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VIRTUOSISMO PARA INSTRUMENTRIO DE
SOPRO EM LISBOA (1821-1870)
Rui Magno da Silva Pinto
___________________________________________________ Dissertao de Mestrado em Cincias Musicais,
variante de Musicologia Histrica
OUTUBRO 2010
Dissertao apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de
Mestre em Cincias Musicais, realizada sob a orientao cientfica de Paulo Ferreira de Castro.
ii
DECLARAES
Declaro que esta Dissertao o resultado da minha investigao pessoal e
independente. O seu contedo original e todas as fontes consultadas esto devidamente
mencionadas no texto, nas notas e na bibliografia.
O candidato,
____________________
Lisboa, .... de ............... de ...............
Declaro que esta Dissertao se encontra em condies de ser apreciada pelo jri a
designar.
O orientador,
____________________
Lisboa, .... de ............... de ..............
iii
Aos meus pais
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeo aos meus pais, irmos e familiares o seu apoio; ao meu orientador, Paulo
Ferreira de Castro, pelo seu aconselhamento na conduo desta investigao; a Lusa
Cymbron, Gabriela Cruz, Paula Gomes Ribeiro, Mrio Vieira de Carvalho, David Cranmer,
Francesco Esposito, Antnio Jorge Marques e Alberto Pacheco, pela sua acessibilidade
discusso de questes relacionadas com a minha e as suas reas de investigao; a Lus
Carvalho, pela cedncia das transcries e da sua dissertao, que em muito contriburam
para a celeridade na anlise dos concertos de Jos Avelino Canongia; e a Joo Pereira
Coutinho. Estou tambm grato aos que facilitaram o acesso a esplios: a Slvia Sequeira, do
Departamento de Msica da Biblioteca Nacional de Portugal, a Paulo Esteireiro, chefe da
Diviso de Investigao e Documentao do Gabinete Coordenador de Educao Artstica
(Madeira), Banda Municipal do Funchal, famlia Croner e a Elisa Lamas. Devo o meu
apreo a outras duas instituies: Irmandade de Santa Ceclia (nomeadamente a Joseph
Scherpereel e Luciano Franco) e ao Centro de Estudos de Sociologia e Esttica Musical,
pelo auxlio na impresso das partituras. Agradeo, finalmente, a Lus Miguel Santos,
Manuela de Oliveira, Nuno Ricardo, Diogo da Fonseca, Ana Cludia Abreu, Antnio
Santos, Carla Crespo e Eduardo Neves.
v
RESUMO
Virtuosismo para instrumentrio de sopro em Lisboa (1821-1870)
Rui Magno da Silva Pinto
PALAVRAS-CHAVE: virtuosismo, instrumentos de sopro, topoi, figurao
A presente dissertao discute a praxis virtuosstica para instrumentos de sopro em
Lisboa entre 1821 e 1870. estabelecida uma periodizao entre 1821-1834; 1834-1860 e
1860-1874; e 1874-1882. A classificao destas manifestaes compreende a instituio
definitiva, na dcada de 1840, do virtuosismo moderno em Lisboa. Esta alterao deveu-se
constituio de novos espaos de exibio as sociedades amadores e profissionais
(Academia Melpomenense, Orquestra dos Concertos Populares) e novos teatros o
consequente aumento das audincias, o incio de um discurso entre o pblico e na
imprensa peridica acerca dos virtuosi. O virtuosismo moderno lisbonense contudo
caracterizado pela minorizao da competio entre intrpretes, por fora do
corporativismo e proteccionismo capacitados pela Irmandade de Santa Ceclia, Montepio
Filarmnico e Associao Msica 24 de Junho. Esta caracterstica comprovada pela
apresentao conjunta de virtuosi na interpretao de obras de conjunto e na composio e
dedicatria de obras entre virtuosi. O estudo analtico do repertrio virtuosstico visa
evidenciar a alterao no uso de gneros clssicos concerto e sonata para estruturas
formais mais livres fantasia, danas estilizadas, peas vocais populares e de carcter,
ocorrida, grosso modo, na dcada de 1840. A anlise integra a discusso dos topoi utilizados,
asseverando a utilizao maioritria de style brillant, cantabile, estilos militar e de caa e
danas. Os dois primeiros indicam o enfoque na exibio dos parmetros tcnico e
expressivo do intrprete; o terceiro sugere o reflexo da conjuntura scio-poltica da poca;
o quarto alude ao novo espao de sociabilidade burguesa: o salo de baile. A anlise da
figurao confirma a existncia de um nmero restrito de padres de inveno, utilizados
pelo instrumentrio de sopro. discutida a existncia de discursos instrumentais
idiomticos. O intuito de equiparao do instrumentrio ao canto sofre alteraes devido,
entre outros factores, ao estabelecimento de novas tipologias vocais.
vi
ABSTRACT
Virtuosity for wind instruments in Lisbon (1821-1870)
Rui Magno da Silva Pinto
KEYWORDS: virtuosity, wind instruments, topoi, figuration
This dissertation discusses virtuosity for wind instruments in Lisbon between 1821
and 1870. A periodization of the virtuosistic praxis is established: 1821-1834; 1834-1860 e
1860-1874; 1874-1882. This classification focusses also on the emergence of a modern
virtuosity in the 1840s, due to the institution of the amateur and professional societies and
new theaters, the increase of the audiences and the emergence of a critic discourse between
the public and in the press. Modern virtuosity in Lisbon is still characterized by the minor
competitivity among performers, due to the regulations that limited the freelance activity
imposed by Irmandade de Santa Ceclia, Montepio Filarmnico e Associao Msica 24 de
Junho. Instead, there is evidence of the collaboration between performers in the practice of
adaptations of operatic and original works for instrumental group, and in the relations
between composers-performers and performers; several works were written and dedicated
by one virtuoso to another. The analysis of the works aims to shed some light onto the
alteration in the use of classical genres Concerto and Sonata to freer structural forms
fantasia, dances, popular songs and character pieces, which occurred in the 1840s. The topoi
used are style brilliant, cantabile, military and hunt style and dances. The first and second
affirms the purpose of the virtuoso: the evaluation of his technical abilities and expression.
The third suggests the representation of aspects of the social and political life of the first
half of the nineteenth century; the fourth seems to refer to the ball-room, the new space of
entertainment for the bourgeois society. The study of figuration confirms the existence of a
restricted number of patterns of invention. The existence of idiomatic aspects in relation to
woodwind instruments is discussed. The relation between instrumental practice and the
equivalence to the characteristics of singing is transformed, due to, among other factors,
the establishment of the vocal typologies.
vii
NDICE
Introduo ............................................................................................................................ 1
Captulo I: Virtuosismo instrumental em Lisboa .......................................................... 8
Captulo II: Teoria analtica e composicional ............................................................. 36
II. 1. Teoria analtica ............................................................................................. 36
II. 2. Teoria composicional oitocentista em Portugal. ................................... 40
II. 3 Modelo analtico .......................................................................................... 47
Captulo III: Concerto, Sonata, Variao .................................................................... 48
III. 1. Concerto ...................................................................................................... 48
III. 2. Sonata. .......................................................................................................... 69
III. 3. Variao ....................................................................................................... 72
Captulo IV: Fantasia, Danas estilizadas, Cancioneiros e Peas de carcter ....... 84
III. 1. Fantasia ........................................................................................................ 84
III. 2. Danas. ...................................................................................................... 105
III. 3. Cancioneiros/Romanceiros populares; Obras vocais ...................... 106
III. 4. Peas de carcter ....................................................................................... 107
Captulo V: Significantes e significados ..................................................................... 109
Captulo VI: Destreza tcnica e expresso ................................................................ 113
Concluso ........................................................................................................................ 119
Bibliografia ..................................................................................................................... 121
1
INTRODUO
Virtuosismo entendido como superior capacidade nas artes, cincia ou qualquer
outro aspecto da actividade humana manifestada por um indivduo e reconhecida pelos
demais. Os ttulos virtuoso, virtuosa, destro so atribudos, grosso modo, ao especialista ou
diletante.1 A utilizao dos termos virtuosismo e virtuoso identificada inicialmente no
cinquecento italiano e advm do sentido no-moral do latino virtus,2 definido como a posse
de virtude fora de vontade, ambio, capacidade moral e valores em arte, cincia ou
outra competncia (incluindo a guerra), que incita o indivduo superao das suas
dificuldades. Os timos virtuosismo e virtuoso integram o lxico francs, alemo e ingls no
sculo XVII com o mesmo sentido de especializao. Neste sculo, observou-se uma
mudana na etimologia dos termos, por associao a virilidade do latino vir como
capacidade extraordinria e conhecimento na arte e cincia. (BERNSTEIN 1998: 11-12).
Jankelevitch (1979: 15-16) refere a ligao do virtuosismo ao conceito aristotlico aret
(=excelncia), frisando o seu sentido no-moral e o seu aspecto prtico.3
A aplicao desta terminologia no campo cientfico parece ter ocorrido no sculo
XVII em Inglaterra. Foram nomeados virtuosi, como se pode confirmar na obra Complete
Gentleman (1634) de Henry Peacham, os connoiseurs (com estatuto social e poderio
econmico) que se dedicaram, no perodo de regncia de James I, ao movimento de
coleccionismo de raridades artsticas dispendiosas sem intuito comercial antiguidades
gregas e romanas: quadros, esculturas, moedas e medalhas; mapas, mrmores, etc. cujo
estudo era incentivado pelo reconhecimento pblico.
4
1 O termo con sprezzatura, referente prtica, um sinnimo possivelmente anterior menos empregue.
A instituio da Royal Society em 1662
agregou estes diletantes a cientistas, conduzindo a uma nova aplicao do termo virtuoso
associada ao coleccionismo em cincia. O desenvolvimento do estudo da natureza fsica
nos sculos XVI e XVII e o entusiasmo pela nova filosofia da cincia de Francis Bacon
conduziram o diletante para alm do coleccionismo, a incurses nos campos da
2 O conceito de virt, ou virtude, compreende ainda o sentido moral relacionado com a harmonia das atitudes humanas em determinados padres ou fins. (SEIGEL, s.d.). 3 La virtuosit est plutt un savoir-faire quon savoir, et plutt un pouvoir-faire quun savoir-faire; et parfois mme elle est tout simplement un faire. Le virtuose fait. A cet gard, la vertu du virtuose se rapprocherait plutt de la vertu aristotlicienne: la vertu dun cheval est de bien courir, la vertu dun cocteau de bien couper. Et la vertu dun virtuose est de jouer brillamment du piano ou du violon. 4 Esta ocupao adequava-se ao seu estatuto social, pela sua dissociao do trabalho enquanto rendimento ou utilidade prtica.
2
astronomia, da medicina, da qumica, entre outras especialidades da cincia. Todavia, a sua
procura de reconhecimento pblico no implicava o uso prtico das suas descobertas.5
As definies de virtuosismo e virtude na Encyclpdie (1751-1772 [1772]) de Diderot
e DAlembert
6
Virtuose, s.m. (Littrat.) mot italien introduit en France, il ny a ps bien long-temps. Il signifie un home curieux des connaissances qui ornent & enrichissent lesprit, ou un amateur des Sciences & des beaux arts, & qui en favorise le progrs. Ce quon appelle en Italie virtuosi, ce sont proprement des homes qui sappliquent aux beaux-arts & aux hautes Sciences, & qui sdistinguent, comme la peinture, la sculpture, aux mathmatiques, la musique, Ec. On dit dune personne qui en fait profession, cest un virtuose, questo un virtuoso. En Angleterre on appliqu plutt cette denomination quelques lettres aimables & curieux, qua ceux qui cultivent des arts utiles ou des Sciences qui exigent une profonde meditation. Ainsi lon y appelle virtuosos, les antiquaires, ceux qui sont des collections de rarets de toute espece, des observations avec le microscope (...).
sublinham a diviso dos sentidos moral e no-moral e descrevem a aplicao
do termo virtuosi queles que se distinguem nos ramos das artes e das cincias:
Encyclopdie, [1772]
Paul Metzner (1998), abordando o virtuosismo parisiense no sculo XVIII e primeira
metade do sculo XIX, certifica o aumento do mbito de actividades abrangidas como
virtuosismo, fruto do individualismo, do favorecimento do conhecimento prtico e das
novas concepes de espectculo surgidas no perodo das Revolues. O autor refere a
manifestao de capacidades intelectuais (xadrez e deteco criminal), artesanais (culinria),
cientficas (construo de autmatos) e artsticas (msica).
A definio mais antiga de virtuosismo musical est inserida, segundo Pincherle
(1964:16), no Dictionaire des termes grecs, latins et italiens (1701) de Sbastien de Brossard:
Virtu significa, em italiano, no apenas aquela disposio da alma que nos faz louvar a Deus e que nos leva a proceder de acordo com as regras da razo mas tambm aquele excesso de talento nativo, de habilidade, de proficincia que nos faz aparecer seja no campo da teoria ou da prtica das artes eruditas sobre outros que, como ns, aplicam-se aos mesmos intentos. Desta palavra os Italianos formaram o adjectivo virtuoso ou virtudioso para designar ou elogiar aqueles aos quais a Providncia concedeu esta excelncia ou esta superioridade. No uso italiano, por consequncia, um pintor excelente, um arquitecto capaz, etc., um virtuoso; mas os Italianos aplicam este belo epteto mais comummente e mais especialmente a excelentes msicos, notavelmente aqueles msicos que se devotam teoria ou composio de msica mais do que aqueles que sobressaem nas outras artes, da que na lngua italiana dizer simplesmente que o homem um virtuoso quase sempre equivalente a dizer que ele um excelente msico.
(BROSSARD 1701, apud PINCHERLE 1964: 16; traduo do autor).
5 NICOLSON, s.d.. 6 Cf. DIDEROT e DALEMBERT (1772): Vert; Vertueux Homme, Vicieux Homme, Virtuosi.
3
A referncia, anterior Encyclpdie, engloba ambos os sentidos moral e no-moral
da virtude, refere a utilizao e origem da terminologia virtuoso e virtudioso e descreve uma j
presente associao do virtuosismo s artes, e sobretudo msica, que se manifesta pelas
capacidades tericas composio e teoria musical e interpretao.7
As principais figuras do virtuosismo pr-oitocentista so o castrato, a diva, a criana
prodgio e a escola violinstica italiana. O ttulo era tambm atribudo aos membros das
orquestras de corte, visando sublinhar o estatuto e poderio econmico dos seus patronos:
neste mbito identificamos uma das primeiras utilizaes do termo em Portugal (Virtuoso da
Real Cmara de Sua Magestade Fidelssima) (vide VIEIRA 1900 I: 64). Os virtuosi apresentavam-se
sobretudo nos espaos para os quais haviam sido contratados.
O mbito de
significado do virtuosismo musical reduziu-se no decorrer do sculo XVIII, por subtraco
do sentido moral e diminuio do aspecto terico, promovendo a elevao do intrprete
sobre o compositor.
A emergncia de um virtuosismo musical moderno, ocorrida nos finais do sculo
XVIII e incios do sculo XIX, tem como factores demarcadores a criao de novos e
maiores espaos pblicos de exibio; a multiplicao dos concertos pblicos; o
subsequente crescimento das audincias; o progresso da organologia resultante da
colaborao entre construtores e intrpretes e do desenvolvimento tecnolgico; o incio das
digresses (caracterizando o virtuoso como figura cosmopolita) e o estabelecimento de uma
competio mais ampla entre virtuosi; e a produo de um discurso publicitrio e crtico
sobre os intrpretes entre a audincia e na imprensa peridica (MILLIOT 1993:55-64;
SAMSON 2003: 70).8
7 O mesmo mbito identificado em Musikalisches Lexicon de Johann Gottfried Walther (1732) e nos Elementi teorico-pratici di musica () con un saggio sopra L'arte di suonare il violino de Francesco Galeazzi, (1791) (PINCHERLE, 1964:16). Johann Kuhnau, no romance Der musikalische Quack-Salber, (
As revolues polticas, econmicas e sociais ocorridas nos sculos
XVIII e XIX foram importantes contributos transformao ocorrida na praxis
virtuosstica (METZNER 1998: 9) pelo seu favorecimento noo de individualidade,
possibilidade de ascenso social por mrito, valorizao do conhecimento prtico (que
conduziu ao aparecimento de virtuosi em todo o instrumentrio), disseminao dos
espaos de sociabilidade pblica, liberalizao da economia, ao desenvolvimento
industrial e emergncia da imprensa peridica especializada.
1700) classifica o "msico altamente dotado" (der glckselige Musicus) e o"virtuoso prtico" (der wahre Virtuose), desvalorizando a exclusiva capacidade prtica do ltimo. Johann Matheson, em Der brauchbare Virtuoso (1720), estabelece louvor aos virtuosos tericos ("theoretische Virtuosen"), e aos virtuosos prticos ("virtuosi prattici") (JANDER, 2001). 8 Os Concert Spirituel, iniciados por Philidor em 1725, garantiram a entrada do virtuosi (cantores e violinistas) italianos em Frana, importantes contributos a esta alterao dos fenmenos do virtuosismo.
4
A presente dissertao toma como objecto de estudo a praxis virtuosstica
composio e exibio para instrumentrio de sopro oitocentista em Lisboa entre 1821 e
1870. O limite cronolgico inicial estabelecido com a instituio do Liberalismo em
Portugal, resultado de vrias transformaes scio-polticas ocorridas entre os finais do
sculo XVIII e o sculo XIX, conducentes, no que concerne msica, ao declnio da praxis
musical assente na Corte e Igreja (CASTRO 1991: 115) e sua substituio pelas prticas e
gostos da classe mdia. As alteraes de mbito social a legitimidade da ascenso social
por mrito, poder e propriedade, a valorizao do conhecimento prtico, o individualismo
so factores que se manifestaram na alterao do estatuto do msico, capacitando a sua
procura pelo reconhecimento social e lucro pecunirio. As transformaes de ndole
econmica dinmica do mercado livre, minorizao de privilgios, desenvolvimento
industrial possibilitaram a emergncia do mercado musical e a instituio de novos
espaos de entretenimento. semelhana dos demais pases europeus, a afirmao de um
novo sistema scio-poltico e dos seus ideais permite a reunio das condies para a
afirmao do virtuoso e para a sua subsistncia, num perodo vigente at cerca de 1870,
limite cronolgico final desta dissertao. Nesta dcada, observa-se a emergncia de uma
reaco, manifestada pela Gerao de 1870, contra uma concepo da arte [enquanto]
puramente decorativa e de entretenimento,9
O virtuosismo tem sido correntemente abordado no universo acadmico, com
especial enfoque no estudo do canto lrico, piano e instrumentos de corda friccionada,
associado sobretudo re-escrita da histria da msica ocidental e carreira de grandes
compositores-intrpretes (Liszt, Chopin, Paganini) e cantores. No campo dos instrumentos
de sopro, a abordagem deste fenmeno foi espordica: os parcos artigos redigidos
visando manifestaes musicais associadas ao
poder educativo da msica. Esta crtica foi acompanhada pela acentuao do processo de
mudana da msica trivial (de entretenimento), sobretudo associada ao repertrio lrico
italiano, para o cnone de obras musicais dos compositores clssicos germnicos e
repertrio francs (vide Artiaga 2007).
10
9 ARTIAGA (2007: 51).
consideram apenas aspectos relacionados com a prtica de um particular instrumento ou o
esboo biogrfico de virtuosi. A bibliografia disponvel para o seu estudo em Lisboa
compreende a historiografia dos teatros citadinos Benevides (1883), Sousa Bastos (1898;
1908), Matos Sequeira (1955), Moreau (1999), Vasconcelos (2003); Cmara & Anastcio
(2004), Bastos & Vasconcelos (2004) -, os contributos histria da msica portuguesa de
10 HIEBERT 1993; TARR 1988, 1994, 1995; CAMUS 2000; CLARK 2002; ALBRECHT 2004.
5
Ernesto Vieira (1900) e Sousa Viterbo (1932), bem como uma srie de estudos recentes
focados em intrpretes ou praxis musical. Entre estes ltimos, so preciosos contributos
para a investigao sobre o repertrio virtuosstico em Lisboa as dissertaes de Gabriela
Cruz (1992) sobre as variaes e fantasias de Joo Domingos Bomtempo; de Alexandre
Andrade (2005), sobre a flauta traversa em Portugal entre 1750-1850; de Lus Carvalho
(2006) sobre a vida e obra de Jos Avelino Canongia e, finalmente, de Francesco Esposito
(2008) sobre a vida concertstica lisbonense entre 1821-1853.
Esta dissertao toma como objectos de estudo as referncias e recenses da
imprensa especializada e o repositrio de obras solsticas para instrumentrio de sopro. Os
dados da imprensa servem a abordagem e teorizao das manifestaes virtuossticas em
Lisboa. O estudo do repertrio visa informar sobre as estratgias composicionais utilizadas
pelos virtuosi locais e complementar o relato histrico conduzida no primeiro captulo. Foi
identificado e analisado um corpus de obras de compositores lisbonenses preservado na
Biblioteca Nacional de Portugal, na Biblioteca da Ajuda, na Diviso de Investigao e
Documentao do Gabinete Coordenador de Educao Artstica (Madeira), na Banda
Municipal do Funchal11
conduzida uma anlise intertextual com enfoque na identificao de aspectos
comuns entre obras entre obras dos compositores-intrpretes lisbonenses para a
totalidade do instrumentrio de sopro. A conduo deste processo analtico sobre o
repertrio solstico envolve certamente um paradoxo: a essncia do virtuosismo , acima de
tudo, individual. A identificao de comunalidades no discurso musical e execuo entre
compositores, que se ope s idiossincrasias dos vrios intrpretes, (BROWN 1976: 48)
estabelecida luz das prticas composicionais da poca: a utilizao de um lxico de
figuras caractersticas, de padres de inveno e ornamentao comuns e de estruturas
formais estabelecidas. O estudo do repertrio de um compositor-intrprete clarifica a
criatividade individual no seio de um discurso musical criativo colectivo, constitudo por
e no esplio da famlia Croner. Os compositores identificados so
Jos Maria da Silva, Manuel Joaquim Botelho, Joaquim Avelino Canongia, Mathias Jacob
Osternold, Francisco Santos Pinto, Antnio Lus Mir, Augusto Neuparth, Leonardo
Soller, Ernesto Vtor Wagner, Manuel Marques da Costa, D. Lus I, Emlio Lami, Jesus
Urbano Escoto e Ernesto Ciraco. So coligidas obras destinadas a profissionais e
diletantes, face ausncia duma distino fixa entre estes (ESPOSITO 2008: 178).
11 Estas duas ltimas instituies foram incorporadas dada a facilidade concedida ao autor para a sua consulta e a feliz identificao de repertrio de autores lisbonenses, disseminado para a Ilha da Madeira.
6
topoi, gestos expressivos, figuras idiomticas e tipos tonais (SAMSON 2003: 3). A fruio
musical das audincias oitocentistas, no que concerne s obras instrumentais destinadas ao
entretenimento (classificadas por Dalhlaus enquanto parte integrante da Trivialmusik,
nas quais o repertrio em anlise se insere), implicava a identificao deste lxico colectivo
de significantes, cuja atribuio de significados estava relacionado com os aspectos scio-
histricos e estticos da poca. A metodologia analtica utilizada nesta dissertao pretende
acercar-se do acto da execuo, atravs da identificao das estruturas formais, das
figuras caractersticas e dos padres figurativos e o confronto destes dados com a anlise
da tcnica instrumental, no intuito de reconhecer determinados aspectos da prtica
interpretativa. O estudo da recepo das obras e da execuo do virtuoso na imprensa
peridica visa corroborar as concluses estabelecidas.
O desenvolvimento organolgico foi o principal factor potenciador do virtuosismo
instrumental. Diversas modificaes e melhoramentos do instrumentrio de sopro foram
realizados no decurso dos finais do sculo XVIII e sculo XIX: refira-se, nas madeiras, o
aumento dos orifcios, a adio de chaves, a criao do sistema de anis; nos metais, a
utilizao de orifcios no tubo, a aplicao de chaves, a inveno do pisto. O estudo
analtico debrua-se sobre parte da famlia das madeiras flauta doce e transversal, fagote,
clarinete, requinta e saxofone e da famlia dos metais trompa natural, corneta de chaves,
oficleide, cornetim, trompa de vlvulas, sax-horn e trombone. A datao da introduo do
novo instrumentrio em Lisboa, importante auxlio para a identificao dos instrumentos
utilizados nas obras em anlise, pode ser consultada no primeiro texto do anexo I. Ernesto
Vieira (1900), Alexandre Andrade (2004) e Lus Carvalho (2006) confirmam o uso de
instrumentos produzidos por construtores nacionais, que podem ainda hoje ser observados
no Museu da Msica e no esplio guarda dos descendentes destes compositores-
intrpretes. A breve descrio da lutherie nacional, inserida no mesmo texto, comprova o
seu j referido enfraquecimento, fruto da importao de instrumentos das empresas de
construo francesas, belgas e alemes, e o estabelecimento de alternativas autctones.
O primeiro captulo pretende abordar e teorizar as manifestaes virtuossticas em
Lisboa entre 1821-1884, visando averiguar a existncia de um virtuosismo moderno e as
estratgias dos msicos locais face s condicionantes praxis musical impostas pelas
corporaes de msicos Irmandade de Santa Ceclia, Montepio Filarmnico, Associao
Msica 24 de Junho. No captulo II, so expostas noes sobre lxico musical e
significao, culminando na descrio do mtodo analtico utilizado. A identificao da
7
existncia do mesmo lxico em Portugal, com base na leitura crtica da lexicografia levada
a cabo no mesmo captulo, onde se discorre igualmente sobre periodicidade, retrica e
figurao, aspectos composicionais centrais ao virtuosismo. Os captulos III e IV abordam
a identificao das estruturas formais dos gneros sonata, concerto, variao, fantasia ,
das formas de dana estilizada e de peas de carcter utilizadas no perodo cronolgico
abordado. Desde finais da dcada de 1830 se observa o abando das estruturas sonatsticas
em prol de modelos formais mais livres. Estes captulos pretendem sublinhar esta alterao
e identificar relaes entre estruturas formais, materiais musicais e figurao. Samson (2003:
73) refere as crticas da imprensa francesa (na Revue et Gazette Musicale) e inglesa (no The
Musical Times) pela aparente substituio do repertrio sonatstico clssico em prol das
variaes, fantasias, pot-pourri. O quinto captulo rene as categorias de significantes mais
empregues nas obras em anlise, visando, atravs deles, inferir possveis significados
associados vida musical lisbonense. O uso da figurao e do stile cantabile e a noo da
equiparao qualidade da voz humana, no instrumentrio de sopro, so discutidos no
captulo final.
A praxis virtuosstica no instrumentrio de sopro est directamente associada s
bandas regimentais e civis. Um breve escoro sobre a sua constituio, efectivo, actividade
e repertrio includo no volume em anexo. averiguada a associao dos virtuosi
lisbonenses a estas instituies, bem como a importncia dos mesmos na formao,
actividade e disseminao do repertrio dos compositores-intrpretes lisbonenses
oitocentistas. As tabelas seguintes ao texto visam ilustrar as relaes de diversos msicos
portugueses s bandas regimentares e civis.
8
CAPTULO I
VIRTUOSISMO INSTRUMENTAL NA LISBOA OITOCENTISTA
As mudanas scio-polticas ocorridas entre os finais do sculo XVIII e o sculo
XIX marcaram uma clara distino na praxis musical nacional. Ferreira de Castro (1991:
115) afirma que a substituio do modelo absolutista pela doutrina da soberania nacional
pertencente a uma monarquia constitucional em 1820/21 determinou o declnio [d]os
sistemas esttico e funcional de uma cultura da Corte e Igreja. As diversas transformaes
na esfera social portuguesa resultantes do longo processo de estabelecimento do
Liberalismo em 1820 e do consequente trmino da vigncia do Antigo Regime conduziram
consignao de uma maior importncia classe mdia e difuso das suas prticas e
gostos. A vida musical lisbonense foi a partir de ento caracterizada pela fruio e exigncia
de actividades de sociabilidade mundana pela classe mdia, favorecendo, no campo
musical, a pera, a msica instrumental e a prtica vocal e instrumental pblica e privada.
As primeiras manifestaes relevantes da nova praxis musical oitocentista
ocorreram aps o terramoto, com particular nfase desde o ltimo quartel do sculo XVIII
(vide LOUSADA 1998; ESPOSITO 2008: 111). O enriquecimento da classe burguesa
(sobretudo estrangeira) sediada em Lisboa, resultante do incremento pombalino ao
desenvolvimento industrial e comercial, possibilitou a [emergncia e afirmao] de novas
prticas e de espaos de sociabilidade (): os sales, as assembleias, os clubes e as
sociedades, as lojas manicas, os cafs e os passeios pblicos (LOUSADA 1998: 129) onde
a fruio e a prtica musical se inseriam. As assembleias,12
12 No que concerne prtica musical solstica, e por se haver abordado a segunda metade do sculo XVIII, importante notar que as primeiras apresentaes referenciadas de virtuosi estrangeiros sediados em Portugal ocorreram em assembleias. Segundo Lousada (1998: 145) a primeira assembleia pblica de notcia certa, a Casa da Assembleia do Bairro Alto ou Assembleia das Naes Estrangeiras, funciona nos aposentos de Pedro Antnio Avondano, Virtuoso da Real Cmara de Sua Magestade Fidelissima. Foi neste espao semi-pblico que o compositor-violinista organizou os primeiros concertos pblicos em Lisboa, na dcada de 1760, onde se apresentaram vrios virtuosi: o flautista/obosta/fagotista Weltin, o fagotista/trompista Waltmann e o clarinetista Weisse (BRITO 1989: 167-187).
clubes e sociedades portugueses
eram stios semi-pblicos onde se realizavam, em convvio, prticas de entretenimento
como o jogo, a dana e a fruio e prtica musical vocal e instrumental. A burguesia
capitalista foi tambm responsvel pela instituio dos diversos teatros pblicos
setecentistas da capital Teatro da Rua dos Condes, Teatro do Salitre e Teatro de So
9
Carlos, sendo-lhe consignada a sua explorao, sob o controle de um representante da
Corte ou governo. O Teatro de So Carlos assumiu-se, desde a sua fundao (1793)
enquanto espao preferencial da sociedade lisbonense, como centro da sociabilidade
burguesa (ESPOSITO 2008: 33), por fora da hegemonia do gnero pera. Finalmente, o
sucesso do emergente mercado musical (com Waltmann, Weltin e Zancla) e a difuso do
ensino musical privado devem-se sobretudo crescente prtica domstica de msica. Esta
servia o recreio masculino e feminino e integrava as arts dagrment,13
Em sntese, desde a segunda metade do sculo XVIII, a aristocracia e burguesia
capitalista assumiram um papel assaz relevante na promoo da vida musical lisbonense,
atravs da instituio de novos espaos (teatros, assembleias, clubes), na aquisio de
instrumentrio e repertrio dos novos espaos comerciais de msica citadinos, no contrato
de professores para o ensino domstico, no mecenato a msicos, na realizao de diversos
eventos musicais no seu espao privado
a formao feminina
necessria para o servio ao seu tutor masculino, pai ou esposo. Esposito (2008: 34ss.)
identifica duas tendncias de prtica musical privada. A primeira, de tipo elitista,
determinada pela severidade do repertrio, menor grau de mundanidade e excluso de
intrpretes femininos; nesta tendncia se inserem a prtica de msica de cmara levada a
cabo nas residncias de Klinghfer, Deron, Driesel e Lahmeyer (vide BRITO & CRANMER
1990) quartetos e sinfonias em arranjo para pequeno ensemble, sobretudo de autores
germnicos , bem como as realizaes patriticas e dominicais. A segunda tendncia,
caracterizada pela acessibilidade do repertrio, de raiz opertica e pela presena feminina,
obteve, no decurso do sculo XIX, uma maior apreciao da sociedade diletantstica e
audincia lisbonenses (op. cit. 35).
14 e no subsdio realizao e na participao nas
celebraes musicais das festividades pblicas e religiosas.15
O Liberalismo, novo sistema poltico, social, econmico, cultural, moral e
religioso (NETO 1998: 13), privilegiava a individualidade, a racionalidade, o poder e a
13 As arts dagremnt incluam a aprendizagem de lnguas e cultura estrangeira, msica (canto, piano ou violino), desenho e aguarela (HIGONNET 1991). 14 Vieira (1900 I: 62) refere que a msica era cultivada, aquando do regresso de D. Joo VI, pelas famlias do Marqus de Borba e Conde de Redondo, Marqus de Tancos e Conde de Atalaia, Marqus de Belas, Marqus de Castelo Melhor, Condes de Lumiares, Belmonte, Anadia. 15 Vanda de S (2009) refere que a realizao de msica instrumental nas festas religiosas tinha o intuito de elevar aquele que nela investia, afirmando-se enquanto meio de ascenso social. A autora identificou, atravs do estudo dos Manifestos da Irmandade de Santa Ceclia, a presena de diversos virtuosi nestes eventos sacros, cuja auferio pecuniria era maior do que os demais: entre 1775 e 1777 o flautista Antnio Rodil e Nicolau e Joo Herdia, fagotista e obosta; em 1796, Joaquim Pedro Rodil e Domigos Ribeiro, flautistas, Nicolau Herdia e Paulo de Torres, fagotistas e Andr Lenzi e Vicente Capellini, trombonistas; na primeira dcada do sculo XIX, Ferlendis; em 1820, Morelli, intrprete de clarinete e corne-ingls, Tiago Domingos Calvet, intrprete de clarinete e fagote e Della Corte, trombeteiro.
10
dignidade social. A nova sociedade de classes reconhecia a legitimidade da ascenso de
estatuto a todos os seus membros, mediante o novo critrio de obteno de poder e
propriedade, sendo a livre concorrncia entre membros da sociedade, caracterstica da
individualidade liberal, um importante incremento. A governao atribuda a um Estado
constitudo por meritocracia, ao qual acediam os mais capacitados ou as figuras de maior
relevncia social. Este devia contribuir para o bem-estar social e para o fim das injustias,
possibilitando o empreendorismo e sucesso dos cidados (op.cit.: 13-27). A validao da
Constituio em 1822 conferiu assim classe mdia o predomnio na promoo e gesto da
vida musical citadina. Este factor, aliado disseminao das prticas de sociabilidade
mundana da classe alta aos estratos inferiores, proporcionou a intensificao e difuso dos
contributos supracitados em sntese, entre os quais a criao de espaos de recreio, o
associativismo musical e o aumento da prtica amadora. De igual forma, ficou destinado ao
governo a resoluo de diversos problemas da vida musical portuguesa, entre os quais a
dependncia dos msicos estrangeiros16 e carncia na formao de msicos profissionais
portugueses17
A reestruturao social e a valorizao dos ideais liberais de poder, propriedade,
dignidade social e livre competio so contributos essenciais alterao do estatuto do
msico profissional. Os novos espaos institudos pela classe mdia conduziram criao
de novos postos de emprego e a uma consequente reformulao de uma hierarquia de
preferncia laboral. O msico profissional visava ser empregado nas orquestras dos teatros
pblicos, nas instituies da Corte e Capela (Real Cmara, Reais Cavalarias), nas bandas
regimentais e civis, bem como prestar servio (ocasional) em academias, clubes, teatros
privados e funes pblicas e privadas. A minorizao dos privilgios reais permitiu-lhe o
empreendorismo no mercado musical emergente e lutherie.
(ESPOSITO 2008: 13), bem como o incremento e apoio ao desenvolvimento
da lutherie portuguesa.
16 A presena maioritria de estrangeiros ao servio das principais instituies musicais devida sobretudo a trs iniciativas da Regncia e dos seus rgos. O processo de italianizao da corte, iniciado por D. Joo V e continuado por D. Jos I consistiu, na sua vertente musical, no contrato de diversos msicos, cantores e compositores italianos, alemes e espanhis para a Corte, Cmara e Charamela Real (BRITO & CYMBRON 1992: 106; DODERER 2003: 9). As iniciativas de desenvolvimento industrial e comercial do Marqus de Pombal conduziram, por um lado, ao estabelecimento da imprensa musical, com o francs Milcent, e da lutherie para sopros, com a famlia alem Haupt, bem como da fixao na cidade de diversos comerciantes alemes e catales em Lisboa, cujo entretenimento preferencial era a prtica musical (como por exemplo, Canongia e Gazul) (VIEIRA 1900 I: 197; 456). Finalmente, depois das Guerras Napolenicas, em 1815, instrumentistas de sopro dos mesmos pases (Alemanha e Catalunha) foram contratados para servio nas bandas militares (como por exemplo Erdmann Neuparth, Jos Croner, Gaspar Campos de Oliveira, Joaquim Mir). (Vieira 1900 II: 442-443) A estes acresce referir os msicos em digresso que se fixaram em Portugal (Jean L. O. Cossoul). (op. cit. I: 311) A descendncia destes msicos assumir um papel relevante na vida musical lisbonense por todo o sculo XIX; os seus contributos sero abordados adiante neste captulo. 17 ESPOSITO (2008: 13-17) refere como questes em resoluo a dependncia dos estrangeiros, a gesto da actividade teatral e a necessria promoo de um teatro nacional.
11
Todavia, no dealbar da primeira revoluo liberal, o msico profissional sofria de
uma condio precria, devida sobretudo sada da Corte para o Brasil, ao difcil
funcionamento das instituies musicais rgias aquando da sua ausncia, ao desinteresse
por aspectos artsticos manifesto pela dominao inglesa, bem como ao monoplio da
actividade musical exercido pela Irmandade de Santa Ceclia. A legalidade e funcionamento
desta corporao que determinava, entre outras regulamentaes, o exerccio exclusivo de
prtica musical aos seus afiliados mediante o cumprimento do requerimento de filiao e a
excluso dos no-afiliados dos agrupamentos sob a chefia dos seus membros foram
colocados em questo pela livre concorrncia afirmada pelo Liberalismo. No decurso das
dcadas seguintes, esta corporao de msicos, por iniciativa de Joo Alberto Rodrigues da
Costa, manteve o monoplio da execuo musical atravs da adequao aos novos ideais
liberais: as suas medidas compreenderam a afirmao da Irmandade enquanto instituio
proteccionista e a criao do Montepio Filarmnico, corporao de socorro-mtuo,
congnere das diversas criadas na poca, e Academia Msica 24 de Junho, instituio de
defesa do profissional de orquestra (ESPOSITO 2008: I.2; IV.1,2).
A alterao da praxis musical portuguesa e a dependncia do msico estrangeiro
conduzem apresentao de diversos projectos de reformulao do ensino musical (op. cit.:
13-16) O Seminrio da Patriarcal (instituio de formao de msicos para a Corte e Capela
reais) providencia a instruo, depois de 1824, aos instrumentos da orquestra.
No perodo entre revolues (1821-1834) foram iniciadas diversas transformaes
nas instituies e prticas musicais, cuja definitiva resoluo e apogeu ocorreram no
reinado de D. Maria II, aps a definitiva instituio do Liberalismo em 1834 (ESPOSITO
2008: 12, 101) Esposito (2008) estabelece um paralelismo entre: um parco aparecimento de
alguns clubes e assembleias na dcada de 1820 e a sua ampla difuso aps 1834; as relaes
entre a Sociedade Filarmnica de Bomtempo e as assembleias e academias que agregariam
diletantes e profissionais; as medidas de adequao ao Liberalismo tomadas pela Irmandade
de Santa Ceclia e a criao, aps 1834, do Montepio Filarmnico e Academia Msica 24 de
Junho; a reforma do ensino musical mediante reformulao do Seminrio da Patriarcal em
1824 e a criao, aps 1834, da Aula de Msica da Casa Pia e Conservatrio. A
instabilidade poltica das segunda e terceira dcadas do sculo XIX e o volte-face poltico,
conduzindo a uma vigncia do absolutismo miguelista entre 1828 e 1834 e consequente
perseguio e exlio dos liberais, limitaram o devido curso das medidas tomadas e o
usufruto das iniciativas.
12
Esta conjuntura poltica, social e artstica, promotora dos ideais de individualismo,
valorizao do conhecimento prtico, ascenso social por mrito, poder e propriedade,
impulsionou uma nova viso da prtica solstica, estabelecendo uma poca do virtuosismo
em Portugal. O prximo sub-captulo visa iluminar as relaes entre as apresentaes de
virtuosi nacionais e internacionais e o processo de transformao da vida musical lisbonense.
Para uma mais fcil identificao do virtuosismo oitocentista, o estudo inicia-se com a
identificao do seu entendimento coevo.
Virtuosismo instrumental na Lisboa oitocentista
A praxis virtuosstica sobressai nos anncios e crnicas a espectculos de
entretenimento e seus executantes na imprensa peridica oitocentista portuguesa e na
historiografia dos teatros citadinos,18 em parte baseada na inventariao e anlise destes
mesmos excertos. O seu vasto manancial identificado no perodo cronolgico estabelecido
(1821-1870) pode ser definido segundo as seguintes categorias: virtuosismo musical (vocal
e instrumental),19 virtuosismo coreogrfico (dana), virtuosismo teatral, virtuosismo fsico
(ginstica, espectculos equestres, touradas), virtuosismo de decepo (METZNER, 1994),
de base tecnolgica na fsica, qumica e engenharia (ascenses de balo, prestigiao, magia,
fantasmagoria) e improvisao literria.20
18 BENEVIDES 1883; SOUSA BASTOS 1898; SEQUEIRA 1955; VASCONCELOS 2003; CMARA & ANASTCIO 2004; BASTOS & VASCONCELOS, 2004.
Ainda que o ttulo virtuoso/a se refira sobretudo ao
virtuosismo musical, todos os executantes das reas referidas partilham caractersticas
comuns: individualismo e ambio pelo reconhecimento pblico; a auferio de lucro
pecunirio; o objectivo e a necessidade de equiparao e/ou superao dos seus pares; uma
apresentao original das suas capacidades que visava sublinhar as idiossincrasias com
outros intrpretes; a importncia dos desenvolvimentos tecnolgicos; finalmente, uma nova
concepo de espectculo, baseada numa noo de entretenimento apto para as novas
audincias burguesas. segundo este sentido restrito que so abordadas as manifestaes
virtuossticas lisbonenses na praxis de msica para instrumento de sopro solista.
19 O virtuosismo musical manifesta uma clara distino entre cantores de pera consagrados e instrumentistas estrangeiros em tour, de estatuto superior, e os msicos e cantores portugueses, de estatuto inferior. 20 O improvisatore literrio uma figura surgida em Itlia nos meados do sculo XVIII, disseminada para a Europa no mesmo perodo e activa at aos meados do sculo XIX (vide GONDA 2000: 195-210). provvel que sua insero em Portugal tenha sucedido ainda no mesmo perodo, dada a importao de msicos italianos para os efectivos musicais da Corte. A improvisao literria relatada por Benevides (1889: 122) na referncia a acontecimentos como a notcia da aceitao da carta constitucional. Em 1850 o improvisatore profissional Antonio Bindocci organiza uma academia de poesia extempornea no Teatro de So Carlos.
13
Virtuosismo instrumental no sculo XIX em Lisboa
O virtuosismo instrumental no sculo XIX em Lisboa pode ser determinado, de
acordo com as suas tendncias, em trs perodos: 1) finais do sculo XVIII1834; 2) 1834
1880, divisvel entre as dcadas de 1840 a 1860 e 1860 e 1870; 3) dcada de 1870fin-de-
sicle. A primeira periodizao corresponde classificao bipartida, estabelecida por
Esposito (2008), da vida concertstica no perodo entre 1821, instituio do Liberalismo, e
1853 (1821-1834; 1834-1853), fim do reinado de D. Maria II. A classificao acima
estabelecida defende que a actividade dos virtuosi em Lisboa manteve, grosso modo, as mesmas
caractersticas durante as regncias de D. Fernando e D. Pedro V, sofrendo alteraes
relevantes em cerca de 1860, um ano antes da subida ao trono de D. Lus I. Nas trs
ltimas dcadas do sculo XIX ocorre uma transformao no gosto musical que, no que
concerne o virtuosismo, caracterizada por um novo entendimento estsico dos concertos
solsticos, com um foco crescente das audincias no texto musical e um menor interesse
nas capacidades do intrprete; o virtuosismo alterou a sua natureza, prestando-se a partir de
ento interpretao fidedigna do repertrio.
O perodo entre revolues (1821-1834)
A parca amostra de anncios na imprensa peridica21
21 A mais comum forma de anncio a concertos era o cartaz, o que acaba por minorizar a sua existncia na imprensa peridica (ESPOSITO 2008: 51).
sugere a existncia limitada de
apresentaes solsticas, realizadas sobretudo nos principais teatros da cidade Teatro de
So Carlos, Teatro da Rua dos Condes, Teatro do Salitre e Teatro do Bairro Alto em trs
eventos: nos intervalos de rcitas operticas ou teatrais, em benefcios e em academias
vocais e instrumentais. A integrao de obras instrumentais solsticas nos intervalos das
rcitas limitada pela apresentao regular de danas, ocorrendo, ainda assim, com alguma
relevncia. O benefcio livre de despesas era um espectculo determinado nas escrituras
entre empresrio e companhia, destinado a cobrir em parte o salrio de cantores, e que foi
posteriormente estendido ao staff do teatro, orquestra, msicos e, fora do mbito do teatro
de pera, a actores e outro tipo de artistas (ESPOSITO 2008: 55). A sua realizao dependia
sobretudo de relaes pessoais e servia mais ao beneficiado na sua promoo e convite aos
espaos privados de realizao musical, enquanto intrprete ou pedagogo, do que em lucro
pecunirio (WEBER 1977 apud op.cit.: 59). notria a colaborao de diversos cantores e/ou
14
instrumentistas em auxlio ao beneficiado, visando obter a presena deste nos eventos em
seu favor (op. cit.: 63). A academia vocal e instrumental era organizada por membros
externos ao teatro, ficando a cargo dos msicos o pagamento dos seus custos (op. cit.: 58).
A apresentao de virtuosi ocorria tambm na Sociedade Filarmnica, nas casas dos
membros da alta sociedade, [de mecenas], em festividades religiosas, bem como em espaos
pblicos ao ar livre, como o Pao, stio de exibio de bandas militares.
A Sociedade Filarmnica foi criada por Joo Domingos Bomtempo em 1822,
mediante um sistema de subscrio, afirmando-se como um espao destinado fruio e
prtica diletante, servindo igualmente a exibio de msicos profissionais. Esta sociedade
recomea e institucionaliza a prtica musical privada, em conciliao com a exigncia de
sociabilidade de ndole musical e prolixidade do diletantismo musical. O concerto por
subscrio parece agregar as duas tendncias diletantsticas acima referidas, sublinhando a
distino entre a dificuldade do repertrio instrumental clssico e a acessibilidade do
repertrio vocal (ESPOSITO 2008: 75ss.); o gosto do pblico conduziu ao abandono das
obras orquestrais de Haydn e Mozart, em prol do favorecimento de repertrio opertico
(AmZ 1825 BRITO & CRANMER 1990: 62). Diversos amadores22
As limitaes impostas pela regncia miguelista prossecuo dos concertos da
Sociedade Filarmnica de Bomtempo, as perseguies e exlios de vrios liberais so
factores condicionantes da actividade concertstica diletante e profissional. Por conseguinte,
o perodo entre revolues subdivido entre regncias liberal e absolutista. Entre 1821-
1827 observa-se um grande incremento na actividade dos virtuosi (ESPOSITO 2008: 62);
aquando da regncia absolutista ocorre um recomeo da exibio solstica, culminante no
perodo 1831. Nos anos 1833 e 1834 no so referenciadas apresentaes solsticas.
presentes nos concertos da
Sociedade Filarmnica Brelas, Folque, Scola, Assis, Martins - j se apresentavam
habitualmente nos saraus musicais de Klinghfer e Driesel. (cf. op. cit. 1990: 39ss.) Os saraus
organizados pelo comerciante austraco foram continuados em concomitncia com a
instituio filarmnica. Por sua vez, as iniciativas de Klinghfer terminam em cerca de
1818, sendo colmatadas pelas reunies privadas de Joaquim Pedro Quintela em sua casa e,
posteriormente, no seu teatro, inaugurado em 1825. Outras iniciativas ocasionais foram
realizadas por Simo, Plcido, Zancla e Eugnio Manuel do Carmo (op. cit: 49; 58; 63).
22 Entre os instrumentistas amadores presentes nos concertos da Sociedade Filarmnica figuram os flautistas Brelas, Filipe Folque, Hirsch e Klinghfer; os clarinetistas Jos Francisco de Assis; os fagotistas Caetano Martins e Francisco Gaspar Lahmeyer; os trompistas Joaquim Pedro Scola e Alexandre Lahmeyer e Joaquim Pedro Quintela (ento II Baro de Quintela); os violinistas Grolund e Sebastio Duprat; Frederico Rudolfo Lahmeyer e Francisco Lahmeyer (VIEIRA 1900 I: 139; II: 5-6; 11-12).
15
Os msicos profissionais de sopro que se exibiram a solo no perodo 1821-1834
foram os flautistas Manuel Joaquim dos Santos, Manuel Botelho, Moreau e Vicentino
Tor;23 Antonio Cottinelli e Joaquim Morelli, tocadores de obo e corne ingls; os
clarinetistas Jos Avelino Canongia24
O repertrio apresentado no perodo 1821-1838 idntico ao praticado desde pelo
menos 1771 (cf. S 2008), consistindo de concertos, sonatas, sinfonia concertante, tema e
variaes e rias instrumentais; segundo Samson (2004) determinado como virtuosismo
clssico. Os compositores-intrpretes deste perodo so J. D. Bomtempo, J. A. Canongia, J.
L. O. Cossoul e G. Giordani. contemporaneidade das obras de autores estrangeiros
interpretadas em concerto
o compositor-intrprete de sopro mais relevante
deste perodo e Tiago de Deus Odalde; o fagotista Tiago Calvet. Os virtuosi em
instrumento de sopro estrangeiros que se apresentaram em Lisboa foram Jos Maria Ribas,
flautista portuense e Novaretto e Sartirano, intrpretes de trompa natural. Outros
instrumentistas portugueses activos foram os pianistas J. D. Bomtempo, J. G. Daddi, A. L.
Mir, os violinistas Caetano Giordani, Jos Maria de Freitas e J. L. O. Cossoul e o
violoncelista Giovanni Jordani. Tambm se exibiram os msicos em digresso Manuel
Espins e a pianista Rafaelle Lucci.
25
23 Carlos Vtor Saint-Martin, considerado amador, interpreta um concerto de flauta no Teatro do Salitre em 28/5/1830.
no est alheio o emergente mercado musical. O Armazm de
Msica (1792-1837) fundado por Joo Baptista Waltmann destinava-se edio e
distribuio de msica vocal e instrumental e comercializao de instrumentrio. O seu
catlogo inclua mais de 1000 obras de autores estrangeiros, entre as quais peas para
24 Jos Avelino Canongia (1784-1842) foi, no que concerne ao instrumentrio de sopro, o compositor-intrprete mais reconhecido do primeiro perodo, exibindo-se na grande maioria dos espaos musicais acima citados. O clarinetista iniciou a sua carreira musical ao servio do Teatro do Salitre e como regente de banda. Realizou duas digresses. Na primeira, exibiu-se em Paris e Nantes (1806-1814) e Londres (1814). A sua mudana para Londres pode ter-se devido, semelhana de Bomtempo, antipatia francesa aps a derrota nas Guerras Napolenicas. Aps um interregno em Portugal, onde se apresentou em Lisboa em 1815 e no Porto em 1816, Canongia estabeleceu segunda digresso, tocando em Milo, Bolonha, Gnova (em 1818), So Petersburgo (em 1819), Turim, Zurique, Gotha, Dresden, Frankfurt, Berlim (em 1820) e Weimar e Munique (em 1821). Depois desta longa digresso, Canongia regressou a Lisboa, onde estaria activo at ao final da dcada de 1820. Ao contrrio dos demais msicos, em incio de carreira, foi-lhe facultado, pelo seu estatuto, o acesso ao Teatro de So Carlos. Apresentou-se igualmente na Sociedade Filarmnica, cujo acesso era gratuito aos msicos profissionais. Foi nomeado primeiro clarinete neste teatro desde 1823, sendo-lhe, no ano seguinte, atribuda a cadeira de instrumentos de palheta aquando da reestruturao do Seminrio da Patriarcal, bem como nas instituies de ensino sucedneas. A sua carreira prxima de Bomtempo, no que concerne ao inicial servio nos teatros da capital, digresso por Paris e Londres e servio no Conservatrio Real de Lisboa. A distino entre estes reside no vnculo do clarinetista Irmandade de Santa Ceclia e ao servio no Teatro de So Carlos e Seminrio da Patriarcal. (vide Esposito 2008: 61, 71) 25 Foram interpretadas por amadores, nos concertos da Sociedade Filarmnica, obras solsticas dos seguintes autores: flauta F. Devienne (1759-1803), Antoine B. T. Berbiguier (1782-1838) J.L. Tulou (1786-1865); clarinete Ivan Mller (1786-1859); trompa W. A. Mozart (1756-1791), Luigi (1770-1817) ou Agostino Belloli (1778-1839). Tambm o repertrio de cmara interpretado no mbito privado Haydn, Mozart, Romberg, Krommer, etc. evidencia esta contemporaneidade.
16
instrumento solista, obras concertantes para pequenos agrupamentos instrumentais,
mtodos e tratados de msica, bem como msica para tecla, adaptvel, por sugesto do
comerciante, a outros instrumentos. (ALBUQUERQUE 2006: 128-134). Ainda no decurso do
perodo 1821-1834, estabeleceram-se a Real Fbrica de Msica (1798-1824) de Weltin (op. cit.:
135-137), o Armazm de Msica (1822-1830) e Oficina Rgia Litogrfica de Zancla (op. cit.:
140-146), as firmas de Valentim Ziegler e Erdmann Neuparth (1824-; 1825-1886; 1825-19--
?), e os estabelecimentos de Duarte Edwards, Joo Aldosser e filhos e Francisco Antnio
Driesel. A actividade das mesmas abrangia a venda e aluguer de edies musicais e o
comrcio de instrumentos e seus acessrios (vide anexo I: 1ss.). A existncia de
estabelecimentos para a exclusiva produo e venda de instrumentos musicais sugere que o
instrumentrio comercializado pelas firmas acima citadas era importado.
Os principais construtores de instrumentrio de sopro em Lisboa foram a famlia
Haupt, estabelecida desde 1753 por convite da embaixada portuguesa na Alemanha,
especialista em instrumentos da famlia das madeiras; Manuel Antnio da Silva
(provavelmente formado por Antnio Jos Haupt), com firma fundada em 1807 e activa
em gerncia familiar at 1895 na construo de flautas, clarinetes e cornes ingleses e venda
do demais instrumentrio (ANDRADE 2005: 45-58); e Rafael Rebelo, construtor de
instrumentos de metal activo desde as primeiras dcadas do sculo XIX, com oficina e
armazm de venda entre 1830 e 1870, especializado na construo de trompetes e trompas
barrocas, trombones de varas, cornetas de chaves e oficleides (VIEIRA 1900 II: 235) (vide
anexo I: 1ss.). As medidas proteccionistas da Sociedade Promotora da Indstria Nacional
criada a 16 de Fevereiro de 1822, dissolvida durante o Miguelismo e reabilitada em 1834
assumem particular relevncia para a manuteno da sua actividade e promoo dos seus
instrumentos face cada vez mais facilitada importao. A colaborao entre construtores
e a nova gerao de instrumentistas, nascida nas dcadas entre 1810 e 1830, ser frutfera a
ambos no perodo ps Guerra-Civil.
A emergncia do virtuosismo moderno - 1834-1860
O final da Guerra Civil possibilitou o recomeo das tendncias reformativas e
modernizadores emergentes no perodo da primeira revoluo liberal (ESPOSITO 2008:
101): a difuso dos espaos de sociabilidade mundana, a reestruturao e gesto dos teatros
e sistemas de ensino (sendo proeminente o desempenho do Conde de Farrobo) e a
reorganizao/criao das corporaes musicais.
17
O crescente movimento associativista e o requisito de sociabilidade mundana foram
factores determinantes para a retoma e disseminao do associativismo musical
diletantstico. A transmisso da prtica musical domstica para o espao semi-pblico
assentava na convico de uma necessidade de popularizao da cultura, assentando nos
ideais de civilizao e progresso e nos propsitos de recreio e instruo (op. cit.: 117). A
criao dos clubes, das assembleias e academias diletantes e das sociedades musicais,
dramticas e corais civis fruto destas concepes. A instabilidade entre faces polticas
no parece ter colocado entrave larga difuso de instituies de sociabilidade mundana
(op. cit.: 101) O estabelecimento de clubes e assembleias diletantsticas inicia-se na dcada de
1830, com a instituio do Club Lisbonense (1834), da Assembleia Lisbonense (1836), da
Academia Filarmnica (1838) e da Assembleia Filarmnica (1839), registando-se a sua vasta
disseminao nas dcadas seguintes e apogeu nos meados do sculo XIX.26
As sociedades filarmnicas vocacionadas para a msica de banda derivam do
mesmo processo de associativismo. O estudo conduzido por Pedro de Freitas (1946) sobre
estas sociedades populares (VIEIRA 1900 II: 294) permite inferir que a sua constituio
processou-se, grosso modo, por criao de base do efectivo de banda ou por
institucionalizao de ensembles de sopros similares s bandas regimentares, mediante
incentivo mecentico de um nobre ou burgus, por congregao de profissionais de uma
mesma actividade ou por iniciativa popular. A prtica diletante para sopro, a melhoria da
qualidade das bandas regimentais e a constituio e difuso das filarmnicas (termo da
imprensa coeva para as bandas civis) possibilitada pela maior acessibilidade na
aprendizagem e interpretao do novo instrumentrio de sopro graas criao dos
sistemas de anis, nas madeiras, e pistes, nos metais, permitindo a resoluo de digitaes
complicadas e na sua menos dispendiosa aquisio, aps o estabelecimento da produo
em srie que diminuiu o dispndio na construo e o custo do instrumento (HERBERT
1977: 177). O crescimento do mercado de venda de instrumentrio e edio musical em
Lisboa com o estabelecimento das firmas Sassetti (1848) e Canongia (1849) permitiu,
atravs de importao de Frana e Alemanha, uma maior e mais acessvel oferta s
comunidades musicais diletantes. Tais factores permitiram a insero das classes
trabalhadores menos abastadas no domnio da prtica musical associativa, potenciando a
26 Sociedade Perseverana (1840); Assembleia Lusitana (1841); Sociedade Recreao Filarmnica (1842); Sociedade Filarmnica Instructiva (1844); Academia Melpomenense (1846); Academia Apolnea Lisbonense (1846); Sociedade Recreativa Filarmnica (1847?); Sociedade Terpsicore (1848); Academia Filarmnica Lusitana (1848); Sociedade Euterpe (1849); Academia Filarmnica Lisbonense (1850); Academia Filarmnica Esperana (1852); Academia Terpsicorense (1852); Academia da Rua dos Mouros (activa em 1856); Sociedade Filarmnica Euterpe (activa em 1856). Sociedade Tlia; Academia Euterpe e Tlia.
18
difuso de filarmnicas com gradual incremento desde meados da dcada de 1840 e o
seu enorme crescimento nas dcadas seguintes (op. cit.). As crnicas da imprensa peridica
sublinham o papel relevante destes agrupamentos na vida musical lisbonense desde pelo
menos o incio da dcada de 1860.
As academias diletantes e as sociedades populares distinguem-se nos seus
objectivos, estrutura e funo do msico profissional. Nas primeiras, os intuitos de fruio,
instruo e prtica musical sublinham a elegncia e estatuto dos seus scios (ESPOSITO
2008: 115). O seu efectivo toma como exemplo as orquestras teatrais e a anterior Sociedade
Filarmnica, dada a inexistncia de orquestras profissionais. O ingresso do msico
possibilitado como scio honorrio27 para o desempenho de funes de intrprete,
docente, ensaiador e director das reunies musicais. Por sua vez, os objectivos das bandas
civis atribuem especial enfoque na aprendizagem e prtica musical, sendo fulcral a funo
do msico profissional enquanto regente, docente e intrprete. A sua estrutura e actividade
so similares das bandas regimentares (vide anexo I: 15ss.). O estudo dos programas de
concerto destas instituies [incluindo as bandas regimentares] indica que a sua actividade
est intimamente ligada importncia do repertrio opertico italiano e s modas francesas
(sobretudo as danas: polka/polaca). As sociedades apresentam-se como espaos essenciais
ao estabelecimento da carreira musical profissional: Joo Rodrigues Cordeiro referenciado
(VIEIRA 1900; FREITAS 1946; ESPOSITO 2008) pelo seu incentivo e coordenao de
sociedades musicais lisbonenses;28 na dcada de 1860 ainda notria a colaborao de
msicos em incio de carreira, como por exemplo, a cooperao de Francisco F. Gazul com
o Grmio Literrio.29
Os msicos profissionais apresentavam-se sobretudo nos teatros citadinos,
mediante realizao ou integrao em benefcios e em academias vocais e instrumentais. A
estrutura organizativa teatral est mais solcita ao concerto, possibilitando um mais fcil
ingresso aos msicos locais e estrangeiros em digresso; o concerto perfilha-se, para o
empresrio e para a Inspeco dos Teatros, enquanto valiosa alternativa aquando da
27 Scios honorrios [so] aqueles que, por seus conhecimentos abalisados de arte da msica, ou por servios prestados Academia, promovam distinctamente o seu esplendor e prosperidade. Estatutos da Academia Filarmnica, apud ESPOSITO 2008: 158. 28 Discordamos da datao 1842 - estabelecida por Pedro Freitas para o surgimento das sociedades populares. Tomamos como primeira referncia a instituio da Sociedade Filarmnica Instructiva em 1844, cujo mbito exclusivo a msica para banda (ESPOSITO 2008: 171). No texto sobre bandas pode ler-se a discusso dos dados expostos por Freitas. 29 Note-se que os trs msicos citados foram homenageados pela instituio de trs sociedades filarmnicas, respectivamente, a Sociedade de Instruo Guilherme Cossoul em 7/12/ 1885, a Sociedade Filarmnica Joo Rodrigues Cordeiro em 4/3/ 1891 e a Sociedade Filarmnica Francisco Freitas Gazul.
19
eventual impossibilidade de realizao das rcitas (ESPOSITO 2008: 106-107). A criao de
novos teatros e espaos pblicos de realizao dramtica/musical foi sobretudo benfica
para os mesmos, conferindo-lhes uma maior oferta laboral, mediante servio nas orquestras
ou apresentao solstica. A instituio do Teatro D. Maria II em 1846 colmatando a
muito sentida necessidade de um espao digno para o teatro portugus foi acompanhada
pela construo no mesmo ano do Teatro Ginsio e, trs anos volvidos, do Teatro D.
Fernando, por iniciativa de empresrios citadinos. O aumento da oferta de novos espaos e
ocasies de entretenimento possibilitou uma maior concorrncia entre empresrios,
conduzindo diminuio dos preos e a um menor custo no aluguer do teatro e do seu staff
aos virtuosi locais. A reinaugurao do Passeio Pblico em 1838 foi fulcral para a exibio
das bandas regimentares e civis, tendo as primeiras iniciado a sua actividade neste espao
nesse mesmo ano (vide anexo I: 15ss.).
Apesar do acrscimo em espaos para a actividade concertstica, o predomnio das
associaes de diletantes e a ateno e louvor contnuo aos intrpretes amadores
empreendido pela imprensa peridica coeva sentenciaram o msico profissional a uma
condio de indispensabilidade e invisibilidade (op. cit.: 139). As restries impostas
prtica concertstica profissional pela Irmandade de Santa Ceclia foram outro contributo a
condio menor do msico profissional. Pareceria provvel que os constrangimentos
impostos pela confraria tivessem um trmino definitivo com a definitiva instituio do
Liberalismo. Vrias medidas foram levadas a cabo pelos membros da Irmandade, sob
desgnio do seu mentor e presidente Joo Alberto Rodrigues da Costa, para a perpetuao
deste monoplio e elevao da condio precria do msico. Em 1834 foi fundado o
Montepio Filarmnico, associao de socorro mtuo que, debaixo de um disfarce menos
religioso, fez por manter os mesmos requisitos da Irmandade, nomeadamente os
requerimentos de filiao mediante exame, a obedincia a vrias regras de conduta para ser
msico profissional e o pagamento de uma parcela para o cofre. O exame averiguava a
capacidade terica e prtica dos proponentes que, nalguns casos, se julgavam aptos
prtica profissional com o domnio mnimo do instrumento e sem conhecimentos de teoria
musical. Por outro lado, as imposies da Irmandade conduziam os msicos prtica de
vrios instrumentos, caracterizando-os (como se notar nos casos de Antnio Avilez,
Rafael Croner, Augusto Neuparth, Guilherme Cossoul; VIEIRA 1900 II: 121-127; I: 366-369; I:
298-311; II: 338-339) enquanto poli-instrumentistas. A Academia Msica 24 de Junho,
habitualmente entendida como um estabelecimento paramanico (BORGES, s.d.;
ESPOSITO 2010) em funo secreta at sua instituio, num quadro poltico conveniente,
20
em 1842, servia a aplicao deste mesmo monoplio nas orquestras teatrais, mediante
mediao com os empresrios, limitando o vigente contrato individual de msicos para os
postos da orquestra. As determinaes do Conselho da Academia incluam a atribuio, a
vrios msicos, do vnculo a determinados postos das orquestras teatrais at sua morte ou
incapacidade, e, nestes casos, a sua concesso aos seus descendentes ou alunos, culminante
numa prtica obsoleta, antiga e anacrnica, limitadora da livre competio entre intrpretes
pelo mais ambicionado posto laboral. Se por um lado as instituies corporativas
defendiam a posio laboral (de alguns) dos msicos profissionais local face eventual
contratao de msicos estrangeiros, foi contudo limitado o empreendorismo de msicos
no-associados, a dinmica de mercado e competio entre intrpretes tpica da poca. A
Academia Melpomenense (1846-1861) visava retirar os professores da invisibilidade,
conferindo-lhes um espao concertstico profissional. Todavia, a academia no podia
prescindir do elemento de forte caracterizao mundana e do apoio dos msicos diletantes
que, habituados ao protagonismo, dificilmente se deixariam ficar no anonimato (ESPOSITO
2008: 108): para alm da integrao de diletantes e a concesso sua exibio como
instrumentistas, a academia devia oferecer as ocasies de recreio, convvio e elegncia
caractersticas das academias diletantes e sociedades populares. A Melpomenense devia ser
idealmente composta por todos os membros das instituies corporativas, que se deviam
prestar ao seu gratuitamente, sendo suportada nos custos pelo Montepio Filarmnico. Os
seus objectivos compreendiam a constituio de duas orquestras profissionais, para
apresentao de vrias obras instrumentais solsticas e orquestrais, bem como a docncia a
msicos profissionais em incio de carreira. Uma das medidas para uma mais facilitada
criao de programas foi tornar o exame dos proponentes s instituies corporativas em
prova pblica. A medida mais promissora para as exibies virtuossticas lisbonenses foi,
infelizmente, condicionada pela manifesta falta de vontade dos msicos menos dotados
para a exibio solstica, aos quais o servio gratuito retirava a importante fonte de
rendimento das funes religiosas e profanas ocorrentes no intervalo das temporadas, bem
como pelas dvidas contradas com o Montepio Filarmnico (geradoras de polmica), por
fora da oferta de recreio aos seus scios. A exibio destes ltimos, que contribua para a
diluio da distino entre profissional e diletante, foi controlada aquando da redaco dos
novos estatutos da academia em 1853; a alterao da sua denominao para Academia Real
de Professores de Msica indicativa da nova concepo dos seus intuitos (ESPOSITO
2008: IV.1, 2; 2010).
21
O estudo do repertrio e das referncias na imprensa peridica sugerem o incio de
actividade de uma nova gerao de virtuosi aps a Guerra Civil. Entre estes refiram-se os
intrpretes de corneta de chaves Francisco Santos Pinto e Matias Osternold, o flautista
Manuel Joaquim dos Santos, o obosta Antnio Cottinelli, o trombonista Jos Nicolau de
Oliveira, os violinistas Jean Louis Olivier Cossoul, Vicente Tito Mazoni e Jos Maria de
Freitas, o contrabaixista Jos Alberto Rodrigues da Costa e o harpista Caetano Fontana,
msicos integrados no efectivo do Teatro de So Carlos no decurso da dcada de 1830.
Uma nova gerao de msicos surge no incio da dcada de 1840, actuando em simultneo
com os acima citados: Guilherme Cossoul (violoncelista, harpista, melofonista e xilofonista)
e Sofia Cossoul (harpista),30
O circuito teatral de exibio solstica contemplou, desde 1835, os Teatros da Rua
dos Condes, So Carlos e Salitre, notando-se, em vrios casos (V. T. Mazoni, J. Cossoul, G.
Cossoul, S. Caetano, R. Croner) uma primeira escolha pelos espaos no subsidiados e uma
posterior apresentao no teatro italiano, local preferido dos intrpretes e audincias. A
abertura dos novos teatros D. Maria II, Ginsio e D. Fernando - aps 1846 ofereceu uma
maior amplitude a este circuito, servindo a exibio a Mazoni, G. Cossoul, S. Caetano, A.
Croner, E. V. Wagner e Achille Fontana, entre outros. A prtica concertstica nos teatros
realizada nos intervalos, em benefcios ou em academias vocais e instrumentais.
os irmos Galeazzo, Antoine e Achille Fontana (harpa e
piano), os flautistas Antnio Jos Croner e Jacques Murat, os obostas Isidoro Franco e
Caetano Cottinelli, os clarinetistas Rafael Croner, Manuel Ximeno e Carlos Augusto
Campos, os fagotistas Augusto Neuparth e Tiago Canongia, os cornetinistas Toms Jorge e
Manuel Antnio Correia, o trompista Ernesto Vtor Wagner, os oficleidistas Severino Jos
Caetano e Jos Gonella, o violinista ngelo Carrero, entre outros.
Foram raras as exibies solsticas de msicos profissionais nas reunies das
academias e sociedades de diletantes: os programas favoreciam, grosso modo, o repertrio de
cariz opertico e a msica de dana; o repertrio virtuosstico no foi dominante e a sua
realizao estava destinada aos diletantes. A direco musical das reunies parece ter sido
atribuda a Francisco Santos Pinto, Antnio Lus Mir, entre outros. notria a escolha
das direces ou o intento dos intrpretes em incio de carreira: refiram-se as actuaes de
Guilherme Cossoul e Antnio Jos Croner na Academia Filarmnica, Assembleia
Filarmnica e na Academia Filarmnica Lisbonense; de Rafael Croner, Augusto Neuparth,
Manuel Antnio Correia, Alfredo Fontana e Eugnio Mazoni (pianista) na Assembleia
30 Os irmos Cossoul j se haviam apresentado no final da dcada anterior como meninos-prodgio.
22
Filarmnica; de Caetano Cottinelli e dos irmos Galeazzo e Alfredo Fontana na Academia
Apolnea Lisbonense; e de Augusto Neuparth na Sociedade Terpsicore. No mbito da
Academia Melpomenense refiram-se as actuaes dos instrumentistas de sopro A. Croner,
J. Murat, R. Croner, A. Neuparth, E. V. Wagner, T. Jorge, J. N. de Oliveira, J. Gonella bem
como de V. T. Mazoni, A. Carrero, J. Cossoul, Joo Baptista Canongia, Manuel Martins
Soromenho, G. Cossoul, J. A. R. Costa.31
O circuito de exibio virtuosstica visava tambm o contrato para a exibio no
espao privado, (ESPOSITO 2008: 271) da qual dispomos de raras referncias.
32
No actual estado de pesquisa, V. Mazoni, as famlias Cossoul (Jean Louis e irmos
Sophie, Guilherme e Ricardo) e Fontana (Gaetano, Galleazzo, Achille e Alfredo), os irmos
Rafael e Antnio Croner, Augusto Neuparth, ngelo Carrero so os virtuosi com maior
actividade, notando-se a sua vasta participao e organizao de benefcios, nas academias
diletantes e profissionais.
A extino
das ordens religiosas em 1834 diminuiu certamente o nmero de funes; no nos foi
possvel concluir se a apresentao solstica foi continuada neste mbito.
33
Alm do esprito colaborativo entre virtuosi na organizao e realizao de
concertos (op. cit.: 63), tambm notria a cooperao entre intrpretes na apresentao em
duo, trio, quarteto, etc., bem como a composio de obras pela gerao mais antiga de
compositores-intrpretes dedicadas nova gerao. No primeiro caso, como foi apontado
por Francesco Esposito (2008: 318-338), a sinfonia concertante, a pea concertante, a
fantasia concertante e o tema e variaes em consorte parecem estar intimamente ligados
aos constrangimentos impostos pelas instituies corporativas: a colaborao entre msicos
permitia o acesso aos menos aptos s apresentaes solsticas, como podia tambm
providenciar um aumento nas audincias e em lucro. O segundo caso foca a perpetuao
de uma prtica habitual no perodo clssico (a composio para os msicos mais clebres
da poca) que denominarei composio por virtuosi. Francisco Santos Pinto e Leonardo
Soller so autores de vrias obras dedicadas aos seus colegas e alunos. Podemos mencionar
a cooperao de Santos Pinto com o fagotista Augusto Neuparth, o trombonista Pedro dos
Santos, o cornetinista Manuel Antnio Correia, ou o oficleidista Severino Jos Caetano; ou
31 Este levantamento foi feito por consulta da imprensa especializada da poca e confronto com os dados cedidos em ESPOSITO 2008. 32 A ttulo de exemplo, refira-se o concerto oferecido pelo sr. Manuel Lus de Sousa ao sr. Lus Carlos de Abreu Castelo Branco a 20 de Novembro de 1856, onde estiveram presentes os msicos profissionais Augusto Neuparth e Pedro Gazul. A descrio do concerto pode ser lida em Teatro e Assembleias, 1/12/1856. 33 V. T. Mazoni no se encontra referido nos programas das associaes de amadores.
23
a colaborao de Leonardo Soller com o trompista Ernesto Vtor Wagner e Toms Jorge,
intrprete de corneta de chaves e cornetim. Este tipo de colaborao destinava o estatuto
ao compositor e os meios ao msico profissional, sendo considerada relevante, face
atitude proteccionista da imprensa, a apresentao de uma obra de um compositor
portugus reconhecido. A composio para diletantes por exemplo, as obras de Francisco
Santos Pinto para Carlos ONeill e de Antnio Lus Mir para o Conde de Farrobo est
associada ao mecenato e proteco conduzidos pelo diletante para com o compositor local.
A anlise do repertrio composto neste perodo assevera o abandono das estruturas
sonatsticas clssicas em favor de estruturas formais mais livres, em estilo ps-clssico,
prprias dos gneros fantasia (sobre temas originais ou operticos), tema e variaes,
danas e peas de carcter, iniciado, nas obras para sopro, desde circa 1838 e plenamente
afirmada em meados da dcada de 1840. Concerto e sonata estiveram fora dos programas
de concerto na maior parte do restante do sculo XIX, sendo recuperados nas duas ltimas
dcadas do sculo por influncia do idealismo musical e do cnone musical.34
O estudo da programao concertstica na imprensa peridica indica a afirmao
definitiva do virtuosismo moderno no decurso da dcada de 1840, estritamente
relacionada com a emergncia de uma esfera pblica. Esta classificao, estabelecida por
Jim Samson (2004), visa iluminar as principais diferenas na actividade do virtuoso a sua
afirmao como freelancer e a sua actividade em digresso , a existncia de mais espaos
pblicos, o consequente aumento das audincias e a produo de um discurso apreciativo
crtico pela audincia e imprensa.
[L] affermazione definitiva del liberalismo [...] introduce, seppur con tentennamenti e contraddizioni, una nuova concezione delle relazioni fra stato e societ che facilita il farsi strada di una sfera pubblica borghese (...) concepita in un primo momento come la sfera dei privati riuniti come pubblico [HABERMAS, 2002: 33]. (...) L idea delle separazione degli ambiti di competenze fra stato e cosiddetta societ civile sembrerebbe lasciare vuoto uno spazio che questultima tenta di colmare dotandosi delle sue proprie strutture sociali almeno formalmente indipendenti dallo stato e nelle quali in un primo momento essa sembra riprodurre a livello dellambito pubblico caratteristiche, dinamiche e comportamenti tipici della sfera del privato. Le societ di recreio lisboete di questo periodo, e dunque le societ filarmoniche que appaiono svilupparsi proprio nellambito di queste, si reggoi di fatti tutte su di una rete di rapporti interpersonali fra i partecipanti, nei ruoli molte volte intercambiabili sia di esecutori che di pubblico, che tipica della fase che precede, in certo qual modo creandone i pressupposti, lavvento della culturale musicale di massa caractterizzata invece, como noto, da un pubblico divenuto oramai entit impersonale.
ESPOSITO 2008: 115-116
34 Lisboa no foi de forma alguma distinta de Paris e Londres na substituio dos gneros com estruturas clssicas (concerto e sonata) para formas estruturais mais livres tais como a fantasia e a pea de carcter (vide SAMSON 2004: 73).
24
A relevncia desta esfera pblica manifesta-se, no que concerne praxis musical, na
criao de espaos semi-pblicos, no incentivo ao estabelecimento de novos espaos
pblicos (acima descritos) e expanso do mercado musical e na apreciao dos eventos e
intrpretes entre audincia e na imprensa peridica (vide VIEIRA DE CARVALHO 2005: 39).
O mercado musical da primeira metade do sculo caracterizado pela maior fonte de
lucro na venda de artigos musicais e pela irregularidade da actividade de edio, realizada
sobretudo por assinatura. No dealbar da segunda metade do sculo, fruto do
estabelecimento das Casas Sassetti, Canongia e do desenvolvimento do estabelecimento
Neuparth, o mercado musical sofreu uma transformao significativa, possibilitada pela
introduo de novos mtodos de impresso e metodologias (o inventrio e arquivo das
chapas de impresso, para futura utilizao), bem como de novos associaes comerciais
com firmas estrangeiras (vide ESPOSITO 2001: 44). A edio de repertrio pianstico
destinado ao espao domstico possibilitou uma nova fonte de receita a diversos
compositores-pianistas portugueses Inocncio dos Santos, Migone, Lami, Daddi, Jos
Joaquim de Almeida. Por outro lado, a acessibilidade a obras de autores franceses ou
sediados em Frana (Duvernoy, Herz, Rosellen, Servais, entre outros) relevante para os
msicos profissionais menos versados na composio. Fruto dessa maior oferta de
repertrio a principal distino entre os virtuosi activos sobretudo nas dcadas de 1830 e
1840 sobretudo compositores-intrpretes e as geraes seguintes sobretudo
intrpretes em incio de carreira e com menos obras compostas. A segunda distino reside
no instrumentrio utilizado: a gerao nascida nas duas primeiras dcadas do sculo utiliza,
grosso modo, os seguintes instrumentos: flautas de 5 chaves, clarinetes de 5 e 13 chaves,
corneta de chaves, trompa natural, oficleide. O novo instrumentrio de sopro foi sendo
introduzido individualmente pela gerao seguinte, nascidos nas dcadas de 1820 e 1830. A
introduo massiva de instrumentos de sopro de fbricas francesas e alems, realizada pelo
Depsito do Armazm Central e pelas firmas Canongia e Neuparth, conduziu, desde circa
1850, ao abandono dos metais com chaves pelos com sistema de pisto e gradual
introduo dos sax-horn bartonos e madeiras em modelos Boehm (vide anexo I: 1ss.).35
A discusso da praxis musical na imprensa iniciou-se nos peridicos generalistas,
compreendo inicialmente o anncio a eventos e depois a realizaes de recenses dos
mesmos por connoisseurs, no folhetim ou em crnicas (vide SILVA 2005). Foi realizada mais
amplamente com a posterior criao, desde finais da dcada de 1830, da imprensa
35 O instrumentrio de pisto parece surgir por aquisio individual na dcada de 1840. Por exemplo, o cornetim identificado nos programas de concerto desde 1843, interpretado por Manuel Antnio Correia.
25
especializada, focada na literatura e actividade teatral. As recenses visavam sobretudo as
companhias estrangeiras de pera, tendo-se iniciado, a partir de finais da dcada de 1830, a
avaliao das exibies dos virtuosi lisbonenses e estrangeiros. A caracterstica central das
recenses a compositores e virtuosi portugueses a existncia de um contnuo discurso
laudatrio e proteccionista. A imprensa peridica tambm um espao de afirmao de
opinio dos membros das audincias.
O mpeto da actividade concertstica lisbonense acompanhado pela gradual
insero da capital lisbonense no circuito internacional de virtuosi, qual parece estar
relacionada a contnua ateno da imprensa peridica europeia na descrio da vida scio-
poltica e dos principais eventos realizados na quase totalidade dos pases ocidentais; a
publicidade na imprensa peridica uma caracterstica e factor essencial promoo do
virtuoso moderno. A visita capital portuguesa de virtuosi estrangeiros caracterizada por
uma actividade incipiente entre 1821 e 1845, ano da passagem de Franz Liszt, e pela
regularidade e crescimento do perodo posterior, salientando-se as exibies dos pianistas
Antoine de Konstki (1849), Sigismond Thalberg (1856) e, no mbito dos sopros, o
clarinetista Turchi (1836); os trompistas Langier 1847, G. Cavallari (1853) e Vivier (1856);
os flautistas Malavasi (1849), D. Imbert (1852), A. Parrera (1864) e G. Picco (flauta doce;
1864) e o fagotista N. Agostini (1868). Lisboa, Porto e as principais cidades dos
arquiplagos portugueses so tambm pontos finais de passagem para a Amrica do Sul e
Amrica do Norte para os virtuosi portugueses Francisco Xavier Noronha (1855) (vide
CYMBRON 2003), Artur Napoleo, Rafael Croner (1863; 1866) e Antnio Jos Croner
(1876) (VIEIRA 1900 I: 367-368) e estrangeiros Agostino Robbio, Camilo Sivori, Oscar
Pfeiffer (CYMBRON 2009). O virtuoso portugus tambm reinicia as suas apresentaes em
cidades europeias: o j citado Rafael Croner visita Londres em 1862 antes de se dirigir para
o Brasil; a digresso de Guilherme Cossoul a Paris em 1854 (VIEIRA 1900 I: 301) ter sido,
como se ver no captulo seguinte, da maior importncia para a sua concepo das
necessrias transformaes na vida concertstica lisbonense e ensino conduzidas no
perodo 1860 e 1880.
Em sntese, a vida concertstica e a exibio solstica observam um mpeto crescente
desde a definitiva instituio do Liberalismo at ao ano final do reinado de Maria II,
mantido nas seguintes regncias de D. Fernando e D. Pedro V, salientando-se contudo a
minorizao de actividade no ano da morte de D. Maria II e aquando das epidemias de
clera (1854) e de febre tifide (1857-1858) (BENEVIDES 1883: 267).
26
A definitiva instituio da actividade concertstica profissional
A existncia de uma intensa actividade concertstica na dcada de 1860 sugerida
pelo vasto manancial de eventos descritos na imprensa peridica.36
As bandas militares participam j desde finais da dcada de 1830 na quase totalidade
dos eventos citadinos: soires, benefcios, touradas, fogos de artifcio, exposies das
academias (por exemplo, de Belas Artes, academias florais), etc.; serve tambm como
agrupamento de entretenimento das instituies artstico-recreativas. Em 23/6/1837, o
Tivoli da Rua da Flor da Murta contava com a banda militar no jardim, e a pequena
orquestra na sala.
A perpetuao dos
eventos virtuossticos na maioria dos teatros da capital os benefcios e academias dos
Teatro de So Carlos, Teatro D. Maria II e Teatro Ginsio (vide MOREAU 1999: 412-421)
acompanhada pelo acrscimo de actividade das bandas regimentares e civis e pela criao
de uma sociedade de concertos profissional.
37 No Passeio Pblico confirma-se a sua presena desde 1838, tornando-
se, na dcada de 1850, locus de exibio da totalidade das bandas regimentares. Entre as
diversas realizaes neste espao, sublinhe-se um concurso entre todas as bandas
regimentares da capital em Junho de 185638
As filarmnicas, similares s bandas regimentares em estrutura, funes, efectivo
e repertrio, apresentaram-se frequentemente desde a dcada de 1860, por vezes
coexistindo com a banda regimental em diversos eventos. O repertrio destas instituies
pode ser subdividido