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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO FERNANDA ALT FROES GARCIA SARTRE E SEUS HERÓIS BASTARDOS: A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA LITERATURA COMO ENGAJAMENTO NO TEMPO PRESENTE. Rio de Janeiro Junho de 2009

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO

FERNANDA ALT FROES GARCIA

SARTRE E SEUS HERÓIS BASTARDOS: A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA LITERATURA COMO

ENGAJAMENTO NO TEMPO PRESENTE.

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL CURSO DE MESTRADO

FERNANDA ALT FROES GARCIA

SARTRE E SEUS HERÓIS BASTARDOS: A PRODUÇÃO DE SENTIDO NA LITERATURA COMO

ENGAJAMENTO NO TEMPO PRESENTE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do Título de

Mestre em Psicologia Social.

Orientador: Profa. Dr a. Ariane P. Ewald

Rio de Janeiro

Junho de 2009

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Agradecimentos

A Ariane P. Ewald, minha orientadora, que, através do empenho e paixão pelo que

faz, me transmitiu a todo o momento uma vivacidade fundamental para a elaboração

deste trabalho, permitindo e estimulando sempre o caminho da libertação do pensar.

A Carolina Mendes Campos, amiga e companheira de estrada, cujas interlocuções

diárias, revisões e discussões, além de comporem essencialmente a produção deste

trabalho, tornaram sempre as angústias mais brandas e os momentos mais alegres.

A Raul Spitz, em especial, que acompanhou de perto esta trajetória, com muito

carinho, companheirismo, paciência e incentivo fundamentais em todos os

momentos.

Ao professor Luiz Damon S. Moutinho, pela sua amizade e generosidade intelectual,

que se traduz por sua constante disponibilidade e atenção.

A minha família, em especial à minha mãe Lilian Alt, pelo amor, grande apoio e

companheirismo que foram fundamentais na minha trajetória; à minha irmãzinha

Carol, pela paciência com a irmã que “vive estudando”; à minha avó Lili, pelo amor e

inspiração como professora; à minha tia Raquel Alt, por sempre acreditar e investir

em mim com muito carinho; e ao meu pai, Roberto Fróes Garcia, cuja vida breve

deixou muitas saudades.

Aos meus amigos, principalmente a Vanessa Hacon e Cristina Maria pelas

conversas acadêmicas, a Gilvane Bispo pelo carinho e apoio, e Frederico Heeren e

Marcelo Alt pela ajuda efetiva e disponibilidade.

Aos colegas da pós-graduação, funcionários e professores da UERJ, pelas dicas,

incentivo e ricas discussões.

Aos alunos da UFRJ, cujo entusiasmo me incentiva a continuar neste caminho.

A CAPES pelos auxílios concedidos, os quais ajudaram significativamente a

realização deste trabalho.

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Goetz - Todos os filhos legítimos podem gozar da terra sem pagar. Não tu. Não eu. Desde a minha infância, olho o mundo pelo buraco da fechadura: é

um belo ovinho muito cheio, onde cada um ocupa seu lugar que lhe foi assinalado. Posso afirmar-te, porém, que nós não estamos lá dentro.

Ficamos de fora.

Sartre, O Diabo e o bom Deus.

Não é perseguindo a eternidade que nos tornamos eternos: não seremos absolutos por termos refletido nas nossas obras alguns princípios

descarnados, suficientemente vazios e nulos para passarem dum século a outro, mas porque combatemos apaixonadamente na nossa época, porque

a amamos com paixão e porque decidimos perecer juntamente com ela. Em resumo, a nossa intenção é concorrer para produzir uma mudança na

sociedade que nos cerca.

Sartre, Apresentação de Les Temps Modernes.

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RESUMO

O engajamento de Jean-Paul Sartre em seu tempo foi sem dúvida uma das maiores expressões do papel do intelectual no século XX. O filósofo francês quebrou as barreiras das disciplinas tradicionais e criticou as teorias clássicas em diversas áreas do pensamento, dentre estas a psicologia, fazendo-se como um tipo “bastardo” de intelectual, que se volta contra sua própria cultura. Seu grande objetivo, que sustentava todo este pensamento crítico, era procurar meios menos engessados e mecanizados para se pensar o modo de ser do homem e meios menos idealizados ou utilitaristas para se pensar o papel da literatura na sociedade. Considerado o escritor engajado por excelência, Sartre se estabeleceu como figura representante da união entre literatura e política, que já vinha sendo recosturada, após um longo período de distância, desde a época do pré-guerra na Europa. Diante de um pensador que permite tais diálogos e ultrapassamentos de fronteiras, este trabalho teve como objetivo estabelecer conexões entre o campo da psicologia social e o pensamento sartreano para refletir sobre a literatura como possibilidade de questionamento do mundo em que vivemos. O ponto de partida foi uma compreensão da proposta do engajamento literário de Sartre enquanto um fenômeno situado, que deve ser entendido como pertencente à época do apogeu existencialista no pós-guerra francês. Para isso, fez-se necessário discutir a tradição francesa do papel do intelectual, do escritor e suas relações com a política na arena pública, além de uma breve análise deste período que se caracterizava justamente por suas “guerras” político-literárias. Porém, o engajamento de Sartre pôde ser pensado para além de seu manifesto situado, isto é, procurei pensar no sentido do engajamento sartreano, que se mostrou como uma forma de entender a literatura através de uma relação autor e leitor que compartilham um mundo em comum. Neste caminho, busquei pensar esta relação como um engajamento no tempo presente, onde o cotidiano ressignificado pela narrativa literária pode ser questionado por esta mesma ferramenta que, por isso mesmo, acaba por instigar uma realidade estabelecida. A literatura de Sartre mostra-se representativa dessa atividade questionadora por colocar em cena o que entendi como seus “heróis bastardos”, invisíveis sociais que, por um distanciamento crítico da “comédia social”, tornam-se os representantes das próprias contradições da sociedade em que vivemos, e que nos apresentam pela denúncia das próprias situações em que se encontram, um “espelho crítico” que nos remete a nossa própria situação social.

Palavras-chave: Literatura, engajamento, Sartre.

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ABSTRACT

In his time, Jean-Paul Sartre's commitment was one of the greatest expressions of an intellectual's role in the 20th century. The French philosopher broke down barriers in traditional disciplines and critiqued classic theories in several different areas of thought, including psychology, becoming a kind of intellectual “bastard child” who turns against his own culture. The great goal underlying all this critical thinking was the search for a less calcified and mechanized ways of thinking about mankind’s way of being, and less idealized or utilitarian ways of thinking about literature’s role in society. A writer considered committed by excellence, Sartre established himself as a figure representing the union between literature and politics, an union which was already being re-established after a long period of distance, since the pre-war days in Europe. Before a thinker that allowed such dialogue and transgressions of traditional boundaries, the objective of this work was to establish connections between the field of social psychology and Sartrean thought, enabling one to examine literature as a means of questioning the world in which we live. The starting point is an understanding of Sartre’s literary commitment as a phenomenon situated in a specific time and place, existing at the zenith of existentialism in post-war French thought. To achieve this, it was necessary to discuss the traditional French roles of the intellectual and the writer, and their relations to public politics, as well as a brief analysis of this period, which was characterized specifically by its politic-literary “wars”. However, Sartre’s commitment can be considered beyond its immediate situation. I sought to consider the meaning of the Sartrean commitment as it revealed itself, as a form of understanding literature through a relationship shared by author and reader in a common world. Along this path I sought to consider this relationship as a commitment in the present where every day life, given new meaning by literary narrative, can be questioned by this selfsame tool, and so ends up shaking up an established reality. Sartre’s literature becomes a representative of this questioning by creating, what I understood, as his “bastard heroes”. Social invisibles, that due to a critical distancing of the “social comedy”, become representative of our society’s contradictions, and that become to us, because of the situation in which they find themselves, a “critical mirror” that reveals to us our own social situation.

Keywords: Literature, commitment, Sartre.

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SUMÁRIO

1 Introdução - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 08

1.1 Reflexões sobre uma trajetória metodológica. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 13

2 Percursos históricos do engajamento sartreano. - - - - - - - - - - - - - - - - - 18

2.1 A situação: o pós-guerra. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 19

2.2 A literatura engajada e as redefinições na distância entre literatura

e política. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 34

3 Sentidos do engajamento: em busca do tempo presente. - - - - - - - - - - - 46

3.1 Literatura e sociedade: “me dirijo ao leitor contemporâneo”- - - - - - - - - - - 47

3.2 O “vai e vem” dialético da criação literária como engajamento no tempo

cotidiano. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 53

3.3 A Literatura como contestação do tempo presente. - - - - - - - - - - - - - - - - 65

4 Literatura como expressão dos papéis sociais. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 72

4.1 O “personagem” Sartre: do escritor ao intelectual-bastardo. - - - - - - - - - - - 73

4.2 Heróis bastardos: reflexões sobre a convivência social. - - - - - - - - - - - - - - 83

4.3 Jean Genet bastardo e Outsider: um diálogo entre Sartre e

Howard Becker. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 89

4.4 Conseqüências éticas da liberdade na literatura sartreana.- - - - - - - - - - - - 98

Considerações finais. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 107

Referências Bibliográficas. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -111

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1 Introdução.

A literatura1, enquanto objeto de estudo de fenômenos sociais, encontra-se

muitas vezes barrada na porta de entrada dos meios acadêmicos. Talvez pelo fato

de ser vista como algo à parte do estudo social, como uma forma de lazer que deva

ser utilizada nos momentos em que não queremos “pensar” ou quando desejamos

nos distrair das questões que estamos entrelaçados e envolvidos em nossa

existência. Isto se revela quando, relegada a segundo plano ou a um lugar

idealizado, lírico e inatingível, ou até mesmo “sacralizado”, construímos um certo tipo

de imagem ao seu redor que pode nos afastar mais do que aproximar. Deste modo,

a literatura é muitas vezes entendida como algo além da nossa realidade cotidiana,

sendo, por vezes, seu valor até mesmo medido por esta distância. Como colocado

pelo historiador Alessandro Portelli (1991), “a arte é medida pela distância de nossas

vidas” (p.282).

Porém, vemos que o estudo da obra literária pode ser muito bem-vindo em

círculos restritos ou, logicamente, nas disciplinas das Faculdades de Letras, mas

raramente a encontramos fora destes contornos. Além disso, mesmo nos ambientes

que afirmam a importância do estudo da literatura, encontramos muitas vezes a

predominância de uma visão técnica e pouco espaço para um estudo que possa

valorizar o sentido do texto. Tzvetan Todorov (2009), por exemplo, em seu livro A

literatura em perigo, critica a maneira pela qual a literatura é utilizada no sistema de

ensino francês, que prioriza os métodos de análise de uma obra de maneira a perder

1 O termo literatura é aqui utilizado no sentido de romances, novelas e contos. Creio ser importante ressaltar este aspecto já que podemos falar de literatura quando nos referimos a textos acadêmicos, por exemplo.

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o sentido da própria obra. Geralmente aos alunos, em seus exames, são colocadas

questões predominantemente técnicas, como, qual a função de um elemento do livro

em relação à sua estrutura ou conjunto. Assim, estes alunos são pouco estimulados,

na visão de Todorov (2009), a pensar sobre o sentido desse elemento na obra ou

mesmo o sentido do livro com relação ao seu tempo. É por esta razão que A

literatura em perigo nos faz lembrar do leitor comum2, que é aquele cuja leitura

escapa a estes enquadres institucionais, pois ele não lê para melhor dominar um

método de ensino:

[...] mas para (nas obras) encontrar um sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; (e) ao fazê-lo, ele compreende melhor a si mesmo (TODOROV, 2009, p.33).

A partir destas reflexões, penso que existe uma relação interessante entre a

literatura e o estudo na área da psicologia social, especialmente por uma visão

fenomenológica, que dá ênfase justamente a produção de sentido idiossincrática e

particular, característica do modo de ser da realidade humana. Certamente não

entendo que a psicologia fenomenológica possa nos fornecer mais um método de

análise para ser aplicado à obra literária, mas sim que ela pode utilizar-se desta

última como rico instrumento de reflexão sobre este sentido estimado por Todorov

(2009) “que permite entender melhor (ou por uma via diferente) o homem e o

mundo”. Minha perspectiva neste trabalho não é utilizar a literatura como objeto de

análise técnica, mas sim como uma via diferenciada que faz parte da produção de

sentido de um mundo sob o qual colocamos em questão o sentido da nossa própria

existência.

Este último aspecto já nos introduz ao pensamento de um dos autores cujas

reflexões freqüentemente giraram em torno da relação entre a literatura e a

sociedade: o filósofo Jean-Paul Sartre. Autêntico representante do espírito de seu

tempo, Sartre considerava a escrita literária uma forma de engajamento social e este

se caracterizava por uma relação de troca com seus leitores contemporâneos,

entendidos como aqueles que davam vida às suas produções literárias. O filósofo

sempre esteve próximo também à psicologia, mesmo que esta proximidade tenha se

2 Este é também valorizado por Virginia Woolf em seu livro intitulado justamente o leitor comum. Comento sobre este livro no capítulo dois.

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dado, principalmente, através de críticas às concepções vigentes nesta área.

Inspirado pela fenomenologia de Husserl, seus primeiros trabalhos se dirigiram para

os estudos dos atos de consciência (como emoção, imaginação, reflexão) tão caros

à psicologia, de uma forma inovadora. Ao longo de seus estudos e marcado pelos

eventos da guerra, Sartre caminhou cada vez mais para o terreno social e deste

modo desenvolveu temas que se aproximam do interesse do psicólogo social. Ele

mostrou-se interessado em compreender as complexidades das relações sociais e

as formas de alienação do homem, sem perder de vista sua concretude e suas

situações cotidianas o que, segundo Frederic Munné (1989), revela a filosofia social

contida em sua ontologia.

Deste modo, o presente trabalho surgiu a partir de meu interesse na literatura

enquanto expressão de idéias e de visões de mundo através de questionamentos já

suscitados por Sartre3. Há em Sartre uma vertente filosófica e outra literária,

indissociável da primeira, que se revelam de natureza psicossocial e que, por isso,

permitem entender o homem em situação enquanto um produto-produtor do mundo

em que vive. Esta dialética envolve também a relação com os outros e faz com que

a complexidade das relações intersubjetivas seja um dos principais temas

sartreanos. Encontramos, portanto, apesar da contínua demarcação que se costuma

fazer sobre a ambigüidade presente na obra sartreana como um todo, uma

coerência em relação ao fazer filosófico-intelectual do autor, que faz uso da literatura

como instrumento privilegiado para a comunicação de idéias filosóficas e políticas.

Mas é preciso lembrar que a literatura não é o outro lado da moeda da filosofia de

Sartre e que ambas as expressões não se encontram apartadas, pois quando

separamos sua literatura da sua filosofia, seja para afirmar que a primeira é uma

ilustração prática da segunda ou simplesmente por defini-las como incomunicantes,

estamos desconsiderando uma identidade profunda entre ambas. Segundo o filósofo

Franklin Leopoldo e Silva (2004), se seguirmos uma linha de pensamento que

demarca uma incomunicabilidade entre as diferentes formas de expressão de sua

filosofia, estaremos erroneamente associando a filosofia sartreana ao campo da pura

abstração, o que se contrapõe à própria “essência” do pensar fenomenológico que

busca compreender o homem e o mundo a partir de sua facticidade. Deste modo,

3 Realizei, juntamente com Carolina Mendes Campos, grupos de estudos sobre uma leitura psicológica dos textos literários de Sartre, os quais me mostraram como essa ponte poderia ser frutífera.

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não faz sentido procurar na via literária uma possibilidade de expressar uma

“concretude” de conceitos supostamente abstratos, mas sim uma representação de

vivências historicamente situadas que expressam a experiência humana singular. O

que ocorre então, de acordo com este mesmo autor, é uma vizinhança

comunicante, na qual ambas as expressões resguardam suas particularidades, mas

se acessam por uma espécie de “via interna” sem mediação exterior. Isso é possível,

segundo ele, devido à interligação abstrato-concreto/universal-particular presente na

obra sartreana como um todo. Justamente pelo fato de Sartre nos apresentar estas

duas vertentes, que se comunicam todo o tempo em sua obra, desejei trazer os

conceitos e idéias sartreanas para um campo de questionamento da psicologia

social, para que possamos entender esse homem situado em relação com outros

homens através da literatura.

Ao longo de meu trabalho na prática existencialista em psicologia clínica

passei a sentir uma constante necessidade de entender o meio social no qual aquele

que procura um atendimento individual está inserido. As questões que o atravessam

fazem parte de um contexto sócio-histórico que se mostra extremamente relevante

para a compreensão de um fato que se apresenta aparentemente como singular.

Desejava, porém, encontrar não um método de pesquisa, mas algo que pudesse

expressar o meio no qual vivemos, e, além disso, que pudesse nos levar sempre a

um questionamento de uma realidade estabelecida – ao movimento. Ao mesmo

tempo, encontrava em Sartre um desejo comum de evitar uma visão “contemplativa”

das questões que nos cercam e tentar entender sempre o “abstrato concretamente”,

isto é, trazer o pensamento para a ação cotidiana. Aos poucos, como já havia

ressaltado esse autor, percebia que a literatura mostrava-se como fonte rica para

estabelecer essas pontes. A partir das perspectivas de uma psicologia social

fenomenológica realizada pela professora Ariane Ewald (2005), entendi que seria

possível construir esta pesquisa que une as perspectivas fenomenológicas de Sartre

ao campo da psicologia social.

Foi, portanto, por este percurso que surgiu o desejo e a possibilidade de

realizar este trabalho e foram também estas as principais motivações que orientaram

o caminho que irei resumir brevemente a seguir, mas antes cabe esclarecer alguns

aspectos. Ao trabalhar com Sartre e a literatura é inevitável que o tema do

engajamento se apresente de imediato, pois o filósofo foi uma das vozes mais

atuantes neste movimento. Porém, a discussão sobre a arte engajada é ampla e

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poderia por si só ser foco de uma pesquisa. Ela envolveria a exposição dos grandes

debates públicos e querelas extensas dos escritores engajados entre si, ou destes

contra os “não-engajados”. Envolveria também a utilização da arte pelas ideologias

políticas, visto que o seu poderoso papel sob a forma de dominação simbólica

sempre foi valorizado e utilizado pelos grandes sistemas. O que também poderia

abrir a possibilidade de entender como se deu, ou se de fato existiu, uma arte

engajada que não obedecesse a algum sistema, e aqui poderíamos até tentar

argumentar uma tentativa de Sartre nesse sentido. O próprio engajamento sartreano

poderia ser explorado de maneira muito mais extensa, por conta da grande

quantidade de idéias que o filósofo desenvolveu durante muitos anos em torno do

assunto, assim como a revisão de suas posições. Haveria também, por conta da

vizinhança comunicante entre sua filosofia e literatura, a possibilidade de fazer

uma leitura de sua obra literária em busca da correlação com sua proposta de

engajamento teórico. Porém, nenhum destes aspectos caracteriza estritamente meu

objetivo aqui, meu foco perpassa de fato algumas destas considerações, mas segue

um caminho diverso, intencionalmente, embora não linearmente traçado, que aponta

para um objetivo diferente. Este objetivo consiste em partir do engajamento de

Sartre, situando-o, para depois seguir uma das vias de sentido de seu

engajamento com o intuito de explorar o caráter questionador presente na

literatura, em específico a sartreana. Acredito que isto seja possível, visto que sua

postura questionadora de intelectual está presente em seus textos, no sentido de

problematizar os conflitos da existência que entende como liberdade em situação.

Minha intenção foi preparar inicialmente o terreno histórico do engajamento

sartreano para que depois pudesse, a partir dele, tomar um rumo próprio de

reflexões no sentido da relação de proximidade entre a literatura e o mundo.

Procurei fazer esta ponte através dos argumentos de Sartre que envolvem a relação

de proximidade e troca entre autor e leitor e, além disso, busquei entender a relação

da literatura como nossos próprios discursos cotidianos e como esta proximidade

pode nos levar, por uma via do sentido, a questionar a nossa própria realidade.

Tendo desenvolvido estes argumentos, busquei estabelecer por fim, uma espécie de

diálogo com os próprios personagens sartreanos no intuito de presentificar as

situações vividas por estes, dentre os quais ressalto o “personagem real” Jean

Genet, como forma de um intercâmbio dialético entre minhas reflexões teóricas e as

falas ou histórias destes personagens. Assim, procurei, por fim, estabelecer

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conexões entre o tema da bastardia em Sartre com o tema dos Outsiders, estudado

principalmente pelo sociólogo Howard Becker, pois pude perceber em ambos

também uma crítica ao que entendo como os scripts sociais, onde os bastardos e

outsiders são aqueles que se encontram “fora de lugar”. Deste modo, acredito estes

diálogos nos colocam frente à uma experiência que entendo ser capaz de permitir

uma prática daquilo que entendi como uma via de sentido do engajamento de Sartre

que permite um real encontro questionador entre autor e leitor.

1.1 Reflexões sobre uma trajetória metodológica.

Com o intuito de expor a maneira pela qual esta pesquisa foi realizada,

organizei dois pontos básicos, seguidos de uma explicação mais detalhada sobre as

orientações metodológicas utilizadas. Estes consistem em:

a) Trata-se de um estudo de revisão e análise bibliográfica.

A revisão bibliográfica consiste nas etapas de levantamento de material, leituras,

seleção e, por fim, produção do texto. Este processo se deu inicialmente de forma

abrangente, isto é, tentei restringir pouco o tipo de material a ser escolhido pois

minha intenção era a de realizar uma pesquisa que pudesse transpor as fronteiras

das áreas de estudo. Desta forma, utilizei textos literários e acadêmicos de

diferentes áreas como filosofia, psicologia social, sociologia e história. O tema

central norteou a seleção do material e funcionou como um centro unificador em

torno do qual outros autores foram convidados a dialogar. Posso dizer que este

núcleo consistiu em três pilares básicos, presentes no objetivo estabelecido

anteriormente: Sartre, psicologia social e literatura.

b) Segui uma orientação metodológica inspirada nas reflexões sartreanas sobre

o tema, o que inclui: os pressupostos da fenomenologia, a noção de processo

dialético de Questão de método e as bases da “Psicanálise Existencial” propostas

em O Ser e o Nada.

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Adotar pressupostos da fenomenologia como uma orientação para um estudo

significa, a meu ver, manter-se atento não somente a um método, mas

primordialmente a uma postura diante de um objeto de estudo. Deste modo, tive a

intenção de manter esta atitude presente a todo o momento na realização da

pesquisa e por isso creio que esta se define como estratégia metodológica, ou seja,

enquanto o caminho pelo qual o estudo foi traçado. Mas em que consiste a atitude

fenomenológica?

Sartre (2005e) explora, ao longo de O Ser e o Nada, a possibilidade

inaugurada pela fenomenologia de entender, por meio da idéia husserliana de

intencionalidade da consciência, a relação de unicidade entre o homem e o mundo,

que pressupõe que o sujeito ou a subjetividade não podem ser entendidos apartados

de sua facticidade. Diante desta visão, toda formulação teórica ou reflexão realizada

deve levar em conta esta relação, isto é, entender que o homem, ou qualquer objeto

de estudo, não pode ser compreendido fora de seu contexto.

Por conseguinte, para que esta contextualização pudesse ocorrer, busquei

dialogar sempre que possível com as outras áreas de estudos sociais, como a

história e a sociologia, a fim de realizar esta compreensão de uma forma mais

ampla. O meu objeto de estudo em si, a literatura, analisada através de uma ótica da

filosofia e da psicologia social, mostrou-se representativo deste intercâmbio de

áreas. Deste modo, compreende-se que a riqueza do estudo consiste na

comunicação entre as diferentes áreas, fato que possibilita uma nova perspectiva e

isto expressa o desejo de um estudo transdisciplinar4.

Ao seguir os passos da proposta fenomenológica, destaco outro aspecto,

desta vez ressaltado por Merleau-Ponty:

[...] (a fenomenologia) é uma filosofia transcendental que coloca em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural, mas é também uma filosofia para a qual o mundo já está sempre “ali”, antes da reflexão, como uma presença inalienável, e cujo esforço todo consiste em reencontrar este contato ingênuo com o mundo, para dar-lhe enfim um estatuto filosófico (MERLEAU-PONTY, 1999, p.1).

4 Sobre a Transdisciplinaridade,ver: NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdiciplinaridade. São Paulo: TRIOM 1999. O estudo transdisciplinar propõe a idéia de que a partir da confrontação das disciplinas obtemos novos dados que as articulam entre si e que nos dão uma nova visão que as atravessa e ultrapassa.

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A atitude de colocar em suspenso, descrita pelo fenomenólogo, diz respeito a

uma tentativa de evitar a “atitude natural”, ou seja, todas aquelas concepções

cotidianas e banais que pressupõem, como resume Chauí (1988), “que as coisas

exteriores existem tais como se as vê; portanto, natural e espontaneamente” (p.12).

Segundo esta autora, quando se descobre que cada indivíduo possui uma posição

ou “tese do mundo” diferente dos demais, estas concepções tornam-se confusas e

problemáticas. Edmund Husserl, criador da fenomenologia, propõe então que

façamos uma redução fenomenológica (epoché) para suspender ou por “entre

parênteses” nossa “tese do mundo”, com o intuito de captar o fenômeno tal qual ele

se apresenta para a consciência. Esta atitude significou para mim, entender que

devia constantemente direcionar um olhar desabituado ao meu objeto de estudo,

estranhá-lo sempre que possível para captar mais uma vez as diferentes vicissitudes

que ele me apresentava e é neste sentido que identifico a postura fenomenológica

em direção a um objeto de estudo.

Falo, no entanto, de um objeto que se move e que está em constante

transformação - que questiona enquanto é questionado, que se transforma na

medida em que nos transformamos. Neste sentido, acredito que a relação que

ocorre na pesquisa é, como nas demais relações que envolvem a realidade humana,

dialética. Para Sartre, afirma Maheirie:

[...] o método deve ser necessariamente dialético, partindo das contradições, negações e superações [...]. Deve, em outras palavras, buscar o movimento de totalização histórica da singularidade na interseção da totalização histórica mais geral (MAHEIRIE, 1994, p.126).

Foi de acordo com estas noções que busquei entender o processo de estudo,

tentando permitir questionamentos que puderam produzir contradições, avanços e

recuos, e transformações para, a partir daí, gerar o corpo maior do trabalho. Entendo

que cada parte em si, como propõe Sartre (2005e), pode ser entendida como

reveladora da totalidade, sem jamais esgotá-la. Cada questionamento deve suscitar

múltiplos caminhos possíveis, o que o filósofo chamaria de um novo “campo de

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possibilidades” 5. No entanto, tive de manter constantemente em cena aquilo que

une toda essa multiplicidade de questionamentos, aquilo que os integra em uma

unidade significativa.

Por fim, Sartre (2005e) indicou, através de sua Psicanálise Existencial,

caminhos que me ajudaram a pensar este trabalho, que resumo da seguinte

maneira:

· que o posicionamento para o futuro é constitutivo da produção presente, e que o objetivo apresentou-se como um centro unificador;

· que a pesquisa mostra-se reveladora por esta própria busca;

· que a unidade se dá, portanto, na projeção que visa o objetivo final, na capacidade de projetar no futuro o que é desejado alcançar;

· que estes fatores permeiam todas as escolhas no presente: o

material selecionado, o conteúdo produzido, os conceitos trabalhados, os autores e caminhos escolhidos , mas não os determina;

· que entendo o movimento de ida ao futuro retorno ao presente como

representante do modo de ser temporal da consciência intencional, e com isso queremos dizer que esta intencionalidade rege a unidade significativa do projeto;

· que pelo fato da unidade significativa se dar pela projeção do

objetivo, ela é passível de movimento e transformações, ou seja, permite o movimento dialético.

Todas estas argumentações tentam dar conta de demonstrar minha tentativa

de ter buscado ao máximo um constante movimento na maneira pela qual realizei a

pesquisa no intuito de manter em cada linha traçada a esperança de permanecer

acesa a chama do questionamento. Devido a estas características posso finalmente

argumentar que meu caminho metodológico se aproxima das idéias da metodologia

filosófica proposta por Folscheid e Wunenburger e que resume o sentimento restante

destas argumentações metodológicas:

5 O termo é de Sartre (1972c) que define campo dos possíveis como “o objetivo em direção ao qual o agente supera sua situação objetiva” (p.79).

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Tal é o objetivo de uma dissertação, que, através de questões, acadêmicas ou inéditas, permite ao aprendiz de filósofo confrontar-se com modos de raciocínio, hipóteses, escolhas, acompanhados de suas premissas e conseqüências [...] Compreende-se assim por que uma dissertação se enriquece ao apoiar suas hipóteses e seus raciocínios numa cultura filosófica histórica, que sirva não de molde, mas de matéria-prima a um pensamento vivo e organizado (FOLSCHEID E WUNENBURGER, 1997, p.11).

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2 Percursos históricos do engajamento sartreano.

O engajamento literário de Sartre fez parte de um movimento maior que veio

a tomar forma ao longo do tempo de acordo com uma série de redefinições políticas

que colocavam em questão o papel do escritor na arena pública. Deste modo,

procurei primeiramente entender a situação histórica do período do pós-guerra na

França com o objetivo de situar historicamente o engajamento de Sartre, isto é,

compreender o contexto que nos oferece um sentido à sua proposta de engajamento

literário enquanto um fenômeno situado e coerente com sua época. Para isso,

apresento alguns de seus interlocutores, suas relações políticas, em especial com o

Partido Comunista Francês, e seus principais movimentos nos debates públicos.

Esta exposição indicou uma estreita relação dos escritores com o seu tempo que

não se restringia à experiência de Sartre, mas mostrava, na verdade, toda uma

cultura local engajada que se apoiava em movimentos ainda mais antigos.

Em seguida, procurei expor brevemente de que modo surgiu, a partir da

modernidade, a possibilidade de existir uma literatura engajada, enquanto

movimento mais amplo que teve como base as reformulações da relação da arte

com a política. Mostrou-se necessário também ressaltar que tais mudanças

permitiram o surgimento, neste percurso, do que usualmente é entendido como “arte

pura”, que é constantemente colocada em oposição à “arte engajada”, e que se

sustentava justamente no crescente distanciamento entre a literatura e os debates

sociais. Após este panorama busquei entender quais foram, a partir destes aspectos,

as críticas de Sartre à tradição literária que constituía o “céu povoado de estrelas”

dos escritores de sua geração, e de que maneira isto se apresentou no seu

“manifesto” engajado.

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2.1 A situação: o pós-guerra.

O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial com a retirada dos

alemães e a Libertação da França, sobretudo da área Ocupada, centralizada em

Paris. Uma das grandes memorialistas do período e companheira de Sartre, Simone

de Beauvoir (1995), conta em A força das coisas6 a realidade de um país ainda

perdido e desorganizado, no qual faltava carvão, gás, eletricidade, comida e os

transportes mal funcionavam. Na euforia da Libertação, a imprensa, quieta e

censurada pela Ocupação Alemã, volta não somente a respirar, mas a bradar com

força total. Mais de 30 jornais são lançados em Paris em um mesmo ano, conforme

destaca Cohen-Solal (1986), cada qual contando com escritores, jornalistas e

intelectuais de peso que definem suas posições políticas7. Os jornais passam a dar

detalhes sobre os horrores da guerra e os massacres; através de fotos e textos

jornalísticos ficava-se sabendo das câmaras de gás e fornos crematórios nazistas:

“Esse passado brutalmente descoberto jogava-me de novo no horror; a alegria de

viver cedia à vergonha de sobreviver”, lamenta Beauvoir (1995, p.18).

É neste cenário que Sartre tem seu grande “boom”, ou o que foi chamado por

alguns de uma espécie de “moda existencialista”, uma mistura de culto à

celebridades com busca por bodes expiatórios. O próprio termo existencialismo8,

atribuído à filosofia sartreana, foi criado à revelia de Sartre, como descreve Beauvoir:

Essa palavra (existencialista) estava doravante automaticamente ligada às obras de Sartre e às minhas. Durante um colóquio organizado no verão pelas edições du Cerf – isto é, pelos dominicanos - , Sartre recusara que Gabriel Marcel lhe aplicasse esse rótulo : “Minha filosofia é uma filosofia da existência; o existencialismo, eu não sei o que é”. Eu compartilhava de sua contrariedade. Escrevera meus romances antes mesmo de conhecer este termo, inspirando-me na minha experiência, e não num sistema. Mas protestamos em vão. Acabamos por assumir o epíteto que todo mundo usava para nos designar (BEAUVOIR, 1995, p.42).

6 Outro livro de Beauvoir que retrata com detalhes, embora em forma de romance, a experiência do pós-guerra é Os Mandarins. 7 Winock (2000) destaca: a imprensa comunista L´Humanité; Front National e Ce Soir; socialista Le Populair;, do MRP L’Aube e Figaro; e os que nasceram diretamente da Resistência: Défense de la France (que virá a ser France-Soir) L’homme libre, Franc-Tireur, Liberation e Combat. (p.527). 8Para uma discussão sobre o termo, ver: Ewald, A.P. Fenomenologia e Existencialismo: articulando nexos, costurando sentidos. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v.2, p-148-162, 1 sem. de 2008. Disponível em: www.revispsi.uerj.br/v8n2/artigos/pdf/v8n2a02.pdf.

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Após a adoção do termo e diante do que a própria Simone de Beauvoir (1995)

denominou de ofensiva existencialista9, a imprensa de Paris contra-ataca e os

dedica as capas dos jornais, exibindo Sartre como mentor do movimento. O caldo

cultural que permite tanta ascensão se baseia em certos ingredientes fundamentais,

como, por exemplo, uma crise dos valores tradicionais e a impossibilidade de não se

pensar na responsabilidade social de cada indivíduo que vive sua época “na carne”.

O próprio Sartre (2000) desenvolve estes temas no seu texto sobre a libertação de

Paris, no qual fala que um ano depois da retirada dos alemães o ar festivo ainda não

tinha deixado a cidade e as pessoas continuariam a comemorar todo ano a explosão

da liberdade e a quebra com a ordem estabelecida em busca da invenção de uma

nova ordem. Este clima de frenesi de uma liberdade reencontrada após anos de

Ocupação alemã, misturado à inquietude e pessimismo, devido também à aparição

da arma atômica e ao risco de novos enfrentamentos, encaixava perfeitamente com

as dimensões de liberdade, responsabilidade e angústia do pensamento sartreano

(DENIS, 2002). Além disso, na tentativa de compreender este “estrépito”, diz

Beauvoir (1995, p.43), Sartre já denunciava em A nacionalização da literatura10 que

havia um interesse nacional por parte da França em valorizar seus “produtos da

terra” como alta costura e a literatura, já que se tornara uma potência de segunda

ordem.

Neste contexto, “a moda sartreana transforma-se no primeiro produto de

consumo da imprensa faminta”, resume Cohen-Solal (1986, p.336-337). Mas não

eram somente os existencialistas que incendiavam a imprensa; eles eram também o

foco principal. Nesse momento, todos os jornais produziam em ritmo frenético e

participavam das guerras político-literárias. Penso que um dos jornais que talvez

expresse mais significativamente este período e que também estava ligado à

posição política de Sartre e Beauvoir era Combat. Filho da resistência, criado a partir

das publicações do movimento Combate11, este era o jornal clandestino com maior

9 No mesmo ano, 1945, Simone publica O sangue dos outros e Sartre dois volumes da trilogia Os caminhos da liberdade. Também neste mesmo ano nasce o primeiro número da revista Les Temps Modernes, importante revista do período fundada e dirigida por Sartre. Ainda em 45, Sartre faz a conferência O existencialismo é um humanismo e Simone estréia a peça As bocas inúteis. (BEAUVOIR, 1995, p.42). 10 Este texto foi publicado também em 1945 e republicado em 1948 na coletânea de ensaios de Sartre Situações II (CONTAT & RYBALKA, 1970). 11 O Combate foi um dos movimento mais organizados e conhecidos da Resistência durante a Ocupação Alemã, seu objetivo, resume Lottman (1987), era “continuar na política do pós-guerra com o mesmo espírito e ideologia da luta pela libertação” (p.309).

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tiragem durante a Ocupação e que, depois da Libertação de Paris, assumiu uma

política ainda regida pela ideologia da Resistência. Na esperança de preparar o

terreno de uma possível Revolução, o jornal estampava seus planos no subtítulo “da

Resistência à Revolução”, que exprimia o sentimento de muitos intelectuais de

esquerda (BEAUVOIR, 1995, p.12).

Combat foi também responsável pela divulgação de idéias e pensamentos de

uma nova geração de escritores que incluía, além de Sartre e Beauvoir, nomes

como o de Albert Camus, considerado por Michel Winock (2000), em O século dos

intelectuais, como uma das opiniões mais influentes do período12. O livro de Winock

oferece ao leitor um panorama sobre o século XX, divido por ele em três períodos

históricos representados cada qual por um intelectual de peso, sendo o pós-guerra

representado por Sartre. Já Herbert Lottman (1987) com seu excelente livro, embora

pouco citado, A rive gauche, se dedicou somente ao período do pré e pós-guerra

(dos anos 30 aos 50) que, na sua visão, demarcam a ascensão e queda do

intelectual engajado, que tinha como seu local de trabalho os cafés públicos da

margem esquerda do Sena. O autor também ressalta a importância de Combat

como um jornal que mostrava a imagem de “uma jovem geração esquerdista,

impaciente com os mais velhos, cujos acordos e corrupções haviam enfraquecido a

França a véspera da Segunda Guerra Mundial” (p.309). Sartre e Simone de

Beauvoir, que ainda não tinham sua própria revista, encontravam-se em total

afinidade com a política deste jornal13, ele “exprimia nossas esperanças”, confessa

Beauvoir (1995), e isto significava para ela e Sartre que a França engajava-se no

caminho do socialismo, e pensavam que este país fora abalado “em profundidade

suficiente para poder realizar, sem novas convulsões, um remanejamento radical de

suas estruturas” (p.12).

Segue-se que neste clima da Libertação as principais forças políticas

francesas da Resistência permaneciam unidas para punir os colaboracionistas,

nome designado aqueles que colaboraram com o regime nazista. É neste momento

que ocorre então uma grande “lavagem de roupa suja” entre os escritores, que

aliavam “a pena à espada” para eleger os heróis resistentes e os traidores:

12 Segundo Winock (2000) Camus, que era diretor de Combat dividia com Mauriac do Figaro a predominância da opinião na imprensa diária. 13 Sartre publica em Combat uma série de artigos intitulados Passeando pela Paris revoltada (LOTTMAN, 1987). Foi também como correspondente deste jornal que ele viaja aos Estados Unidos pela primeira vez em 1945 (COHEN-SOLAL, 1986).

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Dos homens de espada aos de pena, o consenso é geral, nestes meses em que uma hiperlucidez vingadora se impõe, em que a moralidade se mede pela fita métrica dos meses de resistência, em que o mundo inteiro afinal parece vacilar entre monstros e heróis. (COHEN-SOLAL, 1986, p.326).

Em 9 de setembro de 1945, o jornal Les Lettres françaises publica sua

primeira edição na Paris libertada, intitulando-se orgulhosamente órgão do CNE

(Comitê Nacional dos Escritores)14. Este primeiro número traz o Manifesto dos

Escritores Franceses assinado por mais de cinqüenta escritores, dentre eles, Sartre,

Camus, Aragon e Malraux, que faziam um apelo por “justa punição” daqueles que

colaboraram com o regime nazista, chamados de “impostores” e “traidores”

(LOTTMAN, 1987, p.318). Inicia-se assim a fase de “caça aos colaboracionistas”

onde os principais militantes da Resistência fazem valer o que entendem por justiça.

Na pauta das grandes discussões, um único tema: quem colaborou? O que pode ser

considerado um ato colaboracionista? Qual a punição necessária? A ambigüidade

presente nestes debates maniqueístas é muito bem ressaltada por Lottman (1987),

que afirma, apesar disso, que os pronunciamentos do CNE, líder destes debates,

tinham, de fato, força de lei e que por conta destas depurações muitos “traidores”

chegaram a ser fuzilados. No Manifesto, os escritores concordavam que não poriam

seus escritos à disposição de editoras que publicassem colaboracionistas. Além

disso, eles prepararam sua “lista Otto15” particular, uma espécie de “lista negra” de

escritores colaboracionistas16, apesar de não pedirem o banimento dos mesmos, e

ainda organizaram um Comitê de Expurgos de Editores e Livreiros, do qual Sartre

fazia parte junto com Vercors, Pierre Seghers, e representantes do governo e de

editoras com o objetivo de impor o rigor também às editoras. Dentre estas, a censura

que mais chamou a atenção foi o banimento de qualquer publicação sob o símbolo

da La Nouvelle Revue Française (NRF), antigo marco de prestígio nacional agora

manchado pela era colaboracionista onde ficara sob o comando de Drieu La

14 Criado por Jean Paulhan e Jacques Decour em 1941, o Comitê Nacional dos Escritores era destinado a ser o órgão da resistência literária. Segundo Denis (2002) ele assegurará na Libertação a “depuração” dos escritores e intelectuais. 15 Durante a Ocupação, a Associação dos Editores Franceses assinou um acordo com a Propagandastaffel nazista, onde cada editora passaria a ser responsável por não publicar nada anti-alemão, ou livros proibidos na Alemanha. Logo depois a Associação publicou uma lista de obras proibidas que ficou conhecida como “lista Otto” em homenagem a Otto Abetz, propagandista nazista especializado em intercâmbio cultural franco-alemão (LOTTMAN, 1987, p.111; p.227). 16 Dentre estes destaco: Brasillach, Céline e Drieu La Rochelle.

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Rochelle. Diante disso, podemos ver claramente o que Lottman (1987) entendeu

como uma rive gauche17 cindida pelo apelo por “justa punição”, que se caracterizava

de um lado por aqueles que o apoiavam fervorosamente, como os principais

militantes do CNE, os comunistas e o grupo Combat, e por outro os partidários do

“esqueça e perdoe” representados principalmente por Mauriac e Paulhan. Com

relação a Sartre e Simone, conclui o autor, mantinham a posição de apoio a lista

negra do CNE, embora a achassem vã, mas concordavam que estes escritores não

mereciam lugar no “mundo a construir” ( p.323).

Toda esta dinâmica apresenta um pouco do clima das guerras “político-

literárias”, contexto que permite compreender a situação do engajamento de Sartre.

Considero necessário destacar então, que, a meu ver, o momento do pós-guerra

pode ser entendido em dois períodos distintos: o primeiro, parte da Libertação de

Paris e vai até 1947, e o segundo, parte deste ano em diante, onde as posições

políticas se reconfiguraram ou apenas ficaram mais explícitas. Relata Beauvoir

(1995) que na euforia da Libertação “a luta de classes ainda não estava nítida –

Gaullistas, comunistas, católicos e marxistas confraternizavam” (p.16). Estas forças,

que viriam a manifestar posteriormente suas diferenças fundamentais,

compartilhavam neste momento de uma posição próxima, cada qual com o seu lugar

na formação da nova República18. Entretanto, Winock (2000) fala de duas vertentes

que ainda assim se destacaram neste período: o Partido Comunista e o “mundo

católico”. Embora estes representem “um contra o outro, o conflito secular das duas

Franças, a laica e a cristã” (p.535), este era o tempo em que estas linhas se

encontravam de alguma forma entrelaçadas, motivadas por certas “familiaridades”

além da Resistência, como, por exemplo, um interesse intelectual pelo marxismo,

uma visão de uma possível ruptura com o regime capitalista e burguês, e uma

preocupação com a pobreza e com os operários. Isto não significa, porém, um

posicionamento político único dos católicos, pois como afirma Winock (2000) “o

mundo católico já não apresenta a mesma unidade da época do caso Dreyfus” (p.

547). Esta divisão, analisada em detalhes por Caio Liudvik (2007), ocorreu entre o

episcopado que compartilhara de uma doutrina colaboracionista em Vichy e um

17 Margem esquerda do rio Sena em Paris, famosa por sua efervescência cultural, literária e política. 18 No imediato pós-guerra a França passa a ter um Governo tripartidário, composto por comunistas (PCF), gaullistas (MRP) e socialistas (SFIO - Seção Francesa da Internacional Operária) que durará até 1947 com a saída de De Gaulle do governo (em 20 de janeiro de 1946) e depois dos comunistas (em 5 de maio de 1947) (COHEN-SOLAL, 1986, p.385).

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movimento proveniente da Resistência católica que viera fundar ao lado de De

Gaulle, também católico, o Movimento Republicano Popular (MRP). Havia também

um grupo de jovens católicos “abertos”, que partilhavam da causa do engajamento e

que eram representados por Emmanuel Mournier e sua importante revista Esprit19

(WINOCK, 2000).

É interessante pensar que é principalmente para estes dois pólos, ou seja, o

PC e o “mundo católico”, que Sartre (1987) vem contra-argumentar em sua “defesa”

na conferência O existencialismo é um humanismo, realizada em outubro de 1945.

Na conferência, o filósofo diz que para os comunistas, sua filosofia motivava as

pessoas a permanecerem no imobilismo do desespero, o que levaria a uma filosofia

contemplativa e, portanto, burguesa. O acusavam de enfatizar o lado sórdido da vida

e de ressaltar em demasia a subjetividade e por isso “esquecer da solidariedade

humana” (p.3). Já os católicos o denunciavam por recusar a seriedade dos

empreendimentos humanos ao estabelecer a gratuidade dos atos ao negar Deus,

tornando impossível o julgamento frente aos atos de outrem. Aqui já é possível

vislumbrar como Sartre desde o início se manteve na mira dos ataques das

instituições e personalidades mais poderosas, e como isto definiu o que ele entende

por “destino solitário” do intelectual e que podemos entender como sua própria

condição de “bastardo”. Quanto ao Partido Comunista, este é apenas o início de

uma longa relação de conflitos e aproximações com este poder que constitui um pólo

político poderoso e influente neste período e sem o qual não podemos entender os

movimentos e posições do engajamento de Sartre.

Em cinco anos o Partido Comunista Francês (PCF), anulado pela interdição

em 1939, ascendeu ao primeiro plano da esquerda francesa, acima inclusive do

Partido Socialista. Embora o Partido tenha entrado atrasado na Resistência por

conta do pacto germano-soviético de 1939, rompido por Hitler em 1941, seus

grandes representantes foram os heróis do movimento contra a Ocupação alemã. Ao

final do período de opressão e guerra, o PCF sai com prestígio e intitula-se o

“Partido dos Fuzilados”, devido ao grande número de resistentes comunistas

19 Segundo Lorenzon (2008), Mournier planejou o lançamento de Esprit em um congresso em 1932 com o objetivo de lutar contra uma civilização burguesa e individualista e ser representante da nova geração que visa uma transformação social. Por este motivo, posteriormente, na época em que estou retratando, também Esprit teve que se posicionar em relação ao PC. Diz Winock (2000): “muitos colaboradores de Esprit vão gravitar, como tantos outros, em torno do Partido. Não que se filiem a ele, mas o comunismo lança um desafio à civilização ocidental; representa uma solução de ruptura com o regime capitalista e burguês” (p.533).

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assassinados. Diz Winock (2000) que em 24 de outubro de 1945 a primeira página

de L’Humanité, jornal do próprio Partido, estampa o seguinte título: “O Partido

Comunista Primeiro Partido da França” (p.540). Além dos grandes resistentes já

filiados, o PCF obteve numerosas adesões após a vitória de Stalingrado contra os

Nazistas, ressaltando a imagem de Stálin e seu prestígio. Tanta ascensão,

caracterizada principalmente por Winock (2000) como “um dos maiores fenômenos

da política francesa” (p.540), fez com que os intelectuais fossem cogitados e até

seduzidos a se filiarem, visto que eram bastante cortejados, pois significavam para o

Partido figuras de prestígio que funcionavam como pólo de influência social20. Na

maioria dos casos, a dinâmica era caracterizada por um jogo de interesse mútuo,

pois, também para o intelectual, o “mundo” comunista - comenta Lottman (1987) -

mostrava-se tão completo, com tantos jornais, revistas, congressos e eventos sociais

“que podia-se acreditar que era o mundo inteiro” (p.360). Deste modo, ressalta

Winock:

No fascínio que o comunismo exerce logo depois da guerra, a impressão de poder que ele transmite pesa muito. Aderir ao comunismo é, não somente entrar para uma organização francesa cuja direção tem múltiplas ramificações, mas também uma opção de pertencer a um conjunto geopolítico destinado a crescer, que tem como líder a URSS. O comunismo é o futuro. Filiavam-se a ele na euforia da vitória ou apenas para garantir um lugar (WINOCK, 2000, p.537).

Diante desta situação, Sartre também, obviamente, é intimado a se posicionar

em relação ao PCF, e neste caso, a questão para muitos era: por que não se filia?

Como parte da esquerda intelectual e membro do CNE 21, assim como assíduo autor

de textos para seu veículo principal Les Lettres Françaises, a proximidade com os

militantes do PC era grande, visto que trabalhavam juntos em questões

fundamentais de sua época. Benoit Denis (2002) afirma o que, a meu ver, mostra-se

como ponto fundamental nesta discussão envolvendo o PCF. Este autor argumenta

que, desde o imediato pós-guerra, com a predominância política do PCF na política

20 Por conta da adesão de Picasso ao PC, L´Humanité publica com orgulho uma manchete de cinco colunas: “Picasso, o maior pintor vivo, entra para o Partido da Resistência” (LOTTMAN, 1987,p.292). A manchete corrobora com o argumento de que o PC buscava adesões através do prestígio público de seus filiados. 21 O comitê não era oficialmente um órgão do Partido embora fosse composto principalmente por militantes comunistas da Resistência

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francesa, todo tipo de engajamento teve que se posicionar de alguma maneira em

relação a este partido. Por esta razão, a situação do intelectual de esquerda é

caracterizada por uma dificuldade fundamental entre manter uma

independência em relação ao Partido Comunista sem entrar numa oposição

frontal com ele, conclui Denis. É justamente nesse quadro que Sartre se

encontrava, na medida em que os movimentos políticos deste período aos poucos

se definiam, e ele tentava manter-se fora do PC ao mesmo tempo em que o apoiava.

Deste modo, Sartre se mostrava representativo do que John Gerassi (1990) definiu

como o destino solitário da missão do intelectual: “[esta] Sartre jamais cansou de

repetir, é criticar, opor-se, denunciar” (p.46). Papel que Beauvoir definia de modo

semelhante:

[...] suspeito entre os burgueses, apartado das massas, Sartre condenava-se a não ter público, mas apenas leitores; essa solidão, ele a assumia de bom grado, pois ela lisonjeava seu gosto pela aventura. Nada mais desesperado do que essa experiência, nada mais alegre22(BEAUVOIR, 1995, p.122).

Beauvoir (1995) relata ainda que, embora eles mantivessem relações

amistosas para com os resistentes comunistas, Sartre não queria se filiar ao Partido

por achar que, no plano político, os simpatizantes deviam representar fora do PC o

papel que a oposição assume no interior dos outros partidos no sentido de apoiar

criticando. Mas este posicionamento era difícil de ser sustentado, principalmente

depois que Sartre, com a abertura de Les Temps Modernes em outubro de 1945,

passa a fazer parte do terreno mais disputado e incendiário de todos: o da imprensa

intelectual. A revista logo se tornou uma das principais do período23. Como

ressaltado por Lottman (1987), “seu conselho editorial e seu índice pareciam reunir

tudo quanto era vital na Paris do pós-guerra” (p.337). Este grupo era composto por

nomes como, além de Sartre e Simone, Raymon Aron, Michel Leiris, Maurice

Merleau-Ponty, Albert Ollivier e Jean Paulhan24, que na época, segundo Beauvoir

(1995), não combinavam. Ela nos conta que Leiris sugeriu o nome Lê Grabuge

22 Esta sensação “alegre” de aventura de Sartre parece mudar como a própria Simone (1995) nos mostra no decorrer de suas observações, pois ele virá a descobrir a importância política de seu ser-para-outrem. 23 No vácuo criado pela NRF, partilhavam o primeiro lugar entre as revistas literárias de esquerda: Europe (mensário semi-oficial do CNE), Esprit e depois Les Temps Modernes (LOTTMAN, 1987). 24 Para Lottman (1987), o “herdeiro moral” da NRF.

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(briga, tumulto) que não foi adotado “porque queríamos revolucionar, é verdade, mas

também construir” (p.21). O grupo desejava um nome que indicasse que estavam

engajados na atualidade e, logo, optaram por “Tempos Modernos” que fazia, diz

Simone, uma agradável referência ao filme de Charlie Chaplin.

Sartre inaugurou a revista com sua polêmica Apresentação, texto que definiu

pela primeira vez seu engajamento como escritor e que é considerado por todos

como um “autêntico manifesto”. Portanto, logo de início, Sartre entra no cenário das

disputas intelectuais escolhendo o estilo que sua biógrafa Annie Cohen-Solal (1986)

denominou de “Sartre-assassino”, que segue desfiando programas e definições a fim

de “mudar ao mesmo tempo a condição social do homem e a concepção que tem de

si mesmo; [e] dar à literatura o que nunca deveria ter deixado de ter, uma função

social” (p.338). Era de se esperar que a revista já tão aguardada, com um texto

inaugural inquietante, tivesse uma grande repercussão, lembrando ainda que Sartre

encontrava-se no auge da ofensiva existencialista. A própria Simone de Beauvoir

(1995) comenta que a Apresentação provocou discussões apaixonadas que

perduraram por muito tempo, e que, para eles, este fato mostrou que a fala de Sartre

tinha o poder de, ao mesmo tempo, convencer e indignar. Na opinião de Simone, o

público estava ávido para reconhecer o mundo mudado, mas não estava preparado

para renunciar à aura de eternidade em torno da literatura: “A leitura devia

transportá-lo (o leitor) para esferas superiores onde reina soberana, a obra de arte.

[...] acharam um sacrilégio ele (Sartre) ter feito o céu descer à terra (p.45).

O escritor André Gide, por exemplo, foi um dos primeiros a se pronunciar em

tom irritado e irônico (COHEN-SOLAL, 1986), mas a reação principal partiu do PCF.

Após o lançamento da revista, Sartre fora convocado para uma reunião com Roger

Garaudy e Mougin que o acusaram de divulgar uma filosofia não-marxista que atraía

os jovens, afastando-os do PC. Fatos como este parecem sustentar a opinião de

Lottman (1987) de que Le Temps Modernes e Sartre tinham também o papel de

cobaias para a experiência de saber se era possível que intelectuais independentes

trabalhassem em harmonia com o Partido sem a ele se subordinar. Ao encontro

privado seguiu-se uma série de ataques públicos iniciados pelo próprio Garaudy que

ficara encarregado de combater além de Sartre, outros como Mauriac, Malraux e

Koestler (WINOCK, 2000). Em um artigo para Les Lettres Fraçaises denominado

Littérature de fossoyeurs (literatura de coveiros), Garaudy intitula Sartre de “falso

profeta” cuja filosofia é reacionária e doente. O filósofo torna-se também alvo do

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Pravda25, que caracterizou o existencialismo como “uma mistura nausabunda e

pútrida” (LOTTMAN, 1987, p.339). Depois, mais um ataque, desta vez de Henri

Lefebvre que o chama de “máquina de guerra” (MÉSZÁROS, 1991, p.10) e ainda em

La Pensée foi publicado La sainte famille existencialiste de Mougin, que era,

segundo Beauvoir (1995), “outra magistral execução, no dizer dos entendidos do

PC” (p.122). Para ela, mesmo Garaudy, embora qualificando Sartre como “coveiro

da literatura”, conservava certa decência no insulto, mas Jean Kanapa, antigo aluno

de Sartre, em L’existencialisme n’est pas um humanisme26 chamava-os de fascistas,

“inimigos dos homens” e Sartre de “animal perigoso27 (p.122). Em 3 de junho de

1945, continua Beauvoir, La Croix, um jornal católico, denunciara no existencialismo

ateu “um perigo mais grave que o racionalismo do século XVIII e o positivismo do

século XIX” (p.46), e o Samedi-Soir apontou o existencialismo como uma filosofia

que só convinha a um povo doente, e que moral e fisicamente só gostava de sujeira.

Todas essas acusações já alcançavam um segundo momento do pós-guerra

que se caracterizava por uma mudança no cenário político. No ano de 1947,

novamente os familiares movimentos de rachaduras ideológicas vêm à tona na Paris

repartida em pólos opostos. Se lembrarmos os distantes, mas ainda assim presentes

embates entre os dreyfusards e antidreyfusards28, depois entre resistentes e

colaboracionistas, podemos entender que em uma época na qual o próprio mundo

encontrava-se partido pela Guerra Fria, a situação de uma cidade com tal histórico

de divisões não seria diferente. De um lado URSS, de outro a América do Norte,

Leste/Oeste, Comunismo/Capitalismo, tempo que passa a demarcar uma separação

que virá dar origem a teoria dos dois blocos 29, que inaugura uma época marcada

pela escolha, noção amplamente utilizada pelos existencialistas em geral. Winock

resume os principais fatores que contribuíram para o novo cenário:

25 Principal jornal russo deste período. 26 Fazendo referência a conferência de Sartre O existencialismo é um humanismo. 27 Segundo Winock (2000) Kanapa e Garaudy exerciam o papel de chefes da polícia intelectual a fim de garantir que “as artes, a literatura, a ciência, todas as produções do espírito devem concorrer para o triunfo do stalinismo” (p.548). 28 Uns partidários da defesa e outros da acusação de Albert Dreyfus, conforme veremos no terceiro capítulo. 29 Formulada por teóricos que pressuponham a divisão política em “blocos” na época da Guerra Fria. Dentre estes, Winock (2000) ressalta Raymon Aron que lança em 1948 seu livro Le Grand Chisme através do qual “profetiza” o futuro da Guerra fria que não resultaria em paz e tampouco em guerra.

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Desunião da Resistência, fracasso da unificação operária, renascimento das forças conservadoras (criação do RPF por De Gaulle em abril de 1947), peso das circunstâncias, pressões hereditárias e contexto internacional que, no final de 1947, resulta na Guerra Fria: a sonhada Nova República cai na indefinição. (WINOCK, 2000, p.555).

É também em 1947 que o PC concretizou de fato sua nova linha de atuação,

comumente adjetivada de dura, que teve como marco a criação do Cominform

(Departamento de Informação Comunista), versão atualizada do Comintern, órgão

que reforçava o controle da política fora da URSS. Era uma época, diz Lottman, que

“um intelectual da Rive Gauche já não podia ter a sua carteirinha do PCF e continuar

dizendo o que pensava” (1987, p.359), uma época marcada pela política de Andrei

Jdanov, general na Segunda Guerra e que era responsável pela coesão ideológica

do Partido. Foi então neste momento que, segundo Beauvoir (1995), o PCF,

enfraquecido após sair do Governo em 1947, voltou-se para o internacionalismo e

viu-se obrigado a aceitar a política de Stálin.

Concordo com Lottman (1987) quando afirma que “para entender as batalhas

intelectuais da Rive-Gauche no pós-guerra, é preciso levar em conta esta parte da

história do Partido Comunista” (p.358), pois era contra ou de acordo com ele que os

intelectuais se pronunciavam e acredito serem estes eram os fatores que marcavam

o tom e as paixões dos discursos de Sartre. Isto se deve justamente porque o

filósofo, neste terreno repartido, tentou concretizar a posição de uma “terceira via”

política, a qual vinha tentando manter desde o início30. Ao lado de Mournier, Camus,

Merleau-Ponty e Simone de Beauvoir, Sartre assina um “apelo” em Esprit contra a

política dos blocos, onde a França se tornaria novamente um “campo de batalhas”

resumindo-se a sua servidão ao poder externo31(LOTTMAN, 1987). Neste mesmo

momento, Sartre rebate a uma enxurrada de críticas que vinha recebendo dos

comunistas, quando decide abrir a discussão em torno do “Caso Nizan”, que reúne

para ele uma série de interesses: além do ataque aos comunistas, uma luta a favor

30 Vale lembrar aqui que esta posição pode ser vista como tipicamente sartreana, já que mesmo em seus escritos filosóficos iniciais ele recorre a fenomenologia como uma visão que o permitira encontrar uma “terceira via” entre o idealismo e o materialismo. 31 Simone de Beauvoir (1995) relata que, em visita aos EUA, Sartre ouviu durante um almoço o diretor das Public Relations da Ford mencionar uma próxima guerra contra a URSS: “Mas vocês não têm fornteira em comum: onde será a luta? - perguntou um jornalista do PC - “Na Europa – respondeu ele, com naturalidade” (p.38).

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do antigo amigo de adolescência acusado de um dos temas sartreanos favoritos – a

traição.

Cohen-Solal (1986) conta que após a morte de Nizan, em 23 de maio de

1940, um ano depois de este pedir demissão do PC, surgiram uma série de calúnias

contra ele. Nizan, que fora durante 11 anos membro ativo do PC, passou então a ser

ignorado e associado a um “traidor”. Após pesquisar sobre o caso e recolher

informações com a mulher de Nizan em Nova Iorque, Sartre assume a chefia de um

grupo de intelectuais que publica no Le Figaro Littéraire um comunicado dirigido ao

PCF pedindo provas da traição de Nizan. Neste pronunciamento intitulado “O caso

Nizan” os defensores afirmavam que a acusação de traição por parte do PC tinha

como verdadeira razão a saída de Nizan na época do pacto germano-soviético. A

isto se seguiu a publicação completa da cronologia do caso em Les Temps

Modernes, estabelecendo assim “o rompimento entre os intelectuais independentes

e o PCF (que) já estava consumado e só terminaria por determinação de Sartre”

(LOTTMAN, 1987, p.340-341).

Outro ponto de tensão entre Sartre e os comunistas foi a estréia, em 1948, da

sua peça As Mãos Sujas, que a partir de então passou a ser usada como

instrumento de propaganda política contra o comunismo. Porém, Beauvoir (1995)

afirma que Sartre não pretendera escrever uma peça de propaganda política,

embora ela tenha assumido este contorno por colocar como protagonistas os

membros do PC. É claro que diante do contexto que estou retratando, o filósofo não

sairia imune a estas interpretações, pois encontrava-se cada vez mais envolvido

com a política e a peça fora escrita justamente na época que coincide com o

lançamento da LDR, uma liga política a qual aderiu e que o colocava novamente em

uma situação delicada com o Partido. Beauvoir (1995) não considerava a peça

“anticomunista”, mas estes se sentiram atacados ao mesmo tempo em que a

burguesia o “cobriu de flores”, para ela, isto ocorria por conta da identificação do

público com o personagem Hugo, que representava um jovem que fora encarregado

de um assassinato que remetia aos mandamentos do Cominform. Desde então, a

peça foi alvo de inúmeras entrevistas, tentativas de interpretações e proibições32.

Em 1949, Ília Ehrenburg, correspondente itinerante da URSS, denunciou As mãos

32 Contat&Rybalka relatam que em uma adaptação americana intitulada de Red Gloves a peça foi totalmente modificada, onde inclusive um dos personagens faz um longo discurso sobre Abraham Lincoln! (CONTAT&RYBALKA, 1970, p.180-181).

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sujas em Les Lettres Françaises de “panfleto anticomunista e anti-soviético”

(LOTTMAN, 1987, p.364) e a peça chegou a ser proibida na URSS. Três anos

depois, tempo em que Sartre se encontrava próximo ao PC, a peça chegou a ser

proibida pelo próprio, que veio a esclarecer sua atitude dois anos mais tarde: “eu

não reprovo As Mãos Sujas, mas me arrependo do uso que dela fizeram. Minha

peça se tornou um campo de batalhas político, um instrumento de propaganda

política” (SARTRE apud CONTAT&RYBALKA, 1970, p.182, tradução minha) 33.

Sartre só voltou a permitir a representação da peça em 1962 e, em entrevista a

Paolo Caruso, tradutor italiano da Crítica da Razão Dialética, ele esclareceu o

verdadeiro significado da peça34, que não coincide com o destino do personagem

Hugo. Além disso, um outro mal entendido que Sartre procura desfazer diz respeito

a freqüente interpretação de que este personagem seria uma projeção dos conflitos

do próprio autor:

[...] tenho grande compreensão pela atitude de Hugo, mas vocês se enganam ao pensar que me encarno nele. Eu me encarno em Hoederer. Idealmente, claro: não pense que pretendo ser Hoederer. [...] Hoederer é aquele que eu gostaria de ser se eu fosse um revolucionário (SARTRE apud CONTAT&RYBALKA, 1970, p.183, tradução minha) 35.

Por fim, em retrospecto, Sartre fala de sua trilha ao lado dos comunistas,

intitulando-se como um “companheiro de estrada” crítico: “Eu cometi muitos erros,

mas eu creio que uma tensão entre a crítica e a disciplina seja a situação

característica do intelectual “companheiro de estrada” (SARTRE apud

CONTAT&RYBALKA, 1970, p.184, tradução minha) 36. Esta opinião parece não ter

variado tanto ao longo dos anos, apesar de suas atitudes de “companheiro de

estrada” terem se mostrado bem distintas em alguns períodos. De qualquer modo,

em 1947, Sartre tentava manter a “impossível” terceira via e, neste sentido, não

estava sozinho. Uma das tentativas mais concretas de viabilizar esta posição política

33 No original: “Je ne désavoue pas Les Mains Sales, mais je regrette l’usage qui en a été fait. Ma pièce est devenue un champ de bataille politique, un instrument de propagande politique”. 34 Contat&Rybalka afirmam que esta entrevista é essencial para uma boa compreensão da peça. 35No original: “J’ai plus grande compréhension pour l’attitude de Hugo, mais vouz avez tort de penser que je m’encarne en lui. Je m’encarne en Hoederer. Idéalemente, bien sür ; ne croyez pas que je prétende être Hoederer [...] Hoederer est celui que je voudrais être si j’étais un révolutionnaire”. 36 No original : “J’ai commis beaucoup d’erreurs, mais je crois qu’une tension entre la critique et la discipline est la situation caractéristique de l’intellectuel ‘conpagnon de route ‘”.

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foi a criação em 1948 da Liga Democrática Revolucionária (LDR) 37, logo depois do

fim do programa de rádio semanal intitulado “A tribuna de Temps Modernes” que

sustentava, e por isso fora cancelado, esta posição (COHEN-SOLAL, 1986).

Procurado por Georges Altmann de Franc-Tireur¸ e por David Rousset, um ex-

deportado, autor de O universo concentracionista, Sartre aceita colaborar com a

formação da LDR (WINOCK, 2000). Diz Beauvoir (1995) que as motivações de

Sartre giravam em torno da esperança de poder agir em direção à construção de

uma Europa socialista independente dos blocos. Ele dizia que ao propor um

engajamento, e chega afirmar que Que é a Literatura? o levou a LDR, ele tinha um

papel a representar naquela sociedade marcada por um PCF alinhado com a URSS

e uma SFIO (vertente socialista) aburguesada. Por fim, desabafa Beauvoir (1995):

“lutar contra aquela direita, guardando ao mesmo tempo uma distância em relação

ao stalinismo, não era simples” (p.136). Embora o próprio Sartre tenha afirmado que

não se tratava de um partido, mas sim de uma Liga, Cohen-Solal (1986) vai dizer

que esta foi a primeira e última experiência partidária verdadeira de Sartre após

poucos meses de “Socialismo e Liberdade” na Resistência; e que esta experiência

“representa, durante um ano e meio, um autêntico mergulho do filósofo na arena

concreta da prática política atuante” (p.390-393).

Mas a LDR não sobreviveu por muito tempo, depois de um “nascimento

eufórico”, parecia que iria perdurar, mas afundou após uma briga entre Sartre e

Rousset. Os efeitos das ações da Liga, segundo Cohen-Solal (1986), apareceram

mais de vinte anos depois em maio de 68, mas no momento de sua existência esta

tentativa não pôde sobreviver ao dualismo imposto pela Guerra Fria. Winock (2000,

p.587) resume enfim: “O “neutralismo”, posição acima de tudo, moral, goza do apoio

da opinião pública [...] mas carece de articulação política, tanto é que a lógica da

guerra, ainda que fria, impõe o dualismo”.

Na hora de escolher, Sartre irá optar por manter-se ao lado dos comunistas,

posição que adota por volta de 1950. Francis Jeanson (1987) distingue quatro fases

nesta relação de Sartre com os comunistas, que nos ajuda a situar seu percurso de

“companheiro de estrada”:

37 Pode também ser encontrada em algumas referências por RDR : Rassemblement Démocratique Révolutionnaire.

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· A primeira fase, a qual está sendo retratada aqui, corresponde ao período de 1945 a 1950 e se caracteriza por uma crítica à ideologia e tática comunista. Ela é expressa nos textos Materialismo e revolução; Colóquios sobre a política e pela própria LDR.

· A segunda fase é de aproximação e relativa adesão às formas de luta

adotadas pelo PC, ela corresponde ao período de 1951 a 1956 e o texto em que mais expressa esta adesão é Os comunistas e a paz.

· De 1956 a 1962 ocorre uma nova fase de afastamento e crítica. (por conta da

sublevação em Budapeste e repressão pelo exercito soviético e em 1962 o fim da guerra da Argélia.) e...

· De 1962 em diante ocorre uma nova reaproximação, que para Jeanson se caracteriza pelo fato de o PC (e boa parte da esquerda francesa) parecer “menos decepcionante” do que antes na visão de Sartre.

Dado este mapeamento, podemos perceber claramente que também Jeanson

(1987) indica que o período do pós-guerra foi marcado por um diálogo crítico de

Sartre com o PC. Este foi o período ainda em que se deu início a uma série de

ataques às posições de Sartre constituindo assim, em torno de sua figura pública,

um fenômeno interessantemente analisado por grande parte de seus comentadores

e biógrafos: o de alvo predileto. John Gerassi, filho de seu amigo Fernando Gerassi,

e eleito por Sartre como seu “biografo oficial” escolhe o representativo título para sua

biografia: Jean-Paul Sartre: consciência odiada de seu século. Para Gerassi (1990),

“nenhum intelectual, nenhum escritor, ninguém é mais odiado pelos acadêmicos e

pelos jornalistas, pelos tecnocratas e pelos políticos dos dois lados do atlântico”

(p.39). Opinião que parece estar de acordo com István Mészáros (1991), que

analisou a obra de Sartre de forma crítica e meticulosa, quando afirma que “escritor

algum foi alvo de tantos ataques, de origens mais variadas e muito poderosas38”

(p.9-10). Desta forma, a celebridade nasceu junto ao ódio, em uma relação ambígua

entre um público que via e desejava obter do existencialismo uma “solução sonhada” 39, uma doutrina capaz de falar de uma moral, de liberdade e do homem de ação

38 Além dos ataques já citados nas páginas precedentes (e muitos outros não citados), Mèszáros (2001) destaca: Em 1948 o Governo da URSS assume posição oficial contra Sartre e, no mesmo ano, um decreto do Santo Ofício coloca no Index a totalidade de suas obras; em Outubro de 1960 ocorre uma passeata de veteranos de guerra onde proclamam: “Fuzilem Sartre”; mais tarde dois atentados a bomba contra seu apartamento, um em 19 de Julho de 1961 e outro 7 de janeiro de 1962. 39 O termo é de Beauvoir (1995, p.43).

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para uma época que precisava reconstruir um mundo e seus valores e que, ao

mesmo tempo, não lhes dava exatamente o que pediam. Segundo Beauvoir (1995),

havia uma “notável coincidência” entre o que o público desejava e o que Sartre

podia lhes oferecer, pois eles sonhavam em tentar entender e assimilar estas novas

revelações da História sem, no entanto, ter que jogar fora suas antigas justificativas

burguesas; mas o que Sartre lhes oferecia em seus romances era uma imagem da

sociedade que eles queriam recusar. Diz Simone:

[...] foi por isso que o sucesso de Sartre foi tão ambíguo quanto volumoso, inflado desta mesma ambigüidade. As pessoas se lançaram avidamente sobre uma comida qual tinham fome; quebraram os dentes e soltaram gritos cuja violência intrigava e atraía. [...] a liberdade que lhes oferecia implicava em fatigantes responsabilidades; voltava-se contra as instituições, os costumes, destruía sua segurança. Convidava-os a usá-la para se aliar ao proletariado: eles queriam entrar para a História, mas não por essa porta. Categorizados, catalogados, os intelectuais comunistas os incomodavam menos (BEAUVOIR, 1995, p.43).

Para Cohen-Solal (1986), as pessoas sabiam que este era um momento de

enterrar a tradição do pré-guerra, e Sartre trazia em sua moral e literatura elementos

representativos desta ruptura. É certo que Sartre nasce desta mesma tradição e é

contra ela mesma, que o constitui, que muitas vezes se revolta. Falarei sobre este

movimento de oposição a si mesmo em outro momento, pois é ainda necessário

explorar de que maneira este engajamento que é tão claro na época do pós-guerra

se baseia em um movimento cujas raízes atravessam outros períodos históricos que

vieram a deixar de herança esta mesma tradição.

2.2 A literatura engajada e as redefinições na distância entre literatura e

política.

Em seu livro Literatura e Engajamento: de Pascal a Sartre, Benoit Denis

(2002) realiza um amplo estudo sobre o tema do engajamento e afirma que devemos

ao século XX a expressão “literatura engajada” pelo corpo teórico e debate político

que neste se desenvolveu. Além disso, o autor considera Sartre a expressão

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máxima deste movimento, o que parece estar em comum acordo com a referência

que Herbert Lottman (1987) faz ao termo écrivan engagé (escritor engajado), na qual

ele comenta que grande parte dos dicionários franceses atribuem a criação do termo

ao filósofo existencialista. No entanto, Denis (2002) faz questão de enfatizar - e

expõe uma série de argumentações neste sentido - que embora esta marca do

engajamento seja amplamente atribuída a Sartre, devemos entender que este termo

já existia, até mesmo em sentidos bem próximos aos sartreanos. O próprio Lottman

(1987) indica que já em 1933, Jean Guéhenno falava do engagement40 dos

escritores e ele acredita que possa haver referências ainda mais antigas; ele aponta,

em seguida, Romain Rolland e Henri Barbusse como fundadores deste movimento.

O filósofo Alino Lorenzon (2008) também afirma que a palavra foi posta em

circulação nas reflexões e debates dos anos de 1930 e 40, mas atribui ao filósofo

russo Paul-Louis Landsberg a introdução do termo e a influência deste nas idéias do

personalismo, vertente sustentada pelo movimento católico da revista Esprit de

Emmanuel Mournier. Segundo o autor, Jean-Marie Domenach atribui a Rougemont e

Mournier o primeiro e amplo uso da palavra engajamento, e assim nos indica a

possível influência deste movimento no pensamento de Sartre. De fato, houve uma

influência “cristã” na posterior definição do engajamento deste filósofo, como nos

mostra Denis (2002), especialmente com relação às concepções do filósofo Gabriel

Marcel que vêm a esbarrar no personalismo de Mornier. De qualquer modo, antes

mesmo do aparecimento do termo engajamento, a literatura já apresentava uma

história de ligação com a política - o que se torna explícito em alguns momentos

históricos que exigiam as censuras e proibições de livros que resultavam muitas

vezes nas clássicas fogueiras de obras proibidas41.

Diante de todas estas nuances, Denis (2002) irá fazer uma distinção entre os

termos literatura engajada e literatura de engajamento, que acredito ser muito

apropriada para diferenciar um movimento situado no século XX (de modo geral, a

partir do caso Dreyfus 42), que teve seu auge no pós-guerra com as formulações de

Sartre (literatura engajada); e a literatura de combate e controvérsia de forma geral.

Ele acrescenta que a literatura de engajamento, em muitos momentos, veio a

influenciar os escritores engajados, mas que, ao longo da história, esta literatura que

40 Coloco o termo no original para ressaltar seu aspecto de “movimento literário”. 41 Canfora (2003) cita, por exemplo, a destruição da biblioteca hebraica durante a revolta dos Macabeus em 168 a.C. até a queima de livros feita pelos Nazistas em 10 de maio de 1933. 42 Falarei com mais detalhes sobre o caso Dreyfus no terceiro capítulo.

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exercia seu alcance político, não era denominada ou problematizada como tal.

Concentrei-me aqui, no entanto, no fenômeno da literatura engajada, visando

compreender brevemente os fatores que a constituíram e vieram a tornar possível

um pensamento como o de Sartre. De início, vale dizer que o aparecimento da

literatura engajada se deve ao entrecruzamento de uma série de movimentos

históricos que pretendo percorrer brevemente, no intuito de situar o engajamento

sartreano em seu terreno histórico.

Um destes movimentos que se mostrou fundamental para a aparição do

escritor engajado foi o surgimento, como veremos com mais detalhes, do papel do

intelectual. Neste momento, porém, torna-se relevante ressaltar o quanto o

movimento de autonomia dos intelectuais teve sua função essencial neste processo.

O escritor, de modo geral, teve diferentes papéis e status social em épocas distintas,

mas, particularmente na modernidade, estas mudanças estavam majoritariamente

relacionadas à união ou diferenciação de sua imagem e função com a dos

intelectuais. Este é um dos três fatores apontados por Denis (2002) como

determinante no surgimento do que viria a ser a literatura engajada. De acordo com

o autor, o campo literário se manteve durante muito tempo atrelado à figura do

intelectual, que tendia a superpor às funções tradicionalmente atribuídas ao escritor

e à escritura. Porém, a partir do movimento de autonomização dos intelectuais nos

anos 20 e 30, o escritor, pela falta de lugar garantido no debate público, teve de se

reposicionar no terreno político e portanto iniciou um movimento em direção ao que

viria ser o engajamento:

Nessas condições, trata-se para o escritor de saber como a literatura, com os seus meios específicos, pode reconquistar o terreno da prédica sócio-política. Ela não o pode fazer senão através do engajamento e a invenção do que Barthes ainda chamava “um tipo bastardo”: o escritor-escrevente, classificação atrás da qual reconheceu-se o escritor engajado, e do qual Sartre é, sem dúvida, a encarnação maior (DENIS, 2002, p.21, grifo meu)43.

43 O próprio Sartre (1994) esclarece o significado das definições de escritor e escrevente para Barthes em sua conferência de 1965: O primeiro “é o guardião da linguagem comum [...] e seu material é a linguagem como não-significante ou como desinformação; é um artesão que produz um certo objeto verbal através de um trabalho sobre a materialidade da palavra, tomando como meio as significações e como fim o não-significante”, e o último “se serve da linguagem para transmitir informações” (p.59). O escritor engajado seria então a junção destas características no tipo bastardo do escritor-escrevente.

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Outros dois fatores que Denis (2002) estabelece como marcantes para o

nascimento da literatura engajada são novamente um movimento de autonomização,

mas desta vez do campo literário em si; e a Revolução de Outubro de 1917.

Segundo o autor, com relação a este primeiro movimento, inaugura-se por volta de

1850 o período da modernidade literária, onde ocorre uma espécie de

“enclausuramento” dos escritores entre si. Eles passam a adotar uma série de

medidas que os distanciam do debate político e social e os enquadram em uma

espécie de “aristocracia” simbólica. Para Denis (2002), todas essas medidas tiveram

por efeito estabelecer um corte profundo entre a literatura e a sociedade em geral,

fazendo com que o escritor não se sentisse mais “em débito” ou necessariamente

“solidário” com os debates e lutas sociais. Este momento de autonomização da

literatura foi responsável, inclusive, pela aparição do termo “literatura”, que veio

substituir a denominação corrente até então, “belas letras” 44. Adriana Facina (2004)

coloca que a partir de 1848, período caracterizado por uma onda de revoluções

conhecida por “primavera dos povos”, houve uma “redefinição de fronteiras” que

“impôs um questionamento das relações entre literatura e política e estimulou o

surgimento do escritor, entendido como alguém cuja principal função é a experiência

com a linguagem” (p.8). Isto também foi impulsionado, continua a autora, pelo

crescimento da imprensa jornalística e da publicação de livros no século XIX, o que

permitiu aos escritores o próprio sustento por meio deste trabalho, produzindo para

um público que comprava avidamente os folhetins que se destinavam a publicar

seus romances45. Definido este campo de autonomia literária, o escritor surge com

um novo papel e status social que o legitimará como “homem de letras”, ligado a um

uso próprio da forma que caracteriza sua preocupação muitas vezes restritamente

estética.

Tzvetan Todorov (2009) em A literatura em perigo nos oferece um breve

panorama do nascimento da estética moderna em meados do século XVIII,

ressaltando os pontos de transição do pensamento acerca do objeto estético, os

quais vieram a fundamentar o conhecido e atual distanciamento entre a literatura e o

mundo. Esta aparente “falta de ligação” foi provocada por uma série de mudanças

44 Este termo indica a suprema valorização do “belo”, conseqüência do nascimento da estética moderna, conforme veremos adiante. Todorov (2009) indica que o termo “belas-letras” irá diferenciar as artes das práticas não-artísticas (ou seja, existem “letras” que não são belas) ressaltando o belo como sinônimo de arte. 45 Dentre estes, Facina (2004) destaca: Charles Dickens, Balzac e Alexandre Dumas.

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cujo ponto de partida data ainda no período do Renascimento. Este foi o momento

em que se deu início à apreciação do belo como valor supremo da obra de arte,

onde se pedia à poesia que fosse bela, sendo a beleza definida como sinônimo da

verdade e medida por sua contribuição ao bem. Posteriormente, por volta do século

XVIII, a idéia do belo muda de perspectiva e passa a ser definida por aquilo que

basta a si mesmo, isto é, passa a ser, no plano funcional, aquilo que não possui fim

prático. A progressiva submissão das artes às exigências do “belo” estabeleceu uma

ruptura com a visão clássica que pressupunha que arte deveria “instruir e agradar” e

passou-se a valorizar o artista criador como um “Deus fabricante”, que encarnava o

espírito das luzes da autonomia do indivíduo livre. Por conseguinte, Todorov (2009)

coloca que “essa interpretação da idéia do belo, imposta a partir do século XVIII, é

em si mesma uma laicização da idéia de divindade” (p.48), isto é, na medida em que

ocorre um processo de secularização social, a arte passa a ocupar o lugar reservado

ao sagrado e ao divino. Em suma, Todorov (2009) afirma que a ausência da

finalidade externa da obra é compensada, de uma certa maneira, pela densidade

das finalidades internas e assim “graças à arte, o ser humano pode atingir o

absoluto” (p.48). Facina (2004) acrescenta que a concepção que valoriza o “artista

criador” pressupõe que a arte seja a expressão da individualidade e singularidade de

um indivíduo provido de talentos e habilidades sociais, entendido ainda hoje, na

sociedade contemporânea, como um “gênio”. Esta visão teve ainda a contribuição

dos valores da estética romântica, que não introduz uma ruptura notável na visão de

Todorov (2009), mas acrescenta um juízo de valor na comparação da arte com as

ciências, onde a primeira aparece como superior à segunda. Para Facina, a

concepção romântica

[...] vê a arte e a cultura como esferas à parte da atividade humana, completamente autônomas e distanciadas da dimensão da produção material da vida, e conseqüentemente, mais elevadas, nobres e sujeitas a regras especiais de entendimento que, em geral, são vistas como da ordem da sensibilidade, muito mais que da análise racional (FACINA, 2004, p.26).

De volta aos primórdios do movimento que viria a culminar na estética

moderna, Todorov (2009) ressalta que houve também uma retomada do

pensamento platônico como uma contemplação desinteressada das idéias. Foi

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também neste período que o próprio termo “estética” foi criado46 e este, que significa

literalmente “ciência da percepção”, nos indica outro fator importante resultante

destas idéias que é a valorização do receptor, como aquele que aprecia e contempla

a beleza da arte. Assim resume o autor:

[...] os dois movimentos que transformam no século XVIII a concepção de arte, isto é, a assimilação do criador a um deus fabricante de microcosmo e a assimilação da obra a um objeto de contemplação, ilustram a progressiva secularização do mundo na Europa ao mesmo tempo em que contribuem para uma nova sacralização da arte (TODOROV, 2009, p.52).

Podemos vislumbrar, portanto, embora de forma breve, o início de um

processo que veio a desembocar na concepção conhecida pela expressão “arte pela

arte”, que irá se contrapor, em muitas análises, à “literatura engajada”. Irei explorar

as implicações desta discussão um pouco mais adiante, porém, por ora é importante

frisar apenas que as mudanças ocorridas com o advento da modernidade

proporcionaram um terreno fértil não só para que esta discussão seja possível (“arte

comprometida” versus “arte pura”) como para o próprio surgimento da noção de

engajamento. Aqui se inaugura também o sentido do debate em torno da “arte pela

arte”, como afirma Denis:

Assim, é pertinente se opor, como fazia Barthes, literatura engajada e arte pura no contexto da modernidade: se pode haver uma literatura engajada a partir de 1850 é porque, em contrapartida, se instala, ao mesmo tempo, a tentação permanente da arte pela arte, quer dizer, que se esboça para a literatura a possibilidade de existir como dobra autônoma e independente da sociedade (DENIS, 2002, p.27).

Por fim, o aparecimento da problemática do engajamento envolve ainda um

outro fator: a Revolução Russa de Outubro de 1917, como um acontecimento que

exerceu uma forte influência política no mundo literário intelectual do entre-guerras,

sobretudo na França. Na tentativa de compreender tal alcance, Denis (2002) destaca

alguns fatores como, por exemplo, um apego tipicamente francês à idéia de

Revolução, que remete a 1789, e que acarreta em enxergar outras revoluções como

uma espécie de prolongamento ou mesmo lembrança de um processo do que fora lá 46 Em 1750, num tratado de Alexander Baumgarten.

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iniciado. Além disso, havia uma possível tentativa por parte dos franceses de

compensar satisfatoriamente a recém-travada Grande Guerra (1914 -1918), inédita

pela violência e duração, com a idéia de uma utopia revolucionária. Por este motivo,

os escritores se tornaram participantes ativos no debate político sobre a Revolução,

reconfigurando novamente o vínculo entre a literatura e o mundo social ainda no

entre-guerras.

Nasceram aí algumas características que já estavam plenamente

desenvolvidas no pós-guerra. Dentre estas, vale destacar uma importância

crescente do diálogo ou participação dos escritores com o Partido Comunista, posto

que este se tornava, enquanto instância política, o representante de uma delegação

capaz de afirmar uma revolução também na literatura. Segundo Lottman (1987),

uma das marcas inovadoras dos escritores e artistas da década de trinta nos

assuntos políticos era a internacionalização de suas preocupações, como, por

exemplo, o grande envolvimento destes nos debates sobre a Guerra Civil

Espanhola. Eles passaram a se posicionar também mediante ao ascendente

movimento dos regimes fascista e nazista na Europa e, a partir de então, realizaram

congressos e discussões sobre o papel da literatura no mundo social. Vemos assim

que já nos anos trinta existia uma forte efervescência política no campo literário, que

gerou um debate que será aprofundado no pós-guerra e vivido com naturalidade

pelos escritores da geração de Sartre47.

No campo da literatura, tal reconfiguração nas relações entre esta e a política

provoca dois movimentos que foram analisados por Denis (2002), sendo um destes

o engajamento. O primeiro se caracteriza pelo movimento de Vanguarda, que na

França fora amplamente exercido pelo surrealismo, que enxerga a si mesmo como

“naturalmente revolucionário” por subverter as formas anteriores e estabelecer uma

homologia entre inovação artística e revolução política. Na visão de Todorov (2009),

por exemplo, esta nova concepção provoca um esquecimento do mundo material

onde o mundo fenomenal, acessível aos olhos de todos, deixa de ser levado em

consideração. Como conseqüência, “a intersubjetividade, que repousa na existência 47Nos anos trinta começa também a concentração cultural e política em Saint-Germain-Des-Prés (substituindo Montparnasse). Este lugar passa a ser a “extensão da sala de visitas” dos intelectuais e escritores, e manterá esta tradição viva nos tempos de Sartre. Herbert Lottman (1987, p.27-31) escreve que a Rive Gauche (margem esquerda do rio Sena) tem uma história desta tradição cultural e literária que provém da idade média, onde a cultura dos cafés já se encontrava presente. O café Procope, por exemplo, foi freqüentado, ao longo de anos, por Diderot, Rousseau, Danton, entre outros autores da Encyclopédie. Nos anos do Romantismo por figuras como Balzac e Musset, etc, e mais tarde por Zola, Cézanne, e outros.

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de um mundo comum e de um sentido comum, dá lugar à pura manifestação do

indivíduo” (p.68-69).

Sartre (2004) irá também se posicionar em relação a estes “movimentos

literários” do século XX em seu texto A situação do escritor em 194748, no qual

analisa as diferenças de situação entre três gerações de escritores, sendo a última a

sua. Para o filósofo, os surrealistas são impulsionados pela Primeira Guerra a um

“retorno do espírito de negatividade49” que reata com as tradições do “escritor-

destruidor”; uma negatividade fora da história, que apenas conserva o mundo como

está. Este movimento pertence ao que Sartre chamou de segunda geração,

acompanhado por outro grupo de escritores que foram “lidos e esquecidos”, e que

trouxeram como ruptura o fato de não se verem, de acordo com a clássica visão

moderna, como “aristocratas”. À primeira geração, porém, Sartre atribui a

reconciliação entre a literatura e o público burguês. Composta por escritores que

começaram a escrever antes da guerra de 1914, esta fazia parte da elite francesa e

não tirava da literatura seu sustento próprio: “Gide e Mauriac possuem terras, Proust

vivia de rendas, Maurois vem de uma família de industriais; outros chegaram à

literatura através das profissões liberais” (SARTRE, 2004, p.130). Decorre disto que

estes autores, provenientes dos mesmos meios e escolas que os políticos e grandes

proprietários, continua Sartre, encontram uma espécie de “caminho traçado” em

estreita dependência com a moral burguesa. Em seguida, ele esclarece:

É certo que não servirá à ideologia utilitarista; será dela, se necessário, um crítico severo, mas descobrirá nos delicados desvãos da alma burguesa toda a gratuidade, toda a espiritualidade de que necessita para exercer a sua arte com consciência tranqüila (SARTRE, 2004, p.131-132).

Esta moral burguesa, que Sartre (2004) vê como de má-fé, tem sua

expressão máxima na frase que ele ouviu certa vez de um jovem: “é preciso fazer

como todo mundo e ser como ninguém” (p.134). Para o filósofo isto significa justificar

a si próprio e ao mesmo tempo seguir as ordens do meio, isto é, “vender o vinho de

48Este texto é parte de Que é a literatura? Publicado pela primeira vez em Les Temps Modernes em 1947 (CONTAT&RYBALKA, 1970, p.160). 49 Segundo Sartre é esta a idéia, embora no âmbito puramente formal, que une os surrealistas aos comunistas, pois os últimos visavam uma também uma negatividade desconstrutiva, embora provisória e necessária para a tarefa de reorganização social (2004, p.143).

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Bordeaux [...] casar-se com uma mulher que traga um bom dote” e “ser como

ninguém” ao elevar-se por meio de belos escritos. “Trata-se” continua, “de colocar a

vida entre parênteses e vivê-la minuciosamente, mas sem sujar as mãos; trata-se

sempre de provar que o homem vale mais do que a vida que leva [...] 50” (p.135).

Todo este mapeamento fala, na verdade, de um passado que Sartre

considera o “céu povoado de estrelas” da situação do escritor de 1947, pois deste

horizonte os escritores da “terceira geração” herdaram o mito de que a literatura

deveria produzir temas eternos. Uma idéia da literatura, diz Sartre (2004), que

“pertence ao espírito objetivo da época, nós (os escritores da terceira geração) a

respiramos junto com o próprio ar do nosso tempo” (p.152); e o que esta idéia

propôs foi uma nova distância, “não entre o autor e seu público – o que afinal,

estaria dentro da grande tradição literária do século XIX -, mas entre o mito literário e

a realidade histórica” (p.156). Portanto, sua situação de escritor, francês, burguês,

marcado pelo tempo urgente da iminência de uma nova guerra (inicio da guerra

fria)51 tem também pairando sobre si, o mito contra o qual deseja se colocar. Isto se

torna evidente quando Sartre já de início enfatiza que o escritor francês, o “mais

burguês do mundo”, tem o hábito da literatura desde a infância, e que desde então já

cultiva pelos escritores um amor que remete ao seu próprio futuro de possível

escritor:

[...] e pensávamos ingenuamente que nossos futuros escritos sairiam de nossos espíritos no estado de acabamento em que encontrávamos os escritos alheios, com chance de reconhecimento coletivo e aquela pompa que vem da consagração secular; em suma, como bens nacionais (SARTRE, 2004, p.127).

A fim de exemplificar estas expectativas, cito um pequeno trecho do livro de

Marcel Proust No caminho de Swann, primeiro volume da série Em busca do tempo

perdido, que demonstra como a leitura e os escritores já habitavam em um sublime

patamar o mundo infantil do personagem principal. Durante uma boa parte do livro,

este personagem, que é também o narrador, lembra de sua paixão por Bergotte, seu

escritor preferido e admirado:

50 Creio ser importante dizer que Sartre (2004) justifica que não deseja, porém, fazer generalizações: “Nos grandes autores, sem dúvida, há uma outra coisa. Em Gide, em Claudel, em Proust, encontra-se uma experiência humana, mil caminhos. Mas a minha intenção não foi pintar o quadro de toda uma época: o que tinha em mente era mostrar um clima e isolar um mito” (p.135). 51 Período em que escreve Que é a Literatura?

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Infelizmente, sobre quase todas as coisas, eu ignorava sua opinião. Não duvidava que fosse ela inteiramente diversa das minhas, pois baixava de um mundo desconhecido ao qual procurava elevar-me; persuadido de que meus pensamentos pareceriam puras inépcias àquele espírito perfeito, fizera tábua rasa de todos eles, de modo que, se acaso me sucedia de encontrar em um livro seu alguma idéia que já me ocorrera, meu coração se dilatava, como se um Deus, em sua bondade, ma houvesse devolvido, declarando-a legítima e bela. (PROUST, 2006, p.131).

O escritor francês é, portanto, marcado por essa divindade dos escritos, este

“ar de sacralidade” da obra, e é contra esta vertente que Sartre irá dirigir sua crítica

na sua proposta de engajamento. Para isso, ele utilizará um uso específico da

relação “obra com seu tempo”, ou do “escritor com sua situação”, mantendo-se

atento e vinculado ao tempo presente. Simone de Beauvoir (1995) diz que “embora

tivesse desejado os sufrágios da posteridade” (p.44), na Apresentação de Les

Temps Modernes, Sartre optou por escolher a sua época em vez de a eternidade e,

colocando o absoluto no efêmero, despojava a literatura de seu caráter sagrado. Ela

mesma irá dizer que nunca acreditou neste “mito do eterno”: “Para mim, Deus

morreu quando eu tinha 14 anos, e nada o substituiu: o absoluto só existia em

negativo, como um horizonte perdido para sempre” (p.49); ela acrescenta ainda que

desejava ser lida enquanto viva e que quase não ligava para a posteridade52. Essa

posição será vista por outros como uma marca negativa desta geração de escritores,

como fica claro nesta declaração de André Gide:

É precisamente aí que os líderes da nova geração diferem de nós, ao julgaram uma obra por sua eficácia imediata. Procuram também o sucesso imediato, enquanto nós achávamos perfeitamente natural continuarmos desconhecidos e ignorados até os 45 anos de idade. Nosso objetivo era perdurar... 53.(GIDE apud LOTTMAN, 1987, p.331).

52 Embora Sartre tenha demonstrado posteriormente este desejo. Por exemplo, em conversa com Gerassi em 1979, em um dos “raros momentos de lucidez” dos anos próximos de sua morte, ele disse: “Tudo que eu quero do futuro, o quanto houver dele, é ser lido” (SARTRE apud GEARASSI, 1990, p.31). 53 É interessante trazer aqui as considerações de Todorov (2009) quanto à desvalorização de uma “literatura de massa”. De acordo com o autor o século XX traz uma ruptura entre “produção popular” e “literatura de elite” desconhecida até então: “Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as duas fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por um grande número de leitores tornar-se o sinal de seu fracasso no plano da arte [...]” (p.67).

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O argumento de Sartre encontra-se realmente nesta direção temporal de

“falar aos seus contemporâneos”, o que mostra que a crítica de Gide é pertinente.

Sartre (2004) irá dizer, no entanto, que a partir do século XIX, devido ao divórcio

entre o temporal e o espiritual, há uma modificação na idéia de glória para o escritor.

Esta é marcada por uma espécie de “mecanismo de compensação” no qual o

escritor mantém seu desejo de exercer uma ação direta e universal no contexto de

uma coletividade integrada, mas contenta-se em “ser reconhecido fora de sua

época”: “Mas como essa ação não é possível no presente, projeta-se para um futuro

indefinido o mito compensador de uma reconciliação entre escritor e seu público”

(p.97). Para Denis (2002), os escritores engajados irão se desvincular do tempo

moderno, onde a obra literária é escrita para a posteridade e o ideal estético era

“eternizar o transitório”, como este autor aponta que Baudelaire havia definido.

Benoit Denis (2002) afirma assim que grande parte “do prestígio do qual a obra

literária goza na sociedade reside na capacidade que lhe atribuem de se destacar do

tempo humano” (p.42). Sartre irá então definir seu engajamento como uma tarefa

que exige o comprometimento do escritor com seu público atual, visando o “finito” ao

invés da imortalidade literária. Para Mészáros (1991) este engajamento atua como

um poderoso catalisador do presente, no sentido que este está vinculado ao

futuro imediato que, ao mesmo tempo modela e estrutura nossa vida presente.

Com relação à crítica ao aspecto temporal dos autores imortais, Sartre irá dizer:

Quanto ao presente, pois, o escritor recorre a um público de especialistas; quanto ao passado, celebra um pacto como os grandes mortos; quanto ao futuro, apela para o mito da glória. Utilizou todos os recursos possíveis para poder desligar-se simbolicamente da sua classe. Paira no ar, estranho ao seu século, expatriado, maldito. (SARTRE, 2004, p.98).

É importante ressaltar que este caráter imediatista veio a dar forma ao

engajamento de Sartre e de todos os colaboradores de Les Temps Modernes. Denis

(2002) afirma que esta “preocupação com a contemporaneidade” do engajamento é

também um ponto interessante para entender a ligação dos escritores engajados

com e escrita jornalística, aquela que “se cola o mais estreitamente ao

acontecimento” (p.39), e isto se expressa até mesmo nos títulos da coletânea de

ensaios Situações de Sartre e Atuais de Albert Camus. Não somente, estes dois

escritores alcançaram o seu auge neste “tempo urgente” do pós-guerra que, como

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vimos, caracterizava-se por uma situação de iminência de uma possível nova guerra

(entre URSS e EUA) que contaria com a recém-fabricada bomba atômica e seu

temeroso poder, além de uma esperança real de uma revolução socialista. Irá dizer

Sartre (2004): “Quando cada palavra pode custar uma vida é preciso economizar

palavras, não se deve perder tempo fazendo gemer os violinos: vai-se direto ao

ponto” (p.172).

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3 Sentidos do engajamento: em busca do tempo presente.

O engajamento de Sartre pode ser entendido por diferentes vias de

compreensão, mas todas se mostram atreladas de alguma forma às discussões que

envolvem a complexidade das relações entre política e arte. Isto posto, penso que

devo esclarecer aqui que, em meio a estes múltiplos caminhos, procurei dar ênfase

à uma das argumentações de Sartre que, embora não fuja a este sentido maior, se

diferencia de outros discursos sobre o engajamento. A meu ver, este diferencial

reside em entender a literatura como um apelo à liberdade do leitor e de que forma

isto implica em uma relação com o nosso presente e cotidiano. Para chegar a

explorar este ponto, busquei primeiramente falar a respeito da relação da literatura

com a sociedade, tentando escapar a certos dualismos como as vertentes idealista e

materialista na literatura e a antítese “arte pura” versus “arte engajada”. Para mim,

isto se tornou um ponto de partida necessário para que eu me sentisse mais livre

para explorar a riqueza que Sartre apresenta, principalmente, em Que é a literatura?

sobre relação do autor com o leitor. Deste modo, tornou-se importante atentar para

argumento de Sartre de que é necessário pensar, para entender o processo de

criação literária, em para quem se escreve, ressaltando a finalidade como

característica da criação do autor. O filósofo traz à luz a relação do autor com o

leitor, marcada por esta intenção do autor, que ele define como uma relação

dialética, de troca e proximidade, visto que ambos compartilham um mesmo mundo,

e, pelo mesmo motivo, a literatura mostra-se próxima à experiência cotidiana. Neste

contexto, partindo dos argumentos de Sartre, procurei outros exemplos literários,

como o da narrativa do escritor norte-americano William Faulkner, que se mostraram

interessantes para entender esta relação. No caso de Faulkner, autor analisado pelo

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próprio Sartre, procurei refletir sobre como os discursos literários que se

assemelham aos discursos cotidianos nos fazem questionar, por exemplo, a nossa

própria experiência de temporalidade. E nesta direção, segui tentando entender o

caráter questionador da literatura, enquanto via de resignificação de nosso mundo,

onde, dialogando com Herbert Marcuse, pude argumentar sobre o papel

revolucionário da arte, em especial, a literatura.

2.1. Literatura e sociedade: “me dirijo ao leitor contemporâneo”.

Alguns autores nos permitem fazer uma aproximação da discussão que

envolve a relação entre a literatura e a sociedade como, por exemplo, Antonio

Candido. Dentre suas argumentações, Candido (2000) nos faz pensar em questões

como “qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte” e qual o

inverso. Para este autor existem duas vias para esta investigação: podemos pensar

em que medida a arte é expressão da sociedade e em que medida ela é social.

Interessado nesta dinâmica, ele procurou identificar o campo de atuação da arte,

ressaltando que este é composto de “três elementos fundamentais da comunicação

artística”: o autor, a obra e o público. Estes três elementos orientam “como a

sociedade define a posição do artista, como a obra depende de recursos técnicos

para incorporar os valores propostos e como se configuram os públicos” (p.22). Isto

quer dizer que o que a arte mostra é algo que foi feito por alguém, de uma

determinada maneira e apresentado para um público onde o autor mostra-se

preocupado com o processo de construção da obra que envolve estes elementos

fundamentais. Também Adriana Facina (2004) demarca um papel constitutivo das

intrincadas relações que permeiam uma cultura na prática social. Ela coloca que a

obra literária é parte ativa de um processo histórico e representa o seu próprio tempo

assim como seus autores, que não podem ser entendidos separados de seu

contexto. Dentre as visões mais comuns do papel da arte no social, Facina (2004)

destaca uma vertente “idealista” ,que considera a arte apartada do mundo e

realizada por certos “gênios”, como uma produção elevada e distante de uma

realidade material; e uma vertente “materialista”, que considera o papel da arte

importante para refletir as superestruturas da sociedade – estabelecendo-se,

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portanto, em uma posição oposta à visão idealista. Sendo assim, estas reflexões

mostram-se importantes para tentarmos entender a relação da arte com o social por

uma visão que escape aos dualismos e reducionismos. Concordo com a afirmação

da autora de que a arte não é um espelho do social, ela é um processo ativo que ao

mesmo tempo em que expressa visões de mundo de um certo grupo social

historicamente situado, o que inclui seu autor,e exerce um papel transformador e

constitutivo da realidade. Somada essas considerações às questões levantadas por

Antonio Candido (2000), creio que seja possível afirmar que devemos manter uma

visão dinâmica da criação literária “que engloba a arte e a sociedade num vasto

sistema solidário de influências recíprocas” (CANDIDO, 2000, p.22).

De modo semelhante às perguntas feitas por Antonio Candido, Sartre (2004),

em seu texto Que é a literatura?, denomina três de seus capítulos da seguinte forma:

Que é escrever?, Por que escrever?, e Para quem se escreve? Preocupado em

repensar o papel social da literatura na sociedade, o filósofo questiona todo o

processo de criação que envolve uma visão dialética de constante relação entre

autor-obra-leitor. Creio que esta preocupação de Sartre mostra o sentido mais

profundo de seu engajamento, por não considerar a arte fora destas relações sociais

e toda a carga de historicidade que elas produzem. Além disso, ao frisar que se

dirige aos seus contemporâneos, Sartre coloca a dimensão temporal como uma

noção chave para seu engajamento. Este aspecto tornou-se fundamental para

minhas reflexões, e entendo que esta “temporalidade” apresenta dois aspectos

importantes. Por um lado, após considerar a situação histórica do engajamento

sartreano, entendo que a urgência do tempo presente de sua época nos faz

compreender o caráter imediatista e, por vezes radical, de sua proposta - Sartre se

dirigia aos homens de seu tempo para que em conjunto pudessem construir um novo

futuro. Isto na verdade já nos revela o segundo aspecto, que penso ser a visão de

uma finalidade presente na criação literária, isto é, independentemente de como se

vive uma época, na carne ou à distância, quem escreve, escreve a partir de um

mundo e para alguém. É neste sentido que entendo que os argumentos de Sartre

expressam uma relação entre literatura e sociedade que mostram um sentido de

engajamento que significa compartilhar um mesmo tempo e um mesmo mundo

revelados por essa finalidade do escritor. Deste modo, é justamente por entender

esta experiência situada de Sartre, que pretendo ressaltar a relevância deste último

sentido do engajamento, sem que para isto necessite me ater a atitudes como

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afirmar ou defender que este deve ser o objetivo de cada obra de arte. Mas, para

tentar escapar a isso, é relevante ressaltar que os debates constantemente traçados

em torno da obra de arte na sociedade envolvem as noções de valor e sentido do

objeto estético, que são, evidentemente, atreladas ao contexto sócio-cultural da

época que os discute. Deste modo, diante de uma situação de realidade imediata

crítica, como o período do pós-guerra, o papel da arte também é definido em torno

das exigências de uma necessidade urgente de mudança e assim a dimensão

estética não foge a esta perspectiva, o que resulta em reduzir o papel da arte às

exigências de uma determinada situação.

Considerações como estas levaram o filósofo Herbert Marcuse ([1986?]) em

seu texto de 1977, A Dimensão Estética, que apresenta as reflexões finais de sua

obra, a pensar sobre o que foi feito da arte para aqueles - especialmente os adeptos

da teoria marxista ortodoxa - que visavam carregar todo tipo de arte para a esfera da

práxis radical. O pensamento de Marcuse mostra-se interessante, pois parece que

ele não desejava sucumbir ao desespero de um “tempo urgente” e se permitiu olhar

atentamente para o entendimento que normalmente se faz do objeto estético,

atribuindo valor também a outros tipos de arte que, à primeira vista, seriam

consideradas como não-revolucionárias por certos partidários da mudança social.

Isto quer dizer que Marcuse ([1986?]) mostrava-se aberto a alcançar uma verdade

mesmo na chamada “arte pela arte”, que expressa, segundo ele, um modo

diferenciado, uma necessidade que pode ser considerada, em certos aspectos, até

mesmo revolucionária. Isto nos permite talvez ampliar o debate sobre a função social

da arte que se faz presente em nossa época já que novas expressões sociais

clamam por novas reflexões.

No entanto, o que freqüentemente acontece em torno deste tema é uma

discussão de “engajamento” versus “arte pela arte” que não resulta senão nas

mesmas posições do ponto de partida, pois, como resume muito bem Benoit Denis

(2002), caímos em um dualismo que reduz a história da literatura a uma oscilação

mecânica entre arte pura e arte social. Um olhar similar e bastante interessante nos

é dado por Adorno54 (2003), que classifica a antítese “arte engajada” / “arte pura”

54 Estou utilizando algumas reflexões importantes de Adorno em Notas de literatura I com relação às conseqüências destas antinomias “esterotipadas”, e é somente sobre estas reflexões do autor que almejo me debruçar, visto que discorrer sobre suas incompatibilidades com Sartre com relação à literatura iria por demais me desviar do objetivo deste estudo. É preciso lembrar também que o texto de Adorno sobre “engajamento”, que não pertence a este volume publicado pela Editora 34, foi

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como parte de uma trágica tendência ao estereótipo, “ao pensamento enrijecido em

fórmulas esquemáticas, que a indústria cultural produz por toda parte e que invadiu

há muito tempo o âmbito da reflexão estética” (p.152). Assim, acredito não há uma

necessidade de defender dos lados da discussão clássica, mas desejo retirar da

argumentação destes pensadores um diálogo acerca da função social da literatura,

já que a podemos entender como parte do conjunto social.

Com relação à arte engajada, Adorno (2003) faz uma crítica ao seu caráter de

manipulação psicológica - o que de fato esvazia a obra de seu sentido. Nesta visão,

o autor engajado, tão preocupado em transmitir suas idéias rapidamente ao seu

“consumidor”, visa somente o fim previamente estabelecido e corrompe os meios, o

que resulta em mais uma peça na maquinaria da alienação. Já na visão de Sartre, o

engajamento realmente propõe uma finalidade no que é produzido por um autor,

mas esta não assume um caráter de manipulação. O que Sartre ([ca. 1960])

evidencia é que aquele que escreve, o faz a partir de uma situação social e está

impregnado por ela, ele é um agente social no mundo e se dirige a um leitor

contemporâneo. A atitude de escrever e de criar uma realidade através de um

romance, por exemplo, é engajada a partir do momento em que o autor toma

consciência de sua responsabilidade enquanto um homem que pertence à sua

época e disso não pode se evadir. Como diz Sartre ([ca. 1960]) “O escritor está em

situação na sua época: cada palavra tem repercussões. E também cada silêncio”

(p.13, grifo do autor).

Para Adorno (2003), em sua análise sobre o poeta Valèry, o fato que chamou

sua atenção foi justamente a posição do discípulo de Mallarmé de se manter

atrelado às questões sociais de seu tempo. Isto não ocorreu de acordo com uma

noção típica de engajamento, mas sim pelo fato de que o poeta agiu de modo a não

se abster da história ou embriagar-se em ilusões sobre os processos que resultam

em alienação. Devido a isso, Adorno (2003) afirma que Valèry “exprime a

contradição entre o trabalho artístico enquanto tal e as condições sociais da

produção material contemporânea” (p.159). Não somente, havia em Valèry um

desejo de se dirigir ao “homem completo”, ou seja, um homem não dividido em

partes e faculdades mentais, em funções utilizáveis segundo o esquema da divisão

do trabalho, o que mostra uma percepção social da “coisificação” do homem.

publicado pela Tempo Brasileiro em 1973, cuja tradução não tornou fácil a compreensão desta discussão feita por este autor.

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Sartre coloca, do mesmo modo, que é necessário pensar no homem para o

qual se dirige, e este homem sartreano se assemelha ao de Valèry no ponto em que

o filósofo afirma que não entende o homem como simples soma de suas partes, ou

de forma mecânica. No pensamento sartreano, no entanto, este tema é essencial,

pois ele fundamenta suas argumentações filosóficas e literárias na sua concepção

da existência humana, que ele entende como liberdade. Por conseguinte, ele irá

refutar a idéia de uma natureza humana, buscando compreender a condição

humana que aparece em uma de suas descrições da seguinte maneira:

Para nós, não é uma natureza que os homens têm em comum, é uma condição metafísica: e entendemos por isso o conjunto de obrigações que os limitam a priori, a necessidade de nascer e morrer, a de ser finito e de existir no mundo entre outros homens. Em relação ao resto, constituem totalidades indecomponíveis, cujas idéias, os humores, os actos são estruturas secundárias e dependentes e cujo caráter essencial é o de estarem situados, diferindo entre si como as suas situações diferem entre elas. A unidade destes todos significantes é o sentido que manifestam. Quer escreva ou trabalhe em série, quer escolha uma mulher ou uma gravata, o homem manifesta sempre: manifesta o seu meio profissional, a sua família, a sua classe e, finalmente, como está situado em relação ao mundo inteiro, manifesta o mundo. (SARTRE, [ca. 1960], p.21- 22, grifos do autor).

Quanto a esta condição metafísica, Sartre (2005e) a conceituou em seu

ensaio de ontologia fenomenológica O Ser e o Nada. Neste estudo clássico, ele

definiu a liberdade como modo de ser do homem, o qual chamou de ser Para-si, que

existe sempre em situação. As bases desta teorização se encontram na

fenomenologia de Husserl, que permite estabelecer uma indissociável relação entre

homem e mundo, através da noção de intencionalidade da consciência. Sartre

utiliza-se desta noção de consciência intencional que, entendida como puro

movimento em direção ao mundo, permitia libertar a consciência das visões

substancialistas da psicologia e também superar a dicotomia entre idealismo e

materialismo da filosofia tradicional. Isto significa que a fenomenologia permitia

acabar com a apologia do idealismo, no qual o mundo “perdia sua substancialidade”

ao se reduzir ao sujeito conhecedor e, deste modo, tudo se resumiria a ser um

produto de suas próprias idéias, o que, nas palavras de Sartre (2005f), caracterizava

uma “filosofia alimentar” que reduzia a matéria à “interioridade gástrica” do Espírito.

E, por outro lado, a posição materialista, que, como o nome indica, postula a

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primazia da matéria onde o sujeito do conhecimento desaparece por completo,

gerando a posição de que os objetos explicam-se por si, sem qualquer consciência

que os revele, como resume Maheirie (1994). No que diz respeito à psicologia,

Sartre compreendeu que a noção de intencionalidade o permitia questionar a

concepção clássica que a entendia uma espécie de caixa, um lugar, onde as

sensações e as imagens se agrupariam, tema que é enfatizado por Moutinho (1995).

Admirado pela idéia da consciência intencional, Sartre (2005f) concorda com

entusiasmo que “Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas

na consciência” (p.55). Ao percebermos um objeto, ele está localizado, situado,

espaço-temporalmente no mundo e não há como captá-lo para “dentro da

consciência”, pois não podemos entendê-la por uma perspectiva espacial, o que

impossibilita a noção de que algo possa estar dentro dela. Além disso, ao falarmos

da consciência, falamos de algo sem substância, translúcido. O objeto, por sua vez,

é opaco, o que significa que a consciência não pode nunca ser confundida com este

já que eles não possuem a mesma natureza. Conclui Sartre (2005f) que Husserl

mostrou que a consciência é um eterno movimento para fora de si, para além de si,

ao que não é si mesmo, “e essa necessidade de existir como consciência de outra

coisa que não ela mesma, ele a chama de intencionalidade” (p.57). Desta forma, não

devemos compreender a consciência da mesma maneira que compreendemos o

ser-em-si 55, ou seja, o modo de ser dos objetos. A consciência, autoconstituinte,

translúcida para si mesma, existe como para-si, como presença a si, revelando em

seu ser um nada, como esta “distância não-espacial” de si fundamental, que a

condena à liberdade. É claro que Sartre em O ser e o Nada desenvolve uma série de

raciocínios para chegar a estas formulações, nuances que não pretendo explorar

aqui, mas vale dizer, mesmo que de forma resumida, que o homem sartreano,

sempre consciente de si 56, está jogado no mundo pela intencionalidade e

55 Sartre (2005e) define o ser em-si em O Ser e o Nada como um ser que é maciço, opaco, pura positividade (no sentido de não implicar em seu ser nenhuma negação), é idêntico a si e se auto-ignora: “O ser é em-si, significa que não remete a si, tal como consciência (de) si mesmo” (p.38). Uma das maiores preocupações de Sartre neste livro parece ser fundamentar ontológicamente o modo de ser da realidade humana como radicalmente distinto do reino material embora seja por meio deste que o homem descobre a si mesmo. 56 Sartre faz uma importante distinção entre consciência e conhecimento. Quando afirma que o homem é sempre consciente de si isto não significa que ele é conhecimento de si, relação que acontece, para ele, somente na reflexão. Ele baseia sua teoria da consciência em um modo que é anterior ao conhecimento, que ele chama de cogito pré-reflexivo. Isto significa que Sartre deseja manter-se fiel ao princípio que “toda consciência é consciente de si” (caso contrário seria uma

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preenchido deste mesmo mundo, é somente por e para este que realiza sua

condição de liberdade. Esta implica, pois, já que a consciência é movimento em

direção a..., em um projetar-se rumo as suas possibilidades, um eterno transcender

aquilo que é em direção ao que ainda não é, o que nos liberta de tentar entender a

ação humana como efeito de forças causais, entendendo-a como um projetar-se

rumo a estas possibilidades. Assim, resume Luiz Damon Moutinho (1995b): “Todo

fato psíquico, todo vivido, tem finalidade, sentido. Não é o passado que determina o

presente, no sentido de causa e efeito, mas a consciência é no presente conforme o

futuro que ela visa” (p.57).

Portanto, o homem ao qual Sartre se dirige é este ser preenchido de mundo,

cujo modo de ser é transcender a própria facticidade em direção ao sentido. Quando

Sartre em Que é a Literatura? afirma que devemos nos dirigir à liberdade do leitor,

ele já a tinha definido como fundamento do ser Para-si em O Ser e o Nada. Neste

sentido, ele sabe que seu leitor, enquanto movimento de transcender aquilo que lhe

é dado, dará ao seu texto o caminho que bem lhe entender, e este é o risco do

escritor e também o do leitor. Não há aqui qualquer caráter de manipulação, pelo

contrário, Sartre apela justamente para a consciência nadificante de seu leitor, ou

seja, a criação de seu sentido próprio. A partir disso, creio que podemos

compreender de que modo Sartre entendeu seu engajamento através da relação

autor-leitor que aponta para uma interação dialética na criação do objeto literário.

2.2. O “vai e vem” dialético da criação literária como engajamento no tempo cotidiano. O texto literário, enquanto documento escrito, corre o risco de ser entendido

como algo estático, objetivo e a-histórico. O objeto literário implica uma aparência de

totalidade, já que o autor deixou impresso em seu texto tudo aquilo que

(supostamente) desejava revelar e mesmo suas faltas e seus “silêncios” (também

supostamente) já passaram por sua revisão e a de seus editores, o que nos mostra

consciência inconsciente) mesmo que de forma não-posicional, ou seja, mesmo quando não se coloca como objeto de conhecimento.

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que estes devem ser entendidos como sustentados por uma finalidade57. Sendo

assim, conseguimos visualizar o processo: o autor cria e revisa, a editora revisa e,

talvez após algum “vai e vem”, publica o livro. Nesta ordem, o leitor já “chega”

quando tudo está pronto e ele nada tem a ver com as ações anteriores. Ele apenas

recebe passivamente tudo aquilo que já está acabado, sendo sua relação com o

autor abstrata e hipotética. Porém, o que Sartre (2004) tenta mostrar é que, na

produção literária, estes momentos não podem ser concebidos separadamente. Eles

fazem parte de uma interação dialética onde o autor e o leitor então em constante

diálogo.

A criação literária é produzida no mundo, sofre suas condições e as cria

simultaneamente, pois a intenção do autor existe, assim como a do leitor, e ambas

não devem ser ignoradas no entendimento desta produção. É nesse sentido que

Sartre afirma que toda literatura é engajada visto que ela propõe uma visão de

mundo que dá forma e sentido ao real. Ele descarta, portanto, a idéia de que a

literatura possa ser inocente, e se dirige à responsabilidade dos escritores vivos e

também a dos leitores, demarcando, deste modo, uma intenção por parte do autor

de estabelecer um “diálogo” como seu leitor. Se estivermos atentos em nossas

leituras cotidianas, podemos ver claramente alguns exemplos deste tipo de diálogo,

como este de Cervantes no início de Dom Quixote:

Desocupado leitor, não preciso de prestar aqui um juramento para que creias que com toda minha vontade quisera que este livro, como filho do entendimento, fosse o mias formoso, o mais galhardo e discreto que se pudesse imaginar: porém não esteve na minha mão contravir à ordem da natureza, na qual cada cousa gera outra que lhe seja semelhante; que podia portanto o meu engenho, estéril e mal cultivado, produzir neste mundo, senão a história de um filho magro, seco e enrugado, caprichoso e cheio de pensamentos vários, e nunca imaginados de outra alguma pessoa?[...] Acontece muitas vezes ter um pai um filho feio e extremamente desengraçado, mas o amor paterno lhe põe uma venda nos olhos para que não veja as próprias deficiências; antes as julga como discrições e lindezas, e está sempre a contá-las aos seus amigos, como agudezas e

57 Sartre (2004) discorda noção kantiana de “finalidade sem fim” para designar a obra de arte, pois para ele a obra não tem uma finalidade, ela é uma finalidade em si. Tudo que a compõe tem uma relação significativa que revela as intenções do autor. Sartre nos dá o exemplo da diferença entre a beleza da arte e a beleza natural. Quando vemos uma flor que expressa perfeição em suas formas tendemos a procurar uma tendência finalista que una todas as suas propriedades, e temos uma ilusão de um apelo a nossa liberdade. É somente na beleza natural que Sartre entende a “finalidade sem fim”, pois, enquanto na natureza as coisas só se harmonizam por acaso, nos romances, por exemplo, existe uma finalidade que harmoniza o todo “como uma força suave que nos acompanha e sustenta, da primeira até a última página” (p.45).

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donaires. Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo padrasto de Dom Quixote, não quero deixar-me ir com a corrente do uso, nem pedir-te, quase com as lágrimas nos olhos, como por aí fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares e descobrires neste meu filho; e porque não é seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu corpo, e a tua liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto, e estás em tua casa, onde és senhor dela como el-rei das suas alcavalas, e sabes o que comumente se diz ‘que debaixo do meu manto ao rei mato’ (CERVANTES,2007, p.9).

Na passagem acima, Miguel de Cervantes (2007) faz um apelo ao leitor que,

embora pareça desocupado, tem o poder de transformar Dom Quixote no que

pretender sua imaginação. Sendo assim, ele suplica um cuidado, visto que ele

mesmo admite que cada cousa gera outra que lhe seja semelhante e que é ele,

portanto, quem está nas mãos da liberdade do leitor, o qual em baixo do seu manto,

pode lhe oferecer um destino imprevisível. Este exemplo nos mostra que há uma

relação autor-leitor que constitui o objeto literário, e evidencia que, justamente por

isso, a criação envolve uma intenção do autor que inclui o outro, e esta intenção está

presente em toda obra. Para Sartre (1994), é o Outro que dá a obra literária “um lado

de fora”, um caráter de objeto para o autor que, sozinho, não encontra nada além

dele mesmo: “[...] a operação de escrever implica o outro como seu correlativo

dialético, e esses dois atos conexos necessitam de dois agentes distintos [...] Só

existe arte para outrem” (p.37, grifo meu).

Esta relação constitutiva que se mostra no momento mesmo da criação do

autor envolve, do mesmo modo, uma relação com o futuro, onde o objeto criado será

lido, avaliado e sentido. O autor sabe que este futuro depende de seus movimentos,

pois as páginas permanecem em branco enquanto ele não executa a sua ação, um

movimento seu que é projeto, no sentido de que visa um fim e neste fim está o leitor.

Mas o leitor não está longe, ele se encontra presente no momento da criação

enquanto mundo, enquanto realidade concreta para a abstração criativa do escritor.

As palavras que nunca são lidas não significam nada além de pontos pretos no

papel, e o escritor sabe que precisa de um outro para animá-las e oferecê-las

sentido. Sendo assim, para Sartre (1994), o escritor não pode ser entendido

enquanto pura subjetividade e abstração, isolado de um mundo real que o

encontrará a posteriori. Ele sabe que pode tentar prever o efeito do que escreve

mas, sozinho, não poderá senti-lo. Deste modo, o leitor faz parte da criação, ele dá

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sentido ao texto que está lendo pela maneira que lê, pelo que sente enquanto lê e

pelo que sente por aquilo que lê. O leitor perde assim qualquer característica

“passiva” e passa a fazer parte da criação do processo literário, fato que também foi

ressaltado por Virginia Woolf em O leitor comum (2007). Na visão desta escritora, o

leitor vivencia de maneiras distintas a sua leitura: “Mas sabemos que não podemos

nos simpatizar inteiramente nem nos anular por completo (na leitura); há sempre um

demônio interior que sussurra, ‘Odeio, amo’, e não conseguimos silenciá-lo” (p.133).

E é justamente por compreender isto que não devemos então permitir que os

julgamentos e inquietações nos afastem demasiadamente de nossa leitura ou que

tampouco nos tornemos indulgentes para com a produção literária. Virginia Woolf

aponta ainda para uma responsabilidade do leitor, fato que nos chama a atenção

pela semelhança com a argumentação de Sartre (1994), pois ela acredita que os

padrões e julgamentos que erguemos pelo ar “se tornam parte da atmosfera que

escritores respiram enquanto trabalham” como “uma influência que se produz sobre

eles ainda que jamais encontre sua forma impressa” (p.135). Para Sartre (1994), no

momento da leitura, são precisamente estes sentimentos do leitor que dão vida a

história lida, eles são a própria condição de “existência” dos personagens:

[...] a espera de Raskolnikoff 58 é a minha espera, que eu empresto a ele; sem essa impaciência do leitor não restariam senão signos esmaecidos; seu ódio contra o juiz que o está interrogando é o meu ódio, solicitado, captado pelos signos, e o próprio juiz não existiria sem o ódio que sinto por ele através de Raskolnikoff, é esse ódio que o anima, é a sua própria carne (SARTRE, 2004, p.38).

O objeto literário, na visão sartreana, implica, assim, em uma relação autor-

leitor que é constante e exige troca, fato que permite que a criação se realize por

esta mesma relação, que, como um “pião”, diz Sartre (2004), existe apenas em

movimento e só “gira” enquanto a leitura o impulsiona. É à liberdade do leitor que o

autor se dirige quando escreve, ou seja, sua capacidade de transcender o texto e

ir além do que é dado ao produzir sentido. Da mesma maneira, o leitor deve

confiar no autor, visto que segue o caminho por ele dirigido e cria em conjunto com a

sua obra. Esta interação constitui uma relação de apelo mútuo, pois um se dirige ao

58 Personagem do romance Crime e Castigo de Dostoievski.

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outro buscando uma atitude de generosidade59 e confiança, por um “vai-e-vem”

dialético onde autor e leitor se exigem de forma crescente e recíproca. Vale ressaltar

que tal relação acontece no mundo onde ambos estão presentes, assim como o

objeto criado,e ele encontra-se, portanto, também situado, histórico e, por isso

mesmo, inacabado embora sua aparência de totalidade.

Nesta perspectiva, o mundo aparece como condição de todo o processo de

criação literária, e, sob o engajamento de Sartre, este mundo toma forma somente

no tempo presente. A criação literária, que tende a ser vista como uma produção à

parte da realidade, como uma entidade autônoma que trata de temas eternos, ou

somente alcançáveis por especialistas, toma neste contexto o viés da

dessacralização ao entendermos o processo de criação na relação autor-leitor. A

literatura mostra-se então em estreita relação com o cotidiano, com a vida de

pessoas comuns, como pensou Norman Denzin (1984) apontando Sartre, Heidegger

e o escritor norte-americano William Faulkner como exemplos de pensadores que

tiveram como foco o homem comum e suas histórias de vida. Denzin (1984) utiliza a

noção de temporalidade como um dos pontos chaves de sua análise e distingue,

baseando-se em Husserl, duas formas de conceber o tempo: o tempo mundano,

cortado, categorizado em blocos e segmentado, e o tempo fenomenológico, que é o

tempo entendido como fluxo contínuo. Este último é o tempo atrelado as nossas

experiências cotidianas, que ainda não possui um sentido até que possamos passar

por elas e encaixá-las na coerência do tempo mundano. Na opinião do autor, a

fenomenologia sugere assim uma preocupação com o cotidiano, ao colocar como

centro de sua investigação o tempo da vivência cotidiana e a importância da pessoa

comum60. Conclui Denzin (1984) que “as pessoas comuns universalizam, através de

suas vidas e de suas ações, a época histórica em que vivem” (p.30), e por isso é

interessante aceitar o desafio de estudar não “o cimento e a infra-estrutura das

sociedades de hoje, mas [...] pessoas vivas, que respiram e sentem” (p.32).

Penso que Sartre tinha de fato uma intenção de criar personagens cada vez

mais próximos ao homem comum, com os quais os leitores pudessem se imaginar e

se identificar por compartilharem com eles algumas situações. Mas creio que o

aspecto que mais chama a atenção em Faulkner, também apontado por Denzin

59 Sartre (1994) define generosidade como uma “uma afeição que tem a liberdade por origem e por fim” (p.42). Ele parece ter se inspirado no escritor Jean Genet quando ele mesmo cita o que Genet entende como uma “cortesia do autor para com o leitor” (p.41, grifo meu). 60 Este comentário é feito por Denzin (1984) com base no livro de Anatole Broyard Ordinary People.

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(1984), não é tanto por personagens extremamente mundanos, mas sim por um

estilo narrativo que é de difícil compreensão, pois se sustenta em uma desordem

proposital, onde os fatos e acontecimentos se revelam por pedaços cortados e fora

da coerência temporal. Por esse motivo também, os romances deste escritor foram

objeto de análise de alguns críticos, dentre estes o próprio Sartre (2005f), que visou

justamente discutir o tema da temporalidade faulkneriana61.

Por um caminho distinto, mas em direção semelhante, o historiador

Alessandro Portelli (1991) se interessou pelo estilo de Faulkner com o objetivo de

entender as diferenças ou aproximações de seu texto com as narrativas orais,

próprias do cotidiano. Portelli desejava estabelecer uma aproximação da literatura

com o mundo através do estudo destes discursos e Faulkner mostrou-se

interessante por ser capaz de inverter as características dos discursos textuais e

orais, isto é, quando Faulkner coloca no texto características próprias do discurso

oral. Portelli, ao ministrar uma matéria sobre literatura na universidade de Roma,

utilizou então o texto de Faulkner para explorar com seus alunos a proximidade entre

os discursos literários e o cotidiano. Esta experiência mostrou-se representativa da

relação de distância que as pessoas tendem a ter com relação à arte, e o professor

pôde observar que eles tentavam entender os textos com certo afastamento, como

se estes fossem algo que existisse fora de suas realidades e como se a literatura se

constituísse por si só, criada por certos gênios escritores que existem “no ar” e que

nada têm a ver com a realidade concreta. O que Portelli desejava realmente era

instigar os alunos a pensar na literatura como experiência cotidiana, estabelecendo

pontes entre as narrativas literárias,e suas formas de discursos, com aqueles que

proferimos todos os dias, embora cada qual mantenha suas especificidades. No

entanto, Portelli (1991) teve dificuldades para demonstrar essa proximidade, pois

observou que mesmo quando eles conseguiam equiparar a literatura com suas

narrativas cotidianas, isto levava a uma depreciação da literatura, ao invés de uma

valorização de seus discursos, sendo assim, o critério de valor permanecia o

mesmo, o que o levou a concluir que “a arte é medida pela distancia de nossas

vidas” (p.282).

O texto escolhido por Portelli (1991) para trabalhar com seus alunos foi

Absalom, Absalom! de Faulkner. O que ele pretendia mostrar é que a desordem

61 Exploro este tópico mais adiante.

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temporal que aparecia no romance de Faulkner é própria dos discursos orais, da

maneira pela qual contamos e ouvimos histórias. Os alunos puderam observar que a

fragmentação do discurso, que parece tão incomum em um texto escrito, está

presente nas falas em geral do dia-a dia, e que o lugar em que Faulkner nos coloca

enquanto leitores é na verdade o lugar que ocupamos em nossa própria vida ao

ouvir pedaços retalhados das histórias familiares. Diz Portelli:

A maior parte dos relatos pessoais ou familiares são contados em pedaços e episódios, quando surge a ocasião; conhecemos mesmo as vidas de nossos parentes mais próximos por fragmentos, repetições, por ouvir dizer.[...] o avô ou avó que põe um neto em seu colo para lhe contar a história de sua vida é uma ficção literária. A história de vida como completa e coerente narrativa oral não existe na natureza (PORTELLI, 2001, p.11).

O que Faulkner expressa é esta temporalidade do discurso oral no texto

escrito, e com isso mostra que enquanto no primeiro o tempo recordado é vivido com

facilidade, no texto escrito ele se torna extremamente estranho. Um dos exemplos

que Portelli (2001) nos dá é a utilização da repetição como recurso, que assume

diferentes funções na escrita e na fala. Em suas entrevistas de pesquisa, o

historiador pôde observar que a repetição era utilizada muitas vezes como um

instrumento de controle, onde o depoente visava frisar alguns aspectos que

presumia ser de grande importância e, ao mesmo tempo, conseguia estender seu

tempo de entrevista. Já no texto escrito, o narrador não precisaria restabelecer o

controle, pois ele o tem integralmente, assim como o leitor, que a qualquer momento

pode voltar e reler aquilo que não foi entendido. Além disso, a repetição no texto

escrito pode torná-lo redundante a ponto de prejudicar o interesse do leitor, o que

nos leva a pensar qual seria a intenção de usar este artifício, que foi amplamente

empregado por Faulkner. Para Portelli (2001), este é o recurso que o romancista

utiliza justamente para inverter o texto escrito com a fala, visto que pela repetição ele

mexe com o tempo, e o apresenta como um discurso oral. Alem disso, é interessante

atentar para o fato de que também Sartre (2005d), que se interessa pela

temporalidade do texto faulkneriano, utiliza em seus próprios textos recursos

temporais, como podemos observar, por exemplo, nos monólogos da sua

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personagem Lulu do conto Intimidade 62; no qual os pensamentos noturnos da

personagem se mostram intensos, fugidios, recortados:

Henri gemeu, mas não fez o menor movimento. Estava reduzido à impotência. Lulu sorriu: a palavra “impotência” sempre a fazia sorrir. No tempo em que ainda amava Henri, quando ele repousava assim imóvel, ela se divertia imaginando-o pacientemente ensalsichado por anoezinhos do gênero daqueles que tinha visto numa estampa quando era pequena e lera a história de Gulliver. Sempre chamava Henri de “Gulliver”, e ele gostava porque era um nome inglês, e Lulu tinha então o jeito de uma pessoa instruída; teria preferido, porém, que ela pronunciasse aquele nome com o sotaque certo. Como isso me amolava; se desejava uma moça instruída, devia ter se casado com a Jeanne Beder, que tem seios em forma de buzina, mas sabe cinco línguas (SARTRE, 2005d, p.86-87, grifo meu).

Neste caso o autor intercala a fala do narrador, que nos localiza em relação

ao tempo mundano da personagem - no tempo em que ainda amava Henri - com o

tempo fenomenológico do fluxo de consciência de Lulu - como isso me amolava -

também sem anunciar as mudanças para o leitor. O que interessa para o

pesquisador Portelli é achar esta ligação entre a fala e a escrita quando, por

exemplo, a fala assume um discurso textual, ou quando o texto é apresentado pela

técnica da oralidade, e ainda, quando o mesmo aspecto (como a repetição) assume

diferentes funções em cada tipo de narrativa. Todas essas nuances são passíveis de

serem exploradas se levarmos em conta que estamos falando de uma relação, entre

os narradores orais ou literários e os “leitores”. Portelli (1997) entende que existe

uma “parcialidade” do narrador, visto que ele sempre está relatando “um lado” de

uma história que possui múltiplos pontos de vista. A perspectiva do narrador é

intencional e escapa à pretensão de neutralidade, como desejavam os “narradores

oniscientes” que não se implicavam nos eventos por eles relatados. No caso do

historiador que trabalha com narrativas orais, sua influência é marcante no tipo de

discurso feito pelo entrevistado, pois este se dirige a ele e sabe que sua fala se

tornará um material que será acessado por outras pessoas. Este conjunto de fatores

influencia no tipo de discurso a ser proferido pela pessoa e também aí Portelli (1997)

faz uma aproximação com a literatura, quando ele nos mostra que os estilos, os

gêneros, os vocabulários, as gírias, os dialetos, entre outros, são significativos e

passíveis de uma compreensão.

62 Intimidade faz parte do livro de contos O Muro de 1939.

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Nos textos de Faulkner, a relação do leitor com o autor é marcada por uma

sensação de confusão, o leitor “entra” na história e tenta sozinho descobrir o que se

passa. Ele apenas escuta diálogos e repetições de falas, ele entreouve “atrás das

portas” para aos poucos construir suas ligações que possam fazer sentido. Portelli

(1991) sente que nos romances de Faulkner os personagens falam entre si, mas

ninguém fala ao leitor, assim o leitor imerge no mundo do texto como uma criança,

sem ser vista e sem merecer explicações. Além da técnica, o escritor americano

chama a atenção também por retratar o espírito de uma época - o contexto do sul

escravocrata dos Estados Unidos de antes da Guerra Civil. Sidney Finkelstein

(1969), em Existencialismo e alienação da literatura Norte-Americana, coloca que a

força que guia o pensamento faulkneriano caracteriza-se por um sentimento de

nacionalismo “sulista” que desejava manter-se no passado feudal e sofria uma

ameaça do Norte com o avanço do capitalismo e da abolição da escravatura. Devido

a isso, os romances expressam um misto de nostalgia de um passado glorioso que

talvez nunca tenha existido e a decadência desta mesma tradição. Os personagens

se vêem amarrados por este contexto, sofrem no presente e querem manter um

passado que conhecem por pedaços de histórias. Vejo que isto se mostra bem claro

em O Som e a Fúria, por exemplo, onde os personagens expressam a todo o

momento este contexto bem descrito por Finkelstein (1969). Além disso, neste

romance, o leitor se perde desde o início, e me parece que Faulkner ([19-]) tem

mesmo esta intenção se observarmos atentamente o uso que faz de um tempo

recortado, além da ordem dos blocos narrativos e os nomes repetidos dos

personagens. Em primeiro lugar o tempo retratado por Faulkner ([19-]), diz Sartre

(2005f), é a temporalidade propriamente dita, diferente da cronologia, que é o tempo

inventado pelo homem e seus relógios. No romance, o Sr. Compsom dá um relógio

ao filho Quentin e lhe diz:

Quentin, dou-te o mausoléu de toda esperança e de todo o desejo. É mais que penosamente o uses para obter o reduto absurdum de toda a experiência humana, e que descubras que as tuas necessidades individuais não serão mais satisfeitas do que foram as suas ou as do seu pai. Dou-te não para que se lembres do tempo, mas para que o possas esquecer de vez em quando por momentos, e para evitar que gastes o fôlego a tentar conquistá-lo. Porque as batalhas nunca se ganham. Nem sequer são travadas. O campo de batalha só revela ao homem sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão de filósofos e loucos (FAULKNER, [19-], p.69-70).

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Mas Quentin não agüenta carregar o relógio e o quebra, ele lembra que o pai

lhe disse que “os relógios matam o tempo” e “só quando o relógio pára o tempo volta

a vida” (FAULKNER, [19-], p.76) . Sartre (2005f) indica que para chegarmos ao

tempo real é preciso abandonar o tempo cronológico e o ato de Quentin torna-se

representativo desta passagem. Assim, parece que Faulkner ([19-]) deseja empurrar

o seu leitor no tempo presente, que é o tempo do “idiota” Benjy, um dos

personagens principais, que “não sabe ler as horas”. O escritor parece querer, ou até

obrigar, que o leitor quebre também seu próprio relógio para que não abandone o

livro logo no primeiro bloco, ele nos apresenta um tempo ilógico, cortado, invadido

por trechos de passado e presente sem qualquer ordem. Há também em O Som e a

Fúria uma ausência de futuro, Sartre (2005f) entende os personagens impregnados

pelo passado e coloca que esse é o sentido do presente de tais personagens: “tudo

se passa nos bastidores: nada acontece, tudo aconteceu. E é isso que permite

compreender esta estranha formulação de um dos heróis: ‘Eu não sou, eu era’”

(p.95). Na visão sartreana o futuro é uma dimensão temporal inseparável do

presente e do passado, ele faz parte do modo de ser do homem e funciona como

motor de suas ações, o que leva Sartre a concluir que o leitor não conseguirá

enxergar a si mesmo nestas “criaturas privadas de possíveis”.

Outro aspecto que me chamou a atenção em Faulkner ([19-]) é a ordenação

dos blocos narrativos: o primeiro deles caracteriza-se pelas impressões de Benjy, o

“idiota” que apenas apreende impressões fragmentadas do mundo exterior; o

segundo é relatado por Quentin, filho mais velho do casal Compson, que vivencia

seu último dia antes de se suicidar. O segundo bloco mostra-se um pouco mais

compreensível que o primeiro, mas mesmo assim revela-se confuso, próximo a um

delírio. Os últimos blocos parecem obedecer a uma ordem crescente de clareza: o

relato do filho Jason e por último da escrava Dilsey, único bloco na terceira pessoa

onde aparece um narrador. Tal arrumação me levou a pensar na intenção do autor

de propor ao leitor um caminho mais duro e de difícil entendimento, onde, somente

no final, o leitor pudesse ter alguma sensação de coerência do romance. Podemos

observar, além disso, o jogo confuso de nomes dos personagens, pois Faulkner ([19-

]) “narra” sem diferenciar ao longo do texto a quem estaria se referindo: o filho Jason

tem o mesmo nome do pai, e a sobrinha Quentin tem o mesmo nome do tio, já Benjy

nasceu com o nome de Maury, mesmo nome do irmão de sua mãe, e teve o nome

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trocado na esperança de que sua situação (de “idiota”) pudesse ser remediada.

Talvez menos confusos que os Aurelianos de Garcia Marques63, entendo que a

repetição dos nomes em Faulkner pode indicar uma caracterização de um apego ao

passado e a tradição (Quentin era III e Jason IV), sentimento desesperado de

tentativa de “retorno ao passado glorioso”. Os movimentos dos personagens de

Faulkner mostram-se assim reveladores de sua época e, segundo Denzin (1984),

por isso mesmo possuem um profundo significado sociológico, ao permitir uma

ligação entre os níveis micro e macro onde as estruturas mostram-se “reais” na vida

dos indivíduos que interagem.

Simone de Beauvoir (1995) diz que Sartre entendia que “o escritor não deve

prometer futuros felizes, mas, pintando o mundo tal como ele é64, suscitar a vontade

de mudá-lo” (p.109). O filósofo reconhece então que os movimentos destes

personagens em suas situações nos revelam algo de nosso próprio mundo. Por esta

via, o engajamento sartreano estaria ligado à possibilidade de uma tomada de

posição do escritor que pertence a este mundo, e mais ainda, deseja mudá-lo, como

resume Denis ( 2002). Com relação a isso, Sartre afirma:

Todos os escritos possuem um sentido, mesmo que este sentido esteja muito afastado daquele que o autor tenha pensado em dar-lhe. Para nós, com efeito, o escritor não é Vestal nem Ariel: está “metido no caso”, faça o que fizer, marcado, comprometido, mesmo no seu mais profundo afastamento (SARTRE, [ca. 1960], p.11).

Ao mesmo tempo, ele nos lembra que a todo o momento quem está na outra

ponta do processo literário – o leitor - possui a imprevisibilidade da ação livre, o que

caracteriza justamente a esperança do autor de apelo a liberdade, e que, a meu ver,

não condiz com uma atitude de tendências manipulatórias. Vimos que o leitor tem

suas responsabilidades e suas atitudes influenciam na atmosfera da produção

literária e Sartre (2004) coloca que é justamente pela compreensão do papel ativo

do leitor na produção literária que se estabelece uma relação autor-leitor capaz

de exprimir a esperança de mudança de um mundo estabelecido. 63 Faço alusão ao livro Cem anos de solidão de Garcia Marques, cujos personagens de uma mesma família têm os nomes repetidos ao longo dos cem anos relatados na história. 64É importante ressaltar que Simone de Beauvoir não compartilhava uma visão dita realista que acredita que o escritor deve mostrar a realidade tal como ela é, mas sim que, apesar da impressão dada na frase, seu ponto de vista encontrava-se, acredito, mais próximo ao de Sartre onde cada um vê a realidade a partir de sua situação.

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Desta forma, se entendemos que o homem é livre para criar-se, podemos

entender a literatura como fonte rica deste processo de criação, uma fonte que não

sugere caminhos prontos, mas que suscita questionamentos transformadores. Por

esta razão, vemos que a História está repleta de tentativas de conter o poder da

literatura, como nos mostra Luciano Canfora (2003) em Livro e Liberdade. Nesta

obra, o autor destaca que o nexo entre livro e liberdade é rico e antigo, sublinhando

inclusive que estas palavras possuem a mesma identidade gráfica de origem latina

(líber). Ao longo da História, presenciamos inúmeras fogueiras de livros e listas de

livros proibidos como o Índex da Igreja Católica, o que nos evidencia a importância

dos livros. De acordo com este mesmo autor, a idéia de que os livros teriam algum

poder inerente é antiga e remete à sociedade arcaica, mas podemos ver suas

expressões até os tempos atuais. Dom Quixote, por exemplo, tornou-se a figura

representativa daquele que vive a literatura e vivenciou, em sua história, sua própria

fogueira de livros65 e Cervantes nos mostra assim, pela própria literatura, seu poder

e alcance exagerado através das “loucuras” de seu personagem. Além deste

exemplo dado por Canfora (2003), vejo uma outra expressão literária deste tema no

romance utópico de Ray Bradbury (2007). O título já faz uma referência à

incineração de livros já que Fahrenheit 451 corresponde a temperatura em que o

papel entra em combustão. Bradbury retrata uma sociedade onde os livros são

proibidos, eles foram todos queimados e os que ainda restavam, mantidos em

segredo nas mãos de certos “resistentes”, tinham sempre este mesmo destino.

Assim o autor nos mostra, em diversas passagens, principalmente nos diálogos de

um “resistente” o porquê seria perigoso para a sociedade manter vivo o poder dos

livros.

Tudo isto me leva a pensar no poder da literatura enquanto questionadora de

um mundo em que vivemos. Acredito que desta maneira podemos pegar esta via de

sentido oferecida por Sartre para pensar o papel da literatura como contestação e

resignificação de um mundo social.

65 Canfora (2003) cita um trecho de um poema do exílio, de Bertold Brecht, no qual um autor que foi “poupado” pela fogueira dos nazistas se revolta com tamanha ofensa de não ser queimado. Brecht estaria demonstrando assim a idéia de que aqueles que são incinerados possuem um poder transgressor.

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64

3.3 A Literatura como contestação do tempo presente.

O processo de criação literária para Sartre envolve, como vimos, uma relação

do autor com o leitor. O que Sartre (1994) chamou de apelo para à liberdade

significa entender que essa relação envolve a criação de sentido que dá vida ao

objeto estético. Vimos também que estas noções estão embasadas na

intencionalidade da consciência, enquanto ato significativo de criação. A partir

disso, podemos entender que o movimento característico do modo de ser da

liberdade propõe uma libertação ao opor-se ao real, não no sentido de negá-lo, mas

de resignificá-lo. Isto se torna mais claro se conseguirmos enxergar este movimento

como um questionamento do mundo comum entre o autor e o leitor, isto é, que

ambos poderiam recolocar-se em sua situação, até mesmo em posição de oposição

e resistência ao que já é dado de antemão, o que me remete ao convite

fenomenológico de sairmos de nossa tese natural do mundo onde as coisas “são do

jeito que são” e nos colocarmos na atitude filosófica de questionamento. Para Sartre,

este movimento parece tomar sempre uma via política, pois como ressalta Cristina

Mendonça (2006), pensar, para ele, significa pensar contra, e a literatura está

impregnada por esta negatividade que incomoda a realidade estabelecida. Nas

palavras de Sartre:

A liberdade não é, propriamente falando; ela se conquista numa situação histórica; cada livro propõe uma libertação concreta a partir de uma alienação particular. Existe em cada um, assim, um recurso implícito a instituições, a costumes, a certas formas de opressão e conflito, à sabedoria ou à loucura do dia, a paixões duráveis e obstinações passageiras [...] enfim, aos costumes e valores recebidos, a todo um mundo que o autor e o leitor têm em comum [...] e é a partir dele que o leitor deve realizar a sua libertação concreta; ele é a alienação, a situação, a história, é ele que deve recuperar e assumir, é ele que deve mudar ou conservar, para mim e para os outros. (SARTRE, 2004, p.57-58).

Esta afirmação de Sartre se assemelha a de Marcuse ([1986?]), pois, embora

tenham argumentado de forma distinta, ambos parecem associar à arte uma

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possibilidade de resistência e libertação66. Nesta passagem, Sartre fala do contexto

que une o escritor e o leitor, um “mundo em comum” que poderia se encaixar na

concepção de “matéria prima” de Marcuse. Em A Dimensão Estética67, Marcuse

([1986?]) critica a visão “ortodoxa” 68 marxista e argumenta sobre o caráter

revolucionário da obra de arte enquanto contestadora da realidade estabelecida 69.

Um dos pontos cruciais de sua argumentação é que a obra não se resume aos

interesses de determinadas classes sociais, mas possui um potencial político em sua

própria forma estética. Porém, não devemos compreender que ao dar à arte certa

autonomia da forma o autor estaria retirando-a do contexto social, mas sim,

desvencilhando-a de uma estrutura pré-codificada que delimita seus horizontes. A

estética marxista, para a qual este filósofo dirige sua crítica, pressupõe que a arte

esteja subordinada à macro-estrutura da sociedade de classes, o que significa ao

interesse da classe em ascensão (o proletariado, por exemplo). Por conseguinte,

toda forma de arte da classe dominante é necessariamente desvalorizada e

decadente, isto é, o interesse político determina o estético. Mas o autor afirma que a

obra de arte transcende estes limites e não necessita deles para tornar-se

revolucionária, pois seu aspecto contestador pode apresentar-se como inerente à

sua forma estética na medida em que esta remodela a realidade existente em sua

própria, e nova, fôrma. Há neste movimento uma atuação sobre a “matéria prima”

do real para a construção de um novo fenômeno, igualmente real, sob forma de

objeto estético, como diz Marcuse ([1986?]) “é esta historicidade do material

conceitual, lingüístico e imaginável que a tradição transmite aos artistas e com o qual

ou contra o qual têm de trabalhar” (p.29). Neste sentido, o movimento de “dar forma

estética” implica em afirmar certas características do real e negar outras70, mas aqui

a ação de negar aparece como condição de criação e não de alienação, o que se

aproxima do movimento nadificador da consciência, expressão da liberdade em

66 John Gerassi (1990) relata que Sartre nunca lera Marcuse embora este tenha lido e comentado sua obra. Houve apenas um encontro real entre eles, por intermédio do próprio Gerassi, em Paris, no famoso restaurante La Coupole. 67 Texto citado no início do capítulo. 68 Neste trabalho, Marcuse ([1986?]) define “ortodoxia” como “a interpretação da qualidade e verdade de uma obra de arte em termos da totalidade das relações de produção existentes” (p.11). 69 É importante lembrar que ele concentra sua argumentação principalmente em torno da literatura dos séculos XVIII e XIX. 70 Sartre (1994) irá falar algo bem semelhante em relação a esta “intencionalidade” seletiva da forma: “É uma opinião muitas vezes partilhada pelos críticos: por exemplo, quem diz que ‘Victor Hugo é uma forma em busca de seu conteúdo’ esquece que a forma exige certos conteúdos e exclui outros” (p.56).

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Sartre. Para Marcuse ([1986?]), o traço revolucionário da arte encontra um caminho

similar, pois expressa, como em Sartre, um desejo de libertação por negação, ou

melhor, por uma acusação da realidade estabelecida.

Outra crítica deste filósofo se dirige à noção muitas vezes comum de

subjetividade - vista como uma idéia burguesa, nociva e passível de ser eliminada

por aqueles que visam um movimento e uma compreensão social. Estes, enquanto

se restringem a esta visão pejorativa, acabam por criar uma estrutura rígida que

compromete a criação, esmaga o “mundo da subjetividade” – tudo o que poderia ser

entendido como singular e que escapa ao reino da matéria. Marcuse ([1986?]) não

se restringe a isto e não deseja eliminar a subjetividade, e sim libertá-la de sua

interioridade enclausurada, o que significa resguardar a sua existência e expressão.

Desta forma, ele visa encontrar a força da mudança na inteligência, nos desejos,

paixões, impulsos e objetivos dos indivíduos e é justamente nesta “subjetividade

rebelde” que o autor acha a fonte de crítica das petrificações das instituições

existentes.

Deste processo nasce um romance, um poema, entre outras produções

entendidas por Marcuse ([1986?]) como obras que têm na realidade (histórica,

pessoal e social) sua matéria prima. Por este motivo, o objeto estético pode ser

entendido como um fenômeno sócio-histórico que expressa suas significações em

uma outra linguagem. A via de compreensão para este outro tipo de significação

exige uma outra razão, outra sensibilidade, que desafia a racionalidade e a

sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes. Na forma estética é possível

que haja a existência da ambigüidade e da contradição, há espaço para paradoxos e

confusões, enquanto que na produção racional-científica estes aspectos tendem a

ser descartados e vistos como um “erro” no produto. O filósofo Emmanuel Carneiro

Leão (1975) faz uma distinção interessante entre estes dois modos de pensar, que

indicam duas lógicas de pensamento diversas: a lógica do cálculo e a do sentido.

Ele coloca que esta última é muitas vezes sobrepujada pelo pensamento que

calcula, pois pensar o sentido requer uma parcela de angústia que a outra lógica

tenta ao máximo evitar, isto é, há uma fuga do pensar e uma valorização das

virtudes “tranqüilas” do cálculo. A obra de arte, por sua vez, expressa a lógica do

sentido, embora eu acredite que não podermos afirmar que ela encontra-se distante

do mundo do cálculo, já que muitas das medidas exatas foram usadas como

unidade de valor de sua beleza. Mas, de fato ela possui a capacidade de apresentar

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os silêncios, desejos e contradições da realidade humana de uma forma que esta

outra razão não alcançaria por estabelecer seus limites em seus próprios princípios.

Silêncios estes também ressaltados por Sartre (1994) como característicos da

linguagem comum, que é a que serve de material ao escritor. A língua comum é

aquela que possui a maior parte de desinformações, diferentemente da linguagem

técnica cujo objetivo da comunicação é o de transmitir a maior quantidade de

informações e a menor de desinformações; ela comunica o não-saber fundamental,

e chega a “propor o silêncio com palavras” (p.65). Na literatura, ao contrário da

linguagem técnica, “uma história pode valer mais do que mil palavras”, concorda

André Barata (2006, p.30). Isto significa dizer que não há uma necessidade de

estabelecer uma relação prática ou funcional da palavra, mas permitir que a palavra

se exprima por si só. Segundo este autor, esta própria expressão tem valor de

realidade, pois “não está pela realidade simplesmente como um representante na

ausência de um representado. Antes substitui o real na qualidade de ela mesma ser

realidade a ser representada” (p.30). A literatura pode nos fornecer, portanto, um

sentido por uma via não-funcional ou explicativa, mostrando-se portadora das

mensagens “negativas”, que nas palavras de Benoit Denis (2002), significa “a

capacidade de trabalhar o implícito e o não dito dos discursos, a fazer aparecer a

contradição que jaz no coração das representações instituídas pronta a subverter a

positividade da palavra socializada” (p.278). E, por fim, André Barata (2006) resume

que “o conhecimento da literatura, antes de todas as proposições conhecíveis

acerca dela, é conhecimento por contacto, experiencial” (p.30-31).

Entendo que esta via do sentido alcança o social de uma outra maneira, que

não privilegia a razão e que produz um certo tipo de pensar. Um pensamento que

escapa às concepções prévias e que permite criar, abrindo novos horizontes que

possibilitam questionar a própria existência. O sociólogo Zygmunt Bauman (2004),

por exemplo, chegou a afirmar que se lembra “de ganhar de Tolstoi, Balzac,

Dickens, Dostoievski, Kafka ou Thomas More muito mais insights sobre a substância

da experiência humana do que centenas de relatórios de pesquisa sociológica”

(p.318). Bauman diz também que estas idéias estão de acordo com a visão do

filósofo Richard Rorty cujo artigo sobre Harold Bloom mostrou-se interessante para

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esta argumentação71. Em Redemption from Egotism: James and Proust as Spiritual

exercises, Rorty (2001) traça as principais idéias de Bloom em torno do valor da

literatura e o poder que esta tem por ser capaz de oferecer novas perspectivas às

pessoas. Segundo Rorty, Bloom afirma que através da literatura fazemos o uso da

imaginação e isso nos auxilia a reavaliar nosso modo de pensar e sentir. Deste

modo, teríamos, através das leituras, oportunidades para alcançar o que ele chama

de autonomia no sentido de libertação do pensamento, isto é, a capacidade de sair

dos lugares comuns, revisar nosso próprio passado e experiências e assim

transcender nossas histórias individuais. Diz Rorty:

Vendo por este ângulo, o que os romances fazem por nós é nos mostrar como pessoas diferentes de nós pensam sobre si mesmas, como elas conseguem colocar uma boa luz nas ações que nos causam desgosto, como eles dão significado às suas vidas. O problema de como eles vivem sua própria vida se torna um problema de como balancear nossas necessidades contra as deles, e suas descrições sobre si contra as nossas (RORTY, 2001, p.6, tradução minha) 72.

Esta definição de Rorty (2001) deixa clara a relação do leitor com o autor que,

longe de ser neutra, é transformadora. Também Todorov (2009) cita o artigo de

Rorty, e destaca que o filósofo aponta o fato de a literatura nos proporcionar um tipo

de experiência de “encontro com outros indivíduos” de uma forma peculiar, pois

mesmo tendo como base o ponto de vista do autor, sentimos que “quanto menos

essas personagens se parecem conosco, mais elas ampliam nossos horizontes”

(p.80-81). Podemos ver que estes autores também atribuem destaque ao leitor,

especialmente ao leitor comum como nos lembrou Virginia Woolf (2007), que

acredito ser aquele que talvez mais se aproxime ao contato “experiencial” definido

por Barata (2006). Mas o fato interessante é que esta relação não apresenta apenas

os prazeres da leitura, mas também os incômodos, as angústias de nos

encontrarmos contestados por alguns personagens. Além disso, a literatura, diz

71 Refiro-me a este artigo sem, no entanto, colocar em discussão as posições de Bloom que em alguns aspectos parecem mostrar-se conflituosas, como, por exemplo, sua concepção sobre o “gênio”. 72 No original: “Seen in this light, what novels do for us is to let us know how people quite unlike ourselves think of themselves, how they contrive to put actions that appall us in a good light, how they give their lives meaning. The problem of how to live our own lives then becomes a problem of how to balance our needs against theirs, and their self-descriptions against ours”.

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Todorov (2009), diferentemente dos discursos religiosos, morais ou políticos, não

formula um sistema de preceitos e que por essa razão “as verdades desagradáveis

[...] têm mais chances de ganhar voz e ser ouvidas numa obra literária do que numa

obra filosófica ou científica“ (p.80). Para Bauman, as particularidades da obra

literária residem justamente na sua aproximação com a experiência humana, e se

caracterizam por reproduzir a “não-determinação, a não-finalidade, a ambivalência

obstinada e insidiosa da experiência humana e a ambigüidade de seus significados”

(p.319). Além disso, Adorno (2003) complementa que o romance possui a

qualificação necessária para nomear o processo mecânico das relações humanas,

de maneira a denunciar a alienação e auto-alienações universais, o que funcionaria,

a meu ver, como um tipo especial de denúncia. Para este autor, neste caso, a

alienação seria um meio estético para o romance, “pois quanto mais se alienam uns

dos outros os homens, os indivíduos e as coletividades, tanto mais enigmáticos eles

se tornam uns para os outros” (p.58). Desta forma, o meio estético utilizado pelo

romance funciona como um “espelho crítico” 73, ao denunciar a alienação e o abismo

entre os homens, e que reflete, na verdade, todo um desencantamento do mundo.

Podemos observar um exemplo disto na narrativa do personagem sartreano Antoine

Roquentin, protagonista do romance A Náusea, que nos aproxima de tal sentimento:

Na rua Tournebride não se pode ter pressa: as famílias caminham lentamente. Às vezes se avança uma fileira, porque uma família inteira entrou na loja de Foulon ou na de Piégois. Mas em outros momentos é preciso parar e marcar passo, porque duas famílias, pertencentes à coluna que sobe, outra à coluna que desce, se encontraram e se agarram firmemente pelas mãos. Avanço a passos curtos. Sobrelevo-me às duas colunas e vejo chapéus, um mar de chapéus. A maioria deles é preta e rígida. De quando em quando um voa na ponta de um braço, deixando aparecer o brilho suave de um crânio; em seguida, após alguns instantes de um vôo desajeitado, torna a pousar. (SARTRE, 2002a, p.72).

O olhar aparentemente neutro do personagem, na verdade, revela a ironia do

autor ao descrever um retrato desprovido de sua convencional significação para

denunciar a estranheza das relações sociais. Mais adiante no romance, as famílias

acima citadas trocam “bom dias” e “como vais” de forma mecânica como uma eterna

73 A expressão é de Franklin Leopoldo e Silva (2004): “A negatividade autêntica se expressa no procedimento literário pelo qual é oferecido ao leitor um ‘espelho crítico’ diante do qual ele é levado a negar a si mesmo e ao contexto de sua experiência histórica” (p.77).

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repetição de um texto bem decorado. Sartre aponta assim seu estranhamento e

crítica ao que chama de espírito de seriedade, uma espécie de encenação coletiva,

ou ao seu gosto, um tipo de grande comédia. Além disso, por exemplos como estes,

percebemos que podemos alcançar algo além do que está no texto e este algo pode

nos impulsionar à reflexão, o que realizaria a tarefa ética na concepção sartreana da

literatura. Esta, segundo Franklin Leopoldo e Silva (2004), se caracteriza por

“construir a mediação necessária para que o homem tome consciência de sua

alienação” (p.256). Já para Marcuse ([1986?]) talvez pudéssemos usar este exemplo

para expressar o encontro com a verdade da arte, visto que através da linguagem e

de imagens torna-se “perceptível, visível, e audível o que já não é dito ou ainda não

é percebido, dito e ouvido na vida diária” (p.78).

Deste modo, podemos entender que a arte mantém uma ligação diferenciada

com o terreno social, mas nem por isso precisa ocupar um lugar à parte da

sociedade. Muito pelo contrário, procurei entendê-la em sua proximidade com a vida

cotidiana e com as questões que entrelaçam as relações humanas. A partir das

questões levantadas até aqui, podemos ver, a seguir, de que maneira Sartre, que

ocupou em sua própria vida tantos papéis, como, o intelectual, o professor, o filósofo

e dramaturgo, propôs uma contestação do tempo presente, colocando em cena

temas psicossociológicos através do que chamei de seus “heróis bastardos”.

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4 A Literatura como expressão dos papéis sociais.

Após o percurso traçado em torno da estreita relação da literatura com o

mundo e como esta relação implica, muitas vezes, em uma contestação de uma

realidade estabelecida, creio que seja possível partir para uma análise da própria

literatura de Sartre neste sentido. Por esta razão, desejei colocar em cena o que

chamei, inspirada nas análises do crítico de Sartre, Francis Jeanson, os “heróis

bastardos” sartreanos, que aparecem em sua literatura e teatro. De forma diferente

aos heróis tradicionais, os bastardos trazem para o palco social temas que nos

remetem a pensar sobre as relações intersubjetivas e de que maneira estas revelam

certos scripts sociais, ou seja, uma espécie de arrumação “roteirizada” de papéis na

sociedade. Neste sentido, procurei primeiramente falar sobre o próprio Sartre como

uma espécie de “personagem”, que surge como figura pública em um momento em

que o importante papel de intelectual já se encontrava estabelecido como um “lugar”

aceito na atmosfera pensante da época. Assim, tentei expor brevemente o que

Sartre entendia por intelectual, e qual o papel que ele mesmo exercia e que me

levou a entendê-lo como um intelectual-bastardo. Em um segundo momento, utilizei

romances e peças do teatro sartreano, que foram produzidas durante o período que

retratei do pós-guerra, culminando na sua obra sobre o escritor Jean Genet,

entendido como um grande “personagem real” de Sartre, “bastardo” por excelência e

de certo modo um outsider, de acordo com as reflexões do sociólogo Howard

Becker. Busquei assim expor as concepções do que seria um outsider desviante

para Becker, autor que prioriza o estudo do efeito do rótulo público sob um indivíduo,

o que permitiu um diálogo com as reflexões do próprio Sartre a respeito das

transformações de Genet a partir do seu ser-visto por outrem. Por fim, colocou-se a

questão de como tais arrumações sociais levam em algum momento a um pensar

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maniqueísta que nega a ambigüidade como modo de ser do homem e também as

implicações éticas que disto decorrem.

4.1 O “personagem” Sartre: do escritor ao intelectual-bastardo.

Quando Sartre apareceu como figura pública no cenário francês, ele tinha sob

seus pés todo um terreno que já possuía uma história significativa com relação ao

surgimento do intelectual e do escritor engajado. Penso que, neste contexto,

podemos olhar para Sartre como uma espécie de “personagem” que reúne algumas

das características destes dois papéis sociais que não significam exatamente o

mesmo, apesar de sua estreita semelhança. A biógrafa Annie Cohen-Solal (1986)

descreve o papel que Sartre exercia em seu tempo como uma mistura rica das

imagens tradicionais dos homens de letras:

[...] o Sartre acusado de corromper a juventude não faz lembrar Sócrates, seu precursor no papel “filósofo de todos”? E o Sartre dos cafés, o boêmio messiânico, não lembra Diderot? E o do engajamento político não fala, mesmo contra a vontade, de Hugo e Zola? [...] o ingresso na lenda [...] continua , não sem certo humor, pelas reminiscências simultâneas, misturando tudo quanto é século, grandes antepassados, filósofos e escritores que, homens da pena e da espada, lhe prepararam, de certo modo, o caminho (COHEN-SOLAL, 1986, p.348).

Sartre é conhecido como um escritor engajado, e de fato se enquadra nesta

“função”, mas, além disso, mesmo que não complete o perfil que caracteriza a

definição do que é um intelectual, é também usualmente visto como tal. Isto se torna

evidente pelos movimentos do próprio Sartre que fazia deste tema, da definição do

que é um intelectual e seu papel na sociedade, uma questão recorrentemente

debatida em suas entrevistas, conferências e textos políticos. De início, convém

destacar então as diferenças entre o escritor engajado e o intelectual, figuras que de

maneira geral costumam aparecer entrelaçadas e até confundidas. Seguindo a

diferenciação feita por Benoit Denis (2002), o escritor engajado é aquele que pratica

o seu engajamento através da sua escrita literária, e ele se propõe a exercer

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constantemente este papel: “suas tomadas de posição fazem parte integrante da

sua busca literária [...] ele vê a literatura como um meio direto de tomar parte no

debate político e social” (p.216). Já o intelectual é aquele que se utiliza de seu

prestígio social, alcançado por um trabalho literário sem compromisso com um

engajamento, para intervir em acontecimentos políticos. Nas palavras do próprio

Sartre (1994): “[...] tendo adquirido alguma notoriedade por trabalhos que dependem

da inteligência [...] (os intelectuais) abusam desta para sair de seu domínio e criticar

os poderes estabelecidos [...]” (p.15, grifo do autor). Deste modo, o intelectual atua

sob um caráter mais pontual e momentâneo, mantendo em maior ou menor escala

sua autonomia política em relação ao seu fazer literário (DENIS, 2002, p.216).

É com o caso Dreyfus, em 1898, que surge o intelectual como uma nova

categoria social. Em 1894 o capitão judeu Alfred Dreyfus, acusado de espionagem e

traição, foi exilado para a Guiana e condenado à prisão perpétua. A partir de então

ocorreu uma série de manifestações, inicialmente sustentadas por sua família e

amigos, pedindo uma revisão do processo, contestando as evidências superficiais

que teriam sido motivo de acusações e humilhações públicas para Dreyfus (DENIS,

2002, p.209; WINOCK, 2000, p.13). Segundo Denis (2002), é a partir deste momento

que um silêncio de cinqüenta anos74 é rompido na literatura e uma nova forma de

sua ligação com a política é legitimada. Com o manifesto “J’accuse” de Émile Zola

no L’Aurore de Clemenceau, a opinião pública se divide em dois campos: os

dreyfusards, que saem vitoriosos, e os antidreyfusards, que se caracterizam por um

espírito de nacionalismo exacerbado e anti-semitismo tendo o exército como

expoente de prestígio e unidade nacional. Facina (2004) complementa dizendo que

desde esta época, os defensores da “velha França” – expressão ligada à igreja, ao

exército e à alta burguesia – passaram a fazer dos judeus um alvo constante, e

contra esta visão anti-semita e tudo que ela significava que os dreyfusards se

rebelaram.

Dentre as marcas sociais restantes do caso, além do surgimento do

intelectual, encontra-se também a afirmação dos universitários e professores como

parte do debate social, legitimando uma visão habitualmente francesa de considerar

74 Desde 1848, “data simbólica da ruptura entre o literário e o social” (DENIS, 2002, p.209), conforme vimos no capítulo um.

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74

os membros do professorado como parte da intelligentsia75. Eles conseguem, afirma

Denis (2002), um novo prestígio por terem servido como pano de fundo do processo

de reabilitação do acusado. Os professores de filosofia, principalmente, passaram a

ocupar um lugar de “mestres do pensamento” de uma nova geração que tinha

consciência de sua força e expressão social e mostrava-se defensora de valores

republicanos e democráticos. Desde o início, continua o autor, este papel do

professor como um mentor já passara a ser criticado por escritores como Barrés em

Os Desenraizados e por Bourget em O discípulo, carecterizando uma espécie de

literatura de tese “anti-universitária”. Creio que é interessante pensar que, neste

cenário, é possível perceber que se formaram aos poucos certas marcas e

particularidades de atores sociais que vão se encontrar, diluir ou contradizer na

figura de Sartre. Vemos, portanto, no fim do século XIX, estas forças se destacarem

dando vida à imagens que podemos entender como “personagens” públicos: o

escritor, o intelectual, o jornalista, o professor, especialmente de filosofia.

“O caso Dreyfus torna-se o caso Zola”, resume Winock (2000, p.31). De fato,

o escritor Émile Zola, na época de seu intenso manifesto a favor de Dreyfus, já

gozava de prestígio no âmbito literário, chegando a tornar-se presidente da

Sociedade dos Homens de Letras (WINOCK, 2000, p.23). Utilizando-se disso como

valor para sua voz, Zola passa a acirrar cada vez mais suas acusações que

envolvem os maiores poderes institucionais da França da época. Nesse sentido,

profere contra a “imprensa imunda”, contra o exército, contra o “povo envenenado” e

os anti-semitas. Certas situações e características como uma marginalidade não

anulada pelo prestígio, e uma vida privada anticonformista, entre outras, que nos

lembra justamente ao “personagem” Sartre:

Odiado pelos bem-pensantes, visto pela crítica burguesa como um autor obsceno (um “cano de esgoto”, uma “cloaca”) execrado pela imprensa católica como anticlerical militante [...] a prosperidade de Zola não anulou sua marginalidade. Continua um autor maldito. E um personagem maldito (WINOCK, 2000, p.23).

Já aqui podemos vislumbrar a aproximação do intelectual com a figura do

bastardo, este personagem maldito atribuído a Zola e muitas vezes a Sartre. Além

75 Segundo estatísticas de 1936, ano da eleição do governo da Frente Popular, de 450 mil intelectuais franceses, 186 mil eram professores nas escolas oficiais (LOTTMAN, 1987, p.42).

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75

disso, ironicamente, é no jornal Les Temps que é publicada uma lista de protesto76

dos chamados dreyfusards onde fica clara a “nova força” denominada pela imprensa

e difundida por Clemenceau como intelectuais. Em Literatura & Sociedade, Facina

(2004) coloca que o surgimento do termo está ligado ao substantivo intelligentsia,

criado na metade do século XIX na Rússia e destinado a categorizar socialmente as

“pessoas cultas”. A partir do Manifeste des intellectuels de Zola no caso Dreyfus “a

palavra intelectual ganhou um duplo sentido: à referência ao cultivo e à instrução

une-se o engajamento nos debates públicos como elementos que definem essa

categoria social” (p.34). Para Sartre (1994), nesta época a palavra “intelectual”

surgiu e se popularizou com um sentido negativo, pela idéia daquele “que se mete

no que não é da sua conta”, afirmação que ele acreditava ainda em 1965 que

prevalecia na essência das censuras e críticas aos intelectuais. Na verdade, o

filósofo concorda com esta idéia, embora não com a entonação pejorativa, pois de

fato “os dreyfusards, ao afirmar a inocência do réu, punham-se fora de sua

competência” (p.15).

Portanto, o intelectual é sim alguém que se mete “no que não é da sua conta”,

e isto significa dizer que ele ultrapassa um lugar, ou um papel que lhe é socialmente

destinado e reconhecido. Mas este lugar não é de forma alguma legitimado ou

garantido por um poder estabelecido, por isso, dirá Sartre (1994) ele não tem

mandato de ninguém para exercer sua função, visto que ele não é fruto de uma

decisão social que afirma sua necessidade, como, por exemplo, os médicos e

professores. Sendo assim, Sartre (1994) o entende como um produto “monstruoso”

da sociedade: “ninguém o reivindica, ninguém o reconhece” (p.32). A sociedade, no

entanto, pode valorizá-los ou pensá-los como um “mal necessário” para enriquecer a

cultura e transmitir valores, isto é, exercer uma função conservadora que suprime na

verdade a característica contestadora do intelectual. Deste modo, o intelectual irá

trair estas expectativas por se tornar crítico e negativo, ao combater o poder

estabelecido77. Este monstro, ou poderíamos dizer bastardo, é aquele que aparece

como o produto que “expressa o despedaçamento das sociedades despedaçadas”

76 Dentre os signatários indicados por Winock (2000), além de Émile Zola, destaco: Anatole France, Marcel Proust, Claude Monet e Émile Durkheim. 77 Sartre (1994) irá afirmar que esta é a postura intelectual. Aquele que falsamente contesta para se colocar na verdade na posição de conservar a ideologia dominante é o que Sartre chamou de “falso intelectual” e que Paul Nizan chamava de “cão de guarda”: “suscitado pela classe dominante para defender a ideologia particularista com argumentos que se pretendem rigorosos – quer dizer, apresentando-se como produtos dos métodos exatos” (p.38).

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76

(SARTRE, 1994, p.30), aquele que revela as contradições sociais fundamentais.

Mas de que forma este “monstro” é criado no meio social e por que esta é a imagem

que representa o que Sartre entende por intelectual? Estas questões são

amplamente desenvolvidas na série de três conferências denominadas Em defesa

dos intelectuais , que o filósofo deu no Japão em setembro e outubro de 1965, e que

comento de forma sucinta a seguir.

Ao longo do desenvolvimento das sociedades modernas, e com a

conseqüente divisão do trabalho, explica Sartre (1994), produziu-se, por conta do

aparecimento e expansão da burguesia, os “especialistas do saber prático”, que são

os cientistas, médicos, engenheiros, juristas, professores, entre outros. Eles

nasceram devido às demandas de uma burguesia empreendida na expansão do

capitalismo comercial, com o objetivo de proporcionar os meios para que esta

realizasse seus fins, isto é, eram os homens dos meios 78. Nesta época, a burguesia

não contava com uma ideologia própria e, apesar de desde o início entrar em

conflito com a Igreja, acabou por adotar a ideologia do clérigo (o cristianismo),

dominante até então. Os especialistas do saber prático, por sua vez, ficaram

“encarregados” de dar à burguesia, que até então não era uma classe ou uma elite,

uma ideologia – que virá a ser, segundo Sartre, o humanismo burguês 79.

Nesse momento, a burguesia sente a necessidade de se afirmar como classe a partir de uma concepção global do mundo, quer dizer, de uma ideologia: tal é o sentido do que foi chamado de ‘crise do pensamento na Europa ocidental’. Essa ideologia será construída pelos especialistas do saber prático: homens da lei (Montesquieu), homens de letras (Voltaire, Diderot, Rousseau), matemáticos (D’Alembert), um intendente geral (Helvétius), médicos etc. Eles tomam o lugar dos clérigos e se chamam filósofos, quer dizer, ‘amantes da Sabedoria’. A Sabedoria é a Razão. Além de seus trabalhos especializados, trata-se de criar uma concepção racional do Universo que englobe e justifique as ações e as reivindicações da burguesia (SARTRE, 1994, p.19, grifo do autor).

78 Os fins são determinados pela classe dominante e realizados pela trabalhadora. 79 A burguesia só tinha interesse na dessacralização de todos os setores práticos, o que não permite uma adaptação de seus interesses à ideologia cristã e define sua busca por uma própria. À tentativa de adaptar a ideologia sagrada às necessidades da classe ascendente, “nascem ao mesmo tempo a Reforma (o protestantismo é a ideologia do capitalismo comercial) e a Contra-Reforma (os jesuítas disputam os burgueses com a Igreja Reformada: a noção de usura dá lugar, graças a eles, à do crédito)” (SARTRE, 1994, p.19).

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77

Estes filósofos construíram, portanto, uma ideologia destinada à classe em

ascensão, a qual passou a constituir e propagar pensamento moderno de forma

poderosa 80. Acontece que na época a burguesia tomava-se por classe universal e,

decorrente disso, produzia princípios universalizantes. Os técnicos ou especialistas

do saber prático, através do método analítico, produziam um saber que, sob

postulados universais, carregavam consigo as “crenças inculcadas em sua mais

remota infância”, isto é, um saber que era destinado a “exprimir o espírito objetivo

desta classe (a burguesia)” (SARTRE, 1994, p.20-21). Sartre [ca. 1960] já havia

colocado em cena esta crítica ao “espírito de análise” burguês em outros momentos,

como por exemplo, na Apresentação de Les Temps Modernes, 20 anos antes da

conferência sobre os intelectuais. No texto de 1945, ele coloca que a “razão

analítica” tem como princípio o atomismo, que reduz os compostos a conjuntos de

elementos simples. Disso resulta a idéia de uma natureza inalterável destes átomos

independentemente de suas combinações, e que, transpondo para a idéia de

homem: “o indivíduo, quer ele estivesse num trono ou mergulhado na miséria,

mantinha-se intransigentemente idêntico a si mesmo, porque se tinha dele uma

concepção baseada no modelo do átomo de oxigênio [...]” (SARTRE, [ca. 1960],

p.17). Deste modo, o atomismo social recusa os “organismos sociais” por aplicar à

sociedade o pensamento cientificista da época, e reafirmar uma ideologia que se

apóia na razão analítica:

Estes princípios presidiram a Declaração dos Direitos do Homem. Na sociedade concebida pelo espírito de análise, o indivíduo, partícula sólida e indecomponível, veículo da natureza humana, reside como uma ervilha numa lata de ervilhas: é redondinho, fechado sobre si mesmo, incomunicável. Todos os homens são iguais: isto quer dizer que todos participam igualmente da essência de homem. Todos os homens são irmãos: a fraternidade é uma ligação passiva entre moléculas distintas [...].É uma relação puramente exterior e puramente sentimental que mascara a simples justaposição dos indivíduos na sociedade analítica. Todos os homens são livres: livres de serem homens, evidentemente (SARTRE, [ca. 1960], p.17).

80 Sartre (1994, p.21) utiliza a noção de “intelectual orgânico” do marxista italiano Antonio Gramsci, para denominar os filósofos, pois eles tinham como função exprimir o espírito objetivo de sua própria classe, a burguesia. Facina (2004, p.41) define os intelectuais orgânicos de Gramsci como aqueles que são criados por cada grupo e têm como função lhes oferecer homogeneidade e consciência da própria função nos campos econômico, político e social.

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78

Este desenvolvimento do “mito do universal” é que formará a base da

contradição constitutiva do intelectual, já que, é do campo dos especialistas do saber

prático que quase predominantemente ele surge. Ou seja, a contradição

característica do intelectual surge de sua origem, ou pertencimento à classe

burguesa já que sua ideologia lhe foi “inculcada” seja por educação familiar ou (e)

também pelo sistema de ensino que é controlado pela classe dominante 81. Em sua

prática, que visa à universalidade do saber, ele se depara com as exigências

particularistas da classe cujos fins ele deve proporcionar os meios, em outras

palavras, eles são produzidos já com uma contradição que exige colocar o universal

a serviço do particular e que os dilacera por não poderem questionar este

particularismo sem questionar a si mesmos. A título de exemplo, Sartre (1994) cita a

prática de um médico que procura a cura do câncer. Este trabalho tem por meta o

útil e não se define por uma especificação ou limite, isto é, ele procura a cura

universal: “quando se sabe curar um homem [...] sabe-se curar todos” (p.28). Porém,

desde sua condição de médico até o fim que levará sua pesquisa, existe um sistema

de relações sócio-político-econômicas que explicitarão a particularidade dominante

imposta ao saber universal, ou seja, “em muitos casos, com a cumplicidade do

técnico do saber prático, as camadas sociais privilegiadas roubam a utilidade social

de suas descobertas e transformam em utilidade para a minoria em custa da

maioria” (p. 27). Assim, o técnico é obrigado a se deparar com as contradições

presentes na sociedade, e se diante desta ele contesta a própria ideologia que o

constitui, ele se torna, na visão de Sartre, um intelectual:

O intelectual aparece a partir do momento em que este exercício mesmo de seu trabalho faz surgir uma contradição entre as leis desse trabalho e as leis da estrutura capitalista [...]. Se o intelectual não descobre constantemente sua contradição em si, não exerce seu oficio de intelectual, é um marginal. Se ao contrario continua exercendo-o, ele deve ser o testemunho de sua contradição que é a mesma dos demais. Ele deve exercer seu oficio e comprometer-se na manifestação das contradições da sociedade (SARTRE, 1967 tradução minha).

81 Sartre (1994) explica que as classes desfavorecidas não produzem intelectuais, e mesmo se produzissem ele já se tornaria de classe média por seu trabalho e salário. Assim, elas não produzem representantes orgânicos da inteligência objetiva que é a delas.

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79

Sartre define então que o intelectual deve combater sua classe, o que

significa combater a si mesmo. Através destes argumentos podemos compreender

ainda mais seus movimentos, e sua bastardia, ou monstruosidade, como ele próprio

define. O intelectual é um monstro, pois é um traidor: recusa sua classe sem poder

livrar-se dela, e até pelas classes trabalhadoras é visto como suspeito, estrangeiro.

Seu destino solitário consiste em ser inassimilável: “banido pelas classes

privilegiadas, suspeito às classes desfavorecidas (por causa da própria cultura que

põe à sua disposição) ele pode começar seu trabalho” (SARTRE, 1994, p.48). Neste

sentido o intelectual é, portanto, um bastardo.

O tema da bastardia na obra e na vida de Sartre foi sugerido e fundamentado

por Francis Jeanson (1987), seu companheiro de trabalho em Les Temps Modernes

e apontado por Cranston (1966) como crítico favorito do próprio Sartre. É fato que o

tema aparece já na obra de Sartre, quando o próprio autor define a bastardia de

certos personagens, mas Jeanson, em sua profunda análise da obra literária

sartreana define a bastardia como tema central. O que primeiramente me chamou a

atenção foi o fato de que o Bastardo, tal como definido por Jeanson (1987), possui

estreita relação com o intelectual, e foi justamente por essa relação que o autor

entendeu o próprio Sartre como a expressão da figura do intelectual-bastardo: “Um e

outro, o intelectual e o bastardo, são, com efeito, obrigados a ver o que os outros

conseguem dissimular para si próprios” (p.53). A bastardia de Sartre seria não por

uma ilegitimidade real, mas por uma ilegitimidade vivida por conta de um eterno

conflito de suas contradições fundamentais. Sartre em entrevista a John Gerassi82

diz que chamá-lo de bastardo é “besteira”, e acrescenta:

Você pode dizer que eu era órfão, mas a noção de bastardia inclui violência, ódio, rebelião. Eu não sentia nada disso. Por mais que eu me iludisse, em me sentia em paz, ou, pelo menos, à vontade. Jeanson inventou essa noção para explicar como me tornei um revolucionário (SARTRE apud GERASSI, 1990, p.62-63).

A isso o próprio Jeanson83 responde que a contradição, ainda que silenciosa,

é violenta, e Gerassi (1990) parece concordar ao ressaltar que Sartre nasce e é

criado no campo do ódio entre opostos: “o francês contra o alemão, o católico contra

82 Em 29 de janeiro de 1971. 83 Quem indica a resposta de Jeanson é também John Gerassi (1990).

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80

o protestante, o simplório do campo contra o intelectual citadino” 84 (p.63). Não

podemos deixar de lembrar aqui de uma das falas significativas de Goetz,

personagem da peça sartreana O Diabo e o bom Deus que fala de sua bastardia

pela duplicidade contraditória:

É verdade que os bastardos traem: que queres que eles façam além disso? Quanto a mim, minha duplicidade é de nascença. Minha mãe entregou-se a um malandro e eu sou feito de duas metades que não se adaptam: uma tem horror à outra (SARTRE, 1975, p.61-62).

Para Jeanson (1987), o bastardo e o intelectual além de traidores são

também impostores, mesmo título, aliás, do capítulo de Gerassi (1990) sobre a

infância de Sartre. Gerassi se refere ao Sartre criança, que se farseava para agradar

a família, como um impostor, qualidade visível no relato do próprio Sartre em As

palavras:

Mas minto a mim mesmo; finjo estar em perigo a fim de aumentar a minha glória: em instante algum as tentações foram vertiginosas; na verdade, receio bastante o escândalo; se pretendo espantar, é por minhas virtudes. Estas vitórias fáceis me persuadem de que possuo boa índole; basta que eu me largue ao seu sabor para ser cumulado de elogios (SARTRE, 2005b, p.22).

Na verdade, o impostor se liga também à figura do comediante, papéis que

para Jeanson (1987) não se distinguem, pois ambos “pregam uma peça” e fingem

por má-fé ser outra coisa, ou seja, representam. Eles se colocam deste modo, em

oposição ao mundo que lhes aparece como comédia e por isso demonstram a

impostura na medida em que sua atitude de voltar sempre à questão ou

“simplesmente o desequilíbrio e o próprio escândalo de sua situação fazem a

Comédia aparecer como a verdadeira essência da pretensa Realidade” (p.83). Este

movimento de opor-se e distanciar-se é assim caracterizado por um perpétuo

questionamento, ato que se tornará característico do intelectual. Isto significa

estabelecer uma constante oposição a si, um confronto com si mesmo, o que na

visão sartreana significa também um confronto contra aquilo que nos constitui

84 Órfão de pai, Sartre fora criado por sua mãe e seus avós na região que representa um conflito histórico entre a França e a Alemanha, a Alsácia-Lorena. Também se encontrava entre o protestantismo do avô e o catolicismo da avó. Sartre (2005b) descreve com detalhes os efeitos desta criação em seu livro autobiográfico As palavras.

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socialmente. Sartre (1994) explica: “[...] o intelectual deve lutar todo o tempo contra a

ideologia, que renasce, todo o tempo, ressuscitada perpetuamente sob formas

novas por sua situação original e por sua formação” (p.47). Ele expressa, como

vimos, em si mesmo as contradições existentes na sociedade, vivida, portanto, neste

confronto constitutivo de seu ser-situado.

Entretanto, podemos dizer que o Sartre criança de As palavras não se

encontrava ainda, mesmo aos seus olhos adultos, isto é, analisado por si mesmo

aos 60 anos em seu livro autobiográfico, definido por esta contradição fundamental.

Sartre (2005b) entende da seguinte maneira: “Se a gente só se define opondo-se, eu

era o indefinido em carne e osso; se o amor e o ódio são o verso e o reverso da

mesma medalha, eu não amava nada nem ninguém” (p.29). Seja como for, entendo

que de algum modo o Sartre intelectual-bastardo teve aos poucos de se rebelar

contra a própria condição, inicialmente vivida como falta de rebeldia. Sobre esta

falta, Sartre (2005b) atribuía grande parte do que sentia à morte prematura do pai,

que fez com que ele “não tivesse superego” ou tampouco qualquer agressividade:

“[...] minha mãe me pertencia, ninguém me contestava sua tranqüila posse; eu

ignorava a violência e o ódio [...] Contra quem, contra o que iria eu revoltar-me?”

(p.21). Foi o próprio Sartre, aliás, quem relatou a Jeanson (1987) que se considerava

o “falso bastardo”, referindo-se à sua infância na época em que a revivia por conta

de As palavras. O Sartre criança, impostor, que era aceito demasiadamente, sentia-

se não aceito. Assim, define Jeanson, os sentimentos com os quais o acolhiam e

pelos quais lhes testemunhavam que tinha seu lugar no mundo, transmitindo-lhe

essa aceitação, pareciam-lhe, desde muito cedo, um pouco forçados, excessivos, e

principalmente representados. Deste modo, torna-se interessante pensar que é

contra e a favor de toda esta representação que Sartre irá ao mesmo tempo criar

seu projeto de ser escritor e testemunhar uma acusação de si próprio. A favor, pois

criará seu projeto para representar para si a justificativa de uma vida representada:

“Escrever foi durante muito tempo pedir à Morte, à Religião sob uma máscara, que

arrancassem minha vida ao acaso” (SARTRE, 2005b, p.166). E contra, e ao mesmo

tempo paradoxalmente, na medida em que é através de sua própria escrita filosófica

e literária que ele colocou em cena as denúncias da má-fé e do espírito de seriedade

da comédia social.

Finalmente, a partir destas considerações sobre o “personagem” Sartre, creio

que podemos passar aos seus “personagens reais”, que de alguma forma estão

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situados pelo percurso que brevemente percorremos sobre o autor. Se este cria em

seu mundo e a partir de sua situação, considero que esta compreensão pôde

também me situar com relação às noções que estão presentes na obra sartreana,

como, por exemplo, a traição, a bastardia, a impostura, a comédia e, claro, a

liberdade. Sigo agora com o objetivo de explorar de que forma literatura sartreana

mostra-se, a partir destes temas, representativa dos conflitos sociais.

4.2 Heróis Bastardos: reflexões sobre a convivência social.

Neste momento pretendo pensar sobre alguns questionamentos que

nasceram no cenário cotidiano, utilizando a literatura como possibilidade de

expressão de temas sociais, particularmente o problema da convivência social. Um

dos aspectos que ressalto é o fato de observar que a problematização destas

questões é comumente atravessada pela maneira maniqueísta de olhar o mundo,

que estabelece uma espécie de natureza humana, inserindo muitas vezes a noção

de “mal” no Outro, e fazendo com que sejam negadas as contradições inerentes à

existência. Deste modo, a literatura coloca em cena, para que possamos questionar,

uma espécie de arrumação social, que estabelece diferentes papéis, sendo alguma

parte destes reservados aqueles que entendemos como bastardos e também aos

Outsiders85. Esta última noção, famosa pelo estudo de Howard Becker, mostrou-se

rica para a minha discussão em torno dos conflitos da convivência social cotidiana,

visto que ele procura sair das visões explicativas para tentar compreender as noções

do que é considerado como “desviante”.

Sartre, por sua vez, procurou “discutir” seus temas nos romances e no teatro,

engajado em transformar a literatura em ato e desta forma atingir o social e modificar

seu meio. O filósofo buscava realmente um encontro com um público mais vasto

para pôr em questão temas comuns a todos, expressando suas reflexões através da

própria criação de situações vividas pelos personagens. Para Sartre (2005g), o 85 Vale lembrar aqui que estarei falando do bastardo como personagem central na obra de Sartre, tal como Jeanson (1987) definiu, e que não necessariamente este estará ligado a Sartre conforme vimos na parte anterior. Em outras palavras, procurei entender, somente naquela parte, Sartre como uma espécie de “personagem”, a fim de nos situar em relação à situação subjetiva de nosso autor, mas não pretendo com isso que todas as análises posteriores sobre o personagem bastardo possuam ligação direta com sua figura, apesar de sua óbvia ligação enquanto criador destes personagens.

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dramaturgo tem como tarefa principal escolher as situações que exprimem melhor

suas preocupações, e estas devem ser o que Karl Jaspers chamou de situações-

limite, onde o homem encontra-se “cercado de muros”, isto é, onde a liberdade

encontra-se presa em armadilhas. A situação-limite é aquela em que a morte

aparece dentre as alternativas do homem que se escolhe e, por isso, suas decisões,

profundamente humanas, colocam em jogo toda a sua totalidade de ser. Neste

momento, diz Sartre (2005g): “a liberdade se descobre em seu mais alto degrau,

porque aceita de se perder para poder se afirmar” (p. 20, tradução minha) 86. Caio

Liudvik (2007), que se dedicou a estudar o teatro sartreano, diz que, para Sartre, as

situações-limite, como da Ocupação alemã, funcionam como um terreno propício

para que venha à tona tudo aquilo que a vida rotineira tende a mascarar: “nossa

finitude, nossa contingência e, nessa medida, toda a falta de um sentido último

apaziguador para a vida” (p.98), ou seja, “quando a água se agita, a lama sobe”,

como indica esta frase da peça O Diabo e o bom Deus (SARTRE, 1975, p.28). Este

sentido de desvelamento das angústias e “quebra” da comédia das contradições da

liberdade em sua situação é para Jeanson (1987) a razão para que o Bastardo seja

o personagem por excelência do teatro de Sartre, pois é aquele que se acha em

situação de lucidez por se encontrar marginalizado no mundo humano. Por esta

razão, Jeanson (1987) afirma que o “teatro da liberdade” sartreano é intrinsecamente

um teatro da má-fé, no sentido de que expressa uma situação própria da

ambigüidade, do sofrimento e da contradição “que definem a situação da nossa

existência entregue a si mesma” (p.106). Tudo se passa como se Sartre apelasse

para a liberdade do expectador com a mesma intenção que terá para com seu leitor,

a fim de que este tome consciência de sua própria existência situada. Em suma,

Sartre (2005g) conclui que “se é verdade que o homem é livre em uma dada

situação que ele mesmo se escolhe nessa e por essa situação, então é preciso

mostrar no teatro as situações simples e humanas e as liberdades que se escolhem

nestas situações” (p.20, tradução nossa)87. A situação é, portanto, aquilo que nos

cerca, na mais pura facticidade, e que nos propõe soluções ou impossibilidades para

que façamos nossas escolhas, ela é por fim, dirá Sartre (2005g), o “alimento do

86 No original: [...], la liberte se découvre à son plus haut degré puisqu’elle accepte de se perdre pour pouvoir s’affirmer. 87 No original: « Mais s’il est vrai que l’homme est libre dans une situation donné et qu’il se choisit lui-même dans et par cette situation, alors il faut montrer au théâtre des situations simples et humaines et des libertés qui se choissent das ces situations ».

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teatro”. E o teatro, continua o filósofo, possui a capacidade de colocar em cena o

fazer, o movimento, e o momento da escolha, da livre decisão que engaja uma moral

e toda uma vida. Assim, resume Liudvik:

Seu teatro, com efeito, toma a liberdade não só como tema, mas também como princípio por assim dizer estruturante, formal. A dramaturgia sartriana, enquanto “teatro de situações” [...] se aparta do “teatro de caráteres” no qual os personagens são “essências” dadas de antemão, identidades unitárias, fechadas (LIUDVIK, 2007, p.47).

A criação dos personagens, portanto, é feita a partir desta intenção, visando

atingir o público que com eles se identificam e buscam justificativas para própria

existência. Na obra sartreana, vemos com freqüência personagens que não

possuem qualidades nobres dos heróis tradicionais; eles fraquejam, se acovardam e

mentem a si mesmos. Além disso, há também uma constante presença de “chefes”,

ou “homens de bem”, “Honestos”, “Justos”, que são criados pelo autor de forma

irônica e crítica para contrastar com os bastardos e traidores. Para Liudvik (2007), o

bastardo, anti-herói existencialista, tal como foi descrito por Jeanson, é a figura que

expressa o tema do ator social, isto é, ele aponta para a rede dos scripts sociais

através de seu distanciamento crítico. Este mesmo movimento, se seguirmos a linha

de pensamento de Jeanson (1987), é uma espécie de “traição”, por denunciar a

comédia do mundo do espírito de seriedade, e por isso o traidor é um bastardo,

como diz Goetz, um dos personagens de Sartre que mais representa estas noções:

Todos os filhos legítimos podem gozar da terra sem pagar. Não tu. Não eu. Desde a minha infância, olho o mundo pelo buraco da fechadura: é um belo ovinho muito cheio, onde cada um ocupa o lugar que lhe foi assinalado. Posso afirmar, porém que nós não estamos lá dentro. Ficamos de fora. (SARTRE, 1975, p.62).

Este “ficar de fora”, muitas vezes entendido como um distanciamento crítico,

também foi ressaltado por Colin Wilson (1985) em seu estudo sobre os Outsiders na

literatura moderna. O autor começa por dizer que “à primeira vista o Outsider é um

problema social. É um homem fora de lugar” (p.1) e por isso eles vivem uma

sensação de estranheza e de irrealidade com relação ao mundo. O herói de A

náusea, Antoine Roquetin, por exemplo, é para Wilson (1985) o personagem

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sartreano que mais sintetiza as características do Outsider: “a irrealidade, a rejeição

das pessoas e dos padrões civilizados e, finalmente, a ‘tela de cinema’ da existência

nua, ‘sem saída para lugar nenhum’” (p.12). Se todos os homens tivessem a

consciência da verdade como Roquetin, segue o autor, seria o fim da vida, pois ele

possui uma espécie de lucidez que revela um mundo sem valores. Neste sentido

eles permanecem estrangeiros, fazendo alusão a outro famoso Outsider de Albert

Camus, aos acordos sociais que mantém conexão com os valores do mundo. Na

literatura de Sartre, estes “filhos ilegítimos”, não afiliados socialmente, são os que se

sentem “sobrando” no mundo. Hugo, personagem da peça As Mãos Sujas diz: “Eu

não fui feito para viver [...]. Sou demais porque não tenho meu lugar no mundo...”

(SARTRE, 1972a, p.139).

Podemos encontrar este tipo de expressão também em A Prostituta

Respeitosa, peça de 1946 que fala da discriminação racial nos Estados Unidos, nos

personagens da prostituta e do negro88. Na trama, ambos os personagens,

considerados invisíveis sociais, se vêem enredados em um mal entendido que

envolve um branco “importante” e mostram-se perdidos por não conseguirem achar

saídas para a situação na qual estão envolvidos. Baseando-se em uma história real

(CONTAT&RYBALKA, 1970), Sartre conta a história de Lizzie, a prostituta, que é a

única testemunha da cena onde dois negros foram vítimas do poder dos brancos,

um deles foi assassinado e o outro conseguiu fugir e é procurado como culpado do

crime. Ela sabe que o responsável pelo crime foi Tomáz, um dos brancos da cena, e

os conhecidos deste a convencem a falar ao juiz uma outra versão da história. Diz o

Senador à Lizzie:

Senador: Estou falando em nome da nação americana. [...] de que serve esse negro que você protege? Ele nasceu ao léu, Deus sabe onde. Eu o alimentei, e ele em troca, que faz por mim? Nada. Absolutamente nada. Vagabundeia, espreguiça-se, canta, veste roupas verdes e cor-de-rosa. Ele é meu filho e eu o amo tanto quanto aos outros. Mas pergunto: leva ele uma vida de homem? Eu nem sequer perceberei sua morte.

88 Convém lembrar que o ano de 1946 já dava sinais da dicotomia política entre Estados Unidos e URSS, que viria se impor na guerra fria, conforme vimos no primeiro capítulo. Por isso, por conta de A prostituta respeitosa, Sartre fora acusado de antimericanismo por criticar a civilização americana (CONTAT&RYBALKA, 1970, p.136). Como nesta época Sartre tentava manter-se independente dos dois blocos, foi também criticado pelos comunistas, como relata Simone de Beauvoir (1995): “lamentavam que Sartre não tivesse apresentado ao público, em lugar de um negro trêmulo de medo e de respeito, um lutador de verdade” (p.108).

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Lizzie: Como o senhor fala bem. Senador: O outro, ao contrário, esse Tomáz, ele matou um negro, no que fez mal. Porém, eu necessito dele. É um americano cem por cento, pertence a uma de nossas famílias mais antigas, fez seus estudos em Harvard, é oficial e eu preciso de oficiais. Dá emprego a dois mil operários na sua usina, dois mil desocupados se ele morrer, ele é um líder, um baluarte contra o comunismo, o sindicalismo e os judeus. Ele tem o dever de continuar vivendo e você de conservar-lhe a vida. É tudo. Agora escolha. (SARTRE, 1966, p.56).

É interessante pensar como Lizzie fica fascinada pela fala do Senador,o que a

deixa confusa frente à consistência das suas decisões. O Senador reivindica que ela

escolha em prol daqueles que têm “o direito” de existir, enquanto que o negro não

leva uma vida que mereça ser mantida, e como não tem o seu lugar legitimado no

mundo terá uma morte que nem sequer será percebida. Para Jeanson (1987), a

dificuldade da escolha de Lizzie encontra-se no fato de que ela mesma acaba

convencida da visão daqueles que se colocam ao lado do Bem e do Direito. O negro

e ela passam a se ver com olhar deste outro e a acreditar que não tem direito algum

no mundo e que sua existência merece apenas ser tolerada. Sartre (1966) expressa

essa visão mais adiante na peça, onde o negro tem uma chance de atirar nos

brancos para não se render apenas, e ele não o faz porque respeita os brancos em

sua condição89.

Deste modo, Sartre traz para “palco” social “heróis bastardos” e traidores que

“sobram” no mundo, oferecendo-nos assim uma outra perspectiva, pois pela

literatura somos obrigados a entrar no mundo do outro, e, ao menos por um

momento, compreendê-lo. Quando imaginamos o outro enquanto subjetividade,

admitimos que assim como nós, ele é também uma consciência em movimento que

não se resume a um simples atributo, ou seja, vemos que aquele outro também tem

dúvidas, tristezas, planos e frustrações em seu projeto de existir. Pela via desta

compreensão estabelece-se uma relação de reciprocidade, diferentemente daquelas

que pressupõem uma visão de pura exterioridade, isto é, quando enxergamos o

outro como um objeto que pode ser usado, classificado, e até previsto. Sendo assim,

a literatura pode funcionar como um veículo importante para que possamos imaginar

o outro, pois, através dela, podemos ver uma mesma história pelo ângulo da

89 Esta cena é descrita mais adiante na p.93.

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interioridade e da subjetividade. Sartre buscou utilizar este recurso, não só através

de personagens fictícios, mas também com pessoas reais como o escritor Jean

Genet.

A história deste escritor foi intensamente analisada por Sartre (2002b) em

Saint Genet: comediante e mártir, e representou uma crítica aos condicionamentos

sociais da época, assim como as influências destes na vida de uma pessoa.

Segundo Cohen-Solal (1986), Genet é o personagem mais sartreano de todos os

personagens sartreanos, pois ele “conheceu todas as maldições sociais: o

abastardamento, a indigência, a delinqüência, o aprisionamento, o

homossexualismo” (p.412), e a partir disso, assumindo tudo até o fim, se reinventou.

Conclui Cohen-Solal que para os leitores de Saint Genet houve um encontro:

[...] entre dois indivíduos nascidos nos pólos opostos da sociedade francesa, dois indivíduos inversamente determinados desde o berço. E o normalista, carregando o peso de suas leituras, de suas referências culturais, de suas armas teóricas sofisticadas, se debruça guloso sobre o bastardo, sobre o presidiário, o vagabundo, o homossexual. Descrevendo Genet enquanto fala de si mesmo, como intelectual, como entomologista. (COHEN-SOLAL, 1986, 412).

A obscura trajetória de Genet pode ser resumida assim: ele nasceu em Paris

em 1910, seu pai era desconhecido e foi abandonado pela mãe em um orfanato. Foi

adotado por uma família camponesa do interior da França, que o surpreendeu

roubando em várias ocasiões enviando-o a um reformatório. Após alguns anos nesta

instituição, escapou e incorporou-se à Legião Estrangeira, a qual desertou. Durante

toda a vida andou errante pela Europa, como vagabundo e ladrão e passou por

prisões de vários países. Sartre (2002b) coloca que, no momento em que foi pego

roubando, Genet se deu conta pela primeira vez do objeto que era frente ao olhar do

outro; um objeto desprezado por todos, e ele próprio passa a se confundir com esse

olhar tornando-se aquilo que faziam dele: “Sob esse olhar o menino volta a si. Ainda

não era ninguém; subitamente, torna-se Jean Genet” (p.29).

Segundo Sartre (2005e), o Outro faz parte de nosso modo de ser, como

aquele que me revela aquilo que sou para ele, daí sua importância. Certos aspectos

nossos só podem ser apreendidos pela objetividade que somos para o outro e tais

aspectos são também constituintes de nosso modo de ser, como diz o filósofo: “o

outro não apenas revelou-me o que sou: constituiu-me em novo tipo de ser que deve

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sustentar qualificações novas” (p.290). Além disso, preciso me diferenciar do outro,

por saber que ele não sou eu, para que possa me definir enquanto existente; o que

faz de mim a síntese desta intersubjetividade eu-outro que sinto constantemente a

cada instante em que o Outro me olha. Este momento é tão importante para a teoria

sartreana, que posso até arriscar dizer que é uma de suas chaves fundamentais,

pois nesta visão o olhar é um intermediário que remete de mim a mim mesmo. O

olhar do outro, para Sartre, nos transforma profundamente, pois somos arrancados

de vivência puramente subjetiva quando nos damos conta de que somos vistos, ele

nos constitui e nos apreende como uma coisa dada, como se possuíssemos um lado

de fora. A maneira pela qual apareço para o outro sempre me escapa e faz parte de

uma consciência que é para mim inacessível, e não posso ser indiferente a ela visto

que por ela sou situado objetivamente no mundo. Logo, sou também esse ser que

aparece para o outro, e assim vivo a experiência de ser objeto de seu olhar, que é

livre, pois o que sou para ele nunca pode ser, por mim, previsto. Decorrente disto

surge o inferno sartreano: a batalha de consciências que caracteriza o conflito das

relações humanas, onde efetuamos a rotulação de subjetividades, através de

olhares que, como o da medusa, transforma o outro em pedra. Esta profunda

transformação decorrente do fato de ser visto teve sua expressão máxima em

Genet, que passa a definir, pela experiência de seu ser visto, seu projeto existencial.

Isto nos remete àqueles que o olham e que delegam a Genet um lugar “de fora” dos

valores que por eles são compartilhados, logo um lugar de Outsider.

4.3 Jean Genet bastardo e Outsider: um diálogo entre Sartre e Howard Becker.

É neste momento que podemos dialogar com Howard Becker (1977), que

também ressaltou em seu clássico estudo sobre os Outsiders sociais, a importância

do efeito do rótulo público em um indivíduo90. Neste estudo, encontramos uma

90 Recentemente o estudo de Becker foi republicado mantendo o título em inglês Outsiders. A respeito da opção pelos termos, reproduzo a nota da tradutora Maria Luiza Borges (2008): “A edição anterior deste capítulo em português optou por traduzir outsiders por ‘marginais de desviantes’, assinalando que ‘marginais’ significava, nesse contexto, alguém que está do lado de fora, para além das margens de determinada fronteira ou limite social. Na presente edição, optou-se por manter o termo outsider porque seu uso já se tornou consagrado nas ciências sociais” (p.15). Deste modo, neste texto irei utilizar amplamente o termo desviante visto que trabalhei com a primeira tradução do trabalho de

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pesquisa consistente que demonstra que ser rotulado publicamente como desviante

constitui em um fator crucial para manter um padrão neste tipo de comportamento,

pois tal situação implica em conseqüências na identidade pública do indivíduo,

levando-o a mudanças em relação aos seus grupos sociais. O indivíduo rotulado

passa a um novo status social e isso modifica sua interação com o meio, ele passa

então a moldar-se pelo olhar dos outros, caracterizando uma espécie de profecia

auto-realizadora. Para este autor, é importante saber quem faz as regras e para

quem, no sentido de entender o que é considerado desviante, uma vez que um

desvio só poder ser definido como tal de acordo com uma relação, ou seja, ele

não é uma qualidade que exista no próprio comportamento, mas sim na

interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles que respondem a ela.

Na visão de Sartre (2002b), este processo corresponde à objetivação da

subjetividade decorrente do “ser olhado pelo outro”, do Outro como absoluto, sendo

que, ao falarmos de uma criança, este Outro é ainda mais poderoso frente à ínfima

certeza que possa ter de si. Para Sartre, no caso de Genet, esta foi sua

metamorfose, no sentido kafkiano, quando a criança que era aos poucos se

transformou em um bicho horrível para os outros:

Genet fica sabendo o que ele é, objetivamente. É essa passagem que vai determinar a sua vida inteira. [...] Genet é um ladrão: essa é a sua verdade, a sua essência eterna. E, se ele é ladrão, conseqüentemente, é preciso que ele o seja sempre, em todo lugar, não só quando rouba, mas também quando come, quando dorme, quando beija sua mãe adotiva. Cada um dos seus gestos o trai, revela à luz do dia sua natureza infecta; a qualquer momento, o professor pode interromper o ditado, olhar Genet nos olhos e exclamar com voz forte: “Este aqui é um ladrão” Em vão ele pensaria merecer indulgência confessando as faltas, dominando a perversidade dos seus instintos; todos os movimentos do seu coração são igualmente culpados, porque todos expressam igualmente a sua essência. (SARTRE, 2002b, p.30).

Howard Becker (1977) afirma que devemos relativizar a visão usualmente

adotada em relação aos desviantes. Para isso, ele realiza um questionamento dos

conceitos estanques, aqueles que são considerados imutáveis independentemente

de seu contexto social, como o conceito de desvio. Na fala de Sartre (2002b),

Becker. Porém, não desejo descartar o termo outsider, por achar que ele expressa significativamente a idéia de que há aqueles que estão à margem, de fora.

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podemos identificar que o filósofo coloca de forma irônica que uma essência eterna

de ladrão irá definir Genet para toda a vida, em todos os seus gestos, em todas as

manifestações do seu ser. Sartre questiona então, assim como Becker (1977), a

maneira essencialista de entender o desviante, pois o erro da sociedade em geral foi

o de considerar o desvio como uma característica inerente ao indivíduo que o

comete, e não levar em conta que essa rotulação envolve uma construção de

valores sócio-políticos.

O comportamento considerado desviante varia de acordo com os grupos

sociais e o julgamento destes frente às infrações, isto é, cada grupo constrói um

sistema de valores como referência para definir, por exemplo, o certo e o errado, o

normal e o patológico. Deste modo, se levarmos em conta as variações éticas

existentes nas relações entre os indivíduos, definir um desvio não se mostra como

tarefa simples. Com o intuito de demonstrar essa variação, Becker (1977) expõe de

que maneira as situações que envolvem a criação, a imposição e a transgressão das

regras, que são as que se contrapõem aos desvios, se dão na sociedade.

Primeiramente, o autor aponta que grupos diferentes costumam divergir na

criação de regras e até um mesmo grupo encontra dificuldades de chegar a um

consenso. Isto o leva à observação de que o que é considerado desviante varia de

um grupo para outro do mesmo modo que a forma de lidar com o indivíduo que

comete o desvio. Além disso, devemos considerar também que as pessoas

pertencem a mais de um grupo simultaneamente na sociedade e, às vezes, o fato de

um indivíduo obedecer às regras de um determinado grupo significa, ao mesmo

tempo, transgredir as de outro, o que demonstra uma confusão na aplicação de um

rótulo, pois ele é desviante em relação a um grupo e não a outro.

Grande parte da argumentação de Becker (1977) mostra uma preocupação

em não negligenciar o caráter variável do desvio, visto que no meio científico tende-

se a esquecer tal fator, levando a uma compreensão limitada do problema. Assim,

ele estabelece como primeira tarefa construir uma nova definição de desvio, e para

isso, ressalta as visões predominantes de sua época. A primeira delas é a

denominada “estatística”, onde tudo o que varia em relação à média é considerado

desviante. Para o autor, esta visão é simplista e não oferece grandes recursos,

assim como a visão médica, embora esta se mostre um pouco mais elaborada.

Nesta linha de pensamento de grande influência, o desvio é encarado como doença,

o que remete à intrincada questão de definir o que seria um organismo saudável.

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Como foi ressaltado anteriormente, estas noções estão relacionadas a um sistema

de valores e referências específicas de um grupo, e claro, não podemos esquecer,

de uma época. Estas duas vertentes limitam as perspectivas, porque aceitam “o

julgamento leigo de alguma coisa como desviante e, pelo uso da analogia, localiza

sua fonte dentro do indivíduo, impedindo-nos de ver o próprio julgamento como uma

parte crucial do fenômeno” (BECKER, 1977, p.58).

O autor ressalta ainda que a visão médica foi também utilizada por alguns

sociólogos que tenderam a olhar a sociedade por uma perspectiva funcional. Nesta

visão, os desvios provêm dos aspectos que levam à desestabilização social em

oposição àqueles que manteriam a sua estabilidade, e seriam, portanto, funcionais.

Também aqui uma tendência de normatização social é revelada, pois devemos levar

em conta que as definições do que seria funcional ou disfuncional partem de um

grupo que as adéqua à sua visão particular e certamente as impõem a outros.

Uma última perspectiva apontada é mais relativista, onde o desvio é encarado

como um fracasso em obedecer às regras de um grupo, não suprimindo o caráter

relacional, e por isso se aproxima a de Becker. Porém, para ele esta perspectiva não

consegue ainda dar conta dos fatores ambíguos que envolvem as regras e os

desvios. Ele se propõe, por conseguinte, a avançar nesta tarefa com o objetivo de

explorar tais ambigüidades, entendendo que um desvio é criado pelas relações na

sociedade, e nesta perspectiva o rótulo público ganha o papel principal.

Assim, Becker (1977) irá definir o desvio como uma conseqüência das

respostas de outros ao ato de uma pessoa, e o desviante é aquele ao qual o

rótulo foi aplicado com sucesso. Em seu livro sobre Genet, Sartre (2002b) parece

concordar com a visão de Becker sobre o desvio, onde ele procura mostrar como

Genet se construiu moldado pelo olhar dos outros e, concomitantemente, como a

sociedade busca encontrar seus “bodes expiatórios”, procurando argumentar sobre

qual função social que esta atividade estaria preenchendo. Na mesma direção,

afirma Becker (1977): “encararei o desvio como produto de uma transação que

ocorre entre algum grupo social e alguém que é encarado por aquele grupo como

um infrator de regras” (p.60). Deste modo, podemos dizer que Sartre e Becker

convergem em suas análises ao apontar que as respostas dos outros frente a um

comportamento desviante é um ponto fundamental da questão.

No intuito de explicitar estas afirmações, tanto Becker quanto Sartre nos

oferecem exemplos que indicam essas variações com relação às respostas ao

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desvio. Estas variam segundo a época, o grupo, e a situação, como o caso citado

por Becker (1977) do estudo de Malinowski nas ilhas Trobriand. Por uma breve

exposição deste trabalho, o sociólogo conclui que a opinião pública influencia na

necessidade punição do “culpado” por uma situação “desviante”. No exemplo de

Malinowski, um rapaz quebra a regra de exogamia que era proibida socialmente,

mas ele só se auto-condenou (cometendo suicídio) após seu ato ser exposto

publicamente. Antes disso, as pessoas ao redor sabiam de seu ato, mas a punição

não era estritamente necessária antes de tornar-se explicitamente pública, o que nos

leva a observar que a imposição da regra variou realmente de acordo com as

respostas do grupo como um todo.

Sartre (DELLA VOLPE et al., 1982), por sua vez, observa que os mesmos

indivíduos que impõem uma regra podem violá-la e continuar assim mesmo a

concebê-la como uma regra fundamental. Ele descreve o resultado interessante de

uma pesquisa feita em um liceu para moças, onde elas deveriam responder à

pergunta: “Você mente?”. A metade delas respondeu que sim, e as outras variaram

entre freqüentemente ou algumas vezes, apenas 10% respondeu nunca. À outra

pergunta “Deve-se condenar a mentira?”, 95% responderam que sim. Diante deste

exemplo, Sartre observa o aspecto contraditório das respostas, pois os mesmo

indivíduos que impõem uma lei para si admitem sem reservas que podem violá-la;

mas eles preferem que a lei exista, o que, segundo o filósofo, deixa-os mais

tranqüilizados do que um mundo sem leis. Isto nos mostra que o fato de

prescrevermos uma regra não significa necessariamente que iremos agir de acordo

com ela; e que o mesmo indivíduo que transgride uma regra pode ao mesmo tempo

apoiar sua existência, o que nos leva a admitir as ambigüidades presentes na

imposição e na ação diante das regras.

O grau de exigência para a punição também varia de acordo com quem

comete as infrações. Segundo Becker (1977), as regras tendem a ser mais aplicadas

à algumas pessoas do que a outras, e isto pode variar de acordo com o gênero,

classe, idade, status social, etc. Isto determina, na maioria das vezes, a existência

de uma relação de poder entre aqueles que fazem as regras e aqueles que as

obedecem. Os indivíduos que são obrigados a seguir determinado conjunto de

normas não são necessariamente aqueles que as estabeleceram, e isto indica que

há uma imposição de valores e condutas. Becker (1977) observa que normalmente

na sociedade ocorre a seguinte hierarquia na imposição de regras: os mais velhos

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fazem para os jovens, os homens para as mulheres, os brancos para os negros,

entre outros. Podemos pensar nas conseqüências políticas de tal fato, onde certos

grupos têm que se submeter ao poder de outros e experimentar uma relação de

dominação. Este aspecto foi trabalhado por Sartre (1966) na peça já citada A

prostituta respeitosa. É fácil notar que o tema que permeia toda a trama é uma

cultura americana hostil aos negros, na qual os brancos fazem as regras, como

observamos na cena que o negro refugiado encontra com Lizzie (a prostituta):

O Negro: Eu não fiz nada, madame, a senhora sabe. Lizzie: Eles dizem que um negro sempre fez alguma coisa. O Negro: Nunca fiz nada. Nunca. Nunca. Lizzie (passa a mão na testa): Já não sei mais a quantas ando. (Um tempo) – De qualquer jeito, uma cidade inteira não pode estar completamente errada. (Um tempo) – Droga! Já não compreendo mais coisa nenhuma. O Negro: é assim mesmo, madama. Com os brancos é assim mesmo. Lizzie: Você também, você também se sente culpado? O Negro: também, também. Lizzie: E você não fez nada. O Negro: Nada, nada. Lizzie: Mas afinal, que será que eles fazem para terem sempre tudo ao lado deles? O Negro: São brancos (SARTRE, 1966, p.76-7).

Podemos identificar uma conexão entre este exemplo e a afirmação de

Becker (1977) de que “aqueles grupos cuja posição social lhes confere armas e

poder são mais capazes de impor suas regras” (p.67), e por isso parece que

devemos entender a definição de desvio sempre por uma ótica política. Neste

contexto, que leva em conta toda esta dimensão, e após tais considerações, o autor

se permite prosseguir e tenta diferenciar os tipos de desvios. O sociólogo começa

por tentar correlacionar o comportamento (desviante ou conformista) com a resposta

dos outros que os percebem como desviantes ou não. Desta forma, ele leva em

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conta o ponto de vista daquele que comete o ato infrator e o ponto de vista social,

percebendo o momento em que eles convergem ou divergem. O indivíduo que se vê

falsamente acusado, por exemplo, diverge do ponto de vista social e identifica o erro

fora dele. Da mesma maneira, pode ocorrer um ato impróprio de um indivíduo que

não é notado ou considerado como uma violação de regras pelas pessoas ao

redor91.

Tudo isso leva o autor a um próximo passo que parece ser de grande

interesse seu, o de examinar como se origina e como se mantém o comportamento

desviante. Novamente, Becker (1977) começa com uma crítica ao modelo anterior e

mostra que quase toda pesquisa busca uma patologização da questão, além de

almejar “encontrar” as causas do comportamento não desejado. É feita uma análise

multivariada na qual se buscará o conjunto de fatores que operam simultaneamente

para que se possa predizer tais comportamentos. Como sugestão de uma possível

saída, o autor propõe um modelo seqüencial, onde são consideradas as mudanças

no comportamento e nas perspectivas de um indivíduo de acordo com uma

seqüência onde cada passo exige uma explicação que é apenas uma parte do

comportamento resultante. Para explicar este aspecto, ele aborda a concepção de

carreira transpondo para o caso do desvio. Qualquer carreira pode ser entendida

como uma série de movimentos que vão de uma posição a outra, feitos por um

indivíduo que age em relação a fatos objetivos de uma estrutura social e, por isso,

possui mudanças de motivações, desejos e perspectivas. No caso dos desviantes,

este movimento tem início na quebra de alguma regra, sendo este ato intencional ou

não. A não-intenção de cometer este primeiro ato, segundo o autor, é negligenciada

pelo julgamento público que costuma atribuir ao indivíduo uma vontade ou pré-

disposição para cometê-lo.

Finalmente, estas argumentações podem nos fazer pensar novamente na

vida de Jean Genet, onde seus primeiros atos marcaram profundamente o “inicio de

sua carreira” como ladrão. Os primeiros atos infratores de Genet ocorreram na

infância quando morava com sua família adotiva. Antes de ser surpreendido

roubando, seu ato era fruto de sua imaginação e servia, segundo Sartre (2002b),

como uma tentativa de preencher o vazio de seu ser, visto que nada possuía no

mundo. Seus atos eram gratuitos até o momento em que foi surpreendido e rotulado

91 Podemos pensar hoje, por exemplo, no grande número de carteiras de estudante falsas como uma infração compartilhada.

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de ladrão, o que o levou a ser julgado e abandonado por sua família adotiva.

Provavelmente esta família atribuiu a Genet o roubo como uma característica sua,

que “veio” com o seu nascimento obscuro, o que acredito estar de acordo com o

Becker expôs em suas críticas. Para este último, a visão social predominante

pressupõe que todos os atos desviantes como uma espécie de natureza, e assim o

julgamento de quem os comete é feito sem tréguas. Este aspecto, segundo Becker

(1977), provém da potencialidade que atribuímos àquele que quebrou uma regra,

por conceber que ele deve agir como desviante a todo o momento. Como diz o

autor: “a apreensão por um ato desviante expõe uma pessoa à probabilidade de que

ela seja encarada como desviante ou indesejável em outros aspectos” (p.80). Desta

forma, passa-se a definir o desviante como essencialmente mal, e assim diferenciá-

lo daqueles que não possuem esta característica. Já vimos, porém, que tais

diferenciações pressupõem uma relação de poder e de dominação e isto faz com

que seja importante pensar na utilidade social em apontar o mal no outro.

Becker (1977) contribui com esta análise ao dizer que a presença de impulsos

desviantes não se restringe às pessoas que os cometem, portanto esta não pode ser

fonte de explicações: “Pelo menos em fantasia, as pessoas são muito mais

desviantes do que parecem [...]” (p.74). Ele nos mostra assim que não nega a

ambigüidade, tão ressaltada pela teoria sartreana, de nosso modo de ser. Para

Becker (1977), aqueles que não levam adiante suas fantasias destrutivas possuem

uma espécie de compromisso com seu projeto pessoal, e de acordo com este, uma

ação desviante seria muito prejudicial a sua realização. Este compromisso acontece

quando um indivíduo adere a certas linhas de comportamento porque, se não o fizer,

muitas outras atividades além daquela em que está formalmente engajado serão

adversamente afetadas. Sendo assim, o sociólogo considera que o desenvolvimento

da carreira “normal” de um indivíduo se dá por uma série de compromissos que ele

se engaja progressivamente num crescente com as normas e instituições

convencionais. Este indivíduo reconsidera os comportamentos desviantes em função

de seu projeto e das conseqüências de seus atos desastrosos. A pessoa que

comete o desvio pode, neste contexto, não ter se comprometido a tal ponto com

certas convenções para ter algo muito valioso a perder, ou pode de alguma forma ter

evitado qualquer tipo de aliança neste sentido e se considerar mais livre a exercer

certos impulsos.

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No entanto, os “homens de bem” 92, caracterizados por Sartre, negam que

seriam capazes de possuir qualquer aspecto negativo e se identificam com a

plenitude da positividade. Ao contrário, Genet se identificou somente pelo mal;

aceitou e posteriormente escolheu viver esse mal que encarnaram nele. Quando

Becker (1977) afirma que o próprio indivíduo pode estigmatizar-se como desviante e

se punir por seu comportamento, acredito que Sartre (2002b) concordaria por dizer

que Genet instalou o olhar do outro em si mesmo, ou melhor, se tornou este olhar e

se condenou com mais dureza que seus próprios carrascos. Além disso, acrescenta

o filósofo, esta estigmatização interna impede que se estabeleça uma relação de

reciprocidade entre aqueles que estão “no mesmo barco” 93, como quando alguém

que sofre preconceito reproduz com outros o próprio preconceito que vive. Becker

(1977), no entanto, fala de uma subcultura daqueles que se encontram em uma

mesma condição de marginais que seria reforçadora de sua “identidade desviante”.

Nesta “tribo” o desviante pode encontrar algum prazer em compartilhar de

justificativas e racionalizações em comum com os outros, e em alguns casos,

receber uma transmissão de conhecimentos dos mais experientes, fazendo com que

se aprimore na “arte” do desvio. Este seria um último passo, segundo o autor, na

carreira de um desviante, contribuindo fortemente para a perpetuação de seus atos.

A vida de Genet se caracterizou pelo desprezo social e seu movimento foi um

eterno retorno às instituições, reformatórios, prisões, lugares aos quais pertenceu

desde o nascimento. Porém, ao fazer poesia e tornar-se escritor, expressou que

mesmo diante de tais condições encontrou um meio de fazer-se liberdade, uma

solução, para Sartre (2002b), de “desesperado”. Em seu famoso estudo sobre o

pensamento de Sartre, Laing & Cooper (1972) exclamam que, através de Genet,

Sartre tenta mostrar que a realidade concreta da vida de um homem só pode ser

entendida mediante uma consideração da dialética da liberdade atuante em

condições materiais. Isto quer dizer que a liberdade deve ser compreendida em

situação, e mais ainda, ao compreender este projeto em particular podemos

entender as ambigüidades pertencentes à condição de ser liberdade. Por isso,

compreender Genet significa aceitar a condição comum a todos: o “mal”, ou qualquer

92 Os chamados “homens de bem” na visão de Jeanson (1987), são aqueles que não assumem ambigüidade em si mesmos, e precisam de um outro para projetar o aspecto negativo de sua falta de determinação. 93 O filósofo diz que os homossexuais, por exemplo, não pensam em si quando estigmatizam outros homossexuais de pederastas ou “veados” e assim permanecem isolados e sós.

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outra característica, existe como uma possibilidade de ser para todos nós. Há,

portanto, para Sartre (2002b), uma função em eleger um “bode expiatório” na

tentativa de projetar essa negatividade, que ele entende como nossa falta de ser, em

algo, ou alguém. Assim, existe uma função de utilidade social de um rótulo, ou seja,

há um aspecto tranqüilizador em descobrir onde “o Mal” está, o que, segundo,

Jeanson (1987), por um efeito de contraste, nos “santifica” aos nossos próprios

olhos. Se tomarmos como exemplo o caso de Genet como o mal encarnado, ou seja,

a maldade em carne, vemos que ele foi visto como a representação de toda essa

projeção social e seus atos e comportamentos eram atribuídos como inerentes ao

seu caráter. Caso possamos compreender, ao invés de explicar, uma pessoa “má”,

isso nos levaria a admitir a possibilidade de também o ser, pois se assumo que sou

liberdade como ele, sou também ambíguo, portanto.

4.4 Conseqüências éticas da liberdade na literatura sartreana.

Minha discussão recai agora nas questões levantadas por Sartre 94 no que diz

respeito a um pensar ético baseado na aceitação da liberdade do homem ambíguo.

Isto se deve ao fato da moral sartreana se sustentar justamente na consciência vazia

e intencional, o que irá de fato complicar a sua teorização em torno do tema. Pois

sua ética nasce no inacabamento, na angústia da incompletude do Para-si, que faz

com que a moralidade surja no momento em que o homem faz algo de si; em um

movimento contínuo e dialético entre sujeito-objeto, homem-mundo, estabelecendo

uma relação de constituição de si mesmo no mundo. A negação da ambigüidade,

por conseguinte, pressupõe a negação da própria condição humana, pois o ser do

homem inclui positividade (ser pleno, concreto) e negação. Isto significa que ao

identificarmos no homem somente seu aspecto positivo, suprimimos o principal

diferencial do seu modo de ser – a sua falta de ser. O homem, enquanto ser-para-si,

é um ser que está constantemente em questão para si próprio e isto significa que há

uma distância de si fundamental, diferentemente do ser em-si que existe em uma

total coincidência consigo mesmo.

94 Ver: REIMÃO,C. Terceira parte: Ética. In: Consciência, dialética e ética em Jean-Paul Sartre. 2005, p.369.

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Simone de Beauvoir (2005) em Por uma moral da ambigüidade, argumenta

que as morais tradicionais, idealistas e materialistas, suprimiam a condição ambígua

do homem por valorizar ora a natureza ora o espírito. Mas já Hegel salientava que a

condição do homem é justamente a inquietude do espírito, fato que a autora

expressa da seguinte maneira:

[...] a cada instante a verdade vem à luz: a verdade da vida e da morte, de minha solidão e de minha ligação com o mundo, de minha liberdade e de minha servidão, da insignificância e da soberana importância de cada homem e de todos os homens [...]. Uma vez que não logramos escapar à verdade, tentemos, pois olhá-la de frente. Tentemos assumir nossa fundamental ambigüidade (BEAUVOIR, 2005, p.15).

O que é necessário, portanto, é assumir a ambigüidade, o que é equivalente à

aceitação da condição de liberdade. Na visão sartreana, a liberdade é esta

indeterminação que tem origem na falta de ser, no que o filósofo chama de Nada.

Desta forma, não é possível falar de uma essência prévia do existente, o que

descarta a idéia de natureza humana, mas sim de uma condição humana onde a

existência precede a essência. De acordo com Franklin Leopoldo e Silva (2007), na

tradição filosófica do conhecimento, buscava-se primeiramente conhecer a essência

de algum objeto, para depois entender a existência como o campo de manifestação

das qualidades que o definem. Para este autor, esta visão acarreta no determinismo

do ser, onde todas as suas manifestações se reduzem ao que ele essencialmente é.

Sendo assim, seria possível conhecer a essência de uma pessoa para identificar ou

até prever seus comportamentos, conforme o lema positivista de “ver para prever”.

Também Becker (1977), como vimos, expôs uma crítica a esta visão, aos mostrar

que há uma busca constante de supostas causas dos comportamentos desviantes

inerentes à personalidade daqueles que os cometem, assim tais características

tornariam necessário ou inevitável que estes agissem desta determinada maneira. O

autor nos mostrou que a sociedade aceita os rótulos de desviantes como dado e

esquece que estes fazem parte de um grupo que faz o julgamento e que constrói as

regras. Para Sartre, tal exemplo se enquadra em uma tentativa de determinar o que

o ser é, como essência dada, suprimindo assim a sua falta de ser, a sua liberdade.

Frente a isso, Franklin Leopoldo e Silva ressalta:

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É de extrema importância notar que indeterminação e ausência são as vias de compreensão da existência, porque isso significa que a realidade humana deve ser abordada muito mais na perspectiva da negatividade do que pelas determinações afirmativas de seus possíveis atributos. E há uma razão para isso: visto que o ser humano é processo de existir e não essência dada, ele se caracteriza muito mais pela mudança do que pela permanência; interessa compreender não o que o homem é (porque, precisamente ele não é nada antes do processo existencial), mas o que ele se torna no percurso da existência (LEOPOLDO E SILVA, 2007, p.56).

Diante de tais condições, o único dever de homem é buscar seu ser, mas não

é possível para ele, por conta desta indeterminação e ausência, tornar-se uma

identidade, isto é, idêntico a si mesmo, daí a dificuldade de seu projeto, de sua

“paixão inútil”. O homem age então para dar sentido a si e ao mundo e o valor nasce

justamente das escolhas realizadas na ação. Segue-se que a elaboração dos

personagens sartreanaos leva em conta essa concepção de liberdade, que

pressupõe que tudo aquilo que é apreendido pela consciência intencional seja

relativo à essa apreensão, e portanto, questionável. Isto não significa que a

existência do mundo esteja em dúvida como em Descartes, mas sim que o mundo

tal qual ele existe para a consciência está impregnado pelo sentido e pelo valor.

Desta forma, o valor surge na ação do para-si que se escolhe livremente, isto é, ele

surge concomitantemente com a ação mediada e constituída pela liberdade. Vários

autores (SILVA, 2004; CAMPBELL, 1949; BORNHEIM, 2000) apontam o valor como

um conceito chave da visão da ética sartreana; a possibilidade do surgimento do

valor na ação se deve a realização da liberdade e assim a uma criação do homem

por si mesmo, que revela um sentido ao manifestar-se em suas escolhas. O que

acontece é que a natureza intencional da criação ou simples adoção dos valores é

muitas vezes negada por má-fé, ou seja, caracteriza-se pelo fato de o homem

atribuir um caráter absoluto aos valores, pondo-se assim como inessencial frente à

estes a ponto de alienar-se em um sistema moral rígido que mantém para si.

Na criação literária de Sartre podemos identificar uma saída deste tipo na

personagem Lulu do conto Intimidade, quando, ao se ver obrigada a tomar decisões,

ela tira de si toda a responsabilidade de suas ações. Assim lamenta Lulu: “na

verdade eu não decidi nada [...] a coisa de decidiu por si mesma” (SARTRE, 2005d,

p.101) e ainda “Nunca, nunca fazemos o que desejamos, somos sempre induzidos” (

p.119).

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De acordo com Sartre (2005e), o homem é o ser pelo qual o valor vem ao

mundo, aquele que, em seu movimento, revela e valora os objetos a sua volta

imprimindo-lhes um sentido que é expresso por suas escolhas. Deste modo, a

consciência constrói o sentido, redesenha o mundo com seus traços e cria um valor,

coloca-o posicionado em um mundo por meio de sua intenção para atingir um fim

que o revela. Esta eleição é por si só um ato que expressa justamente o que ele faz

de si frente às situações nas quais está enredado.

A visão comum da liberdade, porém, costuma estar associada a um ideal de

mundo sem barreiras e responsabilidades. Sartre (1972b) coloca em cena esta visão

ao dramatizar, no roteiro de filme Os dados estão lançados, uma suposta “vida após

a morte” aonde os mortos vagam pelo mundo dos vivos sem ter o poder de agir.

Diante disso, exclama um deles: “os mortos são livres”, mas os personagens

principais “recém-chegados” não conseguem se acostumar a apenas assistir o

mundo. O personagem Pedro, operário que planejou uma revolução e que depois de

morto vê que haverá um boicote ao levante, se angustia frente à “inutilidade de seus

esforços e por isso sofre pela primeira vez” (p.38). Ele exclama ao velho morto:

- é uma boa porcaria isto de estar morto! - sim..., mas há, apesar de tudo, pequenas compensações. - vê-se que não é uma pessoa exigente! - Nenhumas responsabilidades. Nada de preocupações materiais. Uma liberdade absoluta. Distrações a escolha (SARTRE, 1972b p.55).

Esta liberdade sem compromissos é também expressa pelo personagem

Mathieu Delarue, da trilogia Os Caminhos da liberdade, que nos mostra logo de

início a inconsistência de sua tão preciosa e conservada liberdade, a qual se

revelava cada vez mais vazia e estéril. Ao longo do desenvolvimento da trama,

Sartre nos dá indícios de um sentido ético na elaboração deste personagem, pois no

confronto de Mathieu com sua própria condição de liberdade ele nos exemplifica a

idéia de que “a práxis libertadora ocorre no espaço da história e não no da

consciência”, como afirma Cassiano Reimão (2005, p.372). Mathieu sentia então que

precisava conservar sua liberdade e para isso não permitia amarrar-se a nada, no

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entanto, aos poucos passa questionar sua atitude até que, em um momento de

lucidez reflexiva, ele exclama:

É assim que eles me vêem? [...] o homem que quer ser livre. Come, bebe, como qualquer outro, é funcionário, não faz política, lê L’OEuvre e Le Populaire e está em dificuldades financeiras. Mas quer ser livre, como os outros desejam uma coleção de selos. A liberdade é seu jardim secreto. Sua pequena conivência consigo mesmo. Um sujeito preguiçoso e frio, algo quimérico, razoável no fundo, que malandramente construiu para si próprio uma felicidade medíocre e sólida, feita de inércia, e que ele justifica de quando em vez mediante reflexões elevadas. Não é isso que sou?(SARTRE, 2005a, p.19).

Esta reflexão de Mathieu expressa a própria vida de Sartre que, após ser

empurrado pela guerra, transformou sua noção de liberdade visando um forte

comprometimento social. Uma liberdade que se quer livre deve se comprometer

com a ação e a liberdade “protegida” de Mathieu é uma liberdade alienada, em cima

do muro, onde qualquer comprometimento torna-se um perigo frente a sua

conservação. Assim, através das situações “vividas” por este personagem, Sartre

(2004) coloca em cena o tema da moral e transmite sua visão da literatura: engajada

e comprometida com o mundo que busca criar. A ação transformadora, que está

presente neste empreendimento moral, combate justamente a positividade da

atitude de “conservar” observada em Mathieu; uma ética da ação baseia-se

justamente no caráter nadificador da consciência, mas a “preservação” busca

suprimir este modo de ser. Diz Sartre (2002):

O homem, dizem, não inventa; descobre. Reduz-se o novo ao antigo. Conservar, manter, restaurar, reformar, preservar – essas são as ações permitidas; todas pertencem à categoria da repetição. Tudo está pleno, tudo está em seu lugar, tudo está em ordem, tudo sempre existiu, o mundo é um museu e nós somos os conservadores (SARTRE, 2002, p.35).

A inquietação e a instabilidade que nos colocam sempre em perigo quando

nos deparamos com nossa falta de ser podem nos tentar a permanecer no campo da

repetição, mas não há como fugir da liberdade já que estamos condenados; a ação,

portanto, deve reassumir seu caráter de transformação. Contreras (1995) comenta

que Sartre utiliza conceitos de Marx para fundamentar sua necessidade de

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compromisso, por isso adota o termo práxis para diferenciar a ação que visa uma

transformação no mundo da pura prática que pode ser uma atividade repetitiva. A

ação transformadora, expressão da liberdade, caracteriza-se por uma revolução

permanente, uma totalização-em-curso que busca se totalizar sem nunca de fato

conseguir. Para construir, precisa-se em parte destruir, nadificar aquilo que é em

nome daquilo que não é, ou seja, inventar e criar. O homem cria a si mesmo na

medida em que age, nada existe a priori, ou potencialmente, o homem é o que

manifesta: “Por que atribuir a Racine a possibilidade de escrever uma outra tragédia

se, justamente, ele não o fez?” (SARTRE, 1987, p.13). Mas a liberdade não é

reconhecida sem angústia, pois como podemos entender nesta importante

observação de Franklin Leopoldo e Silva (2004): “a experiência da liberdade

absoluta é a experiência da fragilidade absoluta” (p.143); percebemos que somos

nós o fundamento de nossa escolha ao mesmo tempo em que o que somos não é

nada senão um constante e desejado vir-a-ser. Este projeto nos remete a um

empreendimento ético, pois a atividade transformadora do homem faz com que surja

a realização da moral “onde o homem alcança sua própria essência utilizando a

história como instrumento” (REIMÃO, 2005, p.371), estabelecendo-se portanto como

produto-produtor do mundo. A angústia se dá justamente em perceber que toda a

lógica, a moral, os costumes, os valores, têm sua origem nessas criaturas incertas

que somos, expostos à uma liberdade absurda, desamparados e injustificados,

sentimos que o mundo não é dado e está por fazer95.

Diante dessa constatação, o homem pode aceitar sua condição, o que seria

uma atitude autêntica na ótica de Sartre, saber que deve procurar ser sem nunca se

encontrar, ou melhor, sem conseguir tornar-se idêntico a si mesmo suprimindo sua

falta de ser fundamental. O que Sartre (2005e) caracterizou como “paixão inútil” é a

condição humana de ser este projeto de ser Deus96, no sentido de desejar ter

concomitantemente todas as características da consciência e a permanência e

solidez dos objetos. O aspecto interessante em Mathieu é que ele escolhe apartar-se

do mundo em nome de sua liberdade, de modo que ele não exerce o seu poder de

ação e mantém uma liberdade idealista, de má-fé, pois mesmo a liberdade pode se

tornar um valor petrificado. Na medida em que o homem escolhe um sistema de

95 Simone de Beauvoir desenvolve este argumento ao discorrer sobre o momento em que o homem “descobre sua subjetividade”, geralmente vivenciado na adolescência. (BEAUVOIR, 2005, p. 38). 96 “A realidade humana é puro empenho para fazer-se Deus” (SARTRE, 2005d, p.704).

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valores rígido ele condiciona todas as suas ações a este, tornando-se exterior a si

mesmo, perde o caráter inventivo da ação e torna-se um simples repetidor do

passado. Por conseguinte, este movimento tem relação direta com o futuro e o

campo das possibilidades, pois o homem entendido enquanto projeto está sempre

em direção a si, projetando-se no futuro. Logo, quando a ação humana transforma a

norma em imperativo97 ela resulta numa “prática-inerte”, mas quando as ações se

baseiam na liberdade, através do homem enquanto agente ético, elas assumem sua

relação incondicional com as possibilidades. Neste “percurso” reconhece-se o futuro

puro e imprevisível, não determinado pelo passado, mas um futuro por fazer - aqui a

ação reconhece seu caráter inventivo de criar o presente por conta futuro, o

presente passa a ser uma “unidade sintética de um campo de ação”98 e o homem se

reconhece enquanto interioridade. Parece que Mathieu só conseguiu dar-se conta

de seu projeto de má-fé e realizar-se enquanto liberdade quando viu seu futuro

prestes a ser arrancado pela aproximação dos alemães no fim da Guerra em Com a

morte na alma:

15 minutos! Pensou com raiva, daria tudo para agüentar 15 minutos! [...] Aproximou-se do parapeito e pôs-se a atirar de pé. Era um enorme revide: cada tiro vingava-o de um antigo escrúpulo. Um tiro em Lola, que não ousei roubar, um tiro em Marcelle, que deveria ter largado, um tiro em Odette, que não quis comer. Este para os livros que não ousei escrever, este para as viagens que recusei [...] Atirava, e as leis voavam para o ar, amarás o teu próximo como a ti mesmo, pam! nesse safado, não matarás, pam! nesse hipócrita aí da frente. Atirava no homem, na Virtude, no Mundo: a liberdade é o Terror. [...] A Beleza deu um mergulho obsceno e Mathieu atirou de novo. Atirou: era puro, todo-poderoso, livre (SARTRE, 2005c, p.246).

Como julgar o que apareceu como verdade a Mathieu? E se for justamente

no momento em que abandonou suas verdades que ele se inventou finalmente? O

homem constrói suas verdades e, segundo Sartre (1990), estas nascem e morrem

com ele, são, portanto, relativas à sua época e sua situação. As verdades não

devem nunca perder sua fonte na dúvida, o homem que busca a verdade é o próprio

homem que coloca a si em questão, e se ele já não o faz é porque ele escolheu para

si um “Eu” fixo que deve ser reforçado a todo o momento pelo mesmo sistema de

97 As normas são a base de toda a moral, quando a norma se transforma em um sistema de possibilidades condicionadas , passam a ser imperativo. Ver: REIMÃO, 2005, Cap. IV. 98 “Não é o conhecimento do futuro através do presente, mas do presente através do futuro. E imediatamente, o presente assume a unidade sintética de um campo de ação” (SARTRE, 1982, p.38).

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valores condicionado. Ele torna sua verdade uma verdade morta, como diz Sartre

(1990), um fato em si como “a terra gira” e isto se torna uma lei; ele perde as novas

significações que ocorrem a cada desvelamento do ser , ou seja, a cada momento

em que o Para-si arranca o ser de sua “noite” e o faz existir através da luz de sua

subjetividade. Ele identifica-se com o objeto a ponto de dissimular para si mesmo a

sua própria subjetividade - uma atitude que, segundo Beauvoir (2005), foi descrita

por Hegel como um “colocar-se como inessencial frente a um objeto essencial”

(p.43), e desta maneira a Coisa aparece como a Causa de si, diz Sartre (1990): “Mas

porque se articulou tanto tempo com o Eterno, o homem preferiu as verdades mortas

às verdades vivas e fez uma teoria da Verdade que é uma teoria da morte” (p.33).

Tudo isso pertence ao terreno da ética, visto que o homem é responsável pelo

que faz de si e do mundo. As questões colocadas para o homem que age no mundo

são as possíveis de seu tempo, e por isso, a época em que vive se torna a época

dele, o que o faz responsável por ela. Nos tempos de guerra isto se mostrava

evidente e necessário, como afirmou Sartre (2004): “a irreversibilidade do nosso

tempo só pertencia a nós; era preciso salvar-nos ou perder-nos, às apalpadelas,

nesse tempo, irreversível” (p.166)99. Deste modo, a consciência e a história se

interpenetrem através do sentido buscado pela ação humana, o que resulta em um

agir ético.

Sendo assim, tanto na reflexão filosófica como na expressão literária, Sartre

mantém a mesma postura em não aceitar uma análise à distância do mundo, ou

seja, refuta, como Marx, a pura contemplação filosófica e também a visão onisciente

da “literatura de sobrevôo” cujo papel é apenas narrar uma história já feita (SILVA,

2004, p.22). A literatura na perspectiva de nosso autor deve mostrar o problema de

uma consciência que a cada momento se confronta com o mundo na sua relação

com outras consciências, com as coisas e consigo mesma. Devido a isso, Sartre

busca uma construção de personagens que possa despertar um eterno

questionamento em seus leitores, que permita o surgimento de incertezas,

expectativas e um “reposicionar-se” constante diante destes: “se mergulharmos o

leitor, sem mediação, numa consciência, se lhe recusarmos todos os meios de

sobrevoá-la, então será preciso impor-lhe, sem atalhos, o tempo dessa consciência”

(SARTRE, 2004, p.228).

99 Sartre se refere ao momento da Segunda Guerra Mundial.

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A obra literária é a representação imaginária da realidade, representa o real

pela negação. O autor precisa inventar os homens que a compõe e permitir que

estes se inventem ao longo do texto, pois acredita que o leitor, que também é

liberdade, tem no mundo sua criação particular. Por isso Sartre (2004) denominou a

literatura como um apelo à liberdade do leitor - este ponto talvez expresse a ética

que permeia todo o trabalho de Sartre no que diz respeito a um apelo à liberdade, à

transformação. A intenção de sua filosofia e literatura é provocar a realidade humana

para que esta coloque a si própria em questão e se assuma enquanto consciência

de uma realidade histórica. Desta forma, estas se tornam um veículo de apelo à

desalienação coletiva e individual, ressaltando o poder da ação pela sua própria

expressão.

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5 Considerações finais.

Inicialmente, este trabalho tinha como título “Sartre na janela: um olhar sobre

a literatura como resignificação do mundo”. Este título mudou, não somente porque

os contornos principais do trabalho se tornaram outros, mas também porque a

imagem de Sartre na janela transmite uma posição de distanciamento superior ao

mundo que está em baixo. Esta não era a minha intenção, mas novamente o

sentido, como sustenta a visão fenomenológica, se desprende de seu objeto e toma

seu rumo particular. Entretanto, penso que a idéia de “Sartre na janela” continua

pertinente se tomarmos como base a seguinte argumentação sobre seu texto

Veneza, da minha janela, que veio a inspirar este primeiro título.

Neste pequeno e pouco citado texto, Sartre (2005h) descreve, em tempo

presente, a cidade italiana que aparece para ele através da sua janela. Assim,

podemos entender desde o início que a cidade que é descrita no texto (e Sartre nos

dá a impressão de percorrer toda a cidade apesar de não sair da janela) é Veneza,

mas não é a mesma Veneza das outras janelas. Mesmo assim, o leitor que absorve

os detalhes do texto de Sartre certamente chegará a Veneza marcado pelas outras

margens que nunca alcança100, pelo céu retalhado nos movimentos da água, pela

água ela mesma que “inveja a rigidez cadavérica dos palácios que a bordejam”

(p.21), todas estas impressões que transformará sua experiência. Mas como Sartre

(2005h) evidencia, ainda assim nunca poderei saber como é Veneza para aquele

outro na rua, que vê da sua janela: “É um turista da Outra Veneza e nunca verei o

que ele vê” (p.13).

100 Faço alusão às descrições de Sartre sobre Veneza.

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Percebemos aqui que devemos entender que um autor escreve de sua

própria janela, mas esta não se encontra apartada de um mundo e não significa o

mesmo que a já conhecida torre de marfim dos filósofos contempladores. A

experiência do autor no texto é a experiência do mundo, no caso de Sartre (2005h),

a experiência de estranheza que sente ao observar aqueles com os quais não está

habituado – de sua janela em Paris encontra sua “multidão natural”, já em Veneza

“os Outros estão além-mares” (p.13). Este mundo é marcado pelo texto e a partir de

exemplos como este podemos pensar, sem escapar às experiências concretas e

cotidianas, esta intrincada relação. Sartre na janela nos mostra a Veneza que ele vê,

mas esta é uma experiência das suas vivências e paixões marcadas pelo seu

contexto e tempo, vejamos uma de suas descrições:

Tudo isso se deve ao canal. Se fosse um honesto braço de mar, confessando francamente que tem por função separar os homens, ou então um rio bravo e domado que leva os barcos a contragosto, não haveria história, diríamos simplesmente que há ali uma certa cidade, diferente da nossa e, por isso mesmo, bem igual. Uma cidade como todas as cidades. Mas esse Canal pretende reunir [...] esse falso traço de união finge aproximar para melhor separar; ele me passa a perna sem dificuldades e me faz acreditar que a comunicação com meus semelhantes é impossível. (SARTRE, 2005h, p.14-15, grifo do autor).

Desta forma, podemos perceber que através da descrição de Sartre o canal

de Veneza ganha um sentido, neste caso o de separar os homens aparentemente

reunindo-os. O sentido, portanto, de acordo com a fenomenologia, não está no

canal, mas na relação deste com a consciência que o apreende. Assim, entendo que

a vivência do autor, que é demarcada ao longo do texto, diz respeito ao sentimento

de sentir-se próximo e ao mesmo tempo distante de outros homens e é através

desta experiência que ele doa sentido aquilo que observa. Por este ângulo, fica

claro, como diz Franklin Leopoldo e Silva (2004) que a realidade é sempre humana

visto que “qualquer aspecto da realidade somente se torna significativo quando

apreendido no âmbito da consciência e da história humanas” (p.15). Mas isto não

significa, como vimos, que a fenomenologia pressuponha que a realidade se reduza

ao sujeito que a conhece- o que nos levaria ao subjetivismo e ao idealismo - mas

sim que devemos compreender a relação de produção de sentido que demarca a

constante interligação do homem com o mundo. Penso na janela de Sartre como o

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quadrado que delimita seu olhar, que o situa, de acordo com sua experiência

coletiva de uma época, a sua experiência subjetiva. Dentro destas demarcações, o

olhar mostra-se múltiplo, pode resignificar à vontade a cena que se passa ao seu

redor (embora não alcance as que se encontram fora de seu campo visual) pode

inclusive acrescentar cenas que não se passam ali, mas que pertencem à sua

imaginação.

Quando ressaltamos os limites de sua visão, dizemos que sua janela se

encontra em uma certa altura, a partir de uma construção determinada e que possui

uma arquitetura de uma época. Isto é, sua visão encontra-se marcada pela época e

o contexto na qual aquele que vê está inserido, ele fala de experiências que

transmitem por si só a experiência da realidade humana, mas não pode falar da

cena tal qual aparece para o Outro, que permanece sempre inacessível, “além-

mares”. Talvez essa sensação do outro ou do real como inalcançáveis seja o sentido

mais profundo da janela, e é necessário, para alguém como Sartre, um esforço que

talvez o tenha tornado um bastardo, para sair de lá de cima. Disse ele em As

palavras: “Todo homem tem seu lugar natural; nem o orgulho nem o valor lhe fixam a

altitude: a infância é que decide. O meu é um sexto andar parisiense com vista para

os telhados” (SARTRE, 2005b, p.43).

Desejei então, ao longo deste trabalho, descer juntamente com Sartre, de sua

janela para o mundo que inclui “submundo” dos bastardos e dos outsiders. Creio que

“Sartre Roquetin”, personagem de A náusea que vivia nos tremores da irrealidade,

desejava se transformar em Mathieu Delarue, cujo sobrenome significativamente

aponta não para a janela, mas para o homem da rua. Aliás, vimos que Mathieu

expressou em seus conflitos, as transformações sartreanas com relação a sua

concepção de liberdade, em toda a sua dificuldade de se ver livre mesmo

comprometendo-se, no esforço de engajar-se no mundo. Novamente, Sartre nos

confessa em As Palavras:

Platônico por condição, eu ia do saber ao seu objeto; achava na idéia mais realidade que na coisa, porque a idéia aparecia para mim primeiro, e porque ela aparecia como coisa. Foi nos livros que encontrei o universo: assimiliado, classificado, rotulado, pensado e ainda temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio este idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer (SARTRE, 2005b, p.37).

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Contra este idealismo e toda a sua carga de representação, Sartre opõe-se

ao espírito de seriedade das representações coletivas dos atores sociais. Isto

significou, opor-se a si mesmo, deixar de olhar “os telhados” para falar dos conflitos

das relações, que se tornam mais evidentes quando nos aproximamos das

contradições de nossa sociedade. Por este mesmo movimento, Sartre foi muitas

vezes acusado de fazer uma literatura que “cheira mal” que destaca o horror da

condição humana. A literatura é obrigada então a “sujar as mãos” e também a

aproximar-se do cotidiano, de um tempo presente, seja ou não através da noção

clássica do engajamento. Os personagens sartreanos são os heróis destas

transformações, eles nos apresentam a denúncia daquilo que consideramos, por

uma atitude natural, como um mundo estabelecido, tudo aquilo que representa para

Sartre uma prática inerte. Querendo ou não, os heróis bastardos, nos lançam no

terreno de uma ética do cotidiano, tentando escapar aos entraves moralistas dos

sistemas de valores, mas apontado para má-fé das ações que não resultam senão

na conservação de um mesmo mundo. Desta forma, estes personagens são

construídos através do sentido de reposicionar aquele que entra em contato com

eles, em seu próprio mundo, em sua própria situação.

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