5
7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 1/5 Dicionário Lacan Vladimir Safatle (2001) Sujeito - Longe de engrossar o coro daqueles que defendiam a "morte do sujeito", Lacan sempre acreditou no caráter irredutível da subjetividade. A seu ver, a especificidade da psicanálise vinha exatamente da recusa em admitir que os fatos  psíquicos fossem apenas resultados de descargas neuroniais ou distúrbios orgânicos. Mas, por outro lado, o sujeito lacaniano não guarda muitas semelhanças com seus antepassados modernos. Filho de um tempo que não acredita mais na transparência da consciência e na luz natural da razão, o sujeito lacaniano verá sua auto-identidade aparecer irremediavelmente despedaçada. Desprovido de vida interior e de profundidade  psicológica, ele será como um personagem de "nouveau roman": vazio, impessoal e incapaz de se apropriar reflexivamente de sua própria história. A esse sujeito restará ser um movimento de fuga que não cessa de não se inscrever, tal como um sintoma que nunca se dissolve. Desejo - "Por fim, amamos o desejo, e não o desejado." A frase é de Nietzsche, mas cabe em Lacan. Núcleo do ser do sujeito lacaniano, a característica principal do desejo é não ter objeto naturalmente dado. Ele é manifestação de um vazio, de uma pura negatividade que quer consumir os objetos nomeados pela linguagem, passar por eles, mas que não se satisfaz com nenhum. "O desejo é sempre o desejo de Outra coisa." Até  porque o homem é o único animal que não deseja exatamente coisas. Ele deseja desejos. Para Lacan, um objeto só se torna desejável a partir do momento em que ele é objeto de desejo do Outro. Daí a frase: "O desejo do homem é o desejo do Outro". Imaginário, simbólico e real - São os três registros nos quais se desenvolve a experiência humana. O imaginário é aquilo que o homem tem em comum com o comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens ideais que guiam tanto a relação do indivíduo com seu ambiente próprio quanto o desenvolvimento de sua

Safatle - Dicionário Lacan

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Safatle - Dicionário Lacan

7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan

http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 1/5

Dicionário Lacan

Vladimir Safatle

(2001)

Sujeito - Longe de engrossar o coro daqueles que defendiam a "morte do sujeito",

Lacan sempre acreditou no caráter irredutível da subjetividade. A seu ver, a

especificidade da psicanálise vinha exatamente da recusa em admitir que os fatos

 psíquicos fossem apenas resultados de descargas neuroniais ou distúrbios orgânicos.

Mas, por outro lado, o sujeito lacaniano não guarda muitas semelhanças com seus

antepassados modernos.

Filho de um tempo que não acredita mais na transparência da consciência e na luz

natural da razão, o sujeito lacaniano verá sua auto-identidade aparecer 

irremediavelmente despedaçada. Desprovido de vida interior e de profundidade

 psicológica, ele será como um personagem de "nouveau roman": vazio, impessoal e

incapaz de se apropriar reflexivamente de sua própria história. A esse sujeito restará ser um movimento de fuga que não cessa de não se inscrever, tal como um sintoma que

nunca se dissolve.

Desejo - "Por fim, amamos o desejo, e não o desejado." A frase é de Nietzsche, mas

cabe em Lacan. Núcleo do ser do sujeito lacaniano, a característica principal do desejo é

não ter objeto naturalmente dado. Ele é manifestação de um vazio, de uma pura

negatividade que quer consumir os objetos nomeados pela linguagem, passar por eles,

mas que não se satisfaz com nenhum. "O desejo é sempre o desejo de Outra coisa." Até

 porque o homem é o único animal que não deseja exatamente coisas. Ele deseja desejos.

Para Lacan, um objeto só se torna desejável a partir do momento em que ele é objeto de

desejo do Outro. Daí a frase: "O desejo do homem é o desejo do Outro".

Imaginário, simbólico e real - São os três registros nos quais se desenvolve a

experiência humana. O imaginário é aquilo que o homem tem em comum com o

comportamento animal. Trata-se de um conjunto de imagens ideais que guiam tanto arelação do indivíduo com seu ambiente próprio quanto o desenvolvimento de sua

Page 2: Safatle - Dicionário Lacan

7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan

http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 2/5

 personalidade. O Simbólico é o domínio da organização estrutural da vida social. Como

Lacan subordina a sociedade e a cultura à linguagem, a ordem simbólica será um

conjunto de significantes que determina os lugares que cada um pode ocupar na vida

social

Já o Real não é, como poderia parecer, a dimensão da experiência imediata. Sua

definição é negativa: ele é aquilo que não pode ser representado por um significante

nem pode ser forma]izado por uma imagem. Essas três dimensões estão sempre

 presentes em uma relação de articulação conjunta.

Linguagem - Lacan será lembrado para todo o sempre por ter efetuado uma espécie de

"guinada lingüística" na psicanálise. Como a clínica analítica é totalmente

desmedicalizada e opera apenas por meio da reorientação da palawa do sujeito, nada

mais lógico do que pensar a cura como um processo de simbolização e verbalização dos

sintomas e desejos inconscientes. Daí a importância da linguagem e de sua dimensão

 própria: a ordem simbólica. Mas a novidade é que Lacan pensa a linguagem como um

sistema fechado de significantes puros sem significado e não como um conjunto de

signos que representariam positivamente alguma realidade extralingüística. Uma

simbolização que opera só por meio de significantes puros não pode produzir 

significado e nem ampliar o horizonte de compreensão da consciência. O que

muda radicalmente a noção de "interpretação" em psicanálise.

Nome-do-Pai - Para compreender a importância do Nome-do-Pai é necessário lembrar 

que Lacan transforma o complexo de Édipo na estrutura de passagem da natureza à

cultura por meio da introdução do sujeito na ordem simbólica. É no interior da família

que o sujeito moderno descobre a existência de uma Lei simbólica baseada em

interditos (como o incesto) e lugares fixos de parentesco. O pai, sendo aquele que dá

nome ao filho e encarna a autoridade, será o representante da Lei. O Nome-do-Pai é o

significante dessa função paterna, como uma chave que abre, ao sujeito, o acesso à

estrutura simbólica e que lhe permitirá nomear seu desejo. Daí porque: "A função do pai

é unir um desejo à Lei". Não é por outra razão que Lacan vê, no declínio da "imago"

 paterna, uma fonte privilegiada de neuroses contemporâneas.

Falo - Termo que indica o valor simbólico e imaginário adquirido pelo órgão sexualmasculino nas fantasias. Nesse sentido, ele não é o pênis orgânico. Ele é um significante

Page 3: Safatle - Dicionário Lacan

7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan

http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 3/5

fundamental cujo valor está ligado às representações de potência e força. O Falo ocupa

um lugar privilegiado na teoria lacaniana porque todos os sujeitos (masculinos ou

femininos) organizam seu desejo a partir da posse do Falo. O universo lacaniano será

claramente falocêntrico e por trás de todos os elementos do simbolismo social há

sempre o significante fálico. No fundo, isso demonstra que Lacan pensa a sociedade

contemporânea como uma espécie de sociedade totêmica em que tudo gira em torno das

múltiplas identificações possíveis com um significante primordial. Só que, no lugar do

totem, temos o Falo.

Objeto pequeno a - Esse é o conceito que mais sofreu modificações ao longo da

trajetória de Lacan. Mas ele sempre indicará o objeto causa do desejo, e não objeto do 

desejo, já que o desejo não tem objeto. "Pequeno a" é causa porque funciona como umaespécie de matriz transcendental para a constituição dos objetos nos quais o desejo se

alienará. Todos os objetos investidos pelo desejo serão modulações de um único objeto

cujo estatuto é o de uma fantasia fundamental. Um bom exemplo é o fetiche - uma

matriz para a constituição geral do universo do perverso. Mas dizer que o mundo dos

objetos do desejo humano é colonizado por uma fantasia fundamental nos leva longe. É

como afirmar que todos os sujeitos estão presos no interior de seus próprios fantasmas.

 Não é por outra razão que o fim de análise será pensado como a travessia desse mundofantasmático por meio de uma "crítica ao fetichismo" do objeto pequeno a.

Pulsão - O termo está no singular porque Lacan unifica o dualismo freudiano entre

 pulsão de vida e de morte. "Toda pulsão é virtualmente pulsão de morte." Aqui Lacan

não pensa exatamente na "morte física" e no retorno ao inanimado biológico de Freud,

mas em uma "morte simbólica" por meio da qual o sujeito se desvincularia de todos os

seus papéis sociais, colocando em cheque a ação organizadora da ordem simbólica. É

interessante perceber aqui uma inversão de perspectiva fundamental. Em Freud, a

 pulsão de morte aparecia como obstáculo à eficácia da clínica, já que era o que resistia

aos mecanismos de simbolização. Já Lacan troca os sinais e vê a pulsão de morte como

a manifestação criadora de um

desejo que não pode ser satisfeito pelo utilitarismo que rege nosso universo simbólico,

com imperativos de adaptação, felicidade e sucesso.

Page 4: Safatle - Dicionário Lacan

7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan

http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 4/5

Gozo - Há em Lacan uma distinção entre gozo e prazer. O prazer está ligado à repetição

de experiências primeiras de satisfação que ocorreram na vida infantil. O gozo está para

além do princípio do prazer e sempre indica processos de transgressão de limites que

tocam o sofrimento e a morte: "O caminho em direção à morte não é outra coisa que

aquilo que chamamos de gozo". Até porque o gozo marcaria o encontro do sujeito com

a pulsão de morte. E aqui Lacan pensa em Antígona e Joyce: personagens que destroem

seus vínculos com a ordem simbólica (Antígona contra a "pólis", Joyce contra a

linguagem) a fim de permanecerem fiéis a seus desejos. O problema é pensar uma

clínica que tenha Antígona e Joyce como paradigmas.

Mulher - Como todo mundo sabe, "a mulher não existe". Esse enunciado lacaniano só

 pode ser compreendido à condição de aceitarmos que a diferença sexual não é biologicamente determinada, mas simbolicamente produzida. Um "homem" é o

resultado da identificação do sujeito (seja ele masculino ou feminino) com um

significante que representa o Falo. O problema é que não há, no universo simbólico

falocêntrico lacaniano, um elemento que simbolize o sexo feminino. Por outro lado,

Lacan se apóia em Lévi-Strauss para lembrar que as mulheres aparecem na ordem

simbólica como objetos de troca, e não como sujeitos agentes. Logo, só há lugar na

estrutura para aqueles que se submetem à identificação fálica. O que não impede que a posição feminina possa aparecer "fora" da ordem simbólica. Daí porque Lacan tende a

aproximar o feminino de uma posição mística impronunciável e dizer que a mulher é

aberta a um gozo mais próximo da verdade inominável do desejo.

Relação sexual - Assim como a mulher, "a relação sexual não existe". Uma das formas

de compreender essa impossibilidade é analisá-la como um processo intersubjetivo. Se a

relação sexual fosse possível, ela seria uma relação intersubjetiva entre dois sujeitos

encarnados em dois corpos. Mas o problema é que o corpo do outro sempre aparece

como tela de projeção das fantasias do sujeito. Na relação sexual, o corpo é sempre um

corpo fetichizado. Daí porque Lacan afirmar que o amor é, na sua essência, narcísico.

Inconsciente - O inconsciente lacaniano não é uma caixa de Pandora de onde sairiam

 pulsões não-socializadas e conteúdos recalcados. Todos os desejos e pensamentos

latentes podem ser reapropriados pela consciência e, por isso, são pré-conscientes. O

que Lacan procura é algo que apareça como limite irredutível ao pensamento

consciente: Ele o encontrará em duas vertentes. A primeira está na negatividade da

Page 5: Safatle - Dicionário Lacan

7/28/2019 Safatle - Dicionário Lacan

http://slidepdf.com/reader/full/safatle-dicionario-lacan 5/5

teoria das pulsões. Mas a mais famosa ficou cristalizada na fórmula "O inconsciente é

estruturado como uma linguagem". Não se trata de dizer que há uma espécie de

linguagem privada inconsciente, como se existisse uma estação de rádio clandestina

interferindo na estação de rádio pública. De uma certa forma, o inconsciente é a

linguagem, ou seja, ele é o conjunto de regras estruturais da linguagem que moldam a

forma do pensamento consciente. Saímos assim de um registro "arqueológico", no qual

o inconsciente é o texto escondido sob o texto da consciência, para transformá-lo na

estrutura formal do pensamento.