escrever. Ele não se considerava um escritor, mas reconhecia que às vezes fazia

relatos de “micro-acontecimentos”, por exemplo, da vida de alguém, num estilo

jornalístico, para mostrar o que poderia permanecer oculto.236 Ele respondeu ainda

que seu projeto era dizer as coisas, mostrar as coisas invisíveis, que estão muito

próximas para que o olhar possa ver. Ele desejava dar densidade a essa atmosfera

em que se situam os saberes. É isso que importa. Ele desejava fazer aparecer a

distância que separa os indivíduos das coisas.237

235 Ibid., p.51. Leia-se: “Je ne me pose pas le problème du rapport oeuvre-maladie, mais du rapport

exclusion-inclusion : exclusion do individu, de ses gestes, de son comportement, de son caractère, de

ce qu’il est, inclusion très rapide et finalement assez facile de son langage”. 236 Ibid., p.59. Leia-se: “Certes, j’ai eu parfois l’envie d’écrire des nouvelles au sens presque

journalistiques du terme : de raconter des micro-événements, de raconter par exemple la vie de

quelqu’un, […]”. 237 Ibid., p.66. Leia-se: “Je vous l’ai dit, j’essaie de faire apparaître la distance que j’ai, que nous avons

à ces choses, mon écriture est la découverte même de cette distance”.

145

Michel Foucault está morto. O que poderia ter sido dito no seu leito de morte ,

quais palavras falharam? O que os médicos poderiam ter dito para Foucault ou para

Defert? Novamente, ainda agora, elas falham. Porque parece ser uma questão

amplíssima que interroga todos os saberes da modernidade. E somente seria possível

propor, com modéstia, tentar a invenção de novos diálogos sobre a existência

humana.

Duas direções de diálogos poderiam ser propostas, uma relacionada à

discussão sobre o saber médico e a outra, ao diálogo entre o médico e o paciente;

uma abrangendo a formação dos médicos e a outra, as vivências da experiência

médica. A discussão sobre o saber médico requer que se provoque um movimento,

partindo da lucidez crítica sobre a constituição da medicina clínica e do ímpeto para

as transformações discursivas desejáveis na formação dos médicos. A outra direção

se daria nas próprias vivências do encontro entre o médico e paciente, nos discursos

cotidianos, nos jogos de qualificação e desqualificação dos discursos, no

enfrentamento dos perigos do incontestável e da coerção, em que se poderia perceber

as dificuldades do discurso médico e o trabalho necessário para um diálogo mais

equilibrado, flexível, justo. Porque as incongruências percebidas poderiam revelar,

advertir, inspirar, abrir possibilidades de alguma dissidência, de ampliação dos limites

do que seria possível. Fazer o diagnóstico da própria medicina do presente, nessa

experiência, encontrar alguma espontaneidade, pistas e possibilidades de produção

de práticas novas, talvez uma nova propedêutica ampliada para hoje. Isto seria mais

interessante, mais animador. Porque a medicina tem produzido tantos corpos tristes

em busca da saúde e dos procedimentos de normalização: anormais, monstros,

masturbadores, delinquentes, histéricas, pervertidos, loucos, doentes, tuberculosos,

aidéticos. É preciso encontrar outras linguagens. É preciso criar tempo e espaço para

ouvir o outro. Porque continuar na repetição da ordem do mesmo, é como se se

olhasse para trás para caminhar adiante, repetindo o passado para planejar o mesmo

futuro. É também apagar, silenciar, esquecer, não pensar sobre o outro, aquilo que

deixa de ser pensado e falado a cada vez que o inesperado ou o indesejado se impõe.

Porque a distância das afirmações incontestáveis só serve para apagar o sussurro,

aquele murmúrio que não está somente no outro indivíduo, mas que murmura também

dentro de si, é o outro de si, que insiste em pensar.

146

Ao final, não se pode deixar de supor que talvez sejam soluções ingênuas,

porque o que move a atualidade são os problemas e a força das contingências e dos

novos acontecimentos. Talvez, a medicina seja mesmo obrigada a enfrentar os seus

excessos de poder nas relações desequilibradas entre o médico e o paciente, porque

o próprio paciente está se fazendo ouvir, está produzindo outros espaços.

Certamente, a medicina terá de se abrir para novas experiências em que não será o

saber hegemônico sobre a existência das pessoas. Estão surgindo outros domínios

técnicos, robóticos, cibernéticos, sociais, coletivos, corporais que estão colocando a

medicina em cheque. Se a atualidade demanda notavelmente que a medicina se

transforme, por que o retorno à NC, ao século XVIII? Acontece que, seguindo o

pensamento de Foucault, é preciso fazer a arqueologia da medicina moderna para

redescobrir as condições de possibilidade e a emergência do método clínico, cujos

traços ainda chegam à atualidade; é preciso mostrar sua historicidade, suas relações,

as circunstâncias que o produziram, suas fragilidades e limitações; é preciso mostrar

como os médicos vem sendo formados, quais discursos os constituem. E depois, na

vertigem da aceleração dos conhecimentos e da circulação brusca das informações,

é bom esperar que tudo se transforme, é bom perguntar o que se quer introduzir de

valioso para as pessoas nessa rede de saberes da atualidade.

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