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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A FORJA DE VULCANO: Siderurgia e Desenvolvimento na Amazônia Oriental e no Rio de Janeiro Rodrigo Salles Pereira dos Santos Rio de Janeiro Novembro de 2010

SANTOS, Rodrigo Salles Pereira Dos. a Forja de Vulcano

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SANTOS, Rodrigo Salles Pereira Dos. a Forja de Vulcano

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    A FORJA DE VULCANO:

    Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental e no Rio de Janeiro

    Rodrigo Salles Pereira dos Santos

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2010

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    A FORJA DE VULCANO:

    Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental e no Rio de Janeiro

    Rodrigo Salles Pereira dos Santos

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo de

    Doutor em Cincias Humanas (Sociologia).

    Orientador: Prof. Dr. Jos Ricardo Garcia Pereira Ramalho

    Rio de Janeiro

    Novembro de 2010

  • iii

    A FORJA DE VULCANO:

    Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental e no Rio de Janeiro

    Rodrigo Salles Pereira dos Santos

    Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Ps-

    graduao em Sociologia e Antropologia do Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio

    de Janeiro, como requisito parcial obteno do ttulo de

    Doutor em Cincias Humanas (Sociologia).

    Aprovada em:

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Jos Ricardo Garcia Pereira Ramalho - Orientador (UFRJ)

    Prof. Dr. Alice Rangel de Paiva Abreu (ICSU-LAC)

    Prof. Dr. Iram Jcome Rodrigues (USP)

    Prof. Dr. Marcelo Domingos Sampaio Carneiro (UFMA)

    Prof. Dr. Neide Esterci (UFRJ)

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    Santos, Rodrigo Salles Pereira dos. A Forja de Vulcano: Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental

    e no Rio de Janeiro / Rodrigo Salles Pereira dos Santos. Rio de Janeiro, UFRJ/IFCS/PPGSA, 2010.

    xi, 245 f.il.29,7cm Orientador: Jos Ricardo Garcia Pereira Ramalho. Tese (doutorado) UFRJ/IFCS/Programa de Ps-Graduao em

    Sociologia e Antropologia, 2010. Referncias Bibliogrficas f.246-269.

    Orientador: Jos Ricardo Garcia Pereira Ramalho.

    1. Desenvolvimento econmico. 2. Siderurgia. 3. Rede de produo global. 4. Metacampo sdero-logstico. 5. Fenmeno cultural complexo. I. Ramalho, Jos Ricardo Garcia Pereira (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, Programa de Ps-Graduao em Sociologia e Antropologia). III. A Forja de Vulcano: Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental e no Rio de Janeiro.

  • v

    RESUMO

    Esta tese toma como seu tema o desenvolvimento econmico e como objeto de pesquisa a siderurgia. Ambos, tema e objeto, por suas caractersticas particulares, produzem transformaes sociais estruturais nos territrios nos quais esto implantados. Este trabalho trata especificamente das regies sdero-logsticas da Amaznia Oriental e do Rio de Janeiro. Estes espaos so atualmente privilegiados, da perspectiva da atratividade territorial de operaes sdero-logsticas, por processos complementares de desintegrao geogrfica e integrao em rede das atividades produtivas dos principais agentes econmicos do setor siderrgico. A tese prope tambm, uma abordagem socioantropolgica de seus tema e objeto, ao apreender o desenvolvimento econmico, em particular, e as relaes econmicas, em geral, como fenmenos culturais complexos, envolvendo estruturas ou metacampos de agentes econmicos e no econmicos indivduos, grupos, organizaes e instituies polticos e sociais. A siderurgia, pela magnitude de seu potencial de transformao social, engendra, assim, metacampos sdero-logsticos dentro dos quais se defrontam, em mltiplas escalas, agentes dotados de recursos diversificados e conversveis, com capacidades mtuas de determinao, condicionamento e influncia sobre suas aes. Palavras-chave: desenvolvimento econmico, siderurgia, rede de produo global, metacampo sdero-logstico, fenmeno cultural complexo.

  • vi

    ABSTRACT

    The thesis takes economic development as its subject, and the steel industry as research object. Both subject and object, due to their particular features, produce structural changes in the territories in which they operate. This work specifically deals with the Eastern Amazon and Rio de Janeiro steel-logistic regions. These spaces are currently privileged from the perspective of territorial attractiveness for steel and logistics operations. This is because of the complementary processes of geographic disintegration and network integration which characterize the main steel players productive activities. The thesis also proposes a sociological and anthropological approach to its subject and object. It grasps economic development, in particular, and economic relations, more generally, as complex cultural phenomena, involving structures or metafields of economic and noneconomic agents political and social individuals, groups, organizations, and institutions. The steel industry, because of its potential for social change, engenders thereby steel-logistic metafields. Within these metafields, agents endowed with diversified and convertible resources, face each other at multiple scales, and determine, constrain and influence each others actions. Keywords: economic development, steel industry, global production network; steel-logistic metafield, complex cultural phenomenon.

  • vii

    DEDICATRIA

    Aos meus pais, Renato e Vania,

    por seu amor incondicional!

  • viii

    AGRADECIMENTOS

    A realizao desta tese dependeu grandemente de algumas pessoas e instituies, as

    quais eu gostaria de agradecer especialmente: Ao meu orientador, Prof. Dr. Jos Ricardo Ramalho, por uma convivncia ao longo de

    7 anos desde o Mestrado, marcada por sua enorme capacidade de partilhar conhecimento e prover apoio e incentivo minha vida profissional. Na verdade, no Doutorado, as distines entre vida profissional e pessoal pareceram, em muitos momentos, bastante tnues. Muito obrigado por seu olhar paciente e pela generosidade de seus conselhos quando estes momentos se apresentaram. Agradeo pela compreenso silenciosa, permitindo respeitosamente que meu tempo flusse. Obrigado principalmente pela confiana.

    Ao Prof. Dr. Huw Beynon, que me acolheu como orientando em Cardiff, Pas de Gales, me proporcionando o contato com novas abordagens tericas e me apoiando integralmente durante o perodo de vigncia da Bolsa Sandwich ofertada pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq). Agradeo aos colegas da Cardiff University, em especial Profa. Dra. Heike Dring, pela amizade e colaborao e a Gabriella Alberti, Gerbrand Tholen e Helen Blakely, todos colegas do Global Political Economy Group (GPE). Agradeo tambm aos funcionrios desta instituio, que viabilizaram o meu trabalho de pesquisa na universidade.

    A todos os professores, funcionrios e colegas do PPGSA/UFRJ que, de diferentes formas, foram extremamente importantes em minha formao acadmica. Muito obrigado ao Prof. Dr. Marco Aurlio Santana. Aos professores Dr. Jorge Natal e Dra. Isabel Cristina da Costa Cardoso, pelos comentrios e crticas oferecidos durante o exame de qualificao. Sou tambm particularmente grato aos professores Dr. Andr Pereira Botelho, Dr. Benedito Souza Filho, Dra. Ednalva Maciel Neves, Dra. Elisabeth Beserra Coelho, Dr. Horcio Antunes de Santanna Jr., Dr. Luiz Antonio Machado da Silva, Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, Dra. Maristela Andrade e Dr. Srgio Figueiredo Ferretti, que contriburam imensamente com suas sugestes e crticas durante o Seminrio Interno PROCAD UFMA/UFRJ: Amaznia e os Paradigmas do Desenvolvimento, realizado em So Lus. Muito obrigado a Raphael Lima e Mariana Massena, colegas de trabalho e bons amigos.

    Agradeo especialmente Profa. Dra. Neide Esterci, por sua generosidade e enorme conhecimento. Tambm ao Prof. Dr. Marcelo Sampaio Carneiro, cujo apoio, particularmente durante os dois perodos de coleta de dados na Amaznia Oriental, foi condio sine qua non para a realizao deste trabalho. Novamente tenho a oportunidade de me beneficiar de seus conhecimentos, junto aos dos professores Dra. Alice Rangel de Paiva Abreu e Dr. Iram Jcome Rodrigues, com a formao da banca de avaliao desta tese. Obrigado a todos. Agradeo tambm, enormemente, a Claudia Vianna e Denise Alves, secretrias do PPGSA/UFRJ, por sua extrema dedicao e pacincia para resolver todos os problemas criados por esse meu terrvel hbito de adiar o cumprimento das exigncias burocrticas do programa. Pelas mesmas razes, agradeo profundamente a Angela Maria Dias da Rocha, por no cansar-se nunca (aparentemente) de salvar a mim e a outros orientandos quase cotidianamente. Desculpem-me pelo trabalho e muito obrigado.

    Ao CNPq, pelo auxlio financeiro que possibilitou a realizao deste trabalho, permitindo minha pesquisa de doutoramento no Brasil, atravs da Bolsa de Doutorado, e o aprofundamento de minha formao como pesquisador no Pas de Gales, por meio de uma Bolsa Sandwich.

    A Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), cujo auxlio financeiro, atravs do Programa Cientistas do Nosso Estado e, mais recentemente, do

  • ix

    apoio ao projeto Desenvolvimento, Trabalho e Cidadania no Rio de Janeiro: As experincias da Baixada e do Sul Fluminense, vem sendo inestimveis.

    A Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES), que suportou financeiramente o Programa de Cooperao Acadmica (PROCAD) UFMA/UFRJ: Amaznia e os Paradigmas do Desenvolvimento, permitindo a colaborao entre docentes e discentes das duas universidades e o meu trabalho de campo na Amaznia Oriental.

    Aos todos os meus entrevistados e contatos realizados durante o trabalho de campo. Espero estar altura de sua confiana e ter utilizado suas informaes com dedicao e cuidado. Espero, acima de tudo, que esta tese retorne a vocs e tenha uso prtico, ainda que imprevisto, na melhoria de suas vidas.

    Aos amigos achados no Maranho, Diego, Rafael Moscoso, Leonardo e Emanuelle. Muito obrigado pelos papos, cervejas e iluses. Espero voltar em breve!

    Aos amigos feitos em Gales, Avril e famlia, Ahmed, Beach, Estevam, Jude, Jessica e Matt. Obrigado especialmente a Tiago e Camila. Vocs me proporcionaram um ano absolutamente fantstico. Obrigado Mia, cada palavra e gesto de incentivo seus me fizeram seguir adiante, mesmo de longe. x

    Aos amigos de todo o sempre. A rica, parceira da vida. Sua grandeza e capacidade de doao me assombram. A Rafaelle, obrigado por me pegar pela mo. Vocs duas me colocaram de p novamente! Obrigado Gisele e Michela pela amizade e alegria de viver com vocs. Obrigado Eric, Jos Carlos, Leonardo e Bruno amizades novas e pr-histricas. Obrigado a Brbara Frana e Maria Lcia, mentoras e amigas. A Brbara Rodrigues e seu carinho e incentivo. A Alan e especialmente, a Desire, minha maior defensora.

    A toda a minha famlia, pelo apoio incondicional, incentivo e amizade. Sei que estou em dvida com vocs. Em especial, obrigado me, pai, Raquel e Jlia. Esta tese o resultado de um esforo de pelo menos 10 anos de estudo e trabalho ininterrupto, que nunca teriam sido possveis sem a participao de vocs.

    A todos agradeo, profundamente.

    Rodrigo Santos Niteri

    07 de novembro de 2010.

  • x

    SUMRIO

    1. INTRODUO ............................................................................................................................. 1

    1.1. Esboo da Tese ....................................................................................................................... 1

    1.2. Marcos Tericos e Analticos da Tese.................................................................................. 4

    1.3. Diviso da Tese em Captulos ............................................................................................. 21

    1.4. Metodologia ......................................................................................................................... 25

    2. O PARADIGMA DAS REDES DE PRODUO GLOBAIS (RPGs) ................................... 34

    2.1. Caracterizao Inicial ......................................................................................................... 34

    2.2. O Valor e a Cadeia de Valor (CV) ..................................................................................... 36

    2.3. Poder, Governana e Cadeia Global de Commodity (CGC) ............................................ 38

    2.4. Governana como Direo ou Controle e Estruturas de PDCCs e BDCCs ................... 43

    2.5. Cadeia Global de Valor (CGV): Governana como Coordenao ................................. 48

    2.6. Avaliao Crtica do Paradigma das CGCs/CGVs .......................................................... 54

    2.7. Rede de Produo Global (RPG): valor, poder e enraizamento ..................................... 61

    3. A REDE DE PRODUO GLOBAL SIDERRGICA E A INFLUNCIA DA FINANCEIRIZAO ........................................................................................................................ 71

    3.1. Indstria Siderrgica: caracterizao ............................................................................... 71

    3.2. Minerao e Siderurgia: relaes de poder ...................................................................... 77

    3.3. CSN e Corus: uma tentativa frustrada de fuso .............................................................. 83

    3.4. Do producionismo financeirizao.................................................................................. 91

    3.5. CSN e Tata: a tendncia financeirizao na consolidao da siderurgia .................. 100

    4. A REGIO SDERO-LOGSTICA DA AMAZNIA ORIENTAL: O ENCADEAMENTO DE ESTADO E FIRMAS NA FORMAO DE UM ESPAO CENTRAL DE ACUMULAO .....................................................................................................................................................109

    4.1. Estado e Desenvolvimento na Amaznia Oriental: modelos de ao estatal e representaes da modernizao induzida ................................................................................. 109

    4.2. Desenvolvimento Econmico como Transformao Social Estrutural da Amaznia Oriental .......................................................................................................................................... 126

    4.3. O Caso da Rede de Produo e Mercado Siderrgicos na Amaznia Oriental ........... 144

    5. A TRANSFORMAO SOCIAL ESTRUTURAL PRODUZIDA NO TERRITRIO SDERO-LOGSTICO DO RIO DE JANEIRO ............................................................................ 166

    5.1. A regio sdero-logstica e sua frao costeira: caracterizao e grandes projetos ..... 166

  • xi

    5.2. Histria: a passagem do rural-agrrio para o urbano-industrial (ou transformao estrutural da sociedade/estrutura social) .................................................................................... 180

    5.3. O acontecimento econmico apreendido como evento cultural complexo: a implantao da TKCSA e seu enraizamento social .......................................................................................... 208

    6. CONCLUSO ........................................................................................................................... 235

    7. BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 246

    8. ANEXOS .................................................................................................................................... 270

  • 1

    O homem a medida de todas as coisas, das coisas que so, enquanto so,

    das coisas que no so, enquanto no so.

    (PLATO, Dilogos, Protgoras)

    1. INTRODUO

    1.1. Esboo da Tese

    O fato bsico de que dependem todos os fenmenos que denominamos de scio-econmicos, no sentido mais amplo, o de que a nossa existncia fsica, tal como a satisfao das nossas necessidades mais ideais, depara por todo o lado com a limitao quantitativa e a insuficincia qualitativa dos meios externos que lhes so indispensveis; de que, para a sua satisfao, necessria uma previso planificada, o trabalho, a luta contra a natureza e a socializao com outras pessoas. A qualidade de um acontecimento que faz com que o consideremos como um fenmeno scio-econmico, no precisamente um atributo que lhe seja inerente de forma objetiva. Pelo contrrio, ela est condicionada pela direo tomada pelo interesse do nosso conhecimento, tal como resulta da importncia cultural especfica que conferimos, em cada caso, ao acontecimento em questo. Sempre que um acontecimento da vida cultural considerado segundo os elementos da sua particularidade que constituem para ns a sua importncia especfica est ligado diretamente ou mesmo do modo mais indireto ao fato citado, contm ou pode conter, se for esse o caso um problema de cincia social. Isto , torna-se o objeto de uma disciplina que a si prpria props, como alvo, estudar o alcance do fato bsico citado. (WEBER, 2003: 19-20).

    O postulado elementar de que o fato ou acontecimento econmico assim qualificado

    porque se relaciona busca da satisfao, material e imaterial, de necessidades humanas

    certamente, pouco questionvel. Prope-se aqui, no obstante, um deslocamento de nfase

    do substantivo necessidade para o adjetivo humano. Isto porque definindo estas

    necessidades concretas e abstratas e agindo em funo delas que o ser humano define

    tambm os sujeitos e objetos1 com os quais interage como econmicos ou no econmicos. O

    ser humano constitui, portanto, a medida ltima das coisas econmicas e das no econmicas

    1 A referncia noo de objeto deriva dos Estudos da Cincia e Tecnologia, capitaneados por Michel Callon, e sua nfase na performatividade da economia e na agncia dos objetos sobre os sujeitos econmicos por exemplo, dos padres tecnolgicos sobre as formas organizacionais das relaes econmicas (CALLON; MILLO; MUNIESA, 2007).

  • 2

    porque so a objetividade e a subjetividade de sua existncia que instituem a economia e a

    deseconomia2 das coisas.

    O desenvolvimento econmico, tema desta tese, considerado, tradicionalmente, um

    fenmeno deste gnero econmico. Por sua vez, a siderurgia, objeto da mesma, constituiria

    de modo similar, uma estrutura de agentes, relaes e acontecimentos tradicionalmente

    definidos como econmicos: um setor ou indstria. Entretanto, este trabalho objetiva discutir

    tais fenmenos econmicos (WEBER, 2003) a partir de uma perspectiva socioantropolgica.3

    Isto porque, siderurgia e desenvolvimento econmico so, na realidade, fenmenos culturais

    complexos.4 Desse modo, uma abordagem socioantropolgica5 objetiva recuperar a

    centralidade da construo social da economia e deseconomia dessas coisas: siderurgia e

    desenvolvimento econmico.

    Avanando nesta abordagem, essa tese toma como hiptese central a ideia de que o

    desenvolvimento econmico uma configurao, especfica temporalmente e localizada

    territorialmente, do processo de mudana social (COSTA PINTO, 1972: 96) de uma dada

    2 A opo pelo termo deseconomia em detrimento de no econmico, busca enfatizar a natureza seletiva da (des)construo das relaes entre, de um lado, sujeitos e objetos culturalmente complexos (totalidades concretas) e, de outro, o fato da satisfao das necessidades humanas. A natureza intrnseca de sujeitos e objetos concretos consiste no fato de que estes podem ser virtualmente tudo. 3 A premissa sobre a qual se baseia a de que, dada a arbitrariedade da distino entre os mundos econmico e no econmico, os fatos da economia podem e devem ser investigados fora do conjunto de postulados economicistas que institui e reifica a referida distino. Tal como os acontecimentos pertencentes ao mundo no econmico so economicizados, terica e empiricamente, suas contrapartes econmicas so pass veis de deseconomizao. No h, portanto, qualquer validade intrnseca, alm daquela derivada das relaes de fora no campo cientfico (BOURDIEU, 2003), da pretenso de exclusividade heurstica da economia sobre os problemas econmicos. Nesse sentido, homens e mulheres, porque produzem tais fenmenos, os afetam e so por eles afetados, constituem os pontos de partida e chegada da abordagem aqui defendida. 4 A consequncia imediata para a pesquisa socioantropolgica de assumir a complexidade de fenmenos culturais, neste caso o desenvolvimento e a siderurgia, que, no plano de uma totalidade cultural especfica, as distines tradicionais entre fatos econmicos e fatos polticos e sociais so transitrias. Desse modo, tais fatos adquirem feies especficas dentro de um contexto ou situao (JOAS, 1997) concreta, que demanda a existncia de agentes imersos em relaes. 5 Embora a abordagem socioantropolgica a qual se refere neste trabalho tenha sido desenvolvida de forma independente da scio-antropologia do desenvolvimento proposta por Olivier de Sardan (2005), ambas as abordagens possuem semelhanas muito importantes. A mais notvel dentre todas parece ser a ideia de que o desenvolvimento somente uma outra forma de mudana social (idem: 23) e que, portanto, indissocivel do problema-chave do qual padecem ambas as disciplinas sociologia e antropologia a saber, o problema da ordem/mudana social.

  • 3

    totalidade cultural.6 Esta hiptese se referencia em um complexo de eventos sintetizado no

    movimento de transnacionalizao do setor siderrgico7 (WOLF, 2005), que marca a primeira

    dcada do sc. XXI. Nesse sentido, seu evento8 cultural prototpico9 a implantao de usinas

    siderrgicas integradas em regies costeiras no Brasil. Por sua vez, a referida hiptese toma

    como substrato emprico dois territrios: as regies sdero-logsticas do Rio de Janeiro e da

    Amaznia Oriental.

    O desenvolvimento econmico concebido como um fenmeno que engloba uma

    ampla variedade de agentes (sujeitos e objetos) e de relaes, tanto econmicas, quanto no

    econmicas. Visto que o desenvolvimento econmico vem reassumindo uma dimenso

    crucial da vida cultural de totalidades territoriais concretas, pois que significativo para as

    condies objetivas e subjetivas da existncia humana, ele torna-se, sobretudo, um problema

    social real. Nesse sentido, correto afirmar que a centralidade contempornea da categoria

    desenvolvimento econmico deriva em especial, dos significados e usos prticos (e por isso,

    disputveis) que os agentes lhes atribuem em suas relaes cotidianas em detrimento de sua

    relevncia terico-cientfica. 10

    6 Esse tratamento faz parte de uma tentativa mais ampla de retomar a tradio e principais contribuies da Sociologia do Desenvolvimento no Brasil, sintetizadas na abordagem do desenvolvimento como mudana social processual de Costa Pinto (1972; 1978) e Lopes (1976). 7 A premissa subjacente a de que a siderurgia constitui uma estrutura de relaes entre agentes, grupos, organizaes e instituies com capacidade de transformao social estrutural. Esta propriedade no , obviamente, exclusiva siderurgia, e tampouco uma condio necessria de sua operao concreta. A siderurgia no produz automaticamente desenvolvimento econmico. A situao prtica que envolve padres tecnolgicos, comerciais, legais, etc., mas, sobretudo, as estruturas sociais ou totalidades culturais, mais ou menos engajadas ou refratrias mudana, nos quais projetos siderrgicos concretos so planejados, implantados e operados, , nesse sentido, decisiva para a compreenso da transformao que pode ou no ser provocada por ela. Para Sahlins, [...] necessrio insistir em que a possibilidade do presente vir a transcender o passado e ao mesmo tempo lhe permanecer fiel depende tanto da ordem cultural quanto da situao prtica. (1990: 189) 8 O conceito de evento empregado aqui inspira-se na abordagem de Marshall Sahlins, que o define como a relao entre um acontecimento e um dado sistema simblico. (1990: 191) Em nossos prprios termos, a idia de estrutura ampliada da dimenso simblica proposta por Sahlins para abranger a vida de um dado agrupamento humano uma totalidade cultural. Assim, o evento representaria uma figura intermediria entre o fato e a totalidade cutural (estrutura social). 9 O evento prototpico constitui meramente um tipo ideal, cuja funo estabelecer uma referncia a partir da qual eventos concretos possam ser diferenciados e apreendidos. 10 O debate clssico, formulado nos marcos das teorias da dependncia e do sistema-mundo wallersteiniana, e resumido nas categorias polares de desenvolvimento e subdesenvolvimento, deve ser transcendido em favor de

  • 4

    1.2. Marcos Tericos e Analticos da Tese

    Desse modo, faz-se necessrio precisar os marcos terico-analticos desta abordagem

    socioantropolgica dos processos de desenvolvimento econmico promovidos pela siderurgia

    no Rio de Janeiro e na Amaznia Oriental. Um arqutipo de definio econmica do

    desenvolvimento o caracterizaria como o resultado de um complexo de acontecimentos ou

    fatos produzidos no mbito das relaes econmicas11 e que se efetivaria, isto , produziria

    efeitos, nos nveis social e poltico dos agrupamentos humanos.

    A substituio de uma definio econmica por uma socioantropolgica do

    desenvolvimento econmico se assenta em trs postulados que se interrelacionam.

    Primeiramente, de modo a rejeitar o determinismo implcito definio econmica

    arquetpica12 do fenmeno, o desenvolvimento econmico deve ser considerado como um

    uma abordagem socioantropolgica e nominalista do desenvolvimento econmico. Nominalista porque atravs do fenmeno da retomada do desenvolvimento como categoria explicativa nativa desacompanhada do seu negativo, o subdesenvolvimento de processos socioeconmicos localizados, que essa abordagem se institui. Aqui vale um breve parntese. Meu interesse intelectual pelo tema do desenvolvimento surgiu durante a pesquisa inicial para a dissertao de mestrado. No esteio do processo de redefinio dos papis institucionais do Estado brasileiro redemocratizado e da consequente descentralizao federativa estimulada pela Carta Constitucional de 1988, observou-se um fenmeno acelerado de desnacionalizao do desenvolvimento econmico. Sua contraparte ao nvel subnacional foi a entrada deste fenmeno no lxico e na pauta de aes dos agentes pblicos municipais e estaduais com clara predominncia discursiva inicialmente. A proliferao de secretarias municipais de desenvolvimento econmico na mesorregio Sul Fluminense (RJ) foi o indicador inicial de que as bases da legitimidade do poder poltico local dependiam, de modo indito, da construo social do desenvolvimento, equacionado atratividade econmica do territrio. O desenvolvimento havia descido do pedestal e agora, impregnava os discursos e as aes dos 'tomadores de deciso' locais. Eu devo a explicitao desta abordagem socioantropolgica e nominalista do desenvolvimento econmico s interpelaes dos participantes do Seminrio Interno PROCAD UFMA/UFRJ: Amaznia e os Paradigmas do Desenvolvimento, realizado em So Lus, Maranho, 2007. Neste evento, realizei a apresentao oral A recomposio da cadeia siderrgica no Rio de Janeiro e na Amaznia Oriental: possvel falar em desenvolvimento econmico?, e sou particularmente grato aos comentrios e crticas dos professores Jos Ricardo Ramalho (UFRJ), Luiz Antonio Machado da Silva (UFRJ/IUPERJ), Marcelo Sampaio Carneiro (UFMA) e Neide Esterci (UFRJ). 11 Abre-se mo aqui, conscientemente, de investigar as causas econmicas do desenvolvimento econmico, tal como as concebem as correntes heterodoxas ps-keynesiana e neo-schumpeteriana, atribuindo, ao investimento produtivo e tecnologia (inovao), respectivamente, capacidades motrizes. Busca-se ressaltar, sobretudo, uma investigao dos contedos e formas do desenvolvimento econmico, em detrimento de suas causas potenciais. 12 Uma segunda definio arquetpica e implicitamente econmica do desenvolvimento econmico o equaciona a um suplemento indeciso e virtualmente infinito de fatores sociais tais como nveis de educao, sade e participao poltica sobre um ncleo duro: o conceito macroeconmico de crescimento. Enquanto fatores

  • 5

    fenmeno cultural concreto e total. Seus aspectos econmico, poltico e social so, nesse

    sentido, expresses da referida totalidade. Desse modo, o desenvolvimento econmico no

    gera a mudana social, ele a prpria mudana, pois que se identifica com a totalidade

    cultural. A economia, compreendida como uma frao desta totalidade, incapaz de

    determin-la.13 Trocando em midos, a ocorrncia do desenvolvimento econmico

    determinada pela evidncia de mudana social, seu contedo substantivo.

    Em segundo lugar, ele constitui um tipo especfico de mudana social, visto que

    conjura uma transformao profunda da natureza dos agentes (sujeitos e objetos), de suas

    relaes e da estrutura social (ou totalidade cultural) dentro da qual ambos, agentes e relaes,

    se do. Assim, o desenvolvimento econmico, na perspectiva aqui adotada, representa uma

    redefinio em grande escala das relaes entre os agentes econmicos, polticos e sociais, em

    situaes especficas ou contextos (JOAS, 1997), em dimenses temporais e espaciais dotadas

    de densidade cultural. A acelerao que produz transforma qualitativamente a estrutura social.

    Resumidamente, o desenvolvimento como mudana no existe abstratamente, mas opera em

    um plano concreto uma situao ou contexto no qual agentes se defrontam.

    A mudana da totalidade parte necessariamente da transformao dos elementos que a

    compem agentes e relaes. Estes, por sua vez, agem e reagem (engajam-se) ativa e

    sociais os referidos nveis so duplamente caracterizados. Em primeiro lugar, so automaticamente definidos como fenmenos economicamente relevantes (WEBER, 2003), embora subordinados ao crescimento condio necessria e fora motriz desenvolvimentista. Em segundo lugar, estes nveis so tambm definidos como os efeitos, finalidades ou funes isto , fenmenos economicamente condicionados (idem), do desenvolvimento econmico, em um processo de representao moral do sentido da mudana. 13 A questo fundamental aqui diz respeito ao insulamento e reificao intelectual de dimenses da vida concreta. Nesse sentido, a abordagem pretendida vai de encontro s pretenses acadmicas tanto de economizao, quanto de socializao da experincia humana. Opta-se aqui por tomar o termo totalidade cultural e lhe emprestar o carter genrico da vida tal como esta experimentada por um dado grupo humano. Nesse sentido, as dimenses econmica, poltica e social de uma dada totalidade representam apenas feies abstraveis (menos concretas) da vida como esta se apresenta para indivduos, grupos, organizaes e instituies. Interessa aqui, explorar mais especificamente, as feies no econmicas do fato econmico. Entretanto, preocupa-se aqui menos com a rigidez nominal do que com a preciso semntica desta abordagem. Nesse sentido, a literatura da qual se toma de emprstimo a noo de desenvolvimento como mudana social, isto , a Sociologia do Desenvolvimento brasileira, alude ao mesmo sentido de transformao ou transio ampla de uma totalidade cultural: a formao da sociedade urbano-industrial brasileira entre os anos 1940 e 1970. Nesse sentido, a noo mesma de economia, se considerada como o fato bsico da necessidade de satisfao humana, pode ser equacionada prpria totalidade cultural.

  • 6

    assimetricamente, formando sistemas de relaes de valor, de poder e de compromisso.14 No

    que concerne forma do desenvolvimento econmico, o que est em jogo o processo

    concreto de transformao estrutural; as alianas e conflitos que emergem medida que uma

    dada estrutura social impactada por um fato e, mediante esse impacto, desenvolve-se um

    evento em geral definido como econmico. O evento capaz de fortalecer e enfraquecer, criar

    e destruir agentes em quaisquer das dimenses ou campos (BOURDIEU, 2003) da vida

    cultural. Sua forma especfica relaciona-se a uma propriedade de catalisao das relaes

    culturais de um territrio, esboroando as distines entre as dimenses e forjando uma espcie

    de metacampo. Neste caso, forjando metacampos sdero-logsticos.

    Nesse sentido, agentes (sujeitos e objetos) estabelecem relaes e conjuntos ou redes

    de relaes entre si. Ambos, agentes e relaes, no plano cultural e, portanto, significativo de

    espao e tempo especficos, assumem feies econmicas, polticas e sociais. Na verdade, so

    conjuntos especficos de relaes culturais que definem o desenvolvimento econmico. O

    desenvolvimento econmico , por conseguinte, uma configurao espao-temporal

    especfica de relaes culturais. Melhor ainda, o desenvolvimento econmico a

    configurao transicional entre duas configuraes especficas; entre duas totalidades

    culturais que definem determinadas capacidades da satisfao das necessidades humanas.

    Entretanto, essa transio no , necessariamente, positiva, no sentido de ampliar a referida

    capacidade de satisfao.

    Mudana e permanncia so propriedades imanentes a quaisquer totalidades culturais.

    No entanto, o ingresso de agentes significativos e a acelerao das relaes em territrios em

    desenvolvimento as transforma qualitativamente. O planejamento, a implantao e a operao

    de usinas siderrgicas gigantescas, com a entrada em cena de firmas estatais e/ou privadas,

    14 Os conceitos bourdiesiano de campo e joasiano de situao/contexto inspiram mas no circunscrevem esta abordagem.

  • 7

    vai de encontro a estruturas sociais estabelecidas, nas quais as referidas relaes de valor, de

    poder e de compromisso se encontram mais ou menos cristalizadas e operam enraizando os

    agentes.

    O setor siderrgico, tomado como objeto de estudo, prov casos exemplares de

    mudana social estrutural. A mobilizao de estoques de valor, poder e compromisso que

    engendra produz, com certa frequncia, a transformao do tipo que esta tese define como

    desenvolvimento econmico. Por fim, avanando os postulados anti-determinista e de

    especificidade do desenvolvimento, assume-se ento que, o desenvolvimento econmico um

    fenmeno amoral embora plena e tradicionalmente moralizvel.

    A transformao estrutural das relaes entre e o impacto diferencial sobre os agentes,

    grupos, organizaes e instituies implica que o desenvolvimento econmico um

    fenmeno moralizvel. Nesse sentido, positivo, neutro ou negativo quanto posio do

    agente, por exemplo, a de grupos de pescadores artesanais afetados15 em suas condies de

    reproduo ou a dos acionistas de firmas siderrgicas. tambm, moralizante, visto que

    atribui qualidades ou propriedades morais aos agentes.16

    15 interessante notar que a teoria econmica de base neoclssica j modelou as relaes conflituais entre pescadores artesanais e firmas siderrgicas em termos da economizao da natureza bens pblicos nos termos de Pindyck & Rubinfeld (1994). Em realidade, as teorias e metodologias acerca da mensurao do valor dos recursos naturais que emergem no campo econmico representariam, para Callon, Millo & Muniesa (2007), mtricas ou linguagens de valor. Isto , conhecimento econmico objetificado (objetos econmicos) com poder de agncia ou performatividade, medida que produzem efeitos em termos das aes concretas dos quadros tecno-gerenciais das companhias siderrgicas que se defrontam com organizaes profissionais de pescadores, por exemplo. A economizao das relaes entre pescadores e siderrgicas produz um quadro referencial segundo o qual as presses sociais e polticas, que rangem da organizao popular mais difusa ao enfrentamento jurdico, so apreendidas em termos de custos operacionais, que deve exceder os custos da adequao scio-ambiental para que esta ltima seja implementada concretamente. Neste caso, a materialidade dos instrumentos metodolgicos de valorao dos recursos ambientais (objetos econmicos) institui e transforma agentes e relaes (tradicionalmente sujeitos econmicos), modelando a realidade concreta. A questo subjacente performatividade das chamadas mtricas de valorao levantada pelos autores e que nos pertinente : como as coisas econmicas tornam-se calculveis atravs das linguagens ou mtricas de valor? Em nosso caso especfico, como as coisas econmicas tornam-se seletivamente econmicas, ignorando suas mltiplas feies como fatos culturais, atravs de processos de economizao? 16 Por exemplo, Eike Batista pode ser visto, ao mesmo tempo, tanto como o novo Midas do empreendorismo nacional (INSTITUTO MAGNA, 2008), quanto como uma espcie de Tio Patinhas na representao dos pescadores artesanais em Itagua. Uma representao do capitalista industrial tpico cujos principais atributos morais so a implacabilidade e a ganncia (SENNETT, 2004: 72). Aparentemente, a descrio de Sennett acerca

  • 8

    Entretanto, o desenvolvimento econmico amoral, no sentido de que sua

    demonstrao independe da evidncia de resultados positivos em termos de desempenho

    econmico e poltico-institucional17. Nesse sentido, o desenvolvimento econmico no

    bom ou mau, nem possui aspectos positivos ou negativos; ele vivido, de forma

    diferenciada, a partir de categorias morais. Assim, a recomposio da vida social

    predominantemente vivida como redefinio das relaes de valor, de poder e de

    compromisso entre os agentes, podendo ser experimentada inclusive, como tragdia.

    Dito de outra forma, o desenvolvimento econmico uma transformao moralizvel,

    mas no moral como tem sido concebido corriqueiramente. Da perspectiva moral do

    desenvolvimento econmico, a mudana positivamente universal, isto , ela moralizada.

    Da perspectiva adotada nesta tese, ao contrrio, a mudana estrutural no necessariamente

    positiva, visto que, de um ponto de vista socioantropolgico e histrico-cultural (WEBER,

    2003), a existncia concreta dos homens que determina o carter da transio pela qual

    passam. E essa existncia concreta nica e diferenciada. Parte dela impactada por

    da verso flexvel desta figura ideal capitalista, qual se acrescem o desapego e a tolerncia fragmentao, propicia uma descrio ideal de traos cruciais do carter (pblico e publicizado) de Eike Batista, famoso por sua capacidade de abraar o risco e criar e destruir firmas do dia para a noite. (idem: 72-73) O porto que eles vo construir... Vo construir um porto e vo torrar praticamente R$2 bilhes. [INTERVENO DO ENTREVISTADOR] Exatamente. Ento, aquilo que a gente fala, cara, a gente fala embasado, porque a gente sabe que voc pra operar um porto desse aqui... a LLX... eles no vo ter nem 1.000 empregados, cara. Voc imagina: eles vo gastar praticamente R$2 bi pra empregar menos de 1.000 pessoas. Eles com um projeto desses... o projeto orado pela APAIM com os 41 barcos custa R$6.150.000,00. P, vai gerar emprego pra 400... praticamente a mo-de-obra que eles vo empregar num porto de R$2 bilhes. P, uma lgica... que no d pros caras chegarem e dizerem assim: , ns estamos trazendo progresso e emprego. No! Eles esto trazendo... Eles no esto trazendo progresso e emprego. Porque o emprego... voc pode gerar o emprego com um custo muito menor e gerar renda pra muito mais gente. O que eles esto trazendo pra c o seu projeto pessoal de vida. O sr. Eike Batista... ele quer se tornar... O projeto pessoal de vida dele se tornar o homem mais rico do mundo. Agora, ele vai se tornar o homem mais rico do mundo s minhas custas? s custas do Alcides? s custas dos outros? No! Pera! Ningum aqui ta afim de impedir o progresso. Isso uma conseqncia. O pas ta... [INTERVENO DO PESQUISADOR] No! Ningum aqui ta querendo impedir o progresso, entendeu? A gente tem conscincia de que o pas precisa crescer, o pas precisa se inserir no mundo de forma forte, a passos firmes e ser respeitado pelo resto do mundo como uma grande potncia. A gente tambm quer isso. Ns somos brasileiros! Ns somos patriotas! Agora, no pode o Sr. Eike Batista encher o rabo de dinheiro e me deixar na merda. Deixar o Alcides na merda, deixar os outros na... (GARCIA, 2010b) 17 exatamente neste sentido que deve ser entendido o no tratamento da categoria subdesenvolvimento, construda de forma residual e dicotmica em relao a um padro moral de desenvolvimento, e que, em uma grande variedade de abordagens econmicas e sociolgicas, ignora sua subjetividade e relatividade histrica.

  • 9

    benefcios e outra, por malefcios. O desenvolvimento econmico representa,

    simultaneamente, as duas condies.

    Alm das premissas analticas que informam esta concepo socioantropolgica do

    desenvolvimento econmico, necessrio precisar tambm seus marcos tericos. Nesse

    sentido, a mudana social apresentada como o prprio contedo do desenvolvimento

    econmico, no sentido de que este se produz sempre que as relaes culturais entre

    indivduos, grupos, organizaes e instituies manifestem uma confrontao explcita entre

    um acontecimento (apresentado como) econmico datado ou complexo destes e a

    estrutura social de um territrio especfico, que termina por transformar ambos, relaes e

    estrutura. Em concordncia com Marshall Sahlins,

    [...] um evento no apenas um acontecimento caracterstico do fenmeno, mesmo que, enquanto fenmeno, ele tenha foras e razes prprias, independentes de qualquer sistema simblico.18 Um evento transforma-se naquilo que lhe dado como interpretao. Somente quando apropriado por, e atravs do esquema cultural, que adquire uma significncia histrica. [...] O evento a relao entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento do fenmeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficcia histrica especfica (SAHLINS, 1990: 15).

    A abordagem culturalista de Sahlins19 problematiza as oposies (onto)lgicas do

    folclore nativo e do pensamento acadmico ocidentais, organizadas em termos de

    estabilidade e mudana. Desse modo, sustenta a indissociabilidade fenomenolgica da

    estabilidade e da mudana no mundo prtico. Nos termos prprios em que as explicaes

    econmicas arquetpicas reduzem esta oposio, estagnao e crescimento constituiriam

    momentos discretos do processo global de satisfao das necessidades humanas.

    A abordagem socioantropolgica do desenvolvimento econmico se diferencia da

    explicao econmica arquetpica porque rejeita duplamente a representao discricionria

    18 Adaptado para nossos propsitos, sistema ou totalidade cultural. 19 Em oposio ao funcionalismo de Radcliffe-Brown e ao estruturalismo lvi-straussiano.

  • 10

    (estanque) evolutiva e a generalizao da estabilidade e da mudana como estagnao e

    desenvolvimento. O culturalismo de Sahlins e sua abordagem em termos da relao entre o

    fato ou acontecimento e a estrutura cultural (mediada pela figura hbrida do evento) representa

    a negao radical desta representao discricionria e evolutiva, da qual o arqutipo

    econmico constitui apenas um exemplo.

    No entanto, a indissociabilidade fenomenolgica da mudana e da estabilidade em

    Sahlins est baseada em uma premissa generalista. Nesse sentido pode-se supor que um dado

    sistema cultural tornar-se-ia incongruente na evidncia (lgica) da mudana generalizada

    desenvolvimento em nossos termos. Obviamente no preciso supor que uma totalidade

    cultural inteira se encontre na presena de processos de mudana global que, no limite, torn-

    la-iam ininteligvel. Mesmo eventos revolucionrios contm muitos aspectos de permanncia.

    O que se postula que, para contingentes humanos significativos de uma dada totalidade

    cultural, em tempo e espao delimitados, o nvel de descontinuidade de um evento pode

    assumir e assume concretamente propores tais que, para este grupo, os aspectos de

    permanncia ficam obscurecidos, e a mudana completa e irreversvel pode tornar a vida

    cotidiana uma tragdia.

    Nesse sentido, em um plano fenomenolgico, mudana e estabilidade so aspectos

    permanentes de uma totalidade cultural e, portanto, so indissociveis. No plano da existncia

    cultural concreta, entretanto isto , aquele da vida prtica dos indivduos, grupos,

    organizaes e instituies este par se apresenta de forma muito diferenciada. Este plano

    existencial, dentro do qual os agentes se percebem e estabelecem relaes concretas entre si,

    certamente, um plano segmentado e parcial, de modo que as representaes, aes e relaes

    que engendram no podem ser genricas ou integrais. Mudana e estabilidade so

    propriedades que se lhes apresentam de forma bastante assimtrica podendo estar, inclusive

    ausentes, temporariamente, de sua experincia subjetiva. Assim, o mundo particular daquele

  • 11

    que deslocado ou que se v impedido de reproduzir-se como categoria social , muitas

    vezes, um mundo completamente instvel e, por isso mesmo, trgico. Um hospcio talvez?

    Nesse sentido, Sahlins toma como objeto as relaes entre um evento crtico e a

    estrutura cultural da sociedade havaiana e seu mtuo condicionamento de modo a propor uma

    teoria abrangente da histria. Em seu modo prprio de formular o problema, j clssico, da

    ordem (ou da ao, como quisermos) social, Sahlins integra a reproduo e subverso da

    estrutura a partir do que define como o duplo risco da prtica via engajamento ativo dos

    agentes (isto , via ao social) e via disjuno das categorias estruturais e da situao ou

    contexto especfico.

    Assim, o desenvolvimento econmico demanda, em realidade, a emergncia de um

    evento (SAHLINS, 1990) de magnitude representativa e que, por isso, capaz de transformar

    qualitativamente toda a totalidade significativa de um territrio. Em termos mais prticos,

    inspirando-se na abordagem de Marshall Sahlins, ainda que a subvertendo20, a estrutura social

    se transforma: seja a partir da intruso de uma usina siderrgica de capital transnacional em

    um espao semi-urbano, como o municpio de Itagua, no Rio de Janeiro; seja pela repulso

    de um projeto similar em So Lus, Maranho.

    Tais eventos recompem assim, ampla e profundamente, as relaes entre os agentes

    econmicos, polticos e sociais nestes espaos. Acontecimentos potencialmente

    transformadores desse tipo tornam-se eventos significativos a partir, entretanto, da redefinio

    20 A abordagem de Sahlins encontra-se subvertida em dois pontos principais. Em primeiro lugar, o conceito de estrutura do autor refere-se em particular, dimenso simblica da vida humana, ainda que produza efeitos sociais concretos. Nesse sentido, a definio de cultura que se adota nesta tese tambm difere da de Sahlins, por referir-se, genrica e prioritariamente, vida cotidiana das situaes concretas. Assim, nossa prpria definio de estrutura social como totalidade cultural aponta para o mesmo generalismo includente dos fenmenos definidos seletivamente econmicos, polticos e sociais. Em segundo lugar, em nome da mesma prerrogativa fenomenolgica que Sahlins pleiteia para explicar a indissociabilidade entre mudana e estabilidade em sua teoria da histria, busca-se discutir as relaes entre evento (econmico) e estrutura (social) a partir das percepes e reaes ao desenrolar histrico em situaes concretas. Nesse sentido, embora nenhuma mudana possa ser to completa ao ponto de tornar a estrutura completamente ininteligvel, indivduos, grupos, organizaes e instituies inteiros experimentam o desenvolvimento econmico em termos de mudana social brusca e dolorosa, tornando, para eles, o seu mundo, ininteligvel.

  • 12

    engajada (intencional) e contextual (situacional) das relaes entre agentes econmicos,

    polticos e sociais, assim como dos limites para as suas respectivas capacidades de agir de

    forma autnoma.

    A implantao de um projeto siderrgico ou, mais genericamente, de um grande

    projeto (CASTRO, 1995)21, pode ser definida, mais fielmente, como um acontecimento ou

    fato provocado por uma deciso-ao (uma deciso de investimento, por exemplo). Em

    realidade, como um complexo de decises-aes e de fatos. Acontecimentos culturais

    fundadores deste tipo tornam-se eventos porque se relacionam fundamentalmente, estrutura

    social ou totalidade cultural na qual se inserem e so, por isso mesmo, interpretados luz das

    relaes de valor, de poder e de compromisso que tanto se reproduzem quanto se transformam

    na vida cotidiana. O que se defende nesta tese que, a coliso entre certos acontecimentos e

    estruturas em tempo e espao especficos, engendra eventos disruptivos capazes de alterar

    profundamente a vida de contingentes populacionais muito expressivos e, no limite,

    transformar a estrutura social.

    Se, para Sahlins, o evento uma interpretao do acontecimento, e se tais

    interpretaes so variadas, deve-se buscar evidenciar essas diferentes interpretaes. Ao

    ressaltar a moralizao do desenvolvimento econmico, alude-se essencialmente a uma verso

    genrica que o equaciona evoluo positiva das condies materiais de agrupamentos

    humanos. Nesta tese, entretanto, busca-se evidenciar algumas verses trgicas ou no limiar

    da tragdia produzidas pelo acontecimento siderrgico em contato com territrios

    concretos, isto , pelo evento disruptivo que os transforma profundamente.

    21 Castro define originalmente grandes projetos como os empreendimentos ou complexos produtivos de grande porte identificados por massivos investimentos e instalados a partir dos anos 70 (1995: 02). Da perspectiva aqui defendida, centrada na capacidade (des)estruturadora do fato econmico e considerando a importncia e magnitude assumida pelos sistemas logsticos em redes de produo globais (DICKEN, 2007), parece ser necessrio ampliar o conceito para incluir as infra-estruturas ou capitais de larga escala e grande durabilidade (HARVEY, 2006: 224) decisivos para os processos de captura de valor. Infra-estruturas porturias, ferrovirias, rodovirias, energticas, etc. podem constituir tambm, nesse sentido, grandes projetos ou empreendimentos.

  • 13

    O evento disruptivo conforme estabelecido por Sahlins a respeito do choque entre

    a chegada do capito Cook ao Hava e do imperativo da significao desta chegada na

    cosmologia e estrutura social havaianas pode assumir, entretanto, mltiplas formas. No caso

    da Amaznia Oriental, da perspectiva da transformao regional mais ampla, a ao

    demirgica do Estado (EVANS, 2004) que, via firma estatal, produz a infra-estrutura

    ciclpica necessria converso do Brasil no maior produtor e exportador de minrio de ferro

    do mundo. essa infra-estrutura especfica, o complexo mina-ferrovia-porto da ento

    Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), um objeto econmico pleno, que transforma a

    estrutura social oriental amaznica e define um metacampo sdero-logstico regional. Este

    objeto econmico condiciona assim, os limites da ao e a dinmica das relaes entre os

    agentes inclusive aqueles (agentes e relaes) que precedem a sua criao.

    No caso do territrio sdero-logstico do Rio de Janeiro, processos de urbanizao e

    industrializao prvios, em ordem de importncia, configuraram uma estrutura social sui

    generis no Brasil, no completamente urbana em espaos especficos do territrio estadual.

    Mesmo a Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), seu espao mais urbano e

    industrial, conserva algumas ilhas semi-urbanas, tais como Itagua. Aqui, a Companhia

    Siderrgica Nacional (CSN), enquanto firma estatal, atuou de forma anloga da mineradora

    Vale, no sentido de que promoveu a mudana social estrutural e recomps o metacampo

    regional a partir de Volta Redonda um distrito de Barra Mansa at 1954.

    Novamente, verifica-se no Rio de Janeiro, mais propriamente em Itagua, a

    implantao de uma usina siderrgica, imediatamente a maior da Amrica Latina.

    Diferentemente, no entanto, o territrio em que se instala semi-urbano e no mais rural

    como Barra Mansa em 1946, mas os processos de transformao social e recomposio das

    relaes entre agentes apresentam similaridades fundamentais. Aqui, em 2010, o capital

    industrial-financeiro que desempenha o papel outrora atribudo ao Estado.

  • 14

    tambm necessrio ressaltar que os processos de desenvolvimento econmico dos

    territrios sdero-logsticos do Rio de Janeiro e da Amaznia Oriental so apreendidos sob um

    contexto de desintegrao geogrfica e integrao funcional da produo siderrgica. Nesse

    sentido, uma abordagem em termos de redes de produo globais (RPGs) necessria de

    modo a compreender algumas das determinaes estruturais dos eventos que so aqui

    definidos como prototpicos. Dessa forma, atravs das motivaes e formas de ao de

    firmas e grupos econmicos concretos que fatos ou acontecimentos exgenos gigantescos,

    como a implantao dos grandes projetos industriais em territrios de tipo greenfield

    (SANTOS, 2006a), como Itagua, ou sem qualquer tradio em siderurgia, como So Lus,

    que o estudo do potencial transformador do evento econmico tem incio.

    Na realidade, estas motivaes e formas de ao, com nfase na descentralizao

    concentrada (DICKEN, 2007) e em processos de financeirizao22 (FROUD et al., 2000) do

    origem, no Brasil, a um formato especfico da transnacionalizao siderrgica: a de

    greenfields costeiros low-tech. Alm de uma perspectiva estrutural acerca da operao de

    processos econmicos transnacionais, a abordagem das RPGs capaz de integrar

    potencialmente, os processos de valor, de poder e de compromisso que compem a

    transformao social e a redefinio do metacampo sdero-logstico em ambos os territrios.

    Isto porque adota tambm uma perspectiva relacional acerca das transformaes econmicas

    territoriais impulsionadas pelos referidos processos, fazendo emergir uma abordagem que

    integra os agentes no econmicos em sua formao e direcionamento. Nesse sentido, aponta

    22 Em setores econmicos maduros como o siderrgico, no qual as possibilidades de rupturas tecnolgicas e lucros extraordinrios so escassas, processos de captura de valor so determinantes nas estratgias empresariais. Nesse sentido, lgicas de financeirizaco (shareholders value) e de desmaterializao da produo se apresentam como cruciais.

  • 15

    para a superao da firma e do Estado23 como matrizes unitrias de fenmenos econmicos

    de grande monta, como o desenvolvimento.

    Nesse sentido, esta abordagem inegavelmente importante para este trabalho. No

    entanto, esta tese avana na pretenso da proposio da abordagem das RPGs de uma

    abordagem multi-agente e multi-relacional. Desse modo, assume como foco primordial a

    importncia da qual se investem os agentes e as relaes no econmicos na constituio da

    economia concreta, real. Assim, a anlise em termos de fenmenos economicamente

    relevantes e/ou condicionados assume precedncia sobre a dos fatos econmicos

    propriamente ditos.

    Weber enfatiza a importncia cultural especfica que engendra, em cada caso, um

    problema social24, econmico ou no. , no entanto, o interesse cognitivo, canalizado por esta

    hierarquia cultural da importncia das coisas, para aquelas relacionadas necessidade de

    satisfao humana, em detrimento de outras, que constituiria um problema de cincia social

    (WEBER, 2003: 19). Certamente, problemas sociais e problemas sociolgicos no se

    resumem25 ao fato bsico da satisfao das necessidades humanas.

    No entanto, este parece ser um bom caminho para desenvolver uma anlise

    sociolgica de problemas tradicionalmente considerados econmicos; para instituir uma

    sociologia econmica e do desenvolvimento independente da anlise econmica neoclssica

    23 Classicamente, a abordagem histrico-institucional sobre as funes estatais nos processos nacionais de desenvolvimento econmico (EVANS, 2004; GERSCHENKRON, 1962; HIRSCHMAN, 1961) ilumina de modo crucial um desses agentes-chave, o Estado. 24 A noo de problema social assume aqui, o sentido genrico de um fenmeno cultural relevante. O conceito de social ser utilizado frente, para definir uma subcategoria englobada pelos fenmenos culturais, em conjunto com os fenmenos econmicos e polticos. 25 Obviamente, supor que a posio de Weber acerca do objeto prprio da Sociologia se reduz aos fenmenos relacionados vida econmica ignorar a importncia que o autor atribui, por exemplo, poltica e ideologia na formao dos fenmenos sociolgicos. Weber trata aqui, no mbito da luta entre as tradies historicista alem na qual se insere, e psicolgica austraca no campo econmico, de ressaltar a dimenso cultural de toda ao humana, rejeitando o estruturalismo matemtico e a-histrico institudo pela revoluo marginalista.

  • 16

    (marginalista) e de seus fundamentos psico-estruturalistas26. Interessa discutir as coisas

    econmicas em funo dos agentes que as instituem, por meio de suas relaes que as

    transformam, e dos impactos que exercem sobre essas (relaes) e aqueles (agentes). Importa

    discutir a economia atravs daqueles que a fazem concretamente. Nesse sentido, a tipologia

    dos fatos econmicos proposta por Weber esclarecedora. As coisas propriamente

    econmicas, as economicamente relevantes e as economicamente condicionadas fazem assim,

    parte do universo da satisfao humana (2003).

    Assim, opta-se por enfatizar os papis desempenhados por aqueles agentes aos quais o

    estabelecimento de contedos e formas de fenmenos econmicos complexos

    recorrentemente negado. Nesse sentido, esta tese busca promover os agentes sociais a uma

    posio de centralidade na discusso sobre o desenvolvimento econmico. Reconhecendo o

    carter propulsor da firma (em especial a firma transnacional) e do Estado no

    desenvolvimento econmico, afirma-se a relevncia analtica dos agentes polticos

    subnacionais e dos indivduos, grupos, organizaes e instituies sociais na constituio dos

    ambientes que o canalizam e mesmo, em alguns casos, o determinam.

    Nesse sentido, a propulso de processos desenvolvimentistas deve necessariamente,

    encontrar os elementos comburentes que iro aliment-los a um ponto em que os

    componentes de estabilidade da estrutura social predominem novamente sobre os de mudana

    na experincia cotidiana dos homens e mulheres de um dado territrio. Assim, a

    transformao que se produz, por exemplo, com o estmulo passagem de pescadores

    26 A chamada Nova Sociologia Econmica (NSE), epitomizada por Mark Granovetter e Richard Swedberg, a principal matriz terica contempornea na anlise sociolgica do fato econmico. No entanto, a crtica que este trabalho faz a este arcabouo terico centra-se no seu ecletismo incongruente. Apesar de grandemente apoiada na sociologia compreensiva weberiana, seu projeto intelectual complementar economia neoclssica, em detrimento de uma crtica profunda e necessria de seus fundamentos psico-estruturalistas. importncia atribuda pela NSE s relaes sociais e de suas redes como constitutivas da ao econmica aqui, substituda pela concepo de que as relaes (e no mais aes) econmicas so um subtipo de relaes culturais mais gerais, que lhes conferem significado e sentido prprios. Nesse sentido, rejeita-se, sobretudo o individualismo metodolgico comum economia neoclssica e NSE, em favor de uma abordagem relacional explcita.

  • 17

    artesanais, ribeirinhos, quilombolas, indgenas condio de trabalhadores assalariados ou

    desempregados urbanos o combustvel que alimenta a implantao de greenfields costeiros

    low-tech em Itagua e em So Lus. O transtorno individual e cultural que esta transformao

    implica deve-se, portanto, duplamente, incapacidade de reproduo intergeracional e de

    converso imediata de contingentes humanos significativos.

    Ademais, a atribuio de um papel exclusivo de agentes e relaes economicamente

    condicionadas a estes indivduos, grupos, organizaes e instituies pouco condizente

    realidade. Os papis que efetivamente so desempenhados quando da evidncia de processos

    de mudana social estrutural demonstram que estes sujeitos se rebelam, e podem influenciar

    decisivamente as motivaes e aes dos agentes propulsores do desenvolvimento

    econmico. Nesse sentido, embora geralmente dotados de estoques menos abundantes e

    menos capazes de mobilizar importantes formas de capital (BOURDIEU, 2003), em contextos

    especficos, alguns destes agentes e grupos pem em xeque fenmenos culturais complexos

    como a converso de reas rurais de uso comum em espaos industriais para a instalao de

    complexos siderrgicos, como em So Lus.

    Dessa forma, ao menos potencialmente, agentes no econmicos so capazes de

    mobilizar as formas simblica, social e poltica do capital no sentido da interpretao do fato

    ou acontecimento econmico e de sua converso em uma ameaa decisiva reproduo seja

    das formas de vida e trabalho tradicionais, seja das formas de vida e trabalho urbanas das

    camadas mdias. Isto , estes grupos de agentes so capazes de transformar o acontecimento

    em evento atravs da relao que estabelecem entre o fato bsico da deciso econmica da

    firma e/ou poltica do Estado com a sua prpria reproduo social, projetada em uma imagem

    de risco da transformao da estrutura como um todo.

    Embora o fato e o evento ou fenmeno econmicos sejam elementos-chave do

    entendimento da economia real, pois que significativos, a relao que os institui, transforma e

  • 18

    se transforma por meio deles, de igual importncia. To relevante quanto a deciso de

    implantar uma usina de tipo mini mill em Resende, Rio de Janeiro, a matriz das relaes

    entre agentes econmicos, como a Votorantim Siderurgia S.A. (VS), e no econmicos, por

    exemplo, as secretarias municipais de desenvolvimento e meio ambiente e associaes de

    moradores, que assume preeminncia nesta anlise.

    Nesse sentido, agentes no econmicos decisivos nestes dois territrios sdero-

    logsticos a Igreja Catlica, os sindicatos de trabalhadores metalrgicos, os movimentos

    scio-ambientais, as populaes tradicionais, as representaes empresariais regionais e

    locais, etc. so decisivos para a configurao das relaes de poder, de valor e de

    compromisso em contextos especficos. A noo de enraizamento do modelo das RPGs,

    particularmente a proposta por Hess (2004), decisiva no entendimento de que os agentes e

    as redes de relaes sociopolticas (SANTOS, 2007; 2006a; RAMALHO, 2006) impactam

    decisivamente sobre aes e relaes econmicas de grande importncia.

    Neste ponto, parece necessrio discorrer sobre a distino prvia dos agentes entre

    sujeitos e objetos, e relacion-la tipologia weberiana do objeto sociolgico. Far-se- uso das

    premissas histrico-cultural e socioantropolgica da economia e deseconomia das coisas que

    so adotadas neste trabalho. De acordo com elas, os limites entre sujeitos e objetos

    econmicos so cognitivamente parciais e mutveis. impossvel essencializar o agente, seja

    ele econmico ou no econmico. De um lado, tecnologias tipicamente definidas como

    objetos, como o Forno Eltrico a Arco (EAF), agem no sentido de transformar o padro de

    qualificao da fora de trabalho siderrgica, a forma de interao com a natureza e a

    possibilidade de criao e captura de valor (COE et al., 2004) em um territrio especfico, por

    exemplo. Desse modo, a simples transformao de um padro tecnolgico, da usina

    siderrgica integrada, baseada em coque, para a semi-integrada operada por energia eltrica,

  • 19

    constitui uma forma de agncia, pois que institui e transforma relaes econmicas, polticas e

    sociais preexistentes.

    Por sua vez, indivduos, grupos, organizaes e instituies, tipicamente concebidos

    como sujeitos, em virtude de aes e decises econmicas extralocais, por exemplo, os planos

    de enxugamento da fora de trabalho, como o que atravessou a CSN e o municpio de Volta

    Redonda, entre 1989 e 1993, previamente a sua privatizao, convertem-se em objetos. Isto ,

    a agncia prpria dos metalrgicos e de suas instituies de representao e defesa foi

    bloqueada temporariamente. Nesse sentido, um evento (SAHLINS, 1990) externo especfico,

    como o que obstou a agncia de organizaes como o Sindicato dos Metalrgicos de Volta

    Redonda, abre, no entanto, possibilidades de agncia individual e de grupo27, assim como

    outras frentes de luta por poder. Nesse ltimo caso, a ascenso do presidente deste sindicato

    prefeitura de Volta Redonda em 1989 fora sintomtica. Em funo do bloqueio da agncia

    sindical, o locus da representao trabalhista deslocou-se da relao trabalhador-firma para a

    relao cidado-cidade. Do campo econmico da firma ao campo poltico do municpio

    (BOURDIEU, 2003).

    Sujeitos e objetos tipicamente econmicos, por exemplo, os Chief Executive Officers

    (CEOs) de firmas transnacionais (indivduo28), os departamentos ou setores intra-firma

    (grupo), a prpria firma (organizao) e o padro de terceirizao de servios (instituio),

    27 Um contingente de cerca de 8.000 (24.000 ao total) trabalhadores fora dispensado nestes quatro anos de enxugamento. Suas estratgias individuais e grupais de reconverso profissional, por exemplo, so construdas a partir do obstculo do evento externo. Assim, trabalhadores e associaes de representao profissional so, duplamente, sujeitos e objetos. So, por isso mesmo, economicamente relevantes e condicionados, visto que se relacionam necessidade da satisfao humana. 28 curioso o fato que, na literatura acadmica, referncias a indivduos econmicos sejam virtualmente inexistentes, em face da abundncia de menes a grupos, organizaes e instituies econmicas. Aparentemente, a totalidade concreta de uma personalidade individual resistente reduo intelectual que permite considerar, por exemplo, uma pessoa jurdica, objetivamente, como uma organizao econmica e, portanto, determinada a priori por fins exclusivamente econmicos (reificao). Em realidade, ambas as pessoas, fsica e jurdica, tanto quanto grupos de interesse e instituies, so irredutveis a quaisquer motivaes nicas, sejam elas o prestgio ou o lucro. Apoiando-se em Weber, novamente, o interesse cientfico, guiado por significados culturais atribudos subjetiva e objetivamente, que conferem a aura de econmico a fenmenos essencialmente complexos. As coisas so, dessa forma, mais reais porque apresentam mais propriedades do que os significados que lhes so atribudos. (SAHLINS, 1990: 09)

  • 20

    dentre outros, assumem tambm feies polticas e sociais. Relaes de poder e de

    compromisso, para alm dos processos relacionados ao valor, os definem tambm como

    agentes sociopolticos. Por exemplo, firmas estabelecem relaes de prestao de servios

    e/ou de subsidiaridade a transnacionais siderrgicas em funo de motivaes diferentes das

    relacionadas ao lucro, como a fidelizao e a submisso a um cliente ncora e/ou o acesso a

    mercados dificilmente alcanveis.

    O exemplo da Ferro Gusa Carajs (FGC), produtora independente de ferro gusa e

    subsidiria integral da Vale, demonstra, dentre outras questes, a importncia do valor

    simblico na formao do valor econmico (entendido como valor de mercado em suas

    facetas operacional e financeira). A necessidade de justificao moral (BOLTANSKI;

    CHIAPELLO, 2009) da produo siderrgica primria na Amaznia Oriental impacta

    decisivamente, nas decises de operao e investimento da firma regional ncora, a Vale, e

    sua controlada, a FGC. Nesse sentido, o agente propulsor da mudana social estrutural busca

    reagir e responder s presses polticas e sociais que emanam das relaes e agentes no

    econmicos no ambiente transformado.

    De outro lado, indivduos, grupos, organizaes e instituies no econmicas, isto ,

    no concebidas em funo de uma motivao econmica dominante, importam, em uma

    variedade de situaes concretas. Camadas mdias urbanas e sua preocupao contempornea

    com os efeitos socioambientais de empreendimentos industriais constituem coalizes anti-

    desenvolvimentistas29 (NEL; MARAIS; GIBB, 2004), por sua vez capazes de influenciar

    decises empresariais de operao e, mesmo de investimento. Dessa forma operam tambm,

    agentes duplamente organizacionais e institucionais, como a Igreja Catlica, e grupos de

    interesse organizacionalmente constitudos com vistas representao de categorias

    29 Esta noo cunhada aqui, para opor-se ao conceito tradicional de coalizo desenvolvimentista. Na realidade, o primeiro seria uma noo negativa, que englobaria uma variedade de agentes, defendendo posies propriamente anti-desenvolvimentistas, scio-preservacionistas e ambientalistas, dentre outras.

  • 21

    profissionais e populaes tradicionais, como pescadores artesanais, agricultores familiares,

    metalrgicos, grupos indgenas e quilombolas, etc.

    Nesse sentido, um conjunto variado de sujeitos e objetos no econmicos so

    heuristicamente relevantes porque importam para uma melhor compreenso de configuraes

    concretas de relaes econmicas. Eles so, em termos weberianos, economicamente

    relevantes (WEBER, 2003). Estas relaes no podem ser concebidas seja como unvocas ou

    mesmo dominantes em situaes especficas. Para os propsitos deste trabalho, relaes

    econmicas, polticas e sociais constituiriam as unidades bsicas da interao em totalidades

    culturais concretas: indivduos, grupos, organizaes e instituies.

    Certamente, este conjunto vasto de sujeitos e objetos no econmicos so, por sua vez,

    impactados pelas coisas econmicas propriamente ditas, assim como pelas relaes que

    estabelecem com estas. Desse modo, motivaes originalmente no econmicas por

    exemplo, a preservao de biomas frgeis, como o mangue , convertem-se em suas

    contrapartes econmicas demandas por indenizao individual a pescadores artesanais. Do

    mesmo modo, indivduos agregam-se e desprendem-se de grupos e organizaes;

    organizaes surgem e/ou renovam-se, enquanto outras perdem relevncia e/ou so

    dissolvidas; instituies mantm a aparncia, mas experimentam a transformao de seus

    contedos; etc. Tudo isto em face da ao exercida por coisas econmicas e/ou atravs da

    mera interao com elas. Nesse sentido, tais coisas no econmicas podem ser definidas como

    fenmenos economicamente condicionados (WEBER, 2003).

    1.3. Diviso da Tese em Captulos

    Assim, alm desta introduo, esta tese composta de 4 captulos. O primeiro deles

    descreve a abordagem das redes de produo globais (RPGs), relacionando este modelo

  • 22

    analtico aos seus predecessores. Em particular, analisada a abordagem das cadeias globais

    de commodities (CGCs). Aqui, relaes de valor, de poder e de compromisso so os pontos

    cruciais do entendimento dos processos econmicos centrados na localizao de firmas

    transnacionais em territrios especficos.

    No segundo captulo, toma-se para anlise a escala global da produo siderrgica e

    sua organizao no formato de redes, articulando agentes e influenciando relaes em

    territrios descontnuos. D-se especial nfase ao processo de encadeamento e luta entre

    atividades econmicas que tem na siderurgia seu ponto de partida (indstrias de bens de

    consumo) e de chegada (minerao), de modo a compreender a centralidade deste setor nos

    processos de formao de valor. A esse respeito, aponta-se um processo especfico de

    financeirizao deste ncleo de firmas criadoras de valor siderrgicas e mineradoras, pondo

    em xeque o processo mesmo de criao de riqueza.

    O terceiro captulo esboa alguns dos nodos mais importantes das redes de produo

    siderrgica globais na Amaznia Oriental. Neste territrio especfico, a construo social da

    economia e da deseconomia das coisas permanece aberta. Sujeitos e objetos, neste territrio,

    comparativamente ao do Rio de Janeiro, no passaram pelos processos de comodificao

    capazes de lhes atribuir um sentido econmico dominante. Nesse sentido, a importncia social

    e econmica dos parques guseiros da Amaznia Oriental se expressa atravs do processo de

    converso da natureza, da terra e do trabalho em mercadorias.

    A dimenso da transformao territorial promovida pela siderurgia, em geral,

    manifesta por algum grau de comodificao de recursos naturais, como ecossistemas

    marinhos (mangue) e as terras de uso comum; da reconverso profissional ou migrao, na

    formao de uma fora de trabalho industrial especfica siderurgia. Particularmente no que

    concerne natureza, processos de disputa em torno dos direitos consuetudinrios de uso da

  • 23

    Baa de Sepetiba e dos recorrentes acidentes poluentes da CSN no Rio Paraba do Sul

    demonstram simultaneamente a deseconomia e a relevncia econmica da natureza.

    Na Amaznia Oriental, no entanto, processos de comodificao prvios, necessrios

    formao dos mercados de insumos (de trabalho no segmento de carvoejamento e de carvo

    vegetal), transformam qualitativamente a economia e a deseconomia das coisas. O fato

    fundamental da incompletude do processo de comodificao da natureza principalmente, e

    por conseqncia, da terra e do trabalho, na Amaznia Oriental influencia decisivamente o

    modo como operam a economia e a deseconomia das coisas neste espao. Em particular, este

    fato bsico fundamenta contemporaneamente o modo como se do as relaes de valor, de

    poder e de compromisso. Na Amaznia Oriental, o evento cultural prototpico

    completamente subvertido por esse fato, de modo que a deseconomizao das coisas

    econmicas expresso da correlao de valor, poder e compromisso entre os agentes

    econmicos e no econmicos envolvidos no metacampo sdero-logstico.

    O quarto captulo apresenta o caso da regio sdero-logstica do Rio de Janeiro. Dadas

    as caractersticas de urbanizao e industrializao mais antigas deste espao, so notveis

    algumas das similaridades que apresenta em relao Amaznia Oriental. O processo

    histrico de formao da conurbao Volta Redonda-Barra Mansa, em termos da

    transformao social que representou dependeu fortemente da comodificao do trabalho de

    um enorme contingente populacional migrante, de origem rural e nordestina, como o que

    alimentou a criao do complexo mina-ferrovia-porto da Vale. No entanto, a comodificao

    da natureza e da terra neste espao fora completada pelo menos dois sculos antes, com o

    auge do ciclo cafeicultor.

    Nesse sentido, o desenvolvimento econmico deste espao assumiu a forma precisa de

    desenvolvimento industrial, enquanto a Amaznia Oriental vem experimentando desde a

    dcada de 1970, um processo mais bem caracterizado como de desenvolvimento capitalista

  • 24

    isto , de introduo do capitalismo via capital industrial. No territrio sdero-logstico

    fluminense, por outro lado, o processo de substituio do capital agrrio pelo capital

    industrial em seu processo de evoluo econmica. No por acaso, os principais trabalhos

    socioantropolgicos acerca da CSN e do operariado regional enfatizam os aspectos ficionais

    da produo de uma classe trabalhadora urbano-industrial. Este certamente o aspecto

    decisivo do desenvolvimento do territrio sdero-logstico sul fluminense no perodo 1946-

    1989.

    Dessa forma, a implantao da Companhia Siderrgica do Atlntico (TKCSA) em

    Itagua prov um exemplo intermedirio entre a comodificao completa provocada pelo

    Complexo de Carajs e a comodificao parcial demandada pela CSN. Se a construo social

    de uma classe trabalhadora urbana e industrial em Itagua pde se beneficiar das

    aglomeraes urbanas da Zona Oeste do Rio de Janeiro, em particular, e das regies

    Metropolitana e Sul Fluminense, por que ento o processo migratrio dos estados nordestinos

    tem se apresentado de forma to impressionante neste espao? Do mesmo modo, se os

    processos de concentrao fundiria e comodificao da terra so prvios deciso de

    investimento da ThyssenKrupp, no menos verdadeiro que a expanso da especulao

    imobiliria no municpio seja espetacular, assim como a prpria TKCSA tenha enfrentado

    uma situao de ocupao do terreno da planta pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais

    Sem Terra (MST).

    No entanto, de especial importncia a comodificao da natureza expressa na

    incorporao logstico-produtiva da Baa de Sepetiba. Neste espao, diferentemente da

    Amaznia Oriental, a incorporao da natureza em redes de produo globais no provoca a

    criao de mercados em substituio e em paralelo s formas tradicionais de satisfao de

    necessidades humanas. Em Itagua, a substituio simples da produo artesanal de

    pescado siderurgia integrada. De modo que, embora quaisquer das transies apresentadas

  • 25

    sejam profunda e dolorosamente traumticas, a que se processa em Itagua oferece opes

    mais estritas de confronto entre os agentes que vem ameaada sua reproduo fsica e social:

    assimilao ou resistncia.

    Dessa forma, o movimento que vai do primeiro ao ltimo captulo descreve uma

    trajetria abstrato-concreta, iniciando com a descrio e discusso de uma matriz terica

    capaz de explicitar alguns condicionantes estruturais da transnacionalizao da siderurgia: as

    redes de produo globais ou RPGs. No segundo, fragmentos das diversas redes de produo

    siderrgica globais so discutidos em maior detalhe, buscando integrar algumas das principais

    tendncias da operao da siderurgia transnacional e seu encadeamento com outras atividades

    econmicas fundamentais.

    No terceiro e quarto captulos, que so fundamentados mais diretamente no trabalho

    de campo necessrio confeco desta tese, os modos como as diversas redes se materializam

    nos territrios sdero-logsticos da Amaznia Oriental e do Rio de Janeiro so explorados em

    detalhe. Ademais, o que est em foco, fundamentalmente, como essas redes econmicas

    so, na prtica (em contextos concretos), invadidas por agentes exgenos (sujeitos e objetos),

    isto , no econmicos. De modo que, seu contedo e formato so expressos primariamente,

    nas transformaes estruturais das totalidades culturais territoriais que lhes precedem e dos

    metacampos sdero-logsticos que so inaugurados pelos eventos econmicos que

    representam.

    1.4. Metodologia

    A seleo das duas reas de abrangncia da pesquisa foi motivada pela participao do

    autor no projeto Amaznia e Paradigmas de Desenvolvimento no mbito do Programa

    Nacional de Cooperao Acadmica (PROCAD) da Coordenao de Aperfeioamento de

  • 26

    Pessoal de Nvel Superior (CAPES). De 2006 a 2009, a colaborao entre o Programa de Ps-

    Graduao em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro (UFRJ) e o Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais (PPGCS) da

    Universidade Federal do Maranho (UFMA) quanto anlise da implantao e operao dos

    chamados grandes projetos (CASTRO, 1995)5 na Amaznia Oriental produziu ento, um

    acmulo considervel de material terico e emprico sobre este territrio.

    Nesse sentido, a primeira visita exploratria ao Maranho, em janeiro de 2007,

    permitiu ao autor construir uma reflexo terica inicial que fundamentou um projeto30 de

    pesquisa comparativo entre a Amaznia Oriental e o Rio de Janeiro. No caso, o estado do Rio

    de Janeiro em particular, a mesorregio Sul Fluminense deste estado, vem sendo o objeto do

    Grupo de Pesquisa Trabalho, Sindicato e Desenvolvimento, liderado pelo Prof. Dr. Jos

    Ricardo Ramalho, desde, pelo menos, a implantao de um plo automotivo naquela regio

    em meados dos anos 1990.

    Esta regio, marcada primordialmente, pela transformao estrutural promovida pela

    criao da CSN, em Volta Redonda, em 1946, constituindo ento, o maior centro siderrgico

    da Amrica Latina, fora definida a partir da dcada de 1990, como um territrio estratgico

    por algumas das novas plantas automobilsticas que buscavam ingressar no mercado nacional.

    Assim, alm da Volkswagen, implantada em Resende em 1995, a Peugeot-Citren se instalou

    em Porto Real no ano de 2000.

    30 O projeto de pesquisa A Forja de Vulcano: Siderurgia e Desenvolvimento na Amaznia Oriental e no Rio de Janeiro foi qualificado perante banca composta pelo professor-orientador Dr. Jos Ricardo Ramalho (PPGSA-UFRJ) e pelos professores Dra. Isabel Cristina da Costa Cardoso (UERJ) e Dr. Jorge Natal (IPPUR-UFRJ) em 2008. Este projeto deu origem tambm, ao projeto de pesquisa apresentado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) e contemplado com a bolsa de pesquisa para o Doutorado Sandwich por um ano, na Cardiff University, Pas de Gales.

  • 27

    A definio deste territrio como espao sdero-logstico31 depende, no entanto, do

    encadeamento produtivo que os principais centros industriais da mesorregio Sul Fluminense

    (Volta Redonda, Resende, Barra Mansa e Porto Real) estabelecem com os centros logsticos

    de Angra dos Reis e, sobretudo, de Itagua e do municpio-sede. Considera-se assim, a

    importncia decisiva da infra-estrutura ferro-porturia para a operao das seguintes usinas

    siderrgicas: Gerdau Aos Longos S.A. (Gerdau Cosigua); Usina Presidente Vargas (UPV),

    de propriedade da Companhia Siderrgica Nacional S.A. (CSN); Companhia Siderrgica do

    Atlntico S.A. (TKCSA); e Usina Barra Mansa (SBM)32 e Usina Resende (SR), controladas

    pela Votorantim Siderurgia S.A. (VS).

    Nesse sentido, em detrimento de uma avaliao global do estado do Rio de Janeiro,

    optou-se por delimitar, operacionalmente, este territrio sdero-logstico a dois eixos: de um

    lado, os municpios de Volta Redonda, Barra Mansa e Resende; e, de outro, o de Itagua e o

    prprio municpio-sede.33 Por proximidade e caractersticas de conurbao e industrializao,

    o primeiro eixo pode ser tratado como um territrio integrado, com rede urbana bem

    desenvolvida e concentrao de produto e renda elevada.

    O segundo, por sua vez, apresenta caractersticas complementares. Toma-se como

    referncia para a anlise, apenas uma parte do municpio-sede, sua Zona Oeste, altamente

    urbanizada. Itagua, por outro lado, constitui um territrio semi-urbano, sobre o qual se

    projetam interesses econmicos e polticos que transcendem a escala local. Ambos, Zona

    Oeste do Rio de Janeiro e Itagua assim como os espaos semi-urbanos adjacentes e

    31 Nesse sentido, a noo de territrio sdero-logstico simultaneamente, ampla de modo a dar conta dos principais fluxos materiais e imateriais que envolvem a produo siderrgica. 32 Ambas as siglas, SBM e SR, se referem a Siderrgica Barra Mansa e Siderrgica Resende, que como a mdia especializada e a prpria VS as nomeiam. No entanto, as denominaes apresentadas acima so baseadas em seus nomes-fantasia oficiais. 33 Essa definio explicitamente exclui os movimentos recentes em torno da construo do Porto do Au, em So Joo da Barra, Norte Fluminense; de um mineroduto, ligando Minas Gerais a este municpio; e de um projeto siderrgico, associado firma chinesa Wuhan Iron & Steel (Wisco). Esses trs investimentos so diretamente relacionados ao empresrio Eike Batista e prometem alterar o panorama da siderurgia no estado e no Brasil e, sobretudo, promover uma transformao estrutural ainda maior do que a que se verifica em Itagua.

  • 28

    suplementares de Mangaratiba e Angra dos Reis esto unidos por caractersticas de

    renda/produto elevadas e pobreza extrema. Nesse sentido, demonstram uma dissociao

    profunda entre industrializao e urbanizao.

    So particularmente relevantes aqui, os municpios de Volta Redonda, que conta com

    a presena, desde 1946, da CSN, primeira siderrgica integrada nacional; e o de Itagua, pelas

    caractersticas concentradoras de carga de seu porto e pelos projetos siderrgicos, tambm

    integrados, recentes: TKCSA (joint venture da ThyssenKrupp e Vale)34 e CSN. Ademais,

    deve-se enfocar Resende pelas caractersticas inovadoras, para a regio e atpicas

    nacionalmente, de sua usina semi-integrada (mini mill), baseada em aciaria eltrica.

    No so poucas as diferenas que a Amaznia Oriental guarda em relao ao Rio de

    Janeiro. Na Amaznia Oriental, o territrio ou complexo sdero-logstico atravessa dois

    estados da federao, o Par e o Maranho. Alm disso, diferentemente da predominncia

    cultural em geral, e do peso econmico, em particular, que desfruta a indstria siderrgica no

    Rio de Janeiro, no complexo oriental amaznico a minerao de ferro que imprime uma

    marca dominante sobre as relaes econmicas, polticas e sociais territoriais, redefinindo sua

    estrutura social. Concorre para essa predominncia da minerao o fato de a siderurgia

    implantada neste territrio possuir uma estrutura produtiva (HENDERSON et al., 2002)

    inteiramente diferente sub-integrada, por assim dizer em relao industria integrada

    coque. O parque siderrgico da Amaznia Oriental se encontra atualmente composto de 18

    34 Na verdade, a TKCSA se encontra em operao no Distrito Industrial de Santa Cruz, Rio de Janeiro. No obstante as decisivas implicaes tributrias que a relacionam a este municpio, a TKCSA opera, de fato, no territrio de Itagua no sentido de que este municpio constitui a base real de algumas de suas principais decises operacionais. Por exemplo, sua poltica de contratao de mo-de-obra, com claras implicaes para o processo migratrio e para a rede urbana municipal; e sua poltica ambiental (ou ausncia de uma), de modo que seus principais interlocutores e opositores so as associaes de pescadores e/ou agricultores artesanais sediados em Itagua; dentre outras.

  • 29

    produtores independentes de ferro gusa (cf. Anexo, Tabela 3), e apenas um produtor

    integrado.35

    Esses trs principais elementos, organizao interestadual, eixo minerrio e estrutura

    produtiva desintegrada, dentre outros, aparentemente solapam quaisquer possibilidades de

    uma anlise comparativa entre os dois territrios. No entanto, para alm de uma anlise

    comparativa entre territrios similares ou comparveis, o que se busca com essa tese

    elaborar um esboo de modelo de anlise socioantropolgica do desenvolvimento econmico.

    Nesse sentido, as dessemelhanas profundas entre as respectivas formaes culturais dos

    territrios sdero-logsticos da Amaznia Oriental e do Rio de Janeiro no escondem algumas

    propriedades essenciais de processos concretos de desenvolvimento econmico.

    Assim, busca-se avaliar em que medida estes territrios especficos ilustram processos

    de transformao social estrutural e que importncia possuem, para cada um, as relaes que

    indivduos, grupos, organizaes e instituies estabelecem a partir da emergncia de um

    evento cultural total, como a implantao de uma usina siderrgica. No limite, todo e qualquer

    territrio, como unidade emprica, possui dessemelhanas estruturais. O que se postula, no

    entanto, nesta tese, que os fenmenos culturais associados produo siderrgica em ambos

    os territrios assumiram a feio