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Revista ORDEM DOS MÉDICOS Maio 2005 3 S U M Á R I O Ficha Técnica Ano 21 – N.º 57 – Maio 2005 PROPRIEDADE: Centro Editor Livreiro da Ordem dos Médicos, Sociedade Unipessoal, Lda. SEDE: Av. Almirante Gago Coutinho, 151 1749-084 Lisboa Tel.: 218 427 100 Redacção, Produção e Serviços de Publicidade: Av. Almirante Reis, 242 - 2.º Esq.º 1000-057 LISBOA E-mail: [email protected] Tel.: 218 437 750 – Fax: 218 437 751 Director: Pedro Nunes Directores-Adjuntos: José Moreira da Silva José Manuel Silva Isabel Caixeiro Directora Executiva: Paula Fortunato Redactores Principais: Miguel Guimarães, José Ávila Costa, João de Deus e Paula Fortunato Secretariado: Miguel Reis Dep. Comercial: Helena Pereira Dep. Financeiro: Maria João Pacheco Dep. Gráfico: CELOM Capa de: Carlos Rodrigues Impressão: SOGAPAL, Sociedade Gráfica da Paiã, S. A. Av.ª dos Cavaleiros 35-35A – Carnaxide Inscrição no ICS: 108374 Depósito Legal: 7421/85 Preço Avulso: 1,6 Euros Periodicidade: Mensal Tiragem: 32.000 exemplares (11 números anuais) Ficha Técnica Médicos REVISTA Ordem dos 4 EDIT EDIT EDIT EDIT EDITORIAL ORIAL ORIAL ORIAL ORIAL 6 ACTU ACTU ACTU ACTU ACTUALID ALID ALID ALID ALIDADE ADE ADE ADE ADE Investigação Nacional Premiada 10 25 Anos depois, reconhecimento e saudade 14 INFORMAÇÃO INFORMAÇÃO INFORMAÇÃO INFORMAÇÃO INFORMAÇÃO 20 ENTREVIST ENTREVIST ENTREVIST ENTREVIST ENTREVISTA Não existe uma cultura de investigação em Portugal Adelaide Serra Fernando Domingos 26 A educação médica contínua tem sido satisfatória mas nem sempre devidamente coordenada e avaliada A. Poiares Baptista 30 A investigação é uma das prioridades da Indústria Farmacêutica Luís Portela 34 O reconhecimento da idoneidade científica por parte da OM é um passo no sentido de uma maior transparência Gomes Esteves 38 OPINIÃO OPINIÃO OPINIÃO OPINIÃO OPINIÃO Prescrição exclusiva por DCI? NÃO! De José Manuel Silva 40 As bases científicas da Medicina De António Vaz Carneiro 46 Médicos e Indústria de Medicamentos De Daniel Serrão 50 Reconhecimento de subespecialidades médicas Da Direcção do Colégio de Especialidade de Pediatria 52 Álcool, estupefacientes e psicotrópicos – Que jurisprudência? De Jorge Salvador 54 Acerca da Pós-Modernidade De António José de Barros Veloso 60 NO NO NO NO NOTÍCIAS TÍCIAS TÍCIAS TÍCIAS TÍCIAS 64 CONT CONT CONT CONT CONTOS OS OS OS OS 67 CUL CUL CUL CUL CULTURA TURA TURA TURA TURA

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Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005 3

S U M Á R I OFicha Técnica

Ano 21 – N.º 57 – Maio 2005

PROPRIEDADE:

Centro Editor Livreiro da Ordemdos Médicos, Sociedade Unipessoal, Lda.

SEDE: Av. Almirante Gago Coutinho, 1511749-084 Lisboa • Tel.: 218 427 100

Redacção, Produçãoe Serviços de Publicidade:

Av. Almirante Reis, 242 - 2.º Esq.º1000-057 LISBOA

E-mail: [email protected].: 218 437 750 – Fax: 218 437 751

Director:Pedro Nunes

Directores-Adjuntos:José Moreira da Silva

José Manuel SilvaIsabel Caixeiro

Directora Executiva:Paula Fortunato

Redactores Principais:Miguel Guimarães, José Ávila Costa,

João de Deus e Paula Fortunato

Secretariado:Miguel Reis

Dep. Comercial:Helena Pereira

Dep. Financeiro:Maria João Pacheco

Dep. Gráfico:CELOM

Capa de: Carlos Rodrigues

Impressão: SOGAPAL, Sociedade Gráfica da Paiã, S. A.Av.ª dos Cavaleiros 35-35A – Carnaxide

Inscrição no ICS: 108374Depósito Legal: 7421/85Preço Avulso: 1,6 EurosPeriodicidade: Mensal

Tiragem: 32.000 exemplares(11 números anuais)

Ficha Técnica

MédicosREV

IST

A

Ordem dos4 EDITEDITEDITEDITEDITORIALORIALORIALORIALORIAL

6 ACTUACTUACTUACTUACTUALIDALIDALIDALIDALIDADEADEADEADEADE

Investigação NacionalPremiada

10 25 Anos depois,reconhecimento e saudade

14 INFORMAÇÃOINFORMAÇÃOINFORMAÇÃOINFORMAÇÃOINFORMAÇÃO

20 ENTREVISTENTREVISTENTREVISTENTREVISTENTREVISTAAAAA

Não existe uma cultura deinvestigação em PortugalAdelaide SerraFernando Domingos

26 A educação médicacontínua tem sidosatisfatória mas nemsempre devidamentecoordenada e avaliada

A. Poiares Baptista

30 A investigação é uma dasprioridades da IndústriaFarmacêutica

Luís Portela

34 O reconhecimento daidoneidade científica porparte da OM é um passo nosentido de uma maiortransparênciaGomes Esteves

38 OPINIÃOOPINIÃOOPINIÃOOPINIÃOOPINIÃO

Prescrição exclusiva porDCI? NÃO!De José Manuel Silva

40 As bases científicas daMedicina

De António Vaz Carneiro

46 Médicos e Indústria deMedicamentos

De Daniel Serrão

50 Reconhecimento desubespecialidades médicas

Da Direcção do Colégio deEspecialidade de Pediatria

52 Álcool, estupefacientes epsicotrópicos – Quejurisprudência?

De Jorge Salvador

54 Acerca daPós-Modernidade

De António José de Barros Veloso

60 NONONONONOTÍCIASTÍCIASTÍCIASTÍCIASTÍCIAS

64 CONTCONTCONTCONTCONTOSOSOSOSOS

67 CULCULCULCULCULTURATURATURATURATURA

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E D I T O R I A L

A Siglastivera eu ainda nos tempos em que escrevia editoriais no Medi.Com e esta seria uma quinzenafácil e de expedita musa inspiradora.De facto, no mesmo tempo em que a imprensa médica discutia a entrada em funcionamento da

CURM, sigla bizarra que ao que parecer designa uma “Comissão para o Uso Racional do Medicamento”,assisti à conferência proferida em Lisboa por um professor, de apelido Litlejohn, representante do NICE(National Institute for Clinical Excelency).Dizia o conferencista, pleno do conhecido humor britânico desencadeador de discretos sorrisos queperduram por horas de irritação neuronal, que alguns ingleses desde logo apelidaram tão prestigiosainstituição de NASTY (Not Available So Treat Yourself).Não pude deixar de pensar como a simplicidade lusa ajuda os seus filhos e em vez da forma de antonomiasdifíceis forma plana a solução com uma mesma sigla CURM (Comissão para o Uso Racionado doMedicamento).Em tempos de Medi.Com toda a liberdade criativa permitia poder brincar um pouco e tentar o sorrisodos colegas.A Revista da Ordem (ROM já que estamos em maré de siglas) é coisa mais séria.Nela deve-se privilegiar a postura formal, um pouco na linha da irritante fotografia que encima esteeditorial. Em sede da ROM não cabe brincar com as siglas mas sim explicar porque a Ordem decidiu nãose fazer representar na dita CURM, pese embora a excelente relação pessoal e a muita consideraçãoque os seus membros, cabendo destacar o seu presidente, merecem a todos nós.Não se tratou, acreditem, de qualquer birra ou irritação epidérmica. Um dos jornais aventou a hipótesede ser devido a uma incompatibilidade com a palavra Racional do nome da entidade. Convenhamos quesendo de mau tom ter algo contra a racionalidade seria no mínimo manifestação do oposto, isto é damais imbecil irracionalidade, ser tal motivo que subjazesse a uma recusa de participação.Esclarece-se assim que uma questão formal mas de todo o significado material nos impede de estarpresentes. Esta é, o facto irrelutável de qualquer grupo de peritos que se reuna em torno da necessidadede produzir recomendações de utilização de fármacos, carecer em primeiro e imprescindível lugar decredibilidade.Tal credibilidade que pode ser obtida com chancela institucional, e nesse aspecto o convite à Ordemnão era seguramente um inocente pedido de colaboração e amigável troca de opiniões, tal credibilidade,dizíamos, nasce e afirma-se pela autonomia e independência. Autonomia e Independência, palavras simplesmas incompatíveis com sedes no âmbito da entidade regulamentadora do medicamento (INFARMED)e origens em despachos ministeriais de nomeação individual.Conheço e aprecio o mérito e a ética de inúmeros colegas que trabalham na Indústria farmacêutica. Seicomo por vezes é difícil explicar razões médicas a departamentos de marketing. Tal reconhecimentonão me impediria de recusar a presença da Ordem numa qualquer Comissão para o Uso do Medicamentoque nascesse no seio da Indústria.Tal como uma das mulheres de César teve amargas razões de queixa, nesta matéria em que se cruzam

E

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Pedro NunesE D I T O R I A L

interesses dos doentes e interesses económicos, o “parecer” talcomo o “ser” são da maior e igual relevância..Contextualizada que foi a decisão, mais importante era, agora, assumirresponsabilidades.Se a Ordem contesta o enviesamento das nomeações ou dos deveresde função não pode, ela que não existe senão pela defesa da qualidadeda Medicina, eximir-se ao ónus do prestar serviço.Assim e aproveitando um trabalho já em curso e uma proposta deparceria com entidade da maior dignidade, fácil foi ao CNE (ConselhoNacional Executivo) criar um novo Conselho Nacional Consultivo -o Conselho Nacional para a Evidência em Medicina (CNEM). Nãose trata, está bom de ver, de qualquer tentativa castradora de reduzira medicina ao estritamente demonstrável ou impedir a liberdade deEscola e sujeitar todos ao ditame administrativo.Trata-se de estabelecer recomendações, propor consensos, fabricar,traduzir ou simplesmente publicar textos credíveis que os médicosindividualmente possam usar como guias, utilizar comorecomendações de uma entidade autónoma credível.Se a Medicina não pode ser o exercício de autómatos, peças oleadasde máquinas previsíveis geridas por economistas ou activadas porengenheiros, também ao pretender-se cientifica não pode ser oterreno do aleatório, do “parece-me que “, do “cá p’ra mim talvez”......A este grupo que agora irá começar as suas funções espera umatarefa árdua, a tarefa de se expor aos colegas que com total liberdadevalidarão a seu trabalho. O êxito do grupo estará no número devezes que os médicos considerem as sua recomendações adequadas- que as usem na prática do seu dia a dia.À Ordem, aos seus Colégios, aos restantes órgãos consultivos caberáum esforço comum - validar, produzir, consensualizar.É seguramente tarefa mais útil e mais importante que derrubarMinistros nas horas vagas ou defender interesses que outros melhorque nós são capazes de defender.

P.S. A Ordem está de luto. Faleceu o nosso colega Dr. Ludgero Pinto Basto.Se com as suas opções políticas (militante do PCP) só alguns de nós se identificam, com a sua verticalidadede homem, a sua qualidade científica e o dinamismo com que criou a moderna Endocrinologia eDiabetologia em Portugal, todos nós gostaríamos de nos rever.Até sempre Dr. Ludgero.

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A C T U A L I D A D E

A investigação sobre cancro, liderada por Ignacio Melero,da Universidade de Navarra, foi a obra vencedora do “Gran-de Prémio Bial de Medicina”, no valor de 150 mil euros.“Intratumoral injection of dentritic cells Engineered tosecrete interleuki-12 by recombinant adenovirus in patientswith metastatic gastrointestinal carcinomas”, o trabalho ven-cedor, é baseado na pesquisa de uma resposta imunitáriacapaz de eliminar lesões tumorais. Um ensaio clínico em 17

Investigação nacional premiadaO Grande Prémio Bial de Medicinadistinguiu este ano o trabalho da equipado investigador espanhol Ignacio Melerona área do cancro. O Prémio de MedicinaClínica foi atribuído a uma dupla deinvestigadores portugueses, AdelaideSerra e Fernando Domingos, por umestudo sobre litíase renal. Foram aindaatribuídas três menções honrosas.

pacientes com cancros digestivos avançados (fígado, pân-creas e cólon) e sem quaisquer alternativas em termos detratamento convencional (quimioterapia e radioterapia)permitiu verificar, do ponto de vista biológico, alteraçõespró- inflamatórias no tumor, bem como um aumento daresposta imunitária.Com o “Prémio Bial de Medicina Clínica” foram distingui-dos os investigadores Adelaide Serra e Fernando Domin-gos pelo estudo “Avaliação nefrológica de uma populaçãocom litíase cálcica idiopática recorrente - experiência desete anos de Consulta de Nefrolitíase do Serviço deNefrologia do Hospital de Santa Maria”. Este estudo, quese prolongou por mais de 7 anos, tinha como objectivoanalisar as causas da litíase cálcica idiopática recorrente,qual o tipo de acompanhamento médico efectuado aosdoentes que sofrem dessa patologia e a influência das alte-rações da dieta na incidência desta doença. As conclusõesdo estudo – publicado na edição de Janeiro de 2004 darevista Acta Médica Portuguesa (Vol. 17: 27-34) – apontampara a inexistência de um estudo médico destes doentes,para a falta de validade cientifica de algumas das recomen-dações efectuadas e para a possibilidade de, através de umestudo metabólico e dietético adequado, efectuar um con-trolo médico da litíase.A problemática das células-mãe e da sua importância paraa medicina regenerativa, trabalho coordenado pelo investi-gador espanhol Romero Alvira, da Faculdade de Medicinada Universidade de Saragoça, a obra «Desenvolvimento deliposomas com afinidade para áreas miocárdicas isquémicas»,de um grupo de trabalho liderado por Alexandre Antunesdo Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Coimbrae «Antiagregação plaquetária no ambulatório», trabalho daautoria de Fernando Mota Tavares, fundador da Unidade deCuidados Intensivos do Hospital de Santo André, em Leiria,foram as três obras distinguidas pelo júri com mençõeshonrosas.

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Decorridos 25 anos sobre a data delicenciatura do curso de medicina de1973-1979 da Universidade do Porto,os médicos finalistas nesse ano reali-zaram um conjunto de iniciativas paracelebrar a efeméride, que culminoucom a colocação de uma placa de már-more evocativa desta data, no Bar daFaculdade. Numa pequena, mas sim-bólica cerimónia foi descerrada a pla-ca, com versos do nosso colega Dr.Pedro Cantista, tendo na ocasião o Dr.Miguel Miranda tido a oportunidadede se dirigir aos presentes com umsentido discurso. Temos o prazer devos deixar uma fotografia da placa co-memorativa e o discurso da ocasião:

«Ex.mo Senhor Presidente do Conse-lho Directivo da Faculdade de Medici-na do PortoIlustres colegasMinhas Senhoras e meus Senhores

Chegava ao ocaso o vetusto ano de1973, quando por esta casa adentroirrompeu uma plêiade de noviços, com-

A C T U A L I D A D E

25 anos depois,reconhecimento e saudade

posta de mancebos e debutantes. Elesmais ou menos hirsutos, elas mais oumenos esquálidas.Esta mole humana, oriunda dos liceusda cidade e das províncias, constituíao curso de Medicina que se haveria deformar um hexénio depois.Por convenção, referimos a 1979, o anode formatura, quando celebramos os25 anos do curso, mas em boa verda-de foi há mais de trinta anos que aquichegámos.Nesta casa nos formámos, como pro-fissionais e como pessoas. É com pro-funda emoção que voltamos a percor-rer os mesmos lugares que povoam onosso imaginário. A Biblioteca, o Tea-tro Anatómico, o Bar do Zero Dois, oAnfiteatro Norte, a Associação de Es-tudantes, os corredores fundos ondenos perdíamos, ou nos encontrávamos.À sombra lenta dos medronheiros dosjardins sorvemos ciência e amores,destilámos paixões científicas e dasoutras, sonhámos com a carreira fu-tura, com felicidade que tecíamos nasentretelas da vida.

Vivemos a revolução de Abril de 1974no primeiro ano do curso.Tão velhinhos que nós somos, aindasomos do tempo da polícia na facul-dade. A revolução irrompeu nas nos-sas vidas com a força abrupta de ummaremoto. Tempos convulsos esses, deexcessos, de rupturas. A Faculdade nãoandou melhor nem pior que o país,sofreu do mesmo excesso de sonho ede voluntarismo. De um conjuntoseptado de anacoretas, os alunos fo-ram erigidos do dia para a noite emfautores de critérios didácticos deensino, de avaliação. A seguir à tem-pestade, veio a bonança do bom sen-so, retomamos aos carris da probida-de, da consequência, da eficácia.Olhando para trás, vemos que essestempos de incerteza talvez foram vir-tuosos, nos fizeram crescer e enrique-cer como profissionais e como ho-mens e mulheres. Tivemos o privilégiode atravessar uma revolução na ado-lescência, viver esse período de verti-ginoso direito ao sonho sem conse-quências negativas, importando apenasos aspectos positivos que essa trans-formação social e cultural produziu naformação da nossa personalidade. Nonosso imaginário, fica gravada a eter-na magia das efervescentes RGA’s, doscomícios espontâneos com discursoinflamado de cima das mesas do bar,onde muitos de nós tirocinaram, cri-ando consciência política e social. To-dos estes sobressaltos, não nos fize-ram perder o norte.Entusiastas da profissão médica, che-gámos a 1979 em número de cerca deseiscentos. Um dos maiores cursosformados nesta casa. Pelo caminho ti-nham ficado algumas centenas, pois àentrada seríamos cerca de mil. Estesresistentes, que não foram dizimadosna luta contra os cartapácios, o Discodo teste de Neurologia, a gincana da

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A C T U A L I D A D E

prova de Anatomia Topográfica, os tra-tos de polé das orais, os eflúvios deformol empalando-nos os pulmões, olançamento do fígado no fim das au-tópsias do Instituto de Medicina Legal,as visitas ao Conde Ferreira sem cer-teza de regresso, estes últimos moica-nos ou abencerragens, chegaram ex-tenuados mas felizes ao fim do curso.Ao recebermos o famigerado canudo,pelo qual tínhamos suado as estopinhasdurante seis longos anos, tivemos a per-feita consciência que aquele momento eraum ponto de partida e não de chegada.Partimos para aventura do InternatoGeral (na altura chamado de Policlíni-ca) espalhados por todo o país comoprofetas ou arautos de uma verdadecientífica qualquer. Sendo um cursogrande, era também um grande curso,pontificando entre nós gente de gran-de qualidade humana e científica. As-

sim, temos a honra de ver colegas nos-sos colocados em lugares do maiordestaque, quer na actividade clínica nassuas mais diversas áreas, no ensino daMedicina, nos quadros da Faculdade,na investigação, como até nas mais di-versas áreas da arte, da cultura e dopensamento. Esta colheita de 1979produziu tão bons frutos que é legíti-mo considerar que o mérito poderáter estado não só na semente, mas emmuito no alfobre onde germinou.É a este alfobre que retomamos hoje.Pétrea é a nossa vontade de reconhe-cer este mérito de influência, pétrea éa nossa homenagem em placa, a estaFaculdade onde nos formamos comoMédicos, e como pessoas.E é aqui, neste local de culto que sem-pre foi o bar da Faculdade, local detodos encontros e tertúlias, que de-positamos o nosso testemunho de

reconhecimento e de saudade por to-dos os tempos bons que aqui passa-mos. A todos quantos contribuírampara a nossa formação, desde profes-sores. assistentes, monitores, funcio-nários, o curso de Medicina de 1979presta sentida homenagem e agrade-ce profundamente o porfiado esforçode aturarem a nossa irreverência.Queira. Sr. Presidente do ConselhoDirectivo da Faculdade de Medicina, sero fiel depositário da nossa eterna grati-dão a esta casa, à qual estamos ligadospelo cordão umbilical da arte médica queabraçamos, e das memórias agudas pe-los bons tempos aqui passados.Na sua pessoa, abraçamos todos osque foram importantes para este nos-so percurso.A todos vós, muito, muito obrigado.

Alfredo Albuquerque

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I N F O R M A Ç Ã OConselho Nacional Executivo

A multiplicidade e a diversificação de even-tos médicos, a multiplicidade de entidadespúblicas ou privadas que os promovem, avariabilidade dos programas propostos eaplicados, na sua maioria designadas comoacções de formação, tornam indispensá-vel o estabelecimento pela Ordem dos Mé-dicos de um conjunto de regras de avalia-ção que permitam conferir-lhes o patro-cínio oficial.

Nesse sentido, o Conselho Nacional Exe-cutivo da Ordem dos Médicos criou o Con-selho Nacional para Avaliação da Forma-ção que se regerá pelas normas seguintes:

1ºO Conselho Nacional para Avaliação daFormação é constituído por um Coorde-nador e seis elementos, todos obrigatori-amente médicos.

2ºCompete ao Conselho Nacional Executi-vo nomear os elementos do Conselho Na-cional para Avaliação da Formação, sendodois por cada Secção Regional e o Coor-denador de entre o número de médicosinscritos na Ordem dos Médicos e no usode todos os seus direitos.

3ºCompete ao Conselho Nacional para Ava-liação da Formação a elaboração dos cri-térios e regulamento de avaliação, ouvi-dos os Colégios de Especialidade, cujaaprovação compete ao Conselho Nacio-nal Executivo.

4ºCompete ainda ao Conselho Nacionalpara Avaliação da Formação uma funçãoconsultiva e de observação dos eventosde formação médica.

5ºPara efeitos do presente regulamento,consideram-se passíveis de avaliação asreuniões médicas nacionais e internacio-nais da mais variada natureza, designada-mente, congressos, simpósios, jornadas ecursos, promovidas por instituições ouentidades orgânicas de ensino, assistênciae de investigação na área da saúde, públi-cas ou privadas, por sociedades científicasreconhecidas ou por instituições não mé-dicas que desenvolvam actividades cominteresse na saúde, desde que obrigatori-amente:1. Tenham actividades científicas com uma

Regulamento da Avaliação da Formaçãoduração mínima de três horas diárias.2. Quando as actividades científicas se de-senvolverem por vários dias, tenham umaduração máxima de quatro dias e um mí-nimo total de doze horas.

6ºSempre que se pretenda a realização deeventos de diferente duração estes devemser avaliados caso a caso pelo ConselhoNacional Executivo ouvido o ConselhoNacional para Avaliação da Formação.

7ºOs cursos de formação técnica e/ou prá-tica que precedam ou sigam o evento prin-cipal são avaliados separadamente.

8ºA entidade organizadora deve requerer aoConselho Nacional Executivo o pedido deavaliação com antecedência não inferior atrês meses relativamente ao início do even-to.

9º1. Do requerimento devem constar obri-gatoriamente os seguintes elementos:a) Designação;b) Datas e local;c) Entidade organizadora;d) Composição da Comissão Organiza-dora, com a indicação dos nomes e insti-tuições de origem;e) Composição da Comissão Científica,com a indicação dos nomes, títulos ougraus profissionais e vínculos institucionais;f) Programa, respectivo horário científicoe seus objectivos;g) Prelectores, com a indicação dos títu-los ou graus profissionais e vínculos insti-tucionais;h) Patrocínios científicos;i) Apoios financeiros e/ou comerciais;j) Revelação de eventuais conflitos de in-teresses.2. O requerente poderá juntar outros ele-mentos que julgar necessários, nomeada-mente indicações curriculares, avaliação ounão dos docentes e/ou dos discentes, con-trolo ou não das presenças, justificação dolocal do evento.

10ºO não cumprimento integral do dispostonos art. 8º e 9º determina o indeferimentoliminar do pedido de avaliação.

11ºA alteração do programa científico já ava-liado, se não devidamente justificada, podedeterminar a anulação pelo Conselho Na-

cional Executivo da avaliação concedida,ouvido o Conselho Nacional para Avalia-ção da Formação.A decisão de anulação, devidamente fun-damentada, deve ser comunicada à enti-dade organizadora e publicada no Bole-tim da Ordem dos Médicos.

12ºA avaliação atribuída é válida apenas parao evento em causa, não produzindo efeitopara realizações posteriores, ainda que deconteúdo semelhante.

13ºSão critérios obrigatórios de avaliação:a) a finalidade do evento;b) a credibilidade do programa;c) a qualificação dos prelectores.

14ºNão são elementos de avaliação e nempodem constituir elementos de valoriza-ção os programas de actividades social ououtras não científicas, incluídos ou associ-ados ao programa científico do evento.

15ºA decisão do Conselho Nacional Executi-vo é comunicada no prazo máximo de trin-ta dias após a data de recepção do pedidoe publicada na Revista da Ordem dos Mé-dicos.

16ºA entidade organizadora pode divulgar nosdocumentos informativos relacionadoscom o evento a atribuição da avaliação.

17ºO Conselho Nacional para Avaliação daFormação poderá solicitar à Comissão Ci-entífica do evento já realizado as informa-ções que achar convenientes para umamelhor apreciação do desenrolar do mes-mo.

18ºNão será concedido patrocínio científicoa eventos em que os palestrantes e assis-tentes sejam maioritariamente portugue-ses e tenham lugar fora do território naci-onal.

§ único: poderão excepcionar esta regraeventos que contribuam manifestamentepara a divulgação da cultura médica nacio-nal e resultem de acordos com entidadesoficiais de países da Comunidade Médicade Língua Portuguesa.

Aprovado em CNE de 15 de Março.

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I N F O R M A Ç Ã O

Foi aprovado pelo CNE em 15/03/2005o Memorando dos Colégios das Espe-cialidades de Medicina Geral e Familiare de Medicina Desportiva sobre a emis-são de atestados médicos para a práti-ca desportiva, conforme se transcreve: “1) A elegibilidade de prática regularde exercício não competitivo, com es-pírito recreativo ou de lazer, pode serfeita pelos Médicos de Medicina Gerale Familiar, Pediatras, de Medicina Des-portiva, ou outras Especialidades.

Emissão de atestados médicos para a prática desportiva

Conselho Nacional Executivo

2) A Formação Pós Graduada, opcional,em Medicina do Exercício Físico paraEspecialistas de Medicina Geral e Fa-miliar deve ser uma realidade.3) A elegibilidade para a prática de des-porto de competição, federado ou dealta competição deve ser feita por Mé-dicos Especialistas de Medicina Despor-tiva ou Médicos que expressamente as-sumam a sua competência para o actoou Médicos com formação Pós Gradu-ada em Medicina Desportiva.

4) Os Centros de Medicina Desporti-va, Federações, Associações e ClubesDesportivos com atletas profissionaisou de alta competição devem ter mé-dicos Especialistas de Medicina Despor-tiva5) O Internato da Especialidade de Me-dicina Desportiva deve ser remunera-do e devem ser abertas anualmente 10vagas no Concurso Nacional do Inter-nato Complementar do Ministério daSaúde, a iniciar em Julho de 2005.”

Sub-especialidadeem Medicina Materno-Fetal

Extracto de Acta da Reunião doConselho Nacional Executivo de15.03.2005

“Critérios de admissão por consenso ecurriculum tipo da Sub-especialidade emMedicina Materno-Fetal. Foi aprovada aproposta do Colégio de Ginecologia/Obstetrícia, conforme se transcreve:

“Critérios para atribuição do tí-tulo de Sub-especialista por con-senso1. Título de Especialista em Ginecolo-gia e Obstetrícia2. Exercer as funções de Especialista /Assistente de Ginecologia e Obstetrí-cia num Hospital de Apoio Perinatal Di-ferenciado, há pelo menos 5 anos.3. Responsável/Coordenador de Secto-res, Unidades Funcionais ou Serviçosna área da Medicina Materno-Fetal, taiscomo:3.1 Medicina Fetal / Diagnóstico Pré--Natal3.2 Consulta Externa de MedicinaMaterno-Fetal (inclui consultas diferen-ciadas de Doenças Hipertensivas, En-docrinologia/Diabetes, DoençasInfeciosas, Diagnóstico Pré- Natal)3.3 Internamento de Medicina Mater-no-Fetal /Gravidez de Alto Risco

4. Participação como Formador em Ac-ções de Formação Pós-Graduada naárea da Medicina Materno-Fetal .5. Autoria e/ou co-autoria de trabalhospublicados em revistas científicas da Es-pecialidade versando temas de Medici-na Materno- Fetal6. Palestras proferidas em ReuniõesCientíficas Nacionais e Internacionais,na área da Medicina Materno-Fetal

TITULAÇÃO COMO SUB-ESPECIA-LISTA EM MEDICINA MATERNO--FETAL PELA ORDEM DOS MÉDI-COSCANDIDATURA - CURRICULUMTIPOINTRODUÇÃO: De acordo com o Re-gulamento das Secções das Subespeci-alidades e das Comissões de Compe-tência aprovado pelo Conselho Nacio-nal Executivo em 25 de Janeiro de 2000,e com o Oficio 4088 de 11 /08/2004do Senhor Presidente da Ordem dosMédicos, cumpre-nos agora e numa pri-meira fase:1. Definir os Critérios de Atribuição daTitulação por Consenso2. Definir o modelo de candidatura aorespectivo titulo .Os Critérios, vinculativos, para Atribui-ção do Título de Subespecialista em Me-

dicina Matemo-Fetal constam de listaanexa.As Candidaturas deverão ser instruí-das com a submissão de Curriculum su-mário com o máximo de 10 folhas A4respeitando a lista de Critérios, ondeconstem:1. Documento comprovativo da inscri-ção no Colégio de Ginecologia e Obs-tetrícia da Ordem dos Médicos2. Documento comprovativo do tempode exercício profissional como Especia-lista/Assistente de Ginecologia e Obs-tetrícia ou de Obstetrícia num Hospitalde Apoio Perinatal Diferenciado (HAPD).3. Declaração da Direcção de Serviço /Departamento que comprove o exer-cício de funções de chefia/coordenação,tal como enunciado no ponto 3. da Lis-ta de Critérios.4. De modo discriminado, as participa-ções como Formador, Publicações e Pa-lestras, de acordo com os pontos 4., 5.e 6 da Lista de Critérios.As candidaturas conformes, deverão serenviadas à Direcção do Colégio de Gine-cologia e Obstetrícia que as submeterápara apreciação à Comissão Técnica daSub-especialidade. O período de aberturaa candidaturas será fixado em 3 (três)meses decorridos a partir do dia da publi-cação na Revista da Ordem dos Médicos.”

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14 Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005

A Comissão Nacional de Luta contra a SIDA (CNLCS) as-sumiu o compromisso de reduzir o índice de transmissãovertical, em Portugal, para valores iguais ou inferiores a 2%( meta 3 do Plano Nacional de Luta contra a SIDA 2004--2006).Foi constatado por este Colégio de Especialidade e pelogrupo técnico-científico da área Materno-Infantil da CNLCSque, muitos colegas que acompanham as mulheres grávidasnão cumprem, ainda, as directivas da Direcção Geral daSaúde no que diz respeito ao rastreio da infecção pelo VIH.Deste modo, e para que todos possamos colaborar nestamissão, divulgamos a norma que foi enviada a todos os Es-tabelecimentos de Saúde pelo Sr. Director Geral e AltoComissário da Saúde, Prof. Doutor José Pereira Miguel.

«De acordo com o European Centre for EpidemiologicalMonitory of AIDS, o número de novos casos diagnosticadosde infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH),adquirida por transmissão heterossexual, tem vindo a au-mentar. Em 2002, na Europa Ocidental, observou-se um au-mento de 23% em relação ao ano anterior de novos dia-gnósticos declarados de infecção adquirida por aquela via.Em Portugal, os casos notificados de infecção VIH/SIDA quereferem como origem provável a transmissão sexual (hete-rossexual) apresentam uma tendência evolutiva crescenteimportante. No 1º semestre de 2003, a categoria de “trans-missão heterossexual” correspondeu a 54,9% dos casosnotificados.Por outro lado, em cada ano no mundo, mais de 600 000crianças são infectadas pelo vírus, 90% das quais através damãe; à medida que aumenta o número de mulheres emidade fértil seropositivas, o número de crianças infectadaspode aumentar paralelamente.A transmissão do VIH através da mãe pode ocorrer duran-te a gravidez, o parto e o aleitamento. Na ausência de qual-quer intervenção estima-se que entre 15-30% dos filhos degrávidas seropositivas serão infectados durante a gravideze o parto e que, 10-20% o serão através do leite materno.A utilização de medidas preventivas específicas naquelesperíodos, reduzem a transmissão da infecção para valoresinferiores a 8-10%, podendo mesmo atingir valores inferio-res a 2%.Nesse contexto, a prevenção da transmissão mãe-filho doVIH representa, cada vez mais, uma das estratégias essenci-ais no combate à propagação da SIDA. A realização do tes-te específico para o VIH na preparação e durante a gravi-dez, para além de possibilitar a adopção das medidas ne-cessárias para a redução do risco de transmissão perinatalpermite à mulher, no caso de seropositividade assintomática,ter acesso precoce aos cuidados apropriados de saúde e

I N F O R M A Ç Ã OColégio de Especialidade de Obstetrícia e Ginecologia

Directivas sobre rastreio da infecção pelo VIHmelhorar o prognóstico da sua doença.O pedido de serologia VIH às grávidas nem sempre temsido efectuado, no nosso País, de acordo com as recomen-dações dos organismos especializados. Nesse contexto, aDirecção Geral da Saúde no âmbito das suas competênciase de acordo com a Comissão Nacional de Luta Contra aSida determina que:

1. sejam desenvolvidos esforços no sentido de se alertar oscidadãos/ãs, em particular as mulheres em idade fértil paraas vantagens de efectuar a serologia VIH antes e durante agravidez;

2. os responsáveis pelos serviços de saúde incrementem asmedidas tendentes a garantir o acesso à informação e aoaconselhamento sobre VIH/SIDA, assim como à efectivaçãovoluntária do teste, no contexto dos cuidados pré--concepcionais e prénatais;

3. a serologia VIH deve realizar-se após o consentimento es-clarecido da mulher e com aseguinte calendarização:• no período pré-concepcional, no contexto da Circu-lar Normativa nº2/DSMIA de 1998.• no período pré-natal - realização de duas serologias,podendo a sua periodicidade ser alterada em função desituações clínicas específicas.

1ª serologia realizada até 14 semanas de

gestação

Repete às 32 semanas

1ª serologia realizada após as 14 semanas de gestação

Repete às 32 semanas

Serologia não realizada ou desconhecida

e grávida em trabalho de parto

Teste rápido

Os resultados positivos devem ser confirmados, com ur-gência, pelo método de Western blot.Deve ser estimulada a participação do futuro pai no acon-selhamento e realização simultânea do teste.

4. a grávida seropositiva deve ser imediatamente referenci-ada para a consulta de Alto Risco Obstétrico do Hospitalde Apoio Perinatal onde as questões relativas ao seguimen-to da gravidez serão discutidas e instituída a terapêuticaantiretroviral, no contexto da situação clínica em causa.De acordo com o conhecimento científico actual, é reco-mendada a cesariana electiva atendendo à redução do ris-co de transmissão materno-fetal. Deve ser agendada paraas 38 – 39 semanas de gestação e ser obtido o consenti-mento informado.

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Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005 15

Não está documentado o benefício da cesariana se a grávi-da já estiver em trabalho de parto ou após a rotura demembranas. No parto vaginal, as manobras invasivas devemser evitadas, estando contra-indicada a utilização de fór-ceps ou ventosa.Está indicada a terapêutica com zidovudina intraparto; aperfusão endovenosa deve ser iniciada 3 a 4 horas antes dacesariana electiva ou, se o parto for via vaginal, no início dascontracções.O aleitamento materno está desaconselhado, devendo serinibida a lactação.A utilização futura de um método contraceptivo deve serdiscutida durante a gravidez e ficar definida antes da alta,com encaminhamento precoce para uma consulta de Pla-neamento Familiar.

5. a grávida não infectada deve ser informada sobre as con-sequências de adquirir VIH durante a gravidez e o aleita-mento e orientada sobre as medidas adequadas de preven-ção. Há que promover a participação dos homens e a par-tilha de responsabilidade na redução dos comportamentosde risco.

Aconselhamento pré e pós-teste

A realização da serologia VIH em grávidas sem aconselha-mento prévio e sem o seu consentimento é uma práticainaceitável que colide com a autonomia e os direitos damulher e pode ter como consequência, entre outras, o seudistanciamento dos serviços de saúde.O aconselhamento pré e pós teste são elementos essenci-ais na conduta clínica da infecção por VIH na gravidez edeve ser levado a cabo por um profissional competentenas técnicas de aconselhamento e nas questões relativas agravidez/VIH e conhecedor dos procedimentos dos servi-ços de referência.O Director-Geral e Alto Comissário da SaúdeProf. Doutor, José Pereira Miguel

Colégio da Especialidade de Patologia Clínica

Parecer sobre a actividadedo interno complementarO Colégio da Especialidade de Patologia Clínica emitiu oseguinte parecer: «De acordo com o Regulamento doInternato Complementar (Portaria nº 695/95, de 30 deJunho) e o Estatuto da Ordem dos Médicos, a actividadedo interno complementar não pode ser exercida, noâmbito da especialidade, de uma forma autónoma, peloque o mesmo não poderá integrar uma escala de urgên-cia da especialidade sem a presença de um especialista.»

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E N T R E V I S T A

Revista da Ordem dos Médicos -Qual foi o ponto de partida da Vossainvestigação e a que objectivos se pro-punham?Fernando Domingos - O nosso ob-jectivo era tentar perceber, nos doen-tes que têm litíase cálcica recorrente,quais as causas dessa recorrência nanossa população em concreto poisexistem vários trabalhos internacionaismas cujas conclusões são naturalmen-te aplicáveis a uma população especí-fica com uma determinada dieta. Que-ríamos perceber de que modo a dietaportuguesa influenciava este tipo dedoença pois nos últimos anos tem-seregistado um aumento progressivo donúmero de casos. O abandono doshábitos alimentares tradicionais, coma passagem a uma dieta mais industri-alizada com mais proteínas, sal, e, pro-vavelmente, com algumas mudançasmais subtis em relação a outros ali-mentos como leite e seus derivados,são uma das causas desse aumento.Outro dos nossos objectivos era tera percepção de como a doença é en-tendida tanto pela população comopela classe médica. A litíase é umadoença habitualmente tratada de for-ma superficial: a maior parte dos nos-sos doentes quando tinham cólicas li-mitavam-se a ir às urgências onde lheseram prescritos analgésicos e depoisnão havia qualquer acompanhamentoposterior ou qualquer tratamentomédico preventivo de novos episódi-os. Portanto o que nós queríamos ten-tar perceber era quais eram as causas,qual o tipo de acompanhamento mé-dico efectuado nestes doentes e atéque ponto é que havia consequênciasdesta doença em termos de outraspatologias associadas pois era prová-vel que existissem implicações, nomea-damente, ao nível da hipertensão, dadoença óssea, etc.

Não existe uma cultura de investigaçãoem PortugalAdelaide Serra e Fernando Domingos, nefrologistas,foram galardoados com o Prémio Bial de MedicinaClínica pelo trabalho «Avaliação nefrológica de umapopulação com litíase cálcica idiopática recorrente -experiência de sete anos de Consulta de Nefrolitíasedo Serviço de Nefrologia do Hospital de Santa Maria».Considerando que não existe uma cultura deinvestigação em Portugal, estes médicos referemainda as dificuldades porque passaram paradesenvolver esta investigação, nomeadamente aincompreensão por parte dos Serviços e a quase totalfalta de incentivos e apoios. A atribuição deste prémiotraduziu-se num estímulo para continuarem o seutrabalho, numa área até agora pouco ou nadaestudada: o tratamento da litíase cálcica.

Adelaide SerraFernando Domingos

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E N T R E V I S T A

ROM - Quais foram as conclusõesmais relevantes?Adelaide Serra - Concluímos que,basicamente, não é feito um estudomédico destes doentes, apesar de te-rem já formas graves da patologia poiseram já referenciados, com muitascomplicações e cólicas de repetiçãomuito frequentes. Apesar de tudo issonunca nenhum deles tinha feito umestudo para se tentar perceber por-que tinham tantas cólicas renais e por-que é que estavam sempre a formarnovos cálculos. Nenhum dos doentesque vimos na consulta tinha efectua-do esse estudo e estamos a falar deum universo de 194 pessoas (mas oitonão completaram o estudo).Concluímos portanto que não há esseestudo médico da doença e que, namaior parte das vezes, ou não se feznada para tratar de facto a patologiaou quando se fez algum tipo de acom-panhamento as medidas recomenda-das tinham validade cientifica duvido-sa: a maior parte dos doentes a quemtinham sido feitas algumas recomen-dações referiram que lhes tinha sidodito para beberem mais água e parareduzirem o cálcio na dieta, se a pri-meira é correcta, já em relação à se-gunda está cientificamente provadoque na maior parte dos casos a au-sência de cálcio é contraproducente epode mesmo agravar a doença.

ROM - A que se deve essa falta detratamento médico?AS - Como disse durante a investiga-ção ou não detectámos qualquer tipode tratamento médico ou as recomen-dações tinham sido incorrectas. Istodecorre de se ter desenvolvido muitoa parte cirúrgica/urológica das com-plicações da cólica renal. A populaçãoem geral e a classe médica em parti-cular, analisam a cólica renal sem sepreocuparem com o que está por trás

da mesma. Em Portugal ninguém efec-tuou estudos sobre a litíase renal, oque se alterou ou o que se pode cor-rigir para diminuir a reincidência deepisódios. Não se analisa a cólica comoum sintoma de uma doença crónicasubjacente que é a litíase. Não nosestamos a referir a casos em que háuma cólica renal esporádica, mas simàs formas recorrentes: quando há for-mação constante de cálculos é porqueexiste naturalmente alguma alteraçãometabólica como causa.

ROM - Conseguiram detectar essasalterações?AS - Nos doentes que estudámos con-seguimos identificar as alterações em95% dos casos e em 95% dos casos foipossível corrigi-las e controlar adoença. Estamos a falar de uma formaidiopática, portanto não sabemos exac-tamente qual é o distúrbio do rim queas provoca, mas conseguimos identifi-car as alterações que os doentes apre-sentam na urina e, corrigindo-as, con-seguimos controlar a doença, reduzin-do o número de cálculos formados ede cólicas e o desenvolvimento decomplicações. É portanto possível,através de um estudo metabólico edietético adequado, efectuar um con-trolo médico da litíase sem deixar queobrigatoriamente progrida para as for-mas mais graves e que necessite deintervenção cirúrgica.

FD – A terceira coisa a que consegui-mos responder foi que existem rela-ções muito bem definidas entre a die-ta e os episódios de litíase. Como ex-pliquei havia três coisas que quería-mos saber: causas, consequências equal a abordagem médica efectuada. Acausa são as alterações metabólicasmas essas estão muito relacionadascom o tipo de dieta, particularmentecom o aumento das proteínas animais,

com o excesso do consumo de sal ecom a redução do consumo de cálcio.Estas três mudanças dietéticas têmuma nítida relação com as alteraçõesque encontrámos na urina.

ROM - Quanto tempo durou o estu-do?AS - Foram sete anos de recolha eanálise de dados e mais dois anos depreparação do trabalho. O estudo ava-lia de Dezembro de 1996 a Dezem-bro de 2003 mas esse foi «apenas» otempo de consulta.

ROM - O controlo que efectuaramda doença, foi mediante a mudança dadieta praticada?FD - Na maior parte dos doentes adieta é suficiente para corrigir as alte-rações encontradas. O problema é quea dieta pode não ter este efeito pro-tector a longo prazo porque os doen-tes dificilmente aderem a alteraçõesdos hábitos alimentares. As alteraçõesque inserimos na dieta dos doentesque fizeram parte do estudo ao finalde três meses estavam corrigidas, comexcepção do cálcio. Mas quando deixade existir cólicas, geralmente os do-entes começam a não cumprir a dietacorrecta.

ROM - O que significou a atribuição

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E N T R E V I S T A

deste Prémio Bial de Medicina Clínicaao Vosso trabalho “Avaliação nefroló-gica de uma população com litíasecálcica idiopática recorrente - experi-ência de sete anos de Consulta deNefrolitíase do Serviço de Nefrologiado Hospital de Santa Maria”?AS – Quando enviámos o trabalhopara concorrer ao Prémio, sincera-mente, não estávamos à espera de ga-nhar. O nosso objectivo era divulgaro que tínhamos feito para que alguémanalisasse o estudo e dissesse se omesmo tinha alguma importância. Paranós naturalmente que tinha pois foiuma longa experiência, que envolveuum número significativo de doentes.Foram quase nove anos de muita per-sistência, de muito trabalho extra, tra-balho esse que foi feito com algumadificuldade. Portanto quando soube-mos que tínhamos ganho o prémiosentimos uma grande satisfação porver o nosso trabalho realmente re-conhecido. Foi o momento em quesoubemos que realmente tinha vali-do a pena perseverar e acabar o tra-balho.

ROM - Que tipo de dificuldades?AS - A investigação clínica é extre-mamente difícil em Portugal e, comodizia o Prof. Martins Correia na en-trega do prémio, é quando muito to-

lerada, nunca incentivada. Penso queisso foi um pouco o que aconteceuconnosco. Foi tolerado que fizésse-mos a investigação clínica. Ainda quea mesma tenha sido exclusivamentefeita por nós com a ajuda da Dr.ªConceição Salgueiro, que era a cole-ga do laboratório do Serviço deNefrologia que fez os milhares deanálises que foram precisas para esteestudo, também muitas vezes fora dahora e com muito empenho. Não ti-vemos apoios de ninguém.

ROM - Concordam que este tipo deprémios além do prestígio e reconhe-cimento que acarretam podem funci-onar como factor de incentivo parao desenvolvimento da investigação?AS - Sem dúvida que sim. Não ape-nas em termos financeiros, sendo quetambém não existem apoios a essenível, mas em termos de divulgaçãodos trabalhos estes prémios são ex-tremamente importantes. Há muitostrabalhos em investigação que fre-quentemente não saem da gavetaporque não há quem os divulgue enão há incentivos para continuar. Amaior parte das vezes esses trabalhossão feitos com um objectivo específi-co, serem por exemplo apresentadosnum congresso, e depois não são de-senvolvidos. São estudos que nuncasão conhecidos e provavelmente al-guns teriam muito interesse. Nesseaspecto estes prémios são muito im-portantes por divulgarem o que sefaz em termos de investigação.

ROM - Verificou-se este ano que hou-ve um decréscimo do número de can-didaturas na área da investigação clíni-ca. Consideram que esse facto corres-ponde a uma diminuição da própriainvestigação clínica efectuada?FD – Considero que a investigaçãoclínica está de facto a diminuir acen-tuadamente: de ano para ano nota-mos que cada vez menos pessoas têminteresse em fazer investigação séria.É evidente que se faz muita coisa aque se dá esse nome mas para mimnão se trata de verdadeira investiga-ção: são pequenos trabalhos que se

fazem com interesses curricularesmas que não têm qualquer conse-quência ou utilidade prática para apopulação e não são desenvolvidos.Os estudos clínicos com maior dura-ção e maior empenho são normal-mente muito penosos de efectuarpois não existem de facto apoios ne-nhuns. Os próprios Serviços não es-tão muitas vezes interessados emmantê-los e é frequente que as pes-soas que investem muito tempo nes-te tipo de trabalho comecem dentrodos próprios serviços a serem des-valorizados pois é considerado queestão a perder tempo.

ROM - Essa falta de apoios é a prin-cipal razão para a diminuição da in-vestigação clínica?FD – É uma das principais. Outromotivo que faz com que a investiga-ção clínica tenda a desaparecer, a me-nos que se concretizem mudanças ra-dicais, é o facto de não existir umaverdadeira cultura de investigação:podemos considerar que há duas li-nhas de investigação: a investigaçãodas ciências básicas mais laboratoriale referente a situações muito especí-ficas, e a investigação clinica que é feitadirectamente com doentes, de apli-cação imediata e que pode trazer re-sultados imediatos. Mas não existeessa cultura a começar pelas as pró-prias faculdades onde os estudantesnão são ensinados a investigar e mui-to menos a entender a investigação.Isto tem uma consequência gravíssima:hoje, muitos médicos, particularmen-te entre os recém-formados, não têmcultura de investigação sequer paraavaliar a qualidade dos trabalhos quelhes são apresentados e, portanto, sãoextremamente vulneráveis apretensas novidades. Não conseguemsequer discernir se aquilo que lhes éapresentado é um trabalho com qua-lidade, importância e relevância paraa sua prática clínica ou se, pelo con-trário, se trata de algo realizado cominteresses de propaganda.

ROM - Como se poderá inverter estasituação?

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E N T R E V I S T A

FD – As soluções implicam, para co-meçar, uma mudança de mentalidades:é necessário sensibilizar a classe mé-dica para esta realidade e isso temque se começar nas próprias faculda-des de medicina, ensinando a investi-gar ou, pelo menos, a como é feitauma investigação com qualidade.

ROM - A estrutura hospitalar não va-loriza portanto a investigação clíni-ca?AS – Considero que grande parte dasdificuldades que a investigação clinicaenfrenta decorrem do facto da estru-tura hospitalar não estar preparadapara o desenvolvimento dessa activi-dade e de não a valorizar: o que su-cede quando os Serviços toleram quefaçamos estudos é termos que fazertoda a rotina diária, sendo a investi-gação sempre para além do nosso ho-rário. Quando estávamos a tratar dealgo que dissesse respeito à investi-gação, a atitude geral do Serviço erade que estávamos a ‘roubar tempo’ àrotina e consideravam, portanto, quehavia outros colegas a trabalhar paranós podermos estar a desenvolver ainvestigação. Toda a estrutura hospi-talar está organizada exclusivamentepara a vertente assistencial. Não háespaço, nem físico, nem temporal, parainvestigar.

ROM - E quanto às verbas necessá-rias ao desenvolvimento da investiga-ção, há dificuldade na obtenção deapoios?FD - Não existem quaisquer apoios:as bolsas actualmente atribuídas des-tinam-se não a quem está interessa-do em fazer investigação mas a quemjá desenvolveu muito trabalho nessaárea. Como é que se faz uma investi-gação como esta? A nossa solução foisimples: estávamos a tratar doentesna consulta e à medida que íamos fa-zendo as análises necessárias a essetratamento íamos recolhendo os da-dos obtidos para a nossa análise. Evi-dentemente que não tivemos nenhumapoio para isto e todo o trabalho foiefectuado depois do horário de ser-viço. Apesar disso, este trabalho tor-

nou-nos menos bem vindos.

ROM - Menos bem vindos?FD – É uma situação caricata masmuitas pessoas do próprio Serviço meaconselharam a parar a investigação.Tínhamos apoio de Colegas de ou-tros Serviços, mas não do nosso. Averdade é que, hoje, nenhum de nósestá no Serviço de Nefrologia e con-sidero que foi porque este trabalhonos tornou incómodos... À medidaque a consulta se foi tornando co-nhecida por incidir numa patologiaque tradicionalmente não era trata-da, o número de doentes começou aaumentar. Isto para o Serviço é en-tendido como um aumento de traba-lho... O grupo em estudo, doentescom litíase cálcica recorrente, era dequase 200 indivíduos mas a consultade nefrolitiase tinha cerca de 600doentes. Penso que outro factor re-levante para esse desconforto que onosso trabalho provocou tem a vercom o espírito português: se num Ser-viço alguém está a fazer algo que osoutros entendam que tem algum mé-rito, essa pessoa é posta de lado poishá uma cultura da mediania.

ROM - Quando saíram da Consulta?FD – A Dr.ª Adelaide esteve na con-sulta até 2002. Quando o hospitalterminou o seu contrato fiquei semapoio para assistir a 600 e tal do-entes e ainda tinha que continuar ainvestigação. Nessa altura já nãochegavam os feriados, as noites e asférias...

AS – Claro que havia outros cole-gas nefrologistas no Serviço, masnão havia ninguém com interessenesta área ou preparado para aju-dar na consulta.

FD – Mais tarde saí eu e a verdade éque a consulta de nefrolitiase parounessa altura deixando os cerca de 600doentes sem assistência. A consultaparou porque ninguém nos substituiu.Uma das razões porque ficámos sa-tisfeitos com este prémio foi preci-samente pelo facto de vermos reco-

nhecido algo que o Serviço onde es-távamos inseridos já não era capazde reconhecer. Este foi o grande in-centivo para nós eventualmente con-tinuarmos a fazer investigação.

ROM – Mas, apesar de tudo, preten-dem continuar a fazer investigação...AS – E queremos continuar com otrabalho pois consideramos que so-mos as pessoas mais preparadas nes-ta área e não podemos desistir, te-mos que continuar.

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A. Poiares Baptista, Coordenadorda Conselho Nacional para a Ava-liação da Formação da Ordemdos Médicos (CNAF), consideraque a aplicação correcta do re-gulamento que estabelece os cri-térios essenciais para que os even-tos na área médica sejam consi-derados credíveis trará umamaior credibilidade às reuniões ci-entificas. Sendo que «nenhumaprofissão pode dispensar ou des-valorizar a formação contínua»,Poiares Batista reconhece à me-dicina um dever acrescido nessecontexto e espera empenho porparte dos médicos em elevar oseu nível cientifico e profissional,«dignificando a profissão que li-vremente escolheram» pois«.todo o médico que não acom-panhe a evolução da ciência mé-dica rapidamente estará profissi-onalmente desactualizado, comas prováveis consequências funes-tas para os doentes que a ele re-correm».

Revista da Ordem dos Médicos -Em traços gerais. que trabalho está aser desenvolvido pelo Conselho Na-cional para a Avaliação da Formação?A. Poiares Baptista - A primeira ta-refa do Conselho foi a de elaborar umregulamento estabelecendo os crité-rios considerados essenciais para queos congressos, simpósios ou outroqualquer evento na área médica quetenham como objectivo a educaçãomédica, possa ser considerado credível.Este regulamento, previamente subme-tido à consulta de todos os Colégiosdas Especialidades, foi já apresentadoao Conselho Nacional Executivo eaprovado. Entre outros pontos, nele

se estipula a duração diária mínimaduma reunião, é exigida a indicação dostemas, do programa e respectivo ho-rário, a indicação das comissõesorganizadora e científica, a identifica-ção dos prelectores e seu grau profis-sional, etc. Os dados exigidos são osque habitualmente constam nos pro-gramas e anúncios dos eventos nacio-nais ou internacionais reputados. Étambém estabelecido o prazo mínimodo pedido de avaliação e prazo máxi-mo de resposta.ROM - Que contributos traz o novoregulamento para a avaliação da for-mação?APB - O CNAF baseou-se em critéri-os que hoje são internacionais e na jáalguma experiência que temos tido. Co-mo é do conhecimento geral, e sobre-tudo no nosso meio médico, a indefi-nição que tem havido propiciou algumasreuniões que na realidade pouco tinhamde científico e de formação médica, eque serviam essencialmente de pretex-to para passeios turísticos e de lazer.Creio que a aplicação do regulamentoterá também um papel pedagógico.Estamos certos de que a exigência e aaplicação correcta do regulamento tra-rá uma melhoria, ou pelo menos, umamaior credibilidade das reuniões mé-dicas que obtiverem avaliação favorá-vel. O CNAF dará o seu parecer apedido das entidades interessadas, ba-seado nos elementos enviados e exi-gidos. Ao CNE cabe sancionar (ounão...) o parecer. A apreciação doseventos realizados no estrangeiro, eportanto sem a responsabilidade dasentidades portuguesas, deve reger-sepelos mesmos critérios gerais. Creio,contudo, que a sua avaliação não le-vantará grandes problemas pois oscritérios por nós propostos são os

aplicados, desde há muito, nas reuni-ões internacionais ou estrangeiras deprestígio.ROM - A educação médica contínuaé um imperativo ético. De que formapode um médico fazer face à necessi-dade de actualização permanente ten-do em conta a falta de apoios e incen-tivos a essa formação?APB - Creio que nos tempos de hojenenhuma profissão pode dispensar oudesvalorizar a formação contínua. Namedicina ela tem particular importân-cia pois a nossa função primordial édiagnosticar, tratar e acompanhar apessoa doente de modo correcto emais eficaz. Para tal temos que estu-dar, que aprender e que praticar re-correndo aos melhores meios e aosmelhores métodos. Há várias décadas,o que nos ensinavam e o que aprendí-amos durante o curso tinha um pe-ríodo de “validade” relativamente di-latado. Era nos congressos anuais oude maior periodicidade que se apre-sentavam as novidades, era em algu-mas revistas mais reputadas que se liame se aprendiam essas mesmas e ou-tras novidades, e era sobretudo nasreuniões periódicas promovidas pelassociedades científicas médicas, pelosserviços hospitalares ou pelas Facul-dades, nos chamados “cursos de actu-alização” ou “cursos de férias” (emgeral tinham lugar no início do tempode férias...) que os médicos procura-vam actualizar os seus conhecimentos,ouvindo os colegas de maior prestí-gio. Tudo isto se justificava porque osnovos conhecimentos, as novidadesterapêuticas e de diagnóstico surgiamde onde em onde e a sua difusão erarelativamente lenta. Hoje, nada distose verifica. A ciência médica, como to-das as outras, desenvolve-se num rit-

A educação médica contínua tem sidosatisfatória mas nem sempre devidamentecoordenada e avaliada

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Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005 21

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A. Poiares Baptista – Professor Catedrático Jubiladode Dermatologia da Faculdade de Medicina deCoimbra; Coordenador da Conselho Nacional para aAvaliação da Formação (Ordem dos Médicos)

mo tal que não raramente temos difi-culdade em acompanhar e sobretudoem formular um juízo de valor, emseleccionar o que realmente tem in-teresse na prática clínica.Todo o médico que se isola e que nãoacompanhe a evolução da ciência mé-dica rapidamente estará profissional-mente desactualizado, com as prováveisconsequências funestas para os doen-tes que a ele recorrem.. .Daqui a ne-cessidade da educação médica contínuapara todo o médico e durante toda asua actividade profissional. Como pro-ceder? É um problema que, creio, difi-cilmente será resolvido. Entre nós, omédico que se desloca para assistir ouparticipar numa actividade de educa-ção médica excepcionalmente tem apoi-os estatais. Quando muito dispensa doserviço e possível valorização curricu-lar. Nalguns países europeus, a frequên-cia de um determinado número de reu-niões de formação oficialmente apro-vadas origina benefícios fiscais e valori-zação nos acordos com as companhiasde seguro de saúde.Também a quase totalidade das inicia-tivas não tem apoio estatal. Na reali-dade, como todos sabemos e temos aexperiência, é o apoio da indústria far-macêutica que permite que tais even-tos se realizem e tenham a participa-ção dos médicos... Devemos dizer quefelizmente assim é! Também é certoque a indústria farmacêutica tem boasrazões para assim proceder... e dissonão as podemos criticar, desde queactuem segundo princípios éticos porambas as partes, médicos e indústria.ROM - Concorda que cada vez maisé preciso investir, valorizar e validar aformação, especialmente se tivermosem conta que a saúde é um sector di-nâmico em que há uma permanenteevolução tecnológica e cientifica?APB - Pelo que disse anteriormente,a resposta é evidentemente, afirmati-va. A actividade clínica dos médicos écada vez mais sujeita à “vigilância” dospacientes, confrontada muitas vezescom as informações, por vezes detur-padas ou incompletas, divulgadas pelaimprensa, TV ou Internet. O médicotem que estar em condições de saber

julgar e agir do modo mais correcto econsciente.ROM - Que análise faz da qualidadeda formação no nosso país?APB - As acções de formação médicacontínua em Portugal, como na maio-ria dos países, tem sido efectuadaessencialmente pelas Sociedades Mé-dicas e pelos serviços hospitalares.Muitas têm já longa tradição da activi-dade curricular de mérito, com pro-gramas regulares de cursos de actua-lização. A qualidade dos programas é,na grande maioria dos casos, de lou-var, pois tem tido a preocupação deestabelecer programas de interesse ede obter a frequente colaboração decolegas nacionais e/ou estrangeiros denomeada. Embora as Faculdades deMedicina tenham estado alheadas des-tas iniciativas, a participação regulardos seus elementos tem dado valiosocontributo.Creio poder afirmar que globalmen-te, a educação médica contínua nacio-nal tem sido efectuada de modo satis-fatório, embora nem sempre devida-mente coordenada e avaliada. Há tam-bém que ter em conta as várias reuni-ões de carácter internacional anual-mente realizadas no país e que muitotem contribuído para a valorização domeio médico nacional.ROM - Deseja acrescentar algum pon-to que considere relevante neste con-texto?APB - Talvez evocar alguns. Muitas ve-zes é-nos pedido o patrocínio parauma determinada reunião. Na verda-de o CNAF não concede patrocínios,apenas procede à apreciação do even-to segundo os princípios estabeleci-dos e dá o seu parecer afirmativo ounegativo, isto é, avaliação favorável oudesfavorável.Outro ponto muito falado e criticado,e que tem dado origem a comentári-os desagradáveis, é o da efectiva pre-sença dos médicos inscritos. O con-trolo da presença é sempre um assun-to discutido mas não eficazmente re-solvido. Naturalmente que caberá àorganização o respectivo controlo.Contudo convenhamos que na reali-dade a presença dos inscritos depen-

de do interesse do tema, da qualidadeda exposição, do prestígio do prelectormas fundamentalmente da consciên-cia de cada um...Também a avaliação dos prelectores eda qualidade dos temas apresentadostem sido discutida. Reuniões há em queessa avaliação é feita por intermédiode questionários entregues aos assis-tentes. Julgamos ser um bom modo deavaliação e que permitirá aos respon-sáveis das reuniões futuras, corrigirpossíveis falhas. A execução deste tipode avaliação seria um importante dadode valorização Porém também aquicabe à organização a sua efectivação.Um último ponto a considerar é a di-fícil e muito discutida questão da atri-buição dos créditos. Na verdade pou-cos são os países que a praticam. Nãopenso que seja, entre nós, e por en-quanto, um ponto prioritário.Como conclusão, devemos esperarque o empenho dos médicos, consci-entes das suas responsabilidades e ba-seados na análise critica da experiên-cia adquirida, possam e desejem me-lhorar a sua “educação médica conti-nua”, elevando o seu nível cientifico eprofissional, dignificando a profissãoque livremente escolheram.

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Revista da Ordem dos Médicos - Seria possível referir--me brevemente da missão e objectivos da Fundação Bial e dopapel que os prémios Bial têm, em seu entendimento, no de-senvolvimento da investigação, especialmente ao nível nacio-nal?Luís Portela - A Fundação Bial foi criada em 1994 com oobjectivo de promover a investigação na área da Saúde, impul-sionando e incentivando o estudo científico do homem nassuas várias vertentes. Tem sido esta a nossa acção, quer atra-vés da atribuição de Bolsas de Investigação Científica, nas áre-as da psicofisiologia e da parapsicologia, quer através da pro-moção do Prémio Bial. O Prémio visa distinguir trabalhos mé-dicos em geral, e em particular trabalhos dirigidos à práticaclínica, que se distingam pela sua qualidade e que representem

uma investigação de grande re-levância para o apro-fundamento do conhecimen-to do Homem. O Prémio Bialé actualmente um prémio in-ternacional; temos recebidocandidaturas de vários paísese a edição de 2004 premioudois trabalhos de investigado-res espanhóis. É também ogalardão de maior valor pecu-niário atribuído no nosso país.Acho por isso que o PrémioBial é um galardão reconheci-do e constitui um apropriadoincentivo para todos os médi-cos e cientistas que se dedi-cam à investigação em Portu-

A investigação é uma das prioridadesda Indústria Farmacêutica

gal e além fronteiras.

ROM - Que tipo de retorno/mais valias considera que a In-dústria Farmacêutica tem ao investir verbas avultadas no apoioà formação e investigação dos médicos?LP - A investigação é uma das prioridades da Indústria Farma-cêutica. Não se trata de obter retorno/mais valias, mas sim dedar expressão a uma área estratégica da indústria farmacêuti-ca. Refiro-me, por um lado, à investigação de base, através dapesquisa de novas soluções terapêuticas, para que continua-mente sejam colocados no mercado produtos inovadores quepossam fazer frente às diversas patologias que afectam o serhumano. Por outro lado, refiro-me também ao apoio à investi-gação feita por terceiros. No caso da Bial, para além do traba-lho desenvolvido nos nossos departamentos de Investigação eDesenvolvimento, também as actividades da Fundação Bial sãoexemplos de como assumimos a investigação como área es-tratégica da nossa actividade. A grande mais valia da IndústriaFarmacêutica está em proporcionar mais e melhor vida à po-pulação.

ROM - Um dos principais problemas da investigação nacionalé, numa primeira fase, a falta de apoios e posteriormente anão divulgação alargada dos trabalhos elaborados. Consideraque a Fundação Bial, e outras similares, contribuem paraminimizar os dois problemas citados na questão anterior? Deque forma?LP - Como refere, a investigação é uma área muito trabalho-sa, muito morosa, que enfrenta vários obstáculos e se debatecom a falta de apoios. Com o Prémio Bial queremos premiaros que se dedicam a esta área e que contribuem para quetodos os dias se descubra, se conheça, se progrida no conhe-cimento científico. O Prémio Bial, quer pela divulgação públicados trabalhos vencedores, quer pela publicação, numa primei-ra edição exclusiva da Fundação Bial de cerca de dez mil exem-plares, do trabalho galardoado com o Prémio Bial de MedicinaClínica, e eventualmente de outros trabalhos vencedores, dáresposta a uma das dificuldades apontadas na sua questão, ouseja, a divulgação dos trabalhos elaborados. Por outro lado,quando fala da falta de apoio para a investigação, consideroque o próprio valor pecuniário do Prémio Bial constitui umaboa ajuda para que os investigadores possam dar continuida-de aos seus trabalhos. No entanto, esse é um trabalho muitomais amplo que exige a cooperação de todo um conjunto deagentes - políticos, educativos, empresariais, científicos, etc…-. O Prémio Bial e as nossas Bolsas de Investigação são apenasdois contributos da Bial para que a investigação possa ser uma

A propósito da recente atribuição dos respectivos prémios,conversámos com o presidente da Fundação Bial, LuísPortela sobre a situação da investigação em Portugal e oposicionamento da indústria neste âmbito. Luís Portelareconhece que ainda não existe uma cultura de investiga-ção e desenvolvimento em Portugal mas considera que aindiferença política a esse nível está a desaparecer e real-ça o facto dessas áreas começarem a ser incluídas «naordem do dia» dos decisores. Sobre a Fundação Bial e oseu papel no apoio à investigação, «uma área muito tra-balhosa, muito morosa, que enfrenta vários obstáculos ese debate com a falta de apoios», destaca, além do valorpecuniário dos prémios e bolsas atribuídos, a divulgaçãoque é feita dos trabalhos vencedores.

Luís Portela, presidenteda Fundação Bial

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realidade no nosso país. A Fundação assume aqui o papel decatalisador.

ROM - Como define a postura da Bial no âmbito da investiga-ção e desenvolvimento?LP - A Investigação e Desenvolvimento de novas soluçõesterapêuticas é uma área crucial da missão e da estratégia deBial. Em 1993 constituímos um Centro de Investigação e De-senvolvimento no Porto e, em 1998, em Bilbau. É nestes doiscentros que investimos de forma continuada na busca de no-vas soluções terapêuticas.No Centro de Investigação e Desenvolvimento do Porto reu-nimos uma equipa internacional de cerca de 63 técnicos espe-cializados que tem desenvolvido investigação nas áreas do sis-tema nervoso central e cardiovascular. Em Bilbau as activida-des do nosso departamento centram-se na área da alergologia.Temos até ao momento seis moléculas patenteadas a nívelmundial entre as quais um anti-epiléptico (em fase III de en-saio clínico) e um anti-parkinsoniano (em fase II). Esperamos,em 2008, colocar no mercado mundial, à disposição de todosos médicos, o primeiro medicamento de raiz portuguesa.O percurso de Bial nesta matéria tem sido inovador e pionei-ro no nosso país. Bial é o grupo farmacêutico português quemais investe em Investigação e Desenvolvimento (entre 15% a20% da sua facturação global). Temos como lema “Ao Serviçoda Saúde” e acreditamos que a Inovação é o caminho a seguirpara que possamos proporcionar uma maior qualidade de vidaa todas as pessoas.

ROM - Podia tecer um comentário em relação aos investiga-dores premiados e trabalhos galardoados deste ano?LP - Os vencedores do Prémio Bial são escolhidos por umjúri autónomo e independente que é constituído por repre-sentantes dos Conselhos Científicos de cinco escolas de me-dicina. O júri da edição de 2004 do Prémio Bial foi presididopelo Prof. Martins Correia da Faculdade de Ciências Médicasde Lisboa.Em termos gerais posso dizer-lhe que o Grande Prémio Bialde Medicina foi entregue a um grupo de investigadores espa-nhóis, reconhecidos internacionalmente, da Universidade deNavarra, uma escola de grande tradição em investigação emEspanha. O estudo tem como base a pesquisa de uma respos-ta imunitária através da indução de genes de interleukina-12(substância pró-inflamatória) em células dendríticas injectadasem lesões tumorais. Este trabalho demonstrou ser possívelinjectar em metástases cerebrais de carcinomas do aparelhodigestivo (intestino e pâncreas) células dendríticas modifica-das geneticamente para produção da interleukina-12.A obra vencedora do Prémio Bial de Medicina Clínica é deautoria de dois nefrologistas, a Dra. Adelaide Serra e o Dr.Fernando Domingos e é um exemplo de um trabalho de in-vestigação clínica. O estudo tem como base a experiência desete anos de uma consulta de nefrolitíase do hospital de SantaMaria. Foi feita uma avaliação de diversos doentes com litíasecálcica idiopática recorrente e, pela primeira vez em Portugal,

foram analisadas as causas ambientais e alimentares que estãona origem desta patologia.

ROM – Pela percepção que tem através dos Prémios Bial, deque forma analisa a evolução da investigação em Portugal?LP - Acho que ainda não existe uma cultura de Investigação eDesenvolvimento em Portugal e que estamos actualmente adar os primeiros passos nesta matéria. Recentemente diver-sos actores políticos nacionais, entre os quais não posso dei-xar de destacar a acção do Senhor Presidente da República,têm colocado a inovação na ordem do dia. Se comparar, porexemplo, a altura em que criámos o nosso Departamento deInvestigação e Desenvolvimento, em 1993, com os dias de hoje,a diferença é brutal. Hoje fala-se, com alguma regularidade, deinovação e de investigação no nosso país, nomeadamente nosmeios de comunicação social. A investigação abriu-se à socie-dade e às empresas, e deixou de ser uma palavra apenas utili-zada nos corredores das universidades. Acho, no entanto, queapenas demos os primeiros passos nesta matéria e que temospela frente uma longa caminhada. A inovação deverá ser assu-mida como um desígnio nacional que envolva empresas, uni-versidades, governantes, hospitais e a sociedade em geral paraconseguirmos transformar Portugal num país de conhecimento,de ciência, moderno e competitivo.

ROM – Num país em que a investigação e a própria formaçãocontínua parecem ser áreas menosprezadas pelos responsá-veis da Saúde, pelo menos no que se refere à atribuição deverbas, que posicionamento traça para Bial neste contexto?LP - Como referi na questão anterior acho que os últimostempos têm sido um bom prenúncio de que as coisas estão amudar. Bial traçou como áreas estratégicas a inovação e qua-lidade. O nosso trabalho e os nossos investimentos estão ca-nalizados para estas áreas. Continuaremos a investir uma fatiaconsiderável da nossa facturação (entre 15% a 20%) em inves-tigação e desenvolvimento tendo em linha de conta os projec-tos que temos em mãos e os novos projectos que certamenteirão surgir. O caminho da inovação é o caminho que iremoscontinuar a seguir, na convicção forte de que assim servire-mos melhor os interesses da população em geral e dos profis-sionais de Saúde.

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O reconhecimento da idoneidadecientífica por parte da OM é um passono sentido de uma maior transparência

Gomes Esteves, Presidente da Direcção da Associação Portuguesa daIndústria Farmacêutica

Gomes Esteves, presidente da direcção daApifarma – Associação Portuguesa da IndústriaFarmacêutica, traduz o retorno da indústria far-macêutica nos seus investimentos em investiga-ção e formação «numa melhor saúde para todos».Considerando que existem neste momento todasas condições necessárias para uma actuação deexcelência ética e deontológica, o presidente da

Apifarma vê no reconhecimento da idoneidadecientífica por parte da OM um factor contributivopara «uma maior transparência e co-responsabili-zação dos parceiros».

Revista da Ordem dos Médicos - Que papel reco-nhece à Indústria Farmacêutica na colaboração em prolda melhoria da Saúde Pública e da divulgação do conhe-cimento cientifico?Gomes Esteves - A Indústria Farmacêutica é o princi-pal investidor na área da inovação e desenvolvimento. É,reconhecidamente, o sector que, na área da saúde, catalizaos grandes desenvolvimentos científicos e as grandes me-lhorias da Saúde Pública.

ROM - Considera que os princípios e procedimentospor que se regem os apoios da indústria a eventos cien-tíficos são os mais adequados?GE - A formação pós-graduada é assumida pela Indús-tria Farmacêutica como um dever livremente assumidoe regulado por lei. Para existirem, os eventos científicostêm que ter a participação dos médicos, que a eles ade-rem livremente, com a autorização do Estado, que nelesreconhece valia.ROM - Que análise faz em termos comparativos doscódigos de conduta da indústria em termos nacionais eos aplicáveis a nível europeu/internacional?GE - Uma análise comparativa (sul e norte da Europa)conduz-nos a situações muito semelhantes, em termosde regulamentação. Em Portugal, pretendemos fazer umaprofundamento desta matéria, em conjugação com osoutros parceiros envolvidos (Médicos e Estado).

ROM - Considera que os apoios da indústria à forma-ção contínua dos médicos se enquadra naquela que édefinida pela Apifarma como a «missão da indústria far-macêutica»?GE - Indubitavelmente.

ROM - Que retorno se pode considerar que a Indústriatem ao apoiar eventos científicos?GE - O retorno de uma melhor Saúde para todos.

ROM - O Código de Lisboa, que transpõe o Código de

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Ética Internacional de Relações Públicas foi modificadopela última vez em 1989, considera que essa «regula-mentação» está suficientemente actualizada? Não exis-tem novas realidades a ter em conta?GE - Sendo a deontologia a ética aplicada ao caso con-creto, cada situação é sempre nova, porque diz respeitoa sujeitos singulares postos perante determinada opçãode conduta. Neste sentido, a deontologia está sempreem curso e depende, acima de tudo, na formação dosindivíduos.

ROM - Que factores considera fundamentais para o cum-primento da excelência ética e deontológica defendidapela Apifarma?GE - Estão criadas todas as condições para uma actua-ção de excelência.

ROM - Como analisa a importância da APIFARMA inte-grar instituições como a Federação Europeia da Indús-tria Farmacêutica e a International Federation ofPharmaceutical Manufacturers & Associations?GE - Representa o reconhecimento internacional pelotrabalho realizado por esta associação, para além do es-forço crescente por uma parceria ao nível internacional.

ROM - Especificamente a nível ético e deontológico quemais valias trouxe a troca de conhecimentos no âmbitodessas organizações?GE - A experiência internacional, no nosso caso, indica--nos, com alguma antecipação, os caminhos que seprefiguram no norte da Europa. Essa perspectiva é-nosvantajosa em termos estratégicos.

ROM - Como analisa o trabalho desenvolvido pela Co-missão Paritária de Acompanhamento do Protocolo ce-lebrado entre a Apifarma e a Ordem dos Médicos?GE - É uma Comissão cuja missão é essencialmente pe-dagógica e que assim tem procurado cumpri-la.

ROM - Concorda que o reconhecimento da idoneidadecientifica de um evento por parte da Ordem dos Médi-cos é um factor decisivo para a transparência das práti-cas, factor naturalmente desejado por todas as partesenvolvidas?GE - O reconhecimento da idoneidade científica porparte da OM resulta do Protocolo estabelecido com aApifarma. Pensamos que é um passo no sentido de umamaior transparência e co-responsabilização dos parcei-ros.

ROM - Questão cuja definição também é, naturalmente,uma preocupação da indústria, como considera possívelresolver o difícil problema da definição do que é umaoferta apropriada com um valor monetário aceitável?GE - Pedimos parecer a diversas entidades a esse res-

peito, que nos respondeu com o valor de 12.000 $ àépoca, ou seja, 60 euros.

ROM - Concorda que a ética médica é orientada parapromover o bem do doente, enquanto que a ética daindústria é em primeira análise direccionada para a rea-lização de proveitos que sustentem a própria investiga-ção e produção de novos medicamentos?GE - A Indústria não sobrevive sem proveitos, nem aSaúde progride sem avanços científicos. A ética de todasas pessoas que colaboram com a Indústria Farmacêuticaestá acima e enforma toda a sua actuação, tendo em con-sideração os princípios acima descritos.

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Poderá parecer contraditório, porém,pessoalmente, nada tenho contra aprescrição pela denominação comuminternacional (DCI) dos medicamen-tos! É dessa forma que com eles to-mamos contacto na Faculdade e é as-sim que se prescreve nos hospitais.Pareceria natural que se alargasse osistema ao ambulatório. De facto, atéfacilitaria aos médicos o acto de pres-crição. Infelizmente, com a absurda le-gislação portuguesa, que permite umnúmero interminável de genéricos domesmo princípio activo, isso é de todoimpossível e potencialmente prejudi-cial aos doentes e ao país.Não obstante considerar que o actode prescrição deve resultar do diálo-go entre o Médico e o seu Doente,numa relação que deve ser sagrada einviolável, a bem de uma Medicina efi-ciente, é bom que fique claro que asminhas preocupações transcendemesta questão e não se baseiam naqui-lo que alguns poderiam leviana e su-perficialmente considerar como obs-curos argumentos corporativos. Efec-tivamente, são objectivas e delicadasquestões económicas e técnicas quepresidem à minha opinião.O que pode acontecer se o Médicofor obrigado a prescrever apenas porDCI?Nada muda no que diz respeito aosmedicamentos sem genéricos.Tudo muda quanto aos medicamen-tos genéricos, pois o Médico passariaa ser impedido de optar por um ge-nérico no qual depositasse a sua con-fiança. Muito provavelmente, obriga-ria mais Médicos a optar pela pres-crição de fármacos ainda sem genéri-cos, aumentado a despesa em vez dea diminuir.Reafirmo que os genéricos não sãotodos iguais e que não consigo en-tender as razões que inibem oINFARMED de proceder ao seu efec-tivo controlo de qualidade. Quandose sabe que a contrafacção de medi-

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camentos apenas é ultrapassada peladas bebidas alcoólicas, tabaco e bensde luxo, porque continuam os respon-sáveis cegos perante a evidente nu-dez do rei?A prescrição dos genéricos exclusi-vamente por DCI implicaria:- Perda de um fundamental, se bemque indirecto, mecanismo de contro-lo de qualidade dos genéricos, que éa experiência do Médico na análisedos seus efeitos na prática clínica.- Aumento do risco de erros gravesna toma dos comprimidos quando odoente está poli-medicado e/ou temum menor grau de instrução, pois,cada vez que vai à farmácia, o doentepode levar uma embalagem comple-tamente diferente do mesmo medi-camento.- Possibilidade do Farmacêutico pro-ceder a verdadeiros leilões entre oslaboratórios de genéricos para selec-cionar aquele que privilegia na sua far-mácia, o que poderá dar origem a es-quemas comerciais menos éticos, po-tencialmente prejudiciais para o Do-ente e para o Estado. Agravando si-tuações já referenciadas na comuni-cação social e que aguardam cabal es-clarecimento. Por exemplo, das em-balagens bónus que alegadamente osfarmacêuticos receberão, para ondevai o IVA pago pelos doentes quandoadquirem essas embalagens?- Capacidade da Associação Nacionalde Farmácias (ANF) cartelizar a ne-gociação dos genéricos vendidos nasfarmácias, dando-lhe o imenso poderde levar laboratórios à falência casodecida bloquear as vendas dos res-pectivos genéricos!Em função destes e de outros pro-blemas, se pensar em impor a pres-crição por DCI, o que acredito quenunca acontecerá, porque é uma pes-soa inteligente, conhecedora e expe-riente, o Ministro da Saúde pode con-tar com a determinação total e fron-tal da Classe Médica no combate a

essa medida.Fora as situações puníveis de corrup-ção, é bom lembrar que, quando pas-sam uma receita, os Médicos não ga-nham dinheiro com o acto. É a reali-zação da consulta que é retribuída,independentemente de terminar, ounão, numa prescrição e independen-temente do valor dessa prescrição.Não é demais recordar que, com asreceitas dos Médicos, quem ganha di-rectamente dinheiro são os labora-tórios farmacêuticos, as empresas dedistribuição e as farmácias! Os Médi-cos são os principais interessados emreceitar o melhor fármaco ao maisbaixo custo, por forma a não sobre-carregar os doentes e o Estado.Por isso, numa altura em que o mo-nopólio das farmácias está sob fogoda opinião pública, soam a pura ma-nobra de diversão as recentes pala-vras do Dr. João Cordeiro, presiden-te da ANF, a alertar, sem concreti-zar, para a “pressão da indústria naprescrição Médica”, como se fossemos Médicos que ganhassem directa-mente dinheiro com a prescrição demedicamentos ou prescrevessemmedicamentos a mando da indústriafarmacêutica! É insensato, mascompreende-se! A ANF pretende dis-trair a opinião pública do facto da leida propriedade das farmácias ser aúnica legislação intacta do tempo doEstado Novo ainda que, provavelmen-te, inconstitucional! A ANF procuraesconder o facto do cartel das far-mácias ser extremamente prejudicialpara os consumidores e para o país,que poderia poupar centenas de mi-lhões de euros com a liberalização datitularidade das farmácias! A ANF de-sespera por encobrir que está actu-almente a administrar o HospitalAmadora/Sintra mas que quer impe-dir que outrem, que não um farma-cêutico, possa administrar uma farmá-cia! A ANF esquece-se que os farma-cêuticos praticam diariamente actos

Prescrição exclusiva por DCI? NÃO!

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de diagnóstico e terapêutica nas suasfarmácias e vendem os medicamen-tos que pessoalmente aconselham aosdoentes, numa relação eticamente dis-cutível, com inegáveis interesses co-merciais de permeio (o que diria aSociedade se os Médicos vendessemnos seus consultórios os medicamen-tos que prescrevem aos seus doen-tes?)!Mais grave é a afirmação do repre-sentante máximo das farmácias por-tuguesas de que não acredita que aliberalização da comercialização de al-guns medicamentos venha a traduzir--se numa descida dos preços! Tal nãoacontecerá apenas se se assistir a umacartelização dos preços. Um recenteencontro num hotel do Norte ganha,assim, particular relevância. A Socie-dade Civil, o Governo e a Autoridadeda Concorrência que estejam aten-tos… É evidente que a descida dospreços só não acontecerá se eles fo-rem ilegalmente acordados entre osvários intervenientes na venda de me-dicamentos!Se o Governo quiser implementaruma coerente e efectiva política domedicamento, deve procurar o apoioe a contribuição dos organismos re-presentantes da Classe Médica, semqualquer dúvida os mais desinteres-sadamente empenhados em reduziras despesas do país com os medica-mentos.Desde já fica meia dúzia de sugestõescentrais:1) Liberalização da propriedade dasfarmácias, com aplicação de rigoro-sas leis anti-monopólio que impeçamos erros cometidos noutros países.2) Criação de farmácias públicas nasinstituições de saúde, com o objecti-vo de facilitar o acesso à aquisição demedicamentos por parte dos doen-tes e de contribuir para o financia-mento/controlo dos custos da saúde.3) Introdução do sistema de unidosena venda de medicamentos éticos aopúblico, para reduzir o desperdíciocom medicamentos, que, com o actu-al sistema de embalagens, pode atin-gir os 50% na primeira prescrição, epara permitir adaptar a prescrição a

cada doente. Esta será, seguramente,uma das medidas com maior impactona redução da auto-medicação e doscustos com os medicamentos éticos.4) Análise das comparticipações emfunção da relação custo/eficácia [porexemplo, “NICE proposes towithdraw Alzheimer’s drugs fromNHS”. BMJ, 2005;330 (7490): 495].5) Elaboração de orientações nacio-nais, em colaboração com a Ordemdos Médicos e Sociedades Científicas,que permitam racionalizar cientifica-mente a prescrição de algumas clas-ses de medicamentos.6) Implementação de verdadeirosprogramas de prevenção da doençae de promoção da saúde.Estas medidas, simples e eficazes, per-mitiriam poupar ao erário público cer-ca de mil milhões de euros por ano

na despesa com medicamentos. Rapi-damente o deficit do Serviço Nacio-nal de Saúde seria drasticamente re-duzido e o Estado voltaria a poderinvestir fortemente na modernizaçãodo sector. Para bem de todos. Depo-sitamos todas as esperanças nesteMinistro da Saúde.

Chegou a hora de compreendermosque, bem ou mal, sem Médicos nãohá Medicina. Mas os medicamentospodem continuar a vender-se, e maisbaratos, sem a ANF.

José Manuel SilvaPresidente da Secção Regional do Centro

da Ordem dos Médicos

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A prát ica c l ín ica no in íc io do terceiro mi léniocaracteriza-se por mudanças constantes: o médico, in-dependentemente da área em que pratica, é permanen-temente posto em confronto com problemas de co-nhecimento, já que os novos avanços diagnósticos eterapêuticos em medicina se processam a um ritmoacelerado, criando problemas de actualização e aplica-ção prática a quem tem a responsabilidade da assistên-cia médica a doentes internados em hospitais, observa-dos em consultas ou avaliados em serviços de urgência.

Para além disso, a combinação entre a gestão de recur-sos cada vez mais escassos e dispendiosos por um lado,com responsabilização dos médicos por parte da soci-edade na prestação de cuidados eficazes mas custo-efec-tivos, por outro, cria novas exigências de rigor e racio-nalização da prática médica.

Na base da resolução dos problemas acima apontadosencontra-se a necessidade de obtenção e síntese deinformação clínica válida e relevante que sirva de baseà actividade do médico que procura resolver os pro-blemas clínicos (ou outros) que se lhe colocam diaria-mente. A questão essencial é então a de saber comopodem os médicos aprender as inovações e dominar ainformação de modo a introduzir (eventuais) mudan-ças na sua prática que, em última análise, irão benefici-ar os seus doentes.

Neste texto iremos discutir sucintamente alguns dosproblemas inerentes à medicina do século XXI, anali-sando a sua complexidade, o risco e a incerteza queestão ligados à prática clínica, defendendo finalmenteque a prática clínica deve ter uma base científica sólida,que possa responder às questões que surgem todos osdias no contacto com os doentes.

A DECISÃO CLÍNICA É COMPLEXA

A decisão clínica encontra-se, neste início do séculoXXI, na intersecção de três grandes universos (figura):a relação médico-doente, com os seus factores cultu-rais, crenças e educação, entre outros; o universo daciência médica com os seus dados empíricos, doentes,ensaios clínicos e evidência científica e, finalmente, umconjunto de constrangimentos definidos em políticasde saúde, racionamento, legislação, etc. (ACP J Club 2002;March-April:A11-A14).

O acto médico moderno é muito complexo, precisa-

As bases científicas da Medicina

A PRÁTICA CLÍNICA É INCERTA EARRISCADA

A decisão clínica possui uma marcada incerteza, querna relação do médico com os doentes, quer na defini-ção do diagnóstico, do estabelecimento do prognósti-co, na escolha do tratamento ou na apreciação dos re-sultados. Ela é também arriscada: na definição do risco- que existe em todos os contextos da actividade mé-dica e que se define como a probabilidade que o acasocause um qualquer dano ao doente - há que o analisardirectamente, para o poder medir, comunicar e, porúltimo, gerir. Como gerir o risco? Identificando os seusfactores e analisando-os, isto é, verificando se são co-muns, qual o seu impacto e se existem padrõespreditivos que possamos detectar. Posteriormente,controlá-los e, finalmente, analisar o seu custo, não numaperspectiva económica mas de saúde, ou seja, analisarquanto custa controlá-los ou não e quais as consequên-cias dessa decisão para o doente.

AS QUESTÕES CLÍNICASNECESSITAM DE RESPOSTASRÁPIDAS E DE QUALIDADE

O clínico prático tem de enfrentar um enorme númerode questões referentes aos doentes que observa diari-amente, desde o diagnóstico à terapêutica, da preven-ção ao prognóstico. Os médicos têm consciência que

RELAÇÃO MÉDICO/DOENTE• factores culturais• crenças individuais• nível educacional• sistemas políticos

Guidelines Ética

Conhecimento

Decisãoclínica

EVIDÊNCIA CIENTÍFICA• dados de doentes• experiência empírica• estudos/ensaios clínicos

CONSTRANGIMENTOS• políticas de saúde• legislação• financiamentos escassos• prioridades

Expertise clínica(o médico-perito)

Figura 1 – As bases da decisão clínica no sec. XXI

mente porque o médico tem de saber dominar toda ainformação e aspectos práticos referentes a estas trêsáreas da sua prática, com as suas especificidades, deta-lhes e resultados variáveis.

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Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005 29

António Vaz CarneiroFaculdade de Medicina de Lisboa e Hospital de

Santa Maria

necessitam de se manter actualizados e que existemfalhas nos seus conhecimentos. O problema é que ra-ramente estes hiatos de conhecimentos são resolvidosde maneira rápida e eficaz.

Para satisfazer as suas necessidades em informação, oclínico tem várias hipóteses possíveis: 1) a pesquisa daliteratura médica; 2) a consulta com colegas possuido-res de competências específicas - os chamados peritos;3) a frequência regular de cursos, aulas ou semináriosem acções de Educação Médica Contínua (EMC) e, ain-da, 4) informação providenciada pela indústria farma-cêutica, quer directamente quer através de anúnciospublicados nas revistas médicas. Cada uma destas fon-tes possui graus de validade distintos, já que possuemviéses particulares. O problema surge quando, comoacontece frequentemente, fontes diferentes apresen-tam sugestões diversas para a resolução do mesmo pro-blema clínico. Quais são então as vantagens e inconve-nientes de cada uma destas fontes de informação cien-tífica?

A pesquisa da literatura médica é, por si só, uma tarefaquase sempre condenada ao fracasso. Há várias razõespara este facto, a mais importante das quais é o gigan-tesco volume de literatura publicada: existem no mun-do mais de 30.000 revistas médicas e o aumento temsido exponencial desde que apareceram as primeiraspublicações no século XVII. Presentemente, o períodode duplicação do número de revistas é de cerca de 19anos. Esta realidade define o principal problema que outilizador da informação tem de enfrentar: a dimensão.Como exemplo, a base de dados mais utilizada - aMedline - possui hoje em dia mais de 12 milhões deartigos indexados e calcula-se que este número repre-senta apenas 50% da totalidade dos artigos médicosexistentes no mundo. Mas, mesmo se o médico tivesseacesso fácil a literatura seleccionada, necessitaria aindade tempo para a ler e integrar na sua prática clínica, etempo é o que o médico prático não possui: num re-cente questionário sobre os hábitos de leitura de mé-dicos que frequentavam as reuniões clínicas dos hospi-tais universitários (Sackett DL et al. Evidence-basedMedicine. How to practice and teach EBM. 1st ed. ChurchillLivingstone, 1997), apurou-se que os internos afirma-vam ter lido na semana anterior uma média de 50 mi-nutos (com 3/4 deles não tendo lido nada!), os especi-alistas 20-45 minutos (15% nada) e os consultores até45 minutos (40% nada).

Por seu lado, a consulta de colegas de uma área especí-fica (os peritos) é uma maneira habitual e ancestral(hipocrática...) de obter informação, de maneira cómo-da, rápida e eficaz. Isto, se o médico puder ter a certezaque o que os peritos aconselham é correcto e consis-

tente: mas a nossa experiência é que, se colocarmosuma dúvida a três peritos diferentes, obtemos muitasvezes outras tantas respostas... Mais: se nos concen-trarmos sobre o que os peritos de renome escrevemem artigos de revisão nas melhores revistas médicas,descobrimos um panorama pouco animador. Por exem-plo, quando se compara a evidência científica proveni-ente do melhor estudo jamais publicado sobre o trata-mento da diabetes mellitus tipo 2 (o ensaio UKPDS)com as recomendações dos peritos de renome mundial(expressas em artigos de revisão e capítulos de livros),verifica-se que estes não descrevem correctamente osresultados obtidos no estudo: numa percentagem ele-vada de casos verificou-se total ausência de informaçãosobre a importância crucial do tratamento da hiper-tensão arterial (muito superior à do controle glicémico)e escassez de informação sobre a ausência de eficácianos outcomes macrovasculares 1) das sulfonilureias eda insulina nos doentes obesos e 2) do controle aper-tado da glicémia em todos os doentes (BMJ 2003;327:266-273). No fundo, o que isto demonstra é umaenorme dificuldade que todos (incluindo os peritos)temos em mudar as nossas convicções, mesmo quandodispomos de evidência científica da mais alta qualidade.

Os formatos habitualmente utilizados nas acções deEducação Médica Contínua incluem habitualmente li-ções, conferências, seminários e cursos mais ou menosintensivos, passando por “pacotes” de materiaisaudiovisuais (cassettes e vídeos) e até exames à distân-cia. Em teoria estas acções deveriam ter bons resulta-dos, mas subsistem dúvidas acerca da sua eficácia, nãosó em termos de melhoria dos conhecimentos em ge-ral, como também da alteração da prática clínica pós--acção de formação. Existe uma quantidade apreciávelde estudos que não conseguiram provar aumentos deretenção de factos novos com estas técnicas educacio-nais (BMJ 1997; 315:326).

Finalmente, uma das mais importantes fontes de infor-mação clínica é a disponibilizada pela indústria farma-cêutica (IF), quer em acções de formação quer nos ma-teriais promocionais (designados classicamente por “fo-lhetos de propaganda médica”). Mas seria de facto er-rado aceitar que a informação que a indústria nos dá ésistematicamente a que possui melhor qualidade, livrede viéses e cientificamente exacta – no fim de contas, oprincipal objectivo da IF é vender medicamentos... Exis-tem precisamente vários estudos demonstrando que o

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conteúdo científico dos materiais escritos (os “folhe-tos”) está, numa percentagem significativa de casos,enviesada em relação ao produto apresentado, incom-pleta em termos de perfil de segurança, exagerada emtermos da eficácia do produto e ausente em termos daindicação do custo (Lancet 2003;361:27-32). É certoque parte desta informação que a IF nos dá é excelen-te, mas como diferenciar entre o trigo do joio?

A PRÁTICA MÉDICA DEVE TERACIMA DE TUDO UMA BASECIENTÍFICA – MAS ESTA NUNCA ÉSUFICIENTE

O papel da ciência na prática clínica é, hoje em dia, ab-solutamente insubstituível. A publicação permanente deestudos e ensaios clínicos produz evidência (prova ci-entífica) de boa qualidade, baseado na qual é possível omédico tomar decisões sólidas.

A convicção que a experiência que o médico individualpode (por si só) ser a fonte quase exclusiva para a de-cisão clínica – acompanhada ou não por algum estudoocasional – é frontalmente posta em causa pelos estu-dos que, de maneira sistemática, analisam a performancedos profissionais. Dois exemplos:

• o primeiro envolve dois estudos clássicos (JAMA1986; 255:501-4 e 1991;266:1103-7), em que umgrupo de internistas americanos foi sujeito a umconjunto de perguntas do exame da especialidadede medicina interna, verificando-se existir uma cor-relação inversa entre o nível de conhecimento teó-rico (medido pela percentagem de respostas cer-tas) e o nº de anos que tinham decorrido desde asua integração em contextos de formação médicaorganizada, por ex. faculdade ou internatos (fig. 2)

• o segundo exemplo é muito mais recente (Ann IntMed 2005;142:260-273): numa revisão sistemática,comparando 62 estudos publicados que relaciona-vam a idade profissional de um conjunto de especi-alistas nos EUA com a sua performance prática (me-dida pela adesão às recomendações de normas deorientação clínica tidas como as mais válidas),verificou-se que, num conjunto de áreas práticasvariadas – conhecimento científico, diagnóstico erastreio, assim como a terapêutica e os resultados(outcomes) obtidos – quanto mais avançado na car-reira era o médico, pior era a sua performance, pon-do directamente em causa a clássica noção de queos médicos mais experimentados praticam melhormedicina.

A defesa do uso da melhor evidência científica para su-

porte das nossas decisões clínicas - um imperativo éti-co - implica a proposta de uma metodologia que façacom que este desiderato seja possível em termos prá-ticos.

Anos de formatura

r = -0.54p<0.001

...

...

. ... . .... .

....

.........

...Conhecimentos médicos

actualizados

Evans CE e col. JAMA 1986; 255:501-4Ramsey PG e col. JAMA 1991;266:1103-7

% respostas certas

Faculdade Internatos Prática autónoma

-

+

Figura 2 – A curva descendente do conhecimento médico

A metodologia da Medicina Baseada na Evidência - queé a utilização conscienciosa, explícita e criteriosa daevidência científica actualizada na tomada de decisõesclínicas referentes ao doente individual - permite pre-cisamente esse passo, já que a prática da MBE integra aexpertise individual do clínico com a melhor evidênciacientífica externa gerada pela investigação clínica. Porexpertise individual entende-se a proficiência e a capa-cidade de decisão e julgamento que adquirimos na prá-tica clínica, e que se pode revelar por exemplo por umacapacidade acrescida de diagnosticar doenças, seleccio-nar esquemas terapêuticos adaptados ao doente indivi-dual com integração das preferências e idiossincrasiasdaquele e, de uma maneira geral, um relacionamentoequilibrado com os outros profissionais e com o siste-ma de saúde. Por melhor evidência científica externaentende-se aquela que fornece informação relevante,normalmente proveniente de investigação clínica (po-dendo também provir de investigação básica) e que écentrada no doente (determinação de característicasdiagnósticas de testes, de eficácia de esquemas tera-pêuticos, ou determinação de factores prognósticos, porexemplo). A nova evidência vai naturalmente substitu-indo os factos em que se baseia a decisão clínica tradi-cional, com a introdução de novos elementos de infor-mação que ajudam a diagnosticar e a tratar mais exactae eficazmente as situações encontradas na prática clí-nica quotidiana.

O QUE É, E NÃO É, A MEDICINABASEADA NA EVIDÊNCIA

• A MBE diminui a importância da intuição e da experi-ência clínica não-sistematizadas, assim como do racio-

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cínio fisiopatológico, como únicas bases para a práticaclínica, sublinhando a importância concomitante da aná-lise da evidência obtida através da investigação clínicade boa qualidade, relevante e aplicável.

Tradicionalmente acredita-se, e ensina-se, que o con-junto de princípios que servem de orientação à práticada medicina se resumem a meia dúzia de conceitos base,a saber : 1) a experiência cl ínica individual não--sistematizada é suficiente para a manutenção dos co-nhecimentos sobre características dos testes diagnós-ticos, de esquemas terapêuticos ou de marcadores prog-nóst icos ; 2) o conhec imento dos mecan ismosfisiopatológicos de doença constitui uma base suficien-te para as necessidades da clínica prática; 3) a combina-ção do treino clínico tradicional com uma certa dosede bom senso chega para avaliar novas tecnologias di-agnósticas ou terapêuticas; 4) a competência técnica,combinada com a experiência clínica, permitem por sisó a elaboração de normas de orientação clínica(guidelines). Assim, e baseado nestes conceitos, o médi-co que é quotidianamente confrontado com problemase questões clínicas para as quais necessita de respostasfiáveis e rápidas, mais não tem do que reflectir sobre asua experiência ou sobre as teorias fisiopatológicas queexpliquem os mecanismos de doença, ou então consul-tar um qualquer livro de texto, podendo ainda pergun-tar a um colega que seja perito no assunto. Se decidiranalisar um estudo publicado, bastará ler a respectivaintrodução, juntamente com a discussão, para poderretirar toda a informação necessária e relevante.

A MBE assume basicamente um outro conjunto deprincípios – necessariamente diferentes, mas comple-mentares – dos acima enunciados, e que reajustam osvalores relativos de todas as facetas da prática médi-ca. Por exemplo, na MBE a experiência e o desenvolvi-mento de instintos clínicos - por exemplo diagnósti-cos – constituem indiscutivelmente uma característi-ca crucial de um bom médico, mas deverão ser apoia-dos pela evidência científica que esteja eventualmentedisponível; só no caso de não existirem estudos publi-cados sobre esse problema (ausência de evidência) éque experiência clínica isolada poderá servir de baseexclusiva de actuação, não esquecendo que essa expe-riência prática pode não se revelar fiável no doenteseguinte - só o registo sistematizado das observaçõesclínicas é que poderá dar uma certeza mais fundamen-tada sobre a validade de testes diagnósticos ou deesquemas terapêuticos. Por outro lado, o conhecimen-to e o estudo dos mecanismos básicos de doença cons-tituem base necessária, mas por vezes não suficiente,para a tomada de decisões, podendo revelar-se incor-rectos e mesmo contraproducentes: por exemplo, umestudo de 1991 veio demonstrar que a utilização de

antiarrítmicos como supressores de extrassistolia ven-tricular em doentes pós-enfarte agudo do miocárdioera uma terapêutica perigosa, já que aumentava a mor-talidade. Este estudo tinha sido projectado para con-firmar a prática da utilização generalizada de medica-ção anti-arrítmica em doentes pós-EAM, baseada emconsiderações fisiopatológicas postulando que a exis-tência de actividade extrasistólica ventricular seria demau prognóstico, já que induziria uma maior mortali-dade nestes doentes (N Engl J Med 1991; 324:781-788).Este é um exemplo em que a abordagem fisiopatológicadesta situação - por mais lógica que parecesse ser - serevelou totalmente errada. E a maneira como este errofoi descoberto foi através da mais correcta metodo-log i a na inves t i gação terapêut i ca - o ensa ioaleatorizado, prospectivo e controlado - em que o quefoi investigado não foi o processo fisiológico mas simresultados (outcomes) clínicos objectivos e clinicamenterelevantes.

ESTUDOS

SÍNTESES

SINOPSES

SISTEMAS

Artigos originaispublicados em revistas

Revisões sistematizadas(Cochrane)

Resumos de revistasbaseadas na evidência

Sistemas informáticos de apoio à decisão clínica

Figura 3 - Esquematização hierárquica da evidência em termosde utilidade prática

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• A MBE obriga naturalmente a que o clínico compre-enda a evidência e domine certas regras de avaliaçãocrítica daquela para poder compreender e interpre-tar correctamente a literatura sobre causalidade, dia-gnóstico, tratamento e prognóstico, ou que - alternati-vamente - lance mãos de fontes secundárias que jáfizeram esta selecção e disponibilizam informaçãopronta a utilizar.

Este facto implica uma constante pesquisa da literatu-ra original por parte do médico, assim como a aceita-ção da eventua l inex is tênc ia de ev idênc ia quesubstancie e apoie as suas decisões, com aceitação tá-cita da incerteza que a prática da medicina sempreacarreta. Poder-se-á afirmar que esta abordagem nãoé nova, já que os médicos identificam as questões clí-nicas e procuram a sua resposta consultando a litera-tura. A diferença que a MBE preconiza – uma análiseexplícita da evidência – permite que esta pesquisa setorne simples e rotineira e que o grupo de trabalhobeneficie também desta abordagem (e não só o médi-co individual).

Quanto às fontes secundárias já disponíveis - sob aforma de revistas, livros e software - estas permitemque o médico tenha à mão informação de alta qualida-de para a sua actualização, apoio à prática, etc. A figu-ra 3 propõe uma hierarquização das modalidades daevidência, em termos da sua utilidade prática, sendoque muitos destes instrumentos se encontram já emfases de aplicação imediata.

• A MBE não é uma metodologia de contenção de cus-tos, que possa ser utilizada num melhor controlo admi-nistrativo da prática médica

O médico que pratica uma medicina baseada na evi-dência científica entra em conta nas suas decisões te-rapêuticas com 3 factores de base: o primeiro é o dosinteresses, desejos e preferências do seu doente indi-vidual, numa perspectiva humanista e ética; o segundo,é o conhecimento o mais aprofundado possível da pa-tologia do seu paciente, lançando mão da sua experi-ência clínica e dos dados científicos relevantes ao casoespecífico; finalmente, é o da gestão racional dos re-cursos postos à sua disposição, com uma visão globalda sua acção individual.Se, na sua acção médica, o clínico diagnostica uma si-tuação que necessita de uma terapêutica específica,baseada na evidência científica mais válida - dispendiosaou não - ele deve recomendá-la, independentementedos custos para o SNS. Deste modo, ele coloca osinteresses do seu doente acima do resto, dando um

conselho fundamentado na sua experiência e nos es-tudos mais válidos que confirmam esta opção. Em ne-nhuma situação deverá a ciência clínica servir pararacionamentos de cuidados.

CONCLUSÕES

• A Medicina Baseada na Evidência (Evidence-BasedMedicine) constitui uma nova abordagem da práti-ca médica, na medida em que transforma os pro-blemas clínicos em questões respondíveis e selec-ciona a evidência científica utilizando critérios eregras de avaliação crítica muito restritos e rigo-rosos. É a combinação entre a expertise individualdo médico e a evidência proveniente da investiga-ção científica que permite uma prática clínica ra-cional, eficaz e ética.

• As mudanças que se verificam na prática da Medi-cina moderna - caracterizada por uma enormequantidade de informação muitas vezes irrelevantee inútil, combinada com escasso tempo de leiturapara actualização e obtenção de respostas às ques-tões clínicas - têm sido parcialmente solucionadaspor acções de educação médica contínua (EMC).A EMC, no entanto, não diminui de maneira satis-fatória a degradação dos conhecimentos e da prá-tica clínica que qualquer médico enfrenta após sa-ída dos períodos de formação.

• A prática da MBE traz vantagens acrescidas querpara os clínicos individuais, quer para os gruposde trabalho, quer para os doentes. Ela permite queos clínicos actualizem os seus conhecimentos deforma regular e sistemática, melhorando os seusháb i tos de le i tura e as suas capac idadesinformáticas de pesquisa de informação. Estes mé-dicos compreendem melhor as metodologias deinvestigação clínica e utilizam melhor os dados for-necidos pela literatura. Além disso, a prática da MBEaumenta a confiança do médico nas suas decisõese reduz a variação da prática clínica que se verifi-ca tão frequentemente.

• A MBE constitui um poderoso instrumento de en-sino e permite que os médicos mais jovens parti-cipem de maneira mais eficaz no trabalho de gru-po.

• Finalmente, para o doente, a MBE permite uma comu-nicação mais eficaz com o médico, quer acerca dasopções que lhe dizem respeito em termos de trata-mento, quer acerca do consumo de recursos que ne-cessariamente deverão ser devotados à Saúde.

O P I N I Ã O

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Daniel SerrãoProfessor Jubilado

da Faculdade de Medicina do Porto

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Aqui está um problema sempre a exi-gir a nossa reflexão, sem retóricanem segundas intenções.Dou por solidamente adquirido quea Indústria Farmacêutica não baseiaa sua actividade de produção e ven-da de medicamentos em práticas decorrupção dos profissionais de saú-de e que estes não desejam nem acei-tam ser corrompidos activamentenem ser envolvidos em esquemas decorrupção passiva.Se não fosse este o meu ponto departida o que vou escrever não te-ria qualquer sentido. Porque se a In-dústria é corruptora e os médicossão corruptos ou corruptíveis, en-tão a questão é com as polícias e nãocom a ética e a deontologia das em-presas e dos profissionais.Assente, por conseguinte, o meupressuposto inicial o que está emcausa é o estilo e a forma das rela-ções entre quem produz os medica-mentos e quem os receita, promo-vendo, assim, o consumo que é a basedo negócio farmacêutico de produ-tores e distribuidores.Ora o estilo e a forma destas rela-ções têm uma exigência radical queé a da transparência no comporta-mento de ambas as partes. Porquenenhuma tem nada a esconder etudo deve estar patente e sujeito aoescrutínio público.Na sociedade americana a práticadeste escrut ín io públ ico, ouaccountability, é considerada como amelhor forma de descobrir e tornarpúblicos os erros e desvios, promo-vendo, assim, a sua erradicação.Nesta linha o American College ofMedicine – que podemos aproximarda nossa Ordem dos Médicos – e aAmerican Society of InternalMedicine aprovaram um documen-to, escrito por Susan Coyle, que foi

Médicos e Indústriade Medicamentos

publicado na prestigiada Revista“Annals of Internal Medicine”, em2002.Apresento, a seguir, os tópicos prin-cipais deste documento, pedindo aosmédicos que o leiam , na revista, natotalidade e reflictam sobre ele.Diz, a abrir, que médicos e indústriapartilham o mesmo interesse nosavanços do conhecimento científicono tratamento das doenças, mas re-conhece que a ética, própria e espe-cífica do médico, é sempre orienta-da para promover o melhor bem eo melhor interesse das pessoas do-entes, enquanto que a ética da in-dústria é, primariamente, a de reali-zar proveitos que sustentem os ob-jectivos de descoberta e produçãode novos medicamentos.Daqui resulta que a colaboração en-tre médicos e indústria pode levar aimportantes progressos científicos,na área terapêutica, mas pode criaroportunidades para desvios e susci-tar uma percepção pública desfavo-rável.Os médicos, mesmo os que estão nafase de formação, pensam que estãoimunes a qualquer influência comer-cial sobre as suas decisões terapêu-ticas e que sempre agem com baseem informações científicas, segurase fiáveis, ou seja, evidence-based. Con-tudo, há estudos que provam que ofacto de aceitar a hospitalidade daIndústria, pequenas ofertas e amos-tras dos medicamentos, pode com-prometer a independência do juízoterapêutico do médico sem que estetenha clara consciência deste efeito.Coloca-se, assim, uma questão queé do foro íntimo do médico e da sua“virtude” pessoal e que enuncio as-sim: o que é que eu posso aceitar deuma empresa farmacêutica, que querapresentar um medicamento, sem

que dessa aceitação resulte uma in-fluência indesejável na independên-cia do meu juízo ou decisão terapêu-tica?Para ajudar o médico a responder,no seu íntimo, a esta questão, a au-tora propõe que o médico, na suareflexão pessoal, considere os se-guintes pontos:Que pensarão os meus doentes sa-bendo que eu aceitei esta oferta, estahospitalidade num fim-de-semana,esta viagem ou este subsídio de umaempresa farmacêutica para um tra-balho ou uma publicação?Que pensará o público em geral?Como me sentirei eu se esta minhaaceitação for tomada pública atravésdos média?Qual será o objectivo da empresaque me faz esta oferta?Que pensarão os meus Colegas so-bre a forma como me relaciono coma Indústria Farmacêutica?Que pensaria eu se soubesse que omeu médico aceita estas ofertas dasempresas de medicamentos?A resposta, honesta e verdadeira, aestas 6 questões ajudará o médico aestabelecer, para si próprio, o que éadequado aceitar e o que deve serrecusado.Reconheceu a autora – e a Ordem ea APIFARMA também – que é difícildefinir o que é uma oferta apropria-da ou fixar um valor monetário aci-ma do qual a oferta será inaceitável:Uma esferográfica comum, um porta--chaves, um livro de baixo custo eútil para o trabalho do médico, umcocktail simples associado a uma ses-são de apresentação científica de umnovo medicamento são, certamente,ofertas aceitáveis: Mas o essencial éque o médico faça, com boa fé, umesforço para avaliar o potencial des-tas ofertas para o influenciar e de-

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terminar que tipo de ofertas e cor-tesias são eticamente apropriadas e,em consequência, podem ser aceitescom tranquilidade moral.A postura do American College é ade entregar à avaliação pessoal domédico o que é aceitável e o quedeve ser firmemente recusado.Por mim, sou também favorável a estametodologia de auto-regulação comoa primeira linha no processo de cla-ri f icar e tornar transparente ainteracção dos médicos com a Indús-tria Farmacêutica.Mas penso que, a este esforço indi-vidual de separar o aceitável do ina-ceitável, se deve juntar o da avalia-ção pelos pares, por intermédio dasComissões Regionais e do ConselhoNacional, de Ética e Deontologia Mé-dicas, da Ordem, bem como das Co-missões de Ética em Saúde dos Hos-pitais. Estas, recentemente aliviadasdo trabalho de analisar e autorizaros ensaios clínicos de novos medi-camentos, podem trabalhar com maistempo, no aconselhamento ético dosprofissionais de saúde que participamnos ensaios e estabelecem com a em-presa promotora do estudo relaçõesde natureza financeira.A legislação sobre os ensaios clíni-cos fixa os critérios formais para asua efectivação; mas a protecção realdos interesses e do melhor bem dosdoentes que aceitam participar noensaio terapêutico, cabe sempre aomédico que deverá usar de critérioséticos rigorosos que não podem serinfluenciados pelo benefício financei-ro do médico que assiste o doente einvestiga para a empresa. E aqui asComissões de Ética em Saúde têmuma importante palavra a dizer e nãodevem deixar de a proferir.O artigo que serviu de base a estetexto trata, ainda, do financiamento,pela Indústria Farmacêutica, de pro-gramas de formação contínua dosmédicos, após a graduação, e dasquestões éticas que suscita. Mas ocomentário à posição assumida peloAmerican College of Medicine, nes-ta matéria, ficará para outra opor-tunidade.

AAAAA G E N DG E N DG E N DG E N DG E N D AAAAA1.º Ciclo de Conferências de Saúde do Centro de Estudos Ibéricos –Saúde sem Fronteirasde Maio de 2004 a Maio de 2005(1 conferência por mês)Local: Sala da Assembleia Municipal – GuardaContactos: Telef./Fax: 271 220 212E-mail: [email protected]

VI Jornadas de Pneumologia em Medicina Familiar19 e 20 de Maio de 2005Local: Lisboa - Salão Almada Negreiros - Gare Marítima de AlcântaraContactos: Av. Miguel Bombarda, 61, r/c Esq.º - 1050-161 Lisboa;Telef.: 213 584 380; Fax: 213 584 389E-mail: [email protected]

VII Congresso da Associação Nacional de Cuidados Paliativos1 a 3 de Junho de 2005Local: Coimbra, Hotel D. LuísContactos: R. Dr. António Bernardino de Almeida; 4200-072 Porto;Telef.: 225 073 940 Fax: 225 073 833

X Jornadas de Cardiologia na Clínica Geral da Zona Sul2 e 3 de Junho de 2005Local: Lisboa; Hotel Villa RicaContactos: Av. Miguel Bombarda, 61 r/c Esq.º, 1050-161 Lisboa;Telef.: 213 584 380; Fax: 213 584 389E-mail: [email protected]

X Curso de Correlação Anátomo-Radiológica8 a 11 Junho de 2005Local: Viena (Áustria)Contactos: Viagens Abreu, S. A. - Dept. Congressos;Tel.: 222043590 - Fax: 222043693

EULAR 2005 – European Congress of Rheumatology18 a 20 de Junho de 2005Local: Porto - Hotel Ipanema ParkContactos: Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear;Tel.: 217 970 530; Fax: 217 955 012

11th World Congress on Pain21 a 26 de Agosto de 2005Local: Sydney, AustráliaContactos: Telef.:218 422 700

10.º Congresso Nacional de Medicina Familiar25 a 27 de Setembro de 2005Local: Covilhã – Universidade da Beira InteriorContactos: Assoc. Port. dos Médicos de Clínica Geral, Tel.: 21 761 52 50;Fax: 21 793 31 45; E-Mail: [email protected] – Top Atlântico - Dep. Congressos;Tel.: 218925405; Fax: 218925406; E-Mail: [email protected]

Ecco 13 - The European Cancer Conference30 de Outubro a 3 de Novembro de 2005Local: Paris, FrançaContactos: [email protected]

Mestrado em Risco, Trauma e Sociedade17 de Outubro de 2005 a 9 de Junho de 2006Local: ISCTE

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38 Revista ORDEM DOS MÉDICOS • Maio 2005

O reconhecimento de subespeciali-dades médicas é um assunto natu-ralmente controverso e gerador deambivalências. A evolução da ciên-cia médica demonstra que não sepode recuar no reconhecimento dadiferenciação mas sabemos que issoé também fonte de novos proble-mas e dificuldades que terão de serultrapassados com sensibilidade ecoragem. É necessário que a Ordemdos Médicos esteja atenta à evolu-ção dos conhecimentos especializa-dos que justifiquem a criação de umnovo grupo diferenciado (vamos sa-bendo “cada vez mais sobre cada vezmenos até saber quase tudo sobrequase nada...”) sem perder de vistaa necessária estruturação e funcio-namento dos organismos profissio-nais. A Direcção do Colégio de Pe-diatria propõe algumas reflexõessobre esta questão irrecusável.

1. Como organizar?

O reconhecimento das subespecia-lidades deve responder à existênciade grupos com conhecimentos es-pecíficos que se situam habitualmen-te nas fronteiras de 2 (ou mais) es-pecialidades “clássicas”. O actual re-gulamento das subespecialidadesprevê que possam coexistir as mes-mas subespecialidades em mais deum Colégio de Especialidade e queos respectivos corpos directivossejam eleitos simultaneamente comas Direcções dos Colégios. Esseprincípio levará, a curto ou médioprazo, à existência de 4 ou maisentidades com autoridade técnicaem cada área (2 Direcções de Co-légios e 2 Secções de Subespeciali-

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Reconhecimento desubespecialidades médicas

dade, por exemplo) o que criará gra-ves problemas de autoridade técni-ca ou pareceres contraditórios. Etodos esses órgãos terão igual legi-timidade pois responderão directa-mente perante o CNE que os no-meia após a consulta eleitoral! Emalguns casos, a Secção de Subespe-cialidade de um determinado Colé-gio poderá até ter só um elemen-to...Por esses motivos e pelos conflitose dificuldades que se adivinham é ne-cessário criar atempadamente umaestrutura funcionante e coerente.Não há soluções fáceis ou de acei-tação unânime mas é nesses mo-mentos que se identificam as lide-ranças corajosas. A Direcção doColégio de Pediatria tem estadoenvolvida no reconhecimento davárias subespecialidades pediátricase propõe algumas vias para resolu-ção do previsível “conflito de inte-resses”: Cada Secção de subespeci-alidade deve estar integrada numúnico Colégio, independentementedo Colégio de origem dos membrosda Secção. A escolha de qual o Co-légio onde cada subespecialidade seintegra deve ser da responsabilida-de do CNE depois de ouvir todasas partes interessadas no processo.As Comissões Técnicas de cada Sec-ção deverão ser eleitas entre os res-pectivos membros e responderãoperante a Direcção do Colégio. Seeste modelo for aceite criar-se-áuma estrutura hierárquica mais co-erente e funcional.

2. Como formar?

A formação “subespecializada” ca-

rece de processo estruturado quelhe confira autoridade técnica e cre-dibilidade perante os doentes. As au-todesignações não são método acei-tável! É, também, necessário acau-telar o número de subespecialistasa formar de forma a preservar o co-nhecimento e bom desempenho glo-bal em cada especialidade. Não hámuitas dúvidas que o processo nãoregulamentado poderá conduzir ainconveniente proliferação de Ciclosde Estudos Especiais e formaçãosubespecializada que respondamapenas às necessidades de “mão deobra” de cada Serviço; isso levariaa perverso desequilíbrio de médi-cos especialistas e subespecialistas.Sabemos por experiência que mui-to tardiamente os “mecanismos demercado” actuariam para corrigiressa perversão e entretanto assis-tiríamos à “balcanização” de váriasespecialidades. É pois necessárioexigir do Ministério da Saúde e daOrdem dos Médicos que haja umcorrecto planeamento das vagas elocais de formação anuais para cadaárea subespecializada.

3. Que nível desubespecialização?

A criação de cada subespecialidadepressupõe o exercício de determi-nada competência técnica que po-derá ter diferentes níveis de execu-ção e intervenção, conforme as ins-tituições onde se exerça a activida-de. Num artigo de opinião recente,a Dra. Teresa Neto defendeu que aNeonatologia como subespecialida-de de unidades de cuidados intensi-vos neonatais deveria ser diferente

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do exercício da Neonatologia emServiços menos diferenciados, masque ambas deveriam ter formaçõesespecíficas de diferente nível alémdo Internato de Pediatria. Sem con-testar a experiência “de saber fei-to” da Colega, esse raciocínio leva-ria à formação de Neonatologistasde 1ª e de 2ª, além dos PediatrasGerais, numa lógica de “fractal” emque cada divisão conduz a outrassubdivisões até ao infinito... Temosde aceitar que nem todos os Médi-cos duma Especialidade executam osmesmos procedimentos técnicos emtodos os serviços, e definir limitespara as subdivisões.

4. Reconhecimento dosSubespecialistas

Todo o “nascimento” é um proces-so difícil, mais ou menos dolorosoe as subespecialidades não fogem aessa regra. A Ordem dos Médicosdefine as regras desse processo queconsiste numa fase inicial – única -de reconhecimento inter-pares, se-guida de processo formativo obri-gatório para todos os candidatossubsequentes. A escolha dos mem-bros de cada juri é um processo

controverso por todas as razõesbem conhecidas mas a sua contes-tação só é legítima se alguma esco-lha recair sobre um Colega de com-petência duvidosa para a função ouse ocorrer exercício indevido dafunção. Para qualquer dessas excep-ções existem procedimentos de re-clamação. Passado esse momentoinicial apenas os candidatos aprova-dos ou com formação programadapoderão aceder à detenção do tí-tulo de subespecialista. Espera-seentão legitimamente que a Ordemdos Médicos actue junto das auto-ridades de saúde para que Unida-des ou Serviços “subespecializados”existam apenas dentro de um pla-neamento ordenado e com a pre-sença obrigatória da médicos cre-ditados com os títulos respectivos.Também ao nível da Direcção téc-nica desses Serviços só é compre-ensível que se mantenham ou sejamnomeados Colegas nas mesmas con-dições. A não ser assim para quevaleria o trabalho da criação e re-conhecimento das subespecialida-des?Ainda no processo de “reconheci-mento por consenso”, é conhecida

a morosidade do processo de reco-nhecimento de cada subespecialida-de, elaboração e aprovação dos fun-damentos, nomeação dos júris, can-didaturas, etc. Os Colegas interes-sados em cada um desses proces-sos mantêm uma compreensível ex-pectativa e impaciência pelo tempode espera. Quando o processo pas-sa finalmente para as mãos do jurinomeado, o volume de documenta-ção a analisar e a necessidade de es-tabelecer decisões por consenso étambém um factor adicional de de-mora. Mas é razoável pedir aosColegas que desempenham essasfunções (que aceitaram conscientesdo trabalho inerente), que actuemcom rapidez e transparência paraque cada processo se conclua rapi-damente.

Jorge Amil Dias (presid);António Vilarinho;A. Braga da Cunha;

Graça Rocha; Conceição Ramos;José Castanheira; Anselmo Costa;

Deolinda Barata, Paulo Oom;Agostinho Moleiro

Direcção do Colégio de Especialidade dePediatria

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Decorria o dia 3 de Maio de 2002, quando um Sr. agente daautoridade em pleno corredor do Serviço de Urgência doHospital Distrital de Faro, interpela directamente um Mé-dico Ortopedista em Serviço naquele dia à Urgência e dá--lhe ordem, para efectuar num doente que havia sidointerveniente num acidente de viação, exame para detecçãodo estado de influenciado pelo álcool ou por substânciasestupefacientes ou psicotrópicas e preenchimento do for-mulário respectivo.

O médico em causa diz na altura ao Sr. agente da autorida-de que devido a ter doentes a observar/tratar e cirurgias arealizar de alguma gravidade, não seria possível de momen-to atender à sua ordem.

Não foi inviabilizada a possibilidade, de após a observaçãodos doentes mais prementes e dos actos cirúrgicos realiza-dos e havendo disponibilidade, se dar seguimento à deter-minação emanada do Sr. agente da autoridade ou pelo me-nos equacionar da forma mais assertiva a resolução do so-licitado.

Em face da não disponibilidade imediata do médico para aordem dada pelo Sr. agente da Polícia de Segurança Pública,este, considera que o médico comete um crime dedesobediência à autoridade.

Permitam-me que, já aqui, faça alguns comentários à actua-ção da Polícia, que considero pouco eficaz e não resolutiva,marcada de pouco empenho e espírito abnegado, levando--se pelo caminho mais fácil de dar o caso por encerrado,quando provavelmente devia falar e solicitar os exames epreenchimento de formulários a outros médicos que esti-vessem mais disponíveis no momento.

Nesse dia no Serviço de Urgência do HDF, estavam de ser-viço 19 médicos.

Tinha ainda a autoridade a possibilidade de se dirigir aochefe de equipa do serviço de urgência, que como superiorhierárquico, assumiria a responsabilidade da realização dosrespectivos exames e preenchimento dos respectivos im-pressos ou então declinaria tal responsabilidade noutro mé-dico que lhe estivesse subordinado.

Em face do crime de desobediência, é movido um proces-

Álcool, estupefacientes e psicotrópicosQue Jurisprudência?

so crime ao médico pelo Ministério Público.

Em tribunal de primeira instância o processo é despachadonegativamente (com não pronúncia do arguido) e o Minis-tério Público não se conformando com a decisão da Ex.maJuíza, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora.

O Acórdão dos Meritíssimos Juízes Desembargadores é avários títulos exemplar e de importância relevante para osmédicos e o modus faciendi de um S. Urg.

Senão vejamos:

1 - As diligências previstas na lei para diagnosticar o estadode influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmenteconsideradas como estupefacientes ou psicotrópicas,encontram-se regulamentadas no Decreto regulamentarnº24/98, de 30-10, em cujo artº 6º, nº2, se estabelece que«na colheita da amostra de sangue devem ser utilizados osprocedimentos e o material definidos por portaria conjun-ta dos Ministros da Administração Interna, da Justiça e daSaúde».

Na portaria nº1.006/98, 30-11, que fixa os requisitos a quedevem obedecer os analisadores quantitativos e o modocomo se deve proceder à recolha, prescreve-se na sua sec-ção II, nº4.º, que a colheita destinada à realização das análi-ses para determinação do teor de álcool no sangue é efec-tuada pelo serviço de urgência hospitalar ao qual o agentede autoridade conduza o examinado.

Daqui resulta que aonde o agente de autoridade está obri-gado a conduzir o examinando é ao serviço de urgênciahospitalar, não é pessoalmente a um médico desse serviçode urgência, entregando-lho em mão e ordenando-lhe di-rectamente que faça o exame.

Ao ter o agente de autoridade procedido como procedeu,isto é, ao ter conduzido o examinando a um dos médicosdo serviço de urgência hospitalar, em vez de ter conduzidoo examinando ao serviço de urgência hospitalar, como im-põe a secção II, nº4, da portaria nº1.006/98, de 30-11, oagente da autoridade em questão não cumpriu a lei, exor-bitou da mesma e deu uma ordem ilegítima ao médico,que este não era, pois, obrigado a acatar e que, não acatan-do, não o faz incorrer na prática de desobediência.

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Na verdade, conduzir o examinando a um dos médicosdo serviço de urgência hospitalar, não é o mesmo que oconduzir ao serviço de urgência hospitalar.

O agente da autoridade não pode escolher, designar ouindigitar directamente o médico a quem ordenava quefizesse o exame, pois se assim fosse estaria a substituir odirector das urgências, o director do hospital, a orgânicade funcionamento do serviço, estaria a ser autoridademáxima no organismo, decidindo o que é que o médicotinha de fazer e deixar de fazer, estabelecendo as priori-dades do Serv. de Urg. e, por arrastamento, o que é quetodos os outros médicos de tal serviço iriam fazer edeixar de fazer para que a citada ordem se cumprisse.

2 - Mas, mesmo que a ordem tivesse sido legítima, teriaentão realmente funcionado para a escolha efectuada peloarguido a causa da exclusão da ilicitude apontada.

É que entre cumprir uma ordem de um agente da auto-ridade para proceder a um exame destinado a diagnosti-car o estado de influenciado pelo álcool e o dever deon-tológico de tratar das dores e queixas físicas dos doen-tes que tinha para observar e iniciar uma intervençãocirúrgica no bloco operatório, não havendo tempo parasatisfazer tudo, sem dúvida que prevaleceria este últimodever.

3 – Mas, o tribunal da relação de Évora vai ainda maislonge, quando diz: «E nem se diga que a intervenção ci-rúrgica poderia ter sido feita por outro médico, porqueé precisamente ao contrário que a situação deve ser vis-ta: o exame destinado a diagnosticar o estado de influ-enciado pelo álcool é que podia ser feito por qualqueroutro médico ou paramédico que na altura estivessedesocupado ou ocupado com assunto menos relevante».

O recurso do Ministério Público é assim indeferido e osMeritíssimos Juízes Desembargadores acórdão em man-ter o despacho de não pronúncia da primeira instância.

Estamos certos, que esta acção decisória do Tribunal daRelação de Évora, poderá vir a atenuar ou definitivamentedissipar algumas situações infelizes e perniciosas, de re-cíproca surdez e cegueira entre os órgãos de Adminis-tração directa do Estado, nas áreas da Saúde e da Admi-nistração Interna, de forma a que possa haver sempreuma sã e salutar relação de convivência e trabalhoinstitucional entre os vários intervenientes.

Que se cumpra sempre a lei e não se exorbite da mes-ma dando ordens ilegítimas e muito menos, quando se éou trata de agentes de autoridade.

Penso que deste processo saem prestigiados os Médicos

Jorge SalvadorSecretário Regional do SIM – Algarve

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e a Classe Médica, mas essencialmente sai defendida ereforçada a Ética e a Deontologia Médica.

Saem defendidos, em ultima instância, os Doentes e osofrimento destes, pois, segundo os Meritíssimos Juízesda Relação de Évora, não havendo tempo para satisfazertudo, (actos burocráticos, doentes) sem dúvida que pre-valeceria o dever de tratar os doentes, nem que o mes-mo se referisse, já que se fala de um Ortopedista, à maispequena mazela do mais pequeno dos ossos do CorpoHumano.

O tratamento da dor física prevalece sempre so-bre a realização do aludido exame.

Após este acórdão do Tribunal da Relação de Évora e dajurisprudência que nele se encerra ficam os Conselhosde Administração Hospitalares e os Directores Clínicoscom informação acrescida, no sentido de preencheremuma lacuna em termos de legislação interna dos Hospi-tais, sobre quais os procedimentos que o Serviço de Ur-gência devem adoptar em relação ao exames e preen-chimento de Formulário para rastreio do estado de in-fluência por álcool, estupefacientes ou psicotrópicos.

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António José de Barros VelosoMédico

“Pós-modernidade” é uma palavramaldita do léxico português que temsido alvo das reacções indignadas demuita gente, nomeadamente: físicosreformados, esquerdistas converti-dos ao neo-liberalismo, intelectuaiscatólicos e autores de textos de opi-nião1. Todos eles guardadores zelo-sos do Iluminismo e da modernida-de, têm uma outra coisa em comum:estão prontos a lançar sobre estanova heresia e seus cultores, violen-tas frases condenatórias. Vejamos al-gumas: “barbarismo pós-moderno”,“batoteiros e desmancha-feiras inte-lectuais”, “disparate pegado”, “obscu-rantismo e irresponsabilidade”, “con-fusões monumentais e fantasias de-lirantes”, “espécie de humanismopseudo-científico”. Além destes insul-tos, citam obrigatoriamente o inevi-tável “caso Sokal” e trazem a terrei-ro o confronto António Baptista/Boaventura Sousa Santos — exem-plo pouco edificante de um lamen-tável diálogo de surdos — apenaspara decretar a vitória do “físico”sobre o “sociólogo pós-modernocoimbrão”.A verdade, porém, quer eles quei-ram quer não, é que vivemos já numasociedade diferente, a que alguns de-cidiram chamar “pós-moderna”. Re-conhecer essa mudança não é neces-sariamente concordar integralmen-te com ela e muito menos quererimpor um programa ou lançar umacruzada para subverter os princípi-os da civilização. Posto isto, talvezvalha a pena fazer um pequeno es-forço para procurar perceber o queé isso da pós-modernidade.Ultrapassada a fase das narrativasmito-poéticas, a tentativa racional deconhecer o mundo gerou, na histó-ria do conhecimento, dois paradig-mas: o pré-moderno e o moderno.

Acerca da Pós-ModernidadeO primeiro iniciou-se com os pré--socráticos e estendeu-se, com algu-mas variantes, até ao Renascimento.De acordo com ele o mundo erafinito, fechado, ordenado hierarqui-camente e geocêntrico, e nele todasas coisas estavam ligadas, tinham umlugar natural e uma finalidade. Nocosmos havia que distinguir o mun-do supra-lunar imperecível e perfei-to, em que todos os movimentoseram circulares e uniformes, e omundo infra-lunar imperfeito em queos movimentos dos corpos tendempara uma posição de repouso. A ideiade um universo finito e geocêntricoestá presente na geometria euclidia-na, feita de círculos e segmentos derecta, e na astronomia ptolomaica emque todas as órbitas são circulares.O paradigma pré-moderno tinha,além disso, uma visão do homem in-tegrado de forma harmónica na na-tureza e com a natureza.A viragem do paradigma pré-moder-no para o paradigma moderno deu--se a partir do século XVII com aRevolução Científica. Longe de serum processo instantâneo, instalou--se de forma paulatina e as suas con-sequências epistemológicas, culturaise socio-políticas só tiveram uma ex-pressão plena muito mais tarde. Ini-ciado com Copérnico e continuadopor Kepler, Galileu e Newton, esteprocesso iria conduzir a uma formadiferente de conhecimento que per-mitiu explicar a realidade observávelatravés do não-observável e das leismatemáticas de aplicação geral, comoa lei da gravitação universal. Esta novaabordagem ultrapassou a visãoaristotélica de um mundo finito,animista e teleológico e deu origemà concepção de um universo infinito,frio e desconfortável feito de cor-púsculos que se atraem, repelem echocam cegamente entre si. Mas apartir daí foi possível explicar e pre-ver os fenómenos naturais e até

adaptá-los aos desígnios do Homem.Ao contrário do que acontecera comAristóteles, as ideias de Galileu e deNewton “funcionaram” e abriram aspor tas à c iência moderna e àtecnologia.Assistiu-se então ao triunfo do Ilu-minismo que não é senão a valoriza-ção da razão como forma de conhe-cimento. Pela emancipação intelectualo Homem pode conhecer e domi-nar a natureza sem recorrer a ou-tras fontes, como por exemplo, a re-velação. Kant lança um desafio:“Atreve-te a usar a tua própria inte-ligência!” e Laplace garante que“Deus já não é necessário”. O Ilumi-nismo é, pois, o princípio e o símbo-lo da modernidade. Mas, para alémda superioridade da razão, transpor-ta consigo uma nova ideia de Histó-ria que lhe fora transmitida pelaescatologia cristã. De acordo com elao tempo histórico desenrola-se deuma forma linear em direcção aoprogresso, ao desenvolvimento, àmudança social e à modernização.Avança de trás para a frente, do pas-sado para o futuro, estando implíci-ta, nesta visão, a ideia de que o futu-ro será necessariamente melhor doque o passado. Nascem assim asgrandes utopias que marcam a mo-dernidade – emancipação da razão,libertação “catastrófica” ou progres-siva do trabalho, conquista da liber-dade, enriquecimento de toda ahumanidade pela tecnociência capi-talista – que não são mais do queversões laicas da utopia cristã: a re-missão do mal e o reencontro como Pai.A partir do Iluminismo laico e raci-onalista vai-se constituindo uma es-pécie de fetichismo do “ser moder-no” que gera o eurocentrismo e ocolonialismo. E também o apareci-mento de “vanguardas”. Caracteriza-das pelo radicalismo, pela fuga paraa frente e pela atracção do interdi-

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to, assumem a missão de esclareceras “massas ignaras”. Sempre emnome do futuro, ou seja, da utopia.Sobre tudo isto pairavam, à vista detodos, os espantosos avanços cientí-ficos e tecnológicos. Se no séculoXVIII se perguntava “como é que aciência foi possível?”, no início do sé-culo XX o problema vai centrar-sena demarcação entre ciência emetafísica e na procura das bases só-lidas para o conhecimento científi-co. A pergunta agora é “como se fazciência?” e foi sobretudo o Círculode Viena que se empenhou em en-contrar respostas para estas ques-tões. O conjunto das suas reflexões,que ficou na história com o nomede “positivismo lógico”, saldou-senum tremendo fracasso.Mas é dentro da própria ciência queas coisas se vão complicar. A nature-za corpuscular ou ondulatória da luz,o campo magnético, as geometriasnão-euclidianas, a física quântica e ateoria da relatividade colocam ques-tões que abrem brechas nas leis dafísica até aí inabaláveis. Percebe-seentão que a teoria de Newton, ape-sar de excelente, era apenas “uma”teoria e não “a” teoria. É neste ce-nário que Niels Bohr, enuncia o prin-cípio da complementaridade segun-do o qual a descrição espaço-tem-poral e a relação causal não podemexistir em simultâneo. Ao admitir queo fotão é, ao mesmo tempo, onda epartícula, uma coisa ou outra confor-me os instrumentos de detecção,concluiu que o sujeito interfere deforma incontornável no acto de ob-servação. Punha-se assim de lado odeterminismo causal e a inter-sub-jectividade que tinham sido os funda-mentos indiscutidos da ciência mo-derna.Regressava-se deste modo a um ve-lho problema: as teorias científicascorrespondem a uma descrição darealidade ou são apenas instrumen-tos que nos permitem compreendero mundo e que são abandonadasquando surgem outras melhores?Galileu estava convencido que Deustinha desenhado o universo usando

uma linguagem matemática: a tarefado Homem consistia apenas emdecifrá-la. Esta convicção galilaica deque a ciência seria a chave para des-vendar a Verdade acerca do mundo,vai dominar o Iluminismo e grandeparte das elites do século XIX e XXmarcadas pelos vários positivismos.Curiosamente, já em 1948, MaxPlanck afirmava que para que umanova verdade científica fosse aceite,o melhor seria esperar que morres-sem os seus opositores e punha des-ta forma em causa a própriaracionalidade da ciência. Mas seriaThomas Kuhn com a “Estrutura dasRevoluções Científicas” (1962) a pro-vocar uma profunda viragem na for-ma de pensar a ciência. Ao defenderque ela não é cumulativa, que evoluipor roturas e por mudanças de pa-radigmas incomensuráveis entre si,ele introduziu o relativismo no cerneda actividade científica e pode porisso mesmo considerar-se como umpós-moderno avant la lettre.Foi só em 1979 que Jean-FrançoisLyotard publ icou “La Condi t ionPostmoderne”, livro fundador da re-flexão sobre a pós-modernidade, noqual soube interpretar os sinais deum tempo, que já era outro tempo,recorrendo a algumas ideias funda-mentais. A primeira dessas ideias tema ver com a crise das meta-narrativas,mais concretamente, das ideologias,dos grandes sistemas do saber e dasconcepções unitárias do mundo. Mas,ao mesmo tempo, chamou a atençãopara a emergência de um novo valor,o valor da contingência, segundo oqual muitas coisas que acontecemnum determinado quadro podemacontecer de outro modo face àsmúltiplas visões que existem acercado mundo. Lyotard mostrou-se tam-bém atento a um processo de mu-dança do próprio estatuto do saber:à medida que as sociedades vão en-trando na chamada era pós--industrial, o saber transforma-senuma mercadoria que pode ser pro-duzida e comprada e que se avaliapela sua eficácia. Tudo isto anuncia asuperioridade da performance sobre

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a norma, da funcionalidade sobre asubstância. Finalmente, ao fazer umaanálise do conhecimento científicoque, enquanto narrativa, não dispen-sa legitimação, apontou o facto deque a organização do conhecimentoem campos disciplinares diferencia-dos, que é uma das característicasnucleares da modernidade, se estavaa desfazer lentamente. A série deoposições binárias como “ciência--retórica”, “ciência-política”, “ciência--narrativa”, em que só a ciência era

apresentada com estatuto de conhe-cimento verdadeiro, começava adesacreditar-se face a uma culturade “desdiferenciação” na qual asfronteiras entre as diversas áreas seesbatem e tendem a colapsar.Onde outros, antes dele, tinham jáintuído estranhas mudanças nummundo a que chamavam pós--industrial, pós-utópico, pós-históricoou pós-bélico, Lyotard, ao marcar atransição de um “pós-modernosectorial” para um “pós-moderno fi-losófico”, procurou explicações parao que estava acontecer e, de uma for-ma brilhante, definiu os contornosde uma nova realidade.As reacções por parte dos guardiãesda modernidade não tardaram. ParaHabermas, Lyotard não passa de umneo-conservador incapaz de enten-der que o único problema do projec-to moderno das Luzes era estarinacabado. Mas para Lyotard não setratava do abandono de um projecto,mas sim da sua liquidação simboliza-da numa única palavra: “Auschwitz”.Era aí que tinha sido destruído fisica-mente o soberano moderno, o povo.E esse crime de “populicídio” abriraas portas à pós-modernidade porque,depois dele, nenhuma das grandesnarrativas de legitimação que tinhammarcado a modernidade podiamanter-se credível.Justifica-se falar em pós-modernidade?Parece claro que nos situamos hojenuma época de profundas e rápidasmudanças em que os componentesque formataram a modernidade estãoem profunda crise. E, se é certo quenunca é fácil apreender o contempo-râneo na medida em que é muito maisfácil conhecer aquilo que se encontraacabado, também não parece haverdúvidas de que estamos em trânsitopara um outro paradigma civilizacio-nal. Podemos não gostar. Mas nada nosadianta tapar o Sol com uma peneira.

Lisboa, 26 de Março de 2005

1 Ver “Da Medicina e da Cultura Hu-manista”. Rev. Ordem dos Médicos,Fev.2005

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Utilização de antidepressivos emcrianças e adolescentes

Na sequência de novos dados provenientes de ensai-os clínicos com medicamentos antidepressivos em queparticiparam crianças e adolescentes verificou-se umaumento do risco de comportamento suicida, a Co-missão Europeia solicitou ao Comité de Medicamen-tos de Uso Humano (CHMP) que procedesse àreavaliação do potencial de comportamento suicidanestes grupos etários. Esta revisão envolveu duas clas-ses de antidepressivos: os Inibidores Selectivos daRecaptação da Serotonina (ISRS) e os Inibidores daRecaptação da Serotonina e da Norepinefrina (IRSN).As substâncias activas aprovadas em Portugal envolvi-das nesta avaliação foram as seguintes: citalopram,duloxetina, escita lopram, f luoxetina, mianserina,milnacipran, mirtazapina, paroxetina, reboxetina,sertralina e venlafaxina.O CHMP concluiu que o comportamento relacionadocom o suicídio e hostilidade foram observados commaior frequência em ensaios clínicos com crianças eadolescentes que se encontravam a tomar estesantidepressivos em comparação com os que se encon-travam a tomar placebo. Neste contexto, O Infarmedrecomenda a não utilização destes medicamentos emcrianças e adolescentes, excepto nas indicações apro-vadas neste grupos etários. O CHMP recomenda quequando o médico decida prescrever estes medicamen-tos no tratamento com base na necessidade clínica in-dividual da criança ou adolescente, os doentes sejamrigorosamente monitorizados em relação ao apareci-mento de comportamento suicida, auto-agressividadeou hostilidade, em particular no inicio do tratamento.

Entrega do Prémio Ensino ProfessorFrancisco Pulido Valente 2005

A Fundação Professor Francisco Pulido Valente, em as-sociação com a Faculdade de Medicina de Lisboa, en-tregou a Carla Sofia de Jesus Reizinho o prémio quedistingue o melhor aluno da disciplina de Medicina IInuma cerimónia que se realizou no dia 12 de Maio.Durante a sessão foi efectuada uma conferência sobreo tema ‘Precisamos de mais médicos em investigaçãobásica”, a qual ficou a cargo de António Coutinho, Di-rector do Instituto Gulbenkian de Ciência.

Cientista portuguesa galardoadapor investigação pioneira

Paula Ravasco, investigadora da Unidade de Nutrição eMetabolismo do Instituto de Medicina Molecular, foigalardoada pelo International Research Promotion

N O T Í C I A S

Council que lhe atribuiu o Eminent Scientist of the Year2004 & Millenium Golden International Award, pelo es-tudo que desenvolveu sobre o impacto da alimentaçãoem doentes com cancro. Nesse estudo, Paula Ravascoconclui que uma nutrição adequada ajuda a tolerar me-lhor os tratamentos, razão pela qual, no tratamento glo-bal dos doentes oncológicos, dever-se-á ter em conta anutrição. Esta investigação foi desenvolvida em doentesdo serviço de radioterapia do Hospital de Santa Maria.

Prémio de Investigação emAutoimunidade

«Identificação e caracterização dos factores de suscep-tibilidade genética no lúpus eritematoso sistémico» é otítulo do trabalho que venceu o Prémio de Investigaçãoem Autoimunidade. Esta investigação (levada a cabo porgrupos do Instituto Gulbenkian de Ciências de Oeiras,do Serviço de Medicina II do Hospital de Santa Maria,da Unidade de Imunologia Clínica do Hospital de SantoAntónio, da Associação de Doentes com Lúpus, doHospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada edo Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar)debruçou-se as causas e patofisiologia do lúpus e tinhacomo objectivos a identificação da susceptibilidade ge-nética a esta patologia. Esta foi a primeira edição desteprémio, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Medi-cina Interna, através do Núcleo de Estudos de DoençasAutoimunes, com o patrocínio da Shering-Plough.

Prémios SOPEAM

Decorreu no dia 7 de Maio, na sede da Ordem dosMédicos, a entrega dos prémios da Sociedade Portu-guesa de Escritores e Artistas Médicos (SOPEAM). LuísLourenço, presidente da SOPEAM, salientou as dificul-dades que o júri teve que enfrentar dada a qualidadedas obras apresentadas e salientou que «a atribuiçãode um prémio não é demérito para os outros».Os galardoados desta edição foram:# Prémio «António Patrício» – Poesia – O 1º Prémiofoi para Joaquim Manuel pela obra «Pelas margens daserenidade», 1º Menção Honrosa foi atribuída a AntónioBarbedo de Oliveira por «A árvore do Sábado» e a 2ªMenção Honrosa a José Carlos Pacheco Palha por «So-netos vadios».• Prémio «Revelaçao» – Poesia – o 1º Prémio coube aCláudia Margarida Crespo da Cruz por «Triologia dosdias».• Prémio «Marcelino Mesquita» – Teatro – A «Vagabun-do de nós» de Daniel Sampaio foi atribuído o 1º Prémiodesta categoria.• Prémio “ Celestino Gomes” – Escultura - 1º Prémiopara Júlio Pêgo pela obra «Escultura em ferro sem nome».

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A lenda do lobinho bom

C O N T O S

Num certo dia de um determinado ano que não ficou regis-tado para a História, Zeus convocou todos os deuses meno-res, aqueles que não tinham pelouros a seu cargo, tais comoos Céus, os Infernos, os Oceanos, a Guerra, o Amor e ou-tros mais, e que também necessitavam do véu da invisibili-dade para não serem apercebidos dos mortais. Depois desentados à sua volta, olhou-os com a severidade e a majes-tade que convinha a um Deus e destinou a cada um delesum sector da terra para vigiarem, explicando-lhes:- A vossa missão é velar para que o equilíbrio, que é a razãode ser da natureza, não se perca; eu criei a vida para com-bater a desolação e o silêncio, mas não criei os seres vivospara que uns se aproveitem de tudo e outros fiquem semnada, não quero que desapareça qualquer espécie que euacolhi no meu reino.Depois, despediu-os, mas com um gesto reteve Epimeteu.Quando ficaram a sós disse-lhe que lheentregava o mais solitário e desolado lu-gar que havia, como castigo da sua irres-ponsabilidade quando, ao receber ordempara modelar os seres vivos, distribuindoas faculdades de que convinha que fossedotada cada estirpe para poder sobrevi-ver, ele esquecera-se do Homem e en-quanto todos os outros animais estavamconvenientemente apetrechados para asua conservação, o homem ficara nu e in-defeso, completamente necessitado de tudo o que precisa-va para a sua sobrevivência.*

Há mais de três milénios que Epimeteu fazia a sua rondahabitual pela área que Zeus lhe entregara para vigilância. ORei dos Deuses chamara-lhe Sector Z e dissera-lhe queera o mais desolador que havia à superfície da terra antesde existirem os desertos e as grandes cidades do mundomoderno. O centro desse Sector era o Monte das Laran-jeiras, onde Epimeteu iria morar, porque os deuses devemviver em lugares altos para estarem acima dos mortais, maslaranjas não havia nenhumas, provavelmente houvera-as, mashá muito tempo.Nesse dia, aniversário da sua chegada aquela terra, Epimeteuia recordando todos esses factos quando viu de novo olobinho bom. Fora ele próprio que assim o designara aoverificar o estranho comportamento desse animal. Conhe-cia-o desde cachorro, era extremamente vigoroso e ágil eseria de esperar que tivesse um papel preponderante nasua tribo, sobretudo quando no Inverno a neve cobria apradaria e os alimentos rareavam e os lobos se organiza-vam em alcateias, por vezes enormes quando a fome junta-va várias tribos, e atacavam os rebanhos. Nos primeiros

tempos, Epimeteu vira o jovem lobo integrado nas alcateias,mas notara que nessas ocasiões ele nunca matava uma ove-lha ou qualquer outro animal. No entanto não lhe faltavacoragem; uma vez que os homens da aldeia se juntaramcom os das povoações mais distantes para organizarem umabatida aos lobos que, acossados pela fome, se tinham tor-nado muito atrevidos, chegando a atacar a aldeia num diade forte nevão, os lobos foram cercados e sofreram nume-rosas baixas. O vigilante pôde ver que o lobinho, lutandocom grande bravura, contribuíra para livrar muitos dos seuscompanheiros cercados pelos cães pastores. No final foraele que, rodeando-se dos sobreviventes, atacara com fúriaa muralha humana que os cercava e a rompera, permitindoque todos se escapassem.Desde esse dia Epimeteu teve a certeza que o temerárioanimal seria eleito chefe da tribo logo que tivesse mais ida-

de, pois era ainda muito novo, mas nadadisso acontecera. Pouco a pouco, foi-setornando um misantropo, cada vez maisisolado, mais só, deixando até de partici-par nas caçadas. Quando sentia necessi-dade de alimento atacava então uma dashabituais presas que os lobos apreciam,mas demonstrava uma sobriedade verda-deiramente invulgar, não exteriorizandosinais de ferocidade. Nem mesmo o vira,na época do cio, com uma loba jovem, o

que muito o admirava porque apesar da sua robustez con-servava a beleza e a agilidade dum efebo. Tornava-se evi-dente que a alcateia o pusera de parte.Epimeteu tomou a seu cargo conhecer os motivos dessatransformação. Isso fazia parte das suas funções e todos osmilénios devia voar até ao Olimpo e aí relatar a Zeus osacontecimentos mais marcantes do seu sector. Zeus haviade gostar dessa história e talvez lhe perdoasse a sua falta…mas não, isso não iria acontecer uma vez que os homens,privados das defesas de que os outros animais foram dota-dos, tinham conseguido superar essa falha especializando--se na rapina, roubando aos outros animais, nos primeirostempos, o que precisavam, e mais tarde, quando adquirirammuita perícia nos seus saques e gosto por eles, passaram aroubar também o que não precisavam e mais tarde ainda,roubando e matando outros homens.De qualquer forma, Epimeteu esperava que Zeus ficassecontente e por isso tratou de se transformar em lobo eentrar em contacto com eles. Não era uma tarefa fácil paraum deus menor, não bastava o disfarce, teria de se munirtambém da personalidade de lobo para os poder compre-ender e para isso teria de recorrer à caixa dos milagresque o Rei dos Deuses lhe dera, com ordens para a usar

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com muita parcimónia. No entanto não hesitou, foi à caixados milagres e tirou um e com ele transformou-se, porinteiro, em lobo, sem ter perdido nada dos seus poderes dedeus.

Epimeteu não se dirigiu ao local onde os lobos realizavamas suas assembleias para tomar as grandes decisões neces-sárias à sua sobrevivência, porque sabia que o lobinho nãoparticipava nelas, antes caminhou para a beira do regatoonde o jovem animal costumava ir beber todas as noites,num local isolado, certo que o havia de encontrar. Quandolá chegou tudo estava silencioso e triste, tão silencioso edesolado que o Deus, metido na sua personalidade de lobo,sentiu um arrepio e olhou desconfiado à sua volta. Paradisfarçar o seu temor mirou-se nas águas e quase que deuum pulo para trás, vira um lobo de olhar frioe feroz a fitá-lo, nele não havia ternura nempiedade; depois compreendeu que era a suaimagem que estava vendo e lembrou-se queera um deus, e então ficou mais sossegado,afinal um lobo devia ser como ele se vira hápouco. Gostou até da sua imagem, para lobonão estava nada mal.Passado algum tempo ouviu passos que cau-telosamente se aproximavam; se Epimeteunão tivesse, nessa altura, estimulado um pou-co a sua personalidade divina certamentenada teria notado. Viu um lobo de grandeestatura, mas bem proporcionado e soube que estava emfrente daquele que procurava. Fitaram-se. Num segundoEpimeteu ficou petrificado, o olhar do jovem lobo era para-do, viscoso, terrível, não emitia nenhuma frieza, nenhumacrueldade ou ferocidade, mas era dez vezes mais aterrador,exprimia desolação e morte. O deus feito lobo não resistiu,num ápice virou as costas e fugiu. Correu de tal maneiraque a sua aparência de animal foi ficando para trás e quan-do chegou à sua mansão, no Monte das Laranjeiras, já erasó um deus.Muito tempo ficou a meditar no que observara, era tudotão estranho… No entanto ele sabia agora porque os ou-tros lobos evitavam o seu camarada que se tornara assimum solitário. Sabia, mas não compreendia. O que havia defazer? Nada, resolveu que contaria pormenorizadamente aZeus o que sucedera, o grande Deus certamente que tudolhe explicaria.

No entanto, o acaso (ou talvez não porque nunca foi expli-cado se no reino dos Deuses do Olimpo não haveria anjostutelares que preparavam as coisas para elas aconteceremnos momentos certos) fez com que a explicação da situ-ação que tanto o perturbara surgisse mais cedo.Numa manhã de Primavera, num dia tão bonito que atéfazia esquecer que aquele sítio era o mais desolado da ter-ra, Epimeteu passeava junto do regato, num local mais abai-xo do que aquele onde se passaram os acontecimentos

anteriormente narrados. O Deus ia tão distraído que atédeixara cair, sem se aperceber, o manto da invisibilidade, oque por pouco não o traíra. Com efeito, ia a entrar numprado descoberto, onde havia alguma vegetação em tufos,quando reparou que muito perto dele, junto ao regato, es-tavam duas crianças que brincavam com barquinhos demadeira que eles próprios tinham feito. Os barquinhos vo-gavam como elegantes cisnes, sem se chocarem nem sedesmancharem, de maneira tão harmoniosa que até pare-cia que tinham vida. As crianças não se apercebiam disso,

mas Epimeteu, que era um deus, sabia queos barquinhos transportavam parte da almados meninos porque tinham sido feitos poreles com muito carinho. Ainda não existia otempo em que os homens tinham deixadode fazer as coisas e compravam tudo feitonos hipermercados, onde as coisas não ti-nham alma porque não tinham sido feitascom amor.Epimeteu escondeu-se e observou a cena.As crianças eram lindas, apesar das roupasgrosseiras e em mau estado que traziamvestidas, e de terem a cara e as mãos

enlameadas. Eram um rapaz e uma rapariga, certamenteirmãos porque muito se assemelhavam e mais pareciamquerubins do que seres humanos.Aquela cena bucólica e feliz prolongou-se por algum tem-po, mas o Deus não tinha vontade de sair dali.De repente, um vento gélido fez-se sentir. Os meninos

Pedro AbranchesProfessor jubilado do Instituto de Higiene e Medicina Tropical

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aperceberam-se disso, mas não ligaram grande importân-cia, tão entretidos que estavam com os seus brinquedos.Mas Epimeteu compreendeu, o Deus dos ventos mandava--lhe um aviso, um perigo aproximava-se. O perigo era umlobo, um animal de grande estatura, mas elegante, que sedeslocava lentamente, sem se tentar esconder. O rapaz foio primeiro que o viu, o seu rosto empalideceu e ficou está-tico, incapaz de reagir, apertando fortemente o braço dairmã que o olhou espantada até que percebeu. Não mos-trou, no entanto, medo, no seu rosto infantil lia-se apenassurpresa. Olhou para a fera com confiança e sorriu. O lobonão mostrava nem medo nem atitude hostil. Então Epimeteu,que já o tinha reconhecido, olhou para ele e ficou estupe-facto, o seu olhar que tanto o tinha atemorizado quando,feito lobo o encarara pela primeira vez, mostrava agoradoçura e nele se descortinava uma chama envolvente deamizade. Epimeteu não teve nenhuma dificuldade em o per-ceber porque os deuses, tendo feito os homens à sua ima-gem possuíam sentimentos humanos e não precisavam dacaixa dos milagres para se humanizarem.Então, Epimeteu percebeu que não necessitava de pergun-tar coisa alguma a Zeus porque finalmente compreendera.Compreendera que o olhar do lobo fora sempre o mesmo,terrífico ou carinhoso, a diferença não vinha dele, mas simde quem o observava. Dependia do padrão de valores dasociedade em que estava inserido.Mas compreendeu muito mais, compreendeu que era a di-ferença que condicionava o comportamento dos seres, tantohumanos como animais e compreendeu que nem uns nemoutros gostavam das diferenças. Aquilo que era diferentedeles metia-lhes medo e não aceitavam. E como não com-preendiam procuravam destruí-lo para acabar com o medo.Era por isso que os lobos se assustavam com um olharamigável porque entre eles, na luta pela vida, não havia ter-nura, enquanto que as crianças compreendiam a ternuraporque nelas não havia maldade. Compreendeu porque oshomens ostentavam sentimentos racistas e xenófobos por-que nem todos tinham a mesma cor de pele e falavam lín-guas diferentes, compreendeu porque os cristãos queima-vam os hereges e porque os hereges degolavam os cristãos.Compreendeu que Cristo fora crucificado porque pregavao amor e o perdão a uma sociedade que só conhecia acrueldade e o ódio. Compreendeu, por fim, porque é quese um homem via uma aranha, imediatamente a pisava semindagar primeiro se esse pequeno aracnídeo era inofensivoou, até, se era amigo do homem já que comia os insectosque o incomodavam e lhe transmitiam doenças.Epimeteu deixou as crianças ao cuidado do lobinho bom etomando a primeira nuvem que passou dirigiu-se ao Olimpoonde Zeus o esperava, disposto a perdoar-lhe o seu errode outrora.

Natal de 1997 (revisto em Setembro de 2004)*O erro de Epimeteu é pormenorizadamente relatado por Platão no seudiálogo“Protágoras”.

C O N T O S

N O T Í C I A SMédicos na Direcção da Associaçãodos Atletas Olímpicos

A Direcção da Associação dos Atletas Olímpicos, eleita para omandato de 2005 a 2008, tem na sua composição três médi-cos: o presidente, António Gentil Martins (tiro com pistola develocidade), e dois dos seis vice-presidentes: Mário gentil Qui-na (medalha de prata em 1960 na vela, em Roma) e PetraChaves (natação).

Caring Physicians of the World

O médico português Albino Aroso foi seleccionado para serincluído na publicação internacional Caring Physicians of theWorld, onde será publicado o seu perfil (quer em termospessoais, quer em termos profissionais). Alexandre LinharesFurtado e Jacinto Simões serão citados na publicação, comonomeados. Este livro é uma publicação única a nível internaci-onal e consubstancia um projecto que pretende aumentar acompreensão generalizada em relação à profissão médica eao seu valor.

Pareceres de Avaliação daComparticipação de Medicamentos

O Infarmed deu início à publicação da informação relativa àsdecisões de comparticipação de medicamentos no sítio doInfarmed na Internet, nomeadamente os Pareceres de Avalia-ção da Comparticipação de Medicamentos. Os pareceres pu-blicados são um resumo da avaliação, farmacoterapêutica eeconómica, resultante da avaliação que é efectuada no Infarmeddos pedidos de comparticipação que lhe são submetidos. Estainformação está disponível na área das comparticipações em:www.infarmed.pt/pt/comparticipacao_medicamentos/index.html

Problemática da adesão à terapêuticaA má adesão à terapêutica em patologias crónicas é res-ponsável pelo agravamento da doença e consequentes gas-tos em novos medicamentos e hospitalizações.Compreendendo a magnitude deste problema, o Centrode Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdadede Medicina de Lisboa (CEMBE) com o apoio da ratiopharmapresentou a primeira Norma de Orientação Clínica relativaà adesão terapêutica em patologias crónicas, da autoria deAntónio Vaz Carneiro (Director do CEMBE) e AntónioBugalho (Consultor Científico do CEMBE). A publicaçãoaborda a problemática da não adesão à terapêutica en-quanto um factor decisivo para o doente e Estado. O CEMBEinvestigou os principais factores que estão na origem danão adesão, enunciando um conjunto de recomendaçõesdestinadas a sensibilizar os profissionais de saúde para ofacto da prescrição só por si não garantir o tratamento dapatologia, uma vez que, na grande maioria das vezes, asindicações médicas não são seguidas pelo doente.

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Viva Pancho

Viva Pancho de A. d´Alpoim Guedes está emexposição de 13 de Maio a 11 de Junho naPerve Galeria de 2ª a Sábado das 14h às 20h(www.perve .org.pt). A exposição «VivaPancho» visa assinalar os 60 anos de obraartística e os 80 anos de vida do autor, queos completa no dia da inauguração – 13 deMaio. Apresentam-se 92 obras, pintura, de-senho e escultura, que, de forma antológica,re f lectem o percurso p lást ico einter vencionista de Amâncio d’AlpoimMiranda Guedes, também conhecido porPancho Guedes.

C U L T U R AExposições

Espelhos do ParaísoDe 6 de Maio até 31 de Julho poderá visitar «Espelhos do Para-íso - Tapetes do mundo Islâmico, sécs. XV-XX», uma exposiçãoda Fundação Calouste Gulbenkian em colaboração com o Institutdu Monde Arabe (Paris). O conjunto de 56 tapetes agora apre-sentado provem de algumas das mais prestigiadas colecçõespúblicas mundiais como o Museu de Arte Islâmica de Berlim, oMetropolitan Museum de Nova Iorque, o Victoria & AlbertMuseum de Londres, o Museu de Artes Decorativas de Paris, oMuseu dos Tecidos de Lyon entre outros que, juntamente comexemplares da própria Colecção Gulbenkian, vêm demonstrara riqueza decorativa e simbólica dos tapetes orientais.Paradoxos: incorporar a cidadeDe 2 de Junho a 3 de Setembro poderá visitar esta exposiçãona Fundação Calouste Gulbenkian. A exposição integra artistasromenos de três gerações cujo trabalho tem como preocupa-ção central a relação entre a cidade enquanto corpo orgânico edesordenado e o corpo propriamente dito enquanto repositóriode memórias e de vivências. Em torno da mostra, a Fundaçãoprocura dar a conhecer com maior profundidade, através darealização de eventos paralelos, alguns aspectos do pensamentoromeno contemporâneo.