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Análise de Conjuntura OPSA
| n.8, ago. 2010 |
Análise de Conjuntura | n.8 | ago. 2010
Observatório Político Sul-Americano Instituto de Estudos Sociais e Políticos
Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESP/UERJ www.opsa.com.br
A Defesa na Política Externa: dos fundamentos a uma análise do caso
brasileiro
Análise de Conjuntura (n.8, ago. 2010)
ISSN 1809-8924
Hector Luis Saint-Pierre
Grupo de Estudos de Defesa e Seguranca Internacional
Universidade Estadual Paulista
No começo houve um pacto. Não se trata aqui de um inicio cronológico ou histórico,
mas meramente lógico. Antes deste, ainda os deuses não tinham sido criados e,
por isso, não havia nem bem nem mal. Tampouco existiam leis nem normas e sem
elas nada constituía crime. Sem contenção moral nem limites normativos ou
jurídicos, a força se impunha como relacionamento preferencial entre os homens,
que por isso, se percebiam a si mesmos como o mais pavoroso da natureza. Cada
um devia cuidar-se de todos os outros num regime de auto-ajuda sem trégua. Cada
um por si e todos contra todos num estado de guerra permanente que Hobbes
chamou “estado de natureza”, no qual, o “homem era o lobo do próprio homem”1.
Não foi o amor pelo próximo, mas sim o medo, que levou os homens a pactuar.
Nesse esse ato, todos abdicaram da sua vontade e capacidade de auto-proteção, da
posse dos instrumentos da violência e do exercício da mesma concentrando-os
monopolicamente e concedendo-os a alguém (um homem ou grupo de homens)
que, por não fazer parte do pacto, alem de controlar a concentração monopólica e
absoluta da força, carece de constrangimentos e compromissos. Por estar acima do
pacto é soberano, uma pura vontade; enquanto os outros homens se transformam
em súbditos pelo pacto voluntário, e por este legitimam o soberano em toda a sua
potência: como monopólio da força e da decisão política.
1 Injustamente Hobbes é lembrado por esse estado e ao caos ou anarquia normalmente se refere como “estado hobbeseano”, sendo que para ele este era uma situação pré-social e o seu esforço intelectual se orientou a justificar filosoficamente o pacto societário.
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A liberdade absoluta do soberano se fundamenta e manifesta-se no exercício
incontido da sua vontade pura, isto é, na decisão. A decisão, como produto da
liberdade da vontade do soberano, constitui o conteúdo material da sua expressão,
que assume a forma sintática do imperativo categórico. Portanto, na medida em
que o soberano decide, exerce sua liberdade manifestando sua pura vontade. Como
resultado dessa manifestação vai criando, pela própria forma da decisão, a
normatividade que a cerceia. Com efeito, com a expressão normativa da sua
vontade o soberano vai ordenando juridicamente o relacionamento entre os seus
súbditos e entre eles e si próprio e, portanto, limita sua vontade e perde sua
liberdade. O paradoxo trágico do exercício da liberdade pura do soberano é que a
manifestação da sua vontade absoluta vai ordenando o mundo e o seu lugar nele e,
com isso, limita a liberdade da sua vontade. Não é a forma pura da norma, dirá
Carl Schmitt contra Kelsen, que fundamenta o direito, mas sua absoluta ausência,
portanto, o exercício pleno da vontade absoluta: a materialidade da decisão.
No inevitável ordenamento que gera a expressão da sua liberdade, uma única
condição orienta a vontade soberana no seu recorte normativo. Não obstante o
pacto não seja vinculante com relação ao soberano, o fundamento daquele é a
procura de proteção do súbdito e por tanto, esta é a condição tácita do pacto. Com
efeito, os homens abdicam da sua autodefesa e dos seus instrumentos de violência
conscientes de que nenhum acúmulo de capacidade de potência nem de
instrumentos de violência serão suficientes para garantir sua segurança. Concedem
ao soberano a concentração daqueles na expectativa de lograr uma efetiva
proteção decorrente da monopolização legitima (por ser coletivamente voluntária)
da força. Por tanto, uma primeira característica desse monopólio é que a natureza
da decisão e da violência para com os súbditos é ordenadora (na medida em que se
manifesta normativamente) e protetora (tanto dos súbditos quanto do status quo
normativo). A natureza da modalidade de emprego do monopólio legitimo da força
para com os súbditos é de garantir a segurança e a ordem, isto é, de anulação da
polêmica interna e a dissolução do conceito de “inimigo” no âmbito interno, desde
que o soberano deve aos súbditos sua proteção e segurança. Por isso, o exercício
interno do soberano consiste, antes de mais nada, em neutralizar os conflitos.2 No
seu interior o soberano é polícia e, no sentido estrito do termo, só para o exterior o
soberano é política.3 O ordenamento normativo que emana da vontade do soberano
2 Carl Schmitt, El concepto de lo “político”. Buenos Aires: Folios Ediciones, 1984. Especialmente PP 3 e ss. 3 Uma interessante conclusão dessa dupla distinção na natureza da força do soberano —protetora internamente e eliminadora ou defensora externamente— é que ela permite definir a diferença de doutrina, do preparo e de emprego dos meios da força aplicados a esses fins. Essa diferença na própria característica do emprego da força é a que fundamenta os argumentos a favor da distinção entre
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estabelece o relacionamento entre os homens, isto é, constitui o âmbito social entre
os habitantes do território sob o seu monopólio da violência. O relacionamento
entre o soberano e os seus súbditos decide e se expressa dentro da univocidade
jurídica estabelecida pela normatividade emanada do soberano e mantida pelo
monopólio legítimo da violência, o monopólio do político. Essa expressão unívoca
constitui uma unidade decisória, no sentido estrito uma unidade política. Por sua
vez, esta unidade decisória se encontra entre outros pactos que instituíram outros
soberanos, cada um deles estabelecendo univocidades jurídicas para as suas
comunidades humanas dentro dos seus territórios.4 Por sua vez, elas procuraram
defender os princípios da sua unidade contra qualquer unidade decisória que possa
ameaçá-los na sua existência. Daí que seja vital para cada unidade desenvolver sua
sensibilidade estratégica para perceber entre as unidades decisórias aquelas que
possam potencializar sua unidade e, principalmente, aquelas que possam ameaçá-
la. Sobre essa percepção se fundamentará sua capacidade para distinguir os seus
amigos dos seus inimigos, já que essa distinção é o fundamento da sua função
política externa. A existência dessa diversidade de unidades, que podem chegar a
guerrear pelas suas existências, transformou esse ambiente externo num pluriverso
mais que um universo.
Nesse pluriverso, cada unidade política trata de preservar seu próprio ordenamento
normativo e lograr o reconhecimento do mesmo por parte das outras unidades
decisórias. Na falta de uma ordem normativa que regule a relação entre as
unidades políticas do pluriverso, cada unidade decisória projeta para o seu exterior
sua sensibilidade e força buscando definir o limite da sua soberania e delimitar o
exercício soberano das outras unidades decisórias, de maneira que fiquem
estabelecidos as fronteiras de aplicação das decisões de cada unidade política. Essa
projeção das unidades políticas no pluriverso constitui o plexo das relações de
forças, a matéria da “segurança internacional”. A cristalização jurídica dessa relação
de forças constitui o “direito internacional”, que define e normatiza a guerra e a
paz. A guerra não é o resultado do ódio –fenômeno psicológico– mas do direito –
fenômeno político.
A matéria empírica do relacionamento entre as unidades decisórias está constituída
pelas percepções. A imediata percepção da unidade decisória é a projeção política
das outras, isto é, suas manifestações políticas externas que procuram o limite das
suas extensões soberanas e o reconhecimento das mesmas por parte das outras
Segurança e Defesa. A primeira normalmente atrelada ao Ministério da Justiça ou do Interior (dependendo do país) e a segunda ao Ministério da Defesa. 4 Como observa Schmitt, “Do caráter conceitual do “político” deriva-se o pluralismo do mundo dos estados. A unidade política pressupõe a possibilidade real do inimigo e, por conseguinte, outra unidade política coexistente com a primeira” Op. Cit. p. 49.
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unidades decisórias. Esta percepção das políticas externas dos outros e sua reação
à própria constitui-se também em “auto-consciência” da existência política no
pluriverso, da sua potência e suas limitações na projeção da sua política externa.
A busca de reconhecimento, aproximação e delimitação, de mútua determinação da
extensão das unidades políticas é realizada por cada soberano por meio da projeção
externa da sua vontade que só é limitada, dada a ausência de normatividade no
pluriverso, pela vontade de outro soberano – de maneira inequívoca e forte– e dos
consensos admitidos pelas unidades políticas – relativamente e de maneira fraca5.
A expressão externa de cada unidade decisória, enquanto política, tem sua essência
na possibilidade de distinguir nesse pluriverso as constelações de amigos e
inimigos; de estabelecer acordos, cooperação e alianças com seus amigos e isolar e
combater os inimigos, assim como de gerar uma percepção de confiança nas
unidades políticas com as quais se pretende estabelecer laços de amizade e tentar
ser percebido com respeito, senão com medo, por aquelas unidades qualificadas
“inimigas”. Esse exercício político entre as unidades decisórias estrutura as
“correlações de forças” que estabelecem a polaridade de forças, um das principais
características do subsistema internacional para Raymond Aron6. O mútuo
reconhecimento e delimitação entre as unidades políticas (o nomos da terra,
enquanto divisão e reparto territorial) configura a ordem internacional, não uma
ordem normativa, mas a ordem factual das forças ou o consenso que resulta do
reconhecimento das mesmas.
Daí que a expressão da política externa da unidade decisória se expresse com dois
instrumentos específicos (não os únicos): a estratégia e a diplomacia. Estes
instrumentos são próprios das unidades políticas para manifestar e defender
externamente suas decisões, mas justamente por isso carecem de lógica própria,
eles são apenas gramáticas da única lógica de uma unidade decisória, a saber, da
política. Só a política externa de uma unidade decisória fornece coerência e
eficiência às gramáticas. Alguns autores7, não obstante reconheçam a importância
da Defesa para a política externa, ainda identificam “política externa” com
“diplomacia” colocando, quando exigem coerência na articulação entre diplomacia e
estratégia, a política externa e a defesa no mesmo nível. A dificuldade que acarreta
esta visão, do ponto de vista formal, é a incongruência de equiparar um nível
5 Como poucas vezes na história da humanidade, hoje vemos como o consenso internacional obedece a vontade de alguém (“o nomos é obedecer a vontade de alguém” –dizia Heráclito), a realização empírica da expressão “a força normativa do fático”, isto é, a prevalência da vontade do mais forte. 6 ARON, Raymond. “Que é uma Teoria das Relações internacionais?” in Estudos Políticos. Brasília: UnB, 1972. Especialmente p. 383 7 Ver, por exemplo, João Paulo Soares Alsina Júnior, “A síntese imperfeita: a articulação entre política externa e política de defesa na era Cardoso.” Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, ano 46, v. 2, p.2-35, 2003.
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gramatical com outro lógico e, do ponto de vista político-institucional, conceder à
diplomacia uma autonomia incompatível com a democracia, que exige a
“subordinação constitucional de todas as instituições do Estado à autoridade civil
legalmente constituída”8 e em função de governo. Nossa proposta epistemológica é
manter a política externa no nível lógico da política governamental e “baixar” a
diplomacia ao estatuto de gramática daquela. Não é o Ministério de Relações
Exteriores quem formula a política externa de uma unidade decisória, mas quem a
executa pelos médios diplomáticos. Tampouco é o Ministério de Defesa quem a
formula, mais quem dispõe dos meios para executar a política externa caso sejam
necessários. Ambos são instrumentos estatais ao serviço do governo eleito, este
sim, único e legítimo formulador da política externa.
A dialética das vontades
Porque a matéria empírica da política internacional são as percepções, as unidades
decisórias dirigem a estas a lógica de suas políticas externas, para impactá-las
através de suas duas gramáticas: a diplomacia e a estratégia (na conceituação
aroniana9). A eficácia desse impacto depende, em boa medida, da sintonia dessas
gramáticas, e esta, por sua vez, da força e coerência com que a política impõe sua
lógica sobre aquelas. Defino a “política externa” como o produto de dois embates:
um positivo, no seio do processo decisório do Executivo e outro negativo,
caracterizado pelo jogo dos contrapesos de poderes, entre o Executivo e o
Legislativo. Este último embate, por sua vez, tem dois aspectos, por um lado, o
“inercial” que compreende os atos legislativos de ratificação de pactos e tratados
internacionais que marcam a estabilidade e previsibilidade do comportamento
internacional do país e, por outro lado, o exercício da “política negativa” (em
sentido weberiano10), da atividade da oposição política no Legislativo que, por meio
de comissões parlamentares e da prática de processos regulamentários, tenta
atrasar, inibir ou impedir o exercício positivo da ação do Governo.11
O embate positivo, dentro do processo decisório do Executivo, se modela na
dialética entre a vontade do Executivo e as de suas burocracias específicas –o corpo
diplomático e as Forças Armadas (FA)– na luta por imprimir uma direção à projeção
do país em seu relacionamento com os outros e na sua inserção na política
internacional. Aqui focaremos neste embate entre o Governo e os próprios
instrumentos, recordando com Weber que “quem quiser dar as cartas na política,
8 Carta Democrática Interamericana, Artigo 4 9 Ver de ARON, R. Paix et Guerre entre les Nations. Paris: Éditions Calmann-Lévy, 1962. Especialmente Parte I, Capítulo I. 10 Weber, M.: ‘Parlamento y Gobierno’ in Escritos Políticos. México: Folio Ediciones, 1992. Vol I. 11 Exemplo dessa ação foi o bloqueio de partidos da oposição contra a aprovação da entrada da Venezuela ao Mercosul, entrada essa desejada pelo governo brasileiro.
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seja um monarca ou um ministro, deve saber como jogar com os modernos
instrumentos de poder”.
Talvez o Brasil nunca antes tenha passado por uma prova tão clara para mostrar o
funcionamento dessa dialética como no momento atual. Depois de muito insistir em
seus discursos sobre a prioridade do cenário sul-americano para a política externa,
definido como objetivo da estratégia de inserção internacional do Brasil, o Governo
presidido por Luiz Inácio Lula da Silva promoveu a União de Nações Sul-Americanas
(Unasul) e liderou a criação, dentro dessa instituição, do Conselho de Defesa Sul-
Americano (CDS)12, mostrando com esses gestos sua determinação em relação a
este cenário sub-regional. Ambas as propostas exigem a sintonia das gramáticas
militar e diplomática em sua adequação à lógica da política externa. Com efeito,
ambos os instrumentos devem potencializar a tarefa de modelar as percepções
sub-regionais reduzindo as desconfianças para criar o ambiente propício para a
cooperação multilateral. Entretanto, faltava a transparência das intenções
estratégicas brasileiras para a região que houvesse podido ser expressa em um
Livro Branco da Defesa ainda inexistente. Por isso, talvez, o documento Estratégia
de Defesa Nacional (END)13 tenha despertado tanto interesse internacional já que
pela primeira vez o Brasil tornava pública sua visão de mundo e da região, suas
percepções das ameaças e desafios aos seus interesses, assim como a disposição e
organização da força para afrontá-los.
Como peça importante da expressão da política externa brasileira a END, resultante
daquela dialética das vontades, deveria conter de alguma maneira as expectativas
governamentais, as diplomáticas e as militares (ou ao menos dos setores que
lideram essas corporações), os consensos político-partidários logrados pela
representação popular no seio do parlamento e, se possível, respeitar as indicações
sugeridas nos debates da sociedade organizada. Contudo, a diplomacia e a
estratégia brasileiras sofrem do que denominamos “o destino das paralelas”14. Este
destino consiste em que, dependendo da ideologia do grupo que se encontre no
vértice de cada uma dessas corporações, possa haver ou não coincidência entre os
objetivos que tentam imprimir à orientação da política externa. Da vontade política
do Executivo, especialmente do ímpeto de seu carisma –para aproveitar o conceito
weberiano- sobre aquelas burocracias, dependerá o ordenamento, a coerência e a
12 Conselho Sul-Americano de Defesa (CSAD) nos primeiros documentos, atualmente acunhou-se o nome como aparece agora neste texto. 13 Doravante, quando necessitemos citar diretamente do documento, o explicitaremos, entre parêntesis, a partir da sigla END seguido do número de página do documento em sua versão original. 14 A relação de autonomia que mantêm as esferas diplomáticas e militares do Brasil se demonstra através do estudo empírico da história brasileira recente em SAINT-PIERRE, H.L., “Política de Defesa e Relações Internacionais no Brasil: o destino das paralelas”, Meeting of the Latin American Studies
Association, San Juan, Porto Rico, 15-18 março 2006.
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harmonia de objetivos entre as três vontades. No caso de antagonismo valorativo,
normalmente deverá prevalecer a indicação do Executivo, ainda que lutando
duramente contra a inércia corporativa das burocracias inconformadas. Talvez a
resistência burocrática tenha prevalecido nas iniciativas presidenciais para a política
externa desde Fernando Henrique Cardoso –isto é, desde que começou a se
destacar a “diplomacia presidencial”- e a chave explicativa de porquê a força das
iniciativas internacionais brasileiras, tanto na área diplomática quanto na de defesa,
seja muitas vezes seguida pela frouxidão operativa no momento da formalização
institucional.
Daquelas duas iniciativas do governo Lula: a criação do CDS e a publicação da END
brasileira, aqui analisamos esta última tratando de iluminar as dificuldades que a
emergência daquelas dialéticas coloca no caminho de sua implementação.
A Estratégia Nacional de Defesa (END)
Embora a promulgação de um documento sobre a defesa brasileira não tenha sido
uma novidade, porque o presidente Lula a havia anunciado várias vezes em seus
discursos, sim, é possível especular sobre as razões que precipitaram a
promulgação da END. O Brasil precisava de algum documento que pudesse
apresentar para suprir a ausência de um Livro Branco, que apresentasse os
princípios, fundamentos e objetivos da Defesa e da projeção estratégica do Brasil.
Por um lado, pelo visível contraste com seus vizinhos sul-americanos –em direção
aos quais se orienta a política externa brasileira do governo Lula-, quase todos eles
contando com seus Livros Brancos, alguns dos quais com amplo debate nacional
que, ao declarar publicamente suas sensibilidades e projeções estratégicas,
destacaram o déficit brasileiro nesse aspecto. Por outro lado, as viagens
empreendidas por Jobim, buscando mercados onde reequipar o parque bélico das
FA brasileiras, mostraram a necessidade de abrir a “caixa preta” da Defesa e
explicitar suas intenções em sua área de projeção. Com efeito, alguns governos
europeus, ainda que ávidos por vendas que alavancassem seus países em meio a
crise econômica, condicionaram as negociações a uma perspectiva mais clara da
política de defesa brasileira. Também incidiu na promulgação a busca por coerência
na política regional: o Brasil propôs a criação do CDS e, inclusive, sugeriu a
elaboração de um “Livro Branco Regional de Defesa” que o próprio Brasil ainda não
possui nacionalmente (um dos poucos países na região que arrasta essa dívida).
Finalmente, era notória a necessidade de completar ou avançar no fortalecimento
da condução política nos assuntos da Defesa, ainda dependente do monopólio
militar nesses temas. Este fortalecimento, lento e gradual, precisava
institucionalizar a inserção dos nervos do governo na fibra muscular dos meios da
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Defesa para possibilitar a governabilidade. Um passo fundamental nessa direção foi
a criação do Ministério da Defesa (MD) em 1999, durante o governo de Fernando
Henrique Cardoso, não obstante, sua criação formal não garantiu a plena condução
política das FA. Quiçá pela falta de funcionários civis capacitados para a função, o
ministério acabou sendo “mobiliado” -para usar a metáfora do ex-ministro da
Defesa, José Viegas- basicamente com funcionários militares, com os que se
mantiveram as prerrogativas constitucionais e a autonomia das forças. O refluxo
das FA dos espaços políticos do ministério poderia agora ser alcançado por um
aspecto que nunca antes havia sido atendido: a reorganização das FA,
institucionalizando sua condução política mediante uma clara cadeia de comando.
Este aspecto, segundo o ministro Nelson Jobim, foi atendido pela END que “fixou as
bases para a consolidação do poder civil na direção da defesa nacional, com a
determinação dos papéis que cabem nesse processo aos civis e ao braço militar –
Marinha, Exército e Aeronáutica”.15
Em 7 de setembro de 2007, por ocasião do dia do Independência, o governo Lula
solicitou e o ministro da Defesa prometeu entregar ao país, um ano depois, uma
reformulação da política de defesa ou um Livro Branco da mesma. Tanto nesse ato
como em outros discursos se prometeu que seria gerado, durante esse ano, um
amplo debate nacional que cristalizaria os acordos da comunidade nacional da
defesa em um documento. Não se cumpriram os prazos nem houve debate –grande
ou pequeno- sobre a END, sendo apresentada ao presidente e à nação brasileira
tardiamente e surpreendendo à incipiente comunidade de defesa brasileira que
esperava participar no anunciado debate que nunca existiu, apesar de Jobim ter
declarado que “o tema começou a estar presente na mídia, no Congresso, nos
quartéis, nas reuniões empresariais, nas Universidades” como metodologia
democrática de deliberação.16 Se houve algum debate ou se o tema rondou o
ambiente acadêmico, foi produto da iniciativa dos próprios acadêmicos na
esperança de que em algum momento a comunidade fosse convocada para discutir
o tema nacionalmente.17
A END avança em relação aos dois documentos de Política Nacional de Defesa que a
precederam. Contempla aspectos que naqueles haviam sido insuficientemente
tratados e se atreve a desenhar a definição do que poderíamos chamar “Grande
15 JOBIN, N.: “Defesa, democracia e desenvolvimento” em Tendências e Debates (Jornal Folha de
SPaulo, 13.04.2009) 16 JOBIM, N.: “La defensa de la prosperidad sudamericana” in DEF. Buenos Aires: ed. TAEDA Año 4, Nº 43. Marzo 2009, p.77. 17 Não posso considerar a convocação pinçada de um e outro acadêmico para “conversar” com o ministro Mangabeira Hunger como a realização do “grande debate” nem sequer como debate, nem no sentido estrito da palavra nem no sentido político da proposta.
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Estratégia” no sentido que dá à expressão Liddel Hart.18 Em realidade, e ainda que
se centre na defesa, a END se estende a aspectos que excedem esse âmbito, como
a educação, ciência e tecnologia, economia, infra-estrutura e mobilização nacional,
entre outros. Avança decididamente sobre temas nunca antes tratados em
documentos públicos, como a organização das FA, sua composição organizacional e
suas práticas operacionais, assim como sobre as capacidades e os meios
necessários para assegurar sua eficácia. Não foi ignorada tampouco a exigência da
independência tecnológica para suprir esses meios, que se assentaria na articulação
com uma indústria nacional reforçada com proteção e auxílio econômico para a
produção de materiais de defesa de maneira autônoma. Explicitamente menciona o
desenvolvimento em áreas que considera essenciais para articular a defesa, como o
desenvolvimento científico-tecnológico nas áreas cibernética, aeroespacial e,
especialmente, nuclear.
O documento organiza a Defesa Nacional em três eixos principais: a organização
das FA, orientando-as para um melhor desempenho no cumprimento de seu papel
constitucional; a reorganização da indústria nacional de material de defesa para
equipar as forças com autonomia e tecnologia nacional e a composição dos efetivos
das FA e a mobilização nacional pelo alongamento e aprofundamento do Serviço
Militar Obrigatório (SMO) e pela implementação de um Serviço Civil Obrigatório
subscrito ao Ministério de Defesa.
Em relação ao desenvolvimento e à defesa, uma primeira consideração de peso do
documento associa indissoluvelmente a estratégia de desenvolvimento do país
àquela da defesa. Talvez inspirados pelo binômio conceitual “Segurança e
Desenvolvimento” que com certa freqüência apareceu nos últimos documentos da
Organização dos Estados Americanos, ou apoiados na falácia do “spin of” da
Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em ciência e tecnologia da defesa para a
indústria civil,19 neste documento foi substituído o conceito de “Segurança” pelo de
“Defesa” para afirmar a inseparabilidade entre a Estratégia de Defesa Nacional e a
Estratégia de Desenvolvimento Nacional, pois “cada uma reforça as razões da
outra. Em ambas, se desperta para a nacionalidade e se constrói a nação” (END:
18 HART, L. Strategy. NY: Praeger Paperbacks, 1954. 19 Não há prova empírica de que o esforço nacional em P&D em ciência e tecnologia para a defesa promova desenvolvimento econômico-social, nem sequer que induza avanços justificados para a ciência e tecnologia civil. Não existem casos históricos –salvo nas grandes superpotências- nos quais se tenha constatado claramente um aumento considerável do emprego nem do PIB nacional por essa custosa inversão social. Não é preciso justificar o esforço em tecnologia autônoma em qualquer área estratégica por parte de um país que decida emergir entre as potências mundiais, mas não se pode ocultar o custo que esse esforço significa para o país e a inevitável postergação de outras prioridades nacionais, como diminuir as vulnerabilidades com investimentos em saúde pública, serviços sanitários básicos, na educação fundamental ou mesmo, inclusive, diretamente na ciência e tecnologia civil ou/e no financiamento do desenvolvimento de processos produtivos civis.
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10
p.2).20 A costura entre ambas se configuraria, segundo o documento, pelo
fortalecimento de três setores considerados estratégicos: o espacial, o cibernético e
o nuclear. Sem especificar qual ministério conduziria o desenvolvimento científico
nestas áreas, garante que “por sua própria natureza, esses setores transcendem a
divisão entre desenvolvimento e defesa, entre o civil e o militar” (END: p.5).
Finalmente, e apesar do Brasil se autoproclamar como um país pacífico e ter
ratificado o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), o documento reafirma “a
necessidade estratégica de desenvolver e dominar a tecnologia nuclear” e mais
adiante, quando trata especificamente da Marinha, confessa a decisão nacional de
adquirir meios navais de propulsão nuclear, especialmente o velho sonho da
Marina: a fabricação do submarino nuclear (END: p.16).
Em 26 de agosto de 2008, o Almirante Júlio Soares de Moura Neto, Comandante da
Marinha, declarou que o prazo máximo para entregar o submarino nuclear
brasileiro seria 2021. A primeira fase do processo, que envolve o enriquecimento de
urânio, já está concluída e tudo indica que o casco será construído com a
cooperação da França. A construção do submarino nuclear, previsto na END, poderá
custar 600 milhões de dólares, mais do dobro do necessário para construir um
submarino convencional. Ainda assim, e segundo a avaliação do almirante na
reserva Othon Luiz Pinheiro da Silva, precursor do projeto do submarino nuclear
brasileiro em 1979, a Marinha brasileira precisaria de seis submarinos nucleares
para proteger a plataforma continental do Brasil pelo seu tamanho21.
O objetivo principal declarado pela END sobre mobilidade e presença é contar com
uma força militar suficiente para dissuadir “a concentração de forças hostis” nas
fronteiras nacionais (END: p.4). Para satisfazer este objetivo, propõe o
desenvolvimento de três capacidades: seguimento e controle, mobilidade e
presença. Devido à dimensão territorial do Brasil, a ênfase é colocada na
mobilidade estratégica para chegar ao teatro de operações rapidamente e na
mobilidade tática para dominar esse teatro pelo deslocamento em seu interior. Essa
mobilidade tática e estratégica permitiria cobrir toda a extensão territorial nacional
e responder rápida e contundentemente frente a qualquer agressão ou ameaça em
todo o território nacional. Contudo, esta prioridade vê-se comprometida com o
tratamento dado na END à “presença” -que insiste em distinguir da “onipresença”
20 Pode-se consultar a versão traduzida para o castelhano do documento em: https://www.defesa.gov.br/eventos_temporarios/2008/estrat_nac_defesa/estrategia_defesa_nacional_espanhol.pdf. (visitado en 14/05/2009). 21 “Informe Brasil” em Observatório Cone Sul de Defesa e Forças Armadas 27-29/09/2008. Disponível em [http://www.gedes.org.br/produto.php?acao=exibirProdutos&tipo=download&idcat=9&produto= Observat%C3%B3rio%20Cone%20Sul%20de%20Defesa%20e%20For%C3%A7as%20Armadas&pagina=produtos&criacao_de_sites=elisesb_pontocom].
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-uma vez que “o esforço de presença, sobretudo ao longo das fronteiras terrestres
e nas partes mais estratégicas do litoral, tem limitações intrínsecas” (END: p.4),
talvez influenciada pelo lugar da Amazônia na mística militar propõe “adensar a
presença de unidades do Exército, da Marinha da Força Aérea nas fronteiras” (END:
p.6).
Ainda que notória a falta do Estado em vastas regiões das fronteiras nacionais,
especialmente nas amazônicas, não vemos a pertinência estratégica de acantonar
forças nessas regiões. Ainda reconhecendo a importância de uma maior presença
do Estado por meio dos ministérios da Saúde, da Educação, da Justiça e outros, a
construção de bases, aeroportos e arsenais ofereceria a logística para uma eventual
invasão de uma potência maior (que seria a hipótese para estas preocupações).
Sem essa presença militar física, a própria Amazônia é o principal obstáculo para
tal invasão e a força poderia estar preservada, preparada, em alerta e com
condições de rápido deslocamento para fixar, hostilizar e posteriormente repelir as
forças invasoras.
Um terceiro ponto politicamente destacável e coerente com o principio da
mobilidade é a proposta de unificar as operações das três forças através da criação
do Estado Maior Conjunto (EMC) das FA. Esta tardia inovação representa um
importante passo na organização militar, que fortalece o MD e, conseqüentemente,
a condução política da defesa. Do ponto de vista da reorganização militar, cabe ao
ministro da Defesa indicar –e ao Presidente nomear- os comandantes de cada força
que integrarão o EMC. Estes dirigirão cada uma das Forças, formularão sua política
e doutrina e prepararão seus órgãos operativos. Os Estados Maiores de cada força
formularão a estratégia respectiva de sua força.
Embora não se tenha discutido a criação de uma Escola de Comando unificada para
as três forças –o que tornaria realmente eficaz a “conjunção” das forças-, este
aspecto da END recebeu fortes críticas de setores militares, fundamentalmente do
Exército. Estes setores, resistentes à mudança, argumentam que a criação do EMC
provocaria a perda de identidade de cada força e debilitaria a autonomia dos
Estados Maiores atualmente existentes no Exército, na Aeronáutica e na Marinha
em relação ao MD.22 Esta resistência ficou registrada em discursos de despedida de
militares no ato de sua passagem à reserva, impensáveis em democracias
consolidadas. Parte destes discursos criticava justamente o que deveria ser um
objetivo claro e explicito da política de defesa na democracia: a óbvia consolidação
do MD como instrumento de execução da política do governo eleito, único e
22 Ver “Exército critica plano de defesa e vê comandos enfraquecidos” Folha de São Paulo, 04 de março de 2009
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legítimo detentor do monopólio da força do Estado.23 Para alguns militares, o
fortalecimento do ministério em relação aos comandos individuais das forças,
somando à sua prerrogativa para designar os comandantes de cada força, é
inaceitável porque essas medidas “trouxeram novamente antigos costumes de
politização dos negócios internos das FA”.24
Um conceito típico da época da ditadura militar, particularmente enfatizado por
Geisel, que há muito tempo não se via na literatura brasileira e que reapareceu na
END é o de “projeção de poder”. O conceito de “potência” é polissêmico e no
ambiente das Relações Internacionais pode se referir a diferentes capacidades do
Estado, como a militar, a econômica, a cultural, a política, a diplomática e outras. O
comportamento internacional do Brasil tem sido ultimamente reconhecido por sua
eficiência diplomática e seus bons ofícios no ambiente internacional,
particularmente o regional, mais enfaticamente neste cenário desde o final de
2007, com o decidido apoio da “diplomacia presidencial” levada a cabo por Lula.
Portanto, “projeção de poder” pode ser lido como “soft power” através do qual o
Brasil se destaca nos vários cenários internacionais pelos que transita. Não
obstante, na END, a referência a “projeção de poder” aparece fundamentalmente
no parágrafo relativo à Marinha, onde trata do aumento do poderio naval e da
aquisição de meios de superfície e submarinos nucleares brasileiros. Aqui este
conceito fica inequivocamente associado à força: “a projeção de poder se
subordina, hierarquicamente, à negação do uso do mar” (END: p.12), a “negação
do uso” na passagem citada se refere ao mar continental brasileiro, no qual se
encontram alguns dos interesses estratégicos, como as plataformas petrolíferas de
águas profundas, ilhas e arquipélagos, portos e vias de comunicação marítima. Não
obstante, mais adiante, ao tratar das hipóteses de emprego da força, quando
especifica as capacidades desejadas para as FA, aponta expressamente a
capacidade de “projeção de poder nas áreas de interesse estratégico” (END: p.42).
Outro conceito interessante, menos pela novidade que por seu reconhecimento
explícito, é a reivindicação para o Exército convencional de “alguns atributos” das
forças “não convencionais”. Não é de se estranhar: frente a facilidade com que as
forças norte-americanas penetraram no Iraque, resultou claro, como advertiu o
General Erick de La Maisonneuve, que nenhum exército convencional poderia opor-
23 Pelo contrario, o Governo expressa que “O Ministro da Defesa exercerá, em plenitude, todos os poderes de direção das FA que a Constituição e as leis não reservarem, expressamente, ao Presidente da República. A subordinação das FA ao poder político constitucional é pressuposto do regime republicano e garantia da integridade da Nação (END: p.5). 24 General Luiz Cesário da Silveira Filho “Carta a um Jobim fora do tom” em Jornal do Brasil 17/03/2009, http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/03/17/e170323982.asp, consultado em 15/05/2009.
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se à vontade de um exército daquele porte. Na circunstância de ofender os
interesses de uma superpotência, para este autor, só restam duas alternativas, o
salto democratizante até o nível nuclear de beligerância (para quem possua a
tecnologia ou possa adquiri-la) ou descer ao inferno da guerra subclássica: guerra
de guerrilha e terrorismo.25
Notamos que em países de porte médio e em alguns exércitos sul-americanos se
manifesta a tendência de se preparar para a doutrina que chamamos em outro
lugar “estratégia da resistência dissuasória”26, isto é, paralelamente à dissuasão
convencional, estes exércitos se preparam de forma explícita para enfrentar uma
prolongada resistência não convencional: “Um exército que conquistou os atributos
de flexibilidade e de elasticidade é um exército que sabe conjugar as ações
convencionais com as não convencionais. A guerra assimétrica, no quadro de uma
guerra de resistência nacional, representa uma efetiva possibilidade da doutrina
aqui especificada” (END: p.18). Na explicitação deste preparo reside sua eficácia
dissuasória: a estratégia consiste em não empregar o esforço maior para evitar a
invasão, mas sim em mostrar-se preparado e politicamente decidido para resistir à
permanência do exército invasor, desestabilizar o governo ocupado e evitar a
administração estrangeira.
Para adequar seu desempenho às missões constitucionais tanto em tempos de paz
quanto de guerra, o Exército deverá seguir os preceitos estratégicos da flexibilidade
e da elasticidade. Por flexibilidade a Estratégia entende a falta de rigidez no
emprego da força e, recuperando Lidell Hart, afirma que consiste na “capacidade de
deixar o inimigo em desequilíbrio permanente, surpreendendo-o por meio da
dialética da desconcentração e da concentração de forças” (END: p.15).
A insistência no SMO e seus alargamentos parece encaixar-se na idéia da
“estratégia da resistência dissuasória” e da “elasticidade” que se espera conferir à
força. Com este conceito a END se refere à capacidade de aumentar a dimensão
das forças em casos de necessidade de uma mobilização em grande escala de
recursos humanos e materiais para defender o país. A disponibilidade desta
capacidade exige a existência de reservas provenientes do SMO, o qual também
25 LA MAISONNEUVE, E. La Violence qui vent. París: Les Éditions Arléa, 1997. Esp. Cap. 1. 26 Referimos-nos ao texto SAINT-PIERRE H.L. e BIGATÃO J.P. “Las mutantes máscaras de Marte” em TAMAYO, A.M.: Conocer la guerra, construir la seguridad. Lima, Instituto de Defensa Legal, 2008. Ver também SAINT-PIERRE H.L. “Grandes tendências da segurança internacional contemporânea” in JOBIM, N e outros (Orgs.) Segurança Internacional. Perspectivas Brasileiras. RJ : FGV, 2010. Pp. 31-48.
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teria a função de integrar as FA à Nação o que permitiria dispor da logística popular
necessária para uma resistência prolongada.27
Não obstante, a renovação da idéia do SMO, na contramão da formação dos
exércitos mais atualizados, parece contrastar com a proposta de Forças de Ação
Rápida Estratégica que exige em sua composição recursos humanos altamente
capacitados, treinados e armados para operar nos mais diversos terrenos e
condições, além de lidar com meios de comunicação e de armamentos de altíssima
tecnologia “desde os menos sofisticados, tais como radar portátil e instrumental de
visão noturna, até as formas mais avançadas de comunicação entre as operações
terrestres e o monitoramento espacial” (END: p.16). A instrução e o treinamento
específico para este tipo de soldados distam muito do que se pode oferecer a um
conscrito, em tempo, profundidade e especificidade. No entanto, o soldado recruta
requer a atenção dos oficiais e sargentos durante pelo menos seis meses de
treinamento para realizar funções meramente subsidiárias em qualquer cenário
futuro de guerra.
Ademais, o peso orçamentário do SMO consumiria recursos que poderiam promover
a profissionalização, a pesquisa em ciência e tecnologia para a defesa ou o
investimento em meios. Sua implementação reduziria o tempo, recursos e atenção
das FA necessários para sua preparação operativa ao se dedicar à formação de
conscritos. Finalmente, a integração entre a nação e suas FA pode ser alcançada
por outros meios mais eficientes, do que pelo alistamento obrigatório, como os
políticos e culturais, que democratizem os temas da defesa e permitam aos
cidadãos tomar consciência de seus deveres para com ela,28 uma mentalização que
não se confunde necessariamente com o prosaico “pegar em armas”. Depois de
tudo, “o engajamento de toda a Nação em sua própria defesa” (END: p.15) não
pode significar simplesmente “a nação em armas” ainda que em determinados
momentos possa exigi-lo.
Hipótese de emprego: estratégia sem “inimigos”
Um avanço neste documento foi o reconhecimento da inexistência de inimigos e a
indeterminação das ameaças. Como conseqüência, se trabalha com a substituição
do conceito “hipótese de guerra” por “hipótese de emprego”, mais adequado ao
compromisso constitucional do Brasil com a paz. O documento (END: p.37-38)
27 Várias considerações da END nesse sentido parecem fortemente inspiradas em reflexiones de Mao Tse-Tung, especialmente as contidas em “Problemas estratégicos de la guerra revolucionaria” e “Sobre la guerra prolongada” in TSE-TUNG, Mao, Selección de Escritos Militares. Pekín: Ediciones en Lenguas Extranjeras, 1967. 28 Sobre a mobilização nacional, Mao dizia que “Primeiro, consiste em explicar ao exército e ao povo o objetivo político da guerra. Deve-se deixar claro para cada soldado e cada civil por que é necessário combater e o que tem a ver a guerra com eles”, em “Sobre la guerra prolongada” Op. Cit., pag. 253.
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prevê uma escalada de quatro alternativas de emprego da força em um processo
que vai desde a paz ao término de um conflito, ou seja, de retorno à paz. Para o
primeiro momento, durante a paz, prevê a otimização de custos para a manutenção
da força, adestramento e preparo além de atividades de inteligência para monitorar
a emergência de potenciais ameaças e poder acionar o “alerta antecipado”. Durante
a crise está prevista a ativação de uma estrutura de gestão de crises composta pelo
MD e outro se necessário. O emprego das FA poderá ser singular ou conjunto e de
maneira flexível em resposta adequada às circunstâncias. Caso o conflito se
orientasse para o enfrentamento armado se ativariam outros dispositivos como os
comandos operacionais, os planos de campanha, a declaração de zona de defesa
nos territórios que a mereçam, a recomposição de forças com a reserva militar até
alcançar a mobilização se fosse necessário. Durante o conflito armado se executaria
o Plano de Campanha. Ao término do conflito se procederia à progressiva
desmobilização.
A END e o contexto internacional.
A preocupação brasileira com o contexto internacional e especialmente o sub-
regional se manifesta praticamente em todos os aspectos estratégicos da END. Com
relação à sub-região, propõe estimular a integração da América do Sul como forma
de contribuir para a defesa do Brasil, ademais de fomentar a cooperação militar
regional e a integração das bases industriais da defesa (END: p.9). Admite que essa
cooperação é fundamental para diminuir as possibilidades de conflitos tradicionais
na região e preparar o ambiente para o funcionamento do CDS. Mais adiante,
reconhece a importância do CDS para aumentar a dimensão do mercado regional
para compensar o investimento que permitiria a autonomia estratégica
“possibilitando o desenvolvimento da produção de defesa em conjunto com outros
países da região” (END: p.10). Em relação ao ambiente internacional propõe o
preparo das FA para uma maior participação em missões de paz sob mandato das
Nações Unidas ou em apoio a organizações multilaterais da região.
Formação de quadros civis para a Defesa
Como foi mencionado, no início do governo Lula, e em um de seus primeiros
discursos, seu Ministro da Defesa, José Viegas, confessou a necessidade de
“mobiliar o ministério da Defesa com civis”, deixando clara a dificuldade de contar
com civis capacitados para ocupar os cargos do recente ministério decorado em
verde-oliva. Outra das preocupações que vinha manifestando o MD, a qual se
reflete nas assertivas da END, é relativa à popularização do tema da Defesa e à
formação não apenas de quadros civis para ocupar os cargos funcionais e, desse
modo, “mobiliar” a Defesa, mas também de especialistas acadêmicos: “Um
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interesse estratégico do Estado é a formação de especialistas civis em assuntos de
defesa” (END: p.30). A idéia da proposta é incentivar às universidades em
programas das diferentes ciências que versem sobre a Defesa. Quiçá, o maior
incentivo seria a visibilidade, por parte dos estudantes universitários, da
possibilidade laboral real que poderia se obtida com uma formação séria na área.
Isto se alcançaria somente com a abertura de concursos públicos para cargos
funcionais dentro do MD.
Considerações finais
Poucas vezes em sua historia29 o Brasil manifestou seus propósitos de defesa em
sua política externa com a consistência e completitude atual. Tanto o CDS quanto a
END são indicativos de um novo rumo na condução da política externa brasileira:
ambos impactam diretamente a percepção dos países vizinhos e da sociedade
internacional. Para maximizar esse impacto e condicionar as percepções, aquelas
iniciativas exigem o trabalho que só uma adequação sintonizada dos instrumentos
específicos da política externa poderia lograr. Mas como a autonomia é um valor
para as burocracias que dão corpo a esses instrumentos, e a END e ainda mais o
CDS a comprometem, é possível que, sem opor-se explicitamente, as burocracias
freiem o empenho do Executivo mediante práticas dilatórias que levem na pratica
ao esvaziamento daquelas.
A importância do documento que tornou pública a END reside em sua própria
existência: pela primeira vez o Brasil expõe para o mundo seu pensamento
estratégico para a defesa; suas percepções regionais, hemisféricas e mundiais;
suas hipóteses de emprego das forças e os planos de ativação dos meios; suas
preocupações com o desenvolvimento científico-tecnológico autônomo e da
indústria para a defesa. Sem ser um Livro Branco da Defesa e sem a legitimidade
que somente um grande debate nacional confere, satisfaz pela profundidade,
extensão e completitude: foi um trabalho notável que não se eximiu de tratar
temas que no Brasil ainda são sensíveis. Contudo, sua implementação dependerá
de decisões políticas do Executivo, de aprovações técnico-orçamentárias do
Legislativo e da articulação do MD com as FA; e, sobretudo, da motivação ou
enquadramento dos militares para quebrar a inércia corporativa e assumir o
projeto. Com essas considerações, não resta dúvida de que a efetividade da
29 Alguns momentos significativos dessa expressão foram a Guerra contra o Paraguai (S. XIX), o ingresso na II Guerra Mundial ao lado dos aliados, o precoce reconhecimento do governo de Angola e o tratado nuclear com a Alemanha durante a autonomia pragmática do governo Geisel.
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proposta dependerá da aplicação dos meios econômicos.30 Não obstante isso, no
período do governo Lula da Silva foi finalmente apresentada a END que vem de fato
a fortalecer o MD e a condução política da Defesa. Recentemente foi publicada a Lei
136 com o claro propósito de fornecer as condições institucionais para solidificar
esse fortalecimento. O conteúdo de este dispositivo institucional está dado pelo
decreto 7274/10 (publicado em 25 de agosto de 2010, a mesma data da Lei 136),
que se propõe formar os quadros civis capacitados para se inserir na estrutura
desenhada pela 136 e funcionar como cadeia de transmissão da vontade
democrática encarnada pelo Executivo nacional. A dificuldade é que a sociedade
brasileira pouco se importa com as questões da Defesa e na academia ainda reina o
preconceito e a discriminação contra as reflexões ao respeito. Ante esta alternativa,
as FA permanecerão ocupando os espaços vazios deixados pelos civis nos âmbitos
de deliberação e continuarão recuperando fontes de decisão que os políticos sequer
reclamam.
Retomando nossa hipótese colocada no inicio destas páginas, o jogo da “dialética
das vontades” está lançado e o prosseguimento do CDS como a concretização da
END dependerá de seu resultado. O “sistema nervoso” do governo, ou seja, o
ajuste entre o presidente e os ministérios encarregados da proposta (MD e SAE)
funcionou perante a demanda do presidente Lula, fortalecido pelo extenso apoio
popular e o inquestionável reconhecimento internacional. Não obstante, quando a
execução do plano se encarrilhe pelos obscuros labirintos da rotina e da falsa
imparcialidade normativa dos procedimentos, suspeitamos que a aplicação da END
possa sofrer resistências e alterações por parte da burocracia militar: talvez se
consiga tirar do papel aquilo que tenha sido acordado de antemão, mas o que não
seja do agrado militar, quiçá não sofra oposição formal, mas seguramente será
postergado silenciosamente à pilha dos expedientes intocáveis. O teste crucial da
dialética das vontades será colocar em funcionamento o Estado Maior Conjunto e,
sobretudo, a escolha dos Comandantes das forças pelo ministro, particularmente se
estes não forem da preferência da cúpula militar. Contudo, o Governo Lula está
chegando ao fim de seu mandato e os encaminhamentos do governo Dilma Russef
ainda não são claros, obrigando-nos a lembrar que os governos passam, mas as
instituições permanecem.
30 As críticas sobre a falta de discussão sobre os meios para implementar o projeto estratégico não demoraram. Em seu discurso de passagem pela reserva (momento esperado para dizer o que pensam e, portanto, para levantar o sentimento das forças), no Clube Militar, o General Luiz Cesário da Silveira Filho, ex-comandante militar do Leste, classificou o plano como "utópico" e ironicamente perguntou: "Vai haver dinheiro para tudo isso?". Em artigo de Eliane Catanhêde “Exército critica plano de defesa e vê comandos enfraquecidos”. São Paulo: Folha de S. Paulo, 04 de março de 2009
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