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o CONHECIMENTO NO COTIDIANO AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SOCIAL Ana Mercês Bahia Bock Angela Arruda Bader Burihan Sawaia Celso Pereira de Sá Clélia Maria Nascimento Schulze Edson Alves de Souza Filho Leny Sato Maria Alice Vanzolini da S. Leme Mary Jane P. Spink (org.) Neuza Maria Guareschi Ricardo Vieralves de Castro Silvia T. M. Lane Solange de Oliveira Souto editora brasiliense

RS - M.J.Spink - Introdução e Capítulo 01

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Introdução + Capítulo 01(Celso de Sá) do livro "O conhecimento no cotidiano - as representações sociais na perspectiva da psicologia social" (Mary Jane Spink org.)

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Page 1: RS - M.J.Spink - Introdução e Capítulo 01

o CONHECIMENTONO COTIDIANO

AS REPRESENTAÇÕES SOCIAISNA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA SOCIAL

Ana Mercês Bahia BockAngela Arruda

Bader Burihan SawaiaCelso Pereira de Sá

Clélia Maria Nascimento SchulzeEdson Alves de Souza Filho

Leny SatoMaria Alice Vanzolini da S. Leme

Mary Jane P. Spink (org.)Neuza Maria Guareschi

Ricardo Vieralves de CastroSilvia T. M. Lane

Solange de Oliveira Souto

editora brasiliense

Page 2: RS - M.J.Spink - Introdução e Capítulo 01

Primeira edição, 19931~reimpressão, 1995

Copyright © by Associação Brasileirade Psicologia Social, 1993

Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada,armazenada em sistemas eletrônicos, fotocopiada,

reproduzido por meios mecãnicos ou outros quaisquersem autorização prévia da editora.

Preparação de originais: Irene HikishiRevisão: Carmem T. S. Costa e Márcia Leme

Capa: Luciano PessoaSumário

Apresentação.......... 7

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

PARTEI: Perspectivas Teóricas e Metodológicas\_ .-J

li Representações Sociais: o conceito e o estadoatual da teoria .Celso Pereira de Sá

19o conhecimento no cotidiano: as representações sociais naperspectiva da psicologia social! Mary Jane P. Spink (org.).- São Paulo: Brasiliense, 1995.

ISBN 85-11-15057-92(0 impacto da teoria das Representações Sociais

Maria Alice Vanzolini da Silva Leme46

I. Interação social 2. Psicologia social r. Spink, MaryJane.P.

95-4371 CDD-302

índices para catálogo sistemático:1. Interação social : Sociologia 3022. Psicologia social 302

3. Usos e abusos do conceito de RepresentaçãoSocial .Silvia Tatiana Maurer Lane

58

4. Representação e ideologia - o encontrod sfetichizador .Bader Burihan Sawaia

73

EDITORA BRASILlENSE S.A.R. Barão de Itapetininga, 93 - 11.° a.

01042-908 - São Paulo - SPFone (011) 258-7344 - Fax 258-7923

Piliada à ABDR

studo empírico das Representações Sociais 85Mary [ane Paris Spink

An li d Representações Sociais 109'd on Alves de Souza Filho

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1.Representações sociais da prostituição na/ cidade do Rio de Janeiro...................... 149

Ricardo Vieiralves de Castro

PARTEII: Relatos de Pesquisa

2. A Representação Social do trabalho penoso 188Leny Sato

3. A criança e a Representação Social de podere autoridade: negação da infância e afirmaçãoda vida adulta 212Neuza Maria de Fátima Guareschi

7.O jogo de papéis e Representações Sociais nauniversidade: o estudo de um caso particular .. 292Solange de Oliveira Souto

Apresentação4.Ecologia e desenvolvimento: representações

de especialistas em formação.............................. 234Angela Arruda

6. Eu caçador de mim: pensando a profissãode psicólogo.......................................................... 280Ana Mercês Bahia Bock

À medida que a Academia começou a reabilitar aordem simbólica, liberando-a dos grilhões da infra-es-trutura econômica da sociedade, a noção de represen-tação como mediação da ordem simbólica passou a sercada vez mais central nas várias disciplinas que se de-bruçam sobre o estudo do mundo social.

A noção propriamente dita tem uma longa histó-ria e não cabe a nós traçá-Ia aqui: Vale, entretanto, res-saltar a polissemia seminal introduzida em seu estUdO)através da escolha lingüística: "re resenta ão", na

ers12ectiva lingüística, é tanto re-a resentação - e, ~ortanto c~ e a re idade - como i erprera, ão., pois, um misto de pré-ciência, ainda nos estágios de

descrição do real, e de teatro, em que atores criam ummundo imaginário, reflexo também do mundo em quevivemos - um exemplo, como queria Wittgenstein, dopoder da linguagem de criar o mundo.

A centralidade atual da noção de representação sevidencia na produção das mais diferentes disciplinas:hi tória das idéias, a antropologia, a economia, a

H mi ti a a psicologia, todas focalizam as representa-

5.As Representações Sociais de Pacientesportadores de câncer 266Clélia Maria Nascimento Schulze

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8 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

ções corno objeto central de estudo ou corno instrumen-to imprescindível para acessar o objeto em questão. Oestudo das representações define, assim, um cenário.interdisciplinar; contudo, corno as diferentes discipli-nas mantêm suas especificidades, ao apresentar um li-vro escrito a partir da perspectiva da psicologia social,faz-se necessário pontuar algumas dessas diferenças.

É na psicologia social que as representações dei-xam de ser mera noção catalisadora e adquirem o esta-tuto de abordagem, ou, mesmo, corno querem alguns,de teoria. As razões são claras: a sicolo ia social sede~ e a uestão do conhecimento _f.Q!n.Q...proe,cesso e não apenas corno conteúdoj a elaboração_do~nhecimento na .l2ers ect'va do in ivíduo na suA..~g~ aridade ou IlO que lhe étípico enquanto repre-senfante da espécie - nas características da ideaçãocorno ca acidade cognitiva rópria da espécie -, temsi o tradicionalmente um campo e estudo aapsicolo- --gia.~ssa ers ectiva s.representações são essencial-mente dinâmicas; são produtos de determinações tantofiistóricas cornoao aqui-e-agora e construções que têmurna função de orientação: conhecime~tos sociais quesituam o indivíduo no mundo e_situando-o, definemsua identidade sociar: o seu modo de ser particular,produto de séú ser social.

Mas também dentro da psicologia social há pers-pectivas diversas que se debruçam sobre a construçãodo conhecimento. Importante frisar, portanto, que estelivro foi organizado a partir da abordagem denomina-da pela psicologia social de "Representações Sociais",que se contrapõe explicitamente às vertentes maisognitivistas da "cognição social". São muitos os auto-

r s que procuram dar corpo a esta distinção, prova, tal-v z, da proximidade entre os dois campos de saber.I diferenças apontadas, a questão do contexto é a'lu melhor pontua a distância. Nas vertentescognitivistas o contexto é o conjunto de variáveis inde-Ix-nd ntes que pr cisam ser controladas: '''quem'' e

APRESENTAÇÃO

"onde" são controlados até porque afetam o produto-o "que" e o "corno". Já na vertente que estuda as "Re-presentações Sociais", o contexto é um aspecto funda-mental da pesquisa, seja porque as representações sãocampos estruturados pelo habitus e pelos conteúdoshistóricos que impregnam o imaginário social, sejaporque são estruturas estruturantes desse contexto e,corno tal, motores da mudança social.

Assim, se num primeiro momento usamos a preo-cupação com o "processo" corno estratégia para distin-guir a forma pela qual a psicologia social pensa asrepresentações, reintroduzimos agora o "conteúdo"para distinguir a abordagem aqui adotada das verten-tes mais cognitivistas da psicologia social, especial-mente aquelas que focalizam o conhecimento apenascorno processamento de informação. O conteúdo, nocaso, é essencialmente um conteúdo social; conteúdoeste que é produto e produtor da ordem simbólica.Não se trata, portanto, de ausência ou presença de con-ceitos específicos, pois as representações sãovalorativas antes de serem conceituais; e respondem aordens morais locais, ficando, corno tal, prenhes deafeto; sendo conhecimentos práticos, estão orientadaspara o mundo social, fazendo e dando sentido às práti-cas sociais. São essas especificidades que fazem comque seja apropriado pensar num livro sobre as Repre-entações Sociais na perspectiva da psicologia social.

Enquanto abordagem, as Representações Sociais -mo vêm sendo trabalhadas por Serge Moscovici e

s U olaboradores - têm se destacado mais pela rique-z. ::I. produção empírica marcada pela diversidade

pois n e cenário atuam pesquisadores das maisvariados tradições - do que pela reflexão teórico-r '\( to 1(1) i .O presente livro, embora valorize a ri-que z< l div rsidade da produção empírica brasileira,foi organize d d maneira a situar o leitor no debatemais g( ral; m Ia, assim, capítulos teóricos e meto-101)gi os om apresentação de trabalhos empírico

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10 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

que possam dar concretude à discussão conceitual.Sendo fruto das discussões que vêm sendo travadasem reuniões científicas, de âmbito nacional na área dapsicologia, o livro incorporou autores de regiões diver-sas do país. Reflete, assim, em certa medida, a produ-ção nacional nesta área.

O livro está dividido em duas partes. A primeirainclui seis capítulos que versam sobre questões teóricase metodológicas.

Celso Pereira de Sá, em "Representações Sociais:oconceito e o estado atual da teoria", situa as represen-tações no contexto mais amplo das tradições psicológi-cas e sociológicas, pontuando aí a ótica específica dapsicologia social. Trabalhando fundamentalmente comas proposições de Serge Moscovici e Denise Jodelet, ocapítulo tem por objetivo conceituar as RepresentaçõesSociais e explicitar os elementos básicos da teoria.

Maria Alice Vanzolini da Silva Leme, no capítuloseguinte, intitulado "O impacto da teoria das Repre-sentações Sociais", introduz o leitor no debate maisamplo atualmente travado na Europa. Destaca doiseixos desse debate: de um lado a crítica feita à faltade clareza conceitual da abordagem proposta porMoscovici; e, de outro, o questionamento sobre a origi-nalidade dessa abordagem e sua relação com outrasvertentes teóricas da psicologia social.

O terceiro capítulo, de autoria de Silvia TatianaMaurer Lane, é intitulado "Usos e abusos do conceitode Representação Social". Partindo da constatação daimportância da abordagem introduzida em 1961 porSerge Moscovici para o estabelecimento de uma "psi-cologia social crítica", aponta para a coexistência, noBrasil, de duas formas de trabalhar as RepresentaçõesSociais.A primeira, mais próxima à Escola Francesa deMoscovici, debruça-se diretamente sobre a questão do

nhecimento. A outra, pautada pela perspectiva ma-l rialista histórica, focaliza as representações comomediação para o estudo da tríade atividade/consciên-

APRESENTAÇÃO 11

cia/identidade. Ambas as vertentes geraram uma ricaprodução empírica e a autora assinala algumas contri-buições feitas na América Latina em geral e no Brasilem particular.

Buscando um novo paradigma que permita ver ohomem na totalidade de seu pensar-sentir-agir, BaderBurihan Sawaia, no capítulo "Representação e ideolo-gia - o encontro desfetichizador", relaciona esses doisconceitos elaborados para refletir sobre o processo deconstrução da consciência humana: a ideologia naperspectiva da dialética materialista e as Representa-ções Sociais na perspectiva de Moscovici. O encontroentre representações e ideologia, segundo a autora, se-ria um processo desfetichizador de mão dupla quetransformaria o estudo da produção do conhecimentoem veículo de crítica à dominação no plano do sujeito-indivíduo.

Mary [ane Paris Spink, em "O estudo empíricodas Representações Sociais", procura caracterizar oesforço de pesquisa na área, destacando a diversidadede abordagens metodológicas e apontando para a ri-queza potencial dessa diversidade, no que diz respeitoao refinamento conceitual do quadro teórico. Buscandoavançar além de tal diversidade, procura delinear asáreas de concordância que permitem falar de uma pro-dução cumulativa da pesquisa.

Finalmente, Edson Alves de Souza Filho, no capí-tulo "Análise de Representações Sociais", abordaspectos relativos à coleta e análise dos dados. Explo-

rando mais detalhadamente três procedimentos usuaisd análise - as análises qualitativas, a busca da estrutu-rs discursiva e as análises quantitativas - possibilita ao1 itor inteirar-se da variedade convergente e divergen-t das formas de análise utilizadas no estudo das Re-presentações Sociais.

A segunda parte do livro é constituída por seter latos de pesquisa sobre temas variados que permi-l m o leitor visualizar a fertilidade da abordag m,

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o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

im como ver em operação questões teóricas emetodológicas discutidas nos capítulos anteriores. Ostemas abordados versam sobre prostituição, saúde, po-der e constituição de campos profissionais.

Ricardo Vieiralves de Castro pesquisou as "Repre-sentações Sociais da prostituição na cidade do Rio deJaneiro". Escolhendo como cenário o Mangue, zona debaixo meretrício do Rio de Janeiro, desenvolveu umapesquisa de tipo etnográfico, envolvendo longo perío-do de observação participante complementada por en-trevistas com cerca de cinqüenta prostitutas. Procurouentender as representações de prostituição, primeira-mente na ótica das próprias prostitutas e, a seguir, naótica da lei. Contrapondo, nesta análise, o "mundo defora" e o "mundo de dentro", descortina uma repre-sentação altamente dicotomizada entre ser prostitutano mundo de fora e ser mulher direita no mundo dedentro. Embora representada no senso comum comodesprovida de regras morais, a prostituta revelada noestudo não apenas incorpora os valores mais gerais daordem social vigente, como também se cerca de nor-mas e regras definidas e limitadas que regulam a suaatividade.

Leny Sato, focalizando "A Representação Socialdo trabalho penoso", também faz a sua cota de obser-vação participante ao acompanhar os motoristas deônibus urbanos em suas viagens de rotina, comple-mentando as observações com entrevistas. A análisedos dados leva a autora a concluir que o trabalho peno-so refere-se a contextos de trabalho geradores de incô-modo, de esforço e de sofrimento físico e mental sen-tidos como demasiados, sobre os quais os motoristasnão têm controle. Para introduzir um grau mínimo decontrole, os motoristas lançam mão de ações adapta-tivas que visam seu ajuste ao trabalho. O estudo dasr presentações permitiu, assim, uma melhor compre-en ão da relação homem-trabalho e do papel das estra-t gias de adaptação nesse cenário.

APRESENTAÇÃO

Apesquisa de Neuza Maria Fátima Guareschi, "Acriança e a Representação Social de poder e autorida-de: negação da infância e afirmação da vida adulta",nvolveu observações realizadas em diferentes mo-

mentos do cotidiano das crianças na escola e entrevis-tas individuais com elas. A análise evidenciou umaclara dicotornia entre os que mandam e os que obede-cem, sendo a classificação nessas categorias resultanteda observação do que as pessoas fazem, falam e pos-suem. Ou seja, as condições econômicas, intelectuaise profissionais, assim como a idade das pessoas, asso-ciadas aos seus papéis sociais tanto no espaço priva-do quanto público, constituem as fontes nas quais ascrianças buscam justificativas para lhes conferir autori-dade e poder.

Angela Arruda, no capítulo "Ecologia e desenvol-vimento: representações de especialistas em forma-ção", discute dados de interesse para o debate que setrava atualmente sobre a relação homem-ambiente.Sua pesquisa fez uso de questionários para compararas representações de diferentes grupos de estudantessobre questões ambientais em face do problema decrescimento e desenvolvimento econômico. Conformeo acesso e o envolvimento com o saber ecológico e aproveniência geocultural-institucional dos estudantes,os diferentes grupos colocam como protagonista daregulação com o ambiente ora a ciência/técnica, ora asforças políticas e sociais. A estrutura desse sistema derepresentações está ancorada em representações maisgerais da relação homem-ambiente, baseada nabipolaridade entre a valorização da integração com anatureza e a necessidade de intervenção sobre a natu-reza. A adesão a diferentes modelos obviamente levaao privilegiamento de diferentes formas de atuaçãofrente às políticas ambientais.

Clélia Maria Nascimento Schulze, que já há muitotempo vem trabalhando com a questão do câncer, éautora do capítulo" As Representações Sociaisde paci-

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14 ON HECIMENTO NO COTI DlANO APRESENTAÇÃO

culdades de superação dessas contradições quanto aspossíveis soluções estavam presentes nos discursos.

No capítulo final, intitulado "O jogo de papéis eRepresentações Sociais na universidade - o estudo deum caso particular", Solange de Oliveira Souto relataos resultados de entrevistas com 41membros da comu-nidade universitária - professores, funcionários e estu-dantes - buscando entender as representações sobre opapel do professor universitário. A universidade, nesteestudo, emergiu como uma instituição esquecida. Já oprofessor foi representado como figura dicotomizadaentre o batalhador dedicado e alguém desinteressado epouco valorizado, embora permaneça sobre ele a ex-pectativa de abnegação, sabedoria e idealismo. As Re-presentações Sociais da universidade e do professordemonstram a necessidade de redimensionar as análi-ses que defendem a categoria, de modo a levar em con-ta as visões e expectativas de todos os segmentos quecompartilham da vida nessa comunidade.

Em síntese, como obra coletiva, o livro busca nãoapenas introduzir o leitor em uma área de estudo quevem se desenvolvendo com extrema rapidez, comoprocura, também, delinear num cenário inter-regionalde produção acadêmica nacional, definindo focos deprodução temática ou regional que possam servir dereferência para outros pesquisadores. Pensamos nestelivro como uma semente passível de germinar e frutifi-car com todo o esplendor.

nt portadores de câncer". A análise das entrevistasom ssenta pacientes revelou pouca clareza por parte

d t sobre como a saúde pode ser otimizada, sobre anatureza da doença que os acometia e sobre as estraté-gia de enfrentamento adequadas para a aceitação dotratamento ou para a luta contra a doença. Procurandoentender a pobreza dos conteúdos relativos à doença, aautora destaca dois fatores contribuintes. Na perspecti-va do sistema de atendimento, a conduta do corpo mé-dico, neste caso a de não informar o paciente sobre odesenvolvimento e o significado da doença, não faci-litou a elaboração de representações mais complexassobre a mesma. Na perspectiva dos pacientes, o medoà dor, marca registrada entre os portadores de câncernas classes menos privilegiadas, que não têm acesso àmorfina, operou no sentido de bloquear a elaboraçãocognitiva. O estudo das Representações Sociais, por-tanto, contribui aqui para a definição de estratégiasmais humanas de atendimento à saúde.

Situando-se na linha teórica desenvolvida a partirdo referencial materialista dialético, Ana Mercês BahiaBock,no capítulo intitulado "Eu caçador de mim: pen-sando a profissão de psicólogo", analisa o processo detrabalho dos profissionais de psicologia e a produçãoda consciência que acompanha esse trabalho e lhe dásentido. Partindo de entrevistas com onze profissio-nais diferenciados quanto ao local de trabalho - insti-tuição, consultório e universidade - analisa as repre-sentações de si próprios, da atividade desenvolvida eda psicologia como ciência e profissão. De modo geral,a psicologia emerge como uma profissão importantemas incapaz de gerar sua função social; um fazer efi-ciente, mas desacompanhado de saber coerente; umfazer necessário que não atinge a todos que dele neces-sitam: enfim, um saber importante mas limitado. Ou" ja, a partir da análise das Representações Sociais, ap icologia emerge como ciência/profissão carregadat ontradições, em que tanto a consciência das difi-

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PARTE IPerspectivas teóricas e

metodológicas

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1. Representações Sociais:o conceito e o estado

atual da teoria

Celso Pereira de Sá

o termo Representações Sociais designa tanto umconjunto de fenômenos quanto o conceito que os en-globa e a teoria construída para explicá-los, identifi-cando um vasto campo de estudos psicossociológicos.jA cunhagem desse termo e, portanto, a inauguração docampo devem-se ao psicólogo social francês Serge eMoscovici.

./ Um primeiro delineamento formal do conceito eda teoria das Representações Sociais surgiu no traba-lho de Moscovici intitulado La psychanalyse, son image etson public (1961,1976),a propósito do fenômeno da so-cialização da psicanálise, de sua apropriação pela po-pulação parisiense, do processo de sua transformaçãopara servir a outros usos e funções sociais. Partindo datradição da sociologia do conhecimento, o autor come-çava então a desenvolver uma psicossociologia do co-nhecimento.

Moscovici (1976) declarava, entretanto, que suambição ia além da criação e da consolidação de umampo específico de estudos: 1/ queria redefinir os pro-

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20 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO o CONCEITO E o ESTADO ATUAL DA TEORIA 21

bl mas e os conceitos da psicologia social a partir des-e fenômeno" (p. 16).De fato, os fenômenos, o conceito

e a teoria das Representações Sociais só podem serbem apreendidos no contexto de um tal processo derenovação temática, teórica e metodológica da psicolo-gia social.

Nesse sentido, Robert Farr (1987), o principaldivulgador da perspectiva renovadora de Moscovici nacomunidade científica de língua inglesa, assim a avalia:"Como uma forma explicitamente social de psicologiasocial ela constituiu uma importante crítica da naturezaindividual de muito da, assim chamada, psicologia so-cial na América do Norte e Crã-Bretanha" (p. 346).

Realmente, a vertente sicossociológica renova-dora da qual Moscovici participa, de origem européia,condena a tradição norte-americana dominante, entreoutras coisas, por e ocu ar basicamente dO~Eroces~osEsicolQgicoE-Ílldivid uais enquanto influenciados p~ralgo tão vagamente.sccial.quanto "a presença real,imaginária ou implÍ.Citade.Qlltrosindivíduos~ (Allport,1968). Para os críticos, tal perspectiva simplesmentenão se mostra capaz de dar conta das relações infor-mais, cotidianas, da vida humana, em um nível maispropriamente social ou coletivo.

/ J;:m uma psicologia social mais socialmente orien-tada, é importante considerar tanto os comportamen-tos individuais quanto os fatos sociais (instituições epráticas, por exemplo) em sua concretude e singulari-dade histórica e não abstraídos como uma genéricapresença de outrosjImportam ainda os conteúdos dosfenômenos psicossociais, pouco enfatizados pelos psi-cólogos sociais tradicionais em sua busca de processostão básicos ou universais que pudessem abrigar quais-quer conteúdos específicosJ Além disso, não impor-ta apenas a influência, unidirecional, dos contextosociais sobre os comportamentos, estados e processos

individuais, mas também a participação destes na.onstrução das próprias realidades sociais.)

Para fazer frente à perspectiva individualista ou/I psicologista" que se instalara na psicologia social,Moscovici foi buscar uma primeira contrapartidaonceitual em uma tradição sociológica tão extrema-

mente oposta quanto a de Durkheim, para quem qual-quer tentativa de explicação psicológica dos fatossociais constituiria um erro grosseiro. Tratava-se doconceito de representações coletivas..t.lpelo qual Durkheim(1912, 1978)procurava dar conta de fenômenos comoa religião, os mitos, a ciência, as categorias de espaçoe tempo etc. em termos de conhecimentos inerentes àsociedade. // Na sociologia durkheimiana, lia sociedade é uma

realidade sui generis" e as representações coletivas, quea exprimem, são fatos sociais, coisas, reais por elasmesmas.)Âs representações coletivas, diz Durkheim(op. cit.), "são o produto de uma imensa cooperaçãoque se estende não apenas no espaço, mas no tempo;para fazê-Ias, uma multidão de espíritos diversos asso-ciaram, misturaram, combinaram suas idéias e senti-mentos; longas séries de gerações acumularam aquisua experiência e saber" (p. 216).

Dessa gênese espetacular resultariam as caracte-rísticas básicas das representações coletivas, em rela-ção ao comportamento e ao pensamento individuais:autonomia, exterioridade, coercitividade. Dizendo deoutra forma, os indivíduos que compõem a sociedadeseriam portadores e usuários das representações coleti-vas, mas estas não podiam ser legitimamente reduzi-das a algo como o conjunto das representaçõesindividuais, das quais difeririam essencialmente (verDurkheim, 1924,1970)..)

A proposição do conceito de representações cole-tivas buscou apoio empírico no estudo da religião bas-tante simples de povos ditos primitivos, embora,segundo Durkheim, isso tivesse sido feito por razõesstritamente metodológicas. A teoria durkheimianassegurava que as "formas elementares" identificadas

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o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

n quelas representações religiosas seriam encontradas,orno substrato básico, também nas religiões mais ela-

boradas. O mesmo aconteceria com relação às demaisformas de conhecimento social, visto derivarem todasda própria religião.

De fato, a extensão explicativa do conceito derepresentações coletivas à sociedade ocidental da épo-ca em que fora proposto - início do século - poderiaparecer suficiente, dada a ainda relativa integridadedas religiões e de outros "sistemas unificadores". Nassociedades contemporâneas, entretanto, novos fenô-menos representacionais, de origem e âmbito bastantediversos, impõem-se ao exame sob uma perspectivapsicossociológica. Moscovici assim esclarece a diferen-ça entre os fenômenos de que Durkheim se ocupara eaqueles que ele julga deverem atrair a atenção da psi-cologia social nos dias de hoje:

"As representações em que estou interessado não sãoas de sociedades primitivas, nem as reminiscências,nosubsolo de nossa cultura, de épocas remotas.São aque-las da nossa sociedade presente, do nosso solo político,científico e humano, que nem sempre tiveram temposuficiente para permitir a sedimentação que as tornas-se tradições imutáveis. E sua importância continua acrescer, em proporção direta à heterogeneidade eflutuação dos sistemas unificadores - ciências oficiais,religiões, ideologias - e às mudanças pelas quais elesdevem passar a fim de penetrar na vida cotidiana e setornar parte da realidade comum." (Moscovici,1984a:18-9) ./

Compreensivelmente, o reconhecimento da exis-tência de uma outra ordem de fenômenos exigiria umoutro tipo de conceito para englobá-Ios. Daí, osurgimento dottermo Representações Sociais ,implicapdoum decisivo afastamento da perspectiva "sociologista]xtrema da noção original e a construção teórico-onceitual de um espaço psicossociológico próprio. De--

. I

O CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA 23

f)fato, o conceito de representações coletivas continha,no entender de Moscovici (1984a, 1984b, 1989), váriosspectos que o impediam de dar conta dos novos fenô-

menos detectados.Em primeiro lugar, o conceito durkheimiano

abrangia uma gama muito ampla e heterogênea de for-mas de conhecimento, supondo-se estar nelas concen-trada uma grande parte da história intelectual dahumanidada.Em Moscovici, considerando seu objeti-vo de estabelecer uma psicossocíología do conhe-cimento, as representações sociais deveriam serreduzidas aL'uma modalidade específica de conheci- jmento ue t or n ao a e a oraçao e com or-I?ta ntos e a comunicação entre indivíduos"Jnoquadro da vida cotidianajEm segundo ugarlia concep-ção de Durkheim era bastante estática, o que possivel-mente correspondia à estabilidade dos fenômenos paracuja explicação havia sido proposta" mas não à plas-ticidade, mobilidade e circulação das representaçõescontemporâneas emergente~ Em terceiro lugar.i.asrepresentações coletivas eram vistas, na sociologiadurkheimiana, como dados, como entidades explica-tivas absolutas, irredutíveis por qualquer análise pos-terior, e não como f7nômenos que devessem ser elespróprios explicados." À psicologia social, pelo contrá-rio, segundo Moscovici, caberia penetrar nas represen-tações para descobrir a sua estrutura e os seus meca-nismos internos.

O 9.~e ~ssas diferen~as ~ostram é que, ~MOSCOVICIfOIbuscar na sociologia durkheimiana umprimeiro abrigo conceitual para suas objeções ao exces-sivo individualismo da psicologia social americana,isso não era suficiente ou adequado para os seus pro-pósitos de renovação da disciplina.Realmente, o desa-fio maior implicando tal renovação consistia em situarefetivamente a psicologia social na encruzilhada entrea psicologia e as ciências sociais, em ocupar de fatosse território limítrofe, onde se desenvolvem fenôme-

(

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)

o CONHECIMENTO NO COTIDIANO 25o CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA

uja dupla natureza - psicológica e social - temid reiteradamente admitida, e que, por isso mesmo,i lhe pertenceria de direito.

O problema, entretanto, não reside exatamentenos fatos ou fenômenos, mas sim em sua constitui-ção como objetos do conhecimento psicossociológico.Segundo Denise Jodelet, principal colaboradora econtinuadora do trabalho de Moscovici, essa é umatarefa que comporta riscos. No caso das Representa-ções Sociais, "o fato de que se trate de uma forma deconhecimento acarreta o risco de reduzi-Ia a um eventointra-individual, onde o social intervém apenas secun-dariamente; o fato de se tratar de uma forma de pensa-mento social acarreta o risco de diluí-Ia nos fenômenosculturais ou ideológicos" (jodelet, 1984:36).

as questões ecológicas; a preservação de flores-tas e de espécies animais; a poluição, a destrui-ção da camada de ozônio; a responsabilidadedos países industrializados; a Amazônia e oPantanal;

- a políticae a economia;o governo e os políticosbra-sileiros;a corrupção política;os cartéiseconômicos;a manipulaçãopelosmeiosde comunicaçãode mas-sa; os interesses estrangeiros, os Estados Unidos, oIraque de Saddam Hussein, a Cuba de Fidel, a Co-munidade Européia, a Rússia e a CEI,o Japão e os"tigresasiáticos";

- as cidades, as características dos diferentes bairrose regiões; sua história, sua" cultura", o status paraseus moradores; a segmentação histórica dos es-paços urbanos;as "classes" de pessoas; o adulto e a criança; osjovens e os velhos; o masculino e o feminino; oshomossexuais; os descasados, a mãe solteira, a"produção independente"; nordestinos,baianos, cariocas epaulistas; hippies e yuppies;a tecnologia e o domínio da natureza; as via-gens espaciais; o computador; a energia nuclear;as telecomunicações;as desigualdades sociais e educacionais; a po-breza, a marginalidade; meninos de rua, pive-tes, trombadinhas; a violência urbana e a inse-gurança do cidadão; os grupos de extermínio; otráfico de drogas, o crime organizado, o arbítriopolicial.

Os fenômenos e o conceito deRepresentações Sociais

Diante dos riscos acima denunciados, como situaro conhecimento mobilizado pelas pessoas comuns, nacomunicação informal da vida cotidiana, sobre os se-guintes assuntos e objetos sociais?

as disciplinas acadêmicas e/ou as profissõesque exigem treinamento nesse nível, como asciências físicas e biológicas, a psicologia, a me-dicina, a informática etc.;a saúde e a doença; as doenças de maior impac-to social e histórico, como a lepra, a tuberculo-se, o câncer, a aids; a doença mental; os avançosda medicina oficial, os transplantes de órgãos; aeficácia das medicinas paralelas e das práticasterapêuticas populares; as técnicas de preserva-ção da saúde física e mental, como a ioga, a me-ditaçãotranscendental,asginásticase asanti-ginásti-cas;as psicoterapias;as curas religiosas;

\

A lista foi intencionalmente extensa - e certamen-te ainda bastante incompleta - para ilustrar a quantida-de e a extrema diversidade de assuntos que, nasrelações interpessoais do dia-a-dia, prendem a atenção,o interesse e a curiosidade das pessoas, demandam suacompreensão e forçam seus pronunciamentos. As ex-plicações então veiculadas vão além do que chamaría-

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o CONHECIMENTO NO CqTIDIANO OCONCEITOEOESTADOATUALDA TEORIA 27

m d simples opiniões sobre os assuntos ou atitudes1 das em relação aos objetos sociais neles envolvi-

d . Comumente, fazem uma articulação ou combina-ção de diferentes questões ou objetos, segundo umalógica própria, em uma estrutura globalizante de im-plicações, para a qual contribuem informações e julga-mentos valorativos colhidos nas mais variadas fontes eexperiências pessoais e grupais.

/ Por isso mesmo.jsegundo Moscovici (1976),esses"conjuntos de conceitos, afirmações e explicações:', que.sãoês Representações Sociais, devem ser consideradoscomo verdadeiras "teorias" do senso comum, "ciênciascoletivas" sui generis, pelas quais se procede à interpre-tação e mesmo à construção das realidades sociais (p.48). A propósito, quem nunca ouviu alguém dizer nadiscussão de um ou outro daqueles assuntos: "Eu te-nho uma teoria sobre isso"?

Parece fora de dúvida que a mobilização de taisRepresentações Sociais realmente aconteça, em todasas ocasiões e lugares onde as pessoas se encontraminformalmente e se comunicam: no café da manhã, noalmoço e no jantar; nas filas do ônibus, do banco e dosupermercado; no trabalho, na escola e nas salas deespera; nos saguões, nos corredores, nas praças e nosbares; talvez, principalmente nos bares e botequins, empé ou sentado, para um cafezinho, uma happy hour ouuma noitada "jogando conversa fora". Faz simples-mente parte da vida em sociedade.J.Para Moscovici(1984a),as Representações Sociais, por seu poder con-vencional e prescritivo sobre a realidade, terminampor constituir o pensamento em um verdadeiro ambien-te onde se desenvolve a vida cotidiana. '1 '

O interesse pelos assuntos listados como ilustra-ção - e pelos demais que se venha a pensar - possivel-mente não deve suscitar maiores questionamentos.Afinal de contas, trata-se de questões que ou têm umarel vância bastante imediata para a vida das pessoasou t~m uma atualidade tal que lhes seja socialmente

importante "estar por dentro". Moscovici fala quanto ate último ponto de uma "pressão à inferência" por

parte do grupo engajado na conversação. A rigor, en-tretanto, os grupos ou segmentos socioculturais podemvariar bastante quanto ao grau e consistência da infor-mação que tenham sobre um dado assunto, quanto àestruturação visualizável, unidade e hierarquizaçãodesse conhecimento em um campo de representação,quanto à atitude ou orientação global - favorável! des- r;favorável, por exemplo - em relação ao objeto da re-presentação. Estas são as dimensões identifica das porMoscovici (1976) nos universos de opinião característi-cos dos diferentes grupos e segmentos.

Mas cabe, ainda, perguntar qual a origem da com-preensão dos assuntos e das explicações confiantemen-te emitidas pelas pessoas. Como teria sido gerado talconhecimento? Relembre-se aqui os riscos alertadospor Denise Jodelet: trata-se de conhecimentos inerentesà própria sociedade ou de pensamentos elaboradosindividualmente? i!:rata-se, com certeza, de uma com-preensão alcançada por indivíduos que pensam. Mas,não sozinhos. A semelhança de seus pronunciamen-tos - se não com os dos interlocutores do momento,pelo menos com os de outros grupos de que participe -demonstra que terão pensado juntos sobre os mesmosassuntos.

Isto é o que se entende por uma explicação psi-cossociológica da origem dessa forma de pensamentosocial, que Moscovici denominou "RepresentaçõesSoci~is"l.Nessa perspectiva, o processo de gênese dasrepresentações tem lugar nas mesmas circunstâncias, eao mesmo tempo, em que se manifestam. Ou seja,

tEor meio da mesma "arte da conversação" que abran-ge tão extensa e significativa parte da nossa existênciacotidíana.j

1.0 que se vê, assim, em funcionamento é, nos ter-mos de Moscovici (1984a),uma sociedade pensante, algotão distante de uma concepção estritamente socíológi-

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o ONHECIMENTO NO COTIDIANO O CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA 29

quanto de uma concepção exclusivamente psicológi-. A primeira sustentaria, por exemplo, que" os gru-

pos e os indivíduos estão sempre e completamente sobo controle de uma ideologia dominante, que é produzi-da e imposta por sua classe social, o Estado, a Igreja oua escola, e que o que eles pensam e dizem apenas refle-te tal ideologia" (p. 15). Uma versão da segunda diriaque nossas mentes são "caixas pretas" que simples-mente recebem informações e idéias de fora e proces-sam-nas para transformá-Ias em julgamentos, opiniõese assim por diante. Na perspectiva psicossociológicade uma sociedade pensante, os indivíduos não sãoapenas processadores de informações, nem meros"portadores" de ideologias ou crenças coletivas, maspensadores ativos que, mediante inumeráveis episódioscotidianos de interação social, "produzem e comuni-cam incessantemente suas próprias representações esoluções específicas para as questões que se colocam asi mesmos" (p. 16).Da mesma forma que se trata a so-ciedade como um sistema econômico ou um sistemapolítico, diz Moscovici (1988), cabe considerá-Ia tam-bém como um sistema de pensamentp.j.•.. Certamente, a descrição acima não se aplica a to-das as formas de conhecimento que são produzidas emobilizadas em uma dada sociedade. Moscovici (1981,1984a) considera coexistirem nas sociedades contem-porâneas duas classes distintas de universos de pensa-mento: os universos consensuais e os universos reificados.Nos últimos, bastante circunscritos, é que se produzeme circulam as ciências e o pensamento erudito emgeral, com sua objetividade, seu rigor lógico e metodo-lógico, sua teorização abstrata, sua compartimen-talização em especialidades e sua estratificaçãohierárquica. Aos universos consensuais correspondemas atividades intelectuais da interação social cotidianapelas quais são produzidas as Representações Sociais.As "teorias" do senso comum que são aí elaboradasnão conhecem limites especializados, obedecem a uma

outra lógica, já chamada de "lógica natural", utilizamm canismos diferentes de "verificação" e se mostramm nos sensíveis aos requisitos de objetividade do quea sentimentos compartilhados de verossimilhança ouplausibilidade. Assim se expressa Moscovici quanto àimagem que a sociedade faz de si mesma em um e ou-tro desses universos:

"Nos universos reificados, a sociedade se vê corno umsistema com diferentes papéis e categorias, cujos ocu-pantes não são igualmente autorizados pararepresentá-Ia e falar em seu nome. O grau de participa-ção é determinado exclusivamente pelo nível de quali-ficação. (...) Há um comportamento próprio para cadacircunstância, um estilo adequado para fazer afirma-ções em cada ocasião e, claro, informações adequadaspara determinados contextos.Nos universos consensuais, a sociedade se vê como umgrupo feito de indivíduos que são de igual valor eirredutíveis. Nessa perspectiva, cada indivíduo é livrepara se comportar como um 'amador' e um 'observa-dor curioso', (...) que manifesta suas opiniões, apresen-ta suas teorias e tem urna resposta para todos osproblemas. [Aarte da conversação] cria gradualmentenúcleos de estabilidade e maneiras habituais de fazercoisas, uma comunidade de significados entre aquelesque participam dela." (Moscovici, 1981:186-7)

Com freqüência, como o ilustra o próprio trabalhopioneiro de Moscovici, a matéria-prima para a cons-trução dessas realidades consensuais que são as Repre-entações Sociais provém dos universos reificados.

gundo Moscovici e Hewstone (1984),além do sensoomum concebido como "um corpo de conhecimentos

produzido espontaneamente pelos membros de umgrupo e fundado na tradição e no consenso" (p. 544),Hurgena nossa época um novo tipo de senso comum,novos saberes sociais ou populares, conhecimentos decgunda mão, cuja operação básica consiste na contí-

nu, propriação "das imagens, das noções e das lin-

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10

uagens que a ciência não cessa de inventar" (p. 543).Um importante papel é desempenhado, nesse processode transferência e transformação dos conhecimentos,pelos divulgadores científicos de todos os tipos - jor-nalistas, cientistas amadores, professores, animadoresculturais, pessoal de marketing - e pela crescente am-pliação e sofisticação dos meios de comunicação demassa

Uma conceituação formal das Representações So-ciais deveria ser enfim bem-vinda, após tantas tentati-vas de apreensão indutiva do fenômeno e dedimensionamento do seu espaço na sociedade. Na ver-dade, essa não tem sido uma tarefa das mais fáceispara seus próprios propositores e promotores.Moscovici mesmo não dava muita importância a talexigência acadêmica. Nesse sentido, em um artigo(Moscovici, 1988) de réplica a críticas à noção de Re-presentações Sociais, ele declara o seguinte:

31../

termos pode ter um efeito pernicioso, como eu acreditoter tido freqüentemente nas ciências do comportamen-to" (ibid.).

" Não obstante, existem alguns esforços deformalização e/ou esclarecimento conceituais, que cer-tamente convém examinar. A Moscovici (1976) sedeve, por exemplo, na obra de inauguração do campo,a definição distintiva das Representações Sociais, ouseja, a justificativa para chamá-Ias "sociais", em termosde sua função específica e exclusiva: "uma modalidade '1-../de conhecimento particular que tem por função a ela- Vboração de comportamentos e a comunicação entreindivíduos" (p. 26). Segundo o autor, a alusão ao pro-cesso de produção social das representações, tantoquanto ao fato de serem socialmente compartilha-das, não seriam suficientes para distingui-Ias de outrossistemas de pensamento coletivo, como a ciência e aideologia.

Nessa mesma linha, cabe tomar de ClaudineHerzlich, ainda no período entre a primeira e a segun-da edições do livro de Moscovici, o modo como elabusca "precisar em que sentido a representação é [parao psicossociólogo] uma forma de pensamento social":

o CONHECIMENTO NO COTIDIANO o CONCEITO E oESTADO ATUAL DA TEORIA

"(...), eu via a psicologia social corno urna ciência so-cial,juntamente coma antropologia, a história,a socio-logia etc. Portanto, eu acreditava que ela deveriaseguir urna estratégia análoga com relação às teorias efatos. Nesses campos, não se tenta emular a perfeiçãoda Física e ninguém se sente compelido a verificarurna série de hipóteses, urna de cada vez, não impor-tando quão triviais possam ser. E muito menos a darurna definição não ambígua de cada um de seus con-ceitos. (... ) Quando eu me recusei a ser mais específi-co em definir o fenômeno das RepresentaçõesSociais,eu levava esses precedentes em consideração. As pes-soas então esperavam - e ainda esperam - que euinaugurasse um campo de pesquisas corno se eu sou-besse de antemão a maneira como as coisas evolui-riam." (p. 213)

"Para os sociólogos- principalmente os de orientaçãodurkheimiana ou marxista - esse problema se confun-de com o da determinação de urna Representação So-cial por urna rede de condições objetivas, sociais eeconômicas. (...) Para o psicossociólogoresta compre-ender a natureza da própria representação na medidaem que ela se atualiza em urna organização psicológi-ca particular e preenche uma função específica.A re-presentação, tal foi a tese psícossocíológíca, mereceplenamente, e de modo autônomo, seu caráter socialem primeiro lugar porque contribui para definir um

(

grupo social em sua especificidade, constituindo umde seus atributos essenciais. (...) Em segundo lugar,pelo fato mesmo de que ela é um dos instrumentosgraças ao qual o indivíduo, ou o grupo, apreende seu

E, de forma mais contundente, citando ummetodólogo americano (Kaplan, 1964): liA demandapor exatidão de significado e por definição precisa de

(

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o CONCEITO EO ESTADO AnJALDA TEORIA 33ONHECIMENTO NO COTIDIANO '

ambiente, um dos níveis em que as estruturas sociaislhes são acessíveis, a representação desempenha umpapel na formação das comunicações e das condutassociais." (Herzlich, 1972:306-7)

A Teoria das Representações Sociais

"0 conceito de Representação Social designa uma for-ma específica de conhecimento, o saber do senso co-mum, cujos conteúdos manifestam a operação deprocessos generativos e funcionáis socialmente marca-dos. Mais amplamente, designa uma forma de pensa-mento social.As Representações Sociais são modalidades de pensa-mento prático orientadas para a comunicação, a com-preensão e o domínio do ambiente social, material eideal. Enquanto tais, elas apresentam característicasespecíficas no plano da organização dos conteúdos,das operações mentais e da lógica.A marcação social dos conteúdos ou dos processos derepresentação refere-se às condições e aos contextosnos quais emergem as representações, às comuni-cações pelas quais elas circulam, às funções que elasservem na interação com o mundo e com os outros."(pp.361-2)

Possivelmente, o primeiro passo para a elabora-ão da Teoria das Representações Sociais, a partir de, u conceito, terá sido a estrutura de dupla natureza-sonceptual e figurativa - que Moscovici lhe atribuiu, des-

de o início. Tratava-se de atender à exigência do conhe-cimento propriamente psicossociológico (expressa porHerzlich, acima) de compreender "como a representa-ção se atualiza em uma organização psicológica parti-cular".

Moscovici (1976) declara ter obtido úteis informa-ções de partida da psicologia clássica (sic), que conce-bia as representações como uma instância interme-diária entre a percepção e o conceito. Considerando,entretanto, que nada o obrigava a ficar limitado a essemodo de ver as coisas, Moscovici prefere tratar a repre-sentação como "um processo que torna o conceito e apercepção de algum modo intercambiáveis, visto quese engendram reciprocamente" (p. 55). Ela seguiria,por um lado, a linha do pensamento conceptual, capazde se aplicar a um objeto não presente, de concebê-10, portanto, dar-lhe um sentido, simbolizá-lo. E, poroutro lado, à maneira da atividade perceptiva, tratariade recuperar esse objeto, dar-lhe uma concretudeicônica, figurá-I o, torná-lo "tangível".

Supondo que o processo seja responsável por sig-nificativas transformações entre o que é "tomado" doreal e o que é a ele "reenviado", Moscovici se faz maisspecífico quanto à própria natureza atualizada das re-

pr sentações:

Já com o campo em ampla efervescência, DeniseJodelet (1984), tendo detectado uma importante con-vergência quanto à natureza dos fenômenos repre-sentacionais nos mais diversos trabalhos desen-volvidos independentemente, propõe a seguinteconceituação geral:

Mais tarde, dando prosseguimento à tarefa de sis-tematização do campo, de que se incumbira, [odelet(1989) proporciona a seguinte definição sintéticã, sobrea qual parece existir hoje um amplo acordo dentroda comunidade de seus estudiosos: epresentaçõesSociais são "uma forma de conhecimento, wcialmente ela-borada e partilhada, tendo uma visão prática e concorrendopara a construção de uma realidade comum a um conjuntosocial'] (p. 36).

"Representar uma coisa (...) não é com efeito simples-mente duplicá-Ia, repeti-Ia ou reproduzi-Ia; Vreconstituí-la, retocá-Ia, modificar-lhe o text .A comu-ni ação que se estabelece entre o conceito e a percep-ã , um penetrando no outro, transformando a

sub tância concreta comum, cria a impressão de 'rea-

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14 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO O CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA 35

lismo'. (...) Essas constelaçõesintelectuais uma vez fi-xadas nos fazemesquecerque sãoobra nossa, que tive-ram um começoe que terão um fim,que sua existênciano exterior leva a marca de uma passagem pelopsiquismo individual e socia1."(Op. cit.,pp. 56-7)

Embora a estrutura de uma representação tenhasido formalmente descrita a partir de categorias -p rceptiva e conceptual- já abstraídas anteriormente,Moscovici (1976)sustenta que, no campo fenomenal, asr presentações dão-se de forma direta e imediata. Diz

1 a esse respeito:Argumentando que a insistência, no passado,

quanto a "uma espécie de desenvolvimento genéticoque vai do percebido ao concebido,passando pela represen-tação",é apenas uma construçãológica,Moscovicipropõe asua própria estrutura teóricapara as representações.Dizele,em uma formulaçãojá tornada clássicano campo:

"Ao representar qualquer coisa não se sabe jamais sese mobilizaum índicedo real ou um índiceconvencio-nal, social ou afetivamente significante.Somente umaevolução ulterior,um trabalho conscientedirigido sejaalém do convencional, em direção ao intelecto, sejaalém do figurado, em direção ao real, permite sanaressa incerteza.Por essarazão, essas formasde conheci-mento que são as representações (...) são, ao menos noque se refereao homem, primordiais. Os conceitose aspercepções são elaboraçõese estilizaçõessecundárias,umas a partir do sujeitoe as outras a partir do objeto."(p.64)

Urna outra proposlçao teórica, admitida porMoscovici (1987) como de formalização cronologica-mente posterior à dos processos da objetivação e daancoragem, mas que deveria precedê-I os logicamente,na medida em que constitui o próprio princípio básico

que eles servem, é a transformação do não familiar emfamiliar. Por isso, parece melhor deixar para tratar da-queles processos em maiores detalhes depois de nosinteirarmos desse princípio. .

Realmente, Moscovici (1984a) considera que"para compreender o fenômeno das Representaçõesociais devemos começar do começo", perguntando:

11Por que criamos essas representações?". Sua resposta,apresentada sob a forma de urna intuição e de urnaconvicção básicas, é a de que" o propósito de todas asn pr sentações é o de transformar algo não familiar, ou.t própria não familiaridade, em familiar" (pp. 23-4).E,Iros eguindo:

"No real,a estrutura de cada representaçãonos aparecedesdobrada; ela tem duas faces tão pouco dissociá-veis quanto a frente e o verso de uma folha de papel:a face figurativa e a face simbólica. Nós escrevemos

que: Representação figura , entendendo por issosignificação

que ela faz compreender em toda figura um sentido eem todo sentido uma figura." (Moscovici,1976:63)

Dessa configuração estrutural das representações,Moscovici partiu então para urna primeira caracteriza-ção de seus processos formadores. A\. função de dupli-car um sentido por urna figura, dar materialidade a um

I objeto abstrato, "naturalizá-lo", foi chamada deI "objetivar". A função de duplicar urna figura por um

sentido, fornecer um contexto inteligível ao objeto,interpretá.::lo, foi chama " orar". interessanteexaminar exemplos dos resultados desses processos nocaso da representação social da psicanálise, estudadapelo autor. O fato de que um complexo psicanalíticoseja tomado como algo quase que psicofísico no indiví-duo - por exemplo, diz-se que fulano tem um complexo- ilustra a objetivação. A terapia pela escuta psicanalíti-ca, urna estranha medicina sem remédios, sendo asse-melhada à confissão religiosa, ilustra a ancoragem.

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36 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

"O que eu quero dizer é que os universosconsensuaissão lugares onde todos queremse sentirem casa,a sal-vo de qualquer riscode atrito ou disputa. Tudoo que éaí dito e feitoapenas confirmacrençase interpretaçõesadquiridas, corrobora mais do que contradiz a tradi-ção. (...) No todo, a dinâmica dos relacionamentoséuma dinâmica de familiarização,onde objetos,indiví-duos e eventossãopercebidose compreendidosem re-lação a encontros ou paradigmas prévios. Comoresultado, a memória prevalece sobre a dedução, opassado sobre o presente, a respostasobreo estímulo,as imagenssobrea 'realidade'." (Ibid.)-Mas, corno então compreender que a teoria das re-

presentações se caracterize corno um campo de estu-dos sobre a "construção da realidade", se o que se dizpresidir a sua formação são justamente as formas habi-tuais ou tradicionais de pensamento? Corno apostulação de um tal princípio pode ser conciliada comas declarações de Moscovici (1988),ao comentar o seupróprio trabalho, de que "era nosso propósito compre-ender a inovação mais do que a tradição, urna vida so-cial em construção mais do que urna preestabelecida"(p. 219), de que "estamos lidando com conhecimentocujo objetivo é criar realidade" (p. 229) ou de que "alinha guia [de seus escritos] é o enigma da mudança eda criatividade" (p. 223)?

A rigor, diz Moscovici, "ambos os universos[reificado e consensual] atuam simultaneamente paramoldar a nossa realidade" (op. cit., p. 233). Nas socie-dades modernas, o novo é comumente gerado ou trazi-do à luz por meio dos universos reificados da ciência,da tecnologia ou das profissões especializadas. São no-vas descobertas ou teorias, invenções e desenvolvi-mentos técnicos, produções de fatos políticos eeconômicos, inovações classificatórias e analíticas, eassim por diante. A exposição a esse novo é que intro-duz a não familiaridade OM a estranheza na sociedademais ampla.

-o CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA 37

Urna realidade social, corno a entende a teoria dasRepresentações Sociais,é criada apenas quando o novoou não familiar vem a ser incorporado aos universosonsensuais. Aí operam os processos pelos quais ele

passa a ser familiar, perde a novidade, torna-se social-mente conhecido e real. O fato de que isso ocorra sob opeso da tradição, da memória, do passado, não signifi-ca que não se esteja criando e acrescentando novos ele-mentos à realidade consensual, que não se esteja pro-duzindo mudanças no sistema de pensamento social,que não se esteja dando prosseguimento à construçãodo mundo de idéias e imagens em que vivemos. O re-sultado é - constata-se pelo estudo empírico das Repre-sentações Sociais - altamente criativo e inovador noâmbito da vida cotidiana.

Realmente, se o estranho não se apresentasse tãofreqüente e imprevisivelmente, o pensamento socialhumano teria a estabilidade que Durkheirn atribuíra àsrepresentações coletivas. "A tensão com o não famili-ar", diz Moscovici (1988), "tem o mérito de impedirque a habituação mental domine completamente" (p.236). Segundo o autor, o estranho atrai, intriga e per-turba as pessoas e as comunidades, provocando nelaso medo da perda dos referenciais habituais, do sensode continuidade e de compreensão mútua. Mas, ao tor-nar o estranho familiar, ele é tornado ao mesmo tempomenos extraordinário e mais interessante. A conclusãode que" as Representações Sociais tornam forma e sãocomunicadas para fazer o mundo cotidiano mais exci-tante" (ibid.) mostra bem o quanto elas são característi-as dos tempos modernos.

A ancoragem, um dos dois processos formadoresdas Representações Sociais, consiste na integraçãoognitiva do objeto representado - sejam idéias, acon-

te imentos, pessoas, relações etc. - a um sistema deP nsamento social preexistente e nas transformaçõesimplicadas (Jodelet, 1984).Por certo, as representações" disponíveis podem funcionar também corno siste-

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38 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

mas de acolhimento de novas representações. De ummodo geral, o processo é responsável pelo enraíza-mento - ou, como o próprio nome indica, ancoragem-social da representação e de seu objeto.

Segundo Moscovici (1984a), ancorar é classificar edenominar: "coisas que não são classificadas nem de-nominadas são estranhas, não existentes e ao mesmotempo ameaçadoras" (p. 30). E, prosseguindo sua ar-gumentação:

"Desde que possamos falar sobre alguma coisa,avaliá-Ia e assim comunicá-Ia - mesmo vagamente, comoquando dizemos de alguém que ele é 'inibido' - entãopodemos representar o não usual em nosso mundousual, reproduzi-lo como a réplica de um modelo fa-miliar. (...) [Nesseprocesso] a neutralidade é proibidapela própria lógicado sistema em que cada objetoe serdeve ter um valor positivo ou negativo e assumir umdeterminado lugar numa hierarquia claramente gra-duada." (Ibid.)

Moscovici considera que a classificação dá-se me-diante a escolha de um dos paradigmas ou protótiposestocados na nossa memória, com o qual comparamosentão o objeto a ser representado e decidimos se elepode ou não ser incluído na classe em questão. Não setrata, observe-se, de uma operação lógica de análise daproporção de características que o novo objeto tenhaem comum com os objetos da classe. O que se põe emjogo é uma comparação generalizadora ou partícula-rizadora, pelas quais se decreta que o objeto se incluiou se afasta da categoria, com base na coincidência/divergência em relação a um único ou poucos aspectossalientes que definem o protótipo. A "lógica natural"em uso nos universos consensuais preside o processo.

Quanto à operação de denominação, diz Moscovici(1984a) que "ao denominar alguma coisa, nós a tira-mos de um anonimato perturbador para dotá-Ia deuma genealogia e incluí-Ia num complexo de palavras

o CONCEITO E o ESTADO ATIJAL DA TEORIA

específicas, para localizá-Ia, de fato, na matriz de iden-tidade da nossa cultura" (p. 34). E, prosseguindo:

"Minhas observações provam que denominar umapessoa ou coisaé precipitá-Ia (como uma solução quí-mica é precipitada) e que as conseqüências disso sãotrês: (a) uma vez denominada, a pessoa ou coisa podeser descrita e adquire certas características, tendênciasetc.; (b)ela se toma distinta de outras pessoasou coisasatravés dessas características e tendências; (c) ela setoma o objeto de uma convenção entre aqueles queadotam e partilham a convenção."(Ibid.)

Uma ilustração interessante da importância daclassificação e da denominação na formação e mudan-ça de uma Representação Social é proporcionada porMoscovici (1984a) e Jodelet (1984), a propósito de umadecisão da Sociedade Americana de Psiquiatria, em1978, de substituir os termos "neurose" e "neurótico"pela designação de "desordens específicas". Para umjornalista que comentou a decisão, a categoria "neuró-tico" implica uma atitude de escusa, compreensão,uma disposição de se ajustar a esse indivíduo que nãoé totalmente senhor de seus atos. Enquanto isso, aludira uma "desordem" supõe o mesmo comportamentoque se tem em relação a um carro enguiçado; não hádesculpas nem compaixão, mas sim busca de reparopara reduzir a desordem e adaptar socialmente o paci-ente. "A sociedade concede ao neurótico um lugarhonroso e às vezes desejável entre o psicótico e o ho-mem comum; não é o mesmo nicho que ela reservapara quem sofre de 'desordens' devidamenteespecificadas." (Iodelet, 1984:359-60) _

L.6. ov]etivação, o outro processo de formação dasI Representações Sociais, consiste em uma "operação

imaginante e estruturante", pela qual se dá uma "for-ma" - ou figura - específica ao conhecimento acerca doobjeto,' tornando concreto, quase tangível, o conceitoabstrato, "materializando a palavr~ (Iodelet, 1984).

39

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40 o CONHECIMENTO NO COTIDIANO

Segundo Moscovici (1984a), ~Qbjetivar é descobrir a ')qualidade icônica de urna idéia ou ser imprecisos, re-produzir um conceito em urna imagem" (p. 38).

O resultado da objetivação pode ser bem Ilustra-do, no âmbito de urna pesquisa sobre a representaçãodo corpo, pela caracterização feita do sexo femininocorno "o tabernáculo sagrado da vida" (jodelet, 1984).Nessa imagem do útero corno um tabernáculo estãoconcentradas idéias muito enraizadas, de origem reli-giosa, corno a interdição moralista e a devotação exclu-siva do sexo à reproduçãojNa Representação Social dapsicanálise, Moscovici encontrou o aparelho psíquicoobjetivado em um esquema espacial dividido em duaspartes - inconsciente e consciente - separadas por urnalinha de tensão, onde são então encarnados o conflito,a repressão e o "recalque" que acaba produzindo o"complexo". Terá certamente influído nessa obje-tivação a preexistência cultural de outras dualidadesopostas mais comuns, corno voluntário-involuntário,mente-alma, exterior-interior, aparente-obscur~

Moscovici (1984a)justifica a postulação teórica doprocesso, dizendo que "desde que nós pressupomosque as palavras não falam sobre 'nada', somos compe-lidos a ligá-Ias a alguma coisa, a encontrar equivalen-tes não-verbais" (p. 38). Não obstante, ele reconheceque nem todos os conceitos podem ser ligados a ima-gens, principalmente porque a disponibilidade destas émenor. Já se disse, nesse sentido, que objetivar é"reabsorver um excesso de significados". Conclui o au-tor, a propósito da objetivação de conjuntos complexosde conceitos, corno o da estrutura psicanalíticaexemplificado acima:

1/ Aquelas [palavras] que, devido à sua capacidade paraserem representadas, tiverem sido selecionadas, (...)são integradas ao que eu chamei de um padrão de nú-cleo figurativo, um complexo de imagens que reproduzvisivelmente um complexo de idéias. (...) Uma vez que

o CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA

a sociedade tenha adotado tal paradigma ou núcleo fi-gurativo, fica mais fácil falar sobre qualquer coisa quepossa ser associada ao paradigma e, por causa destafacilidade, as palavras referentes a ele são usadas maisfreqüentemente." (Moscovici, 1984a:38-9)

[odelet (1984), tornando o caso da representaçãoenquanto apropriação popular de uma teoria científicaou erudita, corno a psicanálise, descreve três fases noprocesso de objetivação: (1) seleção e descontex-tualização de elementos da teoria, em função de crité-rios culturais, normativos; (2)formação de um "núcleofigurativo", a partir dos elementos selecionados, cornourna estrutura imaginante que reproduz a estruturaconceitual; (3) naturalização dos elementos do núcleofigurativo, pela qual, finalmente, "as figuras, elemen-tos do pensamento, tornam-se elementos da realidade,referentes para o conceito" (p. 368). Moscovici (1984a)assim caracteriza o produto final desse processo:

1/( ... ) a imagem é totalmente assimilada e o que é perce-bido toma o lugar do que é concebido, [este] é o resulta-do lógico de tal estado de coisas. Se as imagensexistem, se elas são essenciais para a comunicação ecompreensão sociais, isto é porque elas não são (e nãopodem permanecer) sem realidade tanto quanto nãopode haver fumaça sem fogo. Desde que elas devem teruma realidade, nós encontramos uma para elas, não im-porta qual. Assim, por uma espécie de imperativo lógi-co, as imagens se tomam elementos de realidade maisdo que elementos de pensamento." (p. 40)

Sobre o estado atual do campo de estudos

O campo de estudos designado pela expressão Re-presentações Sociais acaba de completar 30 anos. Grossomodo: nos seus primeiros dez anos de vida, permaneceupraticamente ignorado; nos dez anos seguintes, passou

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o ONIIECIMENTO NO COTIDIANO O CONCEITO E O ESTADO ATUAL DA TEORIA

r melhor nutrido por uma significativa quantidadede pesquisas empíricas sobre os mais variados objetosde representação; nos últimos dez anos, presenciouuma ainda maior intensificação dessa atividade, tratoude se refinar em termos teórico-conceituais, de se dis-cutir e se aperfeiçoar metodologicamente, empenhou-se em atualizar seus relacionamentos potenciais comoutras abordagens do mesmo campo fenomenal, difun-diu~separa além das fronteiras francesas e européias, e,obviamente, passou a ser alvo de críticas e questio-namentos no meio acadêmico da psicologia.

Tais críticas ou ressalvas - por exemplo, Harré(1984),Potter e Litton (1985),McKinlay e Potter (1987),Parker (1987), Iahoda (1988) - e as réplicas deMoscovici (1984b, 1985, 1987, 1988)e outros são todasacademicamente legítimas. Manifestam desacordosacerca de questões relevantes para a sistemática da pro-dução de conhecimento nos universos reificados: pres-supostos ontológicos e epistemológicos, consistêncialógica na construção de teorias, validade e fidedignida-de metodológica etc. Não há espaço aqui para resenhá-Ias e destacar os principais pontos em choque. Mas caberessaltar que discussões como essas sempre desempe-nham um importante papel no desenvolvimento de umnovo campo de estudos: previnem contra os meros mo-dismos inconseqüentes e testam a vitalidade das pro-posições básicas do sistema e de suas implicações.

O que importa, portanto, é que o campo das Re-presentações Sociais, passando pelo teste da críticaexterna e beneficiando-se da crítica interna, tem semostrado cada vez mais produtivo. Seu valorheu-rístico se evidencia pela crescente diversidade de ques-tões cuja pesquisa tem inspirado e às quais temproporcionado os referenciais teóricos. Novas concep-ções complementares são oferecidas à teoria, dentre asquais se pode destacar, para fins de ilustração, as no-ções de núcleo central e esquemas periféricos de umarepresentação, trabalhadas por Flament (1989), e a in-

terpretação epidemiológica da difusão das representa-ções, proposta por Sperber (1989).Articulações são fei-tas com estudos independentes sobre a linguagem,inclusive no que se refere à questão metodológica doacesso às Representações Sociais. A possibilidade deoutros precursores, além da sociologia durkheimiana,é examinada. Parentescos em relação a diferentes abor-dagens, como a "construção social da realidade" deBerger e Luckmann (1973),a etnometodologia e a his-tória das mentalidades, são reconhecidos e explorados.Comparações críticas com a tradição psicossociológicaconcorrente da cognição social (Moscovici, 1982) sãodesenvolvidas.

Tudo isso mostra que Moscovicitinha razão ao dizerque, quando da inauguração do campo, não poderiaantecipar como ele viria realmente a se desenvolver.Essa atitude de reserva e cautela é convincentementejustificada pelo autor, quando, em 1984, ele faz umaprojeção quanto ao futuro desejável do campo de estu-dos no desempenho de sua função renovadora da psi-cologia social:

"Uma das tarefasda psicologiasocialdeveria ser entãoa de coletar tais representaçõese descrevê-Iassistema-ticamente - em outras palavras, estabelecerum corpussemelhante aos que a antropologia, a história, aetnologia e a psicologiada criança têm à sua disposi-ção. (...) Somentecom a ajuda de uma tal acumulaçãode fatos e interpretaçõespode uma ciênciaprogredir eformular uma teoriageral." (Moscovici,1984b:954-5)

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