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5 As cerimónias de coroação real dos ptolomeus. Formas de reconfiguração política num país multimilenar [5-16] Rihao /17 . ISSN 0325-1209 " José Das Candeias Sales Resumen As cerimónias de coroação real dos Ptolomeus têm subjacente uma estratégia política que demonstra que o poder real lágida foi sensível às particularidades culturais dos seus súbditos egípcios e à necessidade de reconfiguração/ adaptação da jovem monar- quia helenística aos tempos históricos e ao país multimilenar que administrava. Esta estratégia permite explicitar e explicar os traços que definem a vitalidade e a opera- cionalidade dos antigos conceitos reais egípcios no âmbito dos modelos de actuação político-ideológica dos Lágidas, ao mesmo tempo que enfatiza o seu papel na ordem histórica e social do Egipto nos séculos IV a I a.C. Abstract e royal coronation ceremonies of the Ptolemies have an underlying political strategy that demonstrates that the Ptolemaic royal power was sensitive to the cultural partic- ularities of his Egyptians subjects and the need for reconfiguration / adaptation of the young Hellenistic monarchy to the historic times and to the millenarian country to manage. is strategy allows clarify and explain the traits that define the vitality and the ancient Egyptian royal concepts working in the framework of the model politi- cal-ideological action of the Ptolemies, while emphasizing its role in history and social order of Egypt in the centuries IV to I B.C. O Egipto ptolomaico foi o mais original, próspero e durável dos reinos helenísticos formados após a morte de Alexandre e a divisão do seu império. Os cerca de 300 anos da história da dinastia lágida (desde 305 a.C., data da assunção da basileia por Ptolomeu I, e 30 a.C., morte de Cleópatra VII), não podem, todavia, ser considerados de forma uniforme. Não só o carácter descontínuo da nossa informação não permite acompanhar e descrever da mesma maneira o funcionamento dos quinze reinados deste período, como há substantivas diferenças entre os reinados iniciais, basicamente os que se estendem pelo século III a.C., os que abrangem o século II a.C. e os que se arrastam pelo século I a.C. As cerimónias de coroação real dos ptolomeus. Formas de reconfiguração política num país multimilenar Universidade Aberta; CHU. Palabras clave Egipto ptolemaico coronación monarquía tradición ideología Key words Ptolemaic Egypt coronation monarchy tradition ideology

Sales_2011_As Cerimónias de Coroação Real Dos Ptolomeus_Formas de Reconfiguraçãopolítica Num País Multimilenar_ 5-16

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As cerimónias de coroação real dos Ptolomeus têm subjacente uma estratégia política que demonstra que o poder real lágida foi sensível às particularidades culturais dos seus súbditos egípcios e à necessidade de reconfiguração/ adaptação da jovem monarquia helenística aos tempos históricos e ao país multimilenar que administrava. Esta estratégia permite explicitar e explicar os traços que definem a vitalidade e a operacionalidade dos antigos conceitos reais egípcios no âmbito dos modelos de actuação político-ideológica dos Lágidas, ao mesmo tempo que enfatiza o seu papel na ordem histórica e social do Egipto nos séculos IV a I a.C.Palavras-chave: Egipto ptolomaico - coroação – monarquia – tradição – ideologia.

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  • 5MT As cerimnias de coroao real dos ptolomeus. Formas de reconfigurao poltica num pas multimilenar [5-16] Rihao /17 . ISSN 0325-1209

    " Jos Das Candeias Sales

    Resumen

    As cerimnias de coroao real dos Ptolomeus tm subjacente uma estratgia poltica que demonstra que o poder real lgida foi sensvel s particularidades culturais dos seus sbditos egpcios e necessidade de reconfigurao/ adaptao da jovem monar-quia helenstica aos tempos histricos e ao pas multimilenar que administrava. Esta estratgia permite explicitar e explicar os traos que definem a vitalidade e a opera-cionalidade dos antigos conceitos reais egpcios no mbito dos modelos de actuao poltico-ideolgica dos Lgidas, ao mesmo tempo que enfatiza o seu papel na ordem histrica e social do Egipto nos sculos IV a I a.C.

    Abstract

    The royal coronation ceremonies of the Ptolemies have an underlying political strategy that demonstrates that the Ptolemaic royal power was sensitive to the cultural partic-ularities of his Egyptians subjects and the need for reconfiguration / adaptation of the young Hellenistic monarchy to the historic times and to the millenarian country to manage. This strategy allows clarify and explain the traits that define the vitality and the ancient Egyptian royal concepts working in the framework of the model politi-cal-ideological action of the Ptolemies, while emphasizing its role in history and social order of Egypt in the centuries IV to I B.C.

    O Egipto ptolomaico foi o mais original, prspero e durvel dos reinos helensticos formados aps a morte de Alexandre e a diviso do seu imprio. Os cerca de 300 anos da histria da dinastia lgida (desde 305 a.C., data da assuno da basileia por Ptolomeu I, e 30 a.C., morte de Clepatra VII), no podem, todavia, ser considerados de forma uniforme. No s o carcter descontnuo da nossa informao no permite acompanhar e descrever da mesma maneira o funcionamento dos quinze reinados deste perodo, como h substantivas diferenas entre os reinados iniciais, basicamente os que se estendem pelo sculo III a.C., os que abrangem o sculo II a.C. e os que se arrastam pelo sculo I a.C.

    As cerimnias de coroao real dos ptolomeus. Formas de reconfigurao poltica num pas multimilenar

    Universidade Aberta; CHU.

    Palabras clave

    Egipto ptolemaicocoronacin monarquatradicin ideologa

    Key words

    Ptolemaic Egyptcoronation monarchytradition ideology

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    Grosso modo, pode considerar-se que cada um dos sculos da dinastia ptolomaica regista momentos polticos diferentes: o sculo III a.C. marcou a implantao e a afirmao da dinastia ptolomaica nos quadros conceptuais e existenciais egpcios, ao mesmo tempo que se consolidava na interaco com as outras dinastias formadas no ps-imprio; o sculo II a.C. conheceu repetidas sedies, rebelies e revolues na capital e na chra e o sculo I a.C. assistiu directa interveno de Roma nos assuntos polticos internos do Egipto lgida.

    Tais diferenas derivam, por um lado, do prprio exerccio do poder e das principais questes polticas a que cada soberano ou grupo de soberanos decidiu dedicar a sua ateno e esforo de governao e, por outro, das prprias condies conjunturais que se manifestaram de poca para poca, desde os constantes embates militares no exterior com os Selucidas (ex.: guerras srias) at forte influncia-dependncia dos Romanos, passando pelas sedies internas de cariz nacionalista.

    Qualquer tentativa de explicitar a natureza do poder real durante estas fases tem de aceitar duas premissas essenciais: a primeira, que o Estado lgida s existe pela figura do rei que o governa e do seu filho primognito que, em princpio, lhe sucede (monar-quia pessoal e hereditria); a segunda, que o soberano lgida, embora autoritrio, no ignorou na sua prtica poltica as tradies locais egpcias. Em contraste com os Persas (antes) e com os Romanos (depois), por exemplo, os Ptolomeus (tal como imediata-mente antes Alexandre) entenderam que a melhor forma de governar um reino (ou um imprio) era honrar os costumes, as prticas e as autoridades locais1.

    A adeso das comunidades de sbditos e a imposio da autoridade real resultaram, em grande parte, da capacidade dos soberanos geneticamente estrangeiros sintetizarem os heterogneos usos e concepes reais que neles convergiam: por um lado, a histria e mentalidade macednica e grega, por outro, as multimilenares histria e tradio ideo-lgica faranicas. Esta permanente tenso entre as interpretationes Graeca e Aegyptiaca constituiu sempre uma motivao activa na conduo dos destinos polticos do pas.

    Sem poder trair os seus seguidores greco-macednicos, mas tendo de agradar aos seus sbditos egpcios, a monarquia lgida viu-se obrigada a gerir prudentemente as dife-rentes sensibilidades e a desenvolver estratgias de poder tendentes a estender de forma consistente a sua dominao poltica. O rei helenstico, em geral, e o rei lgida, em particular, um vencedor, um salvador e um benfeitor, garante da paz e da prosperi-dade do pas e das suas comunidades2.

    Neste sentido, o fenmeno da justaposio e da coexistncia poltico-cultural talvez o trao distintivo mais marcante do perodo ptolomaico no Egipto. Sem poder trair os seus seguidores greco-macednicos, mas tendo de agradar aos seus sbditos egpcios, a monarquia lgida viu-se obrigada a gerir prudentemente as diferentes sensibilidades e a desenvolver estratgias de poder tendentes a estender de forma consistente a sua dominao poltica.

    Ao chegarem ao poder no Egipto, os basileus de origem macednica rodeiam-se de uma corte (aul) formada por um conjunto alargado e complexo de dignitrios, dota-dos de diversificadas e hierarquizadas competncias e capacidades, que, em seu nome, como seus delegados, exerciam o poder quer na capital quer na chra, o restante ter-ritrio egpcio3. Tanto em Alexandria como na provncia, com a criao de uma ver-dadeira economia urbana e monetria, assente no monoplio de Estado, o princpio geral da administrao assentava na forte coero econmico-financeira que exerciam sobre economia interna egpcia.

    O Egipto foi concebido pelo soberano ptolomaico, como uma basilik g, terra real, da qual era necessrio retirar o mximo de rendimento. O essencial da riqueza do

    1. Cf. Manning, (2010: 28, 29).

    2. Cf, Bingen (2007: 18).

    3. Cf. Bernand (1998: 202). A corte (aul) era formada por um

    conjunto de dignitrios cujos ttulos (parentes do rei, apro-

    ximados dos parentes do rei, primeiros amigos, amigos,

    guarda do corpo, etc.) indicavam o carcter paternalista-familiar da monarquia ptolomaica. The state

    was the king and his court, and vice-versa -Manning (2010: 32).

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    Estado provinha da terra e organizar a produo agrcola e controlar o trabalho e a produtividade da populao trabalhadora, da retirando o mximo proveito em termos de impostos e taxas, em dinheiro ou em espcie, era um assunto vital para a sade da organizao poltico-econmica dos Ptolomeus. Como defendia Cl. Praux, a poltica econmica dos Lgidas assentava em quatro factores, de ordem eminentemente pr-tica: accunuler les plus de richesse possible, dpenser le moins possible, changer le moins possible lordre existant, courir le moins de risque possibles4.

    Administrativamente, o Estado lgida procedeu ao estabelecimento por todo o terri-trio de unidades administrativas facilitadoras da percepo dos impostos e da explo-rao econmico-financeira, nomeadamente os nomoi5, os topoi e os comoi, dirigidas, respectivamente, pelos monarcas, toparcas e comarcas, auxiliados pelos seus respec-tivos secretrios directos (basilicogramata, topogramata e comogramata), a que se juntavam numerosos funcionrios da administrao central, como o dioiceta, o epis-tolgrafo, o arquidicasta, o epistratego, o estratega do nomos, etc.6. Como escreveu A. Bernand, retomando a viso de Cl. Praux sobre o modo de explorao econmica dos Lgidas: Alexandrie et le Lagide () sont em quelque sorte les associs de ce que lon pourrait appeler une socit pour lexploitation de lgypte7. Do ponto de vista eco-nmico, o sentido era uniletaral: a chra sustentava a capital; a economia do trigo egpcia subsidiava a economia monetria alexandrina8.

    Alm desta eficaz e dirigista burocracia, os basileus da dinastia ptolomaica confrontaram-se tambm no Egipto com a outra hierarquizada e activa administrao do pas, isto , a organizao nacional egpcia dos cleros locais, o verdadeiro e activo baluarte das tradies autctones, sem a qual seria impossvel a sua afirmao e manuteno no poder.

    Pela tradio e pela prtica detentora do saber cultual antigo e promotora dos valores tradicionais locais, a elite clerical autctone desempenhava um papel preponderante do ponto vista econmico e detinha um prestgio moral e uma autoridade insubstitu-veis nem sempre devidamente valorizados no relacionamento social, econmico e administrativo junto das populaes egpcias, nomeadamente na chra9

    Aos novos detentores do poder poltico no Egipto, apesar da sua clara superioridade militar, tornava-se imprescindvel contar com a colaborao activa desta fora nacio-nal, designadamente na recomposio do perdido prestgio da instituio real, em certa medida em queda desde o final do Imprio Novo e agravado pela conquista persa, em 525 a.C., e no reconhecimento da sua legitimidade e sacralizao, para mais sendo geneticamente estrangeiros10.

    situao clssica do relacionamento e da interaco entre o poder poltico e as auto-ridades religiosas acrescentava-se, de facto, aquando da tomada de poder por parte de Ptolomeu I Ster e dos seus descendentes imediatos, na nova configurao do presente egpcio resultante da fragmentao e partilha dos espaos do imprio de Alexandre, o da legitimao ideolgica dos macednios como faras dos Egipto.

    Os factos mostram que os primeiros Ptolomeus entenderam rapidamente que s os sacerdotes, conhecedores profundos das multisseculares tradies sagradas, tinham condies religiosas e culturais, de saber e de influncia, para desempenhar esse papel e que s com a sua efectiva colaborao com os principais templos egpcios (teorica-mente com todos os templos do pas, como destacam as decises sinodais) podiam almejar a ser aceites pelo povo egpcio como legtimos faras11. Os sacerdotes/ templos egpcios eram as principais fontes de legitimao poltica no territrio egpcio.

    As relaes do clero com o rei lgida e com as autoridades centrais oscilaram, de acor-do com as circunstncias, entre a colaborao e a oposio, a subordinao e a

    4. Praux (1939: 431). A grandeza e precariedade do Egipto ptolomaico foram o resultado da ambiguidade deste esquema de organizao: com a eficcia da administrao, garantia-se a riqueza e o poderio da monarquia lgida, tornando-a a mais forte de todas as monarquias helenstica e, por consequncia, o seu rei no mais prestigioso sobe-rano; a diminuio da produo, explorao ou percepo dos impostos fazia oscilar perigosa-mente esse poderio e tornava o pas alvo dos ataques e ambies dos reinos vizinhos rivais.5. difcil determinar com exactido o nmero de nomoi que existiam no Egipto no Perodo Pto-lomaico, bem como os seus limites geogrficos. No entanto, geralmen-te, apontam 36 nomoi: 18 no Delta, 6 no Mdio Egipto e 12 no Alto Egipto - Cf. Burkhalter (1992: 188).6. Cf. Bernand (1998: 202, 203); Burkhalter (1992: 190), Praux (1939: 448, 449).7. Bernand (1966:52).8. Cf. Praux (1939: 432, 434).

    9. Cf. Quaegebeur (1979: 712); Johnson (1986: 71, 72); Sauneron (1988: 198); Peremans (1975/ 76: 445); Manning (2010: 96).

    10. Cf. Lloyd (1982: 43).

    11. Como escreve Manning, The Ptolemies active accommoda-tion to Egyptian kingship and to the legitimizing authority of the priesthoods puts them in sharp contrast to both the Persians who came before and the Romans who came after them. Manning (2010: 29). Vide tambm Ibid., 94.

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    independncia, mas viram sempre prevalecer, de uma forma ou de outra, a necessida-de de uma cooperao que acabou, no final da linha, por reforar mutuamente os seus poderes12. Neste particular, desempenharam importante papel os sacerdotes de Ptah, em Mnfis, em particular o sumo-sacerdote, denominado uer-sekhem-hemu, o arteso do grande em poder, autntico representante do clero egpcio junto da Casa Real lgida13. Isto significa que aceitamos, portanto, que os Ptolomeus devem tre consi-drs comme des pharaons au mme titre que leurs prdcesseurs indignes et tran-gers14 e que a dinastia fundada por Ptolomeu I Ster I foi, na longa lista das dinastias egpcias, la dernire de lgypte indpendente15. O Egipto faranico no perdeu a sua identidade tornando-se lgida.

    Historicamente, a monarquia lgida foi mais do que a simples adio mecnica das duas tradies antigas (greco-macednica e egpcia) que, pelos actores e pelas concep-es, nela concorriam directamente. Antes, como um processo institucional e socio-lgico em permanente construo e reformulao, o Estado hbrido ptolomaico foi o resultado de vrias tentativas de as articular16.

    A realeza dos Ptolomeus no Egipto pode no ter realizado a simbiose perfeita de todos os componentes ideolgicos presentes na sua dupla herana cultural. Talvez isso no fosse sequer totalmente possvel. A tentativa de os harmonizar, bem sucedida nuns casos, fra-cassada noutros, , todavia, digna de registo, pois pressupe uma racional poltica tendente a garantir a continuidade da instituio real nos quadros polticos do Egipto helenstico.

    No que se refere problemtica especfica que elegemos as cerimnias de coroao real, o nosso objectivo demonstrar como subjacente a esta estratgia poltica est a ateno do poder real lgida pelas particularidades culturais dos seus sbditos egpcios e pela reconfigurao/ adaptao da monarquia aos novos tempos histricos. Esta estratgia permite-nos explicitar e explicar os traos que definem a vitalidade e a ope-racionalidade dos antigos conceitos reais egpcios no mbito dos modelos de actuao poltico-ideolgica dos Lgidas, ao mesmo tempo que enfatiza o seu papel na ordem histrica e social do Egipto nos sculos IV a I a.C.

    As cerimnias de coroao dos lgidas

    Fazendo f nos autores clssicos, tudo leva a crer que os primeiros quatro reis da dinastia ptolomaica (Ptolomeu I Ster I, Ptolomeu II Filadelfo, Ptolomeu III Evrgeta I e Ptolomeu IV Filopator) foram coroados segundo os rituais tpicos da realeza e da aristocracia guerreira macednicas: os hetairoi (companheiros de armas) e os makedunes (soldados), qual povo em campanha, aclamavam o novo soberano e autorizavam, assim, o uso do diadema enrolado em torno da sua cabea.

    No perodo inicial da dinastia lgida no Egipto, estas cerimnias de coroao eram mais consentneas com o esprito helenstico e preservavam melhor os antigos ideias da Macednia em que o rei era, sobretudo, um guerreiro, merecendo e granjeando a ratificao como primus inter pares. Ademais, estas cerimnias celebradas maced-nica permitiam vincar a fidelidade dos soberanos sua origem macednica e ao seu modelo de poder tradicional, o que constitua um preceito poltico suplementar no permanente confronto directo que os Lgidas travavam com outros opositores reais igualmente fiis s seculares tradies do pas de origem.

    Como vimos, estes primeiros reinados ptolomaicos correspondem poca que, do ponto de vista poltico-militar e territorial, ficou marcada por uma grande pujana e interveno lgida nos assuntos internacionais. O recurso e a aceitao da coroao

    12. Cf. Dunand (1991: 207-210); Hlbl (2001: 280).

    13. Cf. Hlbl (2001: 281); Manning (2010, 92).

    14. Husson, Valbelle (1992: 11).

    15. Dunand, Zivie-Coche (1991: 202). Cf. tambm Husson,

    Valbelle (1992: 333).

    16. Cf. Manning (2010, 3, 4).

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    em moldes egpcios constituir uma etapa distinta da vida da monarquia, quer no contexto internacional, quer na sua relao com o territrio egpcio profundo, a chra.

    Face situao de agitao e desmando poltico-social que se vivia no Egipto na vira-gem do sculo III para o sculo II a.C. (perda de considerveis reas do imprio lgida, infncia do soberano, rixas entre os principais conselheiros da corte, levantamentos populares em Alexandria, rebelies nacionalistas no Alto e no Baixo Egipto, etc.), o rei tinha agora de se impor ao reino e ser reconhecido como autoridade por todos, faces alexandrinas e sbditos egpcios.

    A primeira evidncia documentada que possumos (OGIS 90) da cerimnia de coroa-o egpcia relativa a Ptolomeu V Epifnio. Curiosamente, este fara foi de facto coroado duas vezes. A primeira parlhyij tj basileaj basileaV ocorreu aps a morte do pai, em 205 a.C., quando tinha 5 anos de idade.

    As cerimnias de proclamao do rei (anakleteria), celebradas em grande pompa em Alexandria, seguiram a tradio macednica, isto , chefe do exrcito em ttulo, o prncipe-rei, com o diadema na cabea, passou diante das tropas alinhadas, que o aclamaram como seu soberano. a ltima vez que os desempenham um papel poltico de relevo na aclamao real17.

    Polbio descreve estas cerimnias em que o pequeno Ptolomeu V coroado como legtimo sucessor dos Lgidas:

    Depois de quatro ou cinco dias, construindo uma tribuna na maior colunata do palcio, convocaram uma reunio dos guarda-costas e das tropas reais, bem como dos oficiais de infantaria e cavalaria. Quando todos estes se juntaram, Agtocles e Sosbios subiram tribuna e, em primeiro lugar, admitiram a morte do rei e da rainha e ordenaram que a populao entrasse em luto como era sua prtica habitual. Depois disto, coroaram o menino e proclamaram-no rei, e, em seguida, leram um testamento forjado, no qual estava escrito que o rei designava Agtocles e Sosbios como tutores de seu filho. Exortaram os oficiais a demonstrarem o seu favor e manterem o menino no seu trono.18.

    O relato de Polbio sobre a coroao macednica de Ptolomeu V mostra que embo-ra a criana no tivesse ainda idade para governar os conselheiros reais (Agtocles e Sosbio) procederam com o menino como era costume na corte lgida. O normal funcionamento da instituio real exigia que o novo soberano, uma criana de tenra idade, fosse ratificada (junto com os seus tutores, pretensamente indicados pelo pai) fosse reconhecido como autoridade central.

    Morto o rei (Ptolomeu IV) era preciso agora demonstrar a existncia de um novo rei no Egipto. 17 de Paofi de 205 a.C. (28 de Novembro) assinalava, portanto, a continuidade da monarquia lgida com a coroao do seu novo representante. Significativamente, o novo rei recebeu o nome de Theos Epifanes, o deus manifesta-se, e Eucaristos, gra-cioso. Dessa forma esperavam os conselheiros reais manter a tradio e evitar toda e qualquer tentativa posterior de sublevao, o que no se mostrou de todo eficaz, como evidenciariam os acontecimentos ulteriores.

    Atingida a maioridade em 196 a.C., Ptolomeu V foi coroado de novo, a 17 de Paofi, segundo os antigos ritos milenares dos faras19. A cerimnia egpcia, retomando os antigos ritos do festival-sed dos antigos faras, foi oficiada pelo sumo-sacerdote Harmakhis20 e realizou-se no templo de Ptah, em Mnfis. O rei tinha ento 14 anos de idade. Esta segunda coroao marcou a tomada efectiva do poder pelo jovem rei. Pela primeira vez na histria da dinastia lgida, um dos seus reis era sacralizado direc-tamente pelos sacerdotes egpcios, como no passado o eram os faras autctones.

    17. Cf. widerek (1980, 110).

    18. Polbio XV, 25.3-6. A tra-duo nossa. Vide tambm Austin (1981: 225, 226).

    19. Cf. Bernand (1992b: 47); Skeat, (1969: 12).20. Harmakhis (c. 260-depois de 194-193 a.C.), filho de Anemhor III e de Herankh, era o quinto sumo-sacerdote da sua linhagem a ocupar o cargo de sumo-sacerdote de Ptah em Mnfis, sucedendo ao seu irmo Teos (267-223 a.C.) Thompson (1990: 97, 98); Crawford (1980). Vide tambm PP III, 5358.

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    Exactamente 9 anos depois da cerimnia no palcio real de Alexandria, a segunda coroao do templo de Mnfis funcionou como uma ratificao daquela. Era, no fundo, essa a inteno mais profunda inerente coroao egpcia. A cerimnia de Mnfis constituiu-se num novo fenmeno nos hbitos polticos dos Ptolomeus no Egipto: a Coroa tinha agora um interlocutor popular muito mais vasto, ou seja, j no era s a populao greco-macednica da capital, mas todos os autctones da chra que entra-va numa relao directa com o novo rei21.

    Na ocasio, num acto de benevolncia real, so feitas inmeras concesses e isenes de impostos aos sacerdotes egpcios e seus templos. O fara torna-se tambm gracioso (Eucaristos) para com eles. O texto trilingue preservado na clebre Pedra de Roseta a cpia do decreto emitido pelo Supremo Conselho Sacerdotal, reunido em Mnfis, a 18 de Mechir, para comemorar a cerimnia de coroao menfita, dando precisamente conta das medidas empreendidas no Egipto por Ptolomeu V Epifnio Eucaristo e por ele promulgado a 27 de Maro de 196 a.C.

    Ao celebrar a cerimnia da sua coroao na cidade de Mnfis, por tradio a mais antiga cidade dinstica do Egipto, conotada directamente com o demiurgo Ptah22, Ptolomeu V aceitou estabelecer um poder legtimo, apelando para a sua origem/ base divina egpcia. Simultaneamente, realava-se a aurola de fertilidade, reproduo e multiplicao que a especulao teolgica egpcia atribua ao deus Ptah e que a popu-lao autctone lhe reconhecia23. Ideologicamente, o jovem Ptolomeu V Epifnio no podia reivindicar melhor companhia e proteco.

    Como novo Hrus -a sua idade prestava-se particularmente bem a esta associao com o jovem filho de Osris e sis-, Ptolomeu V tornava-se smbolo da vitria e da habilidade militar, o que tinha uma aplicao concreta, nomeadamente ao dominar das rebelies internas de feio nacionalista24. Dessa forma, o fara podia reclamar o trono que pertencera a seu pai, como o mitolgico deus-jovem egpcio fizera. Subtil mas eficazmente, definem-se os contornos de uma dinastia tipicamente egpcia: abso-luta, hereditria, com ancestralidade divina, por isso divina em si mesma.

    Ao aceitar evocar, semelhana dos seus antecessores nascidos no Egipto, a doutrina do direito divino como fundamento legitimador do seu poder, o macednico Pto-lomeu V Epifnio consentia e admitia a preponderante influncia do clero nativo, particularmente do clero menfita. Ao ser o primeiro dos basileus lgidas a submeter-se s cerimnias e aos ritos sagrados egpcios, Ptolomeu V assumiu integralmente o protocolo egpcio, adoptando os traos de um verdadeiro fara. Segundo a ideologia poltica era um deus-rei egpcio.

    O decreto sado da reunio sinodal de Mnfis foi produzido directamente pelos sacer-dotes, mas isso no significa, em nossa opinio, que a redaco definida, a narrativa evocada e os ttulos atribudos ao fara tenham resultado de um acto completamente arbitrrio, independente e unidireccional dos sacerdotes. Vemo-lo, antes, como um documento oficial, produzido com conhecimento e autorizao da chancelaria real, com profundo impacto na definio ideolgica da realeza ptolomaica, no sentido de uma intencional, porque proveitosa na conjuntura histrica, faraonizao do basileus.

    A ideologia real no desprezou naturalmente o prestimoso auxlio dos sacerdotes nessa construo da imagem real ou no fossem eles os nicos capazes de produzir ideologia de acordo com os caracteres estabelecidos pela tradio interna egpcia. A egipcianizao dos Ptolomeus, objectivamente reis estrangeiros, reside, no fundo, neste consentir e aprovar que novos recursos, argumentos e conceitos egpcios sejam trazidos colao para definir a sua realeza.

    21. Cf. Fraser (1992: 118); widerek (1980: 111).

    22. Cf. Sales (2008: 45-56); Joubert (1992: 3-8).

    23. A cosmogonia menfita advogava categoricamente que

    Ptah criara a Humanidade, fundara os nomoi, estabelecera as

    cidades, estruturara os ofcios e as actividades humanas, institura,

    no fundo, a ordem tica e poltica - Cf. Sales (1999: 71, 72; 279-282).

    24. As linhas 22-28 da Pedra de Roseta referem-se concretamente

    severa punio dos chefes dos re-voltosos de Licpolis, um ano antes (197 a.C.). Da o elogio quele que

    estabeleceu a ordem no Egipto. Vide Sales (2010a: 224-230).

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    Subjacente celebrao da cerimnia de coroao de Mnfis (e, portanto, redaco do decreto de Roseta) h uma clara aceitao mtua de um novo compromisso rela-cional entre sacerdcio e faraonato25. Aos privilgios econmico-financeiros de um correspondem as vantagens polticas do outro: o poder poltico alexandrino oferece significativos benefcios materiais26; o poder religioso egpcio prescreve prdigas ideo-logia e propaganda. A interaco dos poderes evidencia estratgias de sobrevivncia amplamente assumidas e explicitamente reconhecidas por ambos os parceiros polticos. Selando o novo relacionamento entre Alexandria e Mnfis est o antiqussimo mas agora renovado ritual da coroao real.

    Quando, em 180 a.C., o filho de Ptolomeu V e de Clepatra I, Ptolomeu VI Filometor, herda o trono do Egipto, pela segunda vez consecutiva na histria da dinastia lgida o rei uma criana (tem 5 anos)27. Cerca de 172/ 171 a.C., o jovem rei celebra os seus anakle-teria em Alexandria e, como o pai, desloca-se a Mnfis para a ser coroado como fara egpcio. O princpio fora criado e agora tornava-se uma cerimnia obrigatria de cada novo soberano. O eixo poltico-religioso Alexandria-Mnfis no mais deixaria de funcionar.

    Tambm Ptolomeu IX Ster II, a exemplo do seu bisav Ptolomeu V Epifnio, foi coroa-do duas vezes, com uma significativa diferena, porm, em relao ao seu antepassado: enquanto este fora coroado em Alexandria ( maneira macednica) e em Mnfis ( maneira egpcia), Ster II foi coroado em ambas as vezes em Mnfis, primeiro em 116 a.C. e depois, ao fim de 30 anos, em 86 a.C.

    Na cerimnia de 86 a.C., conduzida pelo sumo-sacerdote de Ptah, Petobastis III (trineto do sumo-sacerdote que coroara Ptolomeu V Epifnio), Ster II foi na prtica o primeiro dos Lgidas a celebrar verdadeiramente o tradicional jubileu egpcio dos trinta anos o festival sed como reafirmao do seu poder real (Cf. Thompson, 1990, 114). Longe iam, portanto, os tempos dos primeiros Ptolomeus, em que a cerimnia se limitava a uma s celebrao e ocorria num palcio da capital.

    Dez anos depois, em Maro de 76 a.C., foi a vez de Ptolomeu XII Neos Dionisos ser coroa-do egpcia, numa cerimnia repleta de irregularidades: o sumo-sacerdote Pacherenp-tah (Psenptais III), membro de uma famlia de sumo sacerdotes de Ptah, em Mnfis, foi praticamente nomeado pelo fara para a ocasio; era um rapaz com 14 anos de idade28 e a coroao teve agora lugar em Alexandria e no, como era tradio, em Mnfis29.

    Uma estela do British Museum (Estela EA 886, tambm designada por Estela Harris ou Estela de Pasheryenptah)30 informa-nos sobre o orgulho deste sacerdote-profeta (hem-netjer) que presidiu cerimnia de coroao:

    Eu coloquei o ornamento da coroa da serpente na cabea do rei no dia em que ele tomou posse do Alto e do Baixo Egipto e que realizou todos os ritos habituais nas salas consagradas s Festas dos Trinta Anos. Fui eu que dei as instrues para a purificao do deus por ocasio do divino nascimento de R na Casa Dourada31.

    A colaborao institucional entre Alexandria e Mnfis conhecia um momento mpar. A Estela refere que a nomeao do sumo-sacerdote foi feita pelo prprio rei, em Alexandria:

    O rei do Alto e do Baixo Egipto, o deus Filopator Filadelfo (...) cingiu-me a fronte com um diadema de ouro e com toda a espcie de pedras preciosas verdadeiras (...)32.

    Quando Pacherenptah foi a Alexandria para ser nomeado sumo-sacerdote do culto real, o rei deteve o seu carro a caminho do templo de sis para lhe demonstrar o seu favor pessoal, agraciando-o com uma grinalda de ouro33. Deferncias que os neg-cios do poder justificavam plenamente.

    25. Cf. Thompson (1990: 100).

    26. So numerosas as este-las relatando os privilgios fiscais, as receitas afectadas aos santurios (apomoira e syntaxis) e a reduo de taxas concedi-das s classes sacerdotais.

    27. Cf. PP VI, 14516

    28. A iconografia da Estela mostra-o, ajoelhado, com as tpicas pele de leopardo e trana de cabelo (sobre o ombro direito) usadas pelos sumo-sacerdotes de Ptah - Cf. Walker, Higgs (2001: 185).29. Quando Pacherenptah foi a Alexandria para ser nomeado sumo-sacerdote do culto real, o rei deteve o seu carro a camin-ho do templo de sis para lhe demonstrar o seu favor pessoal, agraciando-o com uma grinalda de ouro - Cf. Walker, Higgs (200: 184).30. Do ponto de vista histrico, esta estela funerria trata-se do mais importante documento hiero-glfico e da mais importante fonte sobre uma coroao ptolomaica em Mnfis Cf. Hlbl (2001: 283).31. Traduo nossa, do francs cit. em Bevan (1934: 385, 386) e do ingls cit. em Hlbl (2001: 300. Pechereni-Ptah nasceu em 90 a.C., foi designado sumo-sacerdote em 76 a.C. e faleceu no 11 ano do rei-nado de Clepatra VII, a 14 de Julho de 41 a.C. - Cf. Quaegebeur (1972: 101; Crawford (1980: 39, 40); Hlbl, (2001: 283), Walker, Higgs (2001: 184-186). A Estela, de calcrio, com 82 cm de altura por 70,5 cm de largura e 12 cm de espessura, muito bem elaborada, proveniente de Sakara, est datada do ano 40 a.C., reinado de Clepatra VII (http://www.britishmuseum.org/ explore/highlights/highlight_ob-jects/aes/l/ limestone_stela_of _pasheryenpt.aspx - consultado a 27/12/2010, 23.49 horas).32. Traduo nossa. Cit. em Chauveau (1997: 64).33. Cf. Walker, Higgs (2001: 184).

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    As anomalias no ficaram por aqui: aquando da sua ida a Mnfis para celebrar as festividades em honra dos deuses da cidade, Ptolomeu XII usava a coroa branca na sua cidade. A hedjet era a coroa do Alto Egipto e estranho ou, pelo menos, desajustado, que na antiga capital do Baixo Egipto o rei no usasse a decheret, a emblemtica coroa vermelha que testemunhava a sua soberania sobre a regio. Ou estamos perante um lapso narrativo ou perante uma falta de informao ou falta de sensibilidade real

    Apesar de nascido de um ramo ilegtimo da rvore genealgica dos Lgidas (era filho de Ptolomeu IX Ster II e de uma mulher desconhecida) e mau grado as anomalias cerimoniais, Ptolomeu XII fez-se coroar pelo sacerdote de Ptah. No cumprimento dos seus deveres rituais, o jovem sumo-sacerdote de Ptah auxiliou o fara a nascer como novo filho solar34. A inteno de se legitimar perante os seus sbditos greco-maced-nicos da capital e perante os egpcios como os antigos reis, qual sa R, filho de R, era ainda evidente.

    No podemos esquecer que Ptolomeu XII recebera o trono dos revoltados alexandrinos, aps o desaparecimento-assassinato de Ptolomeu XI Alexandre II, em 80 a.C., e que essa subida ao poder no foi reconhecida por Roma, legatria do poder linhagstico dos lgidas aps o testamento de Ptolomeu XI. Os tempos eram, agora, novos.

    Os antigos gestos polticos tinham provavelmente perdido muita da sua eficcia e do seu impacto no contexto internacional de meados do sculo I a.C., mas mesmo com o exerccio de iure da realeza egpcia condicionado ao reconhecimento do Senado romano os actores histricos continuavam, ainda, internamente, a procurar as mesmas solues do passado. As cerimnias da coroao real de Ptolomeu XII, com todas suas irregularidades, surgem-nos com um acto desesperado do poder real lgida enfrentar a conjuntura internacional do seu tempo.

    Cada vez mais poderosa e dominadora, Roma hegemonizava j s portas do Egipto: a Cirenaica pertencia-lhe por herana, desde 96 a.C. (em 74 a.C. converter-se-ia, efec-tivamente, em provncia, com governador destacado), e a Sria sucumbiria em breve (em 64 a.C., Pompeu transformou a Sria em provncia romana).

    A excessiva proximidade-dependncia da corte lgida em relao aos Romanos, ser-vilismo mesmo, em vrios aspectos, que esteve na base do aumento dos impostos, e o facto de Ptolomeu XII ter permitido que os Romanos se apoderassem de Chipre (lex Clodia de Cypro), anexando-a provncia romana da Cilcia, isto , condenando o seu prprio irmo, tambm chamado Ptolomeu, que se suicidou, exasperou o povo de Alexandria e levou-o revolta. O rei forado ao exlio em Roma (58 a.C.), onde se colocou sob a proteco de Pompeu um dos homens fortes da Urbs, talvez mesmo o cidado mais poderoso da Repblica, em virtude do seu vasto comando e das suas numerosas foras na sia , enquanto a sua filha Berenice IV (filha do seu casamento com Clepatra VI Trifena) assumia o poder real em Alexandria.

    Perdida a eficcia efectiva mas no a simblica da cerimnia de coroao real, restava aos reis lgidas coexistirem e sobreviverem como podiam perante as crescentes orien-taes polticas de Roma. A histria das relaes poltico-amorosas de Clepatra VII com Jlio Csar e Marco Antnio mais no do que o confronto de duas tendncias de poder, antagnicas nas concepes e nos interesses.

    Como sabemos, a tradio e a propaganda oficial favorveis a Roma e a Octvio-Augus-to no perdoaram rainha do Egipto, ainda em vida, e traaram-lhe para a posteridade uma imagem quase unanimemente desfavorvel, quando, no fundo, historicamente, o que estava em causa era precisamente a luta pelo poder entre duas diferentes con-cepes de poder.

    34. Cf Hlbl (2001: 283).

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    O invulgar sentido poltico da rainha egpcia ficaria bem patente no seu plano de constituir com Marco Antnio um grande estado romano-egpcio na metade oriental do Mediterrneo, que pudesse ser legado a Cesario e aos seus descendentes35.

    A aco determinada de Clepatra VII contrastou com a pobre liderana de seu pai: a rainha lgida concebeu o projecto de restabelecer a grandeza lgida, tal como tinha existido no passado j longnquo da sua dinastia. So dois reinados que funcionam a contrario: humilhao de Auleta responde a filha com um esforado renascimento (Doaes de Alexandria), em grande parte, porm, ilusrio e artificial. Ao filho, Ptolomeu XV Cesario, estava destinado um reinado mais virtual do que real, em que a sustentao ideolgica e a propaganda no foram j suficientes para manterem a sua independncia poltica e a prpria vida.

    Concluso

    Na ideologia real helenstica a funo guerreira do soberano, simbolicamente procla-mada pelo uso do diadema, era um vector essencial do seu carisma e um elemento essencial para a sua aceitao pelas populaes, o mesmo dizer, pelos contingentes militares. Em teoria, o prestgio real vivia do detentor do cargo real alcanar vitrias militares, fazer conquistas territoriais e aumentar a sua riqueza36. O rei helenstico era, por isso, antes de mais, um senhor-guerreiro vitorioso.

    De acordo com esta concepo, as cerimnias de coroao real apostavam na demons-trao pblica dessas caractersticas. No caso dos Lgidas, eram, de facto, os homens do exrcito que ratificavam, em Alexandria, de forma eloquente, o seu uso do diadema. medida que os Lgidas se vo despojando e afastando do orgulho de conquistado-res, mas mantendo, porm, a concepo e a inspirao da grandeza militar, as suas prticas vo-se aproximando e enquadrando na representao do mundo e nos hbitos esttico-ideolgicos do antigo Egipto, exprimindo de forma prestigiosa e sagrada os caracteres mais apreciados na realeza.

    Procurando, sob todas as formas, conduzir os naturais sua aceitao como reis leg-timos na linha dos tradicionais faras egpcios, os Ptolomeus socorreram-se de vrios dispositivos e recursos: reivindicaram a familiaridade e filiao divinas (na dupla ver-tente ideolgico-cultural helnica e egpcia)37, demandaram a proteco e atributos das divindades locais (pretendendo, assim, sancionar superiormente o seu exerccio do poder), proclamaram significativas titulaturas e dedicaram-se activamente cons-truo/ reconstruo/ decorao de edifcios religiosos por todo o territrio egpcio. Esforaram-se, pois, por legitimar o seu poder atravs de instituies egpcias.

    Da mesma forma, intencionalmente, reconfiguraram as cerimnias de coroao de forma a se harmonizarem plenamente com a multimilenar mundividncia egpcia, aceitando de forma voluntria a cooperao com o clero egpcio (sobretudo com o men-fita), o nico agente capaz de promover uma vlida e sacralizada legitimidade poltica de acordo com os valores locais. Ao se subordinarem deliberadamente ao princpio da legitimidade, os reis lgidas a partir de Ptolomeu V Epifnio mostraram-se fiis tradio poltica do Egipto e utilizaram as cerimnias de coroao como engenhoso meio ideolgico para a sua perpetuao no poder.

    Cmo citar este artculo Das Candeias Sales, Jos (2011). As ceremnicas de coroao real dos ptolomeus. Formas de reconfigurao poltica num pas multimilenar en Rihao, N 17. Buenos Aires: Instituto de Historia Antigua Oriental Dr. Abraham Rosenvasser, Facultad de Filosofa y Letras, Universidad de Buenos Aires (pp. 5-16).

    35. Cf. Bowman (1986, 27 e 34).

    36. Cf. Husson; Valbelle (1992: 305).

    37. Esta imperiosa necessidade de estabelecer um parentesco directo ou uma associao ntima com as divindades fora, durante sculos, um apangio notrio do tpico monarca egpcio. Cf. Sales (1997: 184-193; 2008: 15-18).

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