Rosto: a passagem da ontologia à ética em Agamben

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  • 7/24/2019 Rosto: a passagem da ontologia tica em Agamben

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    REA DE CONCENTRAO: FILOSOFIA

    DISSERTAO DE MESTRADO

    ROSTO:

    A PASSAGEM DA ONTOLOGIA TICA EM GIORGIO AGAMBEN

    GUSTAVO JUGEND

    CURITIBA

    2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    SETOR DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    REA DE CONCENTRAO: FILOSOFIA

    GUSTAVO JUGEND

    ROSTO:

    A PASSSAGEM DA ONTOLOGIA TICA EM GIORGIO AGAMBEN

    Dissertao apresentada como requisito parcial

    obteno do grau de Mestre do Curso de

    Mestrado em Filosofia do Setor de Cincias

    Humanas da Universidade Federal do Paran.

    Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio Valentim

    CURITIBA2015

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    Agradecimentos

    a Marcelo, Rosita, Dbora e V Maria por todo o suporte durante os anos;

    a Marco Antonio Valentim. Obrigado por toda a dedicao, pacincia, inspirao eamizade (espero que meu trabalho esteja pelo menos um pouquinho ionizado pelo seu);

    aos membros da banca, professores Alexandre Nodari e Cludio Oliveira poraceitarem o convite para o debate do presente estudo;

    aos professores Andr Duarte, Clvis Gruner, Emmanuel Appel, Leandro Cardim,Paulinho, Pedro Leo da Costa Neto e Walter Menon por serem engrenagensimportantes na minha formao;

    a Vitor Hugo Lopes Paese, agradecimento que tarda, mas no falha.

    a Andr Quadros, Andressa Benetti, Benito Maeso, Bruno Sanroman, Emerson Maral,Enai Azambuja, Kysy Fischer, Lanna Solci, Laura Formighieri, Luana Ferreira,Marcelo Barbosa, Tassiane Fontoura, Thiago Dantas, Vera Lcia de Oliveira e Silva eWagner Bitencourt por se engajarem em meu debate e contriburem diretamente notexto.

    a todos os meus amigos por suportarem meus humores trepidantes.

    (ofereo essa pesquisa a todos que conviveram com Isac Jugend. Se olharmos sob alente certa, o encontraremos no texto.)

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    Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que iaperder o de si, parar de ser. Assim num excesso de esprito,fora de sentido. E foi o que no se podia prevenir: quem iafazer siso naquilo? Num rompido ele comeou a cantar,alteado, forte, mas sozinho para sie era a cantiga mesma,de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantavacontinuando.

    A gente se esfriou, se afundouum instantneo. A gente...E foi sem combinao, nem ningum entendia o que sefizesse: todos, de uma vez, de d do Sorco, principiaramtambm a acompanhar aquele canto sem razo. E com asvozes to altas! Todos caminhando, com ele, Sorco, ecanta que cantando, atrs dele, os mais de detrs quase quecorriam, ningum deixasse de cantar. Foi o de no sairmais da memria. Foi um caso sem comparao.

    A gente estava levando agora o Sorco para a casa dele, deverdade. A gente, com ele, ia at aonde que ia aquela

    cantiga.Guimares Rosa.

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    RESUMO

    Nas pginas em frente apresentamos uma considerao sobre as possibilidades deconstituio de subjetividades singulares no interior do pensamento de GiorgioAgamben. Para tal, faremos uma leitura retroativa de dois conceitos tardios de sua obra:dessubjetivao e subjetivao. Embora j comentados em alguma bibliografia, aindano se fez tais conceitos agirem sobre as obras elaboradas anteriormente suaformulao. Acreditamos que, com tal procedimento, seremos capazes de tornaraparente a maneira como o autor pensa sua ontologia sempre acompanhada de umatica, sob a forma de um rosto. Ser ento por ns avaliado o papel que a linguagem

    potica tem na fundao de uma tica do sujeito e porque tal papel no poderia ser

    levado a cabo por outra forma de linguagem. Por fim, tentaremos radicalizar um dosmais fundamentais problemas que move o interior de todo discurso sobre a tica: comose funda o sujeito tico, mesmo nas condies nas quais a possibilidade da tica parecedesmoronar?

    Palavras-chave: tica; Ontologia; Dessubjetivao; Sujeito; Agamben.

    ABSTRACT

    In the following pages we present a consideration on the possibilities of constitution ofsingular subjectivities inside the thoughts of Giorgio Agamben. For such, we will

    proceed a retroactive reading of two late concepts of his work: desubjectivation andsubjectivation. Althought they are already commented in some bibliography, it stillremains undone to let those concepts take action on works elaborated before itsformulation. We believe that, in doing so, we will be able to bring up the way the authorthinks his ontology always accompanied of an ethics on the shape of a face. Then wewill rate the role that poetic language plays on the foundation of a subject ethics andwhy such role could not be held by another kind of language. At last, we will try toradicalize one of the most fundamental problems that moves the inside of everydiscourse on ethics: how can the ethical subject be founded, even in conditions onwhich the possibility of ethics seem to fall apart?

    Keywords: Ethics; Ontology; Desubjectivation; Subject; Agamben.

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    Sumrio

    Introduo 1Captulo I: Um Rosto Melanclico 11O Demnio Melanclico 11

    umfilete de sanguenas gengivas 19Uma impossibilidade cognitiva? 26

    Apoiesis e o rosto: o Demnio vai tica 29Sindoque I

    Assalto na Tabacaria 35Captulo II: Um Rosto Infinito 38decimos los vivos 38

    Ela, a dessubjetivao 42: infncia e singularidade 46

    O historiador acidioso 49

    Entre a infncia e a morte: a linguagem 52

    Metafsica: uma experincia pronominal 53Do gozo angstia: Voz 58tica nenhuma: um interldio 66

    Um pouco de poesia e fim de papo 69Infinita dessubjetivao 70Como agora falas, isto a tica 73Sindoque IIUna Paloma Triste 79

    Captulo III: Um Rosto Que Resta 81O eterno retorno de Auschwitz 81

    A velha a fiar: o termo Muulmano 90

    A vergonha 92

    teu cabelo dourado Margareteteu cabelo cendrado Sulamita 95

    Inoperosidade: a poesia um rosto 101

    O resto desejado 107

    Sindoque IIIMinha casa voc 111Concluso 113V embora, Ariel! 113

    Animal e Histria 113Vergonha? 117

    A plasticidade destrutiva 119Bibliografia 122

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    Introduo

    J no comeo do sculo passado a questo que envolve a relao entre

    linguagem e experincia tinha se tornado tema central na filosofia ocidental. A

    possibilidade de um determinado indivduo poder ou no poder dar sentido quilo queexperimenta tornou-se, na mo dos filsofos de tal poca, uma possibilidade de repensar

    as convocaes socrticas, e portanto, de reler a histria da filosofia, bem como a de dar

    uma nova matiz ao pensamento por vir. Mas nesse ponto que tudo se complica;

    diversos filsofos, de diversos lugares, com diversos idiomas, por motivos diversos se

    prope, h j mais de 100 anos, a fazer distintos conceitos, com distintos fundamentos,

    dando distintos funcionamentos e distintas importncias e s vezes at distintos nomes

    aos conceitos de linguagem e de experincia. Russel, Bergson, Foucault, Husserl,Bachelard, Jaspers, Wittgenstein, Derrid, Benjamin, Deleuze, Frege, Lacan, Levinas,

    Sartre, Marcuse, Cassirer, Debord, Heidegger, Dussel, Merleau-Ponty, Baudrillard,

    Ortega Y Gasset, Adorno, e, mais recentemente, Nancy, Badiou, Malabou, iek, Negri,

    alm de um apinhado de outros filsofos levantaro, desde suas investigaes sobre a

    linguagem, teses centrais. Mesmo para alm do que convencionalmente chamamos de

    filosofia na antropologia de Levi-Strauss, na clnica de Freud, na poesia de Joo

    Cabral de Melo Neto e na lingustica de Saussure, por exemplo a relao entrelinguagem e experincia aparece como algo nada acessrio. De maneira tal que essa

    discusso tornou-se uma gigantesca celeuma polifnica similar nau dos metafsicos

    que espantara o Micrmegas de Voltaire. Em dado momento disso, parece-nos que

    Hans-Georg Gadamer, em meio sua prpria contribuio confuso sonora,

    vislumbrou para alm de suas prprias teses, o que jaz no fundo de uma produo to

    dissonante:

    Costumamos dizer que levamos uma conversa, mas na verdade quantomais autntica uma conversao, tanto menos ela se encontra sob a direoda vontade de um outro dos interlocutores. Assim, a conversao autntica

    jamais aquela que queramos levar. Ao contrrio, em geral mais corretodizer que desembocamos e at que nos enredamos numa conversao. Comouma palavra puxa a outra, como a conversao toma seus rumos, encontraseu curso e seu desenlace, tudo isso pode ter algo como uma direo, masnela no so os interlocutores que dirigem; eles so dirigidos. O quesurgir de uma conversao ningum pode saber de antemo. O acordo ouo seu fracasso como um acontecimento que se realizou em ns. Assim,

    podemos dizer que foi uma boa conversao, ou que os astros no foramfavorveis. Tudo isso demonstra que a conversao tem seu prprio esprito e

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    que a linguagem que empregamos ali carrega em si sua prpria vontade, ouseja, desvela e deixa surgir algo que a partir de ento.1

    Nas linhas de Gadamer podemos entrever o problema que estamos tentando

    enunciar. O filsofo, ao indicar sua ideia de conversao, carrega o tema da linguagem

    de uma carga conceitual heideggeriana bastante notvel. Autntico, desvela, so

    jarges que evidentemente demonstram a influncia de Heidegger no pensamento de

    Gadamer; e tal lxico conceitual no passa pela histria da filosofia sem ser discutido,

    discordado e at mesmo ignorado por outros filsofos. Mas Gadamer deixa nessas

    mesmas linhas algo que parece estar no fundo de toda conversa e que poderia at

    mesmo ser uma definio da histria da filosofia: uma conversao no se planeja. Ou

    melhor, pode at se planejar, mas no se realiza de acordo com um plano. O que

    significa, em outros termos, que em uma conversa os interlocutores no podem, adespeito das intenes hermenuticas do prprio Gadamer, ter acesso experincia

    originria que derramou a palavra na boca de um, ou de outro. Mas que uma

    conversao tem sim, a possibilidade de que um indivduo possa fazer da palavra do

    outro, isto , da exterioridade alheia, uma experincia. E que essa experincia se torne

    exterioridade daquele de quem se lhe tomou, e que se devolva ao outro. Mas isso

    tambm significa que a palavra no se essencializa, e a interpretao acaba por ser tudo

    que temos quando de uma conversa: se Deleuze se ope dialtica de Hegel porconsiderar que a identidade produzida na supresso do negativo, e o consequente

    surgimento do esprito absoluto, tem implicaes polticas que justificam a produo de

    estados totalitrios; e se, por outro lado, Adorno afirma sem restries, em suas cartas a

    Benjamin, que somente a dialtica hegeliana pode dar um fundamento materialista e

    srio para quem quer pensar os processos sociais, ambos os filsofos tem diante de si a

    mesma Fenomenologia do Esprito. E se ambas as interpretaes foram possveis

    porque a histria da filosofia tem exatamente essa natureza: a de uma conversao que

    se d sempre a partir de uma exterioridade, e por isso sempre uma interpretao. E,

    por isso, a polifonia inevitvel. De toda maneira h algo que ainda no est

    respondido: como se produzem essas exterioridades? Como essa partitura dissonante

    ganha campo na filosofia? E mais, ser que esse modo de conversao exclusividade

    da filosofia ou o modo de qualquer conversao? com essas questes em mente que

    nos aparece agora a filosofia de Giorgio Agamben.

    1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo I: Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica .Petrpolis: Vozes, 2008, p. 497.

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    A publicao do primeiro volume da srie Homo Sacer foi o que precipitou a

    filosofia de Agamben entre os pensamentos que se tornavam protagonistas de uma

    filosofia contempornea. Diversas teses publicadas nesse volume tm, desde ento, sido

    estudadas e apresentadas em publicaes nas academias de filosofia brasileiras e

    demais. Entre elas, teses importantes como a do paradoxo da soberania, na qual o

    soberano se configura como um dentro e fora da lei, pois, sendo instituidor da norma,

    esta a ele no se aplica, de modo que a soberania sempre implicaria em um estado de

    exceo. Tal tese possivelmente a mais comentada. H tambm outra tese importante,

    aquela que diz que na modernidade o paradigma da poltica deixou de ser a cidade e

    passou a ser o campo de concentrao. Segundo Duarte:

    Para alm de sua dimenso propriamente jurdica e carcerria, tais prisesconstituem um espao ambguo que comporta a incluso do preso no sistemaformal, mas tambm sua total excluso, no apenas nas situaes em que odetento sistematicamente torturado, mas tambm naquelas em que

    permanece preso aps ter cumprido sua pena, e, sobretudo, naquelesmomentos de conflito deflagrado: em todas essas ocasies mostra-se que odetento no considerado como cidado portador de direitostemporariamente limitados, mas, sim, como encarnao excessiva hsempre um excedente de prisioneiros nessas prises - da vida que no mereceviver e que pode ser descartada e assassinada sem que se cometa delito.2

    O que interessa a Agamben, quando anuncia que o campo de concentrao se

    torna paradigma definitivo da poltica, entender justamente como esta produz umavida que pode ser liquidada sem que, no entanto, se cometa assassinato. Para entender

    esse fenmeno, Giorgio Agamben vai ao direito romano, de onde busca uma figura que

    pode lhe servir de paradigma para comear a dar visibilidade ao problema. Eis o homo

    sacer: indivduo que na sociedade romana perdia a proteo da lei, e, portanto,

    relacionava-se com ela pela forma da excluso, mas que tambm no poderia ser morto

    em sacrifcio, de modo que tambm se relacionava com a ordem religiosa pela forma da

    excluso, o homo sacer aquele que se encontra sob:

    (...) o carter particular da dupla excluso em que se encontra preso e daviolncia qual se encontra exposto. Esta violncia a morte insancionvelque qualquer um pode cometer em relao a ele no classificvel nemcomo sacrifcio e nem como homicdio, nem como execuo de umacondenao, nem como um sacrilgio Subtraindo-se s formas sancionadasdos direitos humano e divino, ela abre uma esfera do agir humano que no adosacrum faceree nem a da ao profana (...).3

    2DUARTE, Andr M. Vidas em Risco: crtica do presente em Heidegger, Arendt e Foucault. Rio de

    Janeiro : Forense Universitria, 2010, p. 284.3AGAMBEN, Giorgio.Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG,2010, p. 84.

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    O espao poltico da soberania ter-se-ia constitudo, portanto, atravs de umadupla exceo, como uma excrescncia do profano no religioso e do religiosono profano, que configura uma zona de indiferena entre sacrifcio ehomicdio. Soberana a esfera na qual se pode matar sem cometerhomicdio e sem celebrar um sacrifcio, e sacra, isto , matvel einsacrificvel, a vida que foi capturada nessa esfera.4

    Matvel sem apelo nem vela, o homo sacer a figura extrema da poltica de

    exceo sob a qual ns vivemos. Por isso a poltica hoje biopoltica5, pois lacera o

    sujeito em uma zo, isto , uma vida nua, aquela que comum a todos os animais, e

    uma bios, a vida qualificada, que os gregos acreditavam ser um suplemento de vida,

    especfica do homem, que com isso tem a possibilidade de estabelecer uma relao com

    o mundo fundada na linguagem e na experincia; e por isso, capaz de poltica. Soberano

    ento aquele que divide uma comunidade tomando o controle da biose reduzindo os

    homens sua zo. Assim, homo sacer a vida nua, aquela que, destituda de valor de

    direito ou divino, animalizada, e nisso, matvel. Mas se engana quem acredita que

    essa foi a primeira considerao de Agamben sobre o homo sacer.

    Alguns anos antes de iniciar sua srie temtica do estado de exceo e da

    biopoltica, Agamben havia feito sua primeira enunciao da existncia de um homo

    sacer. Nas ltimas pginas de um livro que se dedica a pensar no o direito e a exceo,

    mas a relao entre linguagem e morte, aparecem de maneira quase repentina (a

    sensao que temos, dado o repente de seus enunciados, que a figura do homo sacer

    no deve ter sido planejada quando Agamben se props a escrever esse estudo; mas que

    tal figura lhe ocorreu quando da elaborao dos ltimos esclios daquelas teses) as

    primeiras linhas do tema que ocuparia os escritos de Agamben at os dias de hoje. EmA

    linguagem e a morteAgamben, citando o legislador romano Festus, diz:

    No centro do sacrifcio est, de fato, simplesmente um fazer determinadoque, como tal, separado e atingido por uma excluso, torna-se sacer e ,

    por isso mesmo, acometido por uma srie de proibies e de prescriesrituais. (...).6

    4AGAMBEN, Giorgio.Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG,2010, pp. 84, 85.5O conceito de biopoltica, como se sabe, ganhou vida na pena de Michel Foucault, no na de Agamben.

    Dispensamo-nos de abordar as semelhanas e diferenas nos usos do conceito, uma vez que tal s poderiase dar na realizao de um outro estudo, o que nos afastaria por demais do que ora nos propomos. De todamaneira, para entender como Agamben retoma conceitos da filosofia poltica de Foucault, e tambmArendt, recomendamos o texto de Andr Duarte acima citado: Vidas em Risco.6

    AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e a morte: um seminrio sobre o lugar da negatividade. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2006, p. 141. Sempre apresentaremos os trechos citados com a formatao daedio original. Passagens em itlico nas citaes no so destaques nossos.

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    Por esta razo o sagrado necessariamente uma noo ambgua e circular(sacersignifica, em latim, abjeto, ignominioso e, ao mesmo tempo, augusto,reservado aos deuses; e sacros so a lei, e igualmente, aquele que a viola(...)). Aquele que violou a lei, em particular o homicida excludo dacomunidade, , pois, repelido, abandonado a si mesmo e, como tal, pode sermorto sem delito: homo sacer ist est quem populus iudicavit ob maleficium;

    neque faz est eum immolari, sed qui occidit paricidi non damnatur.7

    8

    O prprio do homem, no um indizvel, um sacerque deve permanecer nodito em toda prxis e em toda palavra humana. Ele no nem mesmo umnada, cuja nulidade funda a arbitrariedade e a violncia do fazer social. Ele, antes, a prpria prxis social e a prpria palavra humana tornadastransparentes a si mesmas.9

    Nessas densas palavras que encerram a penltima parte do tratado sobre a

    relao entre a experincia da morte e a experincia da linguagem, Giorgio Agamben

    coloca a dimenso do homo sacer em um locus que deve ser lembrado quando do

    estudo do tema.Homo sacer, aquele que tem sua vida lacerada e reduzida vida nua aquele que est dividido em experincia e linguagem. Uma tal vida que no pode sequer

    ascender quela conversao da qual outrora falvamos porque uma vida tolhida da

    possibilidade de dar exterioridade a uma experincia qualquer (e, para Agamben, na

    trilha de Benjamin, nenhuma experincia experincia se no pode ser narrada). Tal

    vida, apartada de sua experincia, uma vida que no pode doar uma exterioridade ao

    mundo. Sacer a separao, a diviso entre vida nua e vida qualificada, que no permite

    que o sujeito possa dar nome aos seus desejos, suas possibilidades, seus afetos, suasmemrias, justamente porque tem sua experincia tornada aptrida. E desse modo

    aquilo que poderia ser a qualificao de uma vida, isto , a linguagem, torna-se espao

    soberano, espao nos quais vige uma lei, uma exceo, e da qual o sujeito s participa

    como vida obediente, includa pela excluso: isso o homo sacer.

    Se a academia filosfica tem feito muito para entender o fenmeno do homo

    sacerno seu mbito jurdico, o que nos propomos nesse trabalho entender como

    possvel, em tempos nos quais a biopoltica funciona a pleno vapor, uma ticarestituir

    o sujeito quilo que a biopoltica separou , uma experincia, que ganhe campo na

    linguagem (e que, como veremos, faz da prpria linguagem, experincia). Algo que em

    Meios sem fim, Agamben chamou deforma-de-vida:

    7 AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminrio sobre o lugar da negatividade. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2006, p. 142.8um homem maldito aquele que o povo julgou por ter praticado malefcio; no permitido imol-lo,

    mas quem o mata no condenado por parricdio Trad.: Henrique Burigo.9AGAMBEN, Giorgio. A linguagem e a morte: um seminrio sobre o lugar da negatividade. BeloHorizonte: Editora UFMG, 2006, p 143.

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    Com o termo forma-de-vidaentendemos, ao contrrio, uma vida que jamaispode ser separada da sua forma, uma vida na qual jamais possvel isolaralguma coisa como uma vida nua.10

    Mas como possvel restituir a vida nua suaforma-de-vida?Como reunir, isto

    , profanar, aquilo que o sujeito teve separado em si, por uma mquina biopoltica que,segundo Agamben, remonta Grcia Antiga? Claro, Grcia Antiga. Para Agamben, j

    em Plato podemos encontrar indcios de uma separao na forma como se enuncia uma

    palavra; teoria essa que em Estncias, portanto, bastante antes da srie Homo sacer,

    Agamben colocou da seguinte maneira:

    Trata-se da ciso entre poesia e filosofia, entre palavra potica e palavrapensante, e pertence to originalmente nossa tradio cultural que j no seutempo Plato podia declar-la uma velha inimizade. (...) A palavraocidental est, assim, dividida entre uma palavra inconsciente, e como quecada do cu, que goza do objeto do conhecimento representando-o na forma

    bela, e uma palavra que tem para si toda a seriedade e toda a conscincia, masque no goza do seu objeto porque no o consegue representar.11

    Cindida nesses dois polos temos a palavra filosfica como uma palavra que

    gradualmente se torna lgica e epistemologia, expulsando e separando o sujeito do

    conhecimento e objeto conhecido de um lado; e, de outro, a palavra potica, palavra que

    se sabe ser produzida no esprito, mas da qual, no seu atinar, lhe sobrevm seu sumir. A

    palavra teria sido ento, desde a Grcia, fraturada; a palavra do conhecimento, que se

    possui, mas no se goza, e a palavra potica, a qual se goza, mas no se possui. Com

    efeito, no podemos dizer que a tese de separao entre experincia e linguagem exibida

    no primeiro Homo Sacer, O poder soberano e a vida nua a mesmo da fratura da

    palavra de Estncias. Mas notamos que a questo vai tomando forma no decorrer dos

    livros de Agamben, de modo que originam-se nos mesmos fundamentos.

    A filosofia de Agamben tem se configurado ento como uma tentativa de pensar

    uma teoria acerca do sujeito que retorna a uma forma-de-vida. Em todos os seus textos

    aparece, de uma forma ou outra, o problema da partio entre experincia e linguagem e

    uma considerao sobre como se restitu tal lacerao. Como se ultrapassa a ciso entre

    vida nua e vida qualificada, como se emenda a fratura da palavra. Nos nossos estudos da

    filosofia de Agamben (e aqui comeamos a dar conta do arcabouo metodolgico

    central do presente texto), nos pareceu que a elaborao mais interessante desse

    10AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre a potica. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2015,

    p. 13.11 AGAMBEN, Giorgio. Estncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 12.

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    problema se deu no decorrer do projeto Homo Sacer, mais especificamente em sua

    terceira parte: O que resta de Auschwitz. Nesse volume Agamben apresentou-nos os

    conceitos de subjetivao e dessubjetivao. O entendimento do que tais conceitos

    implicam torna-se mais claro se precedermos sua anlise de alguns trechos do ensaio

    Genius, contido em Profanaes. Genius, um anjo que nos funda emoo, e graas ao

    qual podemos sentir o impessoal que est em ns. Genius algo que nos toma e nos

    excede, a quem devemos conceder tudo o que pede (...) sem discusso; nos toma

    quando quer e tambm nos abandona quando bem entende. Genius , assim, um dos

    polos do sujeito:

    Devemos, pois olhar para o sujeito como para um campo de tenses, cujosplos antitticos so Genius e Eu. O campo atravessado por duas foras

    conjugadas, porm opostas; uma que vai do individual na direo doimpessoal, e outra que vai do impessoal para o individual. As duas forasconvivem, entrecruzam-se, separam-se, mas no podem nem se emanciparintegralmente uma da outra nem se identificar perfeitamente. 12

    Abandonar-se a Genius, isto , dessubjetivar-se, no nada alm de deixar-se

    possuir por uma regio do sujeito que se estranha, isto , que no se pode dominar.

    Dessubjetivar-se ento fazer experincia de umpathosque nos toma e ao qual sempre

    devemos responder. Tal resposta a subjetivao. Responder dar nome, linguagem, ao

    que foi experienciado na dessubjetivao. O sujeito, o Eu, resultado dessas foras

    assimtricas que o fundam. Logo, a experincia de dessubjetivao na linguagem pode

    ser dita da seguinte maneira:

    Eu sinto que Genius existe em algum lugar, que h em mim uma potenciaimpessoal que me impele a escrever. Mas a ltima coisa de que Geniusnecessita de uma obra, ele que nunca pegou em alguma caneta (e menosainda em computador). Escrevemos para nos tornarmos impessoais, para nostornarmos geniais, e, contudo, escrevendo, identificamo-nos como autoresdesta ou daquela obra, distanciamo-nos de Genius, que nunca pode ter aforma de um Eu, e menos ainda de um autor. 13

    Por isso o encontro com Genius pode gerar pnico. Pnico de que algo que no

    dominamos, uma dessubjetivao, possa nos ultrapassar. E por isso pode-se fugir da

    experincia em direo a uma linguagem incua que no guarda resqucios de Genius.

    Alguns, porm, so suficientemente inconscientes a ponto de se deixarem abalar e

    atravessar por ele at carem aos pedaos.14Em O Que Resta de Auschwizt, Agamben

    vai dar um paradigma formidvel do que uma dessubjetivao, e uma subjetivao a

    12

    AGAMBEN, Giorgio.Profanaes. So Paulo: Boitempo, 2007, p. 18.13Idem, p. 18.14Ibidem, p. 19.

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    que essa responde, a partir de alguns trechos da correspondncia de Fernando Pessoa.

    Nestas cartas Pessoa fala sobre como se deu o aparecimento do heternimo Alberto

    Caeiro em seu esprito, algo que o poeta teme ser algum tipo de histeria. Alberto Caeiro

    apareceu em Fernando Pessoa (apareceu em mim o meu mestre), escreveu O

    Guardador de Rebanhos e deixou o poeta como Fernando Pessoa restitudo;

    ressubjetivado. Como resposta quela dessubjetivao na qual Genius apareceu como

    Caeiro, Fernando Pessoa escreveu os poemas que chamou de Chuva obliqua. Nas

    palavras de Agamben:

    H, antes de tudo, o individuo psicossomtico Fernando Pessoa, (...). Comrelao a esse sujeito o ato potico no pode deixar de implicar umadessubjetivao radical, que coincide com a subjetivao de Alberto Caeiro.

    No entanto, uma nova conscincia potica, algo similar a um autntico ethos

    da poesia, s aparece quando Fernando Pessoa que sobreviveu suadespersonalizao e volta a um si mesmo, que e, ao mesmo tempo, no mais, o primeiro sujeito compreende que deve reagir frente suainexistncia como Alberto Caeiro, que deve responder por suadessubjetivao.15

    Portanto temos o seguinte resultado: uma dessubjetivao, um sentimento que

    nos toma e nos faz impessoal, sempre acompanhado de uma subjetivao que a ele

    responde. Fernando Pessoa ento o resultado da sua dessubjetivao em Caeiro e o

    retorno de um Pessoa que deve responder por aquelepathos que o tomou (e traz consigo

    uma segunda dessubjetivao, aquela que produziu Chuva oblqua). Dessubjetivao e

    subjetivao so, ento, os polos constituintes do sujeito nos quais este pode restituir

    uma experincia e uma linguagem. Uma forma-de-vida. Tradicionalmente, justamente

    por pensar experincia e linguagem como coisas apartadas, a filosofia tematizou o

    estudo da experincia e da linguagem como consignados ou a uma ontologia (caso a

    fundao fosse somente, e somente, em vista de uma experincia de uma negatividade)

    ou a uma tica (no caso da experincia ser sempre desde a comunidade). Em Agamben,

    a co-pertinncia necessria entre dessubjetivao e subjetivao realiza uma passagemkairolgicaentre ontologia e tica. Isto , no h um acontecimento de uma para depois

    acontecer a outra. Elas se perpetram e se fundem, dando origem ao sujeito. A maneira

    como esta co-pertinncia entre experincia e linguagem pode adentrar a comunidade,

    isto , ganhar uma exterioridade, aquilo que chamamos de rosto. Eis o objeto de nossa

    pesquisa.

    15 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III) . SoPaulo : Boitempo, 2008, p. 123.

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    O que tentaremos fazer nas pginas do estudo que apresentamos , ento, isto:

    acreditamos que os conceitos de dessubjetivao e subjetivao, por mais que tenham

    sido formulados mais tardiamente nos textos de Agamben, oferecem excelentes

    oportunidades para pensarmos algo que sempre esteve em jogo na sua produo

    filosfica. Por isso faremos uma leitura retroativa de tais conceitos. Permitindo a tais

    conceitos que atuem sobre os livros que Agamben escreveu antes de O que resta de

    Auschwitz, verificaremos se poderemos elucidar como se realiza a passagem da

    ontologia tica, bem como a produo de um rosto (rosto, que, alis, a prpria

    possibilidade da tica):

    A este ponto torna-se porventura visvel o sentido do projeto grego de umafilo-sofia, de um amor do saber e de um saber de amor, que no fosse nem

    saber do significante nem saber do significado, nem adivinhao, nemcincia, nem conhecimento, nem prazer (...). Porque s um saber que j nopertencesse nem ao sujeito nem ao Outro, mas se situasse na fractura que osdivide, poderia dizer que tinha realmente salvado os fenmenos no seu

    puro aparecer (...).16

    Fazer experincia dessa fratura da palavra no seu puro aparecimento. Restituir a

    palavra sem poder apagar a cicatriz da emenda, profan-la. Somente assim

    dessubjetivao e subjetivao podem se encontrar no rosto.

    No primeiro captulo do presente texto analisaremos o livro Estncias, de onde

    retiramos a melancolia como um primeiro paradigma da dessubjetivao. Nesse captulo

    a forma de escrita potica tomar papel protagonista para pensarmos como a linguagem

    de uma experincia pode se contrapor a uma linguagem mediatizada pelo espetculo.

    Por isso, j nessa parte, e pelo resto do texto, diversos poetas sero citados por ns. No

    final desse mesmo captulo conseguiremos expor como se forma a exterioridade sem a

    qual a tica no possvel: o rosto.

    No captulo seguinte tomaremos sob nosso interesse os textos Infncia eHistriaeA linguagem e a morte; nele, nos colocaremos para pensar a possibilidade de

    a experincia de uma negatividade comparecer palavra. Ali surgiro alguns conceitos

    importantes, como o de infncia e de Voz. Acreditamos que esse o captulo no qual

    ficar mais claro o que queremos dizer quando afirmamos que existe uma passagem

    kairolgica entre ontologia e tica. Tambm aparecer aqui a possibilidade de

    pensarmos como um rosto pode se fazer, se desfazer, e se refazer em um novo rosto.

    16 AGAMBEN, Giorgio. Gosto. In: Enciclopdia Einaudi. V. 25. Criatividade Viso. Portugal:Imprensa Nacional-Casa da Moeda: 1992, p. 156.

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    Na terceira e ltima parte de nossa dissertao retomaremos O que resta de

    Auschwitz, mais alguns trechos de outros livros, desde os quais temos por objetivo

    principalmente duas coisas: entender o que a vergonha como dessubjetivao radical

    que Agamben enuncia a partir da leitura de relatos de internos dos campos de

    concentrao; feito isso, tentaremos jogar alguma interpretao sobre a ideia de resto.

    Buscado na teologia por Agamben, resto o tempo no qual os rostos se realizam na

    comunidade. Portanto uma teoria do tempo da tica.

    Cada captulo ser finalizado por uma seo intitulada sindoque. Motivados

    pelas consideraes que Agamben faz sobre essa figura de linguagem, tentamos

    escrever alguns gestos visando a possibilidade de realizar, desde as coisas ditas em cada

    captulo, uma experincia de restituio da palavra fraturada. So ensaios, rostos, nosquais cedemos nossa dessubjetivao e respondemos como ensastas.

    Sigamos.

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    Captulo I: Um Rosto Melanclico

    Untitled, Angels Series. Francesca Woodman, 1977.

    O Demnio Melanclico

    A possibilidade da origem de um indivduo que ora vai a um polo negativo pela

    dessubjetivao, ora se positiva como sujeito, j estava presente quando da publicao

    do segundo livro de Giorgio Agamben, Estncias (um livro de uma negatividade

    exponencial, de uma negatividade ao quadrado17). Ali, valendo-se de diversos temas,

    17

    OLIVEIRA, Cludio. A linguagem e a morte. In: Alberto Pucheu. (Org.). Nove abraos noinapreensvel: filosofia e arte em Giorgio Agamben. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, FAPERJ, 2008, p.106.,

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    dos quais escolhemos aprofundar a melancolia, o fetiche e a facticidade, o italiano nos

    oportuniza um estudo sobre a constituio de um sujeito que formado por uma

    negatividade inapreensvel e uma positividade que a garante, uma experincia que no

    pode ser narrada e uma narrativa que no pode ser experienciada. Nesse emaranhado

    conceitual, Agamben nos mostra que toda produo a tentativa de tornar obra o que

    no poderia ser de outra maneira conhecido; mais: na tentativa de tornar o desconhecido

    obra, o sujeito que sente o apelo potico produz a si mesmo como um novo sujeito a

    cada vez. Essa a noo depoiesisque nos levar, ao fim do captulo, a entender, como

    resultado de um princpio tico-ontolgico, o que Agamben, em Meios sem fim, chama

    de rosto. Um dos elementos dos quais pode resultar o rosto a melancolia, na qual o

    sujeito passa a desejar um objeto impossvel de ser possudo.

    Se, ao tomar o tema da melancolia, Agamben se coloca imediatamente como

    tributrio de Sigmund Freud, no o faz sem alguma discordncia. Como de praxe em

    seus textos, uma dessas discordncias se faz por uma retomada do pensamento

    medieval, no caso a figura alegrica da visita que o Demnio Meridiano fazia aos

    mosteiros europeus:

    Basta que este demnio comece a obsediar a mente de algum desventurado,que ele insinua nele um horror ao lugar em que se encontra (...). Faz que setorne inerte para qualquer atividade que se desenrola entre as paredes de suacela, impedindo-o de continuar em paz e de prestar ateno em sua leitura;(...) proclama-se incapaz de enfrentar qualquer tarefa do esprito e aflige-se

    por ficar a vazio e imvel (...). No final, fica convencido de que nuncapoder estar bem enquanto no abandonar a sua cela e que, se alipermanecesse, encontraria a morte. Depois (...) tomado por uma languidezdo corpo e uma raivosa fome de comida (...). Ento comea a olhar ao seuredor, aqui e ali, entra e sai mais vezes da cela (...); e, ao final, desce sobre amente uma enlouquecida confuso, semelhante calota que envolve a terra, eo deixe inerte e como se tivesse ficado vazio.18

    Para a teologia medieval, h uma mudana de um comportamento inerte, de auto

    envilecimento e incapacidade de realizar as tarefas a que o monge se propunha, para um

    comportamento euforicamente inquieto e faminto. Posteriormente em Freud, no h

    passagem de uma maneira de se relacionar com o objeto que desencadeia a melancolia

    para outra forma de apresentao do melanclico, mas antes como uma extino

    18CASSIANI, J. De institutis coenobiorum. Apud. AGAMBEN, Giorgio. Estncias a palavra e ofantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, pp. 23,24.

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    daquele humor pecaminoso19. Se para o psicanalista a melancolia era a posio de

    supremacia do objeto desejado sobre o eu, a mania :

    (...) oposto a ela em seus sintomas.20(...) o contedo da mania em nada difereda melancolia, que ambas as desordens lutam com o mesmo complexo, mas

    que provavelmente, na melancolia, o ego sucumbe ao complexo, ao passoque, na mania, domina-o ou o pe de lado. 21(...). Na mania, o ego deve tersuperado a perda do objeto (ou seu luto pela perda, ou talvez o prprioobjeto), e, consequentemente, toda a quota de anticatexia que o penososofrimento da melancolia tinha atrado para si vinda do ego e vinculado setornar disponvel. Alm disso, o indivduo manaco demonstra claramentesua liberao do objeto que causou seu sofrimento, procurando como umhomem vorazmente faminto, novas catexias objetais.22

    Diferentemente de Freud, para quem os estados de mania e melancolia se

    opunham, a leitura que Agamben executa a partir da teologia medieval os une como

    faces de um mesmo processo. A acdia (acedia) monstica, que Freud acreditava ser asuperao do humor melanclico, no outra coisa que o processo de subjetivao

    decorrente da dessubjetivao oportunizada pela visita do Demnio e sua melancolia.

    Mas como podem esses dois processos ser constitutivos de um s? Para Agamben, s

    possvel entendermos a via de mo dupla na qual um mesmo objeto pode dessubjetivar

    um sujeito de duas maneiras distintas, no como coisas opostas, mas como recprocas,

    se entendermos que o aoite do acidioso, a impossibilidade da realizao de sua vida

    espiritual, a prpria vida espiritual. A impossibilidade de execuo que aqui seinterpe termina por ser vnculo estreito com o seu objeto perdido:

    O fato de o acidioso retrair-se diante do seu fim divino no equivale,realmente a que ele consiga esquec-lo, ou que deixe de o desejar. Se, emtermos teolgicos, o que deixa de alcanar no a salvao, e sim o caminhoque leva mesma, em termos psicolgicos, a retrao do acidioso no delataum eclipse do objeto, mas sim o fato de tornar-se inatingvel o seu objeto:trata-se da perverso de uma vontade que quer o objeto, mas no quer ocaminho23que a ele conduz e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada do

    prprio desejo.24

    19Os telogos medievais nomearam o comportamento daquele que recebe a visita do Dmonio Meridianopor acedia. A acediafigurava nas primeiras listas de pecados capitais e podia enviar o monge ao tribunalda Santa Inquisio.20FREUD, S.Luto e Melancolia. In: Ed. StandardBrasileira Das Obras Psicolgicas Completas deSigmund Freud, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA., 1974, p. 286.21Idem. p. 287.22Ibidem. p. 288.23Uma pequena provocao sempre me ocorre: se a acdia melanclica quer o objeto, mas no quer ocaminho que a ele conduz, o que dizer daqueles historiadores que insistem em procurar uma escada h

    muito perdida?24 AGAMBEN, Giorgio. Estncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, pp. 28, 29. Grifos do autor.

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    Uma vez que a formulao da apreenso do objeto divino desejado na vida

    teolgica, que s pode ser concebida na sua perda, se apresenta como uma descrio

    fugidia (e como poderia no ser?) da experincia da melancolia monstica, o tambm

    italiano, poeta Giorgio Caproni foi capaz de emoldurar tal vivncia do esprito de

    maneira singular em seu poemaResposta:

    O guarda-bosque,com um sorriso irnico:

    - Caador, eu nuncavi a presa que caas.

    O caador,embraando o fuzil:

    - Calado. Deus existe somente

    no timo em que tu o matas.25

    Caproni (assim como Kierkergaard em seu Conceito de angstia ou Bergman

    em O Stimo Selo) consegue, naqueles oito versos, exibir com violncia a negao

    afirmativa a que o religioso acometido de acdia tem de se atrelar. Melancolicamente o

    monge precisa que deus seja morto por suas prprias mos, para que ento ganhe vida.

    Enuncia-se assim, j na primeira parte de Estncias, a relao ambgua que a

    negatividade cumprir na formao de um sujeito positivado. A figura da acdia no

    seno:

    (...) o fermento dialtico capaz de transformar a privao em posse. J que oseu desejo continua preso quilo que se tornou inacessvel, a acdia noconstitui apenas uma fuga de..., mas tambm uma fuga para..., que secomunica com seu objeto sob a forma da negao e da carncia. (...). (...) suatortuosa inteno abre espao epifania do inapreensvel, o acidioso dtestemunho da obscura sabedoria segundo a qual s a quem j no temesperana foi dada esperana (...). To dialtica a natureza do seu demniomeridiano (...).26

    Atrelando-se ao objeto pela negao, o acidioso passa pelo processo dedessubjetivao por conta daquela ausncia, e pela subjetivao de sua jamais to

    presente apario: contemplada, mas no possuda. A maneira como esse processo de

    supresso afirmativa se d na melancolia nos leva a detalhar mais alguns aspectos do

    humor saturnino, a melancolia, bem como sua relao com o luto, do qual se diferencia

    pela regresso narcisista.

    25CAPRONI, Giorgio. O Franco CaadorIn:A coisa perdida: Agamben comenta Caproni.

    Florianpolis: Editora da UFSC, 2011, p. 201.26AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007 p. 32.

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    Quando da perda do objeto de desejo, a conscincia regride narcisisticamente

    por imediatamente identificar aquele ausente como um presente em seu eu27. Esta

    caracterstica est presente de maneira essencial em outra circunstncia: a da morte de

    um ente amado. Tal coincidncia explica o motivo que leva Freud a usar o luto como

    anlogo na sua tentativa de esclarecer o funcionamento da melancolia. Todavia, entre o

    luto e a melancolia, existe uma diferena singular. O fato de que se no luto o mundo se

    torna pobre e vazio; na melancolia, o prprio ego 28 s se explica porque

    diferentemente do enlutado, o melanclico no pode ter clareza do que de fato foi

    perdido, se que algo de fato foi perdido. A perda melanclica, diferentemente da

    enlutada, por no determinar seu objeto de perda, incapaz de diferenciar o que foi

    perdido de seu prprio eu. Narcisisticamente, o melanclico volta seu eu sobre si numa

    espcie de luto diante do espelho. Ora, a experincia melanclica a experincia da

    perda de um algo inexato, de tal sorte que resulta de um esprito melanclico a produo

    de um objeto situado a meio caminho entre o real e o irreal, igualmente indeterminado.

    Sendo assim, aquele que precisamente ao meio-dia recebeu a visita do Dmonio

    Melanclico:

    (...) torna inacessvel o prprio objeto na desesperada tentativa de proteger-sedessa forma em relao sua perda e de aderir a ele pelo menos na sua

    ausncia, assim se poderia dizer que a retrao da libido melanclica no visaseno tornar possvel uma apropriao em uma situao em que possealguma , realmente, possvel. (...) a melancolia no seria tanto a reaoregressiva diante da perda do objeto de amor, quanto a capacidadefantasmtica de fazer aparecer como perdido um objeto inapreensvel. (...).Cobrindo o seu objeto com os enfeites fnebres, a melancolia lhes confere afantasmagrica realidade do perdido; mas enquanto ela o luto por um objetoinapreensvel, a sua estratgia abre um espao existncia do irreal (...),tentando uma apropriao que posse alguma poderia igualar e perda alguma

    poderia ameaar.29

    Mas o tema da melancolia ainda tem um percurso a percorrer antes de se

    apresentar como fetiche, e, posteriormente, como facticidade, na formao do rosto

    tico-ontolgico. Quando da juno da doutrina monstica da acdia com o que a

    27Cf. FREUD, S. Luto e Melancolia. In: Ed. StandardBrasileira Das Obras Psicolgicas Completas deSigmund Freud, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA., 1974. A edio Standard traduz porego aquilo que Freud, sem fazer nenhum recurso ao latim chamava simplesmente de Ich. Por talmotivo chamaremos o Ich de eu, exceto quando em citao.28FREUD, S.Luto e Melancolia. In: Ed. StandardBrasileira Das Obras Psicolgicas Completas de

    Sigmund Freud, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA., 1974, p. 278.29AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, pp. 44, 45.

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    medicina renascentista chamava de temperamento atrabilirio30, ocorre a laicizao

    daquilo que at ento era tido como o pecado provado por aqueles que recebiam em seu

    esprito a visita do Demnio Meridiano. Todavia, se nas resmas dos mosteiros relatava-

    se acerca de padres verborrgicos, agora a melancolia passa a ser dividida, graas

    colorao negra na blis caracterstica de tal humor, com poetas, filsofos e artistas.

    Mesmo assim, entender a psicologia que produz nesses indivduos o humor atrabilirio

    no fcil. Agamben, atravs de um processo genealgico com diversos apontamentos

    acerca do tema, percebe que em todos os casos, mesmo nos registros da vida monstica,

    caracterstica do melanclico o desejo carnal; o Eros melanclico:

    O prprio processo do enamoramento converte-se nesse caso no mecanismoque abala e subverte o equilbrio humoral, enquanto, inversamente, a

    empedernida inclinao contemplativa do melanclico o empurra fatalmentepara a paixo amorosa. A obstinada sntese figurativa que da resulta e queleva Eros a assumir os obscuros traos saturninos do temperamento maissinistro continuaria presente durante sculos na imagem popular doenamorado melanclico (...).31

    Uma evidncia de que o mecanismo de enamoramento descrito por Agamben,

    no qual melancolia e acdia se alternam na sua relao com o objeto de desejo, no s

    cruzou sculos, como tambm distncias, facilmente verificada no poema nada, esta

    espumada carioca Ana Cristina Cesar:

    Por afrontamento do desejoinsisto na maldade de escrevermas no sei se a deusa sobe superfcieou apenas me castiga com seus uivos.Da amurada deste barcoquero tanto os seios da sereia.32

    Mas para alm de uma identificao genealgica da relao entre o amor ertico

    e a melancolia, Agamben precisa nos dar conta de como e porque pode decorrer da

    dessubjetivao providenciada pelo humor saturnino uma subjetivao ertica; ou

    ainda, porque se dessubjetiva em melancolia e se subjetiva em Eros:

    A inteno ertica que desencadeia a desordem melanclica apresenta-se aquicomo aquela que pretende possuir e tocar o que deveria ser apenas objeto decontemplao, e a trgica insanidade do temperamento saturnino encontra

    30 Os mdicos do perodo renascentista no fazem nada a no ser consignar na forma de doutrinamedicinal algo que Aristteles muito antes j havia percebido: aqueles cujas almas so mais gravementedominadas pelo humor saturnino, filsofos, poetas e polticos, sofrem de um necessrio enegrecimento da

    blis.31AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:

    Editora UFMG, 2007, pp.40, 41.32CESAR, Ana C. Cenas de Abril InPotica / Ana Cristina Cesar. So Paulo: Companhia das Letras,2013, p. 27.

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    assim a sua raiz na ntima contradio de um gesto que pretende abraar oinapreensvel.33

    O polo negativo do amor contemplativo positiva-se como subjetividade em amor

    ertico. Eros Melanclico , por fim, o intempestivo sobrevir do desejo violento,

    verdadeira hybris, que incide no melanclico e o faz querer possuir aquilo que ele j

    sabe que s pode ser contemplado. Por isso Plato34, em cuja conta o conhecimento

    contemplativo foi o mais alto, parece cindir sua prpria subjetividade quando, em um

    dos textos sobre o amor mais fecundos do pensamento ocidental, fratura as duas faces

    da melancolia: um Scrates contemplativo que teme a violncia ertica de Alcibades a

    ponto de pedir que esse no se aproxime. Plato registrava assim, em duas figuras

    distintas, algo que, de fato, o inteiro de uma nica subjetividade. A lembrana da

    violncia ertica de Alcibades transfigurada em ameaa na direo do amorcontemplativo socrtico, descritos no texto de Plato revelam, se unidos em uma mesma

    subjetividade como sugere Agamben, que o humor melanclico est sempre a ameaar a

    si mesmo:

    A incapacidade de conceber o incorpreo e o desejo de o tornar objeto deabrao so as duas faces do mesmo processo, no transcurso do qual atradicional vocao contemplativa do melanclico se revela exposta a umtranstorno do desejo que a ameaa de dentro.35

    A inabilidade do melanclico em perceber a impossibilidade de possuir aquiloque se deseja o pavimento da estrada de mo dupla na qual, quando enamora-se

    contemplativamente, atrela-se ao objeto pela sua ausncia, mas no sem que Eros o

    arremesse a uma frustrada tentativa de abrao.

    Todavia, ainda necessrio esclarecer por qual motivo a desordem melanclica

    desencadeada e o que faz tal humor ser to comum em poetas (para depois podermos

    mostrar porque na poesia que a relao entre ontologia e tica se exibe com tanta

    opulncia). Para tal, precisamos continuar a trilha na qual Agamben retoma, de maneira

    intermitente, outro texto de Freud. Dessa vez trata-se do Suplemento Metapsicolgico

    Teoria dos Sonhos:

    (...) no comeo de nossa vida mental, de fato alucinamos o objeto que nossatisfaria quando sentimos necessidade disso. Mas em tal situao a

    33 AGAMBEN, Giorgio. Estncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, pp. 41, 42.34

    Cf. PLATO. O Banquete.35AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 42.

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    satisfao no ocorreu, e essa falha deve ter feito com que logo crissemosalgum dispositivo com a ajuda do qual fosse possvel distinguir tais

    percepes carregadas de desejo de uma real satisfao e evita-las no futuro.Em outras palavras, desistimos da satisfao alucinatria de nossos desejosainda muito cedo e estabelecemos uma espcie de teste da realidade.36

    Se, como afirma Freud, a capacidade psquica de distinguir objeto real de objetoimaginado reside em, desde a satisfao ou insatisfao do desejo proporcionada pelo

    objeto, construir uma prova de realidade, podemos afirmar que j no inicio da vida

    psquica se apresenta o objeto ausente, aquele que se deseja, mas no se presentifica.

    Desse ponto de vista, construir o teste da realidade nada mais que distinguir o que

    imaginado do que real por uma retrao do objeto no eu. Assim, desde a consolidao

    da psicologia do sujeito, ao cobrir o desejo ertico com a prova de realidade, fecha-se a

    porta para o Demnio Meridiano. Ora, mas no justamente por essa porta que d-se o

    processo de enamoramento? Se a melancolia seria constitutiva do teste de realidade,

    uma vez que essa a retrao do objeto, a tentativa de possu-lo no seria o retorno

    incapacidade de distinguir entre objeto real e objeto ausente? O Demnio Meridiano

    irrompe porta adentro no processo de enamoramento, providenciando assim uma

    dessubjetivao amorosa. Agamben (outra vez concordando com Freud aqui, e

    discordando acol), ao voltar-se trova medieval, acentua que o amor uma vitria da

    imagem separada do objeto de desejo sobre o sujeito:

    No um corpo externo, mas uma imagem interior, ou melhor, o fantasmaimpresso, atravs do olhar, nos espritos fantsticos, que a origem e o objetodo enamoramento; mas s a elaborao atenta e descomedida contemplaodesse fantasmtico simulacro mental eram consideradas capazes de geraruma autentica paixo amorosa.37

    Assim, a relao quase necessria entre o enamoramento e a melancolia encontra

    sua chave na identificao narcisista que o enamorado faz para com seu objeto de desejo

    por via da separao e recolhimento da imagem daquele desejado. Aqui podemos

    entender tambm a natureza melanclica do poeta. Ora, se o melanclico sucumbe edessubjetiva frente imagem de seu objeto de desejo, a subjetivao acidiosa deve-se

    dar pela j descrita tentativa de abraar o inapreensvel. O poeta aquele que faz isso

    quando da intentona de dar realidade a sua vida fantasmtica do esprito por meio de

    obra. A tentativa de abraar o inapreensvel por meio da poesia no seno:

    36FREUD, Sigmund. Suplemento Metapsicolgico Teoria dos SonhosIn: Ed. StandardBrasileira Das

    Obras Psicolgicas Completas de Sigmund Freud, vol. XIV.Rio de Janeiro: Imago Editora LTDA, 1974,

    p. 263.37AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 50.

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    (...) um risco psquico essencial, de dar corpo aos prprios fantasmas e detornar predominante, em uma prtica artstica aquilo que, do contrrio, no

    poderia ser captado nem conhecido.38

    O texto potico se torna, relembrando as palavras de Ana Cristina Cesar, aamurada positivada do sujeito, de onde se garante a negatividade ertica que se projeta

    sobre os seios da sereia.

    um filete de sanguenas gengivas

    O mecanismo de funcionamento da melancolia, no qual o objeto desejado fixa

    sua presena na vida saturnina da psique atravs da sua impossibilidade de realizao,

    similar ao mecanismo do que na passagem da antropologia psicanlise batizou-se de

    fetichismo. Para Freud o fetichismo a negao por parte do menino que inicia sua vida

    psicolgica, em aceitar a ausncia do pnis materno. Assim como na melancolia o

    desejo sofre um transtorno que se configura como ameaa interna, desde a castrao (a

    percepo de que na me o falo ausente) erige-se o fetichismo, um mecanismo do

    inconsciente ertico que:

    (...) se destina exatamente a preserv-lo da extino.39 (...). O que sucedeu,portanto, foi que o menino se recusou a tomar conhecimento do fato de terpercebido que a mulher no tem pnis. No, isso no podia ser verdade, pois,se uma mulher tinha sido castrada, ento sua prpria posse de um pnisestava em perigo, e contra isso ergueu-se em revolta parte de seu narcisismo(...).40 (...). Sim, em sua mente a mulher teveum pnis, a despeito de tudo,mas esse pnis no mais o mesmo de antes. Outra coisa tomou seu lugar,foi indicada como seu substituto, por assim dizer. E herda agora o interesseanteriormente dirigido a seu predecessor. 41

    Mais uma vez situando-se entre o irreal e o real, o fetichista tambm encontrasua relao na produo de um objeto ausente, substituto do objeto castrado. Se a

    amurada melanclica era a positividade que protegia a experincia negativa de destruir a

    si mesmo, de maneira similar o fetichismo um mecanismo que salvaguarda seu objeto

    de desejo de uma ameaa que ele mesmo produziu. O deslocamento do valor outrora

    3838AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 55.39FREUD, Sigmund.FetichismoIn: Obras psicolgicas completas de Sigmund Freud: edio standard

    brasileira. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 155.40Idem, p. 156.41Ibidem, p. 157.

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    dado ao pnis materno para coisas como sapatos, roupas de pele e etc. , ento, a

    manuteno, na vida adulta, do estatuto positivo que o menino no incio da sua

    formao psicolgica dava sua me o estatuto ertico do feminino. O que nos

    interessa aqui, mais que a realidade que o pnis materno ganha via fetichismo, o

    mecanismo psicolgico segundo o qual o sujeito, incessantemente, produz em objetos

    reais o valor do que deseja, mas que ali encontra-se ausente. Mas justamente pelo

    fetichismo ser aceitao de uma ausncia que se presentifica como ameaa, ele deve

    obedecer a um mecanismo de funcionamento bastante particular:

    O fetiche, seja ele parte do corpo, seja objeto inorgnico, , portanto, aomesmo tempo, a presena do nada que o pnis materno e o sinal da suaausncia; smbolo de algo e, contemporaneamente, smbolo da sua negao,

    pode manter-se unicamente s custas de uma lacerao essencial, na qual as

    duas reaes contrrias constituem o ncleo de uma verdadeira ciso do Eu.42

    O fato mais curioso acerca da produo do objeto de fetichismo que sua

    apario se d no por sua presena ou indicao; o objeto ausentedo fetichista se faz

    fantasma43por uma referncia dada pela sua ausncia. por isso que encontramos na

    cultura44ocidental a dominao de um modo de vida baseado na produo de objetos

    cujo consumo jamais garante a posse. Nesse sentido, a anlise que Karl Marx faz do

    fetichismo da mercadoria termina por ser a notao de que, quando do desaparecimentodo valor de uso e da quantidade de trabalho social da mercadoria em favor do acmulo e

    da troca, a transformao daquele mecanismo da presena do ausente em mediador de

    relaes sociais. O sujeito consumidor atribui ao objeto de mercado, valor social,

    quando de fato s aparece seu valor de cmbio. Ora, podemos dizer, deslocando

    conceitos de um autor a outro, que no fetichismo da mercadoria, o sujeito tem o valor de

    seu objeto ertico de consumo castrado de seu valor de uso, mas protege seu valor de

    desejo projetando naquele desejado um valor que ele no possui. Tal valor social

    possvel uma vez que, despojada de seu valor de uso, a mercadoria um nada similar ao

    pnis materno, onde o sujeito do capital pode nela fazer incidir o intangvel que compe

    seu fetichismo, criando, assim, uma verdadeira fantasmagoria reguladora da vida social.

    42 AGAMBEN, Giorgio. Estncias a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 60.43Usemos aqui o sentido etimolgico do termo fantasmaj evocado pelo autor no ttulo da obra na qual

    por hora nos detemos: apario de uma imagem.44 Como ser exposto no captulo 3 do presente estudo, Agamben passar a rejeitar a distino entre

    natureza e cultura, uma vez que essa evoca (num fetichismo etimolgico) a distino entre zo (vida nua)e bos (vida qualificada). Na anlise j cannica que Giorgio Agamben realizou da biopolticafoucaultiana, tal separao um mecanismo de controle de populaes que deve ser depurado pela crtica.

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    via fetichismo que a mercadoria implementa sua prpria fantasmagoria, levando o

    sujeito a negar o que os sentidos lhe ofertam em detrimento de uma imagem produzida e

    localizada somente na subjetividade:

    A mercadoria misteriosa simplesmente por encobrir as caractersticassociais do prprio trabalho dos homens, apresentando-as como caractersticasmateriais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; porocultar, portanto, a relao entre os trabalhos individuais (...) ao refleti-lacomo relao social existente. (...). A, os produtos do crebro humano

    parecem dotados de vida prpria, figuras autnomas que mantm relaoentre si e com os seres humanos.(...) Chamo a isto de fetichismo, que estsempre grudado aos produtos do trabalho, quando so gerados comomercadorias.45 (...) S com a troca, adquirem os produtos do trabalho (...)uma realidade socialmente homognea, distinta da sua heterogeneidade deobjetos teis, perceptvel aos sentidos.46 (...) At hoje nenhum qumicodescobriu valor-de-troca em prolas e diamantes.47

    No decorrer do sculo XX o que se viu foi uma radicalizao do fetichismo da

    mercadoria como mediador social, ao ponto de diversos pensadores atriburem a ele o

    papel de sustentculo da sociedade capitalista. Para tais pensadores agora o

    fetichismo, com suas sutilezas metafsicasque, ao criar um hermetismo psicolgico

    que interrompe a experincia do objeto de consumo como objeto de uso, se faz o pilar

    do capital; no mais o acmulo de capital pela mais-valia48. Esse mecanismo permite

    que os grandes meios de comunicao, os media, possam manipular a mercadoria,

    impedindo que o consumidor atribua-lhes sua prpria experincia de fetichismo, masantes aceite o fetiche por aqueles primeiros criado e imposto. Tal radicalizao foi

    exposta de maneira singular quando o ex-professor de Giorgio Agamben, Guy Debord,

    tomou em suas mos a tarefa de reescrever a abertura da prima-dona marxista:

    Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condies deproduo se apresenta como uma imensa acumulao de espetculos. Tudo oque era vivido diretamente tornou-se uma representao.49

    Ao repetir trechos de Contribuio Critica da Economia e de O Capital,trocando o termo mercadoriapor representaoDebord lana o conceito de espetculo:

    a coroao capitalista do homem que busca atravs da posse material, aquilo que jamais

    ali pode ser encontrado, a no ser pela sua falta. A representao nada mais do que o

    45MARX, Karl. O Capital. Livro Primeiro: o processo de produo do capital. So Paulo: Difel, 1982, p.81.46Idem, p. 82.47Ibidem, p. 92.48No nos deteremos na teoria da mais-valia, uma vez que disso resultaria um outro estudo. Em linhas

    gerais, trata-se do acmulo de capital dos donos dos meios de produo atravs de um pagamento desalrios que no corresponde hora social trabalhada pelos proletrios.49

    DEBORD, Guy.A Sociedade do Espetculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.

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    falso valor que os media cravejam na mercadoria, levando-a a um estatuto rgio das

    sociedades ps-guerra. A Sociedade do Espetculo de Guy Debord , segundo

    Agamben, aquela na qual somos levados:

    (...) ao confronto com o paradoxo de um objeto inapreensvel que satisfazuma necessidade humana precisamente atravs do seu ser tal. Como

    presena, o objeto-fetiche , sem dvida, algo concreto e at tangvel ; mascomo presena de uma ausncia, , ao mesmo tempo, imaterial e intangvel,

    por remeter continuamente para algo que nunca se pode possuir realmente.50

    Talvez seja justamente pelo fato de o espetculo ser a verificao que Debord

    realizou acerca do fetichismo marxiano, no qual a tentativa de abraar o inapreensvel

    por via da separao da imagem se tornou regra, que o capitalismo possa funcionar

    como um mecanismo de controle to extremo. Ao retomar o pensamento de Debord,

    Agamben sentencia:

    (...) o espetculo no seno a pura forma da separao: onde o mundo realtransformou-se em imagem e as imagens tornam-se reais (...). na figuradesse mundo separado e organizado atravs dos media, em que a forma doestado e da economia se compenetram, que a economia mercantil tem acessoao estado de soberania absoluta e irresponsvel sobre a vida social inteira.(...) ela pode agora manipular a percepo coletiva e assenhorar-se damemria e da comunicao social, para transform-las em uma nicamercadoria espetacular (...).51

    Talvez seja essa a explicao pela qual o homem do capitalismo ps-industrialseja cada vez mais organizado em filas para entrada em um paraso irrealizvel do

    consumo, no qual o rosto do sujeito torna-se espelho de um Eros soturnamente

    melanclico, que celebra o espetculo com o acmulo de mercadorias mo direita e

    um desejo insatisfeito esquerda. Da irrefrevel insatisfao de uma mo, o Demnio

    Meridiano se faz senhor da sociedade do espetculo na qual se inaugura a acdia daquele

    que faz da busca desenfreada do irrealizvel, o motor de sua vida. graas

    incessantemente frustrada busca por algo irrealizvel que o fetichista pula de objeto em

    objeto, mercadoria em mercadoria, atrs de algo que ali s pode ser ausncia. Tal a

    natureza da transformao do fetiche em regra social:

    sobreposio do valor de troca sobre o valor de uso corresponde, nofetichismo, a sobreposio de um valor simblico particular sobre o usonormal do objeto. E assim como o fetichista nunca consegue possuirintegralmente o seu fetiche, por ser o signo de duas realidades contraditrias,assim o possuidor da mercadoria nunca poder gozar delacontemporaneamente enquanto objeto de uso e de valor; ele poder

    50

    AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, pp.61, 62.51AGAMBEN, Giorgio.A Comunidade Que Vem. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2013, p. 72.

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    manipular de todas as maneiras possveis o corpo material em que ela semanifesta, poder at alter-lo materialmente chegando a destru-lo, mas,nesse desaparecimento, a mercadoria voltar a afirmar mais uma vez a suainapreensibilidade.52

    Se a sociedade do espetculo aquela na qual somos transformados em

    verdadeiros filisteus da cultura53, talvez a nica possibilidade de escapatria seja

    inverter a tentativa de satisfazer o fetichismo por meio do consumo. Talvez seja a hora

    de pensarmos o que se pode produzir a partir do fetiche:poiesis.

    Mas Agamben no abre sua anlise acerca de uma poiesis fetichista que aboliria

    o espetculo e devolveria a possibilidade de criao a quem fetichiza, sem antes nos

    providenciar uma rpida teoria da linguagem. Para o autor, a natureza fetichista da

    poesia encontra-se no que ele chama de um dos tropos mais comuns da linguagempotica54: a sindoque. Trata-se da possibilidade de se fazer referncia a um objeto

    qualquer mencionando apenas uma parte dele. Por fim, a capacidade lingustica de

    poder dizer o que no pode ser dito. A sindoque faz-se o mecanismo gramatical

    excelente para o fetichista, uma vez que, quando mencionado, veda o objeto para o qual

    se quer dizer, j que a parte no se confunde ao todo. Por outro lado diz o que de outra

    maneira no poderia ser dito. O nada que o pnis materno , assim, figura de

    sindoque levada psicanlise.

    Em sua possibilidade de apontar para um objeto indizvel utilizando-se apenas

    de uma parte dizvel (pois deus s existe no momento em que se o mata), a sindoque

    exibe o todo, no no que foi apresentado, mas justamente no que no foi capaz de dizer.

    justamente na incompletude da parte que o todo aparece. Isso explica porque a partir

    da modernidade se torna um fenmeno cada vez mais comum a poesia fazer meno a

    algo de potico que nunca especfico, mas sim, da poesia como entidade absoluta que

    se manifesta somente pela sua ausncia. A sindoque potica , ento, o lugar prprioonde o fetiche pode ser exibido sem ser o lugar da submisso espetacular. Antes, na

    52AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 68.53 Em Experincia, Walter Benjamin chama de filisteus aqueles que, ao serem incapazes deexperienciar o inefvel, tornam-se amargurados. Em sua amargura diminuem o sentido da palavraexperincia a um proselitismo do cansao: (...) uma vez que o filisteu jamais levanta os olhos para ascoisas grandiosas e plenas de sentido, a experincia transformou-se em seu evangelho. Ela converte-se

    para ele na mensagem da vulgaridade da vida. (BENJAMIN, W. Experincia In Reflexes sobre a

    criana, o brinquedo e a educao. So Paulo, Duas Cidades: 2002, p. 22.54AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 60.

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    daquele que sentiu um filete de sangue nas gengivas e agora olha muito tempo o

    corpo de um poema. Mas, como dito em nossa introduo, o final da escritura do

    poema a ressubjetivao, a individualizao do sujeito na forma de uma identidade.

    Porm, ningum melhor que o poeta, e principalmente o poeta moderno, sabe que o

    sujeito se destri quando da experincia do intangvel potico e se reconstri em um

    novo sujeito quando, por fim o fetiche lhe foge fatalmente entre as mos; quando o

    intangvel se torna obra e o poeta se torna autor. Por isso Agamben menciona em

    regozijo, desde o exemplar epiteto de Rimbaud, eu um outro57, poetas que sabiam

    que fazer poesia no somente a criao de uma obra, mas tambm uma destruio de

    si. Amontoados em lista de uma verdadeira poiesis bestial, Paul Gauguin, Eugenio

    Montale, Arnulf Rainer, Honor de Balzac, Cindy Sherman, Fernando Pessoa, Jackson

    Pollock, Olivier De Sagazan, Paul Valry, Charles Baudelaire, Roberto Fabelo,

    Francesca Woodman, Ingmar Bergman, Siba, Eugne Ionesco, Virginia Woolf, Heiner

    Mller, Lon-Gontran Damas, Billie Holiday, Alphonsus de Guimaraens, Francisco de

    Goya, Anselm Kiefer, Franz Kafka, Sylvia Plath, Heinrich von Kleist, Lisa Stokes,

    Lautramont, Edvard Munch, Ana Cristina Cesar, Michel Proust, Rogrio Skylab, Pina

    Bausch, Andrei Tarkovski, Oswaldo Guayasamn, Ismael Nery, WisawaSzymborska,

    Stphane Mallarm, Tadeuz Kantor, William Blake, Andr Abujamra, Ludwig van

    Beethoven, Nicols Guilln, Henri Matisse, Irina Ionesco, Raul Cruz, Marc Chagall,

    Bertolt Brecht, Valter Hugo Me, Srgio Sampaio, Paul Celan, Tatsumi Hijikata, Rainer

    Maria Rilke, Yoshi Kusama, Wassily Kandinsky Cy Twombly, Samuel Beckett, Maria

    Callas, Hector Berlioz, Vincent Van Gogh (cujo anti-humanismo, se no se verifica nas

    formas, certamente se exibe no desespero das tonalidades), Frida Kahlo, Leonardo Da

    Vinci58e outros so evocados para dar seu voto a favor da tese de Agamben segundo a

    qual, na produo de um fetiche potico, os poetas se tornam eles mesmos fetiche,

    resultado visvel da experincia do intangvel:

    Qualquer que seja o nome que ela d do objeto de sua pesquisa, toda a quetda poesia moderna sinaliza para essa regio inquietante, na qual j noexistem nem homens nem deuses, e onde, como um dolo primitivo, s seeleva incompreensivelmente alm de si mesma uma presena que , ao

    57RIMBAUD, Arthur. Carta a Georges Izambar. Carta a Paul Demeny. In Alea: Estudos Neolatinos,vol. 8, n. 1, Rio de Janeiro: 2006, p. 155.58Da Vinci, antes mesmo do modernismo, j havia de imprimir a dessubjetivao em seus auto-retratos.Se isso no est evidente de maneira imediata na obra, uma leitura de seus dirios confirma que sua

    poiesisera dirigida por afetos, e uma de suas mais famosas gravuras apresenta um Leonardo contaminadode rancor contra outros pintores. Cf. CLARK, Kenneth. Leonardo da Vinci: An Account of hisdevelopment as an Artist. London: Penguin Books, 1993.

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    mesmo tempo, sagrada e miservel, fascinante e tremenda, uma presena quecarrega consigo, contemporaneamente, a fixa materialidade do corpo morto ea fantasmtica inapreensibilidade do ser vivo. Fetiche ou Graal, lugar de umaepifania e de um desaparecimento, ela se mostra, e cada vez de novo volta adissolver-se no prprio simulacro de palavras (...).59

    (...) comea aqui (...) a queda sonamblica do divino e do humano rumo auma zona incerta (...). (...). (...) a singular coincidncia de niilismo e prticapotica , em virtude da qual a poesia se torna o laboratrio onde todas asfiguras conhecidas so desarticuladas, para dar lugar a novas criaturas para-humanas ou sub-divinas (...).60

    Uma impossibilidade cognitiva?

    A consonncia etimolgica entre o conceito de fetichismo (que agora ,

    lembremos, salvaguarda positiva da negatividade melanclica) e a ideia de facticidadeser agora nossa guia para podermos fundar nosso paradigma tico-ontolgico: o rosto.

    Tal relao etimolgica proposta por Agamben em dois momentos (e de duas

    maneiras distintas) de sua obra. Deixaremos aquela proposta pelo italiano emEstncias

    para o segundo captulo deste estudo, quando nos ocuparemos do conceito de Infncia.

    Por ora nos concentraremos em uma manobra etimolgica um pouco menos conhecida.

    A partir de uma noo sobre a possibilidade de significao indicada ao fim de

    Estncias, partiremos para uma leitura de A paixo da facticidade de onde nos serpermitido atingir o ensaio O rosto. Aqui teremos um vislumbre do amor como tema

    fundamental da tica; tal tema retornar de maneira intermitente, mas sempre decisiva,

    em diversos momentos do estudo presente.

    At aqui pudemos observar que toda a produo potica nada mais que a

    tentativa de tornar tangvel o intangvel. A vontade de abraar o inapreensvel tornada

    obra. Como temos afirmado, a poesia a amurada positiva que resguarda a

    negatividade do filete de sangue nas gengivas. Trocando em midos: a experincia

    potica lugar excelente onde se transita da passividade de um afeto que dessubjetiva o

    sujeito para a obra onde se subjetiva aquele dessubjetivado. Tal relao o fetiche.

    Resulta disso a diferena entre intangvel e tangvel que Martin Heidegger j havia

    conceituado como diferena ontolgica, na qual distinguem-se onticamente e

    59AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:

    Editora UFMG, 2007, pp. 86, 87.60 AGAMBEN, Giorgio. Desapropiada Maneira, In A coisa perdida: Agamben comenta Caproni.

    Florianpolis: Editora da UFSC, 2011, p. 29.

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    ontolgicamente, o ente e oser.61 justamente a diferena ontolgica que fora a obra

    da cultura a sempre que apresentar o tangvel, esconder o intangvel:

    O fundamento desta ambigidade do significar reside naquela fratura originalda presena, que inseparvel da experincia ocidental do ser, e pela qual

    tudo aquilo que vem presena, vem presena como lugar de umdiferimento e de uma excluso, no sentido de que o seu manifestar-se , aomesmo tempo, um esconder-se, o seu estar presente, um faltar. (...). S

    porque a presena est dividida e descolada possvel algo como umsignificar; e s porque no h na origem plenitude, mas diferimento (sejaisso interpretado como oposio do ser e parecer, seja como harmonia dosopostos ou diferena ontolgica do ser e do ente), h necessidade defilosofar.62

    Por isso, justamente a ausncia de significado no produto potico63que permite

    ao expectador significar o que se observa (e por isso que, como veremos a seguir, a

    experincia artstica no coincide com a obra). Ou seja, se de um lado o poeta produziuo tangvel a partir do intangvel, do outro o leitor pode se conduzir a um intangvel a

    partir do tangvel assim cria-se, desde a possibilidade da queda do Demnio

    Melanclico no fetiche potico, o fio condutor que leva da ontologia tica. Mas, se o

    que dissemos h pouco verdade, a experincia potica no produz somente poesia,

    como tambm produz poeta. Portanto, assim como a poesia, o poeta tambm deve

    possuir sua prpria salvaguarda positiva do que nele h de negatividade: a subjetividade

    que resguarda a dessubjetivao. Para entendermos como isso se d, haveremos deinvestigar um pouco da relao que o autor ir travar com o seu antecessor alemo. Em

    A paixo da facticidade64Giorgio Agamben vai obra heideggeriana Ser e Tempo65

    com o objetivo de, a partir dessa, criar uma teoria sobre o amor. Para tal, Agamben

    realiza uma interpretao etimolgica do conceito de facticidade presente naquele texto:

    sabedor que o termo Faktizitt aparece tardiamente no vocabulrio germnico,

    Agamben indica, a princpio, uma relao a partir do termo portugus feitio que

    haveria gerado o adjetivo francs faitis e o substantivo francs fetiche. Por um

    emprstmo da lngua francesa, o idioma alemo teria produzido o termo feit (belo,

    61O tema da diferena ontolgica central para Agamben. Assim como em sua visita ao pensamentofreudiano, o italiano tambm h de ter uma relao em que concordncia e discordncia se alternam paracom Heidegger. No desfecho da atual dissertao, quando analisarmos O que resta de Auschwitz, talrelao ser levada a uma tenso que terminar por tornar impossvel a distino entre ser e ente. 62AGAMBEN, Giorgio.Estnciasa palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte:Editora UFMG, 2007, p. 219.63Um pequeno pleonasmo, permitamo-nos.64

    In: AGAMBEN, Giorgio. A potncia do pensamento: ensaios e conferncias. Belo Horizonte:Autntica Editora, 2015.65HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Campinas: Editora da Unicamp; Petrpolis: Editora Vozes. 2012.

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    gracioso) presente na palavra Faktizitt. A facticidade heideggerina converte-se ento

    na propriedade que cada indivduo detm de ser amado. Segundo Agamben:

    De acordo com sua etimologia, faitisdesigna aqui tudo o que em um corpohumano parece feito intencionalmente e com arte, e por isso atrai o desejo e

    amor. como se o ser tal de um ente, seu feitio ou sua maneira seseparassem dele como beleza em uma espcie de autotranscendncia

    paradoxal66

    Na facticidade o ser-a a cada vez sua possibilidade, a relao j sempre

    realizada entre as disposies e o modo como o ser se doa no mundo. No uma

    possibilidade que poderia ter sido, mas a possibilidade que sempre se . Se isto certo,

    o parentesco entre fetichismo e facticidade no meramente etimolgico. Ser concebido

    com arte no seno ser potico, dotado de poiesis, e se atrai desejo, porque a

    intangibilidade que o originou agora ausente, e emite visto quele que observa para

    poder desejar, ou seja, significar. Fetiche e facticidade so, ento, maneiras de se dar no

    mundo, aquilo que de outra maneira no poderia ser concebido. Se no fetiche se produz

    a relao entre o intangvel e o tangvel em obra, na facticidade abre-se essa mesma

    relao, mas em vez de se apresentar como obra, apresenta-se como poeta. O problema

    comea a se intensificar quando percebemos que, se a cada experincia potica, o

    sujeito produz um novo poema, ele tambm faz de si mesmo uma nova poiesis. O que

    significa dizer que a cada experincia do intangvel, o poeta se destri e se refaz,

    fazendo assim, de si mesmo, um novo poeta.

    Em Ser e TempoHeidegger evita nominar o indivduo pelo conceito de sujeito.

    O Ser-a, oDasein, como prefere conceituar o autor, justamente aquele cujo modo de

    ser se d na sua diferena ontolgica, ou seja, na facticidade; tal modo caracteriza-se

    pela relao que h entre ser e ente, sendo o primeiro o modo ontolgico e o segundo o

    modo ntico. Todavia, posto de tal modo fica difcil visualizar uma possvel imbricaotica doDasein. Para que isso possa se dar, passemos a entender a diferena ontolgica

    no mais pela noo de ser e de ente, mas sim pela noo de como o Dasein pode

    experienciar uma ou outra coisa: analogicamente, ao que Agamben chama de intangvel

    e tangvel seria, para Heidegger, o prprio e o imprprio. Se o Daseinexperiencia o

    prprio, ele existe e se apresenta sempre na impropriedade:

    66AGAMBEN, Giorgio.A potncia do pensamento: ensaios e conferncias. Belo Horizonte: AutnticaEditora, 2015, p. 270.

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    O decair no determina s existenciariamente o ser-no-mundo. O redemoinhodeixa ao mesmo tempo manifesto o carter-de-jacto e o carter-de mobilidadeda dejeco, a qual no encontrar-se do Dasein pode se impor a ele mesmo.(...). factualidade inerente que oDasein,enquanto o que permanea no

    jacto e entre no redemoinho da impropriedade de a-gente. A dejeco, naqual o fenmeno da factualidade fica visvel, pertence ao Dasein, para o qual

    em seu ser est em jogo esse ser ele mesmo. ODasein existe factualmente.67

    Ora, existir na facticidade, decair, no seno constantemente manter-se em

    relao com o intangvel, mas apresentando-se como tangvel. Todavia, essa

    tangibilidade na qual o sujeito se apresenta recai no imprio daquilo que trs mil anos

    antes Herclito j tinha demonstrado como o lugar no do conhecimento, mas sim de

    sua impossibilidade: o mbito dos sentidos. Uma impossibilidade cognitiva ergue-se

    ferozmente contra a possibilidade de que se possa conhecer o sujeito que a cada vez se

    apropria de sua intangibilidade, fazendo de si mesmo fetiche, facticidade. Seprecipitando em direo a um novo refazer, a experincia potica a experincia do

    transitrio, como bem disse Hannah Arendt:

    A vida desaparece de dia para dia uma vez que vai se precipitando para amorte; no tem permanncia, no permanece idntica a si mesma, no estsempre presente, nunca verdadeiramente um facto, porque sempre umainda-no ou um no-mais. Nenhum bem terrestre conseguiria mant-la noseu estado transitrio, visto que o futuro lhe arrancar tudo, e, perdendo-se namorte, perder tudo o que tinha chamado a si.68

    Se o sujeito potico esse cuja negatividade da experincia o faz mergulhar emum rio de perptua transformao do ente, de modo que seu ser seja sempre vedado pela

    transitoriedade ntica, como possvel que tal sujeito doe ao mundo um resultado

    positivo de suapoiesis, podendo, assim, ser um sujeito tico?

    A poiesis e o rosto: o Demnio vai tica

    Em sua verso primria, Agamben j havia notado que a visita do Demnio

    Meridiano nada mais , conforme indica o cnone catlico, que a recepo de um anjo 69

    de feies perversas. A predileo da figura demonaca em visitar a fotgrafa Francesca

    67HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Campinas: Editora da Unicamp; Petrpolis: Editora Vozes. 2012,p. 501. A nova edio brasileira de Ser e Tempo apresenta o conceito de Faktizitt traduzido porfactualidade. Optamos por manter a traduo por facticidade (exceto quando em citao) por acreditarmosque, alm do conceito estar consolidado nessa forma, a grafia facilita o entendimento do procedimentoetimolgico que Agamben desenvolve.68

    ARENDT, Hannah. O Conceito de Amor Em Santo Agostinho. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, pp. 23,24.69Cf. AGAMBEN, Giorgio. O Homem Sem Contedo.

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    Woodman levou-a a registrar o encontro acidioso em sua coleoAngels. Numa srie de

    angustiantes auto retratos, Woodman se duplica constantemente: uma Francesca que

    firma a identidade do tangvel lado a lado com outra que escapa da alteridade.

    Woodman, que afirmava em sua marginlia fotogrfica a dificuldade de estabelecer-se

    como ser tangvel, exibe em uma das fotografias runas de um apartamento de onde se

    nota emoldurada pela janela uma rvore convalescente de outono. Francesca Woodman

    surge em meio sala permitindo que aquele que a observa tenha apenas um vislumbre

    da intangibilidade que direcionou sua obra, tendo de se contentar com uma feio

    fugidia e o detalhe de um sapato. A impossibilidade de adivinhar o filete de sangue que

    percorreu as gengivas de Woodman a produo do rosto:

    O rosto o ser irreparavelmente exposto do homem e, ao mesmo tempo, oseu permanecer oculto precisamente nessa abertura. (...). Aquilo que o rostoexpe e revela no algo que possa ser formulado nesta ou naquela

    proposio significante e tampouco um segredo destinado a permanecer parasempre incomunicvel. A revelao do rosto revelao da prprialinguagem. Ela no tem, por isso nenhum contedo real, no diz a verdadesobre este ou aquele estado de esprito ou de fato, sobre este ou aqueleaspecto do homem ou do mundo: apenas abertura, apenascomunicabilidade. Caminhar sob a luz do rosto significa ser tal abertura,

    padec-la.70

    A tentativa potica de tornar obra aquilo que de outra maneira no poderia ser

    concebido, nada mais que a tentativa de verter o intangvel em linguagem. QuandoAgamben afirma que essa linguagem o rosto, est a dizer que possvel pensar a

    linguagem em um paradigma que se deixe ser capturado pelos sentidos. Ou seja, o rosto

    a exterioridade de um sujeito. constituinte do rosto toda sorte de morfias que ele

    capaz de assumir, da mscara tragicmica a inexpressividade cadavrica; todo tom de

    voz e a maneira de gesticular contra algo; o assentar da cabea na mo esquerda to cara

    para um Drer melanclico, o espaldar de pernas de uma bailarina, o engraxar de

    sapatos no centro da cidade e o arfar do gluto esfomeado. Tudo isso rosto; a

    expressividade que cada sujeito ganha para cada nova dessubjetivao. A facticidade

    que, a cada experincia do intangvel, destri e recria o tangvel, lana o sujeito no rio

    de feso sob a forma de um rosto parte passiva da subjetividade que apenas responde

    ao que vivido. Mas, assim como na produo da cultura o fetiche torna opaco o

    sentido intangvel que foi responsvel por aquela poiesis, tambm no ser possvel

    quele que encarar o poeta vislumbrar o afeto que produziu o rosto que contempla. Por

    70AGAMBEN, Giorgio.Meios sem fim: notas sobre a potica. Belo Horizonte: Autntica Editora, 2015,pp. 87, 88.

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    isso o que o rosto expe no o contedo inapreensvel 71 da linguagem (no diz a

    verdade sobre este ou aquele estado de esprito), mas a prpria experincia da

    linguagem:

    Aquele que realiza o experimentum linguae deve, portanto, arriscar-se emuma dimenso perfeitamente vazia (...) na qual no encontra diante de siseno a pura exterioridade da lngua (...)72

    A dimenso vazia da qual se nutre a comunicabilidade do rosto resultado da

    diferenciao ontolgica que ocorre entre a experincia do inapreensvel e a produo

    de uma visibilidade que esconde uma tal experincia. Se fosse possvel vazar, por assim

    dizer, a experincia na linguagem, os monges acometidos de acediano teriam mais de

    se prostrar frente s autoridades eclesisticas, pois seria evidente que, na acdia, o que se

    apresenta como uma fuga de tinha sua origem na experincia de uma fuga para73oobjeto que , necessariamente, ausenteo deus assassinado de Caproni. Mas tambm,

    como veremos, graas a essa diferena ontolgica da qual resulta o rosto, que somos

    capazes de dar nome aos rostos, e por isso, a tica possvel. A tica, como discurso

    onde o significar no pode pressupor uma essncia, depende de que aquilo que se

    apresenta como rosto, ou seja, a imagem de um sujeito, no seja resistente criao. E

    por isso que, novamente, o lugar mais evidente onde um discurso tico sobre o rosto

    possvel, o discurso potico.74

    Retomemos: se o resultado da poiesis a produo de um objeto cujo

    manifestar-se , ao mesmo tempo, um esconder-se, o seu estar presente, um faltar, no

    h motivos para suspeitarmos de que o rosto no obedea a essa mesma lgica. Mas

    justamente este presente-ausente que se coloca disposio da tica e do discurso. Na

    retomada que Agamben faz do desenvolvimento que a filosofia platnica atingiu no

    medievo, o rosto seria a imagem que, atravs de uma pintura na alma, instilaria ali a

    vontade de Eros. Mas se a experincia de uma imagem externa pode produzir na alma o

    ertico, ento