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XIII Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e IX Encontro Latino Americano de Pós-Graduação – Universidade do Vale do Paraíba 1 A REPRESENTAÇÃO SARAMAGUIANA DOS MARGINALIZADOS EM MEMORIAL DO CONVENTO” Felipe dos Santos Matias (Autor) 1 , Gerson Luiz Roani (Orientador) 2 1 Universidade Federal de Viçosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected] 2 Universidade Federal de Viçosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected] Resumo - Este estudo faz uma investigação teórico-crítica acerca da representação que a narrativa saramaguiana Memorial do Convento (1982) faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construíram o Convento de Mafra no século XVIII, durante o reinado de Dom João V. Esses operários foram marginalizados pela historiografia oficial, a qual os relegou ao esquecimento. Saramago busca em Memorial do Convento lançar um novo olhar acerca desse acontecimento histórico, com o intuito de escrever uma nova história a partir da ótica dos marginalizados. Memorial do Convento rebela-se contra a visão da história oficial que coloca o rei como sujeito da ação de construir o Convento de Mafra. Palavras-chave: História; Literatura; Memorial do Convento; José Saramago; Convento de Mafra. Área do Conhecimento: Lingüística, Letras e Artes Introdução A possibilidade de diálogo entre a história e a literatura instigou o interesse dos romancistas portugueses contemporâneos, os quais têm, através da ficção, tentado despertar a consciência dos leitores para um novo olhar acerca da história de Portugal, diferente do que sempre foi propagado como oficial e unívoco. É nesse contexto de pós-revolução que emerge José Saramago, um dos expoentes mais importantes do atual panorama literário português. A produção literária de Saramago revela uma consciência aguda dos problemas políticos, sociais e culturais que a sociedade portuguesa enfrentou após a Revolução dos Cravos. Saramago é dos escritores atuais em Portugal aquele que, talvez, abraça de maneira mais evidente uma arte compromissada, ou ainda, um romancista que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e um instrumento de denúncia dos desmandos dos poderosos. Por isso, sua escrita é peculiar por inventar um narrador fortemente comprometido com uma ideologia, que, na maioria das vezes, mais do que apresentar literariamente os fatos, procura comentá-los, de modo a investir criticamente na realidade circundante. Na obra Memorial do Convento a representação da história ultrapassa as restritas e difusas proporções de uma mera cor local, visto que José Saramago resgata o discurso historiográfico acerca da construção do Convento de Mafra para poder ampliá-lo. Percebe-se de maneira bem nítida que o romance Memorial do Convento privilegia o processo árduo de construção do Convento de Mafra, em contraposição à simples menção feita pela historiografia oficial portuguesa, para a qual Dom João V ordenou e o Convento de Mafra foi construído, desconsiderando, desse modo, todo o longo e dificultoso processo de edificação, no qual milhares de homens se sacrificaram para consolidar a obra. Com muita sagacidade e senso crítico, Saramago busca em seu romance recompor esse acontecimento histórico, com o intuito de configurar uma certa memória acerca do convento, da sua origem, da sua construção e dos que nele trabalharam. Metodologia Este trabalho realiza um estudo teórico-crítico de um dos planos narrativos do romance Memorial do Convento (1982), aquele que foi destinado à construção do Convento de Mafra. Ao propor tal investigação, investi em uma abordagem que visa explorar analiticamente a representação que a narrativa saramaguiana faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construíram o Convento de Mafra no século XVIII, durante o reinado de Dom João V. Resultados O romance Memorial do Convento é considerado um dos mais importantes da literatura portuguesa contemporânea, em virtude de ser a obra que de forma mais nítida e impressiva recuperou a história para a ficção. Segundo Álvaro Cardoso Gomes, essa obra-prima de José Saramago “é grande sucesso de público e crítica, e apesar de romance histórico, de certo modo, persegue a temática desenvolvida em Levantado do Chão, pois novamente investe na

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Memorial do convento - Saramago

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  • XIII Encontro Latino Americano de Iniciao Cientfica e IX Encontro Latino Americano de Ps-Graduao Universidade do Vale do Paraba

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    A REPRESENTAO SARAMAGUIANA DOS MARGINALIZADOS EM MEMORIAL DO CONVENTO

    Felipe dos Santos Matias (Autor)1, Gerson Luiz Roani (Orientador)2

    1Universidade Federal de Viosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected] 2Universidade Federal de Viosa/Departamento de Letras, Campus UFV, [email protected]

    Resumo - Este estudo faz uma investigao terico-crtica acerca da representao que a narrativa saramaguiana Memorial do Convento (1982) faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construram o Convento de Mafra no sculo XVIII, durante o reinado de Dom Joo V. Esses operrios foram marginalizados pela historiografia oficial, a qual os relegou ao esquecimento. Saramago busca em Memorial do Convento lanar um novo olhar acerca desse acontecimento histrico, com o intuito de escrever uma nova histria a partir da tica dos marginalizados. Memorial do Convento rebela-se contra a viso da histria oficial que coloca o rei como sujeito da ao de construir o Convento de Mafra.

    Palavras-chave: Histria; Literatura; Memorial do Convento; Jos Saramago; Convento de Mafra. rea do Conhecimento: Lingstica, Letras e Artes

    Introduo

    A possibilidade de dilogo entre a histria e a literatura instigou o interesse dos romancistas portugueses contemporneos, os quais tm, atravs da fico, tentado despertar a conscincia dos leitores para um novo olhar acerca da histria de Portugal, diferente do que sempre foi propagado como oficial e unvoco.

    nesse contexto de ps-revoluo que emerge Jos Saramago, um dos expoentes mais importantes do atual panorama literrio portugus. A produo literria de Saramago revela uma conscincia aguda dos problemas polticos, sociais e culturais que a sociedade portuguesa enfrentou aps a Revoluo dos Cravos.

    Saramago dos escritores atuais em Portugal aquele que, talvez, abraa de maneira mais evidente uma arte compromissada, ou ainda, um romancista que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e um instrumento de denncia dos desmandos dos poderosos. Por isso, sua escrita peculiar por inventar um narrador fortemente comprometido com uma ideologia, que, na maioria das vezes, mais do que apresentar literariamente os fatos, procura coment-los, de modo a investir criticamente na realidade circundante.

    Na obra Memorial do Convento a representao da histria ultrapassa as restritas e difusas propores de uma mera cor local, visto que Jos Saramago resgata o discurso historiogrfico acerca da construo do Convento de Mafra para poder ampli-lo. Percebe-se de maneira bem ntida que o romance Memorial do Convento privilegia o processo rduo de construo do Convento de Mafra, em contraposio simples meno feita pela

    historiografia oficial portuguesa, para a qual Dom Joo V ordenou e o Convento de Mafra foi construdo, desconsiderando, desse modo, todo o longo e dificultoso processo de edificao, no qual milhares de homens se sacrificaram para consolidar a obra. Com muita sagacidade e senso crtico, Saramago busca em seu romance recompor esse acontecimento histrico, com o intuito de configurar uma certa memria acerca do convento, da sua origem, da sua construo e dos que nele trabalharam.

    Metodologia

    Este trabalho realiza um estudo terico-crtico de um dos planos narrativos do romance Memorial do Convento (1982), aquele que foi destinado construo do Convento de Mafra. Ao propor tal investigao, investi em uma abordagem que visa explorar analiticamente a representao que a narrativa saramaguiana faz do segmento dos trabalhadores portugueses que construram o Convento de Mafra no sculo XVIII, durante o reinado de Dom Joo V.

    Resultados

    O romance Memorial do Convento considerado um dos mais importantes da literatura portuguesa contempornea, em virtude de ser a obra que de forma mais ntida e impressiva recuperou a histria para a fico. Segundo lvaro Cardoso Gomes, essa obra-prima de Jos Saramago grande sucesso de pblico e crtica, e apesar de romance histrico, de certo modo, persegue a temtica desenvolvida em Levantado do Cho, pois novamente investe na

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    sobrevalorizao de personagens do povo (GOMES, 1993, p. 36).

    Para Adriana Martins, Jos Saramago, consciente da existncia de uma multiplicidade de configuraes da memria e da possibilidade de a preferncia por uma delas ser abusiva, resgata o tecido da memria pblica do Convento de Mafra para, atravs do seu Memorial do Convento, revelar e discutir a(s) sua(s) fragilidade(s), principalmente no que concerne ao silncio do discurso histrico sobre a importncia fundamental dos trabalhadores que esculpiram na pedra um dos monumentos mais representativos do reinado de D. Joo V (MARTINS, 2006, p. 280).

    Atravs do que coloca Adriana Martins, pode-se observar que a histria em Memorial do Convento submetida a um peculiar tratamento, visto que Saramago revela em seu universo ficcional as fragilidades do discurso histrico acerca do Convento de Mafra. Para Ana Paula Arnaut, a obra saramaguina no reproduz fielmente os inabalveis fatos da histria mas, pelo contrrio, aproveita acontecimentos e figuras que, mesclados com a imaginao (re)criadora do autor, viabilizam a construo de uma histria marginal verso oficial (ARNAUT, 1996, p. 58).

    A convergncia do real com o ficcional constitui o princpio basilar de construo de Memorial do Convento. No se trata, logicamente, de um procedimento ideologicamente incuo: a insero das figuras populares no devir da histria surge com a dimenso de uma reparao tardia mais ainda necessria. Em sua narrativa, Saramago procura imbricar os fatos e personagens que a histria oficial conservou na memria coletiva (Dom Joo V, D. Maria Ana Josefa, o padre Bartolomeu de Gusmo, o msico Scarlatti) com aqueles outros que foram sistematicamente esquecidos pela histria oficial (pobres, camponeses, operrios).

    No romance Memorial do Convento, Saramago concentra a sua ateno no sculo XVIII e num evento histrico especfico, a construo do Convento de Mafra, para reler a histria de maneira crtica e detalhada, problematizando o fato de a historiografia no reconhecer, e nem sequer mencionar, o imprescindvel papel dos trabalhadores portugueses na edificao do convento. Acerca desse esquecimento por parte da histria oficial, Adriana Alves de Paula Martins afirma:

    Interessante , no entanto, observar que a histria oficial, ao reconhecer o Convento de Mafra como uma das obras grandiosas do reinado de D. Joo V, identifica-a como sendo o produto do trabalho e da vontade de um homem, o rei, o que se constitui numa evidente distoro dos acontecimentos e que decorre da tendncia que a historiografia tem de engrandecer as

    personalidades histricas conotadas com o poder (MARTINS, 2006, p. 273).

    Com a obra Memorial do Convento Saramago inscreve o seu nome como um dos grandes romancistas na cena literria portuguesa e internacional. De acordo com os crticos literrios da poca em que surgiu o livro, Memorial do Convento representa o apuramento e o desenvolvimento de algumas das preocupaes afloradas em Levantado do Cho e que derivam da conscincia do autor sobre a existncia de uma viso mitificada, idealizada e ideologicamente comprometida da histria em geral, e da portuguesa em particular, sobretudo, quando se tem em conta a representao oficial da memria pblica, a qual sempre foi construda pelo vis da classe dominante. Em contraposio ao discurso histrico tradicional, Saramago explora em sua narrativa a histria do Convento de Mafra a partir da tica dos trabalhadores, os quais efetivamente construram o monumento arquitetnico e foram marginalizados pela memria oficial, que os relegou ao anonimato. Para Adriana Martins, o romance Memorial do Convento chama a ateno para aquele que talvez o pior dos abusos da memria pblica enquanto representao do passado, ou seja, o esquecimento (MARTINS, 2006, p. 275).

    Para tratar da histria dos marginalizados em Memorial do Convento, Jos Saramago utiliza como ponto de partida a historicidade, ou seja, os elementos e fatos histricos que caracterizaram o reinado de Dom Joo V e suas realizaes como monarca, para poder criar a sua verso da histria da construo do Convento de Mafra. Saramago tece habilmente sua teia romanesca fincada na histria, configurando no incio de sua narrativa os motivos que levaram a construo de Mafra, para depois imergir na histria dos marginalizados. O romancista deixa bem ntido aos seus leitores que Mafra era antes da construo do convento um vilarejo muito pacato e, de certo modo, incorrupto. Aps o incio das obras, Mafra se transforma em um gigantesco canteiro de obras, sendo invadida por pessoas de todos os pontos de Portugal, afetando de maneira decisiva o modo de vida local.

    Por meio da escrita de Saramago, percebe-se que o Convento de Mafra simboliza uma espcie de alienao, resultado da explorao material do trabalho humano, corruptora da personalidade humana. Esta a paisagem com que se depara o padre Bartolomeu de Gusmo, uma das principais personagens do romance, no caminho para a vila de Mafra, um lugar de verdadeiro trabalho forado. O fragmento a seguir, extrado do romance, ilustra isso:

    Os homens avanaram para o terreno revolvido, com carros de mo e ps, enchendo aqui, no monte, despejando alm, na encosta para

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    Mafra, ao passo que outros homens, de enxada ao ombro, desciam aos caboucos j fundos, neles desapareciam, enquanto mais homens lanavam cestos para dentro e depois os puxavam para cima, cheios de terra, e os iam despejar afastadamente, aonde outros homens iam por sua vez encher os carros de mo, que lanavam no aterro, no h diferena nenhuma entre cem homens e cem formigas, leva-se isto daqui para ali porque as foras no do para mais, e depois vem outro homem que transportar a carga, at a prxima formiga, at que, de costume, tudo termina num buraco, no caso das formigas lugar de vida, no caso dos homens lugar de morte, como se v no h diferena nenhuma (SARAMAGO, 1982, p. 118).

    Atravs da leitura do fragmento acima, nota-se claramente como Saramago representa os marginalizados dentro da histria, os quais se confundem com as formigas, seres irracionais, que trabalham foradamente e constantemente, levando uma vida de esforo total. O fim destes operrios , como diz o romancista, o buraco, ou seja, a cova. Os operrios trabalham, se esforam, constroem o que lhes foi designado e caem no esquecimento, pois a histria nem sequer os menciona. O crdito e a glria sempre ficam para aqueles que dominam e oprimem, nunca para os dominados e oprimidos. Esse fragmento demonstra que Saramago refigura muito bem a vida de esforo e servio pesado que levaram aqueles que construram o Convento de Mafra.

    O romance de Saramago deixa muito ntido que a construo do Convento de Mafra um modelo de represso, no qual milhares de homens trabalharam duramente e muitos at perderam suas vidas para realizar uma vontade real. Dom Joo V no mandou edificar a majestosa obra como smbolo de f ou devoo catlica, mas sim para fazer uma troca de favores com o clero, para aumentar a sua vaidade, para inscrever seu nome na histria como aquele que construiu o grande convento, enfim, para satisfazer a sua mania de grandeza. Desse modo, observa-se que o convento nasceu de uma glria pessoal, a qual no foi repassada para aqueles que na sua construo foram efetivamente envolvidos. Saramago explicita em seu romance que o rei Dom Joo V tinha medo de morrer antes do fim da construo do Convento de Mafra, e, em conseqncia disso, no levar o crdito e no entrar para a histria, e por essa razo mandou acelerar os trabalhos com o intuito de antecipar a sagrao da baslica, fato que efetivamente aconteceu. O excerto a seguir evidencia esse aspecto:

    Mas esse medo de morrer no o de se lhe abater de vez o corpo e ir-se embora a alma, sim o de que no estejam abertos e luzentes os seus prprios olhos quando, sagrada, se alcanarem as

    torres e a cpula de Mafra, o de que no sejam j sensveis e sonoros os seus prprios ouvidos quando soarem gloriosamente os carrilhes e as solfas, o de no palpar com as suas mos os paramentos ricos e os panos de festa, o de no cheirar o seu nariz o incenso dos turbulos de prata, o de ser apenas o rei que mandou fazer e o que v feito [...] E D. Joo repete, Tudo vaidade, vaidade desejar, ter vaidade (SARAMAGO, 1982, p. 289).

    A narrativa saramaguiana evidencia que foi essa mania de grandeza do rei que o fez ordenar que se aumentassem indiscriminadamente as dimenses do edifcio, sem levar em considerao o projeto do arquiteto alemo Johann Friedrich Ludwig, o idealizador da obra. Mesmo tendo ordenado o aumento do tamanho do convento, o rei decidiu que a sagrao seria na data do seu aniversrio, desconsiderando se a obra iria ficar pronta ou no. Com isso, nota-se que o tempo da construo no foi calculado em relao dificuldade do trabalho e ao esforo corporal dos homens que precisavam enfrentar com recursos precrios a imensido natural da rocha e do mrmore. Em contraposio a esses delrios e caprichos do rei, o narrador saramaguiano coloca de maneira irnica que para satisfazer aos anseios da realeza era necessrio haver gigantes trabalhando nas obras e no homens comuns:

    Ora, o mal desta obra de Mafra terem posto homens a trabalhar nela em vez de gigantes, e, se com estas e outras obras passadas e futuras se quer provar que tambm o homem capaz de fazer o trabalho que gigantes fariam, ento aceite-se que leve o tempo que levam as formigas, todas as coisas tm de ser entendidas na sua justa proporo, os formigueiros e os conventos, a laje e a pargana (SARAMAGO, 1982, p. 328-329).

    Os trabalhadores das obras do Convento de Mafra que esto presentes no romance de Saramago so, evidentemente, criaes ficcionais, visto que no h registro historiogrfico que confirme a existncia dos diversos nomes que o romancista atribui aos trabalhadores. Entretanto, natural que isso acontea, porque tradicionalmente s tm o seu lugar na histria as personalidades que integram o mundo dos privilegiados, em especial a alta nobreza e o clero. E em relao poca focalizada pela obra de Saramago (incio do sculo XVIII em Portugal) s imprimiram vestgios histricos os nobres e os eclesisticos, os opressores que comandavam o Antigo Regime. Mas em Memorial do Convento o narrador saramaguiano desloca o eixo tradicional da leitura do passado, deixando emergir o povo e nomeando os heris que construram o Convento de Mafra e que a historiografia tentou encobrir, conforme se observa no trecho abaixo:

    Alcino, Brs, Cristvo, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horcio, Isidro, Juvino, Lus, Marcolino,

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    Nicanor, Onofre, Paulo, Quitrio, Rufino, Sebastio, Tadeu, Ubaldo, Valrio, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes sero os prprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto no se acabar quem trabalhe, no se acabaro os trabalhos, e alguns destes estaro no futuro de alguns daqueles, espera de quem vier a ter o nome e a profisso [...] Tudo quanto nome de homem vai aqui, tudo quanto vida tambm, sobretudo se atribulada, principalmente se miservel, j que no podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, e essa a nossa obrigao, s para isso escrevemos, torn-los imortais, pois a ficam, se de ns depende (SARAMAGO, 1982, p. 242).

    O fragmento acima nos deixa claro que o narrador saramaguiano tem conscincia de que esses novos heris criam uma nova viso acerca da histria, pois ope-se aos heris tradicionais (reis, nobres, eclesisticos). Os novos heris citados pelo narrador subvertem a ordem, dominam a narrativa, impem-se histria e reconfiguram a memria da nao portuguesa sob o signo da justia, da igualdade social e da dignidade humana.

    Em seu romance, Saramago nos proporciona uma nova viso acerca da memria do Convento de Mafra, principalmente porque considera como parte integrante da histria as classes sociais oprimidas e o cotidiano das pessoas simples. Ao revisitar o passado portugus, Saramago recoloca na histria os seus legtimos agentes e d voz queles que foram silenciados. A respeito do fato de Saramago lanar um novo olhar acerca da construo do Convento de Mafra, Teresa Cristina da Silva coloca:

    O sculo XVIII no foi exatamente em Portugal um tempo de catedrais. Mas foi o tempo do Convento de Mafra, cuja construo permitiu a Jos Saramago lanar os olhos sobre a paisagem desse tempo passado. E, como diz Duby, no foi esse um mau percurso j que o objetivo justamente o de restaurar a integridade do que parecia acessrio e secundrio, o de dar vida e voz diversidade obscura e fecunda sobre a qual paira o supostamente essencial. Talvez esteja a o fundamento desse memorial: rever o passado (SILVA, 1989, p. 31).

    De acordo com Silva (1989), se para Cames cantar eternizar, como no romance de Saramago escrever tornar imortais os marginalizados pela histria, na epopia renascentista eram eternizados os bares assinalados, as memrias gloriosas dos reis e as obras valorosas dos heris, enquanto na obra saramaguiana h a valorao dos homens simples e defeituosos. A passagem a seguir confirma isso:

    De quantos pertencem ao alfabeto da amostra e vo a Pero Pinheiro, pese-nos deixar ir sem vida contada aquele Brs que ruivo e cames do olho direito, no tardaria que se comeasse a dizer que isto uma terra de defeituosos, um marreco, um maneta, um zarolho, e que estamos a exagerar a cor da tinta, que para heris se devero escolher os belos e formosos, os esbeltos e escorreitos, os inteiros e completos, assim o tnhamos querido, porm, verdades so verdades, antes se nos agradea no termos consentido que viesse histria quanto h de belfos e tartamudos, de coxos e prognatas, de zambros e epilticos, de orelhudos e parvos, de albinos e de lvares, os de sarna e os da chaga, os da tinha e do tinh, ento sim, se veria o cortejo dos lzaros e quasmodos que est saindo da vila de Mafra, ainda madrugada, o que vale que de noite todos os gatos so pardos e vultos todos os homens (SARAMAGO, 1982, p. 242-243).

    O trecho acima revela, mais uma vez, que em contraposio ao discurso da histria oficial - que valoriza os magnnimos reis, os imponentes nobres, os belos e vistosos prncipes, as lindas e exuberantes rainhas - , o romance de Saramago focaliza a histria dos homens simples, com seus defeitos e virtudes, com sua beleza e feira, mostrando aos leitores que na literatura o feio pode ser belo, visto que representa a transfigurao da experincia humana. O narrador saramaguiano deixa claro que a histria constantemente quer maquiar o que se passou, excluindo os pobres e deficientes e exaltando apenas os ricos, poderosos e belos. Alm disso, percebe-se que o discurso histrico tradicional exagera nos adjetivos e glorifica em demasia.

    Discusso

    Pode-se dizer que com sua obra Saramago nos faz perceber que onde no h fontes escritas deve o escritor fazer o seu mel, mesmo se no h aparentemente flores. Dessa forma, o romancista portugus pde criar a sua obra, suprindo a ausncia de documentos acerca dos trabalhadores de Mafra. Essa postura crtica e criativa nos faz compreender que se o escritor no construsse a sua narrativa, muitos de ns leitores continuaramos a crer que no passado s havia os nomes que a histria registrou, e que o restante seria apenas uma massa informe, sem caracterstica, sem postura, sem desejos, sem sonhos. O povo no Memorial do Convento, como nos demais romances de Saramago, readquire forma e identidade. Assim, o romancista portugus preenche as zonas silenciosas e esquecidas dos sem-histria, fazendo de sua narrativa um discurso desalienante e contra-ideolgico, que objetiva derrubar a noo de que s os poderosos

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    so capazes de imprimir vestgios para a posteridade.

    Segundo Saramago, a impossibilidade do esquecimento que o leva a escrever romances (SARAMAGO, 1989, p. 56). A partir dessa afirmao, percebe-se que a fico saramaguiana se reveste de um carter de resistncia contra as manipulaes da historiografia oficial, que relega ao esquecimento aquilo que no interessante para a ideologia dominante. Na sua narrativa, o escritor procura realizar uma reconstruo da memria da nao portuguesa, revisitando acontecimentos que marcaram o passado de Portugal e que no tiveram a devida ateno por parte dos historiadores. De acordo com Adriana Alves de Paula Martins, a conscincia histrica de Saramago levou-o, no processo de resgate da histria portuguesa, a localizar e a expor algumas das fraturas do discurso oficial, ou seja, aquilo que no foi dito nem explicado (MARTINS, 2006, p. 252).

    A obra Memorial do Convento procura restituir aos construtores do Convento de Mafra o seu lugar na histria e, conseqentemente, o seu mrito, fazendo com que o leitor perceba que no foi o rei Dom Joo V quem construiu o Convento de Mafra, mas sim pessoas singularmente comuns, que no fizeram nenhum filho rainha e que pagam o voto, que se lixam (SARAMAGO, 1982, p. 257). O fato de Saramago fazer em sua narrativa uma descrio da vila de Mafra como um espao de trabalho vem reconhecer o poder e o saber daqueles que conseguiram transformar uma exorbitante quantidade de pedras em um monumento grandioso. A respeito do fato de o romance Memorial do Convento reconhecer a importncia dos trabalhadores na construo do Convento de Mafra, Adriana Martins afirma:

    O texto ficcional de Saramago, na verdade, resgata e ilumina este episdio da histria de Portugal, que conhecido do potencial leitor, para rediz-lo sob uma outra perspectiva, ou seja, a das memrias dos operrios, sendo pertinente afirmar que , no decorrer do segundo retrato que Saramago elabora da histria da construo do convento, que feito o primeiro retrato dos homens que a historiografia optou por no reconhecer (MARTINS, 2006, p. 273-274).

    Por meio do excerto acima, percebe-se que o romance saramaguiano realiza uma transformao dos desconhecidos trabalhadores de Mafra em figuras de reconhecido relevo histrico, resgatando-os da obscuridade e do silncio que a memria nacional os relegou. Silncio, alis, injusto e decorrente principalmente do fato de a historiografia oficial associar de modo reducionista e absurdo o Convento de Mafra figura do rei Dom Joo V.

    Em seu romance, Saramago consegue semear uma constante dvida no pensamento do leitor

    com relao veracidade e credibilidade do que foi transmitido (ou no) pelas fontes histricas acerca da construo do Convento de Mafra. Ao contar o que poderia ser e no simplesmente o que foi, o escritor portugus, de acordo com lvaro Cardoso Gomes, procurou desvelar a realidade, mostrar aquilo que os manuais de histria omitiram por fragilidade metodolgica ou por intencional postura ideolgica (GOMES, 1993, p. 41-42).

    O narrador saramaguiano, sempre irnico e distanciado, mais do que contar comenta os fatos histricos, explorando as nuanas e desvendando-lhes o sentido oculto. Assim, nota-se que Saramago realiza de modo sistemtico uma espcie de interveno na memria de seu pas, pois sua fico se apresenta como um meio de modificar a realidade, de alterar o olhar e, conseqentemente, a interpretao que o povo tem dessa mesma realidade. A narrativa ficcional saramaguiana retoma a histria para ser interrogada, revisada e recontada. De acordo com Gerson Roani, nota-se em Saramago que a conscincia do fazer literrio alimenta o processo da escritura, apontando a provisoriedade do discurso e a reescrita da literatura e da histria sob uma tica renovadora (ROANI, 2006, p. 316). Ao desconstruir e reconstruir atravs da fico os fatos histricos em ato de repetio e transgresso, o autor instaura em Memorial do Convento perguntas e dvidas que possibilitam reescrever a histria de Portugal sob a tica dos marginalizados.

    Concluso

    Aps a realizao da anlise terico-crtica posso afirmar com firmeza que o romance Memorial do Convento mais do que uma simples fico sobre a construo do Convento de Mafra. O que se observa nessa primorosa obra do romance portugus contemporneo a tentativa saramaguiana de reconstruir a histria daqueles que foram marginalizados pela histria oficial: os trabalhadores que edificaram o Convento de Mafra. Atravs de um narrador crtico, irnico e incisivo, Jos Saramago evidencia aos seus leitores que preciso reler criticamente o passado, no mais para nele encontrar modelos utpicos de perfeio saudosista, mas sim para desenvolver a capacidade de pensar, analisar, e fazer reflexes sobre o carter nacional portugus.

    O romance Memorial do Convento configura-se como um encontro dialtico entre o presente e o passado, aproximando-se de uma viso mais humana da histria. Nele, Saramago problematiza o discurso histrico tradicional portugus, o qual silencia e oculta a verdade acerca do papel do povo na determinao dos acontecimentos,

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    colocando os marginalizados tambm como agentes do processo histrico.

    Com sua narrativa, Saramago propicia ao leitor uma maior inteligibilidade em relao construo do Convento de Mafra e ao papel que os milhares de trabalhadores desempenharam para que este belssimo monumento arquitetnico se tornasse realidade. Ao escolher o Convento de Mafra como tema central do seu romance, Saramago parte de um monumento da histria de seu pas para preencher o espao deixado por uma deliberada ausncia, por um silncio. Memorial do Convento vem suprir uma lacuna do discurso histrico acerca da construo do convento, inscrevendo os desconhecidos trabalhadores de Mafra na histria do convento e, consequentemente, de Portugal.

    Ao optar por reescrever a histria do Convento de Mafra sob a tica dos que foram excludos da memria pela histria oficial, Saramago explicita em Memorial do Convento a responsabilidade que o escritor deve assumir para com o passado, tornando possvel a busca de um novo sentido. Assim, o romancista portugus procura configurar por meio de sua narrativa uma nova identidade para Portugal, que em 1982, data da publicao do livro, ainda se encontrava numa fase de redefinio artstica e cultural, devido ao fim do regime ditatorial salazarista com a Revoluo dos Cravos em 1974.

    Referncias

    - ARNAUT, Ana Paula. Memorial do Convento: histria, fico e ideologia. Coimbra: Fora do Texto, 1996.

    - GOMES, lvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o Romance Portugus Contemporneo. So Paulo: EDUSP, 1993.

    - MARTINS, Adriana Alves de Paula. A construo da memria da nao em Jos Saramago e Gore Vidal. Frankfurt: Peter Lang Europischer Verlag der Wisenschaften, 2006.

    - ROANI, Gerson Luiz. Saramago e a escrita do tempo de Ricardo Reis. So Paulo: Scortecci Editora, 2006.

    - SARAMAGO, Jos. Memorial do Convento. So Paulo: Difel, 1982.

    - SARAMAGO, Jos. Histria do cerco de Lisboa. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

    - SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. Jos Saramago: entre a histria e a fico uma saga de portugueses. Lisboa: Publicaes Dom Quixote, 1989.