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INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO: teoria & prática 35 Informática na Educação: teoria & prática, Porto Alegre, v.8, n.2, jul./dez. 2005. ISSN 1516-084X Lucia Santaella Uma Cartografia para a Inter e Transdisciplinaridade A Cartography for Inter - and Transdisciplinarity

SANTAELLA, Lúcia. Uma Cartografia Para a Inter e Transdiciplinaridade

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    35Informtica na Educao: teoria & prtica, Porto Alegre, v.8, n.2, jul./dez. 2005. ISSN 1516-084X

    Lucia Santaella

    Uma Cartografia paraa Inter e

    Transdisciplinaridade

    A Cartography forInter - and

    Transdisciplinarity

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    Resumo: O artigo parte da idia da importncia da intere transdisciplinaridade para a no-estagnao dacincia, aponta para a falta de alguma espcie de guiapara sua realizao e prope a classificao dasdisciplinas filosficas de C. S. Peirce como base parauma cartografia que vai se modificando conforme vocrescendo as diversas cincias. Afirma que omapeamento hierrquico das cincias alm de serrevelador das distintas formas de ajuda entre elas,informa ao pesquisador atento, quais as cincias quepodem lhe fornecer princpios ou dados queaumentariam a eficcia e apressariam os resultadosde sua pesquisa.

    Palavras-chave: Filosofia. Cincias.Transdisciplinaridade. Peirce. Cartografia.

    Abstract: The article starts from the idea of theimportance of inter- and transdisciplinarity for the non-stagnation of science, points out to the lack of somesort of guide to its execution and propose aclassification of C. S. Peirces philosophicaldisciplines as a basis for a cartography that is beingmodified as the several sciences are growing. It claimsthat the hierarchical mapping of sciences not onlyreveals the different forms of help between each other,but it also informs the careful researcher as to whichsciences can offer him/her principles or data that couldimprove effectiveness and speed up his/herresearchs results.

    Keywords: Philosophy. Sciences. Transdisciplinarity.Peirce. Cartography.

    SANTAELLA, Lcia. Uma cartografia para a inter etransdiciplinaridade. Informtica na Educao: teoria & prtica,Porto Alegre, v.8, n. 2, p.35-44 , jul./dez. 2005.

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    A cincia ocidental nasceu marcada pelaconcepo cartesiana do mundo exterior comomatria extensa e radicalmente distinta damente. De um lado, est a interioridade dosujeito, senhor do pensamento e doconhecimento, do outro lado, est o mundoexterior slido e extenso. Essa dissociaoentre interior e exterior deu suporte filosofiadurante sculos e conseqentemente tambmconduziu o modo como a cincia passou aconceber sua tarefa: esquadrinhar a natureza,seccion-la em partes, dividir seus objetos entredistintos saberes para melhor dom-los pormeio do conhecimento. Esse estado de coisas,que atravessou sculos, entrou em crise a partirde meados do sculo XX. O prprio avano datecnocincia, na medida mesma em que foisendo capaz de ir penetrando no mago do realacabou por revel-lo na sua intrincadacomplexidade, revelando ao mesmo tempo osimplismo e inoperncia das antigascategorias segregacionistas de pensamento.Ao mesmo tempo, a ameaa, antes impensvel,da destruio do planeta, pela via das armasnucleares ou do desequilbrio ecolgico, foiacordando os cientistas de seu sonhotriunfalista, chamando-os a assumir aresponsabilidade por um mundo que haviamcontribudo to decididamente para moldar.Nesse contexto, a partir dos anos de 1970,tomou corpo uma intensa busca de novosparadigmas para a cincia (gora, 1991). Juntocom a busca dos novos paradigmas, vem sendoconclamada com muita nfase a urgncia dainter, multi e transdisciplinaridade. No sopoucos os cientistas que tm atualmentechamado a ateno para a necessidade da intere transdisciplinaridade, pois, sem elas, a cinciaest destinada a estagnar. Entretanto, comorealizar a inter e transdisciplinaridade na faltade alguma espcie de guia e sinalizao depercurso? Como transpor as fronteiras

    impostas pela extrema especializao dasdiferentes reas do conhecimento? Comoenfrentar a impossibilidade do dilogo entre asdisciplinas cientficas provocado pela Babel dafragmentao do saber?

    1 A classificao peirceana dascincias

    Alguns anos atrs, quando recebeu oprmio concedido pelo National Endowment forthe Humanities, o escritor Walker Percy propsenfaticamente que a monumental obra cientficae filosfica de C. S. Peirce pode funcionar comoantdoto contra as separaes entre as cincias,pois nessa obra so encontradas as vias maissofisticadas e complexas para se pensar erealizar uma inter-multi-transdisciplinaridadeque vai muito alm das meras cartas deintenes a que essa questo costuma ficarrestrita. Na mesma linha da proposta de Percy,acrescento que a cartografia transdisciplinar dePeirce est suportada por uma filosofia dacincia, esta sintonizada com uma filosofia danatureza capazes ambas de dar conta dosdesafios apresentados pelo avanotecnocientfico contemporneo. Semresvalarmos pelos caminhos mais fceis ecomuns dos variados misticismos pseudo-cientficos, sem termos de abandonar asconquistas modernas da especializao, aarquitetura das cincias de Peirce nos forneceformas holrquicas de compreenso dassutilssimas grades de interrelaes entre asdiferentes cincias. Newton da Costa (1997, p.31) afirmou recentemente que uma das coisasa se fazer para entendermos bem o esprito quenorteia a cincia procurar uma classificaorazovel das numerosas disciplinas cientficas.Embora essa tarefa parea hoje irrealizveldada a intrincada malha das cincias e de suassubdivises internas, a classificaoestabelecida por Peirce funciona como uma

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    cartografia valiosa para a realizao de tal tarefa.Para ele, o conhecimento abraasubstancialmente tudo o que pensamos oudizemos, por isso os arranjos das cincias somuitos. Entre eles, os que lhe pareciam maisteis so aqueles que buscam arranj-las naordem de dependncia lgica de umas sobreas outras e no seu grau de especializao (MS1335, p. 2-3). A partir disso, Peirce desenvolveuuma gigantesca e instigante classificao dascincias que nos permite visualizar os grandestroncos das cincias, seus diferentes ramos,as inter-relaes e distintas formas de ajudaentre elas, assim como as tarefas quepotencialmente a cada uma cabe realizar (verKent, 1987).

    O mais relevante dessa classificaoest no fato dela estar suportada por umafilosofia cientfica capaz de fornecer para ascincias os princpios ontolgicos eepistemolgicos fundados em uma lgicaconcebida como semitica, esta, por sua vez,alicerada na fenomenologia. Segundo Peirce,as cincias se dividem em cincias dadescoberta, cincias da reviso e cinciasaplicadas. Na sua classificao, ele estavainteressado nas cincias da descoberta que soaquelas responsveis pelo avano doconhecimento. As cincias da descoberta so:

    Matemtica Filosofia Cincias especiais

    A matemtica a mais abstrata e a nicacincia que no depende de nenhuma outra,enquanto todas as outras dependem delaexplcita ou implicitamente. Essa postulaopeirceana da supremacia fundacional damatemtica, que, at algum tempo atrs,poderia estar sujeita a controvrsias, com ahegemonia dos algoritmos computacionais nomundo atual, est se tornando cada vez mais

    indiscutvel.

    Enquanto a matemtica estuda o que logicamente possvel sem se fazer responsvelpela existncia atual desse possvel, a filosofiatem por funo descobrir o que realmenteverdadeiro, limitando-se, porm, verdade quepode ser inferida da experincia comum queest aberta a todo ser humano a qualquerinstante. A filosofia tambm uma cincia eassim deve ser tratada. Contudo, ela no cientfica porque empresta seu modelo decientificidade de alguma outra cincia, mas nosentido de buscar, dentro dela mesma, amaneira que lhe prpria de ser cincia,empregando mtodos de observao, hiptesee experimento tanto quanto qualquer outracincia, mas modificando-os e adaptando-os sua especificidade.

    2 A arquitetura filosfica de Peirce

    Peirce acreditava na eficcia dasubdiviso das disciplinas filosficas. Por issoconstruiu, dentro da filosofia, um edifcio de inter-relaes hierrquicas que, exibindo osprincpios da interdependncia, apontam ocaminho para os efeitos concebveis de cadacincia filosfica e explicitam o auxlio que umapode prestar a outra, como se pode visualizarno diagrama a seguir:

    Filosofia1. Fenomenologia2. Cincias normativas 2.1. Esttica 2.2. tica 2.3. Lgica ou semitica

    2.3.1. Teoria dos signos2.3.2. Lgica crtica 2.3.2.1. Abduo 2.3.2.2. Induo 2.3.2.3. Deduo

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    2.3.3. Metodutica3. Metafsica

    3 As disciplinas filosficas

    A fenomenologia uma quase-cinciaresponsvel pela observao dos fenmenosencontrados na experincia comum, para extrairdeles as mais simples generalizaes, ou seja,os elementos universais indecomponveis detudo aquilo que aparece mente e que Peircechamou de categorias. Nas categoriasdescobertas pela fenomenologia encontram-seos alicerces de todo o edifcio da filosofiacientfica, pois elas se constituem noselementos a partir dos quais os conceitos soconstrudos.

    As cincias normativas, esttica, tica elgica, estudam os fenmenos na medida emque podemos agir sobre eles e eles sobre ns.Elas so definidas em termos de suas metas etm por tarefa descobrir como sentimento,conduta e pensamento devem ser controlados,supondo-se que eles estejam sujeitos, numacerta medida, ao autocontrole exercido por meioda autocrtica e da formao de hbitos. Ascincias normativas estudam, portanto, o modogeral pelo qual a mente, se for agirdeliberadamente e sob autocontrole, deveresponder aos desafios da experincia.

    A lgica ocupa-se do raciocnio comoatividade deliberada ou conduta, tendo porobjetivo discriminar formas boas ou ms deraciocnio. Ela estabelece criticamente as regrasque devem ser seguidas ao raciocinar, masprecisa recorrer ao propsito ou meta quejustifique essas regras. A lgica o estudo dosmeios para atingir a meta do pensamento, mas a tica que define essa meta (CP 2.198). Aoperao de autocontrole lgico toma o mesmocurso complexo que todos devem reconhecer

    que o do autocontrole tico efetivo (CP 5.53).

    Tendo estabelecido a relao ntimaentre a lgica e a tica, Peirce avanou naespeculao de que a tica, por sua vez, temseu fim ltimo na esttica. Ele passou a ver,cada vez mais claramente, que no podemosevitar perguntas sobre o que deve ser aaplicao ltima, na verdade a meta suprema,o ideal supremo que nos seduz e no qualdevemos nos empenhar. Peirce acreditava que possvel no s responder essa questo, mastambm respond-la cientificamente. Para isso,ele desenvolveu uma teoria estticaradicalmente original. Por esttica, no se deveentender meramente uma cincia do belorelacionada com objetos artsticos, mas umacincia que tem por tarefa indagar sobreestados de coisas que so admirveis por si,sem qualquer razo ulterior. Estados de coisasque, mais cedo ou mais tarde, todos tendero aconcordar que so dignos de admirao. O que admirvel no pode ser determinado deantemo. So metas ou ideais quedescobrimos porque nos sentimos atrados poreles, empenhando-nos na sua realizaoconcreta.

    Tambm para a tica Peirce deu umainterpretao to original quanto deu para aesttica. Costuma-se definir a tica como adoutrina do bem e do mal. Peirce discordoudisso. O que constitui a tarefa da tica justamente justificar as razes pelas quais certoe errado so concepes ticas. Para ele, oproblema fundamental da tica est voltadopara aquilo que estamos deliberadamentepreparados para aceitar como afirmao do quequeremos fazer, do que temos em mira, do quebuscamos. Para onde a fora da nossa vontadedeve ser dirigida? Como e onde encontrarresposta para essa pergunta?

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    4 A atrao pelo admirvel

    Segundo Peirce, a resposta no pode virda prpria tica, pois esta no auto-suficiente. da esttica, na sua determinao daquilo que admirvel, que vem a indicao da direopara onde o empenho tico deve se dirigir, aindicao daquilo que deve ser buscado comoideal. O fim ltimo da tica reside, portanto, naesttica. O ideal esttico, a adoo deliberadado ideal e o empenho para atingi-lo so ticos.A adoo do ideal e o empenho para realiz-losendo deliberados, do expresso nossaliberdade no seu mais alto grau.

    Depois de enfrentar muitos dilemas,Peirce concluiu que o ideal do admirvel, daquiloque todo ser humano, em qualquer tempo oulugar, deve lutar eticamente para alcanar estno crescimento da razo criativa. O mais altograu de liberdade do humano est, assim, noempenho tico para a corporificao crescenteda razo criativa no mundo. Peirce nunca recuouem sua slida crena de que h uma verdade aser conhecida e que ns, seres humanos,somos participantes nos destinos da razo queest sempre em estado de incipincia ecrescimento. Somos participantes da criaodo universo (BERNSTEIN,1990, p. 200), isto ,somos responsveis pela realizao ealargamento da razoabilidade concreta: a nicacoisa que realmente e inquestionavelmentedesejvel, sem que sejam necessriasexplicaes e justificativas para o ser, apresentar idias e solues razoveis (ibid, p.203).

    Como se pode ver, razoabilidade noapresenta nenhuma analogia comracionalidade instrumental. luz darazoabilidade, a razo no se reduz a umasimples conformidade a algumas frmulas pr-determinadas, mas um know how

    compreensivo da vida que inclui elementoscriativos, intuitivos, ticos, valorativos, os quaisso capazes de grande variedade eaperfeioamento. Por isso, razo no se limita moldura estreita do racionalismo. Ela umaparte da natureza humana que, em si mesma,no esttica, mas dinmica, alm de queincorpora o domnio afetivo e o domnio da aonas suas respostas em relao ao mundo. Aessncia da razo tal que seu ser nunca podeestar completamente realizado. A razo vive emestado de incipincia e crescimento porque aprpria realidade est em processo evolutivocontnuo. Razoabilidade , portanto, o nomeescolhido para dar conta da razo criativa, razoem processo de crescimento para tornar ohumano cada vez mais humano. O adjetivoconcreto aposto razoabilidade, indica que estas pode ir se concretizando por meio de nossoempenho tico resoluto para favorecer seucrescimento. Esse empenho tico, meioatravs do qual a meta do ideal esttico,admirvel, materializa-se, do mesmo modo quea lgica ou semitica o meio atravs do qual ameta tica se corporifica. Ora, em todos ostempos, a arte sempre foi o modo mais efetivode produzir crescimento da razoabilidadeconcreta. Sua atrao irresistvel pelo admirvelfaz dela o carro-chefe do empenho humano nacriao do universo. Outro modo efetivo deproduzir crescimento da razoabilidade concretaencontra-se na cincia, quando esta no sedeixa devorar pelos imperativos da razoinstrumental, nem se deixa colocar a servio doEvangelho da Ganncia, servindo apenascomo meio para maximizar a ganncia. Vem daa importncia crucial do papel que a arte etambm a cincia, quando no cooptada cominteresses egostas, desempenham nometabolismo e crescimento da razo criativa nomundo. O modo pelo qual esse desempenhose d em cada uma delas e nas junes entre

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    ambas distinto. Para melhor compreenderessa distino, necessrio percorrer ostpicos restantes no s da arquitetura filosfica,mas tambm da insero dessa arquitetura naclassificao das cincias de Peirce.

    5 Os trs ramos da semitica

    A lgica, a terceira das cinciasnormativas, foi concebida em um sentido muitoamplo como semitica ou cincia formal dasleis necessrias do pensamento, esteocorrendo sempre por meio de signos.Portanto, a semitica trata no apenas dascondies necessrias para se atingir averdade pragmtica, mas tambm dascondies gerais dos signos sendo signos.Trata conseqentemente das leis de evoluodo pensamento, que coincide com o estudo dascondies necessrias para a transmisso designificado de uma mente a outra, e de umestado mental ao outro (CP 1.444). As cinciasnormativas lidam com os fins ltimos dosentimento, conduta e pensamento. Sendo aterceira dentre elas, a finalidade especfica dalgica ou semitica est no pensamento. Porisso mesmo, ela tem por objeto de estudo aformao de hbitos e pensamentos que sejamconsistentes com o ideal lgico que definidopela tica a qual, por sua vez, serve ao idealesttico, ou seja, o crescimento darazoabilidade concreta que a contnua e infinda,corporificao da potencialidade dopensamento (KENT,1987, p. 174). Isso sugereque o fim especfico de uma cincia dopensamento est na corporificao do saberpotencial, daquilo em que o saber pode e deveser convertido como corpo material que atua nomundo e por ele agido. A tarefa da semiticaest, portanto, no cultivo da razo, levando-a omais prximo possvel da razo criativa,summum bonum da esttica a ser atingido peloempenho tico. A semitica subdivide-se em

    trs ramos: o primeiro ramo, o da semiose, isto, da ao dos signos, tem por funo estudara fisiologia dos signos de todos os tipos (CP2.83) signos fsicos, biolgicos, ecolgicos,tecnolgicos, psquicos, culturais, sociais,cosmolgicos etc. Esse primeiro ramo dasemitica investiga, portanto, a natureza e ossignificados dos signos, determinando ascondies a que devem se conformar paraserem signos. Trata-se da teoria geral danatureza da representao e dos vrios tiposde signos que so responsveis peloandamento dos processos de semiose, ouseja, dos processos de significao einterpretao.

    O segundo ramo, chamado de lgicacrtica, uma teoria unificada dos tipos deraciocnio ou argumentos que so utilizados poruma inteligncia cientfica: a abduo, induoe deduo. Essa teoria lana luz sobre anatureza da confiana que deve ser conferidaaos vrios tipos de raciocnio, pois asconcluses que podem ser extradas de cadaum dos vrios tipos de raciocnio oferecemdiferentes medidas de risco e de segurana quese pode esperar de uma pesquisa. Como todopensamento e todo raciocnio se do em signos,a lgica crtica est alicerada no primeiro ramoda semitica, que estuda a semiose. Do mesmomodo, a lgica crtica d sustentao ao terceiroramo, a metodutica, que tem por tarefaestabelecer os procedimentos apropriados aqualquer investigao. Alm de dar suporte aosmtodos especficos empregados pelascincias normais, o mais fundamental dametodutica est na sua capacidade deacompanhar pesquisas de risco, isto , aquelaspesquisas que ousam na abertura de novasrotas para o pensamento e a investigao. Trata-se, portanto, de uma teoria do mtodo cientficoequipada para dar conta das pesquisassubvertoras das normas convencionais e que

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    podem, por isso mesmo, chegar a descobertas(SANTAELLA, 2004). Fundamentada nascincias normativas que, por sua vez, estofundamentadas na fenomenologia, o terceirogrande pilar do edifcio filosfico de Peirceencontra-se na metafsica. Ela une os estudosda fenomenologia e das cincias normativaspara desenvolver uma teoria da realidade. Estateoria pressupe a lgica dos signos porque,para Peirce, o universo est permeado designos, se que no seja composto s designos.

    6 A filosofia como alicerce dascincias especiais

    Todo esse edifcio composto pordisciplinas filosficas interrelacionadas forneceos princpios para as cincias especiais. Estasso todas as cincias empricas que vm sedesenvolvendo h alguns sculos, tais comofsica, qumica, biologia, geologia, etc. e todo ointrincado espectro de suas subdivises einterfaces como bioqumica, biofsica, etc.Englobam tambm as cincias sociais e ashumanidades, tais como psicologia,antropologia, economia, sociologia, direito,lingstica, as semiticas especiais, isto ,aquelas que delimitam um determinado campoda linguagem como objeto de investigao,como a cultura, o discurso, etc.

    A concepo peirciana de cincia eramuito aberta e generosa, bem distante daconcepo novecentista de cincia comoconhecimento sistematizado. Sem deixar devalorizar o papel que o mtodo desempenhanas cincias, para Peirce, o mtodo no podesombrear a idia central da cincia como algovivo. Nessa medida, diferentemente de umaconcepo abstrata ou de uma definio emtermos de objeto de investigao, a cincia definida pelo modo como ela vivida nas

    investigaes concretas de um grupo real depessoas vivas. Por isso mesmo, a cincia secaracteriza por um crescimento persistente.Disso decorre que os limites de uma cinciaparticular sempre tendero a avanar sobre oslimites das outras cincias, o que no significaque as distines entre elas no possam serestabelecidas. dessas distines queresultaram as classes naturais em que aclassificao peirceana das cincias sebaseou. Classes naturais quer dizer classesreconhecidas pela comunidade de cientistasvivos que nelas operam e as fazem crescer.Seguindo o que era reconhecido comodisciplinas cientficas no seu tempo, Peircesubdividiu as cincias especiais em doisgrandes troncos: de um lado, a fisiognose queengloba as chamadas cincias da natureza, deoutro lado, a psicognose que engloba ascincias do homem, as humanidades. Tanto deum lado, quanto do outro, as cincias estoestratificadas de acordo com trs nveis deabstrao: as cincias nomolgicas, isto ,teorticas, as classificatrias e as explanatriasou descritivas. Esses nveis se relacionam deacordo com a interdependncia: as maisabstratas fornecem princpios para as maisconcretas enquanto estas so provedoras dedados para as mais abstratas. As cinciasnomolgicas estabelecem as leis dosfenmenos estudados. No grande tronco dascincias psquicas, por exemplo, poca dePeirce, no nvel das cincias nomolgicasapareciam a Psicologia Geral, a SociologiaGeral e a Economia Geral. As classificatriasso cincias das espcies que buscamordenar os fenmenos. Neste nvel, apareciama Psicologia Especial, a Lingstica, a Etnologiaetc. As explanatrias investigam eventosindividuais e objetos singulares. Elas osdescrevem em detalhes e explicam suaspeculiaridades a partir dos princpios fornecidos

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    pelas cincias nomolgicas e classificatrias,ao mesmo tempo que abastecem estas ltimascom dados, casos e problemas. Soexplanatrias, por exemplo, a Histria, a Crticadas Artes, a Literatura, etc. Um sculotranscorreu desde que Peirce chegou suaclassificao. Se seguirmos o desenvolvimentohistrico das cincias neste ltimo sculo, saltaaos olhos o crescimento impressionante dascincias, dos seus ramos e sub-ramos. Sobesse aspecto, pode ser constatado o valor deuma classificao natural, pois, de acordo comesse princpio, a classificao pode ir sendoatualizada pari passu ao crescimento dascincias. Por ser natural, a classificaofunciona como uma cartografia que vai semodificando conforme o territrio mapeado vaicrescendo. O problema implicado nessecrescimento, entretanto, que a classificaoatinge nveis cada vez mais intrincados egigantescos. Hoje, por exemplo, seriaimpossvel a uma s pessoa seguir osinumerveis desdobramentos de todos oscampos da cincia. O mximo que se podealcanar o exame de um campo com o qual opesquisador est familiarizado por formao.Foi isso que busquei desenvolver no livro Aassinatura das coisas, tomando por base ocampo da Literatura (SANTAELLA, 1992, p. 159-184). Algo similar poderia ser realizado emqualquer rea das cincias, como a biologia, ageologia, a antropologia, etc.

    7 As inter-relaes entre ascincias

    Deixando a observao acima comosugesto, importante a se considerar no quediz respeito ao tema da inter etransdisciplinaridade a existncia de umarelao hierrquica entre as cincias. As maisabstratas fornecem fundamentos e princpiospara as menos abstratas. portanto da

    matemtica que a filosofia recebe seusprincpios, assim como dos princpios dafilosofia que as cincias especiais sealimentam. Com a nica exceo damatemtica, toda cincia emprega princpiosdescobertos em uma cincia mais abstrata.Mas, ao mesmo tempo, as mais abstratasrecebem dados, problemas, sugestes ecampos de aplicao das cincias menosabstratas. Os novos fatos introduzidos pelascincias menos abstratas so tratados pelacincia receptora como observaes diretas eso mesclados a um conjunto de outros fatos,o que fornece a base para generalizaes.Peirce acreditava que um mapeamentohierrquico das cincias deveria ser reveladordas distintas formas de ajuda entre elas. Osefeitos concebveis de cada cincia articulam-se numa rede de interdeterminao com asdemais. Distinguir uma cincia da outra fundamental para qualquer avano. Padres decerteza so diferentes em cincias diferentes.Os princpios a que uma cincia apela diferemde uma cincia para a outra.

    Alm disso, as distines soimportantes porque um dos efeitos que elasproduzem est na prpria conduta dopesquisador, cujos passos so orientados pelomapeamento dos caminhos que os pontos deinterseco entre as cincias apresentam. Aateno do pesquisador para as cincias quepodem lhe fornecer princpios ou dadosaumenta a eficcia e apressa os resultados dapesquisa. Tendo a complexidade desse quadrocomo referncia, importante enfatizar que osprincpios fornecidos pelas disciplinasfilosficas, especialmente pela metodutica,devem servir para iluminar os caminhos dapesquisa em qualquer cincia especial ou reade saber, especialmente aquelas reas quelidam com a vida. Onde h vida, h ao movida

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    Recebido em novembro de 2005Aceito para publicao em dezembro de 2005

    RefernciasBERNSTEIN, Richard. A seduo do ideal. Revista Face 3, n. 2, 1990, p. 195-206.COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento cientfico. So Paulo: Fapesp/Discurso Editorial, 1997.KENT, Beverly. Charles S. Peirce Logic and the classification of the sciences. Kingston andMontreal: McGill-Queens University Press, 1987.PEIRCE, C. S. (1931-58). Collected Papers. vols. 1-6, Hartshorne e Weiss (eds.). vols. 7-8, ArthurBurks(ed.) Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 1958; As referncias no texto foram feitassob CP seguido de nmero do volume e nmero de pargrafo. MS (manuscrito) refere-se aosmanuscritos no publicados, catalogados segundo paginao do Institute for Studies inPragmaticism. Lubbock: Texas. NEM refere-se a New Elements of Mathematics, Carolyn Eisele (ed.),4 vls., 1976. The Hague: Mouton. SW refere-se aos Selected Writings of C. S. Peirce, P.P. Weiss(ed.). New York: Dover Publications, 1966.PERCY, Walker. Discurso pronunciado como homenageado do ano, National Endowment for theHumanities. Cpia xerogrfica, 1989.REVISTA GORA, CINCIA E CULTURA. Editorial. So Paulo: Unesp, n. 5, ano II, abril e maio de1991.

    SANTAELLA, Lucia. A assinatura das coisas. Rio de Janeiro: Imago, 1992.______. O mtodo anticartesiano de C. S. Peirce. So Paulo: Unesp/Fapesp, 2004.

    Lcia SantaellaDoutora em Teoria Literria pela PUC-SP eLivre-docente em Cincias da Comunicao pela USP.Professora Titular no Programa de Ps-graduaoem Comunicao e Semitica da PUC-SP. PresidenteHonorria da Federao Latino-americana deSemitica e Diretora do Centro de Investigao emMdias Digitais da PUC-SP (Cimid).E-mail: [email protected]

    por propsitos. Essa ao aparece tanto nasformas de vida mais embrionrias erudimentares da biosfera quanto nas complexas

    formas de aproximao ou insight do idealsupremo da razoabilidade concreta, cujosparadigmas esto na arte e na cincia.