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59 2014 / MAIO AS ABELHAS COMEÇARAM A DESAPARECER NUM RITMO ACELERADO HÁ SEIS ANOS. JUNTO COM ELAS, VAI-SE EMBORA A NOSSA COMIDA. AGORA, UM PESQUISADOR BRASILEIRO ESTÁ USANDO SENSORES COMO ESTE PARA ENTENDER O QUE ESTÁ POR TRÁS DAS MORTES EM MASSA COMIDA ABELHAS SENSORES EXTINÇÃO PESQUISA COMO FAZ TEXTO LUCIANA GALASTRI SALVAÇÃO DA COLMEIA FOTOS CLAUS LEHMANN

SALVAÇÃO DA COLMEIA - editora.globo.comeditora.globo.com/.../GALILEU_SALVACAODACOLMEIA_MAIO_274.pdf · trás do estudo é verificar o quanto a exposição aos pesticidas afeta o

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AS ABELHAS COMEÇARAM A DESAPARECER NUM RITMO

ACELERADO HÁ SEIS ANOS. JUNTO COM ELAS, VAI-SE EMBORA A NOSSA COMIDA. AGORA, UM PESQUISADOR

BRASILEIRO ESTÁ USANDO SENSORES COMO ESTE PARA ENTENDER O QUE ESTÁ

POR TRÁS DAS MORTES EM MASSA

COMIDAABELHAS SENSORES

EXTINÇÃOPESQUISA COMO FAZ

TE X TO • LUCIANA GAL ASTRISALVAÇÃO DA COLMEIA

FOTOS • CL AUS LEHMANN

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Numa manhã de março em Hobart,

capital do estado australiano da Tas-

mânia, o brasileiro Paulo de Souza se

prepara para uma tarefa rotineira. Pri-

meiro, sai para caçar abelhas que, uma

vez capturadas, são colocadas numa

geladeira até que suas temperaturas

corporais baixem para 5 °C, quando

entram em hibernação. Souza começa

então a segunda etapa do trabalho: com

um bisturi e uma pinça, raspa cuidado-

samente os pelos dos insetos. As abe-

lhas são depiladas para a instalação de

sensores de 2,5 milímetros de largura

e 5 miligramas de peso em suas costas

(veja o passo a passo ao lado). O proce-

dimento dura menos de cinco minutos,

quando os bichinhos acordam. Envia-

das para uma área de readaptação, elas

demoram para se acostumar com o peso

extra do chip — e daí estão prontas para

voltar às colmeias. Souza não é colecio-

nador de insetos e nem tem um hobby

esquisito. Ele é engenheiro do CSIRO

(órgão de desenvolvimento científico

da Austrália) e está à frente de uma

pesquisa que tenta responder a

uma pergunta que está tirando

o sono de cientistas: por que as

abelhas estão morrendo numa

velocidade duas vezes mais rá-

pida do que alguns anos atrás?

“Precisamos saber por que as

operárias abandonam suas col-

meias”, disse Souza. “De forma

direta e indireta, isso causa a

falência de fazendas e prejudi-

ca a produção de alimentos ao

redor do mundo.”

Nascido no Espírito Santo e radicado na Austrália desde

2008, Souza aposta na tecnologia para solucionar o misté-

rio da morte em massa das abelhas. Equipadas com chips

de RFID (identificação de radiofrequência, na sigla em in-

glês), elas saem do laboratório para retomar a polinização,

a produção de mel ou qualquer outra função na colmeia. O

zum-zum-zum é monitorado por uma série de antenas que

registram toda vez que uma delas passa por um determinado

ponto. Ao todo, 5 mil abelhas carregarão o chip nas costas

até o final do experimento. Essa informação é retransmitida

para um centro de controle, onde cientistas criam um modelo

tridimensional da movimentação das abelhas. A ideia por

trás do estudo é verificar o quanto a exposição aos pesticidas

afeta o comportamento de colônias. Para isso, duas das col-

meias do centro de pesquisa de Hobart são expostas a pólen

contaminado com agrotóxico. As outras duas não. Se Souza

e sua equipe notarem uma alteração no comportamento das

abelhas expostas ao pesticida, como a incapacidade de voltar

para o ninho, atrasos e até a morte precoce, o produto passará

a ser o principal suspeito de causar o Distúrbio de Colapso

de Colônias, ou CCD na sigla em inglês.

O problema foi notado pela primeira vez em 1995 nos

EUA e faz com que as operárias de um ninho não encontrem

mais o caminho de casa, abandonando a rainha e os ovos e

causando a destruição de suas colmeias. Estima-se que, nos

últimos seis anos, o CCD tenha causado a morte de 35%

N1. Depois de capturadas em Hobart, na Tasmânia, as abelhas são colocadas em potes dentro de uma geladei-ra até que suas temperaturas corporais che-guem a 5 °C, quando entram em hibernação

2. Com a ajuda de uma pinça e de um bisturi, o pesquisador brasileiro raspa cuidadosa-mente o pelo das costas das abelhas para a instalação de um sensor. O processo de-mora menos de cinco minutos

3. O chip de RFID (identifica-dor de radiofre-quência, na sigla em inglês) tem 2,5 milímetros de largura, 5 miligramas de peso, ou 5,5% da massa corpórea da abelha. Ele é instalado como uma espécie de mochila hi-tech

4. Quando as abelhas saem da hibernação, elas são coloca-das numa espé-cie de área de recuperação. É preciso dar um tempo para que elas se adaptem a voar com o peso extra do sensor instala-do nas costas

5. Adaptadas, as abelhas são liberadas para realizar suas tarefas na colmeia. A movimentação dos insetos é registrada por antenas e enviada para computadores, que preparam modelos 3D

ABELHAS SENSORIZADAS

2,5 mm

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3 5

sáveis pela produção de 73% dos vegetais do

mundo. Não entendeu a ligação? Basta lembrar

das aulas de biologia: as abelhas são respon-

sáveis por levar pólen de uma planta a outra,

colaborando com a fecundação das flores que,

por sua vez, geram novos frutos e sementes.

Quando não há a polinização, a reprodução fica

comprometida. A planta não consegue gerar

frutos e brotos ou a variação genética da espé-

cie é prejudicada, já que se torna dependente

do próprio pólen para se proliferar. “Ela fica

fadada a reproduzir clones de si mesmo, que

seriam mais suscetíveis às doenças”, afirma

David de Jong, outro professor da USP de Ri-

beirão Preto, especialista em patologia apícola.

ALIMENTOS MAIS CAROSA amendoeira é um bom exemplo de como o

CCD pode afetar as plantações. A árvore de-

pende única e exclusivamente dos insetos para

se reproduzir, e 80% da produção mundial da

fruta seca está localizada na Califórnia, estado

norte-americano muito afetado pelo fenôme-

no. Para tentar manter a safra, agricultores

locais foram obrigados a alugar 1,4 milhão de

colmeias durante a época de polinização dos

últimos anos. A demanda inflacionou o aluguel

de colônias, cujo preço aumentou mais de seis

vezes e bateu em US$ 250. Hoje, é mais caro

alugar abelhas do que pagar por fertilizante,

água ou mão de obra. O resultado? Queda na

produção e aumento no preço da amêndoa — o

que deu início a um efeito cascata que atingiu em cheio ou-

tras áreas da indústria alimentícia. Por ser muito nutritiva,

a casca da amêndoa é usada para alimentar o gado, o que

encareceu a ração bovina. Quando vacas não se alimentam

de forma apropriada, elas produzem pouco leite, expandindo

as consequências do CCD para as fabricantes de laticínios.

Isso sem contar as outras espécies de plantas que seriam

afetadas, em maior ou menor escala, pela falta de abelhas. O

que aconteceria caso elas sumissem para sempre? Pesquisa

realizada pela ONG americana Xerxes Society em parceria

Abelhas de estimação

QUER AJUDAR O PROCESSO DE POLINIZAÇÃO EM REGIÕES URBANAS? CONSTRUA UMA COLMEIA EM CASA. ESPÉCIES COMO A JATAÍ SE ADAPTAM A PEQUENOS JARDINS, EXIGEM POUCOS CUIDADOS E NÃO TÊM FERRÃO. APRENDA A CRIAR A SUA:

PASSO 1

LOCALIZAÇÃO A colônia deve ser instalada num lugar alto para evitar a invasão de formigas e outros insetos. Lembre-se de que a colmeia precisa ficar ao ar livre ou ter acesso a uma janela.

PASSO 2

MÃOZINHAColoque mel ou água com açúcar na melgueira para alimentá-las durante a fase de adaptação ao novo local. Fixe palitos de dente na estrutura pa-ra que a abelha colete o mel sem cair no líquido.

PASSO 3

FEITO EM CASAO mel poderá ser coletado na primavera. Use uma seringa para retirar o líquido através das melgueiras e lembre-se de deixar um pouco para suas amigas aladas. Elas também preci-sam do néctar.

PASSO 4

NOVA COLMEIAAs Jataí se reproduzem rapidamente. Em três meses, sua caixa não será suficiente para abri-gá-las e parte da colmeia formará outra comu-nidade. Decida se quer transferi-las para outra caixa ou deixar que busquem um novo lar.

VOCÊ VAI PRECISAR DE:» Uma colônia de abelhas Jataí, vendida por apicultores (até pela internet!) por R$ 250» Mel» Seringa» Árvores e flores próximas à colônia

nessa rotina é muito simples”, diz Sou-

za. “Se uma funcionária sai para coletar

pólen e demora mais do que as outras

para voltar para a colmeia, já sabemos

que há algo errado.” As primeiras con-

clusões do estudo devem ser conheci-

das em junho deste ano.

Mas por que ter tanto esforço para

investigar esses bichinhos que insis-

tem em se afogar na sua Coca-Cola?

“É simples: se não tem abelha, não tem

comida”, diz o professor Lionel Segui

Gonçalves, do Departamento de Biolo-

gia da Faculdade de Filosofia, Ciências

e Letras da USP de Ribeirão Preto. Ele

lidera o movimento Bee or not to be

(um trocadilho com o bordão To be or

not to be de Hamlet, personagem do

escritor inglês William Shakespeare) e

estima que esses insetos sejam respon-

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das abelhas criadas

em cativeiro dos EUA

e da Europa — e a Aca-

demia Nacional de Ci-

ência norte-americana

sugere que o efeito nas

colônias selvagens seja

ainda pior. Quando as

abelhas começaram a desaparecer, especialistas estimaram

que elas estariam extintas até 2035. Com o agravamento da

crise causada pelo CCD, isso deve acontecer muito antes.

O pesticida pode ser o principal suspeito, mas outros fato-

res são apontados como possíveis causas desse fenômeno:

estresse causado pelas mudanças climáticas, infestações

de uma espécie de pulga, radiação de telefones celulares e

plantações com sementes geneticamente modificadas. “As

abelhas têm hábitos muito regulares e perceber alterações

ILUSTR AÇÃO: Evandro Bertol/Editora Globo

Mochila hi-tech: Até o fim do experimento, em junho, 5 mil abelhas serão equipadas com o sensor. O objetivo é entender o que matou 30% dos insetos nos EUA

com a proliferação dos insetos

— seja plantando mais flores ou

criando a sua própria colmeia em

casa (aprenda a montar a sua no quadro Como Faz). “Precisamos

usar pesticidas não-tóxicos para

as abelhas e priorizar o controle

biológico de pragas”, diz Gonçal-

ves, da USP de Ribeirão Preto. “E

todo mundo precisa saber da im-

portância das abelhas para a natu-

reza e para a nossa alimentação.”

Dados obtidos recentemente

por uma pesquisa da Universida-

de de New Hampshire, nos EUA,

podem mudar os rumos dessa

discussão. De acordo com o es-

tudo, as abelhas passaram por um

grande declínio popula-

cional há 65 milhões de

anos, mesma época da

extinção dos dinossau-

ros. Como há poucos

fósseis dos insetos, os

pesquisadores analisa-

ram a sequência gené-

tica de 230 espécies de

abelhas atuais e, em seus

DNAs, encontraram pis-

tas que indicariam a ex-

tinção. “Quatro grandes

grupos de abelhas apre-

sentavam os sinais e eles coincidiam com o fim do período

Cretáceo, quando os dinossauros desapareceram e diminuiu

também o número de plantas com flores”, conta a bióloga

Sandra Rehan, uma das autoras do estudo. Mas quem sumiu

primeiro, as plantas ou as abelhas? Ainda não se sabe. Os fa-

tores ambientais eram outros e os pesquisadores consideram

o impacto de um meteoro, que teria comprometido todo o

sistema. Mas o passado das abelhas indica como o equilíbrio

da espécie é frágil e como ele afeta o resto do ecossistema.

“Ao compreendermos melhor o que aconteceu no passado

das abelhas, podemos enfrentar a crise de polinizadores com

mais conhecimento no presente”, afirma Sandra.

52%

52% dos alimentos vendidos no mercado, como alface, banana e maçã, desaparecerão das pratelei-

ras caso o número de abelhas continue a cair

ENXAME DE PROBLEMASNÚMEROS MOSTRAM COMO A CRISE DAS ABELHAS AFETA OS SUPERMERCADOS, O PREÇO DE ALIMENTOS E OS ESTADOS BRASILEIROS ATINGIDOS PELO DISTÚRBIO

Nos últimos seis anos, os EUA

apresentaram uma redução de 30% na quanti-dade de abelhas

criadas em cativeiro

30%

de colmeias preci-sam ser alugadas

todos os anos para polinizar plantações de amêndoas na

Califórnia

1.4 MILHÃO

A redução no número de abelhas aumentou em 43% o preço das amêndoas no mundo, já que sua repro-

dução é 100% dependente da polinização

R$ 16,93

2012 2013

R$ 27,28

43%

5 são os estados brasileiros que já apresentam

sinais de redução de abelhas: Piauí,

Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Santa Catarina e

São Paulo

com a rede Whole Foods estima que

as prateleiras de supermercados perde-

riam 52% do total dos seus produtos,

como banana, maçã, repolho e couve.

Os efeitos devastadores do CCD são

mais evidentes em países do hemisfé-

rio Norte, mas já há suspeitas de que a

síndrome esteja se repetindo em outros

lugares, inclusive no Brasil. “Em San-

ta Catarina houve uma taxa maior de

mortalidade em 2011, quando um terço

das colmeias do estado morreu em ape-

nas seis meses”, conta David de Jong.

O problema prejudicou não apenas a

produção de mel, que ficou abaixo do

esperado. A colheita de maçã na região

também sentiu os efeitos, já que poma-

res ficaram sem polinização. A versão

brasileira da síndrome estaria relacio-

nada ao uso de neocotinoides, um tipo

de agrotóxico proibido na União Euro-

peia. Aqui, eles tiveram o uso restringi-

do em 2012, justamente pela suspeita

de que a exposição a esses químicos

poderia alterar o comportamento das

abelhas. Mas após uma reação de asso-

ciações de agricultores e do Ministério

da Agricultura, que alegavam queda na

produtividade, o governo voltou atrás.

“Há um limite para a utilização dos

pesticidas, mas muita gente usa bem

mais do que deveria por não ter infor-

mações”, diz Osmar Malaspina, doutor em ciências biológi-

cas do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro. “O

piloto do avião não sabe qual é o efeito daquele produto nas

abelhas e nem o papel delas na polinização.”

A HISTÓRIA SE REPETE?Apesar da preocupação dos apicultores, muita gente acredi-

ta que esses dados ainda sejam muito pontuais para provar

que o CCD já esteja causando estragos em território nacio-

nal. Um exemplo são as perdas de até 70% das colônias

do Nordeste nos últimos meses, que estariam ligadas à

seca severa na região. “Muitas coisas podem afetar as po-

pulações de abelhas, ainda não conseguimos achar uma

lógica”, afirma Malaspina. “Em Santa Catarina isso pode

ter sido causado por um surto, algum problema de manejo.”

A coleta de dados oficiais está começando agora — e um

parecer mais conclusivo só será apresentado daqui a dois

anos. Para ajudar, o movimento Bee or not to be lançou

o Bee Alert, aplicativo voltado aos criadores de abelhas e

pesquisadores que pode ser acessado em qualquer plata-

forma pelo site semabelhasemalimento.com.br/beealert.

Com o programa é possível marcar onde colmeias foram

afetadas, a intensidade do fenômeno e a sua provável causa.

Além disso, o movimento pede para que todos colaborem

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Olho no problema: Com a pesquisa, o brasileiro Paulo de Souza quer evitar que a produção de alimentos entre em colapso no mundo todo por causa da falta de polinização