SAMPAYO Mafalda 2001 Conclusao

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Cidades Mulcumanas

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  • O m o d e l o u r b a n s t i c o d e t r a d i o m u u l m a n a n a s c i d a d e s p o r t u g u e s a s Concluso

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    CONCLUSO

    A fundao do aglomerado, as preexistncias

    A escolha do stio na implantao duma cidade tem motivos vrios, podendo estar relacionada com

    factores econmicos, polticos e defensivos. Podemos afirmar que a seleco inicial dum lugar para a

    construo duma cidade marca de forma determinante o desenvolvimento da malha urbana da urbe.

    A maioria das cidades analisadas nesta dissertao tem um carcter defensivo e por isso obedece a

    preocupaes estratgicas, podendo algumas conciliar esse factor com outro de ordem econmica.

    Fizemos questo em analisar a fundao dos aglomerados pelas razes apresentadas acima. Pen-

    samos que a melhor forma de estudar o modelo duma cidade duma determinada cultura passa pela

    anlise dessa urbe em estado puro, isto , sem a interveno doutras culturas e do elemento tempo.

    Muito dificilmente encontraremos estas duas condies reunidas e, no nosso caso, o factor tempo

    imperativo. Ele pode influenciar ou no no estudo duma determinada urbe.

    Como o nosso objectivo de estudo remete fundamentalmente para a cidade islmica em Portugal, onde

    existem poucas cidades de fundao rabe, tivemos de ter em conta as preexistncias e as diferentes

    culturas que ocuparam sucessivamente as cidades conquistadas ou apropriadas pelos Muulmanos.

    Antes de mais, queremos deixar claro o que considermos ser uma cidade de fundao rabe. Foram

    entendidas como cidades nesta condio aquelas que correspondem a uma edificao islmica.

    Aquelas onde data da ocupao do povo rabe num determinado stio no existia cidade com o signi-

    ficado aceite pela maioria dos investigadores1. Neste contexto e pegando no caso concreto da cidade

    de Silves confirmmos a sua fundao islmica, porque no est provada a existncia de cidade no

    monte onde os rabes fizeram crescer a sua urbe. Embora tenham sido encontradas algumas estrutu-

    ras visigticas naquele stio, no consta que l estivesse implantada uma cidade visigtica. Ainda rela-

    tivamente a esta urbe sabe-se da existncia dum aglomerado romano, no no monte da cidade islmi-

    ca mas perto desta, e no temos conhecimento dum castro no cimo deste monte, como ocorreu num

    grande nmero de cidades islmicas em Portugal.

    1 Cidade onde a aparncia fsica, a actividade econmica e a relao com estruturas urbanas mais vastas tm de existir simultaneamente.

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    Assim, e nas dez cidades analisadas considermos duas de fundao islmica: Silves e Elvas. A fun-

    dao desta ltima ainda mais clara que a de Silves. Na regio de Elvas existiu um castro importante

    (que poder ter correspondido a uma cidade), mas no na colina escolhida pelos Muulmanos.

    Relativamente s outras cidades, vora, Faro e Lagos so as mais romanas na morfologia da planta.

    vora e Lagos correspondem quelas onde os castros no foram devidamente comprovados.

    Nas restantes cidades o percurso foi muito idntico: primeiro corresponderam a um assentamento do

    tipo castrejo; seguiu-se uma apropriao romana, os Visigodos estiveram em quase todas; e do sculo

    VIII ao XIII foram islmicas. Como este itinerrio esteve mais presente influenciou em muito a carac-

    terizao do modelo da cidade islmica portuguesa que iremos apresentar.

    A estrutura castreja teve muito pouca interferncia na malha urbana das cidades analisadas, mas foi

    determinante na escolha do stio. Os intervenientes da Idade do Ferro escolheram situaes e stios2

    que lhes eram favorveis. Todos os castros referenciados estavam em stios defensivos e encontra-

    vam-se em situao favorvel s comunicaes e explorao agrcola.

    Com os Romanos construiu-se cidade; cresceu um padro morfolgico adaptado ao modelo da cidade

    imperial e ao stio onde esta assentava. Desta forma se explicam as diferentes plantas das cidades

    romanas portuguesas. Mrtola e Lisboa so as urbes onde se nota mais a influncia do stio na cidade

    romana.

    Em relao estadia dos Visigodos nas cidades apresentadas, conclumos que contriburam no reforo

    das muralhas da cidade romana. Nalguns casos, possvel que sejam mesmo os responsveis pela

    construo dessas fortificaes. Durante a sua permanncia muitas igrejas se edificaram; exemplo dis-

    so a baslica de Mrtola, implantada fora de portas.

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    A situao topogrfica

    As dez cidades portuguesas apresentadas neste estudo, embora separadas por grandes distncias,

    esto implantadas em stios muito semelhantes. Todas desfrutam duma colina excepo de San-

    tarm e vora, que se localizam em planaltos. No caso de vora est patente o controlo visual do

    territrio, pois dominava uma vasta plancie alentejana. Santarm um caso especial, uma vez que no

    seu desenvolvimento havia uma separao fsica entre os vrios bairros da urbe.

    Verificmos que quando a implantao se desenvolveu numa colina foi sempre escolhida a vertente

    Sul por ser a mais ensolarada. Foi assim em Lisboa, Elvas, Alccer do Sal, Mrtola, Silves e Tavira.

    A presena dum rio e duma ou mais ribeiras uma constante nos estudos de casos analisados. J t-

    nhamos chegado concluso que a gua essencial vida das cidades islmicas e ela aparece em

    todos os aglomerados estudados. Quando existe um rio, ele est a Sul da colina e condiciona em muito

    o desenvolvimento da malha urbana. A colina tambm responsvel pelo crescimento do tecido urba-

    no.

    Nas cidades abordadas dois rios se destacam pela constante presena: o Tejo (Santarm e Lisboa) e o

    Guadiana (Elvas, vora e Mrtola), importantes vias de comunicao em tempo medieval. Para alm

    dos rios, principais eixos virios, outros terrestres se evidenciam, muitos deles remontando aos Roma-

    nos. O facto de estas urbes se encontrarem em situao de encruzilhada impulsionou em muito o des-

    envolvimento das mesmas, que viviam da agricultura, mas tambm do comrcio.

    Assim, o cruzamento de vias, muitas delas do tempo romano, permitiu que mesmo as regies mais po-

    bres em termos frteis sobrevivessem gloriosamente ao tempo medieval. o caso de Mrtola, onde os

    terrenos so pouco frteis. Apenas Lagos no deve o seu grande desenvolvimento a uma situao de

    encruzilhada, esta cidade Algarvia vivia da riqueza do seu stio e da proximidade que mantinha com

    alguns centros comerciais.

    A condio agrcola de Mrtola uma excepo nas cidades apresentadas; em todas vimos existirem

    terrenos frteis que, nalguns casos, conciliavam as potencialidades dum rio de grandes dimenses.

    2 Entenda-se stio como o lugar exacto da implantao duma dada cidade, e situao como as condies do lugar onde essa cidade se insere.

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    Desta forma, a riqueza do stio parece ser uma condio da permanncia dos aglomerados. Em muitas

    destas cidades portuguesas existiam bosques nas proximidades, o que pensamos ter sido um apelativo

    ocupao das mesmas por parte dos rabes.

    A explorao mineira evidencia-se nalgumas das regies das cidades estudadas; esta era uma acti-

    vidade que j vinha de tempos anteriores. No caso de Mrtola, esta actividade contrabalanava a

    pobreza dos terrenos para a agricultura.

    Na globalidade, a cidade islmica em Portugal localiza-se na vertente Sul duma colina inclinada; tem

    um rio a seus ps; atravessada por importantes vias romanas, ou estas esto na sua proximidade;

    dispe de terrenos frteis com abundncia de gua potvel, o que permite a cultura de hortas na en-

    volvente da cidade; e, em muitos casos, usufrui tambm dum bosque.

    Faro e vora tm uma condio geogrfica ligeiramente diferente. vora no est na vertente Sul

    duma colina, mas no cimo de um planalto; Faro funcionava como uma pequena ilha ovalada implanta-

    da num montculo.

    Situao e desenho urbano da alcova e traado da muralha da cidade

    A alcova, na cidade islmica portuguesa, ocupa o lugar mais alto da implantao. Registmos, ape-

    nas, trs casos onde isso no se verifica: Lagos, Tavira e Faro. Em Tavira foi dada primazia posio

    da mesquita maior que se localizava, no ponto mais alto, prxima da alcova. Em Lagos e Faro a

    construo da alcova, em zonas baixas, poder-se- explicar por razes que se prendem com as

    preexistncias e por um lugar estratgico de vigia controlando os movimentos de chegadas e partidas

    na via martima.

    No temos informao relativa ao desenho urbano de todas as alcovas, mas em relao s cidades

    islmicas, onde se realizaram escavaes e onde o tempo no apagou o passado, observmos que

    foram colocadas a descoberto estruturas regulares, malhas rectilneas de suporte s edificaes. Vi-

    mos isso em Santarm onde ainda so perceptveis os eixos virios ordenadores daquele espao; em

    Lisboa as estruturas que l encontramos hoje, se forem reminescentes do tempo islmico, demonstram

    uma organizao na alcova; em Elvas na residncia dos governadores (o castelo) tambm foi posta

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    tambm foi posta vista uma estrutura recticulada; em Mrtola, com o bairro residencial da alcova

    localizado a Norte desta; e em Silves onde Rosa Varela Gomes identificou um traado composto por

    uma malha urbana organizada, com o respeito pelos alinhamentos do pano de muralhas que desenha

    aquela alcova. Este desenho regrado no espao da alcova, em que as linhas rectas assumem

    maior preponderncia, resultado de um crescimento rpido, que corresponde s necessidades dos

    governadores; a expresso mais evidente do poder.

    Podemos afirmar que a alcova se relaciona com as muralhas da medina sempre da mesma forma,

    ainda que a sua orientao possa ser diferente de caso para caso. Na grande maioria das cidades ana-

    lisadas o reduto do poder ocupa o ponto mais alto da colina e a muralha da medina nasce amarrada ao

    pano da muralha da alcova. A separao fsica entre a alcova e a muralha da medina apenas se

    registou em Santarm e em Tavira. Em relao a esta ltima existem ainda algumas dvidas, aquilo

    que visualizamos hoje parece indicar que a alcova ficava no interior da medina. Contudo, o traado

    da muralha da cidade pode ter sido diferente daquele que imaginam os actuais investigadores. O caso

    de Santarm de todos o que apresenta mais divergncias ao modelo: existe uma boa distncia entre

    os vrios espaos da cidade, a medina e a alcova ocupam plataformas planlticas diferentes e no

    se tem conhecimento duma muralha que unisse aqueles dois espaos.

    Embora se tenham comprovado orientaes diferentes da alcova em relao ao centro da medina,

    curioso o facto de em muitos casos observarmos uma posio do reduto a Nordeste. Vimos isso em

    Elvas, em vora, em Mrtola, em Silves e em Lagos. Por outro lado, em Santarm e em Tavira o espa-

    o do poder ocupa um lugar a Este.

    O desenho em planta das muralhas das alcovas estudadas corresponde quase sempre a polgonos

    irregulares de 3 ou 4 lados, adaptados morfologia do terreno, e muitos deles tm uma forma prxima

    do quadrado ou do rectngulo. So trapzios rectangulares as alcovas de Santarm, Elvas, Mrtola

    e Silves. A rea da alcova proporcional ao tamanho da medina. Em cidades grandes temos alc-

    ovas que podem atingir os 4 hectares, como em Santarm e Lisboa; em cidades de menores pro-

    pores, como Silves, a alcova rondar 1 hectare.

    As portas da muralha da alcova devem depender da sua dimenso e das funes que desempenha.

    costume existirem duas portas: uma articulada com o interior da medina, geralmente associada a

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    uma importante via; e a outra, chamada da Traio, que dava para o exterior, e serviria como ltima

    fuga em caso de invaso.

    A muralha da medina, geralmente mais acidentada que a da alcova, construda, nalguns casos,

    para englobar as construes que cresceram espontaneamente (obedecendo a uma hierarquia viria)

    e apresenta alguns recortes relacionados quer com a habitao existente quer com a topografia. Um

    bom exemplo desta caracterizao est patente na muralha da medina de Elvas. Algumas muralhas

    so mais regulares, correspondendo a desenhos ovalados (Alccer do Sal, Silves e Faro) ou rectan-

    gulares (Santarm, vora, Mrtola, Lagos e Tavira). bom ter presente que nem todas as muralhas

    das medinas analisadas correspondem apenas ao perodo islmico; algumas tm a sua origem em

    tempo romano, e sofreram alteraes recuperaes ao longo do tempo - sendo registadas, no sculo

    X com os rabes, algumas melhorias em certas cidades portuguesas. Assim, o desenho da muralha da

    cidade est intimamente associado topografia do stio, tanto na cidade rabe como na romana.

    Quanto s portas da medina portuguesa, verificmos o mesmo que acontece noutros aglomerados

    medievais no resto da Europa, ou seja, o seu nmero relaciona-se com a dimenso do povoado. Desta

    forma, nas maiores cidades islmicas portuguesas encontrmos at 5 portas; vimos isso em Lisboa e

    em Elvas. As mais pequenas, aquelas que se inserem numa escala que ronda os 6/7 hectares, tm

    normalmente 3 portas (casos de Alccer do Sal3, Silves e Lagos). Faro foi a cidade onde anotmos o

    menor nmero de portas na muralha da medina, apenas 2.

    Nas cidades islmicas analisadas, individualizmos 3 escalas relativamente rea intra-muros: na es-

    cala de primeira ordem esto as cidades de Santarm (23 hectares) e Lisboa (11 hectares)4; seguem-

    se Elvas e vora (ambas com cerca de 10 hectares); e numa terceira ordem, as cidades de Mrtola,

    Lagos (5 hectares), Silves (8 hectares), Tavira (6 hectares) e Faro (5 hectares). Alccer do Sal no foi

    inserida em nenhuma destas escalas porque a sua rea diverge bastante das restantes. Verificmos,

    assim, que o que predomina a cidade da segunda escala, aquela que ronda os 7 hectares, tal como

    Cludio Torres havia referido.

    3 Alccer do Sal de todas as cidades estudadas a que apresenta menor rea intra-muros - 3,3 hectares; se a muralha da medina tivesse englobado o bairro junto ao rio, a sua rea aproximar-se-ia, provavelmente, das outras cidades analisadas. 4 Em Santarm e Lisboa no inclumos aqui a rea da alcova.

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    Localizao da mesquita principal e edifcios pblicos de destaque na cidade rabe

    A mesquita maior na cidade islmica portuguesa ocupa quase sempre um lugar central na medina, fica

    numa importante via da urbe. Quando isso no acontece, a sua localizao est na proximidade duma

    das portas da cidade. Em Santarm, Mrtola e Lagos a mesquita maior encontrava-se junto a uma das

    portas da muralha da medina, embora em Santarm esse lugar concilie tambm uma certa cen-

    tralidade. J em Lagos a posio da mesquita, antigo lugar do frum romano, ficava numa das extre-

    midades da urbe, que teria carcter central pelas funes que desempenhava. A localizao da mes-

    quita em Mrtola e em Lagos pode ter sido influenciada pelas preexistncias. Em Lagos foi o frum

    romano - o lugar mais alto; em Mrtola foi uma posio alta na proximidade da alcova. Esta

    vizinhana da alcova com a mesquita maior tambm foi observada em Silves e Tavira.

    Para alm da mesquita maior outras mesquitas de bairro existiram na cidade islmica portuguesa. Nal-

    guns aglomerados analisados (Santarm, Lisboa e Elvas), constatmos que o espao da alcova en-

    globava uma mesquita. A construo duma mesquita no espao do poder pode ter razes diversas:

    uma pode prender-se com o tamanho da urbe, uma vez que verificmos a presena da mesquita na

    alcova nas cidades de maior escala; outra com a riqueza dos stios e do tempo da construo, que

    permitiram que certas alcovas funcionassem como autnticas mini-cidades.

    Em muitas cidades ainda se registam mais mesquitas localizadas nos diferentes ncleos, bairros, que

    compem a malha urbana. Em Santarm, a construo de diferentes mesquitas prende-se, como em

    outras urbes, com as necessidades da populao, aqui ainda mais evidente, pois os vrios bairros da

    cidade encontravam-se separados. Em Lisboa, com o desenvolvimento da urbe, surgiram bairros s

    portas da cidade, os arrabaldes da Mouraria e de Alfama, que iriam tambm albergar edifcios reli-

    giosos; sabe-se que na Mouraria de Lisboa existiu uma pequena e uma grande mesquita. vora

    islmica tinha 3 mesquitas: da S somavam-se mais duas de bairro, tambm localizadas em cho

    que viria a ser cristo.

    Tem sido documentada uma hereditariedade em muitos edifcios religiosos de vrias cidades ibricas.

    Existe uma tradio cultural no stio onde so levantados os monumentos sagrados. Temos visto, a

    uma baslica crist suceder uma mesquita, e a esta sobrepor-se uma igreja denominada vulgarmente

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    por Igreja de Santa Maria. Em Santarm, a mesquita da alcova parece ter sido substituda pela Igreja

    de Santa Maria, e possvel que na medina a Igreja de Santa Maria de Marvila estivesse em lugar da

    mesquita principal; em Lisboa, existe indicao da mesquita ter estado no stio onde mais tarde foi

    construda a Igreja de Santa Maria Maior, a S; em Elvas, na alcova, sucede mesquita da alcova

    a Igreja de Santa Maria da Alcova e mesquita da medina a Igreja de Santa Maria dos Aougues;

    em Alccer do Sal, a Igreja de Santa Maria, no espao da medina, ter sido edificada sobre a mesquita

    maior; em Mrtola, a Igreja Matriz ou Igreja de Santa Maria resultante da mesquita; em Lagos, no

    stio da mesquita construiu-se a Igreja de Santa Maria da Graa ou Santa Maria Mayor arruinada com o

    terramoto de 1755; em Tavira, sabemos que a mesquita maior foi antecessora da Igreja de Santa Maria

    do Castelo; e em Faro, a mesquita maior d lugar Igreja de Santa Maria de Faro.

    Em funo do exposto para as diferentes cidades, podemos afirmar que, em quase todas, existiu perto

    da mesquita um mercado. Santarm tinha um mercado e a Casa das Fangas perto da mesquita maior;

    em Elvas, o aougue situava-se numa rua principal na proximidade da mesquita aljama; vora islmica

    tinha o suq perto de uma das mesquitas de bairro; em Silves, o mercado encontrava-se perto da mes-

    quita; e em Faro, tambm se faziam trocas comerciais s portas da mesquita.

    O mercado, na cidade islmica portuguesa, tambm adopta a forma linear, desenvolvendo-se ao longo

    duma rua, como j foi referenciado a propsito de Mrtola e de Silves. A rua comercial tem continuao

    durante toda a Idade Mdia chegando mesmo aos nossos dias.

    Verificmos que, em muitas destas cidades, existira tambm um espao comercial junto duma das

    portas e/ou nas proximidades do rio. Em Santarm, registmos alcaarias junto ao rio entre os dois

    bairros ribeirinhos e um espao de feira, o rossio, perto duma das portas; em Lisboa as alcaarias es-

    tavam junto ao rio, nas imediaes da Porta do Mar; em vora, tambm existia comrcio fora de portas

    (o mercado das sedas), num dos arrabaldes; em Alccer do Sal, os aougues existiram junto da Porta

    de Ferro e mais tarde passaram para junto da ribeira; em Silves, realizavam-se feiras no exterior junto

    ao rio; em Lagos, o comrcio fazia-se junto duma das portas, a da Ribeira; em Tavira, existiram alcaa-

    rias na margem do rio, do lado exterior da muralha, na Rua dos Pelames5 e um outro mercado, junto a

    uma das portas, no espao que viria a ser da Praa da Ribeira. Desta forma, o comrcio realizava-se

    em vrias partes da cidade islmica portuguesa.

    5 A toponmia foi de grande ajuda na identificao de muitas das funes existentes na cidade islmica portuguesa.

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    O edifcio de banhos pblicos era comum s cidades islmicas. Uma tradio do tempo romano, onde

    as termas no faltavam. O edifcio de banhos pblicos aparece na cidade islmica no local onde antes

    tinham sido as termas romanas ou junto a uma das portas da urbe. Na cidade islmica de Santarm,

    existiam vrios edifcios de banhos para responderem s carncias dos diferentes bairros separados

    fisicamente; em Lisboa, os banhos estariam possivelmente no stio das termas romanas, na ribeira e a

    meia encosta; em Elvas, os banhos estariam no exterior, perto duma porta e da albergaria; em Mrtola,

    as termas localizaram-se no espao do frum e tero possivelmente passado para junto do rio; e em

    Silves, os banhos pblicos localizar-se-iam junto a uma das portas da cidade perto do rio e tambm na

    alcova.

    Outro edifcio pblico de destaque, na cidade islmica portuguesa, a albergaria, que os espanhis

    apelidam de funduqs, onde os comerciantes procuravam abrigo. Nas cidades apresentadas, regist-

    mos, em Elvas e em Faro, uma possvel albergaria no exterior da urbe.

    O espao funerrio, quando identificado, est, em todas as cidades islmicas analisadas, no exterior

    junto a uma das portas, e nalguns casos ao longo de uma importante via que conduz a essa porta. Em

    Santarm, s foram identificados os cemitrios judeus que tambm estavam no exterior; em Lisboa, um

    dos cemitrios estava no exterior, nas extremidades dum arrabalde; em Elvas, o cemitrio localizava-se

    fora das muralhas da medina; em vora, o cemitrio estava no exterior, prximo de uma das portas; em

    Alccer do Sal, acredita-se que o cemitrio islmico ficava no exterior, segundo uma lpide encontrada;

    em Mrtola, o cemitrio islmico estava porta da cidade, ao longo da via que se deslocava para Beja;

    e em Silves, o cemitrio ficava junto porta nascente.

    Caractersticas do traado que enforma o aglomerado e seu desenvolvimento urbano

    Em oposio cidade romana (que una), a cidade islmica portuguesa apresenta uma estrutura tri-

    partida: alcova, medina e arrabaldes. Nas cidades observadas, verificmos uma variao de 3 a 4

    bairros, sendo vulgar encontrar 3 bairros nestas urbes, bairros que tm uma relao com a estrutura

    apresentada.

    Contudo, muitas destas urbes apresentam 4 bairros nos quais dois podem corresponder a desen-

    volvimentos exteriores urbe, a arrabaldes. Em Santarm, vimos uma alcova e uma medina em

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    altas plataformas e dois arrabaldes junto ao rio; em Lisboa, a alcova localizava-se no topo do monte,

    a medina a meia encosta e os arrabaldes, de ambos os lados da medina, relacionavam-se com o rio;

    em Elvas, os bairros existiam dentro da medina e estavam separados por importantes vias (caso da

    Judiaria que, como noutras cidades medievais, ocupava um lugar privilegiado intra-muros); vora

    islmica estava fragmentada em bairros individualizados pelas vias de destaque da urbe; em Alccer

    do Sal, no cimo do monte, estava a medina e a alcova e junto ao rio outro bairro se desenvolvia; em

    Mrtola, existiam 3 ncleos - o da alcova, o da medina e o do arrabalde; em Silves, as importantes

    vias tambm distinguiam os bairros e havia um arrabalde junto ao rio; em Lagos, surgiu tambm um

    arrabalde junto ribeira; em Tavira, dois bairros se desenvolveram no exterior, um no cimo do monte

    que viria a ser a Mouraria e o outro junto ao rio; e Faro tambm tem uma estrutura tripartida em

    alcova, medina e arrabaldes. importante voltar a realar o facto de cada bairro funcionar autono-

    mamente e com funes especficas.

    Em todas as cidades islmicas portuguesas existe uma hierarquia viria, normalmente imposta por du-

    as importantes vias que se encontram ao centro da urbe e comandam pequenas travessas e becos que

    nos conduzem habitao privada. Tambm verificmos esta situao na cidade romana, mas ela no

    exclusiva desta cultura, pois as cidades que classificmos como de fundao islmica em Portugal -

    Elvas e Silves - demonstram esta mesma estratgia.

    As vias de maior destaque na cidade islmica esto associadas a actividades religiosas e comerciais.

    Assim, muito comum encontrar a mesquita maior numa das principais vias e o suq (s vezes sob a

    forma linear, desenvolvendo-se ao longo da rua) nas suas proximidades. Estas importantes vias fazem

    a ligao das principais portas da urbe.

    Em muitas das cidades por ns analisadas vimos que a estrutura da urbe romana permaneceu, sendo

    hoje possvel afirmar que uma determinada rua corresponde ao cardo e outra ao decumanos. Mas mais

    interessante ser fazer o exerccio de observao da evoluo do aglomerado e da relao deste com

    as primitivas vias que ligavam a urbe romana a outros centros habitados. Desta investigao cons-

    tatamos que essas vias romanas transformaram-se em ruas principais durante a Idade Mdia.

    Por outro lado, as linhas principais de um aglomerado o cardo e o decumanos -, materializam-se

    apenas se o terreno o permitir. Estes dois eixos, perpendiculares entre si, com caracter ordenador, so

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    como vimos uma tradio helenstica. Surgem, tambm, em cidades de fundao islmica, mas como

    estas assentam, preferencialmente, em lugares acidentados, aqui o cardo e o decumanos no so to

    rectilneos como na urbe romana. Geralmente estas duas ruas so as linhas de cumeada do terreno,

    talvez seja por isso que em Mrtola apenas podemos apontar uma dessas linhas directrizes.

    Curiosamente, verificou-se em vrias cidades medievais portuguesas que uma das vias que liga a ci-

    dade a outra urbe assume um papel de destaque. Esta via entra dentro da urbe, sendo inicialmente um

    cardo ou decumanos, mais ou menos sinuosa, nela se instalam as actividades comerciais, vindo a to-

    mar a designao de rua direita durante a Idade Mdia. nesta rua que um dia existiu uma mesquita

    que se transformou em igreja crist, tambm nela que encontramos referncias a edifcios comerci-

    ais. A rua direita na cidade medieval corresponde assim rua que ligava ao exterior (que se articulava

    com outro aglomerado).

    Santarm adoptou uma hierarquia viria quer na alcova quer na medina, dois eixos principais dese-

    nham uma cruz, na qual o centro est bem demarcado no espao interior s muralhas; na medina de

    Santarm ainda existe mais uma rua de preponderncia, esta ligando duas importantes portas; em Lis-

    boa, a principal via islmica aquela onde se localiza a S, e ligava a Porta de Ferro Porta do Sol;

    em Elvas, dois eixos principais cruzam-se sensivelmente ao centro da cidade, sendo um comercial e o

    outro estabelecendo a ligao da alcova com uma das portas da medina; em vora, os eixos virios

    principais so herdeiros da cidade romana, com a transferncia para a cidade islmica, e passaram a

    fazer a separao entre os diferentes ncleos ou bairros; Alccer do Sal tambm apresenta duas vias

    que se cruzam no centro do espao da medina; em Mrtola, no conseguimos identificar duas impor-

    tantes vias que se cruzassem ao centro, mas observmos existir uma via comercial paralela ao rio, que

    ter possudo uma certa preponderncia no tempo islmico; em Silves, as vias principais cruzavam-se

    no centro da medina; em Lagos, o desenho urbano da cidade islmica suportado pelo cardo e pelo

    decumanos da cidade preexistente, contudo, isto no significa que fossem estes os eixos principais na

    cidade islmica de Lagos; em Tavira islmica, duas ruas tero tido protagonismo, a Calada de D. Ana

    e a Rua D. Paio Peres Correia, estas duas ruas no se chegam a encontrar, mas conduzem os indi-

    vduos ao centro da cidade; e em Faro, embora deturpados pelas alteraes islmicas, os eixos prin-

    cipais romanos ainda hoje so identificveis. Em todas estas cidades uma rede viria mais apertada,

    uma rede capilar, transporta-nos para um mundo privado, o mundo intimista que tem como base a lei

    do Alcoro.

  • O m o d e l o u r b a n s t i c o d e t r a d i o m u u l m a n a n a s c i d a d e s p o r t u g u e s a s Concluso

    338

    Como foi referido anteriormente, a topografia do terreno onde assentam estas cidades tem reper-

    cusses no desenvolvimento da malha urbana. Nas cidades islmicas, que ficam na encosta duma

    colina ovalada, as ruas principais so circulares, e as secundrias vencem as diferentes plataformas,

    estabelecendo assim uma grande relao com o stio. Isto est bem patente em Lisboa, Silves e Faro.

    Quando o rio que assume maior projeco, as ruas tendem a ser paralelas quele. Vejam-se as

    cidades de Alccer do Sal, Mrtola, Lagos e Tavira.

    Nas cidades em que a morfologia do padro era de origem romana, os rabes foram-se apropriando da

    rua, segundo a lei da hereditariedade, e desvirtuaram ligeiramente os eixos preexistentes.

    Nalguns exemplos de cidades islmicas referidas nesta dissertao constatmos a presena de espa-

    os de logradouros e jardins; verificmos isso em Santarm e em vora. Esta marca junta-se a todas

    as outras aqui referidas e, em muitos casos, ainda podem ser confrontadas nas cidades actuais.

  • O m o d e l o u r b a n s t i c o d e t r a d i o m u u l m a n a n a s c i d a d e s p o r t u g u e s a s Concluso

    339

    Depois da sensibilizao para a existncia dum modelo de cidade islmica portuguesa, que cor-

    responde hoje maioria dos centros histricos das nossa urbes, julgamos ter ficado demonstrada a

    razo pela qual afirmamos serem estas cidades organizadas.

    O modelo da cidade islmica em Portugal tem muito em comum com as teorias apresentadas pelos

    diferentes investigadores da cidade islmica de Espanha e do Norte de frica. Uma das razes para

    estas semelhanas prende-se com o facto de os stios onde estas cidades assentam apresentarem as

    mesmas caractersticas quer em termos geogrficos quer culturais. Por outro lado, esta cidade com-

    posta por determinados elementos (formas fsicas determinantes na formao da imagem da urbe) que

    se repetem nos mais diferentes lugares e que se estruturam de forma idntica.

    Individualizmos algumas caractersticas que julgamos contriburem para o reconhecimento da cidade

    medieval portuguesa do sculo VIII ao XIII, aquela que corresponde ocupao rabe.

    Assim, o modelo da cidade islmica em Portugal apresenta-se da seguinte forma (fig. 271 e 272):

    - a urbe assenta numa colina com passado cultural, que pode ter reminiscncias num castro seguido

    de ocupao romana e visigtica, e na maioria destes casos as estruturas preexistentes que

    influenciaram na malha urbana islmica so do perodo romano;

    - o stio da ocupao ter sido eleito pelo primeiro povo que ocupou uma colina defensiva sobrancei-

    ra a um rio ou a uma ribeira, em alguns casos esta escolha foi realizada durante a Idade do Ferro,

    muitos dos castros estavam em situao de encruzilhada e usufruam de terrenos frteis;

    - fazem parte da cidade islmica 3 ncleos distintos: a alcova, a medina e o arrabalde (s vezes

    mais que um);

    - a alcova, de planta poligonal e com duas portas (uma para o interior da medina e outra para o

    exterior), localiza-se no ponto mais elevado do monte, geralmente a Nordeste do centro da cidade

    e no lugar mais perifrico do aglomerado, para que fosse fcil o abandono da cidade em caso de

    invaso;

  • O m o d e l o u r b a n s t i c o d e t r a d i o m u u l m a n a n a s c i d a d e s p o r t u g u e s a s Concluso

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    - no espao da alcova as ruas so recticuladas e relacionam-se com a muralha desta;

    - a muralha da medina est amarrada s paredes da muralha da alcova e abraa um aglomerado

    de casas que se dispem na encosta Sul da colina;

    - a muralha da medina tem normalmente 3 a 4 portas e a sua rea ronda os 7 hectares;

    - os edifcios pblicos ocupam lugares prprios na cidade islmica portuguesa, distinguindo-se a

    mesquita maior, as mesquitas de bairro, o mercado, a casa das fangas, a alcaaria, o edifcio de

    banhos e a albergaria;

    - a mesquita maior (muitas vezes herdeira e antecessora de outros edifcios religiosos) localiza-se no

    centro da urbe assim como o mercado e a casa das fangas; nos diferentes bairros da cidade e con-

    forme as suas dimenses e necessidades edificaram-se pequenas mesquitas; as alcaarias fi-

    cavam junto do rio ou da ribeira; o edifcio de banhos pblicos junto a uma das portas perto do rio;

    e a albergaria no exterior da cidade;

    - o espao do cemitrio era construdo junto s portas da medina, estendendo-se por vezes ao longo

    de uma via que conduzia cidade;

    - a malha urbana no interior da medina era hierarquizada por duas importantes vias que se cru-

    zavam ao centro daquele espao e pelos becos que conduziam habitao privada;

    - as importantes vias distinguiam-se, sobretudo, pelas actividades que l se desenvolviam;

    - a morfologia do terreno onde assentam estas cidades influncia nos seus crescimentos, dando

    origem a subtipos do modelo.

    Depois da Reconquista Crist ficaram muitos rabes nas cidades portuguesas, se bem que em Espa-

    nha permaneceram at mais tarde. muito natural que se continuasse a construir como em perodo

    rabe, excepo de aglomerados reconstrudos ou construdos de novo (vilas novas planeadas e al-

    guns bairros).

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    Por outro lado, em muitas urbes o permetro urbano da cidade rabe no ir sofrer grandes alteraes

    durante a ocupao crist. Ladero Quesada chega a afirmar, em relao a muitas cidades andaluzas,

    que o permetro urbano pouco se modificou at Idade Moderna6.

    Tal como Quesada, um outro historiador espanhol, Basilio Pavn Maldonado, tambm da opinio que

    o cenrio urbano at ao sculo XV aquele que os rabes construram ou em cidades novas ou sobre

    antigas estruturas.

    Que espaos ir a cidade crist ocupar, quando do aumento da populao residente? Vimos, em ou-

    tros perodos da histria, que existiram cidades que se substituram a si mesmas ou que escolheram

    pontos topogrficos dentro de um mesmo territrio. No caso concreto da passagem da cidade roma-

    na/visigtica para a islmica procedeu-se a uma escolha de lugares de mais fcil defesa. No caso

    cristo, e perante uma maior estabilidade, mantiveram-se os stios islmicos, mas houve uma des-

    locao para a falda do monte e, consequentemente, para a plancie mais prxima.

    Como modo de concluso evidenciamos o facto da cidade portuguesa ser uma miscigenao de cul-

    turas e modelos onde os Romanos e os rabes tiveram um papel fundamental a tal ponto que pode-

    ramos afirmar ser a matriz de formao da cidade medieval portuguesa um produto do cruzamento dos

    fundamentos tericos e prticos, destes dois povos, na concepo da urbe.

    6 M. A. Ladero Quesada, Inversiones Urbanas y Mutaciones Sociales en Andalucia. Siglos XIII al XV, IX Settimana di His-toria Economica, Prato, 1977, pp.3-6.