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16 ANO V / Nº 9 partir do reconhecimento e proteção pela Unesco de paisagens culturais, abriu-se a possibilidade de exame mais detalhado do sentido presencial e intangível do patrimônio cultural. Inicialmente, o recorte não foi pensado para tratar de áreas urbanas, mas para as diferentes combinações de natureza e cultura que resultam em cenários especiais, frutos da interação entre natureza e homem, facilmente identificáveis vi- sualmente por muitos e muitos habitantes deste incansá- vel e generoso planeta que habitamos. Paisagens que so- freram um processo de culturalização de sua imagem, transformando-as em ícones, demonstrativos da evolu- ção das sociedades ao longo do tempo, sob a influência das condições do meio ambiente que as contém, numa relação muitas vezes demonstrativa de uma utilização dos recursos naturais feita de maneira sustentável. Es- tão incluídos nesta categoria e já reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade, por exemplo, os campos de plantio de arroz das Cordilheiras Filipinas, o Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta ou Ayre’s Rock na Austrália, indissociável da cultura dos aborígenes, a Cos- ta Amalfitana na Itália, com suas cidades que se derra- mam na direção do mar, e outras mais evidentes, como os jardins criados intencionalmente pelo homem, por razões estéticas, como a Paisagem Cultural de Lednice- Valtice na República Tcheca. Todos esses locais têm re- tratos que, além de apresentarem atributos paisagísticos notáveis, únicos mesmo, trazem associados à imagem São Sebastião do Rio de Janeiro outros aspectos de natureza intangível, provenientes da cultura dos povos que habitam essas paisagens. Uma mente mais imaginativa pode sentir o aroma do limão numa representação da Costa Amalfitana, ou ouvir os ritmos aborígenes provenientes de uma celebração ao sopé do Uluru-Kata Tjuta. A Cidade Maravilhosa de São Sebastião do Rio de Janeiro é uma paisagem cultural por definição e enqua- drável em qualquer das categorias definidas pela Unesco. É de valor único não apenas para os brasileiros mas para toda a humanidade. Em primeiro lugar, tem-se o sítio natural de formação da cidade, a estupenda e única com- binação de costões rochosos de escarpas verticais que mergulham no mar e montanhas recobertas por vege- tação exuberante, formando o pano de fundo da baía fechada, acolhedora e protetora dos que ali procuraram abrigo ao longo do tempo. Ou, nas palavras do Professor Aziz Nacir Ab’Saber: “No extenso litoral brasileiro, o grande destaque, em termos de cenários e beleza natural, fica para a Baía da Guanabara e seu entorno. Sobre o seu caráter de paisagem Thays Pessotto de Mendonça Zugliani A 16 ANO V / Nº 9

São Sebastião do Rio de Janeiro - FUNCEB - Fundação ... · de paisagens culturais, ... mas para as diferentes combinações de natureza e cultura ... Estácio de Sá fundou a

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16 ANO V / Nº 9

partir do reconhecimento e proteção pela Unesco

de paisagens culturais, abriu-se a possibilidade

de exame mais detalhado do sentido presencial e

intangível do patrimônio cultural. Inicialmente,

o recorte não foi pensado para tratar de áreas urbanas,

mas para as diferentes combinações de natureza e cultura

que resultam em cenários especiais, frutos da interação

entre natureza e homem, facilmente identificáveis vi-

sualmente por muitos e muitos habitantes deste incansá-

vel e generoso planeta que habitamos. Paisagens que so-

freram um processo de culturalização de sua imagem,

transformando-as em ícones, demonstrativos da evolu-

ção das sociedades ao longo do tempo, sob a influência

das condições do meio ambiente que as contém, numa

relação muitas vezes demonstrativa de uma utilização

dos recursos naturais feita de maneira sustentável. Es-

tão incluídos nesta categoria e já reconhecidos como

patrimônio cultural da humanidade, por exemplo, os

campos de plantio de arroz das Cordilheiras Filipinas,

o Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta ou Ayre’s Rock na

Austrália, indissociável da cultura dos aborígenes, a Cos-

ta Amalfitana na Itália, com suas cidades que se derra-

mam na direção do mar, e outras mais evidentes, como

os jardins criados intencionalmente pelo homem, por

razões estéticas, como a Paisagem Cultural de Lednice-

Valtice na República Tcheca. Todos esses locais têm re-

tratos que, além de apresentarem atributos paisagísticos

notáveis, únicos mesmo, trazem associados à imagem

São Sebastião doRio de Janeiro

outros aspectos de natureza intangível, provenientes da

cultura dos povos que habitam essas paisagens. Uma

mente mais imaginativa pode sentir o aroma do limão

numa representação da Costa Amalfitana, ou ouvir os

ritmos aborígenes provenientes de uma celebração ao

sopé do Uluru-Kata Tjuta.

A Cidade Maravilhosa de São Sebastião do Rio de

Janeiro é uma paisagem cultural por definição e enqua-

drável em qualquer das categorias definidas pela Unesco.

É de valor único não apenas para os brasileiros mas para

toda a humanidade. Em primeiro lugar, tem-se o sítio

natural de formação da cidade, a estupenda e única com-

binação de costões rochosos de escarpas verticais que

mergulham no mar e montanhas recobertas por vege-

tação exuberante, formando o pano de fundo da baía

fechada, acolhedora e protetora dos que ali procuraram

abrigo ao longo do tempo. Ou, nas palavras do Professor

Aziz Nacir Ab’Saber:

“No extenso litoral brasileiro, o grande destaque, em

termos de cenários e beleza natural, fica para a Baía da

Guanabara e seu entorno. Sobre o seu caráter de paisagem

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Thays Pessotto de Mendonça Zugliani

A

16 ANO V / Nº 9

17ANO V / Nº 9

de exceção, sempre existiu grande consenso entre viajantes

naturalistas e turistas eventuais. Nesse sentido, é possível

afirmar que a diversidade de suas formas de relevo – sua

compartimentação topográfica e hidrológica, completada

por um revestimento vegetal de marcante tropicalidade –

constitui uma das combinações de heranças da natureza,

de máxima excepcionalidade na face da Terra. Vale dizer,

no contexto do ‘planeta vivente’ por excelência.”

Permeando esses tecidos, temos a cidade com o mé-

rito de ter-se restringido ao insterstício entre mar e mon-

tanha florestada, guardando ao longo dos anos um equi-

líbrio de proporções entre mar, cidade e floresta urbana,

compondo uma cenografia única. A imagem dessa com-

binação peculiar está gravada na memória de quase to-

dos os habitantes do mundo. Dependendo do momento

em que é retratada, acompanha a imagem uma trilha

sonora que vai desde o mais puro samba carioca, pas-

sando por Tom Jobim até Fausto Fawcet e outros poetas

modernos que falam de beleza e caos.

Talvez seja a ameaça dos caos, cada vez mais pre-

sente no cotidiano daqueles que habitam e adoram essa

cidade, que tenha motivado o esforço ainda em curso de

buscar-se o reconhecimento pelo mundo de todas as cer-

tezas que temos sobre essa porção de terreno que con-

tém o Rio. Existe por este viés a possibilidade de tratar-

mos cultura e patrimônio como recursos estratégicos,

capazes de propor fórmulas alternativas de desenvolvi-

mento, que tenham como protagonistas o território e

os valores culturais da sociedade. Podemos fazer uso

desta “Cena de Identidade”, como qualificou Milton San-

tos, para, a partir dela, compreendermos nossa trajetó-

ria e projetarmos o futuro que desejamos.

A partir do reconhecimento da paisagem como um

recurso, podemos, no caso do Rio de Janeiro, elencar cada

um dos valores associados a ela, que são muitos, razão

pela qual nos propomos a abordar aqui os principais. O

que pretendemos nesta reflexão sobre esse lugar tão es-

pecial – que nem todas as violências impostas pelos ho-

mens ao longo de quase quinhentos anos conseguiu des-

truir, roubar-lhe os encantos que teimam em parecer no-

vos a cada dia, de cada ponto observado, sempre diferen-

tes vistos sob cada luz do dia ou da noite – é observar a

17ANO V / Nº 9

Vista parcial da Baía de Guanabara,destacando-se o Corcovadoe o Morro do Pão de Açúcar.

FOTO: RIOTUR

18 ANO V / Nº 9

contribuição de cada elemento para a construção dessa

paisagem cultural, a história da cidade-capital, sua evo-

lução urbana, a preservação da floresta, a baía, os pontos

focais desse cenário reverenciado por todos como uma

das cidades mais lindas do mundo.

De início, a centralidade de seu porto, para a vigi-

lância da enorme costa portuguesa nas Américas, teve

papel fundamental na atribuição à cidade do papel de

capital da Colônia, tendo sido a principal razão da trans-

ferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro. Na

verdade, percebe-se nos retratos produzidos da cidade

em seu período colonial que a imagem de porto e praça

de comércio se sobrepõe à feição da natureza notável,

não havendo uma maior preocupação com a representa-

ção pormenorizada dos elementos naturais que compõem

o espaço no qual a cidade acontece. É a partir de 1808,

com a vinda da Família Real, que os muitos viajantes que

por ali passam ocupam-se de retratar a beleza cênica do

Rio, desenhando com cuidado os rochedos e morros in-

terligados ora pelo mar, ora pela luxuriante vegetação

tropical, entremeada esporadicamente pelas edificações

que começam a se adensar e a se sofisticar, de forma a

atender ao gosto não apenas da corte portuguesa mas

também dos muitos militares e diplomatas estrangeiros

que chegavam acompanhados de artistas que deviam re-

tratar a terra exótica e distante para a Europa. No Rio de

Janeiro, a cidade declarada Município Neutro da Corte

em 1834, o papel de cidade-capital vai se consolidando

após a invenção de uma unidade chamada Brasil, decla-

rado um reino independente, em 1822, estranhamente

pelo herdeiro do Trono português.

O valor histórico do Rio de Janeiro está ligado à sua

função como capital do País desde a Colônia, passando

pelo Império até a República, períodos de grandes trans-

formações econômicas e sociais do País, estando relacio-

nados a cada um deles períodos de renovações urbanas

na capital que vão pouco a pouco marcando o território,

produzindo um resultado no tecido urbano que é hoje

um somatório de tempos. Internacionalmente, o Porto

do Rio de Janeiro tem papel de destaque na comerciali-

zação de produtos tanto da exploração da Colônia, quan-

to da produção do Império e da República. A cidade teve

uma trajetória única e singular no contexto da formação

do Brasil. Desde os tempos de conquista e consolidação do

Império português na América tropical ao período pos-

terior do processo de formação da Nação brasileira, com a

independência política, o Rio de Janeiro exerceu uma cen-

tralidade decisiva para a construção das bases geopolíticas

do Brasil moderno. Capital do vice-reinado, corte impe-

rial e capital da República, a história da cidade se confun-

de com a história política e social do Brasil até a constru-

ção de Brasília em 1960. De 1763 a 1960, o Rio de Janeiro

foi palco dos mais importantes momentos políticos da

Colônia, do Império e das primeira e segunda repúblicas.

A Baía de Guanabara

Na verdade, é na baía que tudo se inicia. Guanabara

em tupi-guarani tem o significado de baía ou enseada, de

águas que penetram para dentro da terra. Não se pode

Morro do Pão de Açúcar.Ao fundo, à direita,enseada de Botafogo.

FOTO

: RIO

TUR

19ANO V / Nº 9

Villegagnon que, com cerca de 600 pessoas, ocupou uma

das ilhas do interior da baía, a qual passou a receber seu

nome. Não foi por outro motivo que também os france-

ses vieram a ocupá-la, reforçando a caracterização da baía

como ponto estratégico no que se refere aos aspectos po-

lítico, econômico e militar. O mapa da França Antártica,

produzido por Jean de Léry entre 1557 e 1558, identifica

os acidentes geográficos em torno da baía, bem como os

aldeamentos dos tupinambás, mas é de 1579 o mapa da

cartografia francesa considerado mais completo da área,

que representa a entrada da barra, com o Morro do Pão

de Açúcar, a Ilha do Forte de Villegagnon, com a vila fran-

cesa próxima e a característica montanhosa do terreno

nas áreas adjacentes.

Os franceses, que angariaram a simpatia dos nati-

vos, foram hostilizados pelos portugueses, que tinham

o firme propósito de manter sua hegemonia sobre o ter-

ritório e consagrar a unidade desta invenção chamada

Brasil, para o que aquele ponto era peça estratégica.

Assim, após a primeira investida contra os franceses em

1560, foram definitivamente expulsos em 1565, quando

Estácio de Sá fundou a Cidade de São Sebastião do Rio

de Janeiro. A denominação não escapa da tradição por-

tuguesa de atribuição de nomes para as cidades a partir

dos elementos naturais presentes em seu contexto ter-

ritorial que sejam referências geográficas de reconheci-

mento do terreno. O nome Sebastião era ao mesmo tem-

po uma homenagem ao Rei de Portugal, D. Sebastião e

ao santo de mesmo nome, que havia protegido os por-

tugueses na batalha pela conquista da área.

A seleção do local para a instalação da cidade não

deveria fugir ao critério da engenharia militar, que de-

terminava a localização de forma a combinar a possibili-

dade de defesa da costa e de controle das rotas marítimas

com a facilidade de penetração para o interior. Foi assim

que Mem da Sá transferiu o núcleo urbano inicial na

barra para o interior da baía, reconstruindo a vila sobre

um morro que viria a ser conhecido como o do Castelo,

e que mais tarde balizaria junto com outros três o cres-

cimento da cidade na várzea. A escolha do novo lugar

afirmar com certeza qual das muitas expedições enviadas

pelo Rei D. Manoel para o reconhecimento da costa do

Brasil foi a primeira a aportar no Rio de Janeiro. Certo é

que já na carta de Tomé de Souza, primeiro Governador-

Geral do Brasil, datada de 1553, está descrita a formosu-

ra da enseada e suas qualidades protetoras para a implan-

tação ali de uma vila, uma “povoação honrada e boa”. Esse

acidente geográfico, visitado também pelo florentino

Américo Vespúcio entre os anos de 1501 e 1503, é descrito

como um lago tranqüilo, já que as terras que a circun-

dam impedem que o furor dos ventos provenientes do

oceano atinja suas águas diretamente. As terras ao seu

redor se distribuíam em uma concavidade formadora de

um único e acessível porto.

A ocupação das margens da baía se dá na medida

em que as atividades de defesa do território e de explora-

ção econômica da Colônia ganham importância, sempre

em função de sua centralidade em relação à costa. A fun-

dação da cidade, em 1565, se dá sob a ameaça da ocupa-

ção francesa, levada a cabo por Nicolas Durand de

20 ANO V / Nº 9

estava amparada pela disponibilidade maior de terrenos

para abrigar seu crescimento.

Esses aspectos geográficos, complementados pelos

outros dotes naturais da área envoltória da baía, tal como

sua rede hidrográfica, que oferecia grande possibilidade

de penetração e de comunicação no território, e as terras

que se estendiam ao norte e ao sul interligando-a ao res-

tante do litoral, são tratados nos mapas subseqüentes,

novamente de autoria dos portugueses que a haviam

reconquistado e, também dos holandeses, que em 1624

tentarão investidas para a conquista da Bahia, antes de

ocupar Pernambuco em 1630. Como edificações junto à

Baía de Guanabara, têm-se, de início, uma pequena ocu-

pação sobre o Morro do Castelo, com a Sé, e o Colégio

dos Jesuítas, além dos fortes de defesa da Baía (posterior-

mente complementados por guarnições e fortins). A rede

hidrográfica de grande comunicabilidade, com o con-

junto de rios que deságuam na baía, é fator determinante

na implantação das fazendas e engenhos, que os utiliza-

vam para o escoamento de sua produção. Ainda hoje te-

mos, em especial em Jacarepaguá e na Baixada Fluminen-

se, alguns marcos dessas ocupações, como a Casa da Fa-

zenda do Engenho D’Água, a Fazenda da Taquara, a Fa-

zenda de São Bento e de São Bernardino. Já em 1666, o

mapa produzido por João Teixeira Albernaz mostra o

rio navegável que vem da entrada da barra até o primeiro

porto, onde é hoje a Praça XV de Novembro.

É esse porto que ganha importância com a desco-

berta de ouro nas Minas Gerais por volta de 1645, tor-

nando-se o principal da Colônia em função de ser a porta

de entrada para o Caminho Novo das Minas que subia

para transpor a Serra do Mar em direção ao interior.

Mesmo com o crescimento da cidade e a consoli-

dação de sua função portuária, a orla da Baía de Gua-

nabara permanece inalterada até o final do século XIX.

Foram as obras de urbanização, com a transferência do

porto, nos primeiros anos do século XX, para a região

da Prainha (hoje Praça Mauá), que deram início ao pro-

cesso de aterramento da baía. Antes disso, já se havia

modificado o ambiente natural para acomodação da

cidade com o aterramento de mangues e lagos, como no

caso da área do hoje Passeio Público, antes da interven-

ção paisagística de Mestre Valentim e

depois de Glaziou, Lagoa do Boquei-

rão. As modificações de modernização

do Centro alteram o contorno da baía

do Caju até Copacabana, com aterros

para a construção da ampliação do

cais, das avenidas Rodrigues Alves e

Beira-Mar e, posteriormente, do Aero-

porto Santos Dumont e do Parque do

Flamengo. Outra grande intervenção

foi o aterro de grandes áreas da ensea-

da de Botafogo para a criação do bairro

da Urca em 1908.

A vida da baía está ligada à saúde

dos rios e córregos que compõem a

bacia hidrográfica disposta no seu en-

torno e cujos componentes nela deságuam. Tendo sido

historicamente utilizada como via de penetração para

o interior do território, bem como via de escoamento

da produção econômica da região, esta bacia foi tam-

bém responsável por considerável adensamento das

ocupações em toda a área, com conseqüente impacto

O que antes era praia agoratransformada no Aterro do Flamengo.Ao lado direito, Praça Paris.

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21ANO V / Nº 9

negativo na qualidade da água. Esta é hoje a maior con-

centração urbana e populacional da zona costeira do

Brasil. São cerca de 55 rios e córregos que trazem um

grande volume de poluentes para a baía, que, apesar

disso, ainda abriga uma população de cerca de 70 bo-

tos-cinza (dados da Dra. Ana Paula Leite Prates, Mi-

nistério do Meio Ambiente). Próximo ao litoral da Ilha

do Governador, no Canal da Maré e na Ilha do Fundão,

observa-se a existência de manguezais, depositórios de

grande biodiversidade.

A Floresta Urbana

Outro valor importantíssimo agregado à paisagem

é o ambiental. Apesar do desaparecimento de cerca de

93% da cobertura original da Mata Atlântica, seus rema-

nescentes ainda possuem uma grande importância eco-

lógica e cultural. São considerados parte proeminente

da lista dos 25 hotspots de biodiversidade, que agregam

as mais ricas e ameaçadas reservas de vida animal e vege-

tal do planeta (Myers et al., 2000). A Unesco vem reco-

nhecendo essa importância, tendo concedido em 1999 o

título de Patrimônio da Humanidade para as reservas

de Mata Atlântica do Sudeste brasileiro (estados do Pa-

raná e de São Paulo) e da Costa do Descobrimento (es-

tados da Bahia e do Espírito Santo). O Estado do Rio de

Janeiro, com cerca 928.900has de Mata Atlântica rema-

nescente, abriga quase 10% do que resta da outrora gran-

de floresta. Essa área foi recentemente classificada em

cinco blocos que apresentam uma concentração maior

de fragmentos florestais. Quatro deles compartilham as

características básicas da maior parte do que resta da

Mata Atlântica. São espaços rurais, em geral montanho-

sos, que conseguiram sobreviver ao impacto destrutivo

das atividades agropecuárias. Um desses blocos, no en-

tanto, apresenta um diferencial histórico importante,

situando-se no interior da área metropolitana do Rio

de Janeiro (Rocha et al., 2003).

Essa floresta urbana, talvez a maior do mundo, tem

papel fundamental na composição do cenário natural do

Rio. Representa um dos primeiros (data de 1861) exem-

plos de restauração ecológica por meio do refloresta-

mento da América Latina ou mesmo do Ocidente. É um

excelente exemplo de planejamento e gestão de zona

periférica de área urbana em desenvolvimento, num

binômio no qual uma parte influencia a outra ao longo

do tempo. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro, criado

por D. João VI em 1809, contribuiu decisivamente para

o estudo científico das espécies integrantes da Mata

Atlântica, de grande diversidade, tendo fornecido mu-

das para o processo de reflorestamento das encostas de-

vastadas pelo plantio do café. Esse aspecto confere um

significado cultural ao valor natural da floresta urbana,

transformando-a num atributo cultural, um legado de

eventos históricos e de desenvolvimento social, que tam-

bém tem valor ambiental, reafirmando sempre a impos-

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22 ANO V / Nº 9

sibilidade de dissociação entre patrimônio ambiental

e patrimônio cultural.

O Parque Nacional da Tijuca é composto por qua-

tro partes que se integram em um conjunto: o Maciço da

Tijuca, a Serra da Carioca, o Conjunto Pedra da Gávea e

Pedra Bonita, a Serra dos Pretos Forros e Covanca. É jus-

tamente o conjunto dessas encostas verdes, localizadas

no cerne da metrópole, que compõe o pano de fundo da

apreensão visual da cidade vista do mar. Os habitantes do

Rio contribuem com esse processo, agregando a esta ima-

gem um valor intangível e presencial. Intangível é a for-

ma como esse recurso natural e cultural é fruído diaria-

mente por centenas de habitantes da metrópole a seus

pés, quer seja de modo contemplativo, apreciando de lon-

ge ou de perto sua beleza, ou de modo ativo, servindo-se

da floresta para práticas de lazer. Em seu sentido pre-

sencial, a floresta confere ao Rio parte de sua identidade

visual, é sua presença no contexto da cidade,

parte da “Cena de Identidade” do carioca.

É importante assinalar que o processo

de culturalização de áreas naturais no Brasil

não se iniciou com os portugueses. As pri-

meiras transformações do cenário natural

do litoral Atlântico pelas atividades desen-

volvidas pelos seres humanos datam de pelo

menos 12.000 anos atrás. Tanto os paleoin-

dígenas quanto os indígenas não produzi-

ram processos mais intensos de desfloresta-

mento. No entanto, a prática da queimada

para a implantação de pequenos cultivos está

presente nessa região há milhares de séculos.

Os índios não tinham o hábito de ocupar o

interior das florestas, em geral preferiam

ocupar as áreas de transição entre ecossis-

temas, como a zona costeira, onde o manejo

múltiplo dos recursos naturais se dava mais

facilmente. É sabida a existência de sítios

arqueológicos das ocupações de povos co-

letores-caçadores (sambaquis) e de aldeias

tupinambás na região metropolitana do

Rio, porém, sobre as áreas florestadas pouco se sabe, po-

dendo uma pesquisa científica voltada para o registro

das ocupações anteriores revelar novos dados que confi-

ram ainda maior valor a esse componente da paisagem.

A História do Brasil contada pelosmonumentos e sobrados

O complexo urbano-paisagístico do Rio de Janei-

ro é um caso bastante singular no conjunto dessa cate-

goria, em geral composta por cidades onde a unidade

no uso de determinada tipologia arquitetônica é uma

das características mais marcantes.

A cidade, iniciada na barra, posteriormente trans-

ferida para o interior da baía, sobre o Morro do Castelo,

onde as edificações principais eram o Colégio dos Jesuí-

tas, a Igreja Matriz e Casa de Vereança, desce para a vár-

O Jardim Botânico,criado porDom João VIem 1809, pesquisaas espéciesintegrantes daMata Atlântica.

23ANO V / Nº 9

zea na marinha próxima ao porto e daí segue, desen-

volvendo-se num quadrado irregular que tem em cada

ponta um morro: o do Castelo, o de Santo Antônio (hoje

Largo da Carioca), que se colocava atrás da lagoa de

mesmo nome e alimentava a vala que posteriomente

deu nome à Rua da Vala (hoje Uruguaiana) aos fundos.

Nas outras pontas do quadrado, na região da Prainha

(hoje Praça Mauá), temos o Morro de São Bento e o

Morro da Conceição. Até os dias de hoje, esse trecho da

área do Centro é sua porção mais carregada de sentido

simbólico e historicidade.

Quem transita atualmente pelo Centro não tem

noção de que circula sobre áreas anteriormente ocupa-

das por lagoas, pântanos e praias, aterradas

ao longo dos últimos quatro séculos. Parte

do território da cidade fluminense foi mo-

dificada e ampliada, tendo como principal

instrumento a terra fornecida com o des-

manche de morros da cidade. É opinião con-

sensual que os agenciamentos feitos pelo

homem sobre esse sítio agregaram-lhe va-

lor. Parte dessas ações encontram amparo

nas tradições do urbanismo português, no

qual as questões de interesse coletivo, como

a saúde da população, regras de higiene e

outros aspectos da saúde pública, mere-

ciam regulamentação feita pela Câmara por

meio de normas de posturas.

São também características de nossa

herança portuguesa a implantação da ci-

dade sobre as colinas, o papel das igrejas e

ordens religiosas no traçado urbano, a pra-

ça do comércio, a própria relação da cida-

de com o território. Costeando a praia, o

caminho longo, do qual partem as vias que

criarão o traçado em formato de tabuleiro

de xadrez de conformação da área urbana,

os espaços públicos definidos nos primeiros

séculos da cidade e até mesmo boa parte dos

lotes mantêm-se até hoje, sendo entrecor-

tados pelas intervenções dos anos subseqüentes que têm

uma função de modernização da cidade.

Embora a produção açucareira do Rio de Janeiro

não fosse das mais significativas, a posição meridional da

cidade possibilitou, ao longo do século XVII, a tão pro-

palada centralidade entre as províncias espanholas do

estuário do Rio da Prata e os portos negreiros na África.

Essa posição geográfica privilegiada será substituí-

da sem que o porto perca sua importância pelo acesso

ao Caminho do Ouro, região mineira de extração do

minério, por volta de 1704.

Datam da segunda metade do século XVIII, no pe-

ríodo do Vice-Reinado, as grandes obras de estruturação

Arcos da Lapa.Uma preocupaçãodo governo noséculo XVIIIcom o abastecimentode águaspara a cidade.

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: RIO

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24 ANO V / Nº 9

da cidade: o aqueduto da Carioca, a preocupação com

sistema de abastecimento de águas para a cidade a ser

implantado mais tarde. É também desse período o em-

prego da pedra nas portadas de igrejas e monumentos,

acrescentando um acabamento luxuoso à cidade, até

então de pedra e cal. O Largo do Paço (atual Praça XV

de Novembro), espaço oficial do poder colonial, foi re-

modelado tanto em seu traçado, reordenado pelo En-

genheiro-brigadeiro José Fernandes Pinto de Alpoim

quanto pela reforma de seus elementos de composição

do espaço urbano: o Paço dos Governadores, o sobrado

dos Telles de Menezes, a Igreja e o Convento de Nossa

Senhora do Carmo e a Igreja contígua da Ordem Tercei-

ra do Carmo. O Cais de Jacques Funck, com o chafariz

de Mestre Valentim também em pedra de cantaria, com-

pletou um pouco mais tarde essa “sala de visitas”, que

mereceu destaque nas descrições daqueles que visitaram

a cidade naquele período.

Com a chegada de forma triunfal de D. João, em 8

de março de 1808, no que foi descrito como mais do que

uma cerimônia oficial, uma verdadeira festa popular, o

Rio passa a ser a metrópole de um império que se pre-

tende grande e marítimo, que ia dali para Lisboa até

Goa e Macau. A população da cidade dobrou e passou a

ser formada também pelos muitos estrangeiros que apor-

tavam, muitos deles versados em assuntos científicos

como a Botânica, já que nossa flora abria nova perspec-

tiva de estudo da natureza. Em 1816, chega a Missão

Francesa, composta, dentre outros, pelo arquiteto Victor

Grandjean de Montigny, que projetou o prédio da An-

tiga Alfândega (hoje Casa França-Brasil), a Academia

de Belas Artes (cuja portada está hoje no Jardim Botâ-

nico do Rio de Janeiro), a sua própria residência na Gávea

(dentro da PUC), todos no estilo neoclássico, que apa-

rece pela primeira vez no Brasil. O Teatro São João foi

construído no Largo do Rocio (hoje Praça Tiradentes),

o Jardim Botânico, criado próximo à Lagoa de Sacope-

napan (Lagoa Rodrigo de Freitas). O comerciante An-

tônio Elias Lopes oferece sua casa para D. João, e as obras

do que será a Versailles Tropical se iniciam. Em São Cris-

tóvão, no paço do reinado de D. Pedro I e de Pedro II,

terá participação decisiva o paisagista Glaziou, respon-

sável pela remodelação de vários jardins da corte, como

o Passeio Público, inicialmente obra de Mestre Valentim.

Já aqui teremos, portanto, a semente do desenvolvimen-

to da cidade nas direções sul e norte, a partir da criação

destes focos de atenção depositados pela Família Impe-

rial. No Primeiro Reinado, a economia tinha substituí-

Lagoa de Sacopenapan,atual LagoaRodrigo de Freitas.

FOTO: RIOTUR

25ANO V / Nº 9

do o ouro pelo café, que trazia para cidades a possibili-

dade de construção de novos e luxuosos sobrados com

janelas e sacadas. A Santa Casa da Misericórdia torna-

se um hospital modelo. A distribuição de água na cida-

de é feita por um sistema de chafarizes espalhados por

vários pontos. A cidade ganhou arborização e ilumina-

ção a gás, rede de esgoto e abastecimento domiciliar de

água (1874), hotéis, jardins públicos.

No início do século XX, a modernidade se impunha

com o avanço do processo de industrialização. A cidade

busca aproximar-se do modelo parisiense Belle Époque,

com os edifícios em estilo art nouveau, neogóticos, neo-

românticos, que recheiam a Cinelândia, e a recém aberta

Avenida Central (hoje Rio Branco), artéria de ligação de

duas extremidades da cidade, em uma delas, o novo por-

to. Para sua construção, a avenida derrubou cerca de 640

prédios de um área muito povoada. A população mais

pobre estava sendo expulsa do Centro, buscando abrigo

nos morros próximos, em edificações construídas preca-

riamente, as favelas. Instalam-se o contraste entre a cida-

de rica e européia, dos projetos urbanísticos do Prefeito

Pereira Passos, inspirados em Haussman, e o inferno dos

excluídos, que marca não apenas esta mas todas as cida-

des da América Latina. A despeito da distrofia social, a

cidade desempenha seu papel de metrópole modelo ao

longo da primeira República.

Novas mudanças importantes voltam a ocorrer na

cidade com o Estado Novo, que com seu sistema presi-

dencial forte, afastou-se dos princípios da democracia li-

beral. Os aspectos culturais se impõem, e o Rio surge como

a foco irradiador da cultura que se busca autêntica, a

partir das discussões mantidas na Semana de Arte Mo-

derna de 1922. Novas intervenções urbanísticas são pro-

postas, desta vez por Alfred Agache, e levadas a cabo no

que seria a Esplanada dos Ministérios Carioca, a área do

Castelo, planificada com o desmanche do Morro do Cas-

telo para o aterramento que produziu a Avenida Beira-

Mar. O trinômio ministérios da Fazenda, do Trabalho e

da Educação e Saúde permanecem hoje como documen-

tos desse momento, testemunhando a riqueza das discus-

sões sobre Arquitetura que marcaram o período de iní-

cio da tão consagrada Arquitetura Moderna brasileira,

que vai produzir na cidade jóias como o Conjunto Resi-

dencial Parque Guinle, do arquiteto Lúcio Costa, o MAM

de Reidy, o edifício do Banco Boavista, de Niemeyer, en-

tre tantas outras obras notáveis que quem visita o Rio

tem a oportunidade de ver.

Finalmente, para falarmos de paisagem cultural ca-

rioca, ou paisagem do Rio, ou qualquer outro nome que se

deseje dar à ode que esta cidade merece de seus habitan-

tes, não podemos nos esquecer de quem lhe dá vida e sen-

tido: o carioca. Nascido ou não na cidade, os muitos ha-

bitantes do Rio completam seu colorido especial, com sua

alegria que lhe permite sambar ao varrer o sambódromo,

manter o humor em tempos de caos. É este habitante re-

sistente e iluminado que merece ver sua cidade elevada à

condição de Patrimônio Cultural da Humanidade, para

que se possa falar do Rio de Janeiro da floresta urbana, da

arquitetura peculiar, do cenário natural único, da beleza

da Baía de Guanabara. Que nossa “Cena de Identidade”

não tenha manchas é nosso desejo para o futuro.

Thays Pessoto de Mendonça Zugliani – Natural do Rio de Janeiro, é formadaem Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Santa Úrsula (RJ). Atualmenteexerce a função de Superintendente da 6ª SR/IPHAN. Foi agraciada com o prêmiodo Ministério da Cultura – “Mulheres que fazem cultura” no ano de 2005.

Desfile de escolasde samba noSambódromo.

FOTO

: RIO

TUR