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Rua da Restauração, 365 - WordPress.com · 2019-02-27 · sobre os outros. Na cama, escutava-se um clamor, os melhores ... ou tomar o ganho de uma voz, mas não explica, age apenas,

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Servidões H erberto H elder

Publicado em Portugal por Assírio & Alvim www.assirio.pr

© Sistema Solar e Herberto Helder, 2013 © Porto Editora, 2013

Na capa: xilogravura de Ilda D avid’

Edição única em Maio de 2013

Assírio & Alvim é uma chancela da Porto Editora, Lda.

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

Distribuição Porto Editora, Lda.

Rua da Restauração, 365

4099-023 Porto | Portugal

www.portoeditora.pt

Execução gráfica Bloco Gráfico, Lda.

Unidade industrial da Maia.

DEP. LEGAL 558SS9/13

ISBN 978-972-57-1696-2A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós.

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A n d r é B r e t o n — Des têtes! Mais tout le monde

ce que c’est qu une tête.

A l b e r t o G i a c o m e t t i — Moi, je ne sais pas.

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É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador agora

quando se lembra aquilo por que se passou. Era o costume das

infâncias: viam-se faiscar os rostos, súbitos como pedrarias nos

quartos obscuros, assemelhavam-se a alvéolos de colmeias uns

sobre os outros. Na cama, escutava-se um clamor, os melhores

instantes concentravam-se ali, que apuramento de palavras, de

frases, de anúncios, e aquilo ascendia no silêncio, era a nossa

música que se compunha, e em baixo mas inteiro nos dons,

em estado de graça, respirávamos temerariamente. Estávamos

atentos às matérias e sopros do mundo expressos em imagens e

vozes autónomas. Nem sequer nos apercebíamos bem de que

as noites separavam os dias: era verão. O espaço, os encontros,

as caras, o cabelo das mulheres, roupas estendidas a suar, o vento

amplo, grandes pedras, grandes girassóis, a fruta amarela, os

bichos. Crescíamos no meio do atordoamento de flores e ani­

mais, crescíamos assim. Uma noite acordei com o som dos

meus próprios gritos.

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Trouxeram uma vez um porco selvagem caçado nas serras

e atiraram-no para cima da mesa da cozinha, uma longa mesa

coberta de zinco. Abriram-no de alto a baixo com enormes

facalhões e cutelos, o sangue corria por todos os lados, meteram

as mãos e os antebraços na massa vermelha, e eles reapareceram

depois como calçados de luvas sangrentas, vivas; deitaram

então para os baldes as vísceras que fumegavam: os pulmões,

o fígado, os intestinos. De tudo aquilo subia um perfume agudo,

embriagador, doloroso. A noite tive febre. Havia qualquer coisa

pérfida e perversa neste mundo das frutas muito fortes, dos ani­

mais esquartejados, dos cheiros, este mundo espesso e quente,

um mundo de imagens orgânicas.

Era a ordem ininterrupta das magias: à meia-noite de sá­

bado cravava-se uma faca no tronco das bananeiras, ia-se ver

logo pela manha, a seiva ácida deixara enigmáticas figuras na

lâmina, decifrávamos, tínhamos inspirações, revelações: um

cavalo, uma águia, um tigre, uma cobra, um leão. As bana­

neiras gemiam de noite: a sua carne rasgava-se por uma força

que vinha de dentro, e das feridas brotavam os rebentos: cachos,

frutas de ouro. Em tempo de trovoadas punham-se lençóis

sobre os espelhos porque se acreditava que os espelhos nus

atraíam os raios. Havia espelhos por toda a casa, alguns eram

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altos, do tamanho de uma pessoa, replicavam de corpo inteiro

à travessia pelos corredores e quartos. A nossa própria imagem

assustava-nos vinda bruscamente não sabíamos de onde, de

que fundo, de que mundo. Era uma imagem que se agarrava

à nossa, que se introduzia malignamente em nós carregada de

poderes inexplicáveis. Durante uma dessas tempestades um raio

fuzilou junto às janelas e vi no espelho, que eu mesmo cobria

com o lençol, o meu rosto desdobrado, ardido, remoto: quem

era?, um animal demoníaco, uma criança de cabeça zoológica,

um killcrop?

A cabeça ficara marcada, invisível, mas quando me deitava

de costas, na escuridão, sentia uma queimadura na têmpora,

a crosta fervendo por baixo, da nuca à testa. Interpretava-a

como uma cicatriz que me acompanharia até à morte, o em­

blema de uma guerra assombrosa de que já esquecera os por­

menores e o sentido. Estava ali, ficara ali para sempre, confun­

dia-se insondavelmente com o destino. E no entanto essa

marca garantia que eu era livre, que findava nela, na inquieta

memória da guerra, a interdição que o mundo opunha ao surto

das forças, o meu espírito seria daí em diante irredutível, não me

sujeitava nenhuma regra alheia. E era contínuo, sem pausas,

uma espécie de insónia arrebatada e mortal. Porque eu morre-

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ria lentamente dos episódios dessa guerra, morreria das chagas

que ela me deixara.

Mas penso que tudo isto é uma interminável preparação,

uma aproximação. Porque o prestígio da poesia é menos ela

não acabar nunca do que propriamente começar. É um início

perene, nunca uma chegada seja ao que for. E ficamos esten­

didos nas camas, enfrentando a perturbada imagem da nossa

imagem, assim, olhados pelas coisas que olhamos. Aprende­

mos então certas astúcias, por exemplo: é preciso apanhar a

ocasional distracção das coisas, e desaparecer; fugir para o

outro lado, onde elas nem suspeitam da nossa consciência;

e apanhá-las quando fecham as pálpebras, um momento,

rápidas, e rapidamente pô-las sob o nosso senhorio, apanhar

as coisas durante a sua fortuita distracção, um interregno,

um instante oblíquo, e enriquecer e intoxicar a vida com essas

misteriosas coisas roubadas. Também roubámos a cara chame­

jante aos espelhos, roubámos à noite e ao dia as suas inextri­

cáveis imagens, roubámos a vida própria à vida geral, e fomos

conduzidos por esse roubo a um equívoco: a condenação ou

condanação de inquilinos da irrealidade absoluta. O que excede

a insolvência biográfica: com os nomes, as coisas, os sítios, as

horas, a medida pequena de como se respira, a morte que se

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não refuta com nenhum verbo, nenhum argumento, nenhum

latrocínio.

Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência.

Eu podia contar gemeamente duas histórias: uma afro-

-carnívora, simbólica, a outra silenciosa, subtil, japonesa.

De cada uma delas acabariam por decorrer um tom e um

tema. A história carnívora foi colhida algures, de leitura, e

respeita a uma tribo que sepultava os seus mortos no côncavo

de grandes árvores. As árvores, a que tinham dado o nome

do povo: baobab, devoravam os cadáveres, deles iam urdindo

a sua própria carne natural. Pelo nome tirado de si e posto

na alquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a

morte levava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na

terra. Emocionam-me a fome botânica e o triunfo das copas,

o empenho tribalmente mágico, regrado pelo insondável en­

tendimento das metamorfoses da carne no esquema orgâ­

nico da matéria. E apanho aqui o símbolo: uma imagem

de si mesma, uma imagem absoluta, universal, devora esta

gente, e esta gente põe a assinatura na imagem devolvida ao

mundo. É quase tudo quanto há para dizer no plano prá-

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tico da poesia. Num Japão corolário, o discípulo pergunta

a0 mestre o que é o Zen, e o mestre descalça as sandálias

e coloca-as em cima da cabeça. Eu penso que o discípulo

era ainda pouco lavado na inteligência das coisas, do seu

pouso e geometria, pouco inteligente da inteligência que

aparelha o caos em relações sensíveis de elementos. Não lhe

era enfim sabido que discorrer sobre a ordem do mundo, e de

qualquer capítulo dele, é menos que nomear. É o desencon­

tro no acto das palavras. Como ressalta então o recôndito, o

lugar onde a carne é comida, e ressurge, mercê da aliança da

linguagem com as formas! N ão se discorre. A vitalidade no­

minal é intrínseca, metabólica: pode tender para o silêncio

ou tomar o ganho de uma voz, mas não explica, age apenas,

age como substância, forma e nome da realidade. Vejo eu

mesmo, à custa de operações secretas — alimentos, silên­

cios — que me sustenho no âmbito mais avesso ao exterior

de uma arte que é interna, arte cerrada a que se chega por

dote e exercício próprios, das cercanias para o meio, um

combate com as armas inocentes e astuciosas da magia,

carne contra carne, imagens, sopro, os terríveis substantivos

da terra, objectos vivos. Se me acontece tomar como argu­

mentos meus aquilo que os poemas indicam e dirigem, ou

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fazem, aquilo que sai em jeito de visibilidade e música, a

desocultação, a versão ponderável, fica assente em espécie de

nota que se capta a razão inteira, no centro. Todo o livro vai

sendo o seu prefácio, e o posfácio, a inacessível e pronta­

mente acessível evidência. E assim quero eu pôr em escrito

rápido que ele, livro, com as suas vozes últimas, incita quem

puder a poder encontrar a razão das razões, pessoal, e o fun­

damento agora inabalável de uma figura da realidade que,

apenas manifesta, se torna encontrada como única. O que se

faz segundo as posses dos encontros. Neste sistema não deixa

a natureza que entrem outras linhas: é um gnómon para

ajuste de certas horas, marcando a dominação e os passos de

um sol pessoal. Fique indiscutível que é uma carta de teor e

amor, múltipla e unívoca, e doada, e ferozmente parcialís-

sima. Quando os lemos lado a lado, a todos estes poemas,

sabemos estarem eles entregues ao serviço de uma só ins­

piração. Nada disto aclara, nada pretende: ache cada um a

sua árvore vorazmente nupcial, sem inquirir de um silêncio

que apenas responderá mostrando o absurdo no absurdo,

aludindo com a técnica oblíqua de um exemplo qualquer à

qualidade da acção, mesmo que a acção, no domínio dos

silêncios, seja verbal. Ache, na sua própria cegueira, a vista

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de uma paisagem transfigurada: a vida «começa a ser real».

Algures, aqui.

Encontrava-me agora na ilha onde nascera; muitos anos

de ausência seguida, e estava ali. Para morrer? O meu centro,

o âmago, era esta terra que afinal eu não reconhecia como

esperava, com alvoroço, com uma emoção porventura amarga,

difícil, mas não desta maneira recuada, como se eu não fosse

vulnerável aos prestígios da minha tradição. Aquilo que a

vista me dava, basaltos, espumas, corolas altas fremindo,

corolas animais, e as ruas e casas, os nomes, evocações de pes­

soas, factos, instantes vertiginosos e misteriosos, o tormento

e o júbilo, os pactos irrevogáveis com o destino próprio, ali,

naquele sítio — nenhuma dessas experiências, nada, ne­

nhuma imagem confirmada pelo olhar, ou esse odor de vaza

marinha, de jasmins, e o vento trazido das montanhas, nada

era vivo, actual, reiterado, circulatório, nada me reatava, um

ímpeto do espírito, uma religação; eram coisas, aquelas, con­

feridas como realidades independentes de mim, arranjos do

espaço que uma espécie de indiferença lúcida achava irrecu­

sáveis mas irrecuperáveis na consciência, a consciência não

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fora abalada. Eu não reconhecia o mundo, aquele. Poderia en­

tão morrer, insensível, ali? Só morremos de nós mesmos, e se

existe uma figura topográfica, geográfica, talvez seja esco­

lhida ou imposta pela inspiração que dirige profundamente a

nossa vida. Esta ilha não se integrava na minha ordem espiri-

tual e fora nela contudo que eu arrecadara os ganhos funda­

mentais, os primeiros, naquelas imagens, nos acontecimentos

por assim dizer nascidos nesses lugares, nascidos deles, ali

concebera como reitoria irreversível e inocente aquilo que,

com alguma veracidade, alguma retórica, alguma fé, se cha­

maria destino.

Quase me apetece escrever que a alimentação mítica, a

minha, se fizera daquela substância mas os elementos tanto se

haviam purificado, de tal maneira tinham sido dispostos, que

constituíam um universo autónomo, irreferenciável, abso­

luto. Fora ali que eu nascera. Mas creio haver quem nasça de

si próprio e significa talvez, isto, que nada tenho a ver com a

história, que a criei, eu, à história, passe a megalomania se o é;

a história é a minha biografia e os pontos onde vida e criação

tocam pontos da história comum, pensando-se que há histó­

ria comum, são contactos de que me sirvo não para a ficção

da minha existência mas para a ficção da história que serve a

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verdade biográfica. Compreendi então: cumprira-se aquilo

que eu sempre desejara — uma vida subtil, unida e invisível

que o fogo celular das imagens devorava. Era uma vida que

absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua

realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical.

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dos trabalhos do mundo corrompida

que servidões carrega a minha vida

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saio hoje ao mundo,

cordão de sangue à volta do pescoço,

e tão sôfrego e delicado e furioso,

de um lado ou de outro para sempre num sufoco,

iminente para sempre

23 .x i . 2 0 1 0 : 80 ANOS

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do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,

agudo e espesso,

pois aproveitou do que seria menstruo,

e crepita agora,

o poema das mães conjuntas quando, ainda analfabetos,

procuramos as putas futuras,

e estremecemos às vezes de sacra folia,

trançados entre as coxas,

debaixo das bocas habilíssimas,

límpidos, loucos,

e são linhas sem tropeço, de osso, nervo, sangue, sopro

¿¿e qual a matéria, e a razão, e a coesão, a força interna

do capítulo do assombro?

dans l'ivresse,

e então penso: isto é assim:

da exacerbada cantiga das mães a gente tem

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o movimento que imita a terra com seus elementos,

seus ministérios do tempo, a aguarrás,

o sal grosso, a tinta das rosas

— e é tudo quanto se pode aprender até que a noite

venha e desfaça,

a noite amarga

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as manhãs começam logo com a morte das mães,

ainda oito dias antes lavavam os cabelos em alfazema

cozida,

ainda oito anos depois os cabelos irrepetíveis,

todas as luzes da terra abertas em cima delas,

e então a gente enche a banheira com água fria até ao

pescoço,

e tudo brilha na mesma,

brilha cegamente

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l ’amour la mort

petite pute deitada toda nua sobre a cama à espera,

e inexplicavelmente eu entro nela de corpo inteiro

e idade inteira

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That happy hand, wich hardly did touch

Thy tender body to my deep delight

a n o n , 15 6 0

versão errática:

mão tão feliz de ter tocado

teu corpo atento ao meu desejo

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fosses tu um grande espaço e eu tacteasse

com todo o meu corpo sôfrego e cego

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d ’après Issa

no mais carnal das nádegas

as marcas

das frescas cuecas

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e eu que sopro e envolvo teu corpo tremulamente intacto

com meu corpo de bode coroado

fedendo a testosterona e sangue,

num mundo de aromas e de orvalho,

farejo-te,

mordo-te a nuca, lambo,

e faminto me meto por ti adentro,

rebento os selos,

marco-te a fogo,

levíssima visita à minha sêca luz e arrebatada fome,

e se brotas em tua donzelia e és ao modo de festejo,

e de minha bruteza te encurvas tanto que te sussurro um

poema de louvação e embalo,

tão soluto e agudo e soberano,

algures, quando

a água quebre e os verbos soberbos cantem,

e tudo se desfaça,

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e refaça,

nao como soía,

mas com um assombro novo:

faz-se-me tarde para o poema das frutas que de macias

se fendem e fundem nas gengivas,

e no ímpeto da luz rasgada em baixo,

cômo-te antes que morra:

e eu sei quanto depressa morro

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funda manhã onde fundei o prodígio da minha vida airada,

vou dar que fazer aos pássaros jardineiros,

um botão de prata, uma folhinha de ouro,

a gota alquímica de mercúrio ao meio,

oh trabalhosa delicadeza,

andam por todo o lado como quem pisa espuma ou pólen

— vinde cá, fêmeazinhas que tanto amais o donaire e

a invenção, e a arte,

é uma cilada sim,

mas a vossa plumagem, a atenção ao mundo, a cabeça

inquieta,

tudo tão de estudo para o fascínio absoluto,

que venha uma e se arrebate e se perca no enigma,

armadilha de guerra,

sabe Deus quanto a beleza me custa e quanto o ganho

é imponderável,

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pois sou eu mesmo quem se fascina com este jogo:

que se devoro o mundo também o mundo me devora,

oh malícia, oh

perícia voadora!

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não, obrigado, estou bem, nada de novo,

socorro só preciso daquele que me salvasse não sei de

quê nem como,

foi simples: mandaram-me um livro praticamente sem

dedicatória,

descobri que havia sangue nalgumas páginas,

nao indicava de onde vinha nem quem o mandava ou

até se era eu o destinatário,

só o endereço e um carimbo secreto,

de que país de que cidade de que língua inexpugnável,

depois do caos e a solidão e o medo et coetera,

estou naturalmente mal obrigado,

e num extremo é sempre possível despenhar-se de

algures para nenhures,

logo se vê,

pois tinha sangue páginas afora,

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pus-me então a supor que violência era aquela entre

tantas violências de sangue

que se conhecem,

e nem de uma única me lembrei, só me lembrava

que o corpo humano tem cinco litros de sangue em média,

muito

muito muito sangue com que alguém tem de se haver,

cinco litros para esbracejar ou afogar-se ou saciar,

tanto sangue para quê?

é o que acontece quando se pensa nas iluminuras das guerras,

para que se dá ou tira tanto sangue,

e das mulheres plenas vai-se ainda extravasando tanto sangue

inútil delas,

não, não, estou bem, só que já não percebo nada, ou melhor:

estou mal, obrigado — e o sangue corre e escorre dentro e

fora,

e o tema, qual era? digo: de que tratava o livro?

não sei, era numa língua demasiado estrangeira,

provavelmente não tratava de nada,

desconfio mesmo que eram poemas em verso dito livre,

e se existe alguma lógica, dadas as circunstâncias, o que é

que se esperava?

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e então exultei: porque

as coisas, as pessoas, os livros, os trajectos, as palavras, tudo

à volta,

são segredos de um segredo, e só isso os sustenta no vazio

do tempo,

e espero estar agora mesmo a escrever,

em verbo arcaico indefectível cerrado,

um erro absoluto,

um êrro escorchado vivo: vós sois o sal da terra,

vós que escreveis e enviais cartas a cada um e a todos

— a mão do mundo, a música, as cartas derradeiras

e os sobrescritos sem destinatários

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já não tenho tempo para ganhar o amor, a glória ou a

Abissínia,

talvez me reste um tiro na cabeça,

e é tão cinematográfico e tão sem número o número

dos efeitos especiais,

mas não quero complicar coisas tão simples da terra,

bom seria entrar no sono como num saco maior que

o meu tamanho,

e que uns dedos inexplicáveis lhe dessem um nó rude,

e eu de dentro o não pudesse desfazer:

um saco sem qualquer explicação,

que ficasse para ali num sítio ele mesmo sítio bem

amarrado

— não um destino à Rimbaud,

apenas longe, sem barras de ouro, sem amputação de

pernas,

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esquecido de mim mesmo num saco atado cegamente,

num recanto pela idade fora,

e lá dentro os dias eram à noite bem no fundo,

um saco sem qualquer salvação nos armazéns obscuros

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de dentro para fora, dedos inteiros,

falanges, falanginhas, falangetas,

ao polegar falta, a mim falta-me tudo,

desde a paz na memória e a esperança não sei onde

até

qualquer crença, mínima, fortuita, ultramarina,

por exemplo: na língua,

que dure muitos anos ao mesmo tempo em muitos sítios

descontínuos,

tempo e sítio de entre mim e quem me lesse,

pois se calhar são meus os trabalhos do diabo:

que alguém venha escutar-me quando puxo os lençóis para

cobrir as musas do

desentendimento,

contra a noite abruptíssima:

estrelas, florações às faíscas

e no chão, sempre pequeno, vil, de vulgo e de rastejo,

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menor em idioma, em pensamento e música,

queria sim escrever o meu poema fixo entre as palavras

móveis

em que todo me desunho:

sentir um rastro de gelo passar-me pela cabeça,

implícita temperatura até à boca,

respiração aflita,

e o sangue na esferográfica,

só pelo nome natalício que vai de mim às coisas

e as torna indizíveis no dito poema escrito,

curto de um lado e comprido de outro,

por exemplo: restrito e errado e restituído e absoluto

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e eis súbito ouço num transporte público:

as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa

sete ou nove metros de labaredas,

e nem um grito, um sussurro, uma palavra:

só a casa ocupada pela grandeza da estrela,

a grandeza primeira

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as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa

(ouvido num transporte público)

luzes todas apagadas

— e se alguém está no escuro e súbito reluz lá

dentro,

alguém fremente?

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a noite que no corpo eu tanto tempo trouxe, setembro,

o estio,

pálpebras seladas, unhas, e o sangue por baixo e em cima

a faca

com que se talha a mão e a frase um pouco longa sangra,

e consta que no verso e reverso da língua se está mais vivo,

assim o súbito nos abra,

nos puxe, digo eu, aos sorvedouros do sono,

e seus estados e obras,

eu que sou isento, digo, que me devore um buraco ou

fora ou dentro,

ou galáctico, ou uma pontada no coração tão de repente,

se alguém se vai embora não sei de onde para onde,

se se murmura: que toda a gente morre de si: ou agora ou

um pouco mais tarde, o que está certo

como qualquer mistério:

água quebrando os dedos até às pontas quando se escreve

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de uma ponta à outra sobre as riscas do papel cantante,

mais coisa menos coisa, pequena coisa, ou: riacho frio,

sorve-o a areia,

e acaba ali, como esta curta ária aqui tão perto do comêço

de seu esperançoso esperanto tanto quanto

já sabe alguém que aqui se capitula,

e abre este capítulo:

que tudo acaba: canção, talento, alento, papel, esferográfica,

alguma coisa movida a estrangeiro longínquo,

coisa fora do sistema, e mete medo,

e não é a beleza,

não é um rosto que estremeça junto ao nosso rosto,

e o pretexto é sempre este:

orvalho

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que floresce uma só vez na vida, agaué! dez metros, escarpada,

branca, brusca, brava, encarnada,

e lava a língua às crianças,

e põe-lhes a fala cantante,

e nunca esperes que se repita no deserto da vida,

não esperes,

não nunca esperes pelo regresso do sistema das maravilhas,

porque morreu do mundo uma só vez prodigiosa,

e adormeces e acordas,

e a espera enche os dias,

e quebram-se o ar e a água,

porque rente à cara respirando do chão quente batem fundo

como se água e ar se amarrassem,

abecedária,

desamarrassem,

e o sal e o ouro moído e a escarlata

pousam camada a camada — e

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giram logo acima da pulsação da terra para que os colham

e recolham,

e o sopro unido vem à volta: estrelas, ondas,

trigos às faíscas,

aberturas,

e o teu rosto mortal iluminado e as pequenas artes do triunfo

das palavras:

as criaturas, e a sua morte,

e os campos de trigo e orvalho e alumiação,

e os grandes anéis das estações e os grandes animais,

e a tua morte de alto a baixo e dentro e fora,

a morte floral, dez metros de sangue compacto e espuma

extraordinária,

fria fria luz como uma guerra de lâminas,

fria nas rápidas colinas tomadas pelo estio e a primavera,

pelas estações vertiginosas,

agaué! quando a luz as toma uma só vez na vida e as levanta

até onde

ninguém respira,

ninguém brilha,

nunca ninguém ressuscita, agaué! e amanhã e ontem e agora,

os campos de trigo e orvalho e alumiação,

e a sua morte

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até cada objecto se encher de luz e ser apanhado

por todos os lados hábeis, e ser ímpar,

ser escolhido,

e lampejando do ar à volta,

na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos

como para escrever cada palavra:

pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:

um copo de água,

tudo pronto para que a luz estremeça:

o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima

tão súbito e implacável na vida administrativa

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como se atira o dardo com o corpo todo,

com a eternidade em não mais que nada,

e depois a abolição do tempo,

e então o que respira no corpo passa à vara,

e o que respira na vara passa depois à ponta,

tu não, tu já respiraste tudo pelo dardo fora,

mudo e cego e surdo,

e és um só ponto do alvo onde respiras todo,

e tudo respira nesse ponto,

em ti, veia da terra, oh

sangue sensível

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a linha de sangue irrompendo neste poema lavrado numa

trama de pouco mais que uma dúzia de linhas,

oh glória da ínvia linha única!

como um lenço, ou melhor: uma camisa,

encharcava o papel no cimo e no baixo da escrita,

e no imo,

e a toalha se me enxugasse a cara,

e o lençol onde me dormira o corpo,

fazia noite funda,

a linha fugitiva,

que sua a tornasse alguém, algures, um dia,

traçada, lida, aguda,

no lenço, na toalha, no lençol, ou melhor: na camisa

alta e redonda,

alta e fremente:

carne confusa, rosa esquerda

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rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,

e logo ma roubaram,

logo me perderam o pequeno achado,

mas ninguém me rouba a alma,

roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,

um umbigo, um nó,

um nome que só em mim era floral e único

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não me amputaram as pernas nem condenaram à fôrca,

não disseram de mim:

ele inventou a rosa,

contudo quando acordei a minha mão estava em brasa,

contudo escrevi o poema cada vez mais curto para chegar

mais depressa,

escrevi-o tão directo que não fosse entendido,

nem em baixo,

nem em cima,

nem no sítio do umbigo que se liga ao sangue impuro,

nem no sítio da boca onde se nomeia o sopro,

e ficou assim:

económico, íntimo, anónimo

ou:

chaga das unhas cravadas na carne irreparável

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disseram: mande um poema para a revista onde colaboram

todos

e eu respondi: mando se não colaborar ninguém, porque

nada se reparte: ou se devora tudo

ou não se toca em nada,

morre-se mil vezes de uma só morte ou

uma só vez das mortes todas juntas:

só colaboro na minha morte:

e eles entenderam tudo, e pensaram: que este não colabore

nunca,

que o demónio o leve, e foram-se,

e eu fiquei contente de nada e de ninguém,

e vim logo escrever este, o mais curto possível, e depressa, e

vazio poema de sentido e de endereço e

de razão deveras,

só porque sim, isto é: só porque não agora

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pedras quadradas, árvores vermelhas, atmosfera,

estou aqui para quê porquê e como?

e mal pergunto sei que morro todo entre pés e cabeça,

e restam apenas estas linhas como sinal do medo:

pó, poeira, poalha

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¿mas que sentido faz isto:

pedras quadradas, árvores vermelhas sob condição de

atmosfera azul petróleo,

poema —

que sal bruto em água abrupta,

que água adulta e muita,

que subtil pepita a transcorrer entre pulso e unha,

que tumulto no mundo avulso unido?

— ¡ e tudo com umas gotas poucas apenas nem de orvalho

mas de tinta!

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quem fabrica um peixe fabrica duas ondas, uma que rebenta

floralmente branca à direita,

outra à esquerda só com ar lá dentro,

e o ouro íngreme puxando o comêço da noite e o fim do

enorme dia onde todos morreremos

como filhos escorraçados ou disso a que chamam demónio da

analogia,

quem fabrica um poema curto morrerá muito mais tarde,

só depois de estar maduro, quem

baixa a mão para quebrar um sêlo há-de baixá-la

para quebrar os outros, e há-de fechar os olhos,

e de tanto ter visto não poderá nunca mais abri-los:

e cômo pão e bebo água de olhos fechados como se fosse para

sempre,

e assim, adeus a quem vê, que eu morro inteiro para dentro,

e vejo tudo só de entendê-lo

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— oh coração escarpado,

que lhe toquem através do sangue turvo,

nem o amor nem o cego idioma das mães hão-de salvá-lo

nunca:

súbito cai o terrífico estio sobre o mundo,

mas só a ele o queimará por entre as searas que amadurecem,

invisíveis, implacáveis,

alta noite

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¿e a música, a música, quando, como, em que termos

extremos

a ouvirei eu,

e ela me salvará da perda da terra, águas que a percorrem,

tão primeiras para o corpo mergulhado,

magníficas,

desmoronadas,

marítimas,

e que eu desapareça na luz delas —

só música ao mesmo tempo nos instrumentos todos,

curto poema completo,

com o autor cá fora salvo no derradeiro instante

numa poalha luminosa?

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nunca mais quero escrever numa língua voraz,

porque já sei que nao há entendimento,

quero encontrar uma voz paupérrima,

para nada atmosférico de mim mesmo: um aceno de mão rasa

abaixo do motor da cabeça,

tanto a noite caminhando quanto a manha que irrompe,

uma e outra só acham

a poeira do mundo:

antes fosse a montanha ou o abismo —

estou farto de tanto vazio à volta de nada,

porque nao é língua onde se morra,

esta cabeça não é minha, dizia o amigo do amigo, que me disse,

esta morte não me pertence,

este mundo não é o outro mundo que a outra cabeça urdia

como se urdem os subúrbios do inferno

num poema rápido tão rápido que não doa

e passa-se numa sala com livros, flores e tudo,

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e não é justo, merda!

quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba,

e falar nela de tudo o que não faz sentido

nem se pode traduzir no pânico de outras línguas,

e estes livros, estas flores, quem me dera tocá-los numa

vertigem

como quem fabrica uma festa, um teorema, um absurdo,

ah! um poema feito sobretudo de fogo forte e silêncio

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um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,

espero que me nao doa,

um dia destes em todas as partes do corpo,

onde por enquanto ninguém sabe de que maneira,

um dia inteiro para morrer completamente,

quando a fruta com seus muitos vagares amadura,

o dom — que é um toque fundo na ferida da inteligência:

¿oh será que um poema entre todos pode ser absoluto?

: escrevê-lo, e ele ser a nossa morte na perfeição de poucas

linhas

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Heinrich von Kleist versus Johann Wolfgang von Goethe

¿como distinguir o mau ladrão do bom ladrão ? o mau ladrão

rouba a cinza e o bom ladrão rouba o fogo

¿e como saber se é fogo ou cinza o que há à mão do roubo ?

¿será que a cinza é só cinzenta e o fogo roubado queima até

ao osso ?

o fogo é posto ali para ser roubado pelos loucos,

a cinza é posta às portas do carnaval para espalhar no rosto,

para saber-se de quem foram a mão e o rosto do roubo,

e há isto: quem tem a mão queimada tem em tudo fogo posto,

obra, vida e corpo,

e no fundo da mão do outro não há nada, mesmo na mão

cheia de ouro

(ou nela sobretudo)

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que um punhado de ouro fulgure no escuso do mundo,

agora, antes que as palavras desapareçam,

que a palavra firmada brilhe,

porque tive também a força,

porque tive a graça e a desgraça,

porque fui e vim a andar entre muralhas de água,

espuma e grande perigo da razão e da vida,

e cheguei lá,

sobrevivente ao desastre das artes,

o louco,

o roído pelo coração adentro,

com lágrimas que me arrefeciam a cara depois de a lavrarem

toda,

e já não acreditava na verdade e na realeza da forma,

nem movia a boca,

a testa,

a mão esquerda,

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até que me levaram por cima das massas de água e de iodo,

rumo aos infernos que já em vida conhecera,

talvez uma braçada de rosas de inomináveis raças,

talvez um feixe de cardos,

talvez um botão simples todo cerrado sobre si mesmo,

talvez soprasse uma brisa como um nome nisso que era agora

minha língua nenhuma, sal de água grossa,

gosto agraz na boca,

um só nome para a terra toda

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nada pode ser mais complexo que um poema,

organismo superlativo absoluto vivo,

apenas com palavras,

apenas com palavras despropositadas,

movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,

nada mais que isso,

música,

e o silêncio por ela fora

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nenhuma linha é menos do que outrora

azougue, e basta:

é tudo só memória inverosímil,

sem proporção alguma: e nenhuma

consolação da forma

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hoje, que eu estava conforme ao dia fundo,

fui-me a reler alguns dos meus poemas,

e então caí abaixo de mim mesmo,

e era só o que faltava:

sáfara safra

— nem as mãos me serviam,

nem a dor escrita e lida me serve para nada

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agora se tivesses alma tinhas de salvá-la, agora

se tivesses génio tinhas de resgatar o pacto, agora

que não tiveste senão quotidiano terás de trazer muita

da luz sumida

pelo mundo fora à tua roupa: camisa, calças,

sapatos leves com os pés andando

junto às águas salgadas,

não em cima delas,

com tanta luz no teu passeio distraído pelos acessos à

memória,

águas salgadas batidas,

a tua altura medida em espuma contra as fráguas,

agora tens de saber que é falsa,

vens pela babugem como um peixe meio dentro meio

fora,

guelras aflitas e o ar enorme à volta para arvoar,

não fossem as barbatanas

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a força da faca ou é um jogo,

ou despedaça os selos,

mas quando a luz encharca os sumagres da terra,

e as drupas sangram e embebedam,

e o odor do sangue mete medo

¡oh exercício da faca — exímio, exímio — que apura têmpera

e talento!

golpe, dor da memória,

que tudo fulgura lá fora:

espaço de águas salgadas nos tempos de setembro

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nem em mim próprio que ardo, cérebro, cerebelo, bolbo

raquidiano,

e ao alto a aura,

eu que nem creio nas deusas mais potáveis,

a Garbo, a Dietrich, a Marilyn, a Big Mother,

e entre todas a mulher que andava sobre as ondas ou a mulher

que fugiu a cavalo,

oh Deus, pés nus, e a elegância, a epifania,

espuma da luz aonde punha os olhos,

e não sabia a causa,

e digo: surfista, digo:

o homem de barbas do Manuel de Lima, as labaredas pela

cara afora,

eu que lavro com a mão em osso vivo, que apenas lavro

um livro

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os cães gerais ladram às luas que lavram pelos desertos fora,

mas a gota de água treme e brilha,

não uses as unhas senão nas linhas mais puras,

e a grande Constelação do Cão galga através da noite do mundo

cheia de ar e de areia

e de fogo,

e não interrompe ministério nenhum nem nenhum elemento,

e tu guarda para a escrita a estrita gota de água imarcescível

contra a turva sede da matilha,

com tua linha limpa cruzas cactos, escorpiões, o ar cego:

e queres apenas

aquela gota viva entre as unhas,

enquanto em torno sob as luas os cães cheiram os cus uns aos

outros

à procura do ouro

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só quanto ladra na garganta, sofreado, curto, cortado,

a um sopro do surto,

riscado nas gengivas,

intrínseco em suas músicas ou

intransitivo:

poema perfeito prometido que não nunca

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ele que tinha ouvido absoluto para as músicas sumptuosas

do verso livre

ouvia a cada nó de sílaba

um silêncio de morte

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cada lenço de seda que se ata ¡oh desastres das artes! a

própria seda do lenço o desata

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um quarto dos poemas é imitação literária,

outro quarto é ainda imitação mas já irónica e colérica,

outro quarto é das labaredas da inquisição à volta,

outro quarto, o quarto, o que falta, é por causa da

magnificência do mundo,

o quinto quarto absurdo é o das quatro patas cortadas,

e o último é ele que olha da montanha onde abriu na

pedra o seu nome inabalável,

e voltava ao primeiro como se fosse orvalho,

como se fosse tão frio que cortasse até ao osso,

o imo do próprio nome assim metido na pedra,

tanto que ninguém sabia de quem era,

porque ficou todo dentro e não se via de fora:

nem o suor nem o sangue nem o sopro

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já nao tenho mão com que escreva nem lâmpada,

pois se me fundiu a alma,

já nada em mim sabe quanto não sei

da noite atrás da luz: livros, frutas na mesa, o relógio

que mede

minha turva eternidade

e o tempo da terra monstruosa,

já nada tenho com que morrer depressa,

excepto

tanta hora somada a nada:

acautela a tua dor que se não torne académica

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escrevi um curto poema trémulo e severo,

sete ou nove linhas,

e a densa delicadeza dessas linhas

era cortada por uma ferida cega,

mas aquilo que o alimentava e unia

— fundo, devastador, incompreensível —

nem eu sabia o que era:

talvez a técnica atenção da morte

vigiasse arte tão breve, tão furtiva

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profano, prático, público, político, presto, profundo, precário,

improvável poema,

contudo

nem eu estava à espera dos bárbaros que viriam devastar

a terra,

porque éramos inocentes,

nós que só queríamos silêncio,

e a voz diria que se fosse preciso traziam Deus,

e é sim possível que trouxessem qualquer espectáculo com

cristos nus e saltimbancos de feira,

e paus vermelhos,

paus amarelos,

paus virgens com linho ou algodão pintado,

paus compridos com petúnias como borboletas:

e eu achava inadmissível,

e tinha a meio da minha própria linguagem a dor sòzinha em

que súbito se repara,

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e de que o poema se faz carregado e quente,

e não explicava nada,

e lá vinham os bárbaros como no episódio de Alexandria,

mais uma vez depois de Cavafis,

incendiada pelos soldados de César e do califa Omar,

por franceses e ingleses e todos os outros bárbaros,

por todos os incapazes da medida intrínseca,

a densa meditação que conduz ao poema puro,

e nunca, nunca mais a paixão,

e então o centro mesmo do mundo é o centro de Alexandria,

livros, música, mão calígrafa movendo-se ainda,

olhos fechados víamos atrás das pálpebras a nossa vida ardente

e muda e lenta,

e a carne desde o imo desfazia-se num soluço,

magoada, humana,

alexandrina,

e o mundo era pequeno,

mais pequeno com certeza que um poema de um verso único,

universo:

oh nunca mais quero viver no mundo!

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uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça,

nunca mais fui o mesmo,

passei por todos os mistérios simples, e agora estou tão

humano: morro,

às vezes ressuscito para fazer uma grande surpresa a mim

mesmo,

eu que nunca nunca mais me surpreendo:

sou mais rápido —

falo de mim em estilo estritamente assassino:

é quase como se fosse o centro do planeta:

prontíssimo para o verbo e o milagre,

mas se ressuscito ah então falo de exercício estilístico:

escritor de poemas,

como se fosse uma intimidade, quase um destino, um

mistério,

com os dias primeiros até às cenas botânicas do paraíso,

e digo:

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administra a tua voz,

mas administra a tua dor primeiro

(a dor e a voz administrativas?)

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welwítschia mirabilis no deserto entre as fornalhas:

¡ah e que de escorpiões friamente bêbados de um

pouco de orvalho apenas!

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releio e não reamo nada,

a minha vida abrupta é absurda,

a arte da iluminação foi toda ao ar pelos fusíveis fora,

e fiquei cego dentro da casa cuja, e pelo mundo, e na

memória, e na maneira

das palavras quentes que eu amava,

com as costuras das gramáticas inventadas tortas mas tão

amadas também elas,

nessa língua das músicas,

e desfaleço então de tudo e nunca mais ressuscito,

e só a dor,

só o pobre de mim com seu ramilhete de rosetas bravas,

suas mínimas corolas desirmãs que mexo

entre os dedos aos nós, eruditos e ardentes,

e os trabalhos do diabo, pobre diabo, deixo-os,

e a sopa e o pão meio comidos que nem esses sequer hei

merecido nunca:

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e com estes míseros ofícios

morrerei do meu muito terror e da nenhuma salvação

da minha vida

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não quero mais mundo senão a memória trémula,

quando me perdi,

a cidade, o rio camoneano, o ar,

era como se os apanhasse de uma só vez,

um dia inteiro para ver como acabava em noite,

não quero senão perder-me nesse enigma:

um pequeno poema bastava para meter tudo lá dentro,

e a minha vida como nota,

rápida, ríspida,

nas margens,

mas tamanhas eram elas que não acabavam nunca,

notas mais notas,

o caos,

e eu ali à espera da morte entre canções roucas,

eu que, trémulo, nao quero, digo, mais mundo,

eu que me perdi,

não tinham ainda começado o rio, o poema, o ar, a morte

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estavam nus e cantavam,

e depois veio a navalha e cortou-lhes o canto pelo meio

da garganta,

as palavras misturadas com sangue,

não cantaram nunca nenhum poema celebrando a morte

de Deus,

mas ele morreu algures num curto verso ou numa longa

linha rítmica,

e eles sabiam,

contudo calavam contudo

via-se-lhes a cicatriz brilhando na garganta como um nó,

um sêlo frio,

era neles sim que se glorificava,

neles como cães que à dentada despedaçassem um corpo

severo e compacto desenhado num só traço,

a morte de mais um Deus,

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e eles brilhavam, brilhavam com as mãos e a boca cheias

de sangue,

puros nus senhores da música

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esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo,

oh como em pedra trançada ficou dito,

ígnea pedra até ao fim de tudo e mais que tudo isso

infundido,

lá onde fresca e unânime a terra que respira:

ferida funda

— e sem nada a ver com tudo,

os burrocratas indizíveis

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e ali em baixo com terra na boca e mãos atadas atrás das costas

alors qu’on peut écouter de la musique avant toute chose

sob a força devastadora da poesia

os burrocratas os burrocratas

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olhos ávidos,

áridos olhos quando tudo tem de ser novo para de novo

ser soberbo,

e é esse o êrro de que ressuscito:

e depois morro

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colinas amarelas, árvores vermelhas,

crua água pelas pedras frias fora e transparente abaixo delas,

e o júbilo imediato de ver apenas isso,

e isso por si só estar tão certo,

e nem um instante me ocorrer que a força destas coisas é

um instante apenas da força da sua morte,

e que essas mortes uma a uma são a minha própria morte

somada erradamente

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oh não, por favor nao impeçam o cadáver,

deixem-no lá passar, a portagem foi já paga,

quando assaz desabridamente pela única porta improvável

passou o dono sem custos nem modos:

arrasou tudo e arrastou tudo consigo:

a laranja, o orvalho, o ar, a rosa

— mas penso: ¿não é assim que se passa

(ou é assim mesmo que se passa),

alheio aos mortos e aos vivos,

ou afrontando-os a todos ?

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irmãos humanos que depois de mim vivereis,

eu que fui obrigado a viver dobrados os oitenta,

fazei por acabar mais cedo vossos trabalhos cegos,

porque nestas idades já nao nunca,

nem leituras embrumadas,

nem crenças, nem política das formas, nem poemas no

futuro, nem

visitas extraterrestres de mulheres

exorbitantemente

nuas, cruas, sexuais, luminosas,

só vê-las um pouco, sim, mas vê-las também cansa,

é como trabalhar: stanca,

lavorare stanca,

queríamos tanto acreditar no milagre isabelino do pão e

das rosas,

e só tínhamos que perder a alma,

hoje talvez eu mesmo acreditasse melhor, mas foi-se tudo,

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enfim esses jogos gerais, ao tempo que se esgotaram!

livros, je les ai lus tous, e como de costume a carne é

insondável,

estou mais pobre do que ao comêço,

e o mundo é pequeníssimo, dá-se-lhe corda, dá-se uma volta,

meia volta, e já era,

irmãos futuros do génio de Villon e do meu género baixo.

não peço piedade, apenas peço:

não me esqueceis só a mim, esquecei a geração inteira,

inclitamente vergonhosa,

que em testamento vos deixou esta montanha de merda:

o mundo como vontade e representação que afinal é como

e l a ,

como há-de ser: alta,

alta montanha de merda — trepai por ela acima até à

vertigem,

merda eminentíssima:

daqui se vêem os mistérios, os mesteres, os ministérios,

cada qual obrando a sua própria magia:

merda que há-de medrar melhor na memória do mundo

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cada vez que adormece é para que a noite tome conta dele

desde os pés até à cabeça,

já a noite se encheu de iodo e espuma,

se for um barco já uma estrela o queimou proa e pôpa

cada vez que de si vai acordar fecha-o uma estrela,

a água canta, jubila,

cada vez que puxa o sono lençol sobre lençol mais acima do

mundo até ao pescoço,

quando vê a maravilha que lhe acode,

a primeira,

o dia desarrumado, a noite já muito varrida,

a água para andar em cima dela,

quem vai pelo sono abaixo sem nunca encontrar pé,

de pé — queria ele,

e, passada a água,

só os outros, de manhã, quando estranham a manhã tão

comprida,

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e vão ver, e ele já virou a cara,

já virou o corpo,

boca aberta,

interrompida a canção ininterrupta

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alto dia que me é dedicado,

mais altas são as frutas se me atrevo a olhá-lo,

no tumulto da alfazema onde aos poucos enquanto morro,

do açafrão enquanto morro aos poucos,

e o oxigénio explode

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presumir não das grandes partes da noite mas entre elas

apenas de uma risca de luz

¿alguém lhe chamaria

plausível ?

por um lado vem a noite das águas,

pelo outro vem o dia das colinas e das matas bravas:

e na luz suposta ao meio, alta, sumptuosa,

morro da sua risca exacta,

ou morro da minha vida nenhuma

¿ah quem tem o tempo todo para vivê-lo e morrê-lo

assim:

turvo no rosto e nas mãos através

do mais limpo do mundo ?

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traças devoram as linhas linha a linha dos livros,

o medo devora os dias dia a dia das vidas,

a idade exasperada é ir investindo nela:

a morte no gerúndio

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pensam: é melhor ter o inferno a não ter coisa nenhuma

— como a tantos tanto o nada os apavora!

eu acho que o génio da doutrina está nessa promessa exímia:

ninguém que espere a eternidade

espera o paraíso:

provavelmente o paraíso é improvável como imagem,

dêem-nos

algum pouco do inferno, o bastante para

ocupações gerais,

trabalhos breves,

jogos da mente,

jogos distraídos,

jogos eróticos talvez, os muçulmanos tiveram palpite disso,

e os cristãos que receberam formação comercial, penso:

ia pôr a mão no fogo, ia cortar uma orelha,

eu que em mim sou obscuro, não, não,

então recebe lá a minha prece quotidiana:

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dá-me o êxtase infernal de Santa Teresa de Ávila

arrebatada ar acima num orgasmo anarquista,

a ideia de paraíso é apenas um apoio

para o salto soberano,

não um inferninho brasileiro com menininhas de programa,

púberes putinhas das favelas,

mas o inferno complexo onde passeia a Beatriz das drogas duras,

um inferno à medida de cada qual dificílimo,

onde se é evasivo,

subtilezas desde o xadrez à física quântica,

à poesia pura,

aos fundamentos da levitação xamânica,

ao sufismo,

ao surfismo

metáfora do fogo, de que argúcias e astúcias é ela rarefeita?

¿¿e a metáfora da água?

a ideia de paraíso é muito brutal e louca,

e o purgatório como purga é tão tôrpe, tão terrestre, tão

trivial e trôpego,

tão político,

tão tenebroso!

não resulta,

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dá-me esse inferno oh quanta força e ofício nos idiomas:

formar uma estrutura estritamente poética

na sua glória mesma,

só com uma inteligência de duplos sentidos,

o poema que pede mais que dez dedos,

nem os braços lhe bastam e o coração ao meio,

e os cinco litros de sangue com que se abraça tudo e se abusa

do mundo,

e o político e o cívico e o administrativo e o

económico-financeiro,

enfim o ínvio,

para quê tantos capítulos?

oh claros corredores ao longo das vozes a capella,

sim sim, organizam a morte,

e depois quem tem sorte entra pelo inferno dentro,

fulgurante, poemático,

edições os trabalhos do diabo,

post-scriptum:

meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcançado,

e lá fora eles cantando, os castrati, a capella, vozes

furiosamente frias,

limpas,

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devastadoras,

oh maldita cocaína, musa minha, droga pura,

minha aranha idiomática,

estrela de cinco pontas, o fundo do ar ardendo,

e os já ditos braços meus muito abertos,

e entre os braços o já dito coração aos pedaços

always toujours sempre

oh pulsando

pulsando!

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já me custa no chão do inferno,

num volteio,

o lenço de Beatriz,

não é fácil que se despenhe da prateleira o apocalipse

encadernado a púrpura,

aos oitenta é trabalhoso lidar com a revelação

e o pensamento puro,

também não posso por razões tipográficas conhecer a lei nos

livros de bolso,

os dentes-de-leão quando bate a primavera,

estrelas enxameando o vento,

não posso,

vejo-as fugindo para trás sobre o meu ombro esquerdo,

e logo abaixo uma pancada de sangue,

não apanho lenços,

não apanho livros,

não apanho o ritmo fechado sobre si mesmo como a unha

fecha o dedo,

IOI

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já não tenho engenho para reaver aquela rosa esquerda

que um dia me roubaram,

já não apanho o ritmo,

eu que me interessei pelas origens trágicas da erudição,

com os pés sobre a terra sentia a água de cima até ao fundo,

sentia-lhe o leve e frio

movimento, tecia nos redutos do sono

os fios da seda, e agora mal adormeço o mel mortal vibra

nos alvéolos,

sempre sempre sempre,

nunca sonhei com o sangue que se escrevia a si mesmo

como um poema trémulo,

porque só à primeira metade do poema assistia o mistério

da respiração,

e o júbilo, esse mistério insoluto

¿oh porque me arrebatou tudo isso,

e me não sopra agora no escuro dos quartos,

quando já não há ninguém,

de uma só vez, nas pálpebras, nos ouvidos, na boca,

quando sou mudo e cego e surdo,

e porque não sinto estremecer-me a garganta,

e se não torna límpida nunca a erudição,

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nas trevas nas trevas,

porque Alexandria não será jamais a minha pátria,

se já tudo se depurou enfim nos confins da leitura?

substantivos ar e fogo, agarrei-os

num arrebatamento,

unhas sangrando entre os buracos do papel salgado,

e uma palavra apenas, neologismo, arcaísmo há muito

muito fora de uso,

nunca me abandonou em nenhuma cidade do mundo,

porque todos os poemas são trémulos,

oh nos curtumes dos dedos,

e por uma irónica razão nos curtumes crus da alma

Bibliografia dispensável:

Les origines tragiques de l'érudition. Une histoire de la note

en bas de page. Anthony Grafton (trad. Antoine Fabre).

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cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,

e alguém pegou nas cinzas e deitou-as na retrete e puxou o

autoclismo,

requiescat in pace,

e eu nao descanso em paz nas retretes eternas,

a água puxaram-na talvez para inspirar o epitáfio,

como quem diz:

aqui vai mais um poeta antigo, já defunto, é certo, mas em

vernáculo e tudo,

que Deus, ou o equívoco dos peixes, ou a ressaca,

o receba como ambrosia sutilíssima nas profundas dos

esgotos,

merda perpétua,

e fique enfim liberto do peso e agrura do seu nome:

vita nuova para este rouxinol dos desvãos do mundo,

passarão a quem aos poucos foi falhando o sopro

até a noite desfazer o canto,

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errático canto e errado no coração da garganta,

canto que o traspassava pela metade das músicas

— e ao toque no autoclismo ascendia a golfada de merda

enquanto as turvas águas últimas

se misturavam com as águas primeiras

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daqui a uns tempos acho que vou arvoar

através dos temas ar e fogo,

a mim já me foram contando umas histórias que me deixaram

meio louco furioso:

um bando de bêbados entrou num velório e pôs-se à

bofetada no morto,

e riram-se todos muitíssimo,

que lavre então a loucura, disse eu, e toda a gente se ria,

até a família,

tudo tão contra a criatura ali parada em tudo,

equânime, nenhuma,

contudo, bem, talvez, quem sabe?

talvez se lhe devesse a honra de uma pergunta imóvel, uma

nova inclinação de cabeça

— à bofetada! —

fiquei passado mas,

pensando durante duas insónias seguidas,

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pedi:

metam-me, mal comece a arvoar,

directo, roupas e tudo, no fogo,

e quem sabe?

talvez assim as mãos violentas se não atrevam por causa

da abrasadura,

porém enquanto vim por aqui linhas abaixo:

ora, estou-me nas tintas:

pior que apanhar bofetadas depois de morto é apanhá-las

vivo ainda,

e se me entram portas adentro!

¿Eli, Eli?

um tipo de oitentas está fodido,

morto ou vivo,

e os truques: não batam mais no velhinho,

olhem que eu chamo a polícia, etc. — já não faíscam nas

abóbadas do mundo:

vou comprar uma pistola,

ou mato-os a eles ou mato-me a mim mesmo,

para resgatar uns poemas que tenho ali na gaveta,

nunca pensei viver tanto, e sempre e tanto

no meio de medos e pesadelos e poemas inacabados,

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e sem ter lido todos os livros que, de intuição, teria lido

e relido, e treslido num alumbramento,

e é pior que bofetadas, vivo ou morto,

pior que o mundo,

e o pior de tudo é mesmo não ter escrito o poema soberbo

acerca do fim da inocência,

da aguda urgência do mal:

em todos os sítios de todos os dias pela idade fora como

uma ferida,

arvoar para o nada de nada se faz favor, e muito, e o mais

depressa impossível,

e com menos anos, mais nu, mais lavado de biografia e de

estudos

da puta que os pariu

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os capítulos maiores da minha vida, suas músicas e palavras,

esqueci-os todos:

octagenário apenas, e a morte só de pensá-la calo,

é claro que a olhei de frente no capítulo vigésimo,

mas nao nunca nem jamais agora:

agora sou olhado, e estremeço

do incrível natural de ser olhado assim por ela

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vida aguda atenta a tudo

e contudo para acabar mais depressa no escuro

escrevo rescrevo

e enfim reluzo e desmorro

(finjo pensá-lo)

um pouco um pouco

acautela a tua dor que se não torne académica

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levanto à vista o que foi a terra magnífica

e as estações mais bêbedas,

e estou tão leve porque não tenho nenhum segredo,

e tão oculto porque daqui a nada já posso dizer tudo,

daqui a uma pouca ciência saberei pensar

que algum pouco depois estarei morto,

e só de o pensar já nem respiro,

já quase em nada toco,

já só vejo no fundo das mãos daquilo que fica escrito

que escrevi coisa nenhuma do mundo até ao esquecimento,

e movendo-me com as unhas movo os nomes inúmeros

para dizer que mal nasci logo me deram por morto,

e não fui tido nem havido na razão do episódio

de um rosto ter passado por um espelho

e ter desaparecido,

portanto não me venha ninguém falar de nada,

sei bastante do que sabem todos,

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vejo a água a mover-se contra si mesma, tão marítima,

e acho até que é bonito,

cada qual morre do quanto alcança e não alcança,

e ninguém compreende,

a água quebra os dedos que escreveram até às pontas

e passa, a água fácil, sem retorno,

porque nada tem retorno e tudo é dificílimo

(não só o máximo mas também o mínimo)

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d ’après Issa

ao vento deste outono

avanço

para que inferno?

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a água desceu as escadas,

a noite pode subi-las,

e a lua violenta a trabalhar lá em cima

¿ah de que matéria se faria o sono que me não visita sequer

duas horas, ou uma, ou sequer metade de uma,

de que maneira poderia eu trabalhar a morte sempre tão difícil,

dedos, ritmos, respiração e o silêncio audível,

de que maneira a infusa fria,

a urna,

a água que desce e a noite que sobe

e o clarão que me envolve,

poderia eu trabalhar as cinzas,

para sempre o fogo no fundo das mãos sensíveis,

poderia eu de que maneira estremece este poema apenas,

o poema fremente?

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logo pela manhã é um corrupio funerário nos telefones,

um quer enterrar o pai todo nu embrulhado num lençol

branco,

outro que o filho seja cremado e as cinzas espalhadas

sobre as rosas do jardim botânico,

outro vai suicidar-se e pede que o enterrem de cabeça

para baixo

(diz: há entre mim e as minhas mãos um rastro de sangue),

outro quer ainda que seja eu próprio a morrer com os

braços abertos,

que seja levado para um penhasco abraçado pela espuma,

no índico longínquo, no mar do norte atlântico,

que o sal me cubra,

que o sol me curta,

que as águas vibrem contra o meu coração devorado

— eu que sou tão subtil e acerbo,

eu que nunca escapo

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e eu que nao sei através de que verbo me arranquei ao

fundo da placenta até à ferida entre as coxas

maternas,

e roubei o oxigénio todo à minha volta próxima,

furiosamente,

eu que procuro corpo a corpo o nada disso tudo,

não sei nada,

digo: olhar a morte incalculável,

toda,

agora na hora próxima, súbito, atónito,

e agarrado a tudo

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talvez certa noite uma grande mão anónima tenha por mim,

um a um, lado a lado, escavando,

escrito os nomes,

um a um escrito os nomes esquecidos,

e entre os nomes mais obscuros o mais desmemoriado deles

todos,

e eu esteja atrás vivendo desse próprio esquecimento,

a mão cortada, cortado o nome, além da morte escrita,

pelo buraco da voz o nome escoado para sempre

2010.12

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[É o tema das visões e das vozes, um pouco ameaçador...] 9

[dos trabalhos do mundo corrompida]............................. 19

[saio hoje ao mundo,]......................................................... 20

[do tamanho da mão faço-lhes o poema da minha vida,...] 21

[as manhãs começam logo com a morte das mães,].......... 23

[petite pute deitada toda nua sobre a cama à espera,] ..... 24

[mão tão feliz de ter tocado].............................................. 25

[fosses tu um grande espaço e eu tacteasse]...................... 26

[no mais carnal das nádegas].............................................. 27

[e eu que sopro e envolvo teu corpo tremulamente...] .... 28

[funda manhã onde fundei o prodígio da minha.. . ] ........ 30

[não, obrigado, estou bem, nada de novo,]...................... 32

[já nao tenho tempo para ganhar o amor, a glória...] .... 35

[de dentro para fora, dedos inteiros,] ............................... 37

[e eis súbito ouço num transporte público:]..................... 39

[as luzes todas acesas e ninguém dentro da casa].............. 40

[a noite que no corpo eu tanto tempo trouxe,.. . ] ............ 41

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[que floresce uma só vez na vida, agaué! dez metros,...] ... 43

[até cada objecto se encher de luz e ser apanhado]............ 45

[como se atira o dardo com o corpo todo,]...................... 46

[a linha de sangue irrompendo neste poema...] .............. 47

[rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,]..... 48

[não me amputaram as pernas nem condenaram...] ....... 49

[disseram: mande um poema para a revista onde...] ....... 50

[pedras quadradas, árvores vermelhas, atmosfera,]............ 51

[¿mas que sentido faz isto:]............................................... 52

[quem fabrica um peixe fabrica duas ondas, uma...]....... 53

[— oh coração escarpado,]................................................ 54

[¿e a música, a música, quando, como, em que termos...] 55

[nunca mais quero escrever numa língua voraz,].............. 56

[um dia destes tenho o dia inteiro para morrer,].............. 58

como distinguir o mau ladrão do bom ladrão ?...] ...... 59

[que um punhado de ouro fulgure no escuso...].............. 60

[nada pode ser mais complexo que um poema,]............... 62

[nenhuma linha é menos do que outrora]......................... 63

[hoje, que eu estava conforme ao dia fundo,] .................. 64

[agora se tivesses alma tinhas de salvá-la, agora] .............. 65

[a força da faca ou é um jogo,]........................................... 66

[nem em mim próprio que ardo, cérebro,.. . ] ................... 67

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[os cães gerais ladram às luas que lavram.. . ] .................... .....68

[só quanto ladra na garganta, sofreado, curto, cortado,].... 69

[ele que tinha ouvido absoluto para as músicas...] ................70

[cada lenço de seda que se ata ¡oh desastres das artes! a] ... 71

[um quarto dos poemas é imitação literária,] .................. .....72

[já não tenho mão com que escreva nem lâmpada,]..............73

[escrevi um curto poema trémulo e severo,] .................... .....74

[profano, prático, público, político, presto,...] ............... .....75

[uma espuma de sal bateu-me alto na cabeça,] ................ .....77

[welwítschia mirabilis no deserto entre as fornalhas:] ..... .....79

[releio e não reamo nada,]................................................. .....80

[não quero mais mundo senão a memória trémula,]....... .....82

[estavam nus e cantavam,]................................................. .....83

[esquivar-se à sintaxe e abusar do mundo,]...................... .....85

[e ali em baixo com terra na boca e mãos atadas.. . ] ..............86

[olhos ávidos,] ................................................................... .....87

[colinas amarelas, árvores vermelhas,]............................... .....88

[oh não, por favor não impeçam o cadáver,].................... .....89

[irmãos humanos que depois de mim vivereis,]................ .....90

[cada vez que adormece é para que a noite...].................. .....92

[alto dia que me é dedicado,]............................................. .....94

[presumir nao das grandes partes da noite...].................. .....95

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[traças devoram as linhas linha a linha dos livros,]........... 96

[pensam: é melhor ter o inferno a não ter...]................... 97

[já me custa no chão do inferno,]..................................... 101

[cheirava mal, a morto, até me purificarem pelo fogo,].... 104

[daqui a uns tempos acho que vou arvoar] ....................... 106

[os capítulos maiores da minha vida,...] .......................... 109

[vida aguda atenta a tudo] ................................................ 110

[levanto à vista o que foi a terra magnífica]...................... 1 1 1

[ao vento deste outono] .................................................... 1 13

[a água desceu as escadas,].................................................. 114

[logo pela manhã é um corrupio funerário.. . ] .................. 1 15

[e eu que não sei através de que verbo.. . ] ......................... 116

[talvez certa noite uma grande mão anónima.. . ] .............. 1 17

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