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12º Encontro da ABCP 18 a 21 de agosto de 2020 Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB) Área Temática: Teoria Política A HEGEMONIA EM A. GRAMSCI E SEUS ASPECTOS JURÍDICO-POLÍTICOS: O CASO FRANCÊS Sabrina Areco Doutora em Ciência Política (UNICAMP)

Sabrina Areco Doutora em Ciência Política (UNICAMP)

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12º Encontro da ABCP

18 a 21 de agosto de 2020

Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa (PB)

Área Temática: Teoria Política

A HEGEMONIA EM A. GRAMSCI E SEUS ASPECTOS JURÍDICO-POLÍTICOS: O CASO

FRANCÊS

Sabrina Areco

Doutora em Ciência Política (UNICAMP)

Resumo

Este artigo explora o conceito de hegemonia nos Quaderni del carcere (1929-1935) escritos

por Antonio Gramsci (1891-1937) tendo como objeto a análise da França e da Revolução

Francesa. Essa experiência foi tratada pelo autor como emblemática na construção da

hegemonia e, por isso, mobilizada em diferentes momentos de seus escritos. Pretende-se

demonstrar como os elementos jurídicos e as disputas parlamentares aparecem na

elaboração do conceito de hegemonia sob dois eixos articulados: mobilizam tanto os

agentes políticos como os grupos sociais que demandam mudanças (em especial, os

estratos populares do campo); do que se depreende a existência de uma politização desse

estrato. Pretende-se assim destacar neste artigo a importância dos elementos jurídicos e da

política parlamentar francesa na elaboração do conceito de hegemonia, tratados por

Gramsci como instrumentos para a obtenção do consenso.

Palavras-chave: hegemonia. Antonio Gramsci. Revolução francesa (jacobinos).

Abstract

This article explores the concept of hegemony in the Quaderni del carcere (1929-1935)

written by Antonio Gramsci (1891-1937) with the object of analyzing France and the French

Revolution. This experience was treated by the author as emblematic in the construction of

hegemony and, therefore, mobilized in different moments of his writings. It is intended to

demonstrate how the legal elements and parliamentary disputes appear in the elaboration of

the concept of hegemony under two articulated axes: they mobilize both political agents and

social groups that demand changes (in particular, the popular strata of the field); than it

appears that there is a politicization of this stratum. It is intended, therefore, to highlight in

this article the importance of legal elements and French parliamentary policy in the

elaboration of the concept of hegemony, treated by Gramsci as instruments for obtaining

consensus.

Key words: hegemony. Antonio Gramsci. French revolution (jacobins).

2

INTRODUÇÃO

O intelectual e militante político A. Gramsci (1891-1937) tem na noção de hegemonia

uma de suas principais contribuições à teoria política do século XX1. O autor construiu o

conceito abordando diferentes processos históricos, colocando-os em confronto ou

identificando similaridades, de maneira a construir uma noção de hegemonia que tivesse

capacidade explicativa mais ampla, isto é, que conseguisse lidar com uma variedade de

casos empíricos aproximando-se de uma teoria geral das relações de forças sociais e

políticas que dão sustentação e fundamento ao Estado integral. Junto a essa capacidade

explicativa mais geral, o conceito de hegemonia também foi operacionalizado considerando

a configuração particular de cada experiência analisada. O conceito de hegemonia aparece,

portanto, entre o esforço de generalização ligado à construção de uma teoria das relações

de forças e à análise de casos particulares, com referência a diferentes países e contextos

históricos diversos2.

Este artigo explora o desenvolvimento do conceito de hegemonia de Gramsci

tratando do aporte da Revolução francesa ao tema. Na abordagem sobre a Revolução na

França, grande parte da atenção do autor foi delegada aos jacobinos, tratado como grupo

político que conseguiu dirigir a classe revolucionária para suas conquistas mais estáveis (Q.

1; Q. 13; ARECO, 2018)3. Considerando que a luta pela hegemonia conduzida pelos

1 O conceito tem diferentes origens ou fontes e uma trajetória particular na reflexão gramsciana. Emuma bastante breve síntese da literatura mais recente, ao conceito de hegemonia foram atribuídas asseguintes ascendências teóricas e históricas: 1) o debate linguístico da virada do século (PIPARO,1979); 2) a experiência vivida na URSS entre 1922-1923, no contexto de construção do Estadoproletário (THOMAS, 2018) e as ideias Lenin, assim como os debates políticos e culturais ligados àdiversidade étnica e linguística russa (SCHIRRU, 2008, 2011); 3) a filosofia de B. Croce, o que levariaa uma audaciosa articulação do neo-idealismo com o marxismo (MATTEUCCI, 1951) e 4) a históriafrancesa e a construção do Estado moderno no século XVIII, em especial a fase jacobina (1793-1794)(MÉDICI, 2000). 2Como observou Buttigieg (1990, p. 64) sobre a forma de elaboração teórica em Gramsci:“Certamente, quando fragmentos ou partes determinadas de uma informação ou observaçõesespecíficas levam a uma intuição geral ou generalizante qualquer, a generalização não alcança ostatus de uma teoria global que atribui às particularidades um significado definido, ficando autônomaem face delas. As generalizações ou os conceitos não estão nunca completos ou acabados; estãosempre numa relação fluida, crescentemente complexa diante de outras generalizações ouconceitos”. 3 Q. designa o caderno seguido do número do mesmo. Doravante utilizaremos § para indicar oparágrafo citado dos Q. Utiliza-se a edição crítica dos Quaderni del carcere (GRAMSCI, 1975) e aedição nacional (GRAMSCI, 2017) quando citado o Q. 1.

3

jacobinos dependeu tanto de sua aliança com estratos populares quanto das conquistas no

âmbito jurídico-político, a ideia de Gramsci é que tais elementos - a política radical dos

jacobinos e a noção de direito ligada aos princípios da Declaração de 1789 - estavam

entrelaçados e iam adaptando-se e sendo reformulados em razão das lutas colocadas pelo

contexto. Nesse aspecto, Gramsci notou alguns elementos que encontram ressonância em

produções historiográficas recentes e que identificaram que os jacobinos colocaram em

questão os princípios do livre mercado e do direito de propriedade. Isso foi feito com a

regulamentação econômica e com a formulação da ideia de direito à existência como

contraponto à propriedade privada (BOSC, 2013; GAUTHIER, 1992, 1985).

Portanto, o que se pretende explicitar é que, considerando a experiência francesa, a

hegemonia dependeu de um conjunto de instrumentos que tem nos elementos jurídicos

relevância de primeira ordem. Os revolucionários apoiaram-se em uma linguagem jurídica,

em especial nos chamados direitos naturais e imprescritíveis, a saber, liberdade, segurança,

propriedade e a resistência à opressão4. Não obstante, a atuação dos mesmos dependeu da

capacidade de adaptação desses mesmos princípios, daí a importância também da atuação

parlamentar dos jacobinos, como uma arena na qual as elaborações acerca dos direitos

naturais eram colocadas em disputa.

O tema será tratado neste artigo considerando também que a noção de hegemonia

sofreu uma mudança no interior dos Q. (Quaderni del carcere), passando de uma definição

mais restrita e ligada aos elementos políticos institucionais e à função de direção de uma

classe ou grupo sobre as demais; para uma concepção na qual a hegemonia passava a ser

entendida como um processo no qual se articulam dominação e direção e que, no caso

francês, conjugou movimentos sociais e um tipo de linguagem particular - a linguagem

jurídica.

I. HEGEMONIA (POLÍTICA)

O caso da França do século XVIII foi mobilizado em diferentes momentos dos Q., ao

qual Gramsci considerou que deveria ser “aplicado ao exame dos estudos históricos

concretos” (Q. 4, § 39, p. 707)5. A hegemonia naquele país foi conquistada - de acordo com

4Os direitos naturais foram proclamados no artigo 2 da Declaração dos direitos dos homem e docidadão. A declaração foi preâmbulo da Constituição de 1789, que instaurou uma monarquiaconstitucional, e na Constituição de 1791, que transferiu a soberania ao povo.5Sobre a presença da França no pensamento do autor ver: GERVASONI, 1998. A Revolução

4

o autor dos Q. - através de uma longa e radical revolução que promoveu uma ruptura com a

antiga ordem. Essa ruptura a diferencia de outros processos políticos históricos, como no

caso italiano, no qual a revolução (que ele chamou de passiva) mobilizou sobretudo grupos

dominantes, em especial a aristocracia rural e forças estatais que dirigiram o processo de

Unificação. Por isso, neste último caso, não houve a superação do passado, mas um arranjo

no qual as antigas forças sociais mantinham-se e davam um contorno do Estado italiano

pós-Risorgimento no qual se excluíam as demandas das massas populares (Q. 19).

O que particularizou a experiência francesa, para Gramsci, foi a atuação dos

jacobinos. Eles foram tratados como um partido radical e vinculado às necessidades da

burguesia. Não obstante, não atuaram circunscritos às necessidades imediatas e sim

orientados por um projeto futuro e que, portanto, deveria considerar as formas de

estabilização das conquistas da classe (Q. 13; ARECO, 2018; MÉDICI, 2000). Em um

processo no qual a classe burguesa construía sua hegemonia, a legislação foi um elemento

crucial para a definição da República. Com o período jacobino, as tensões entre os

parlamentares e os movimentos sociais, em especial com os camponeses, foram de certo

modo dirimidas pela assumpção dos jacobinos às reivindicações populares.

No Q. 1, § 44 (p. 48) Gramsci tratou dos jacobinos e iniciou sua reflexão acerca do

conceito de hegemonia. Intitulado Direzione politica di classe prima e dopo l’andata al

governo [Direção política de classe antes e depois da chegada ao governo], apontou que a

classe deve ser dominante de duas formas: dirigente dos aliados e dominante das classes

adversárias; e que ela “pode e deve ter uma “hegemonia política” também antes da chegada

ao Governo e que não pode contar apenas com o poder e a força material que esse dá para

exercitar a direção ou hegemonia política”. Deve-se notar, aqui, nesta primeira utilização do

termo hegemonia, sua adjetivação como política; a utilização de aspas e o sentido atribuído

ao termo como exercício de direção ou supremacia (COSPITO, 2009, p. 266).

Gramsci explorava então a questão territorial italiana articulada com a atenção a sua

composição. A fragmentação que pode ser tratada como a oposição entre o Norte urbano e

o Sul rural na Itália aparece neste trecho do Q. 1 (§ 43, § 44) como síntese da cisão

profunda e histórica do país, ao mesmo tempo que a superação da oposição rural e urbano

é tratada como um problema mais amplo e ligado ao próprio processo de consolidação dos

Estados nacionais em geral e não apenas a uma questão italiana. Esse caráter amplo foi

apontado, ainda no Q. 1, § 44, quando elaborou uma comparação da Itália com a França.

francesa em Gramsci foi analisada em Areco (2018).5

Diferente do Partido da Ação, que atuou no Risorgimento italiano, os jacobinos teriam lutado

para estabelecer uma relação entre campo e cidade como forma de criar uma unidade que

fosse não apenas territorial, mas também política e social. A unidade era, assim, um

conteúdo das lutas dos jacobinos (Q. 1, § 44, pp. 48-67).

Portanto, há nesta primeira elaboração do conceito de hegemonia nos Q. a

referência à França e aos jacobinos. O destaque é a capacidade da experiência francesa

servir como contraponto para a análise do processo de formação do Estado italiano

moderno para em seguida expandir-se para tratar dos processos de formação dos Estados

nacionais em geral. A luta pela hegemonia havia levado o partido francês a um duplo

movimento: abandono das reivindicações corporativas, ganhando assim uma dimensão

efetivamente política e não restrita às lutas econômicas e aos agentes diretamente

envolvidos, atuando como dirigentes de um projeto de classe com intenção de estabilizar-se

e manter-se ao longo do tempo; e por isso amparado nas camadas populares, isto é,

exercendo a direção de amplos estratos. Neste caso, a questão da propriedade rural foi

central. Os jacobinos superaram uma visão na qual “a questão agrária era apresentada

como separada da questão nacional [...]: a província aceitava a hegemonia de Paris, isto é,

os rurais entenderam que seus interesses estavam ligados aos da burguesia” (Q. 1, § 44, p.

63).

Na disputa parlamentar, na qual se antagonizavam os jacobinos e os girondinos, a

política agrária foi um ponto fundamental. Para os girondinos a distribuição de terra

contrapunha-se ao direito de propriedade herdado da antiga aristocracia rural, isto é,

colocava tais títulos em questão. Os jacobinos, por sua vez, aderiram à defesa da partilha

dos bens rurais que era reivindicada por movimentos políticos camponeses da época e que

era defendido pelo grupos dos Enragé, também presente no parlamento. Para Gramsci, ao

aderirem a tal reivindicação, os jacobinos foram estratégicos, atentos à necessidade

colocada pelas circunstâncias as quais “não podiam renunciar sob a pena de suicídio” (Q. 1,

§ 44, p. 63). Os jacobinos estavam fragilizados e o apoio popular, obtido por meio da defesa

dessa política, seria a forma de enfrentar os antagonistas no âmbito do parlamento ao

mesmo tempo que possibilitaria o “alargamento dos interesse da classe burguesa,

encontrando apoio em outros estratos do Terceiro Estado” (Q. 1, § 44, p. 62). Por isso os

jacobinos “capturaram” a base popular dos Enragé e ao assumir a defesa da política agrária

(divisão de terras) puderam evitar que a aristocracia e os grandes proprietários rurais se

fortalecessem. Com a ideia de “república una e indivisível”, contra o federalismo girondino,

6

os jacobinos ainda lograram articular a questão nacional com a questão agrária, o que pode

ser entendido como a criação de um projeto de república dos pequenos proprietários com

esses produtores sentindo-se integrados à unidade política e estabelecendo uma relação

com a terra de tipo formal amparada no direito à propriedade.

Os jacobinos teriam, assim, exercido uma dupla função: expandem a Revolução

burguesa, através da base social conferida pelos segmentos populares; ao mesmo tempo

que canalizam as reivindicações que poderiam fazer com que a República avançasse para

além dos limites da classe burguesa. Gramsci estava apoiado na historiografia que entendia

que eram esses os limites de atuação dos jacobinos - eram burgueses - e sua atenção recai

portanto sobre a questão da aliança com os demais estratos. Frosini (2016) propõe uma

leitura algo diferente, considerando que para Gramsci os “excessos democráticos” dos

jacobinos, no movimento de estabilização do Estado burguês, foram substituídos pela

“moderação e controle”. Isto é, os jacobinos seriam a instabilidade e os excessos,

impossíveis de serem combinados no exercício da hegemonia sob risco de fraturas

disruptivas. Não obstante, em outras partes dos Q. Gramsci combinou jacobinismo e

estabilidade burguesa, como ao afirmar que o jacobinismo de conteúdo é aperfeiçoado pelo

parlamentarismo (Q. 1, § 48, p. 71). O que isso significa? No nosso entendimento, é a ideia

de que a concepção de unidade presente nos jacobinos (cidade + campo, formando a

República una e indivisível) não pode ser abandonada na medida em que foi substrato para

as alianças, por um lado, e, por outro, é instrumento para a formação de consenso, do que

depende também o exercício equilibrado da hegemonia. Portanto, a hegemonia burguesa foi

conquistada e estabilizada não apesar do jacobinismo, mas sim com a importante

contribuição desse grupo político e do desenvolvimento teórico-prático posterior de seus

princípios.

Exercer a direção (ou a hegemonia política) sobre os demais segmentos do Terceiro

Estado dependeu do fato de que:

os jacobinos não eram abstratos [...]. A linguagem dosjacobinos, a sua ideologia, refletiam perfeitamente asnecessidades da época, segundo as tradições e a culturafrancesa (cfr. na “Sagrada Família” a análise de Marx a partirda qual resulta que a fraseologia jacobina correspondiaperfeitamente às formas da filosofia clássica alemã, a qual sereconhece hoje a maior concretude e que deu origem aohistoricismo moderno) (Q. 1, § 44, p. 62).

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A linguagem que permitiu ligar os jacobinos aos segmentos populares foi a

linguagem jurídica, colocada em termos de direito, de maneira que ela se tornou um dos

instrumento da hegemonia se a entendemos como construída pela obtenção do consenso

(direção) e domínio (exercício também da força) (COSPITO, 2017, p. 27). Juntamente com

Marx, Gramsci considerou-a adequada às necessidades revolucionárias daquele contexto,

articulada à cultura francesa da época. Portanto, pode-se entender que a direção política

dependeu do compartilhamento de uma linguagem particular, de maneira que a hegemonia

política (tal como Gramsci utilizou o termo no Q. 1, § 44) exercida pelos jacobinos não foi

arbitrária, mas amparada em elementos culturais e históricos assentados na cultura

francesa. Esses elementos remetem desde a filosofia iluminista e à ideia de direitos

humanos e naturais e às elaborações então em curso no próprio processo revolucionário.

Nesse aspecto, não é possível afirmar que há em Gramsci uma distinção entre direito

positivo e direito natural, mas que ele os trata em uma perspectiva que é considerada por

parte dos estudiosos do direito e das leis como uma abordagem artificialista, isto é, que

compreende o direito como construtor ou elaborador de costumes e comportamentos

(PRETEROSSI, 2018, p. 241). Há, portanto, um aspecto bastante interessante em Gramsci

na medida em que a ideia de linguagem jurídica, ao tratar da Revolução francesa, acena

concomitantemente ao passado e ao futuro; isto é, pautada em uma certa direção cultural

pré-existente na cultura francesa e ao mesmo tempo indica que ela é capaz de, por meio

dessa linguagem, construir elementos para a estabilização da dominação de classe em seu

desenvolvimento futuro.

A elaboração de Gramsci acerca da França, tal como exploramos até aqui, permite-

nos pensar sobre as relações entre as lutas parlamentares e as mobilizações populares. A

atuação parlamentar era orientada pelo interesse de classe. Mas isso alcança apenas uma

parte do fenômeno: os conflitos entre os jacobinos e girondinos eram disputas no interior da

própria classe revolucionária. Enquanto os girondinos ficaram limitados à defesa

intransigente da propriedade privada, os jacobinos contribuíram para a expansão - através

da aliança - da base de seu partido. A linguagem jurídica utilizada pelos jacobinos servia-lhe

tanto como instrumento de mobilização das massas como um elemento a ser reformulado

ou adaptado, em um contexto em que as formulações contidas na Declaração dos direitos

dos homens eram discutidas e deveriam ser elaboradas nos termos do direito positivo.

Essa primeira elaboração carcerária sobre o conceito de hegemonia, na citada nota

do Q. 1, § 44 sobre a qual nos detemos até agora, foi escrita entre fevereiro de 1929 e maio

8

de 1930 e está inserida em uma reflexão sobre a formação dos intelectuais italianos. Desde

o § 43 pode ser identificada uma virada política na reflexão de Gramsci6. No § 46, Gramsci

voltou a tratar da hegemonia, agora sem aspas e sem o adjetivo política, abordando a força

dos moderados sobre os intelectuais italianos, pensando então no movimento de direção no

contexto do Risorgimento e na articulação entre intelectuais e política (Q. 1, § 46, p. 68).

Ainda no Q. 1, portanto, a noção de hegemonia, embora não tenha o sentido ainda

estabilizado, estava sendo desenvolvida e inserida no léxico dos Quaderni articulada a um

conjunto de conceitos e de análises políticas concretas e que dedica atenção especial à

França e aos jacobinos em particular.

Na nota 47, ainda no Q. 1, a temática do Estado emergiu de forma mais categórica

com a referência a Hegel e Marx. Embora não utilize aqui o conceito de hegemonia,

Gramsci elaborou neste parágrafo a relação entre Estado e sociedade civil. A sociedade civil

em Hegel, indica Gramsci, é econômica e não propriamente política - sociedade civil como

trama privada do Estado formada por corporações - ainda que o filósofo alemão tenha

intuído, pela experiência da Revolução francesa, o “estado parlamentar com o regime de

partidos” (Q. 1, § 47). Não era possível, ainda, para Hegel apreender a forma política então

em desenvolvimento, multiplicada no século XIX e XX em diferentes organizações como

partidos, sindicatos, associações, etc.; com a formação de grupos regulares e de atividades

permanentes, voltados para a atividade política e encontrando estratégias comuns e

compartilhadas de atuação. No § 48 (Q. 1), os jacobinos foram considerados como um

movimento inicial, quase extemporâneo, da forma de organização política moderna e que se

consolidaria no século XIX.

A questão importante para nosso argumento é que a experiência francesa foi

retomada nos Q. 1, nos § 47 e § 48, contribuindo com a definição de Estado como

“Governo com o consenso dos governados, mas consenso organizado, não genérico e vago

que se afirma no momento das eleições: o Estado tem e demanda o consenso, mas também

‘educa’ este consenso com as associações políticas e sindicais, que no entanto são

organismo privados, deixados à iniciativa privada da classe dirigente” (Q. 1, § 47, p. 69).

Trata-se de um passo adiante na definição da hegemonia, sendo então tratado como uma

6 O tema dos intelectuais, ao ser articulado com a análise do Estado, havia expandindo a definição corrente domesmo, indicou o próprio Gramsci (LC 210, de 7 de setembro de 1931) (GRAMSCI, 1973). Sobre Estadoampliado, a referência essencial é BUCI-GLUCKSMANN, 1980.

9

dinâmica inserida no âmbito da sociedade civil, cuja definição dependeu também do

processo de mudança histórica marcada pela complexificação da sociedade civil. Como

Frosini assinalou, o conceito de hegemonia no textos carcerário passou por um crescente

intercruzamento entre sociedade civil e sociedade política, ou entre as esferas públicas e

privadas, e tem nessa fase da redação dos cadernos e na referência à elaboração hegeliana

de sociedade civil presente no § 47 um momento essencial (FROSINI, 2016)7.

Gramsci passou a explorar na mesma nota - § 47 - o processo no qual diversas

instituições da sociedade civil foram criadas, demonstrando como a Revolução francesa

forneceu um repertório de instituições e de organizações de natureza política que passaram

a fazer parte da política nos séculos subsequentes: “A Revolução francesa oferece dois

tipos prevalentes: os clubs, que são organizações não rígidas, tipo “comício popular”,

centralizada por indivíduos políticos singulares, cada um com seu próprio jornal, com os

quais obtém a atenção e o interesse de uma determinada clientela diferenciada nas

margens, que depois apoia as teses do jornal nas reuniões dos clubes.” Essa organização

contém grupos internos mais restritos, “que se conhece reciprocamente e que se reunia à

parte”. No período entre 1815 e 1830, passa a existir uma notável “diferenciação no campo

político popular”, aperfeiçoado mais tarde dando origem a personalidades como Blanqui e

Filippo Buonarroti (Q. 1, § 47, p. 70), ou seja, ao tipo político prevalente nos eventos de

1848 e que tem uma orientação socialista e revolucionária8.

A referência historiográfica de Gramsci no § 47 foi a produção de A. Aulard,

possivelmente a obra Histoire politique de la Révolution française (1901). Aulard foi um

historiador cuja a produção detinha repercussão acadêmica e espaço em círculos mais

7 Frosini (2016) sublinhou justamente a importância da leitura particular feita de Hegel e sua definiçãode Estado e sociedade civil. A aproximação com Hegel poderia ter sido mediada pela obra Lesdoctrines politiques des philosophes classiques de l’Allemagne (Leibnitz-Kant-Fichte-Hegel) de VictorBasch, que Gramsci tinha na prisão em Turi. Segundo Frosini, no livro de Basch existiam muitasreferências e paráfrases de Principes de la Philosophie du droit de Hegel, além de destacar aaproximação de Hegel com os ideais da Revolução francesa. 8Interessante notar que Gramsci aproxima os clubs franceses da definição de partido moderno,podendo ser visto, portanto, como uma forma germinal dos mesmos - com o que Vovelle (2000) maistarde concordou atribuindo em particular aos jacobinos uma forma organizacional mais madura, quetinha um programa geral definido e eficazes cadeias de comunicação que ligavam Paris e asprovíncias. Essa forma de organização expandiu-se em diferentes países, como na Itália. Ao seexpandir, ganhava um caráter artificial em razão das escassas relações com o conteúdo nacional dospaíses onde aportava (VOVELLE, 2000).

10

amplos, como em revistas e demais publicações de natureza político-militante

(FRANCESCO, 2013; FRIGUGLIETTI, 2008). A referência a Aulard na nota gramsciana é,

porém, bastante sucinta, indicando apenas que ele era uma fonte a ser consultada para

desenvolver o tema da Revolução francesa. Mas Gramsci demonstrou acompanhar, à

distância, o debate historiográfico sobre a Revolução francesa em curso no país vizinho. Em

1907, Aulard havia publicado a obra Taine historien de la Révolution français, na qual fazia

uma crítica profunda da leitura de Taine, político e historiador conservador, que tratou a

Revolução como arbitrariedade histórica. Gramsci afirmou que a “questão de Taine e da

Revolução francesa deve ser estudada porque teve certa importante na história da cultura

do século passado” (Q. 2, § 92 , p. 363). Tratava-se para o autor dos Q. de compreender as

relações da Revolução com a história precedente, com a intenção de amparar sua

afirmação acerca do caráter não-abstrato daquele movimento histórico.

A relevância dos jacobinos na elaboração do conceito de hegemonia pode ser

percebido sob dois aspectos. O primeiro é o caráter paradigmático ou exemplar que

Gramsci atribuiu ao grupo político francês no processo de construção da hegemonia. Esse

aspecto destaca o jacobinismo como fenômeno histórico, isto é, está ligado aos militantes

revolucionários do século XVIII. Outra elaboração é a definição do jacobinismo como

conceito e que aproxima o jacobinismo (que Gramsci chama de jacobinismo de conteúdo)

da política parlamentar moderna e das formas encontradas para o exercício da hegemonia:

“O desenvolvimento do jacobinismo (de conteúdo) encontrou seu aperfeiçoamento formal no

regime parlamentar, que realiza no período mais rico de energia “privada” na sociedade a

hegemonia da classe urbana sobre toda população, na forma de hegeliana de governo

como consenso permanentemente organizado (com a organização deixada à iniciativa

privada, portanto moral ou ético, porque consenso ‘voluntário’ de uma forma ou de outra)”

(Q. 1, § 48, p. 71). O jacobinismo foi desenvolvido ou aperfeiçoado com a organização do

consenso permanente deixado à iniciativa privada. Os momentos mais relevantes desse

aperfeiçoamento correspondiam aos eventos políticos de 1830 e 1848, afirmou Gramsci,

demonstrando, portanto, que na atividade político-prática que vão sendo encontradas novas

fórmulas para o exercício da hegemonia.

II. HEGEMONIA (TOUT COURT)

A separação entre as camadas populares e os jacobinos havia ficado clara com o

11

“limite” colocado com a “lei Chapelier ou o máximo é superado e alargado através de um

processo complexo, teórico-prático (jurídico-político = econômico), através do qual se obtém

o consenso político (se mantém a hegemonia) alargando e aprofundando a base econômica

com o desenvolvimento industrial e comercial até a época do imperialismo e da guerra

mundial” (Q. 1, § 48, p. 71).

No projeto político dos jacobinos as reivindicações dos estratos populares não

podiam mais serem atendidas, tendo sido encerrada as possibilidades de associação em

uma mesma direção política. Os elementos que demarcam essa separação, indicou

Gramsci, foram a lei Chapelier e a lei do máximo. Essas leis teriam contribuído para a

estabilidade da hegemonia da classe burguesa, pois permitiram o alargamento e

aprofundamento desse consenso.

É interessante que Gramsci tenha colocado lado a lado as duas leis - Chapelier e

máximo9. A primeira, de 1791, tratou da proibição de organizações civis e demais formas de

associação, tanto com finalidade de produção, como no caso das corporações de ofício, e

também de tipo reivindicativas. A proposição apoiava-se na ideia de que era necessário o

vínculo direto do cidadão com a República, única forma de se constituir uma unidade sem

mediações. Portanto, a lei define o estabelecimento de relações entre indivíduos autônomos

como a base da República, limitando a possibilidade de representação de interesses à

forma parlamentar. Isso impôs o fim das nascentes organizações dos trabalhadores.

A lei do máximo, de 1793, tratou da imposição de um limite de preços, assim como

estabeleceu maneiras desse limite ser respeitado. Para isso, recorreu à possibilidade de

confisco da produção para evitar que os produtores deixassem de lançar grãos no mercado.

Essa lei refere-se assim a uma diretriz de ordem econômica, vista como uma medida

necessária em um contexto de crise de abastecimento depois da iniciativa de Turgot de

instituir o livre comércio de grãos como estratégia para que através das leis do mercado ele

chegasse a um preço adequado. Tal iniciativa levou ao aumento dos preços e favoreceu os

grandes produtores. O máximo, como uma intervenção estatal na economia, contribuiria

9 No § 44 Gramsci afirmou que a Lei do máximo foi consequência da Lei Chapelier, grafando máximo comaspas ;no mesmo parágrafo tornou a identificar tais leis como expressão do limite da associação dos estratospopulares e jacobinos, porém primeiramente falou da Chapelier e depois adicionou, entre as linhas, a lei domáximo, novamente entre aspas. O mesmo ocorreu no § 48, ou seja, inclusão posterior da expressão máximo,mas neste parágrafo sem as aspas. Porém, no § 48 não registra mais uma consequência (uma lei levou a outra) enem uma adição (“a lei do máximo e a lei Chapelier demonstram o limite de classe dos jacobinos”); mas fala queuma ou outra exerceu tal função. A hipótese é que ele revisava o parágrafos depois de ter tido acesso à obra deMathiez, Révolution française, que trata cuidadosamente do tema. Sobre o § 48 nos aprofundaremos maisadiante.

12

para uma concepção na qual o direito à propriedade sofreu uma limitação (GAUTHIER,

1985).

A leitura de Gramsci sobre a Revolução francesa e os jacobinos, deve ser destacado,

mantém-se no âmbito das análises clássicas que a veem como uma revolução burguesa.

Apesar disso, acena à compreensão de que existiam diferentes concepções políticas e

econômicas, e, portanto, de liberalismo, que estavam em disputa naquele momento. A

abordagem gramsciana poderia ser interpretada como uma leitura que articula o que ele

chamou de processos políticos-jurídicos ou teóricos-práticos. Em outras palavras: as

experiências, tentativas, recuos, avanços eram maneiras práticas através das quais o

liberalismo ia sendo formulado e reformulado. Naquele contexto em particular, a linguagem

jurídica desempenhava um papel relevante. As ideias de direitos naturais e de direitos dos

homens deveriam encontrar uma manifestação concreta capaz de conformar o direito à

propriedade com a noção de igualdade, que ia ganhando força para os diferentes estratos

sociais.

Gramsci não explorou de maneira pormenorizada as leis citadas, mas as incluiu em

sua análise do processo de hegemonia na França dando-lhes destaque. A referência

elíptica, ao acenar às iniciativas legais, foi a obra do historiador Albert Mathiez. O historiador

fez uma leitura atenta das lutas e das manifestações populares nas diferentes províncias, e

não apenas em Paris, propondo uma abordagem que poderia ser vista como a partir de

baixo. Assim, ao abordar as disputas parlamentares, as articula à dinâmica dos movimentos

dos grupos populares e suas reivindicações10.

A referência a Mathiez nos textos de Gramsci é, assim, bastante importante e deve

ser destacada. Há alguns ecos da leitura do historiador na análise de Gramsci, nem todos

explicitados. Mathiez produziu um estudo clássico sobre as lutas contra o alto preço dos

grãos intitulado La vie chère et le mouvement social sous la Terreur (1927). Analisando de

maneira detalhada os movimentos sociais no campo e na cidade e a reação dos

parlamentares às sublevações populares, o historiador mostrou como a construção de uma

forma nova de organização do mercado, baseada nas teorias fisiocratas e defendida por

10A leitura de que existiam projetos em disputa na Revolução francesa e que tenta articular as lutaspolíticas e a reflexão teórica e filosófica apoia-se na elaboração de Gathier (1985). Ela considera que,em geral, a historiografia deixou de articular teoria e prática em razão mesmo da especializaçãoacadêmica que levou à separação entre a historiografia da Revolução francesa e a história das ideiase da teoria.

13

parte substantiva do parlamento, encontrou resistência popular. Entre 1789 e 1791 ocorreu

uma série de iniciativas populares contra o livre mercado, que havia sido instituído por um

conjunto de leis que iam pouco a pouco impondo o laissez faire na produção e comércio de

grãos. O resultado foi o aumento dos preços não acompanhado do aumento dos salários,

concomitante à inflação decorrente da emissão de moeda. As mobilizações foram iniciadas

com a demanda por regulamentação dos preços, defendendo o tipo de controle da produção

que era feito antes de 1789.

Os clamores populares eram vocalizados no parlamento pelos Enragés e

posteriormente passaram a englobar a questão da propriedade da terra. O liberalismo

econômico e o consequente favorecimento do grande proprietário deveria ser superado por

um aumento no número de produtores que geraria ampliação da oferta e para isso deveriam

ser divididas as grandes propriedades entre os pequenos e os que não detinham nenhum

terra. A posição majoritária buscava frear tais iniciativas, defendendo de “forma dogmática a

liberdade econômica” (MATHIEZ, 1927, p. 48).

As medidas tomadas para controlar a crise eram “circunstanciais ou empíricas, sem

um projeto de horizonte”, afirmou Mathiez (1927, p. 609). Neste contexto há a separação

dos jacobinos e dos girondinos. Os jacobinos, contrapondo-se ao federalismo girondino e a

defesa da propriedade sem limites e buscando ainda enfrentar a potencial desagregação do

III Estado promovida pelo grupo de J. Roux e aos monarquistas da reação, assumiram o

programa dos Enragés como forma de capturar o apoio popular que estes detinham.

Robespierre passou a articular um discurso político amparado em uma interpretação da

Declaração de 1789 na qual o direito à propriedade era contraposto ao direito à existência. A

noção de direito à existência estava ligado à reavaliação do direito natural: o direito à

propriedade não foi tratado como parte da natureza, diferente do direito à vida que depende

do acesso aos meios necessários à existência. Se a República funda-se sobre uma base

social, deve buscar a liberdade e o interesse geral, de modo a permitir o direito à existência

de todos (MATHIEZ, 1927, p. 97). Com esse discurso, Robespierre buscou afirmar que a

regulamentação da economia não era um passo atrás na Revolução, mas sim adiante, ainda

que mobilizasse também a noção medieval de preço justo para amparar sua formulação

política. “Para resistir, a Revolução era obrigada a cada dia a abandonar pouco a pouco

seus princípios liberais” (MATHIEZ, 1927, p. 71), argumentou analisando tal contexto.

Trata-se assim de um grupo que mobilizou os instrumentos políticos reforçados pela

Revolução, isto é, a forma representativa desenhada desde a convocação dos Estados

14

Gerais e o papel do parlamento e das proposição de leis, assim como a organização política

próxima dos partidos políticos modernos. Ao lado disso, ligou-se aos movimentos populares

do campo e da cidade, como maneira de executar um projeto de classe. Pode-se falar que

Gramsci assimilou vários pontos dessa obra de Mathiez: as novidades das formas de

organização e de movimentos políticos, a separação dos grupos e classes em projetos que

se cindiram depois de terem se reunido no III Estado contra o Antigo Regime e a

compreensão da lógica parlamentar no contexto francês após 1789, assim como a

composição de classe dos partidos.

Não é possível afirmar que o italiano leu a obra de Mathiez, La vie chére…, porém o

historiador reproduziu uma abordagem similar no compêndio Histoire de la Révolution

française, que Gramsci consultou, citou e tinha no cárcere (ARECO, 2018, p. 178). Em

especial, deve-se notar como a análise cuidadosa de Mathiez das disputas parlamentares e

dos debates e leis produzidos naquele contexto articulam-se com a ideia que o marxista

explorou algumas vezes nos Q. de que a linguagem jurídica foi a forma particular através da

qual aquela revolução foi conduzida. Importante entender que tal linguagem não era restrita,

como podemos verificar com os estudos de Mathiez e com a produção historiográfica

recente, a segmentos sociais específicos. Pelo contrário: as camadas populares,

mobilizadas a participarem da luta contra o Antigo regime, foram estimuladas a expressarem

suas demandas sob tal linguagem.

Essa questão é importante e liga-se às formas de participação política. Com a lei

Chapelier, como já acenado, foram proibidas as associações de trabalhadores e greves em

um momento em que as reivindicações se ampliavam. Assalariados eram obrigados a pedir

mediação do poder público, agindo através de petições e no terreno político parlamentar.

Foi, assim, uma iniciativa que canalizou para os regime representativo e de partidos tais

demandas. Para Mathiez, a lei Chapelier, ao proibir as organizações e associações,

constitui-se como parte do instrumental repressivo dos liberais contra as iniciativas anti-livre

mercado (MATHIEZ, 1927, p. 114). Ao inseri-la em uma dinâmica mais ampla, combinando a

Lei Chapelier e a Lei do Máximo, Gramsci pode pensá-las como mecanismos

complementares capazes de obter o consenso dos governados.

III HEGEMONIA (POLÍTICO-JURÍDICO = ECONÔMICO)

Estamos, portanto, diante de uma noção na qual sociedade civil e sociedade política

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ligam-se organicamente de modo a conformar o Estado integral na definição gramsciana. No

Q.1, § 48 Gramsci articulou sua leitura sobre Hegel e a sociedade civil com a análise dos

jacobinos e das leis, destacando que o jacobinismo foi aperfeiçoado no regime parlamentar

com a obtenção do consenso permanentemente organizado deixado para a iniciativa

privada. Nesse passo do processo de elaboração fica claro como, junto à expansão da

noção de Estado, também os jacobinos deixam de ser mobilizados exclusivamente para

referir-se ao grupo histórico do século XVIII para também alcançar um arco temporal mais

vasto, em sua forma modificada e amadurecida através de processos teórico-práticos. Os

jacobinos e o jacobinismo passaram a serem operados como categorias teóricas para

análise da política.

Depois de um longo processo, de séculos, de experiências institucionais e de formas

de organização, avanços e recuos, como no caso da expansão do sufrágio, foi estabelecido

um equilíbrio relativamente contínuo entre força e consenso, ou seja, de hegemonia. A

particularidade do terreno político francês, no século XIX e início do século XX, deriva

dessas experiências do passado que foram formando também pessoal político adequado

para atuação no Estado, de maneira que lá “a hegemonia burguesa é muito forte e há

muitas reservas” (Q. 1, § 48, p. 73). Com o processo de urbanização e alargamento da base

industrial, também foi conformada uma base econômica que reforçava a relação de direção

da cidade sobre o campo e, ao mesmo tempo, a unidade e indissolubilidade da República.

Gramsci fala de jacobinismo econômico (Q. 1, § 44, p. 45; Q. 19, § 24, p. 2018), síntese da

fórmula político-jurídico = econômico. A experiência francesa é emblemática, assim, não

apenas no momento da luta e conquista da hegemonia, mas também no exercício da

mesma quando logrou tanto constituir vastas reservas políticas (pessoal político e

intelectuais) e a iniciativa econômica que trouxe a questão rural como um ponto fundamental

para a unidade social e territorial da república.

No parágrafo intitulado I costumi e le leggi [Os costumes e as leis] do Q. 6 , o direito foi

tratado como elemento que não reflete os costumes e lhe sanciona, mas é visto como “luta

pela criação de novos costumes” sendo que “a função máxima do direito é essa: pressupor

que todos os cidadãos devem aceitar livremente o conformismo assinalado pelo direito, que

todos possam tornar-se elementos da classe dirigente; no direito moderno isto é implícito na

utopia democrática do século XVIII” (Q. 6, § 98, p. 773). Trata-se do caráter artificial

atribuído às leis, isto é, como conformadora de um modo de vida, que não “exprime toda a

sociedade, [...] mas a classe dirigente”. Portanto, está ligado à questão da educação das

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massas, de sua formação segundo as exigências e objetivos da sociedade e através do

direito “‘o Estado’ torna homogêneo o grupo dominante e tende a criar o conformismo social

que seja útil a linha de desenvolvimento do grupo dirigente” (PRETEROSSI, 2018, p. 247).

Porém:

Alguma coisa de verdadeiro existe na opinião de que ocostume deve preceder ao direito: nas revoluções contra osEstados absolutos, existia já como costume [e como aspiração]uma grande parte do que se tornou direito obrigatório: é com onascimento e desenvolvimento da desigualdade que o caráterobrigatório do direito aumentou, assim como aumentou a zonade intervenção estatal [...]. (Q. 6, § 98, p. 773)

O direito, no contexto da luta pela hegemonia na França do século XVIII, ligou-se às

expectativas de superação da dominação feudal com a defesa dos direitos do homem. Mas

também estava articulada a uma forma diferente de se conceber o regime de propriedade. A

definição do regime de posse dependendo de um duplo movimento político subsequente:

reivindicações populares e mudanças legislativas que definiam critérios para o acesso à

terra e a definição da titularidade (CLERE, 2005; BRASSART et al, 2015; BODINIER, 2005;

CALLAWAY, 2018).

Nos debates parlamentares decorrentes do Decreto de 1789, a supressão dos

direitos senhoriais foi visto como uma forma de infringir ao direito à propriedade e entrava

portanto em oposição à corrente fisiocrata, ou às “ideias dos economistas”, como se

argumentou no Parlamento. Oriundos das camadas urbanas médias e altas, os

parlamentares tinham como horizonte a reforma do Estado e as questões de direito público

e constitucional, orientados mais fortemente para o enfrentamento dos privilégios da

nobreza do que para a realidade do sistema senhorial. Por isso, a legislação oscilava entre

manter os direitos senhoriais e afirmar o fim do mundo feudal, em um período no qual aos

poucos avançava o liberalismo nas relações de propriedade no mundo rural francês

(CLERE, 2005; BRASSART et al, 2015; BODINIER, 2005; CALLAWAY, 2018).

A partir de 1792, com a ampliação das manifestações no campo combinadas à

recusa do pagamento das taxas senhoriais e a demanda por distribuição de terras, o

Parlamento pressionado dispôs sobre a partilha dos bens comunais ao mesmo tempo em

que insistia na indenização dos antigos senhores com o Decreto de 10 de junho de 1793. A

medida não atendeu as reivindicações dos camponeses e não resultou na passivação desse

17

segmento. Apenas em 17 de julho de 1793, após a queda dos girondinos e a direção por

parte dos jacobinos da Convenção, foram finalmente abolidas as propriedades rurais sem

indenização, além de se propor uma ampla distribuição de terras, em um movimento no qual

os jacobinos assumiram a defesa dos estratos populares rurais como forma também de

fortalecer o apoio desse grupo à continuidade da Revolução (CLERE, 2005; BRASSART et

al, 2015; BODINIER, 2005; CALLAWAY, 2018).

Para o historiador A. Aulard, os jacobinos se aproximaram dos camponeses com a

política agrária para disputar com os girondinos, mas em uma abordagem que se atém à

esfera das disputas parlamentares e aos projetos de poder dos partidos. Para Mathiez os

jacobinos tinham efetivamente uma orientação política diversa dos girondinos, estando os

primeiros mais próximos de um tipo de socialismo ou em busca de uma economia social.

Gramsci tem uma linha diferente: não se trata de uma disputa apenas partidária, posto que

mobiliza relações sociais e econômicas profundas, ao mesmo tempo que argumenta não há

uma orientação socialista nos jacobinos.

Atualmente, parte dos historiadores identifica a existência, naquele período, de um

processo de politização do campo e a utilização de uma linguagem jurídica nestas

mobilizações amparada nos termos da declaração dos direitos dos homens: os cidadãos

eram “informados da legislação e pressionam por sua aplicação, o que as autoridades locais

fizeram por vezes ultrapassando mesmo as decisões da Convenção, Girondina ou

Montanhesa, pouco preocupadas com a reforma agrária real (BODINIER, 2005, p. 12)”.

A noção de hegemonia em Gramsci evidencia, portanto, os grupos e classes sociais

em disputa dentro e fora do parlamento, expressando os acordos táticos e as estratégias

utilizados pelos mesmos, de forma que a experiência concreta ajudaria a se esboçar uma

teoria das relações de forças em Gramsci. Essa teoria não se limitaria à abordagem do

momento político, mas estaria relacionada a uma mudança social e cultural profunda que,

no caso da França do século XVIII, dependeu da liberalização gradativa das relações no

campo, com a mudança do estatuto da terra e sua mercantilização; a politização do estrato

camponês, com suas mobilizações amplas e radicalizadas entre 1789 e 1793; e a utilização

da linguagem jurídica, difundida por diferentes canais em um movimento ligado seja às

correntes filosóficas ou na relevância que os debates parlamentares assumiram naquele

contexto. Em síntese: na França revolucionária foi a obstinação camponesa que forçou os

Parlamentares e os jacobinos em particular a assumirem as reivindicações populares,

expressando-as também sob a fórmula jurídica, assim como fizeram os segmentos

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camponeses que reivindicavam a terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O esforço aqui apresentado de reconstruir o conceito de hegemonia nos Q. com

ênfase na análise das disputas parlamentares na França e sua revolução do século XVIII

deriva da importância que Gramsci deu ao tema. Tratava-se, para ele, de um caso exemplar

ou emblemático, pretendemos ter demonstrado, não apenas na construção de hegemonia,

mas também na elaboração de seus instrumentos de manutenção.

No tratamento feito pelo autor acerca dos aspectos jurídico-políticos desvela-se a

premissa gramsciana explorada em diferentes partes de seu texto na qual aqueles

elementos chamados de superestruturais são considerando em sua autonomia, que, no

entanto, não é absoluta, ao mesmo tempo em que são articulados às relações entre as

classes e grupos sociais. Considerando os Q., pode-se afirmar como mais relevante na

relação entre o conceito de hegemonia e os aspectos jurídicos-políticos a oposição de

Gramsci a tratá-los como abstração. Considera-os, em realidade, um tipo de linguagem

particular desenvolvida naquele país e que se articula com sua história e a com a cultura

francesa. As leis analisadas cuidadosamente por Mathiez e trazida por Gramsci - lei do

Máximo e lei Chapelier - demonstram a capacidade de iniciativa dos jacobinos em dois

aspectos: 1) estabelecer uma política econômica na qual o liberalismo sofreu uma inflexão

ou adaptação de forma a englobar os interesses das camadas populares ao mesmo tempo

em que ganhavam a disputa parlamentar ao trazer para si o apoio dessas camadas,

fortemente mobilizadas por suas demandas; 2) limitar a associação entre os trabalhadores,

de maneira que a forma por excelência passasse a ser o âmbito parlamentar. Isso faz com

que na França se fortalecesse ao longo dos séculos as formas de organização e

participação ligadas a democracia parlamentar (partidos e eleições), como se naquele país

estivessem sendo experimentadas formas de exercício de hegemonia e que depois

passaram a fazer parte do repertório político dos demais Estados modernos.

A forma de abordagem das leis citadas pressupõem e reafirmam a distinção entre

dominantes e dominados; ao passo que implica também em uma mudança (regulamentação

do mercado) que tem uma função de repressão e conservação. Esses seriam a dupla

característica dos aspectos jurídicos-políticos e do papel das disputas parlamentares em

Gramsci e, por essa chave, que eles são instrumentos da hegemonia.

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