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75 Revista de Filosofia, Curitiba, v. 16 n.18, p. 75-86, jan./jun. 2004. Contribuições do Pragmatismo de Peirce para o avanço do conhecimento CONTRIBUIÇÕES DO PRAGMATISMO DE PEIRCE PARA O AVANÇO DO CONHECIMENTO The Contributions of Pierce’ s pragmatism to knowledge advance Lucia Santaella 1 Resumo Este texto reflete aspectos da contribuição epistemológica do pragma- tismo de Peirce a partir de dois de seus mais conhecidos textos, a saber, A fixação das crenças e Como tornar claras nossas idéias. De- pois de esclarecer o conceito peirceano de pragmatismo, avança-se para a compreensão do que o filósofo denomina “ciências normati- vas”, o que revela a conexão intrínseca que existe entre Lógica, Semi- ótica, Ética e Estética. O ideal dos ideais e pode ser concebido mesmo numa visão evolucionista. Palavras-chave: Peirce, pragmatismo, semiótica, ética, conhecimen- to, crença. Abstract This text reflects the aspects of the epistemological contribution of Pierce ‘s pragmatism from two of his most know texts ,such as ‘’the fixation of beliefs’’and how to make clear our ideas .After clarifying the peircean concept of pragmatism,reaching the understandingabout what the philosopher entitles “ normative sciences ‘’ ,wich reveals the intrinsic connections among Logical,Semiotic,Ethics and Esthetic. The pragmatic aim becomes, thus,the aimof the aims and can be conceived even in an evolutionary vision. Keywords: Peirce, pragmatism, semiotic, ethics, knowledge, belief. 1 Professora Pesquisadora do Programa de Semiótica da PUCSP E-mail: [email protected]

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  • 75Revista de Filosofia, Curitiba, v. 16 n.18, p. 75-86, jan./jun. 2004.

    Contribuies do Pragmatismo de Peirce para o avano do conhecimento

    CONTRIBUIES DO PRAGMATISMODE PEIRCE PARA O AVANO

    DO CONHECIMENTO

    The Contributions of Pierce s pragmatismto knowledge advance

    Lucia Santaella1

    ResumoEste texto reflete aspectos da contribuio epistemolgica do pragma-tismo de Peirce a partir de dois de seus mais conhecidos textos, asaber, A fixao das crenas e Como tornar claras nossas idias. De-pois de esclarecer o conceito peirceano de pragmatismo, avana-separa a compreenso do que o filsofo denomina cincias normati-vas, o que revela a conexo intrnseca que existe entre Lgica, Semi-tica, tica e Esttica. O ideal dos ideais e pode ser concebido mesmonuma viso evolucionista.Palavras-chave: Peirce, pragmatismo, semitica, tica, conhecimen-to, crena.

    AbstractThis text reflects the aspects of the epistemological contribution ofPierce s pragmatism from two of his most know texts ,such as thefixation of beliefsand how to make clear our ideas .After clarifyingthe peircean concept of pragmatism,reaching the understandingaboutwhat the philosopher entitles normative sciences ,wich reveals the intrinsic connections amongLogical,Semiotic,Ethics and Esthetic. The pragmatic aim becomes,thus,the aimof the aims and can be conceived even in an evolutionaryvision.Keywords: Peirce, pragmatism, semiotic, ethics, knowledge, belief.

    1 Professora Pesquisadora do Programa de Semitica da PUCSPE-mail: [email protected]

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    A fixao das crenas e Como tornar claras nossas idias(W3: 242-277) publicados originalmente em 1877 e 1878 respectivamen-te, devem ser os textos mais conhecidos de Peirce. Para alguns, eleschegam a representar o todo de sua filosofia. Como um par, eles apre-sentam a primeira discusso de Peirce sobre uma teoria da investigao.Embora sem que o nome pragmatismo neles tivesse aparecido, eles apre-sentam tambm a primeira verso do seu pragmatismo (Hausman 1993:5, 20).

    Caracterizando-se no contexto de um mtodo para se detectar osignificado dos conceitos intelectuais, em Como tornar claras as nossasidias, a mxima pragmtica assim se expressou: Considere quais efei-tos, que possivelmente podem ter aspectos prticos, imaginamos existirno objeto de nossa concepo. Ento, nossa concepo desses efeitos o conjunto da nossa concepo do objeto (W3 266).

    A ilustrao que Peirce deu para isso estava no conceito dedureza e ele foi to longe na nfase sobre as relaes prticas em quealgo se envolve com outras coisas que chegou a afirmar que um diaman-te seria macio enquanto no fosse arranhado. Nessa poca, de fato, Peir-ce identificava o significado com ao e reao. A primeira correo aque ele submeteu essa concepo veio em 1893 (CP 5.402, n. 2), nomomento em que comeou a perceber a relao da tica com a lgica.Ciente, ento, dos perigos de uma mxima ctica e materialista, Peircepassou a apelar para uma finalidade coletiva governando a realizaodas idias na conscincia e nos trabalhos humanos. Exercendo a auto-crtica, ele veio a considerar sua primeira formulao da mxima comocrua (CP 8.255) e apenas aproximativa (CP 5.16). Devemos estar aten-tos, ele alertava, contra a compreenso da mxima em um sentido muitoindividualista (Potter 1997: 53).

    1. Do primeiro ao segundo pragmatismo

    Sua identificao do significado do conceito com a mera ao ereao se deu em 1878, porque ele no havia ainda percebido que aoe reao devem ser entendidas apenas em termos de propsitos e que opropsito essencialmente pensamento. certo que o pensamento podeenvolver ao, mas ele no pode ser idntico ao, pois isso seriaconfundir terceiridade com secundidade. Ora, esse reconhecimento do

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    papel que os fins e os ideais desempenham sobre a ao s veio a Peircepor meio do insight que lhe foi dado pelas cincias normativas (Potter1997: 5).

    Peirce passou a considerar que o erro de todos os pragmatis-mos, que se diziam inspirados no seu, estava em se fazer da ao afinalidade ltima do pensamento. Ao contrrio disso, no a ao em si,mas o desenvolvimento de uma idia que o propsito do pensamento(CP 8.211-212, Carta a Mario Calderoni, de 1905). A partir de ento, elefoi elaborando sucessivas formulaes mais adequadas e sofisticadas damxima.

    Em uma carta a William James, de 25 de novembro de 1902 (CP8.255), Peirce mostrava que seu pragmatismo dependia de uma compre-enso do seu sistema inteiro, no cabendo em uma apresentao frag-mentria. Sua sugesto estava na fundao do pragmatismo nas catego-rias, na dependncia da lgica na tica e, numa sugesto bem mais ousa-da, na dependncia da tica na esttica. Nessa mesma carta, Peirce aindaexplicou a James como o entendimento correto e sistemtico do pragma-tismo envolvia o sinequismo, isto , a doutrina da lei, da continuidade nopensamento e no cosmos. Entretanto, dizia Peirce,

    no devemos adotar uma viso nominalista de Pensamento, como sefosse algo que o ser humano tivesse dentro de sua conscincia. Aconscincia pode significar qualquer uma das trs categorias. Mas sefor significar Pensamento, ele est muito mais fora de ns, do quedentro. Ns estamos no Pensamento e no ele em ns. Isso conduz,ento, ao sinequismo que a pedra angular do arco (CP 8.256, 257).

    A linha do pensamento peirciano comea aqui a se tornar maisclara. Toda ao pressupe fins e os fins so o modo de ser do pensa-mento porque estes so gerais. O pensamento, entretanto, no est me-ramente na conscincia, mas perpassa tudo, de modo que a conscinciaest no pensamento. Os gerais so, portanto, reais do que decorre que opragmatismo autntico realista. Nas suas Conferncias sobre Pragma-tismo, de 1903, Peirce explicitamente sugeriu que as cincias normativasnos colocam na pista do segredo do pragmatismo (CP 5.129). Conse-qentemente, nos diz Potter (1997: 6), para Peirce, as categorias, as cin-cias normativas, pragmatismo, sinequismo e realismo formam uma nicapea. Embora, de fato, todas essas partes no possam ser separadas, afinalidade deste meu artigo focalizar mais detalhadamente a relao

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    das cincias normativas com o pragmatismo, pois esta relao que temsido menos trabalhada pelos comentadores de Peirce.

    2. As cincias normativas e os ideais

    No por acaso que Peirce deu o ttulo de Pragmatismo: Ascincias normativas, sua primeira conferncia em Harvard. Nela, suainteno era mostrar quo inextricavelmente o pragmatismo est ligado Lgica ou Semitica, tica e Esttica. Como uma doutrina lgica ouum mtodo para determinar o significado dos conceitos intelectuais, opragmatismo aponta diretamente para a importncia da tica.

    Um ano depois de ter postulado que a lgica est alicerada natica, Peirce postulou, em 1902, que a tica est alicerada na esttica eque a esta cabe a descoberta do ideal supremo, o summum bonum davida humana. Contudo, muitas dvidas e incertezas o assaltavam quanto natureza desse ideal que caberia esttica trazer luz. A Esttica e aLgica parecem pertencer a universo diferentes, ele dizia. Foi s recen-temente, Peirce completou, que fui persuadido de que, ao contrrio, aLgica precisa da ajuda da Esttica. Mas o assunto no est muito claropara mim (CP 2.197).

    O desenvolvimento da sua teoria do mtodo indutivo como ummtodo que, se levado suficientemente longe, tende a se autocorrigir,conduziu Peirce ao reconhecimento da importncia que o longo cursodo tempo tem para as nossas consideraes sobre a verdade e os ideais.Acreditando que o fim ideal do pensamento nasceria com a experinciafutura, ele compreendeu que as cincias normativas teriam por tarefaexaminar as leis de conformidade das coisas aos fins, estando a a razopela qual foram chamadas de normativas. Com esse termo, Peirce quisse referir ao estudo daquilo que deve ser, num futuro condicional, o queexclui do seu campo tanto a compulso incontrolada quanto o determi-nismo rgido. Com as cincias normativas ele estava, assim, repensandoos fins, propsitos, valores, metas e ideais que atraem e guiam a condutadeliberada. A tarefa dessas cincias estava em descobrir como pensa-mento, conduta e sentimento podem ser controlados, supondo-se queeles estejam sujeitos, numa certa medida, e apenas em uma certa medi-da, ao autocontrole exercido por meio do autocrtica e da formaopropositada de hbitos, tal como o senso comum nos diz que eles, at

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    certo ponto, so controlveis (MS 655: 24, apud Santaella 1994: 119-120). Ele dizia:

    Se o pragmatismo nos ensina que aquilo que pensamos tem de serinterpretado em termos daquilo que estamos preparados para fazer,ento, certamente a lgica ou doutrina de como devemos pensar,deve ser uma aplicao da doutrina daquilo que deliberadamente es-colhemos fazer. Esta doutrina a tica (CP 5.35).

    A Lgica, ento, um caso especial da ao tica, porque aLgica lida com as inferncias e argumentos que estamos preparadospara aprovar e, tal aprovao, Peirce viria a dizer mais tarde, supe oautocontrole (CP 5.130). A aprovao deliberada de qualquer ato volun-trio uma aprovao moral. A tica, como uma cincia normativa,estuda aqueles fins que estamos deliberadamente preparados para ado-tar. Isto levou Peirce, algumas vezes, a considerar a tica como a cincianormativa por excelncia, porque um fim relevante a um ato volunt-rio de modo fundamental. Entretanto, ele concluiu que a tica precisa daajuda de uma cincia mais bsica cuja tarefa est em discernir o que finalmente admirvel em si mesmo. Essa cincia, ele chamou de Esttica(Harrison 1997: xii), numa acepo muito diferente daquela que consi-dera a esttica como cincia do belo.

    3. O ideal dos ideais

    Segundo Harrison (1997: xiv), a relao ntima entre tica e esttica um dos insights mais valiosos de Peirce. Para ele, no podemos ter ne-nhuma chave para o segredo da tica enquanto no tivermos formulado oque que estamos preparados para admirar (CP 5.36). A tica depende daEsttica, porque esta determina aquilo que constitui a admirabilidade deum ideal (CP 5.36). Esse ideal um alvo absoluto ... aquilo que seriabuscado sob quaisquer circunstncias ... e ... capaz de ser buscado em umcurso indefinidamente prolongado de ao(CP 5.134-135). Parece evidenteque um tal ideal dever ser compreensivo, mas suficientemente vago, umideal que d significado e justifica todos os ideais mais particulares, queexigem descobertas sem fim. Depois de muitos dilemas, Peirce veio se refe-rir a esse ideal como sendo o crescimento da razoabilidade concreta

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    Os frutos que brotam do desejo de um indivduo no devem selimitar aos seus prprios alvos, mas seus esforos devem contribuir paraum resultado coletivo o crescimento da razoabilidade no mundo. Osignificado de um conceito assim julgado em termos da contribuioque as reaes que ele evoca produzem para a realizao da finalidadeltima do pensamento. A mxima pragmtica passa a ser vista como omodo de se reconhecer a realidade dos objetos das idias gerais na suageneralidade. Ora, idias gerais governam a ao; elas so verdadeira-mente leis de crescimento, elas so causas finais reais, elas so efetiva-mente normativas (Potter 1997: 53-56).

    O verdadeiro pragmatismo, portanto, no faz da ao o sum-mum bonum. O crescimento da razoabilidade concreta no mundo dosexistentes seu alvo ltimo. Na medida que a evoluo segue seu curso,a inteligncia humana desempenha um papel cada vez maior no desen-volvimento por meio de seu poder caracterstico de autocrtica e auto-controle.

    Uma vez que a razo a nica qualidade livremente desenvol-vida pela atividade humana do autocontrole, em outras palavras, estan-do na autocrtica a essncia da racionalidade, Peirce identificou o idealesttico, fim ltimo do pragmatismo, com o crescimento da razoabilida-de concreta. No a razoabilidade abstrata, perdida na neblina do ideal,nem a razoabilidade esttica que, como tudo que esttico, termina emopresso, mas a razoabilidade concreta em crescimento, em processo,em devir. A nica coisa que desejvel sem necessidade de qualquerexplicao apresentar idias e coisas razoveis. Isso quer dizer quesomos responsveis pelo alargamento e realizao da razoabilidade con-creta; por meio de nossos atos, feitos e pensamentos encarnados queela vai se concretizando rumo a um final em aberto cujo destino nopodemos saber de antemo.

    Por essa poca, Peirce desenvolveu sua teoria dos interpretan-tes lgicos, em especial os interpretantes sob a forma de hbito e mu-dana de hbito, justamente para apoiar sua verso madura do pragma-tismo, no papel que eles vieram a desempenhar para sua concepopragmtica evolucionista da verdade.

    O interpretante na forma de hbito parte do interpretantelgico, este antecedido pelo interpretante emocional e energtico. Essestrs tipos de interpretantes dizem respeito aos efeitos significados dosigno, isto , quilo que o signo efetivamente produz ao encontrar uma

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    mente interpretadora. O primeiro efeito significado do signo puramen-te emocional, a saber, o sentimento produzido pelo signo. Na maiorparte das vezes, trata-se apenas de um sentimento imperceptvel de re-conhecimento ou familiaridade. Este cede passagem a uma sensao deesforo, o interpretante energtico, que, em geral, tambm to leve aponto de no ser notado, rumo atualizao de um interpretante lgico.Este, por sua vez, uma regra interpretativa que, na maior parte dasvezes, j est to automatizada que toda a operao interpretativa se dsem que tenhamos qualquer especial notcia dela.

    Por vezes, no entanto, na audio de uma pea musical, porexemplo, se estivermos suficientemente desarmados, disponveis, poro-sos, o efeito proeminente ser o do sentimento, pura impresso qualita-tiva positiva e inconseqente. Assim tambm, diante de algo que nosassusta ou desafia, o interpretante energtico ser dominante, exigindoresposta ativa e direta. O caso do interpretante lgico, contudo, mereceum pouco mais de ateno.

    4. O interpretante lgico como hbito

    Peirce identificou o interpretante lgico ou fato mental com osignificado ou efeito significativo prprio de um conceito intelectual. Em1868, ele havia dito que o interpretante de um pensamento um outropensamento e que esse processo teoricamente infinito. Mas em 1907, luz do seu segundo pragmatismo, Peirce estava buscando um interpre-tante lgico que no tivesse a natureza de um conceito. Se o interpretan-te lgico definido apenas como a apreenso intelectual do significadodo signo, esse interpretante lgico resultante exigir um interpretantelgico ulterior, e assim ad infinitum. Sem descartar a existncia dessesinterpretantes lgicos que tm a natureza de signos, Peirce buscava in-terpretantes lgicos que conduzissem o pensamento para a porta desada da ao deliberada. De que se tratava de algum tipo de fato mental,Peirce no tinha dvida. Entretanto, que tipo de fato mental poderia ser?

    As concepes, como j vimos, foram descartadas tambm por-que, embora elas sejam, de fato, interpretantes lgicos, no podem fun-cionar como uma explicao da natureza deles, pois que eles so con-ceitos ns j sabemos. Em continuidade, para desempenhar o papel dointerpretante lgico foram tambm analisados os desejos e as expectati-

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    vas, mas estes foram descartados porque no tm uma aplicabilidade ge-ral, exceto na medida em que esto atados a um conceito. Os desejostambm foram rejeitados porque so efeitos do interpretante energtico.Por excluso, Peirce chegou, ento, ao hbito como interpretante lgico.De fato, no h nada que possa melhor preencher a definio de interpre-tante lgico do que o hbito. A regra ou hbito, nos diz Savan (1976: 43-4),

    um padro de aes que, sob certas condies apropriadas, serrepetido indefinidamente no futuro [...]. As ocorrncias da regra ouhbito se do em um conjunto particular de aes dentro de um per-odo de tempo limitado. Estes conjuntos de aes particulares so in-terpretantes energticos; mas, uma vez que eles exemplificam um hbitoindefinidamente repetvel, eles tambm so rplicas de interpretanteslgicos. Note-se que, enquanto os interpretantes emocional e energ-tico tm uma terminao finita, o interpretante lgico sempre poten-cialmente repetvel sem terminao.

    Assim sendo, faz parte do interpretante lgico, concebido comohbito, regular e governar ocorrncias particulares, pois ele carrega algu-ma implicao concernente ao comportamento geral de algum ser cons-ciente, transmitindo mais do que um sentimento e mais do que um fatoexistencial, quer dizer, transmitindo o seria e o faria do comporta-mento habitual. Ora, s o hbito capaz dessa real continuidade noapenas porque ele pode ser exercido em vrias ocasies, mas porque eleregula os eventos que ocorrem sob seu governo. Enquanto os eventosexistentes so descontnuos, transitrios, o hbito continuidade, garan-tia de que os particulares iro se repetir de acordo com uma certa regu-laridade. por isso que os hbitos precedem a ao e no vice-versa.

    Note-se, contudo, que, longe de funcionar como uma fora in-flexvel qual as aes devem se conformar, o hbito um princpioguia, uma fora viva, uma orientao geral que conduz nossas aes,sem aprision-las em uma moldura fixa. por isso que h sempre umacerta margem de flexibilidade na maneira como as aes so reguladaspelos hbitos. por isso tambm que os hbitos podem ser rompidos,com muito mais freqncia e intensidade no universo humano. Isso ocorreporque, em todo o universo, no h nada mais plstico do que a mentehumana, hbil para abandonar e adquirir novos hbitos.

    Para dar conta da plasticidade da mente humana para adquirirnovos hbitos da qual resulta a natureza evolutiva da mente que Peirce

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    se voltou para a tentativa de caracterizao de um interpretante lgicoltimo. Este tem tambm o carter de um hbito, mas de um tipo muitoespecial: Pode ser provado que o nico efeito mental que pode serproduzido e que no um signo, mas de uma aplicao geral, amudana de hbito, entendendo por mudana de hbito a modificaodas tendncias de uma pessoa em relao ao (CP 5.476). Foi justa-mente esse interpretante lgico ltimo, concebido como mudana dehbito, que possibilitou integrar a teoria dos signos com a natureza evo-lutiva do pragmatismo. Seno vejamos.

    5. Mudana de hbito e o pragmatismo evolucionista

    Como j foi mencionado acima, o pragmatismo havia descober-to que, no processo de evoluo, aquilo que existe vai, mais e mais,dando corpo a certas classes de ideais que, no curso do desenvolvimen-to, se mostram razoveis. Esse ideal foi caracterizado como o cresci-mento contnuo da corporificao da potencialidade da idia (MS 283apud Kent 1987: 158).

    Ora, as idias so transmitidas na mente, de um ponto a outrono tempo, por meio do pensamento, quer dizer, por meio de signosimateriais ou imaginrios, conforme Beverly Kent (ibid.) prefere cha-m-los. Mas as idias no so pensamentos materializados; elas souma certa potencialidade, uma certa forma que pode ou no ser en-carnada num signo externo ou interno. Pois bem, continuou Peirce(MS 283: 4), para que a funo do signo seja preenchida e para haver ocrescimento da potencialidade da idia, sua corporificao deve se darno apenas pelos smbolos, mas tambm pelas aes, hbitos e mu-danas de hbitos. Pois bem, na potencialidade, h primeiridade, nacorporificao, h secundidade, e na idia, h terceiridade. Os trsjuntos compem aquilo que Peirce passou a considerar como o sum-mum bonum esttico, coincidente com o ideal pragmatista ltimo, asaber, o crescimento da razoabilidade concreta, o crescimento da razocriativa no mundo (ver Santaella 2000c: 136-40). O mais alto grau deliberdade do humano encontra-se, portanto, na adoo deliberada des-se ideal e no nosso empenho tico tambm deliberado, na colaboraoque podemos prestar, cada um de ns, para a corporificao crescenteda razo criativa no mundo.

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    Ao mesmo tempo em que engloba as trs categorias, o idealpragmtico, que tambm o admirvel esttico, tem de levar em conta oautocontrole na aquisio de novos hbitos como mtodo pelo qual oideal pragmtico pode ser atingido. Portanto, para colaborarmos no cres-cimento da razoabilidade, no bastam sentimentos romnticos, nem bas-tam voluntarismos apaixonados. Estes de nada valem, sem a necessriamudana de hbitos. E esta, por sua vez, no se opera sem a autocrticae o autocontrole. Localizando-se a essncia da racionalidade na autocr-tica, uma autocrtica, de resto, que s pode nascer da heterocrtica, narazo que se encontra a nica qualidade livremente desenvolvida pelaatividade humana do autocontrole.

    Na medida em que a evoluo segue o seu curso, a intelignciahumana desempenha um papel cada vez maior no desenvolvimento doideal pragmtico, por meio de seu poder caracterstico de autocrtica eautocontrole. esse poder que est na base do interpretante ltimocomo mudana de hbito, pois esta depende de autocontrole, o controleque exercido por meio da avaliao das conseqncias referentes aoshbitos de ao. Essa avaliao, por sua vez, dependente da tica namedida em que esta aponta para o ideal que estamos deliberadamentepreparados para adotar. Esse ideal, que a esttica tem por funo ilumi-nar, o ideal pragmtico ltimo. De um lado, portanto, somos irresisti-velmente atrados pelo admirvel, pelo crescimento da razo criativa nomundo, de outro lado, o poder de autocrtica e o autocontrole da razoconduz nossas mudanas de hbito de modo a permitir que a ao ticase exera rumo a esse ideal.

    Fica a explicitada, como se pode ver, a ligao indissolvel dopragmatismo evolucionista com as cincias normativas, no cerne dasquais localiza-se a mudana de hbito, pois, sem mudana de hbito,no poderia haver evoluo. Caracterizando-se a mudana de hbitocomo o interpretante lgico ltimo, fica a tambm explicitada a relaodo pragmatismo evolucionista com a teoria dos signos.

    Para terminar, resta apontar explicitamente para aquilo que im-plicitamente j ficou delineado, a saber, a relao do ideal pragmatistaevolucionrio com o interpretante final e o papel desempenhado pelamudana de hbito, como interpretante dinmico lgico ltimo, rumo aointerpretante final sempre adiado. Estando o ideal pragmatista em per-manente devir, a mudana de hbito aquilo que produz o deslocamen-to constante dos interpretantes dinmicos na direo do interpretante

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    final, uma meta que, como j vimos, idealmente pensvel, mas concre-tamente inatingvel, visto que a razo criativa algo em permanentemetabolismo e crescimento. Um crescimento com o qual colaboramosna medida em que nossa sensibilidade atrada por esse ideal, nossoshbitos se regeneram graas autocrtica e ao autocontrole, acionandonosso empenho tico para fazer de ns participantes, mesmo que humil-des, de um processo evolutivo que visa dar corpo, sempre mais e mais,aos ideais que se mostram razoveis.

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    volume e do pargrafo respectivamente. MS refere-se aos Manuscritosinditos de Peirce, tal como foram paginados pelo Institute of Pragmati-cism, Lubbock, Texas.

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    Recebido em/ Receieved in: 04/06/2004Aprovado em/Approved in : 27/08/ 2004

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