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SAÚDE, CURA E ASSOCIATIVISMO O ACERVO DA SOCIEDADE E HOSPITAL BENEFICÊNCIA PORTUGUESA DE PORTO ALEGRE Daniel Oliveira Mestrando em História/Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Paulo Roberto Staudt Moreira Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Coordenador do PPGH da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS [email protected] Resumo: Por meio de convênio firmado entre o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul (MUHM 1 ), o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), foi desenvolvido o projeto de recuperação do acervo da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, que se dividiu nas etapas de higienização, transcrição (de alguns códices, definidos por ordem de importância) e organização do acervo. Esta documentação primária e inédita para pesquisas abarca cronologicamente meados do século XIX até o final do XX. Trata-se, como se verá adiante, de acervo adequado para a investigação de temáticas diversas, como a história da saúde, medicina, associativismo, alimentação, doenças, história social do trabalho (livre e escravo), práticas funerárias etc. Palavras-chave: Sociedade de Beneficência Portuguesa, fontes primárias, preservação documental, higienização, arranjo documental. Histórico da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre No intuito de manter unida a colônia portuguesa no Brasil pós-independência, os portugueses residentes deste país tomaram a iniciativa de criar hospitais em qualquer local onde houvesse uma comunidade de seus patrícios, amigos ou descendentes. As origens da idéia de se fundar em Porto Alegre uma entidade filantrópica portuguesa nos 1 O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS) começou a investir em um projeto sobre a memória da medicina em abril de 2004 e, dois anos depois, foi criado o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul.

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SAÚDE, CURA E ASSOCIATIVISMO

O ACERVO DA SOCIEDADE E HOSPITAL BENEFICÊNCIA PORTUGUESA

DE PORTO ALEGRE

Daniel Oliveira

Mestrando em História/Universidade Federal do Rio Grande do Sul

[email protected]

Paulo Roberto Staudt Moreira

Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Coordenador do

PPGH da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

[email protected]

Resumo: Por meio de convênio firmado entre o Museu de História da Medicina do Rio

Grande do Sul (MUHM1), o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) e a

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), foi desenvolvido o projeto de

recuperação do acervo da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto

Alegre, que se dividiu nas etapas de higienização, transcrição (de alguns códices,

definidos por ordem de importância) e organização do acervo. Esta documentação

primária e inédita para pesquisas abarca cronologicamente meados do século XIX até o

final do XX. Trata-se, como se verá adiante, de acervo adequado para a investigação de

temáticas diversas, como a história da saúde, medicina, associativismo, alimentação,

doenças, história social do trabalho (livre e escravo), práticas funerárias etc.

Palavras-chave: Sociedade de Beneficência Portuguesa, fontes primárias, preservação

documental, higienização, arranjo documental.

Histórico da Sociedade e Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre

No intuito de manter unida a colônia portuguesa no Brasil pós-independência, os

portugueses residentes deste país tomaram a iniciativa de criar hospitais em qualquer

local onde houvesse uma comunidade de seus patrícios, amigos ou descendentes. As

origens da idéia de se fundar em Porto Alegre uma entidade filantrópica portuguesa nos

1 O Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (SIMERS) começou a investir em um projeto sobre a memória da medicina em abril de 2004 e, dois anos depois, foi criado o Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul.

remete a 1845. No entanto, apesar da idéia ter sido bem recebida pelo Vice-Presidente

em exercício da Província, o projeto foi temporariamente abandonado, pois recém havia

encerrado a guerra civil Farroupilha (que por sua vez havia hostilizado o Partido

Restaurador, composto em grande parte por portugueses) e tal ensejo associativista seria

potencialmente suspeito.

Já em 1854, com a morte da Rainha de Portugal D. Maria II, irmã de D. Pedro II,

a cidade de Porto Alegre (ou pelo menos a comunidade portuguesa) foi tomada por

grande comoção, sendo organizadas diversas homenagens à falecida soberana. Neste

clima favorável à comunidade portuguesa, com o auxílio da imprensa, ressurge a idéia

de se criar na capital uma entidade assistencialista formada por portugueses, como já

ocorria em outros locais do Brasil. Desta forma, em 26 de fevereiro de 1854, em uma

sala da Santa Casa de Misericórdia, o vice-cônsul honorário de Portugal, juntamente

com outros membros da elite portuguesa da época, residentes no Rio Grande do Sul, foi

fundada a Sociedade de Beneficência Portuguesa, colocada sob a proteção do El-Rei D.

Fernando de Portugal.

No fim do primeiro ano de existência já estavam associadas 557 pessoas. De

início a Sociedade não dispunha de sede própria, e estabeleceu-se um contrato com a

Santa Casa para atendimento de seus doentes. Com o crescimento do fundo dos

associados em 1858 foi comprada uma casa na antiga Rua da Figueira, onde foi

montado um pequeno hospital. Com o surto de cólera na cidade, em 1867, verificou-se a

necessidade de construção de um espaço maior, que suportasse a demanda de

atendimentos. Desta forma, foi obtido através de doação um terreno no antigo Caminho

da Aldeia, a atual Avenida Independência. A pedra fundamental do novo edifício, que

até hoje é um dos marcos arquitetônicos da capital, foi lançada em 29 de junho de 1867,

e teve sua inauguração em 29 de junho de 1870. No início de 1871 ficou pronta a

primeira capela, no interior do prédio, e em 1872 foi entronizado o Padroeiro, São

Pedro.

Após a mudança para a nova sede, a Beneficência Portuguesa não cessou de

ampliar sua presença na sociedade gaúcha. Em 1884 participou do movimento local de

emancipação de escravos doando muitas cartas de alforria. Cresceu o número de

atendimentos, de associados, e também, do volume de seu patrimônio, aumentado com

doações em forma de imóveis, heranças, loterias especiais e outras fontes. Em 1892

foram feitas melhorias nas instalações, sendo criadas salas para consultórios e uma

farmácia. Por volta de 1900 a Sociedade estava em ótimas condições, com um

considerável patrimônio, muito bem avaliado e sem ter nenhuma dívida. Em 1907 foi

adquirido um terreno para criação de um cemitério destinado aos associados, junto ao

Cemitério São Miguel e Almas, consagrado em 1909. Neste mesmo ano foram

reformadas as salas de cirurgia, os encanamentos de água e gás, e instalada a lavanderia.

Em 1911 foi criada a enfermaria feminina (até então eram internados somente pacientes

do sexo masculino) e instalada a luz elétrica.

Uma nova fase no funcionamento da entidade iniciou em 1923, a administração

interna do Hospital foi entregue às irmãs da Divina Providência. Na data de 1928 foi

inaugurada uma nova ala, com os Gabinetes de Radiologia e Diatermia, um consultório

e duas novas salas de operação. Em 1936 foi aberta outra dependência, onde se

estabeleceu a maternidade. Em 1937 foi adquirida uma extensa área de terra em

Gravataí, onde foi construída uma granja e também instalado o Retiro da Velhice. A

inauguração de um novo bloco se deu em 1950 juntamente com a criação de uma

maternidade moderna, consultórios, novas salas de cirurgia e uma grande cozinha.

Em 1951 a Beneficência Portuguesa teve os seus serviços na área neurológica

reconhecidos como exemplo de excelência no Brasil e no exterior. Em 1952 foram

adquiridos novos terrenos e inaugurado o Instituto de Radioterapia. Desde então o

complexo tornou-se um dos hospitais mais importantes da cidade, tendo sido na década

de 50 a maternidade mais procurada de Porto Alegre. Passou também a receber

pacientes encaminhados dos hospitais Conceição e Clínicas, desafogando estes centros

de saúde.

Ao iniciar o século XXI, sua situação de penúria chegou ao extremo, mas, apesar

das dificuldades imensas, em 2003 o Hospital foi destacado com o segundo lugar em

bom atendimento no Rio Grande do Sul. Porém, em 2007 teve sua execução decretada

pelo INSS, devendo ser leiloado, mas o processo foi revertido judicialmente. Sua

condição é delicada, com uma dívida de cerca de 18 milhões de reais. A Sociedade é

uma instituição filantrópica e se organiza através de uma assembléia geral, que é

soberana, um conselho deliberativo, um conselho fiscal e uma diretoria, além de um

corpo de associados de aproximadamente três mil contribuintes.

Condições do acervo da Sociedade: o estabelecimento do Convênio

Durante o processo de instalação do Museu de História da Medicina do Rio

Grande do Sul (MUHM/SIMMERS) no prédio histórico do Hospital da Beneficência

Portuguesa de Porto Alegre, foi localizada no porão desta instituição, em péssimo

estado de conservação, a documentação que constitui o acervo da Sociedade e Hospital

Beneficência Portuguesa. Documentação que remonta a história da instituição desde a

metade do século XIX até o final do século XX.

Neste contexto, no dia 25 de outubro de 2007, o Museu de História da Medicina

do Rio Grande do Sul (MUHM) assinou um convênio com a Universidade do Vale do

Rio dos Sinos (UNISINOS), juntamente com o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul

(AHRS), tendo como finalidade a recuperação da documentação histórica da Sociedade

e Hospital Beneficência Portuguesa. Este convênio, durante sua realização, contou com

a participação voluntária de alunos de graduação em História da Universidade do Vale

do Rio dos Sinos, que realizaram a higienização, transcrição paleográfica (de alguns

códices, escolhidos pela ordem de importância estabelecida: neste caso os mais antigos

ou em piores estados de conservação) e a organização do acervo (incluindo a

catalogação e elaboração de um instrumento de pesquisa), tendo como finalidade,

disponibilizar o acesso desta documentação aos pesquisadores.

Este convênio firmado entre a UNISINOS, o MUHM e o AHRS também

possibilitou aos alunos da graduação em História desta universidade um importante

contato com fontes primárias, com as técnicas de preservação de documentos e o

aprendizado de noções básicas de arquivística e museologia. Não são raras as vezes que

observamos alunos de graduação em história concluir seus cursos sem ao menos visitar

um arquivo histórico, sem ter contato prático com alguma documentação histórica.

Muito mais raras são as chances de graduandos participarem do processo de

organização de um acervo (acompanhando a implantação desde seu início até o seu

final), constituído de documentação primária inédita para pesquisa. Desta forma, este

convênio, além de possibilitar a experiência prática de se trabalhar com documentação

histórica, adquirida através do contato e da higienização dos documentos e da

identificação das diversas possibilidades de pesquisa que este enorme acervo pode dar

acesso, também possibilitou o despertar dos estudantes para a importância da

preservação do patrimônio documental.

Preservação dos documentos: etapas de recuperação do acervo

A preservação e a vida útil de documentos dependem de uma séria de fatores,

tais como armazenamento adequado e o reparo de possíveis danos. Mas antes de

qualquer ação, é necessária a realização da higienização destes documentos. A

higienização deve ser feita periodicamente e de acordo com a necessidade de cada

documento, levando em consideração a composição do material que é constituído, e

também, o estado de preservação em que se encontram.

No trabalho realizado com a documentação da Sociedade e Hospital

Beneficência Portuguesa, o tipo de higienização desenvolvida foi a mecânica à seco,

com a utilização de trinchas, panos macios, e eventualmente, estiletes e bisturis, para a

retirada de sujidades que não saem tão facilmente. Foi adotada esta técnica por ser a

mais eficiente e a mais indicada pelos profissionais da área de preservação documental,

conforme literatura consultada, para as pretensões do trabalho que foi realizado. Os

corpos estranhos aos documentos como grampos metálicos, insetos, entre outros,

também foram removidos nesta etapa. Felizmente, apesar do mau acondicionamento em

que se encontrava o acervo, foi constatado que o estado de preservação dos documentos

é favorável para que, após o processo de higienização e organização, sejam

disponibilizados para futuras pesquisas. Os aspectos teóricos e metodológicos deste

projeto foram buscados junto à Arquivística, Museologia e História, disciplinas

responsáveis pela preservação do patrimônio cultural em seus diversos suportes.

Ainda sobre higienização, Drumond descreve com detalhes o procedimento

utilizado, pormenorizando-o:

[...] deve ser passada uma trincha ou pincel bem macio sobre o documento e,

em caso de um livro, em todas as folhas, observando sempre a presença de

traças, cupins e fungos. A limpeza de ser iniciada sempre do centro para as

bordas. No caso de livros, deve-se limpar bem a união entre as folhas, porque

larvas vivas geralmente se alojam nas costuras. Recomenda-se portanto,

maior cuidado na limpeza destas áreas (DRUMOND, 2006. p. 130-131).

Diversos autores destacam a importância desta etapa como parte integrante da

conservação preventiva em acervos e arquivos. Segundo Seripierri e Luccas: “a

higienização é sem dúvida a tarefa de maior importância dentro da biblioteca, pois nos

permite entrar em contato direto com o acervo, verificando sua integridade física”

(LUCCAS; SERIPIERRI, 1995. p. 35).

Todo o processo de higienização e organização do Acervo foi efetuado com

utilização de luvas de proteção, avental e máscaras, como forma de proteção contra a

poeira, fungos e demais sujidades, e também, como meio de preservar ainda mais a vida

útil dos documentos, evitando o contato do papel com sais contidos na superfície da

pele.

Visando uma maior vida útil e a organização do acervo da Sociedade e Hospital

Beneficência Portuguesa, foram cumpridas as seguintes etapas, previstas no

estabelecimento do convênio:

• Limpeza: é realizada a avaliação do estado em que se encontram cada

um dos documentos. De acordo com o estado de preservação em que se

encontra o documento e o tipo do material de que ele é constituído, é

realizado o trabalho de higienização, de acordo com as necessidades e

possibilidades verificadas;

• Transcrição paleográfica: no decorrer do processo de higienização, foi

realizada a transcrição paleográfica de alguns códices, escolhidos por

ordem de sua importância na história da instituição, privilegiando assim os

mais antigos e em pior estado de conservação;

• Arranjo: trata-se da organização do acervo, com a catalogação dos

códices e dos demais documentos, sendo confeccionado pelo coordenador

do projeto - Prof. Dr. Paulo Roberto Staudt Moreira - um meticuloso

instrumento de pesquisa/catálogo2, constando, além dos números

identificadores dos documentos/códices, a descrição do mesmo (nome), o

período e número de páginas (constando também a data inicial e final das

anotações do mesmo). Infelizmente, devido às delimitações de tamanho

deste artigo, não poderemos disponibilizá-lo aqui.

Dentro desta última etapa de arranjo, merecem destaque os procedimentos

adotados na etiquetagem dos códices para identificação. Com a finalidade de não criar

2 Entende-se por catálogo - Instrumento de pesquisa elaborado segundo um critério temático, cronológico, onomástico ou geográfico, incluindo todos os documentos pertencentes a um ou mais fundos, descritos de forma sumária ou pormenorizada. Fonte: RELATÓRIO DO CONVÊNIO FIRMADO PARA HIGIENIZAÇÃO E ARRANJO DA DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA DA SOCIEDADE DE BENEFICÊNCIA PORTUGUESA

mais danos aos documentos, procedemos da seguinte forma: primeiramente, com a

utilização de cola CMC (Carboxi Metil Celulose)3, foi anexado ao códice um pequeno

pedaço de papel japonês (papel utilizado na restauração de documentos), e sobre este

foi colada uma etiqueta adesiva, onde consta, de forma impressa, a identificação do

códice de acordo com o catálogo. Por fim, para proteger a etiqueta, foi colado, sobre

ela, um outro pedaço de papel contact (vide fotografia n.1).

Fotografia4 1: detalhe etiquetas

A recuperação na prática: a difícil missão de conservar um patrimônio documental

No mês de novembro de 2007, com o trabalho do grupo de alunos voluntários,

sob a orientação do Professor e Historiador Paulo Roberto Staudt Moreira, foram

iniciados os trabalhos de higienização e organização do acervo da Sociedade e Hospital

Beneficência Portuguesa que foram realizados no interior deste hospital. De início, até

maio do ano de 2008, o local em que se realizaram os trabalhos foi a histórica Capela

São Pedro, construída em 1871. Mesmo não sendo o espaço físico mais adequado para

tais atividades - como pode ser observado na imagem abaixo, mesas para higienização

foram improvisadas, bem como o local de alocação dos livros (ao fundo, sobre os

DE PORTO ALEGRE. Museu de História da Medicina, 2009. 3 Polímero semi-sintético, em que grupos CH2COONa substituem o OH na cadeia celulósica, formando-se éteres. Tanto mais solúvel em água quanto maior o grau de substituição, é sobretudo utilizado pela viscosidade conferida às soluções aquosas, que aumenta com o comprimento da cadeia de celulose.A CMC dissolve rapidamente em água e é usada para controlar a viscosidade sem se transformar em gel. Usado como um espessante de soluções e estabilizante de emulsões, também actua como um agente suspensório. É incolor, inodoro, não-tóxico e solúvel na forma de pós ou grânulos. Fonte: Companhia do papel, disponível em http://www.planetsite.com.br/shop/produto_consulta.asp?PlanetSite=28&Produto=10635 4 Fotografias utilizadas: coleção da equipe do Projeto de Recuperação do Acervo da Sociedade de Beneficência

bancos da capela), sem falar do excesso de luminosidade – pois se tratava de um local

amplo e arejado, o que facilitou a realização dos primeiros trabalhos.

Fotografia 2: Capela São Pedro - Interior do Hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre

Porém, devido aos interesses da administração do Hospital em reativar a Capela

para cerimônias religiosas, o projeto de higienização e organização do acervo foi

alocado, no mês de junho daquele ano, em salas de um corredor abandonado, na ala sul

do prédio, próximo ao antigo e também histórico Salão Nobre da Sociedade. Estas salas,

no início da ocupação, não contavam com energia elétrica, as paredes possuíam

infiltrações de água causadas pelas chuvas – o que tornava o local extremamente úmido.

Devido a isso, torna-se evidente que o novo local estavam muito longe de ser o cenário

ideal para os fins que se propunha o projeto: recuperar e salvaguardar a antiga

documentação da Sociedade. Isto sem falar na falta de motivação, devido às

circunstâncias impostas, para que os colaboradores voluntários dessem continuidade às

atividades.

Portuguesa de Porto Alegre.

Fotografia 3: corredor abandonado no Hospital Beneficência Portuguesa - Segundo local onde se

processou a higienização do acervo da sociedade

Em alguns meses, após algumas solicitações de melhorias realizadas junto à

administração do hospital por intermédio do MUHM, foi instalada energia elétrica em

duas das salas, sendo concedida, também, uma terceira sala fora deste corredor, situada

no segundo piso do prédio histórico do hospital, com a finalidade de alocar e organizar

os livros já higienizados. Esta sala, apesar de suas reduzidas dimensões físicas, mostrou-

se, diante dos outros locais em que foi desenvolvido o projeto, como o espaço mais

adequado e seguro para a guarda da documentação, ao menos até ser encaminhada para

local específico para tal fim. Com a disponibilização desta nova sala foi possível evitar

o excesso de umidade e a permanência da documentação higienizada com a que ainda

não havia passado por este processo, além de, também, oferecer a possibilidade de

maior controle da luminosidade, por meio da instalação de cortinas pretas.

Fotografia 4: sala de organização e catalogação do acervo

Em um período de dois anos, após trabalhosas e cansativas etapas, com

diversas/inesperadas modificações de espaço físico, juntamente com a falta de recursos

(fatores que colocaram em dúvida as reais possibilidades de concretização do projeto),

que dificultaram ainda mais a complexa e muitas vezes inglória tarefa de preservar

acervos em nossa realidade local (dificuldades estas que certamente se estendem por

todo este país, incluindo ainda muitos outros), foi dado por finalizado o projeto, com a

higienização, organização e catalogação de mais de trezentos códices, salvaguardados

de forma adequada e em local seguro (foto nº. 5).

Dentro disto, salientamos ainda que, desde o início do projeto, foi idéia

compartilhada pelas instituições e profissionais envolvidos, que esta documentação não

poderia ficar inacessível aos pesquisadores e público em geral. Assim, esperamos que

em breve este acervo esteja disponível, passando a fazer parte definitivamente da

reserva técnica do Museu de História da Medicina. Caso contrário, sugerimos que este

acervo seja doado ao Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, constituindo um arquivo

privado.

Fotografia 5: códices higienizados e catalogados

Possibilidades de Pesquisa

O acervo é constituído por uma grande quantidade de códices, livretos de

balanços anuais, diplomas de sócios, correspondências, além de uma série de

documentos avulsos das mais variadas espécies. Esta vasta documentação pode, por

meio de suas informações, remontar minuciosamente a história da Sociedade

Beneficência Portuguesa: sua criação, administração, seu quadro social, participação

dos sócios etc. Isto tudo, desde a sua fundação, ocorrida no ano de 1854, até as últimas

décadas do século XX. E é claro, muito além disso, também por meio desta

documentação, se torna possível a análise não só desta instituição e de seus membros,

mas também de várias nuances da sociedade porto-alegrense entre os séculos XIX e

XX5.

Basicamente, o Acervo da Sociedade e Hospital de Beneficência Portuguesa de

Porto Alegre se constitui na seguinte forma (séries) por natureza da documentação:

Natureza da documentação

Série 1 Financeiro

Série 2 Patrimônio (levantamentos)

5 O historiador Daniel Oliveira, que atuou como voluntário ao longo de todo o projeto, apresentou como trabalho de conclusão no curso de História, na UNISINOS, a pesquisa intitulada: “Porto dos degenerados - Os enfermos acometidos por doenças venéreas internados nos hospitais Santa Casa de Misericórdia e Beneficência Portuguesa de Porto Alegre entre os anos de 1881 e 1892”. Como indica o título foram usados como fonte primária alguns livros de baixa de pacientes envolvidos no presente convênio, analisando, desta forma, diversos aspectos da sociedade porto-alegrense de fins do século XIX.

Série 3 Entrada de pacientes

Série 4 Registros de associados

Série 5 Cemitério

Série 6 Diversos

Série 7 Relatórios, regulamentos, estatutos

Série 8 Atas

Quadro6 1: natureza da documentação por séries

Entre os documentos da série 1, se encontram códices que relatam a movimentação

financeira. Sejam livros caixa, de registros de contas, registros de compras, pagamentos

de sócios entre outros relacionados com finanças; sejam finanças do hospital, da

sociedade e do retiro da velhice (lar de idosos da sociedade). Esta série cobre

praticamente todo o período de existência da Sociedade e do Hospital, de maneira que

ficam poucas lacunas.

A série 2 apresenta documentação referente ao patrimônio e bens da Sociedade,

bem como plantas baixas dos imóveis e prédios pertencentes, tornando-se assim essa

documentação importante referência para estudos, inclusive de arquitetura histórica.

Apresenta também dados sobre o mobiliário e materiais presentes no hospital nos

séculos XIX e XX, o que pode possibilitar diversos estudos sobre as condições

materiais do hospital em diferentes épocas.

É possível também, a partir deste acervo, colher informações sobre quais eram

as doenças mais comuns que atingiam a população Rio-Grandense (série 3); quem eram

os internados (sua nacionalidade [nos registros são encontrados imigrantes de vários

países do mundo, tais como franceses, alemães, italianos, entre outras nacionalidades],

sexo, idade, entre outros dados); quais os tratamentos e alimentos oferecidos aos

doentes; qual o tempo de reabilitação dos internados, e também, sendo possível analisar

a própria evolução da medicina e de suas técnicas, entre outras informações referentes à

história da medicina, do cotidiano hospitalar, da saúde e das doenças.

Ainda na série 3, são apresentados dados sobre enfermos particulares e enfermos

sócios, que se trabalhados juntamente com documentos da série 4 (Registro de Sócios),

podem gerar importantes estudos sobre história das elites ou associativismo. Nestes

6 Quadro elaborado pelos autores do artigo.

registros é possível verificar a nacionalidade e cidade de residência do associado, os

valores para obter o título de sócio, bem como das mensalidades. Torna-se possível

observar, também, quais eram os benefícios que o associado poderia usufruir fazendo

parte da Sociedade.

Na série 5 são encontradas informações referentes ao arrendamento e compra de

lotes do cemitério, registros de sepulturas, contratação de carros e de terceiros para

transporte do caixão até o cemitério etc. Fontes estas que podem ser utilizadas para

estudos de população, morte, entre outros.

A série 6 é dedicada à documentos de natureza diversa. Fazem parte desta série,

desde jornais e impressos até correspondências expedidas e recebidas. Aqui podemos

estender as temáticas de pesquisa para além da história da saúde, da medicina e do

associativismo, alcançando também outros aspectos diversos.

Regulamentos internos do Hospital da Sociedade de Beneficência Portuguesa de

Porto Alegre, estatutos da mesma sociedade, relatórios anuais e diversos desta e de

outras sociedades de beneficência do estado e do país podem ser encontrados na série 7.

Na série 8, são encontradas diversas atas de reuniões e assembléias, inclusive, a de

fundação da Sociedade. Por meio destes documentos é possível colher as mais diversas

informações relativas ao funcionamento do Hospital, suas aquisições materiais, situação

financeira, processos internos investigativos referentes a acontecimentos (das mais

diversas naturezas) ocorridos no interior do Hospital7, sobre a posição dos altos

membros da Sociedade frente às mudanças na sociedade brasileira e porto-alegrense no

decorrer dos anos, entre outras. Enfim, nestes documentos é possível encontrar de forma

pormenorizada diversas informações que possibilitam remontar a história e histórias do

Hospital e da Sociedade de Beneficência Portuguesa de Porto Alegre.

Dentro destas séries documentais (e considerando a impossibilidade de descrever

o acervo por completo neste artigo), eis alguns exemplos de códices e documentos

encontrados:

• Livros ata: nestes livros ficaram registradas as reuniões dos principais

membros do quadro administrativo do Hospital e da Sociedade;

7 Dentre estes casos, destaca-se o inquérito sobre uma discussão ocorrida, em 1884, entre um associado enfermo e o tesoureiro da Sociedade, onde foram ouvidas cinco testemunhas que narraram os acontecimentos e que acabou resultando no afastamento da Sociedade, por seis meses, de Joaquim da Costa Lessa (sócio enfermo).

• Livros caixa: nestes códices é possível encontrar informações referentes às

movimentações financeiras da Sociedade e Hospital;

• Livros dos Sócios: contém a listagem das pessoas que integravam a

Sociedade Beneficência Portuguesa, bem como dados de suas respectivas

funções junto à Sociedade, local de residência, idade, nacionalidade, entre

outras informações;

• Tratamento aos doentes: constam os medicamentos comprados e utilizados, a

alimentação administrada aos enfermos, bem como as formas de higiene

utilizadas;

• Relação dos entrados na enfermaria: nele encontramos a identificação dos

pacientes - estado civil, idade, doença, tratamento e evolução do seu quadro

clínico;

• Livros das Sepulturas/Cemitério: constam as listagens das sepulturas e dos

arredamentos (lotes do cemitério da Sociedade Beneficência Portuguesa).

Em todos estes documentos temos incluídos em suas informações diversos

aspectos da vida social rio-grandense. Essas informações nos trazem a organização

administrativa da instituição, a sua finalidade, aspectos da relação estabelecida entre

Brasil e Portugal após a independência, e é claro, o associativismo da comunidade

portuguesa em Porto Alegre e também no Rio Grande do Sul. Observando alguns

documentos do acervo, constatamos que no início de sua história, em seu primeiro livro

de sócios, a Sociedade de Beneficência de Porto Alegre contava com uma grande

quantidade de sócios residentes em Pelotas e Rio Grande, cidades estas que

posteriormente, por iniciativa dos portugueses lá residentes, criaram suas próprias

sociedades de beneficência.

Além disso, encontrar-se-ão, também neste acervo, dados sobre a história social

do trabalho livre e escravo (funcionários do Hospital, serviços de terceiros, e também,

escravos que eram utilizados para prestar serviços à Sociedade/Hospital); dos salários;

dos custos com alimentação, remédios, roupas; das práticas funerárias; da organização

das elites, entre outros. Desta forma, o trabalho de recuperação e organização do acervo

da Sociedade de Beneficência Portuguesa de Porto Alegre, que foi arduamente realizado

entre os anos de 2007-2009, e por hora aqui apresentado, possibilitou o acesso a uma

infinidade de informações potenciais para diversas pesquisas, que podem ser realizadas

por meio de consulta e análise deste acervo.

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