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S. S. VAN DINE O CRIME DO DRAGÃO tradução de roberto ferreira 36 LIVROS DO BRASIL

S. S. VAN DINE O CRIME DO DRAGÃO

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S. S. VAN DINE

O CRIME DO DRAGÃO

tradução deroberto ferreira

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LIVROS D O BRASIL

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I

A TRAGÉDIA

Sábado, 11 de agosto; 23.45

O sinistro e formidável crime, vulgarizado sob o nome de «O Crime do Dragão», há de associar-se no meu espírito, para sempre, à recordação de um dos estios mais cálidos que passei em Nova Iorque.

Philo Vance, que se mantinha à parte dos aspetos escatológi-cos e implicações sobrenaturais do caso e, portanto, foi capaz de resolver o problema de forma puramente racionalista, planeara uma viagem de pesca na Noruega em agosto, mas um capricho intelectual levou-o a cancelar os seus planos e permanecer na América. Desde que aumentara o fluxo de americanos do pós--guerra e nouveau-riche ao longo da Riviera francesa e italiana, ele havia esquecido o costume de passar o verão no Mediter-râneo, e começara a dedicar-se à pesca do salmão e trutas nas correntes de North Bergenhus. Mas, no final de julho deste ano em particular, o seu interesse nos fragmentos de Menandro, encontrados no Egito durante os primeiros anos deste século, havia revivido, e pôs-se a completar a sua tradução — um tra-balho que, como estarão lembrados, foi interrompido por aquela incrível série de assassinatos na Rua 75, Oeste1.

1 Os Crimes do Bispo.

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No entanto, mais uma vez, essa tarefa de pesquisa e amor foi rudemente invadida por um dos mistérios de assassinato mais desconcertantes em que Vance já participou; e as co-médias perdidas de Menandro foram novamente interrompi-das graças à intrincada investigação do crime. Pessoalmente, creio que as investigações criminais do meu amigo lhe fala-vam mais ao coração do que as empresas escolásticas a que se abalançava frequentemente, porque, a despeito das suas constantes pesquisas no domínio da ciência, não se compra-zia com elas tanto como com a solução de problemas intrinca-dos, de todo em todo estranhos à ciência propriamente dita. A criminologia satisfazia-lhe esse anseio íntimo, estimulava--lhe os processos analíticos, apelava-lhe ao cabedal de factos recônditos que possuía acumulados e para o seu maravilhoso instinto, no tocante às subtilezas da natureza humana.

Logo após os seus dias de estudante em Harvard, ele pe-diu-me para oficiar como seu consultor jurídico e adminis-trador financeiro; e o meu gosto e admiração por ele era tal que me demiti da empresa do meu pai — a Van Dine, Davis e Van Dine — para assumir os deveres que ele havia esboçado. Nunca lamentei essa decisão; e é por causa da associação re-sultante com ele que pude estabelecer uma abordagem pre-cisa e semioficial e contar as várias investigações criminais em que ele participou. Foi atraído para essas investigações como resultado da sua amizade com John F. X. Markham, durante os últimos quatro anos em que este foi procurador público do distrito de Nova Iorque.

De todos os casos até agora registados por mim, ne-nhum é tão excitante, tão singular, ou tão irracional como «O Crime do Dragão». Parecia ultrapassar todos os conhe-cimentos ordinários do homem e transportar a polícia e os investigadores a um reino obscuro e irreal de demonismo e

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de tradições, inçado de sombrias reminiscências raciais e de terrores lendários.

Ao dragão coube sempre papel de destaque na parte emocional das religiões primitivas, nos seus sortilégios e superstições. Eis que na cidade de Nova Iorque, em pleno século xx, a polícia iniciava uma investigação criminal que revivia todas as passagens sombrias daquelas eras tenebrosas e esquecidas, em que os ingénuos filhos da Terra acredita-vam em monstros malignos e nos horrores expiatórios pro-vocados por estes.

Os capítulos mais soturnos dos anais etnológicos da raça humana ressuscitaram, assim, na presença dos arranha-céus da moderna Manhattan. E,  nos dias que se seguiram à es-tranha morte de Sanford Montague, os próprios cientistas procuraram uma explicação biológica para os grotescos fe-nómenos que monopolizavam a atenção do país.

Até o prático e ponderado sargento Ernest Heath, da Sec-ção de Homicídios, se mostrava abalado com os inúmeros e misteriosos elementos do caso. Durante a investigação preli-minar, ainda antes do aparecimento de indícios probatórios do crime, já sentia, o prosaico sargento, a existência de fato-res ocultos e sinistros, como se uma emanação miasmática se desprendesse das circunstâncias, aparentemente vulgares, que envolviam os factos. Sem o inexplicável terror que dele se apossara, quando incumbido das primeiras diligências para o esclarecimento do trágico episódio, nunca o mons-truoso crime despertaria a atenção das instâncias oficiais.

Essa eventualidade hipotética foi, sem dúvida, o que o assassino pretendia; mas o autor desse crime extraordinário —  um crime, tanto quanto sei, sem paralelo nos anais dos homicídios violentos — falhou ao contar com o efeito da at-mosfera sinistra que envolveu o seu ato profano. O facto de

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o imaginário medo aborígene do homem se desenvolver em grande parte a partir dos mistérios inerentes envoltos nas pro-fundezas escuras da água foi ignorado pelo assassino. E foi essa supervisão que despertou a vaga de apreensões do sargento e transformou um episódio superficialmente comum num dos casos de assassinato mais espetaculares e diabólicos dos tem-pos modernos.

Foi o sargento a primeira autoridade a comparecer no tea-tro dos acontecimentos, embora, na ocasião, não suspeitasse da existência do crime; foi ainda ele quem, hesitante, expôs a Markham e a Vance os indefiníveis receios que o dominavam.

Era quase meia-noite do dia 11 de agosto. Markham jan-tara com Vance, nos aposentos deste, na Rua 38, Oeste. De-pois do jantar ficámos a conversar sobre diversos assuntos, para matar o tempo. Sobre nós pairava uma atmosfera entor-pecedora; os períodos de silêncio aumentavam à medida que a noite avançava, motivados, talvez, pela temperatura cálida e abafadiça; as copas do arvoredo que se erguia no pátio do fundo mantinham-se imóveis como se fizessem parte de um quadro e não da natureza.

Vance acabara de nos encher a segunda taça de champa-nhe, quando Currie, o seu mordomo e criado de quarto, en-trou no terraço, com o telefone portátil.

— Uma chamada urgente para o Mr. Markham — anun-ciou. — É o sargento Heath.

Aborrecido e um tanto surpreso, Markham pegou no aparelho. Foi rápida a comunicação telefónica entre ambos. O procurador do distrito franzia as sobrancelhas.

— Que coisa tão esquisita! Não esperava isto do sargento… Aflige-o seja lá o que for e deseja ver-me. Não me disse o que é e também não insisti para que mo dissesse. Sei, apenas, que em minha casa o informaram do sítio em que podia encontrar-me…

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Não gostei do tom abatido da sua voz e mandei-o vir aqui. Es-pero que não lhe cause transtorno, Vance.

— Pelo contrário, encanta-me — respondeu o interpelado com voz arrastada, enterrando-se na cadeira de vime. — Há meses que não vejo esse bravo sargento… Currie  — con-tinuou em voz mais alta —, traga uísque e soda. O sargento Heath vem aí.

Depois, voltando-se para Markham, acrescentou:— Espero que não seja nada de grave, talvez a canícula

tenha alucinado o sargento.Markham, ainda perturbado, abanou a cabeça.— O calor não bastaria para destruir o equilíbrio do Heath.

Em todo o caso, dentro em pouco estaremos a par de tudo.Cerca de vinte minutos depois, o sargento era anunciado

e vinha ao nosso encontro, no terraço, enxugando, com um enorme lenço, o suor que lhe inundava a fronte. Depois de nos cumprimentar, deixou-se cair numa cadeira, com um ar abstrato, e serviu-se de uma boa dose de uísque escocês, da garrafa que Vance lhe oferecera.

— Cheguei há pouco de Inwood, chefe, onde acaba de se registar um desaparecimento. Para lhe falar com franqueza, não gosto do aspeto das coisas. Noto nas circunstâncias algo de suspeito.

Markham anuviou-se.— Alguma coisa fora do comum?— Não… nada. E aí é que está o busílis. Tudo em ordem,

aparentemente. O velho ramerrão. E, todavia…Heath mostrava-se embaraçado.Um sorriso de mofa passou pelos lábios de Vance.— Receio, Markham, que o sargento esteja a tornar-se

intuitivo.O sargento Heath colocou o copo na mesa, ruidosamente.

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— Se quer insinuar que fiquei impressionado, tem toda a razão, Mr. Vance — concordou, num tom agreste.

Vance ergueu as sobrancelhas, com ar trocista.— De que se trata, sargento?— Vou dizer-lho… Pode rir-se à vontade… Escute, chefe —

disse, voltando-se para Markham —, cerca das vinte horas e quarenta e cinco minutos de hoje, telefonaram para a Secção de Homicídios. Um sujeito, que disse chamar-se Leland, co-municou-me que se dera uma tragédia na velha propriedade dos Stamm, em Inwood, e que lhe parecia conveniente a minha ida ao local…

— É  um lugar magnífico para cometer um crime  — in-terrompeu Vance, pensativo. — Uma das casas mais antigas da cidade, construída há quase cem anos. Hoje parece um anacronismo, mas palavra que transborda de possibilidades criminais. Algo de lendário, com uma história espantosa.

Heath contemplou Vance, com olhar penetrante.— Vejo que apanhou a ideia. Era o que sentia, quando me

encaminhei para lá… Como ia dizendo, perguntei, natural-mente, a esse tal Leland o que se passara e porque se tornava necessária a minha presença. Soube, então, que um indiví-duo, de nome Montague, mergulhara na piscina da proprie-dade e, ao que parece, não tornara a aparecer.

— Tratar-se-á, por acaso, da Piscina do Dragão? — inter-rompeu Vance, erguendo-se e estendendo a mão para a caixa de cigarros da sua marca preferida, Régie.

— Exatamente, se bem que nunca tivesse ouvido falar nela até chegar ao local em questão, hoje à noite… Pois bem, respondi-lhe que não me ocupava de tais acontecimentos, mas o homenzinho insistiu, disse que se tratava de um caso a investigar e que, quanto mais cedo isso se fizesse, melhor. O tom singular em que se exprimia despertou-me a atenção.

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Falava a nossa língua com toda a correção, sem qualquer so-taque estrangeiro, mas não o julguei americano. Quis saber porque recorria à polícia, quando o caso se dera na proprie-dade dos Stamm; respondeu-me que era um velho amigo da família e que fora testemunha da tragédia. Acrescentou que o Stamm não podia, naquele momento, falar ao telefone, o que o levara a assumir, temporariamente, a direção dos aconte-cimentos… Não consegui que me dissesse mais nada, mas qualquer coisa na forma como falava despertou-me suspeitas.

— Compreendo — murmurou Markham. — Dirigiu-se, então, para o local indicado?

— Dirigi-me. Segui com o Hennessey, o Burke e o Snitkin, no carro da polícia.

O sargento baixara a cabeça, embaraçado.— E que foi que descobriu?— Nada, exceto o que o tal indivíduo me dissera já pelo

telefone. Vários amigos estavam reunidos nessa casa para pas-sarem o fim de semana, e um dos convidados, o tal Montague, propusera um banho na piscina. Provavelmente tinham be-bido em demasia. Encaminharam-se para a piscina e começa-ram a vestir os fatos de banho.

— Um minuto, sargento — atalhou Vance. — Estaria o Leland embriagado?

— Não. Ele era o mais calmo do bando  — disse Heath, abanando a cabeça. — E, contudo, notava qualquer coisa de esquisito na sua atitude… A minha presença pareceu tirar-lhe um peso de cima; colocou-se ao meu lado, solicitamente, e re-comendou-me que conservasse os olhos bem abertos. Como é natural, pedi-lhe que me explicasse o que significavam as suas palavras. Simulou indiferença, pelo menos assim me pareceu, alegando que, outrora, muitas coisas estranhas se tinham

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passado naquele sítio; talvez os acontecimentos da noite en-cerrassem, por sua vez, qualquer coisa de extraordinário.

— Creio que sei ao que ele aludia  — disse Vance com uma leve inclinação de cabeça. — Naquela parte da cidade criaram-se, de facto, estranhas lendas, histórias da carochi-nha e superstições transmitidas aos contemporâneos pelos índios e pelos primeiros colonos.

— Pois bem, seja como for, após a chegada dos hóspedes à piscina, o tal Montague subiu à prancha, donde se atirou, num salto acrobático, e não voltou a aparecer.

Heath parecia não ligar importância aos comentários de Vance.

— Em que se baseavam os outros hóspedes para afirmarem que ele não voltaria à tona de água? — perguntou Markham. — A escuridão devia ser profunda depois da chuva; e o céu está nublado.

— Havia uma grande profusão de luz — explicou Heath. — Cerca de doze focos instalados nas imediações da piscina.

— Bem. Continue. Que sucedeu então? — disse Markham, estendendo o braço para pegar na taça de champanhe.

Heath agitou-se, contrafeito.— Nada de importante. Os outros mergulharam para pro-

curarem o corpo, mas desistiram após dez minutos de buscas infrutíferas. Leland, segundo parece, convenceu-os a voltarem para casa, a fim de avisar as autoridades do que se tinha pas-sado. Telefonou, então, para a Secção de Homicídios e contou a sua história.

— Acho estranho que o fizesse — resmungou Markham. — Não me parece, em todo o caso, que se trate de um crime.

— É  esquisito, de facto  — concordou Heath com vee-mência —, mas o que observei ainda é mais estranho.

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— Ah! — disse Vance, expelindo para o ar uma espiral de fumo. — Essa romântica secção da antiga Nova Iorque corres-ponde, enfim, à sua reputação. E que foi que observou assim de tão estranho, sargento?

Embaraçado, Heath tornou a agitar-se, desassossegado.— Para começar, o próprio Stamm estava bêbedo como

uma cabra; um médico da vizinhança tentava fazê-lo voltar a si. A  irmã mais nova do Stamm, simpática, cerca de vinte e cinco anos, desmaiava de instante a instante, presa de um ataque de nervos. Os outros quatro ou cinco despediam-se, procurando justificar a necessidade da saída tão repentina. E, durante todo o tempo, o Leland rondanva como um falcão, e com um sorriso satisfeito no rosto moreno, como se sou-besse mais coisas do que aquilo que nos dizia. Isto sem falar no mordomo de carnes f lácidas, que se movimentava sem ruído, como um fantasma…

— Compreendo… compreendo…  — disse Vance vaga-mente. — Tudo muito desconcertante. O vento a gemer nos pinhais, um mocho que pia ao longe, uma janela que bate no sótão, uma porta que range e o bater de um estranho do lado de fora… Não é isto, sargento? Olhe lá, sirva-se de mais uís-que. Você não está, positivamente, em forma.

Vance falava em tom de troça, mas notava-se-lhe a ex-pressão arguta e interessada nos olhos semicerrados, além de uma alteração na voz.

— Vejo que me compreende, Mr. Vance. Nada, aparente-mente. Nada de anormal, pode dizer-se…

O aborrecimento de Markham aumentava.— O caso afigura-se-me semelhante a muitos outros sem

qualquer importância — declarou Markham. — Um indiví-duo mergulha na piscina, bate com a cabeça no fundo e afoga--se. O seu relatório, sargento, está explicado por si próprio sem

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o menor esforço. As carraspanas são tão naturais nos homens como os ataques histéricos de uma rapariga, após testemunhar semelhante tragédia. Justifica-se que os hóspedes quisessem partir perante o ocorrido. Quanto ao tal Leland, pode perten-cer à classe dos que dramatizam os casos mais corriqueiros. Entretanto, você procedeu a diligências e estas não autori-zam a mudança da norma observada em casos semelhantes. Esse assunto não é da competência da Secção de Homicídios. A  forma como se registou o desaparecimento do Montague exclui a hipótese de assassínio. Ele próprio sugeriu o mergulho na piscina, alvitre muito razoável numa noite como esta, e ati-rou-se à água; o não ter voltado à superfície é insuficiente para que se atribuam propósitos criminosos a quem quer que seja.

Heath encolheu os ombros e acendeu um charuto.— Há mais de uma hora que digo o mesmo a mim pró-

prio — respondeu obstinadamente. — No entanto, o que se deu na propriedade dos Stamm não me parece claro.

— Há alguma coisa que o preocupe? — perguntou o pro-curador do distrito, depois de um momento de silêncio.

O interpelado não respondeu logo. Estava vivamente im-pressionado, embora se mostrasse irresoluto sobre a conve-niência de acrescentar a observação que tinha em mente. De súbito, levantou-se da cadeira e tirou o charuto da boca.

— Não gosto daqueles peixes! — disse por fim.Enquanto Markham hesitava, sem compreender, Vance

explicou:— Creio que posso esclarecê-lo acerca dos peixes a que

o sargento alude, Markham. O Rudolf Stamm é um dos me-lhores aquaristas dos Estados Unidos. Possui uma coleção maravilhosa de peixes tropicais, variedades estranhas e mal co-nhecidas, cuja reprodução conseguiu obter. Esta é a sua mania desde há vinte anos: realiza, constantemente, expedições ao

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Amazonas e a outros lugares do Brasil, ao Sião, à Índia, às Ber-mudas e à bacia paraguaia. Também fez incursões na China e pesquisou o Orenoco. Há cerca de um ou dois anos, os jornais ocuparam-se minuciosamente da sua viagem da Libéria ao Congo…

— São seres estranhos — acrescentou Heath. — Alguns deles parecem monstros do mar que não cresceram.

— As suas formas e cores são muito bonitas, no en-tanto — comentou Vance com um leve sorriso.

— Mas isso não foi tudo  — continuou o sargento, igno-rando a observação estética de Vance. — Aquele Stamm tinha lagartos e pequenos jacarés…

— E provavelmente tartarugas, sapos e cobras…— Tenho a certeza de que tem cobras!  — O  sargento

fez uma careta de nojo. —  Muitos deles entram e saem de grandes aquários cheios de água… Mas continuando, sei que possui, também, uma espécie de terrário, para além dos aquários. Às vezes as duas manias juntam-se, sabe?

Markham resmungou qualquer coisa, observando a fisio-nomia de Heath.

— Talvez — disse em tom firme e positivo — o Monta-gue pretendesse apenas mistificar os outros hóspedes. Como podemos afirmar que não tenha atravessado a piscina, de-baixo de água, e passado para a outra margem?

— Pensei nessa possibilidade mas pu-la de parte: do outro lado da piscina ergue-se um muro de pedras colocadas umas sobre as outras na vertical, com mais de trinta metros de al-tura; também é impossível a escalada do lado por onde entram as águas e ficam os aparelhos de filtração, de volume conside-rável, ou do lado por onde saem, onde existe uma depressão com cerca de sete metros, por cima de grandes pedras. Na parte mais próxima da casa, a da prancha para os saltos, há um

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muro fácil de transpor, mas não sem que a pessoa que o faça fique fora do alcance dos focos luminosos.

— E não há outro caminho por onde o Montague pudesse sair sem ser visto?

— Há. Entre o filtro e o muro de pedras a pique, de que já falei; esse trecho não é iluminado.

— Pois bem, a explicação é provavelmente essa.— Não, não é, Mr. Markham — assegurou Heath enfati-

camente. — Como sabe, choveu toda a noite; o solo molhado conservaria quaisquer vestígios de passos. Não encontrei ves-tígio algum, a despeito das pesquisas a que procedi, auxiliado pelo Hennessey.

— Sendo assim, provavelmente há de encontrar-se o corpo, ao explorar a piscina… Providenciou nesse sentido?

— Hoje à noite, não. Arranjar o barco e as fateixas necessá-rias para as pesquisas levaria duas ou três horas e não sobraria tempo para o resto do trabalho. Tratarei disso ao amanhecer.

— Bem  — decidiu Markham com impaciência  —, não vejo que haja possibilidade de fazer, por agora, mais alguma coisa. Quando se encontrar o corpo, chama-se o médico-le-gista; a perícia médica revelará, provavelmente, que o Mon-tague fraturou o crânio e chegará à conclusão de que foi uma morte acidental.

As palavras do procurador davam o caso por terminado, mas não produziram esse efeito em Heath. Nunca o vira tão obstinado.

— Talvez o senhor tenha razão, chefe — admitiu resolu-tamente. — Quanto a mim, tenho outra opinião. E durante todo o caminho para cá, pensei em propor-lhe uma inspeção ao local.

As palavras do sargento impressionaram Markham, que, em vez de responder, o examinou com muita atenção.

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