Saúde e Democracia - A Luta Do CEBES

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Saúde e Democracia - A Luta Do CEBES

Citation preview

  • SADE ESADE ESADE ESADE ESADE EDEMOCRACIADEMOCRACIADEMOCRACIADEMOCRACIADEMOCRACIA

    A LUTA DO CEBESA LUTA DO CEBESA LUTA DO CEBESA LUTA DO CEBESA LUTA DO CEBES

    Sonia Fleury(organizadora)

  • 2 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    SADE E DEMOCRACIA A LUTA DO CEBES

    Copyright 1997 Sonia Fleury

    Proibida a reproduo total ou parcial deste livro, por qualquermeio ou sistema, sem prvio consentimento da editora.

    Todos os direitos desta edio reservados :

    LEMOS EDITORIAL & GRFICOS LTDA.Rua Rui Barbosa, 70 - Bela Vista01326-010 - So Paulo/SPTel.: (011) 251-4300

    Sade e democracia: a luta do CEBES/Sonia Fleury(organizadora). So Paulo: Lemos Editorial, 1997.

    Vrios autores.

    Bibliografia1. CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Sade)2. Democracia 3. Poltica e sade 4. Sade pblica5. Sade pblica Aspectos sociais I. Fleury, Sonia.

    973431 CDD362.1

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Sade pblica: Aspectos sociais: Bem-estar social 362.1

    ISBN 85-85561-43-2

    Impresso no Brasil

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)Cmara Brasileira do Livro, So Paulo, Brasil

  • 3SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    ndicendicendicendicendice

    Autores ....................................................................................................................................... 5

    Introduo.................................................................................................................................. 7

    Sade como Paradigma

    Bases conceituais da reforma sanitria brasileira .............................................................. 11Jairnilson Silva Paim

    A questo democrtica na sade.......................................................................................... 25Sonia Fleury

    Condies de Vida

    Sade da populao brasileira: mudanas, superposiode padres e desigualdades .................................................................................................. 45

    Maurcio Lima Barreto, Eduardo Hage Carmo, Carlos Antonio de S. T. Santos

    Reforma do Estado

    A via do parlamento .............................................................................................................. 63Eleutrio Rodrigues Neto

    Conselhos de sade, responsabilidade pblica e cidadania:a reforma sanitria como reforma do Estado ..................................................................... 93

    Antonio Ivo de Carvalho

    Anlise crtica das contribuies da sade coletiva aorganizao das prticas de sade no SUS ...................................................................... 113

    Gasto Wagner de Sousa Campos

    O SUS e um dos seus dilemas: mudar a gesto e a lgica do processode trabalho em sade (um ensaio sobre a micropoltica do trabalho vivo) ................ 125

    Emerson Elias Merhy

    Gesto em sade: o desafio dos hospitais como refernciapara inovaes em todo o sistema de sade .................................................................... 143

    Pedro Ribeiro Barbosa

    Loucura, cultura e subjetividade. Conceitos e estratgias,percursos e atores da reforma psiquitrica brasileira ..................................................... 163

    Paulo Amarante

    Direito sanitrio: inovao terica e novo campo de trabalho ...................................... 187Sueli Gandolfi Dallari, Paulo Antonio de Carvalho Fortes

  • 4 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Desafios

    Do biolgico e do social. Um pequeno balano .............................................................. 205Ricardo Lafet Novaes

    Da biotica privada biotica pblica ...................................................................... 227Roland Schramm

    O poder regulamentador do Estado sobre asaes e os servios de sade ............................................................................................... 241

    Lenir Santos

    Trabalhadores da sade: uma nova agenda de estudossobre recursos humanos em sade no Brasil ................................................................... 281

    Lilia Blima Schraiber, Maria Helena Machado

    Produo farmacutica e de imunobiolgicos no Brasil:a necessidade de um novo padro de interveno estatal ............................................. 299

    Carlos Augusto Grabois Gradelha, Jos Gomes Temporo

  • 5SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    AutoresAutoresAutoresAutoresAutores

    Antnio Ivo de CarvalhoMdico Sanitarista, Mestre em Sade Pblica, Professor e pesquisador do NUPES/ENSP/FIOCRUZ

    Carlos Antonio de S. T. SantosEstatstico, Mestre em Sade Comunitria, Doutorando em Sade Pblica - ISC - UFBA

    Carlos Augusto Grabois GadelhaEconomista, Doutorando do Instituto de Economia da UFRJ e Membro da Assessoria de PlanejamentoEstratgico da Fundao Oswaldo Cruz

    Eduardo Hage CarmoMdico, Mestre em Sade Comunitria, Doutorando em Sade Pblica - ISC - UFBA

    Eleutrio Rodrigues NetoMdico, professor de sade coletiva da Universidade de Braslia, ex-presidente do CEBES, ex-secretriogeral do MS (85-86)

    Emerson Elias MerhyMdico Sanitarista e Professor da UNICAMP Campinas/1996

    F. Roland SchrammProfessor de Biotica e de Filosofia da Cincia. Pesquisador Adjunto da Fundao Oswaldo Cruz/Escola Nacional de Sade Pblica/Departamento de Cincias Sociais.

    Gasto Wagner de Sousa CamposMdico Sanitarista e Professor de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da UNICAMP.

    Jairnilson Silva PaimProfessor Adjunto do Instituto de Sade Coletiva da Universidade Federal da Bahia Pesquisador 1-Ado CNPQ

    Jos Gomes TemporoProfessor da Escola Nacional de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz e ex-Presidente Nacionaldo CEBES

    Leila Denise Alves FerreiraEstatstica, Bolsista do CNPQ - ISC - UFBA

    Lenir SantosProcuradora da UNICAMP. Presidente do Conselho Superior do Instituto de Direito Sanitrio Aplicado- IDISA

  • 6 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Lilia Blima SchraiberProfessora da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo - USP - Departamento de MedicinaPreventiva, So Paulo, Brasil.

    Maria Helena MachadoProfessora da Escola Nacional de Sade Pblica, Coordenadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas emRecursos Humanos em Sade/ DAPS - Fiocruz - Rio de Janeiro, Brasil.

    Maurcio Lima BarretoMdico, PhD em Epidemiologia, Professor Adjunto do Instituto de Sade Coletiva - UniversidadeFederal da Bahia

    Sueli Gandolfi DallariDiretor, Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitrio, Livre-docente em Direito Sanitrio,Universidade de So Paulo

    Paulo AmaranteMestre em Medicina Social, Doutor em Sade Pblica, Coordenador do Laboratrio de Estudos ePesquisas em Sade Mental (LAPS), do Ncleo de Estudos Poltico-Sociais em Sade (NUPES), daEscola Nacional de Sade Pblica/Fiocruz. Presidente Nacional do CEBES

    Paulo Antonio de Carvalho FortesProfessor-Doutor, Faculdade de Sade Pblica da Universidade de So Paulo

    Pedro Ribeiro BarbosaProfessor/Tecnologista da Escola Nacional de Sade Pblica FIOCRUZ; Coordenador de Ensino SensuLato e do Programa de Formao em Gesto Hospitalar.

    Ricardo Lafet NovaesProfessor Doutor da Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (USP) - Departamento deMedicina Preventiva, So Paulo, Brasil.

    Sonia FleuryProfessora da Escola Brasileira de Administrao Pblica- EBAP da Fundao Getlio Vargas,Psicloga, Mestre em Sociologia, Doutora em Cincias Polticas

    Sueli Gandolfi DallariDiretora, Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitrio, Livre-docente em Direito Sanitrio,Universidade de So Paulo.

  • 7SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    IntroduoIntroduoIntroduoIntroduoIntroduo

    Este no um livro de memrias e nem sequer a histria oficial do CEBES. Ainiciativa de celebrar os 20 anos das lutas do CEBES pela democratizao da sadepartiu da necessidade de reafirmar, na conjuntura atual de revitalizao das ideologiase polticas conservadoras, no apenas as bandeiras que foram empunhadas duranteestes anos, mas tambm as conquistas que alcanamos como fruto de todo este processo.

    Quando a reforma do Estado tem sido reduzida, meramente, a seu contedotecnico-gerencial, que, ainda que essencial, no d conta, ou mesmo pretende, alterar aprpria natureza do Estado enquanto poder institucionalizado, preciso lembrar que aReforma Sanitria, que foi gestada no interior do CEBES, , essencialmente, uma reformademocrtica do Estado, que em muito transcende o mbito setorial.

    intido em nossa histria de autoritarismos vrios, a capacidade de formularuma reforma social to profunda desde a sociedade, construindo ao mesmo tempo umprojeto e seus atores, de tal forma que logrou alcanar a hegemonia necessria para setransformar em poltica pblica. A interao sociedade/Estado/sociedade, nesteprocesso, elucidativa das inmeras possibilidades que podem ser criadas pelademocracia, sem ser preciso que adotemos ou um medidas autoritrias to ao gosto denossas elites de planto, nem mesmo um modelo liberal de democracia que estranho nossa cultura poltica e s nossas instituies.

    No apenas as mudanas profundas na conjuntura internacional, gerando novasmodalidades de produo e de articulao a uma economia cada vez mais globalizadasob a hgide de valores individualistas e pouco solidrios, mas tambm as prpriascontradies geradas no processo de institucionalizao do SUS-Sistema nico de Sade,demarcaram os limites, possibilidades, paradoxos e desafios que esto por ser enfren-tados.

    A vontade de celebrar os 20 anos do CEBES nos levou a buscar comemorar esta datade uma maneira que mantivesse o mesmo esprito que podemos identificar como cebiano: aabertura de um dilogo, atravs de uma publicao que pudesse socializar a polmicadesenvolvida por alguns autores acerca das questes que nos inquietam atualmente. Paratanto, seria necessrio resgatar a dialtica relao entre produo do conhecimento eorientao da prtica poltica, que to bem caracterizou a trajetria do CEBES.

    Neste sentido, esta coletnea no trata apenas do nosso passado, ou meramenteespecula sobre o futuro, trata de entender as questes do presente, que so fruto denossa histria e cuja resposta encaminhar o amanh. Para to estimulante tarefaconvidamos alguns companheiros a participar conosco do debate que estruturamos emquatro partes:

    A Sade como Paradigma, onde os textos de Jairnilson Paim e Sonia Fleurybuscam analisar o paradigma sanitrio e o paradigma poltico da reforma sanitria.

    Nas Condies de Vida da Populao Brasileira o texto de Mauricio Barreto ecolaboradores procura dar conta das transformaes ocorridas no perfil epidemiolgico

  • 8 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    nacional, durante este ltimos 20 anos, dando um sentido de realidade s nossas espe-culaes, seguindo o conselho de nosso amigo Giovanni Berlinguer.

    Na Reforma do Estado, Eleutrio Rodrigues analisa a estratgia e tticas ado-tadas ao privilegiar a via do parlamento para transitar a reforma, Antonio Ivo deCarvalho reflete sobre a construo da cidadania e as alteraes introduzidas no Estadopor meio da gesto colegiada, Gasto Campos polemiza ao analisar as prticas de sadeno SUS, enquanto Emerson Merhy avalia os dilemas do SUS a partir da necessidade demudar a lgica do processo de trabalho, Pedro Barbosa discorre sobre os desafios dagesto hospitalar, Paulo Amarante reconstitui e analisa a trajetria da ReformaPsiquitrica e sua contribuio ao resgate do sujeito e Sueli Dallari e Paulo A. C. Fortesresgatam a inovao representada pela constituio do direito sanitrio como campoterico e de prtica social.

    Nos Desafios, Ricardo Lafet enfreta a dificil tarefa de fazer um balano darelao biolgico/social em nossa produo terica e na prtica poltica, Roland Schrammprenuncia a passagem de uma tica individual para uma tica pblica, Maria HelenaMachado e Lilia Schraiber propem uma nova agenda para os estudos dos recursoshumanos em sade enquanto Carlos Gadelha e Jos Gomes Temporo propugnam porum novo padro de interveno estatal na produo de frmacos e imunobiolgicos.

    Certamente muitas outras questes poderiam ser acrescentadas estas, e certa-mente o sero. No tivemos a pretenso de sermos capazes de dar conta de todas asmltiplas temticas, anlises e perspectivas que seria possvel produzir ao tomar comoobjeto as lutas do CEBES. Neste sentido, esta uma viso necessriamente parcial, epor isto convida ao debate. Dentro das limitaes enfrentadas, procuramos ser fiis trajetria e aos valores que orientaram as prticas do CEBES: a necessidade buscar nateoria a anlise correta da realidade, de tal forma que seja possvel gerar uma prticapoltica capaz de transform-la a partir de uma nova configurao desejada, um projetoconsensualmente pactado entre as foras sociais que buscam a democratizao da sadee do Brasil.

    SONIA FLEURY

  • 9SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Sade como ParadigmaSade como ParadigmaSade como ParadigmaSade como ParadigmaSade como Paradigma

  • 10 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

  • 11SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Bases ConceituaisBases ConceituaisBases ConceituaisBases ConceituaisBases Conceituaisda Reforma Sanitria Brasileirada Reforma Sanitria Brasileirada Reforma Sanitria Brasileirada Reforma Sanitria Brasileirada Reforma Sanitria Brasileira

    INTRODUO

    O movimento pela democratizao da sade que tomou corpo no Brasil durantea segunda metade da dcada de setenta possibilitou a formulao do projeto da ReformaSanitria Brasileira, sustentado por uma base conceitual e por uma produo terico-crtica. Diversos estudos e artigos publicados nos ltimos vinte anos, especialmenteatravs do Centro Brasileiro de Estudos de Sade (CEBES), atestam a vitalidade dessemovimento e, contemplam, com distintas nfases, os aspectos poltico-ideolgicos,organizativos e tcnico-operacionais da Reforma Sanitria. Mesmo que o debatedesenvolvido no chegue a configurar um novo paradigma (Fleury, 1992), teve aimportncia de questionar a concepo de sade restrita dimenso biolgica eindividual, alm de apontar diversas relaes entre a organizaos dos servios de sadee a estrutura social.

    No presente texto, procurar-se- discutir certos elementos da base conceitual desseprojeto que permitiram o questionamento do paradigma biomdico dominante naspolticas pblicas e nas instituies sanitrias bem como a busca de paradigmasalternativos.

    O termo paradigma originado do grego com o sentido de mostrar, manifestar(Garcia, 1971). Utilizado na anlise do desenvolvimento cientfico (KUHN, 1975), traziaa idia de um conjunto de pressupostos, conceitos e valores aceitos e compartilhadospor uma comunidade cientfica em uma determinada disciplina. Nas palavras do referidoautor paradigmas seriam as realizaes cientficas universalmente reconhecidas que, durantealgum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes deuma cincia (Kuhn, 1975:13). Em determinados momentos de crise, entretanto, ocorreriauma ruptura em relao ao conjunto vigente com a emergncia de teorias cientficasestabelecendo-se novos enfoques para uma disciplina em questo. nessa acepo maisprecisa que a noo de paradigma tem sido empregada em epistemologia. Contudo,no ser a privilegiada neste texto.

    Outra conotao do termo paradigma aproxima-o idia de modelo. Representariauma forma simplificada e esquemtica de expressar a realidade, isto , a apresentaode um fenmeno atendendo somente s suas caractersticas mais significativas (Garcia,1971). Trata-se, portanto, de um objeto artificial ou abstrato-formal concebido parareproduzir nas suas leis e seus efeitos os fenmenos relacionados com os objetos reaisou empricos (Almeida Filho & Paim, 1982). No caso da sade, a clssica trade doagente-hospedeiro-ambiente empregada para ilustrar a multicausalidade seria umexemplo. Do mesmo modo, o modelo da histria natural da doena (Arouca, 1976) ao

  • 12 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    indicar os diferentes estgios do processo sade/doena, incluindo os perodos pr-patognico e patognico, seria um outro exemplo. No que diz respeito organizao deservios de assistncia sade, o enfoque sistmico representou um paradigmapredominante nos estudos e propostas referentes ao setor sade, especialmente nasdcadas de setenta e oitenta.

    H ainda um uso frequente da expresso paradigma que corresponde a umconjunto de noes, representaes e crenas, relativamente compartilhadas por umdeterminado segmento de sujeitos sociais tornando-se um referencial para a ao. Essaidia de paradigma, ainda que se aproxime a do senso comum, tem sido utilizadafrequentemente em diversos campos e, em particular, no mbito da sade.

    Como a concepo que orientou a elaborao deste livro teve como perspectivaso resgate e a crtica da ideologia do movimento sanitrio, alm do balano das suasprticas e bases conceituais, tomaremos emprestada a noo de paradigma sanitrio,associada s duas ltimas acepes em vez daquela mais rigorosa concernente aabordagem kuhniana.

    AS CONCEPES DE SADE DO MOVIMENTO SANITRIO

    Para apreender as concepes de sade que constituiram o paradigma sanitriofaz-se necessrio examinar, preliminarmente, o movimento reformista atravs do seubrao acadmico: os departamentos de medicina preventiva e social e as escolas desade pblica ou seus equivalentes. Nesse particular, caberia recuperar parte do marcoconceitual do movimento preventivista, especialmente no que se refere proposta daMedicina Integral (Comprehensive Medicine) como disciplina do currculo mdico (Silva,1973) e a sua estratgia de operacionalizao nos servios de sade, ou seja, a MedicinaComunitria (Paim, 1976; Donnngelo, 1976).

    No caso da Medicina Integral, o modelo da histria natural das doenas (HND)assumia na fase pre-patognica a concepo ecolgica do processo sade/doena,representada por uma balana em que um dos pratos era constitudo pelo agente e ooutro pelo hospedeiro (o indivduo) e o ponto de apoio ou fulcro era representado peloambiente (fsico, biolgico e scio-cultural). Na etapa patognica, o modelo recorria fisiopatologia para indicar a evoluo das leses ou alteraes fsico-qumicas no corpoantomo-fisiolgico. Para cada um desses estgios era possvel acoplar ao modelo osdistintos nveis de preveno - promoo, proteo, diagnstico precoce, limitao dodano (recuperao) e reabilitao. Assim, as medidas de promoo e proteo sadeaplicadas aos indivduos na fase pr-patognica corresponderiam a chamada prevenoda ocorrncia. J as aes realizadas no perodo patognico visando o diagnsticoprecoce, a recuperao e a reabilitao da sade corresponderiam preveno daevoluo. Consequentemente, no marco conceitual erigido pelo movimentopreventivista encontravam-se o modelo HND e as noes de multicausalidade, normal,patolgico e processo sade/doena. Incorporava-se, portanto, uma viso ontolgica euma viso dinmica acerca da desenvolvimento da doena, sugerindo um mododuplamente otimista de enfrentar os agravos sade, seja eliminando o agente, sejarestaurando o equilbrio (Arouca, 1976).

  • 13SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    No que se refere Medicina Comunitria, constata-se uma busca de raciona-lidade para os servios de sade enfatizando-se noes outras como regionalizao ehierarquizao de servios, participao comunitria, multiprofissionalidade, etc(Cordoni, s/d). Atravs de projetos de demonstrao (momento focal) e de programasde extenso de cobertura (momento ampliado) novos aportes conceituais, metodolgicose operativos surgiram a partir das disciplinas de planejamento e administrao taiscomo anlises de custo-benefcio e custo-efetividade, programao, planejamentoparticipativo, sistema de informao, etc (Paim, 1986).

    Na medida em que a compreenso e crtica das propostas de Medicina Preven-tiva e de Medicina Comunitria eram desenvolvidas no Brasil e em alguns pases latino-americanos, com estmulo de certos setores da Organizao Panamericana de Sade(OPS), verificou-se um renascimento da Medicina Social inspirada nos princpios quefundamentaram a sua emergncia na Europa em meados do sculo XIX. Nessas tentativasde delimitao do campo disciplinar eram explicitados os contedos do novo paradigma:

    Considera-se sade e doena como um nico processo que resulta da interao do homemconsigo mesmo, com outros homens na sociedade e com elementos biticos e abiticos do meio.Esta interao se desenvolve nos espaos sociais, psicolgico e ecolgico, e como processo temdimenso histrica (...). A sade entendida como o estado dinmico de adaptao a mais perfeitapossvel s condies de vida em dada comunidade humana, num certo momento da escala histrica(...). A doena considerada, ento, como manifestao de distrbios de funo e estruturadecorrentes da falncia dos mecanismos de adaptao, que se traduz em respostas inadequadasaos estmulos e presses aos quais os indivduos e grupos humanos esto continuamente submetidosnos espaos social, psicolgico e ecolgico (Silva, 1973:31-32).

    Nesse sentido, a produo terica desenvolvida nas dcadas de setenta e de oi-tenta permitia apontar a emergncia de um paradigma alternativo em Sade Coletivacentrado em dois conceitos fundamentais: determinao social das doenas e processo detrabalho em sade. O entendimento de que a sade e a doena na coletividade no podemser explicadas exclusivamente nas suas dimenses biolgica e ecolgica, porquanto taisfenmenos so determinados social e historicamente, enquanto componentes dosprocessos de reproduo social, permitia alargar os horizontes de anlise e de intervenosobre a realidade. No cabe no momento revisar a significativa produo cientfica dessacorrente terica mas assinalar que este paradigma orientava muitas das proposies domovimento de democratizao da sade, no apenas no que se referia sade dotrabalhador e s polticas de sade, mas naquilo que dizia respeito a uma totalidade demudanas que passava pelo setor sade e implicava alteraes mais profundas em outrossetores, no Estado, na sociedade e nas instituies (Paim, 1992).

    Entendendo o movimento sanitrio como um conjunto organizado de pessoas egrupos partidrios ou no, articulados ao redor de um projeto (Escorel, 1988:5), trs tipos deprticas foram identificadas pela autora para a sua caracterizao: a prtica terica (aconstruo do saber), a prtica ideolgica (a transformao da conscincia) e a prticapoltica (a transformao das relaes sociais). Ainda que o estudo dessas diferentesprticas seja fundamental para a compreenso do movimento, parece insuficiente pararesponder certas questes presentemente postas no processo da Reforma,particularmente no que se refere ao momento ttico-operacional.

    Essas prticas identificadas no mbito do movimento representam distintas di-menses da prtica social mas no a esgotam. Entendendo prtica social como con-junto das prticas que se inter-determinam dentro de um todo social dado (Herbert, 1976:200),

  • 14 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    caberia destacar a questo das prticas de sade que integram esse conjunto complexo deprticas presentes em um processo social. As prticas de sade constituem, tambm,uma prtica social mas retm suas especificidades. Tais prticas se articulam e dispem,concomitantemente, de elementos tcnicos e sociais (econmicos, polticos e ideolgicos).So, enfim, prticas estruturadas de classe (Donnngelo, 1976; Mendes-Gonalves, 1979).

    Procedendo uma analogia com o movimento preventivista - um dos principaisfundamentos tericos do movimento sanitrio que deu origem ao processo hoje denominadoReforma Sanitria (Fleury, 1988:195), esta autora sugeria um novo paradigma para talprojeto:

    Partindo da anlise dos processos de trabalho e do conceito-chave de organizao socialda prtica mdica, tal movimento opera uma leitura socializante da problemtica evidenciadapela crise da medicina mercantilizada bem como de sua ineficincia, enquanto possibilidade deorganizao de um sistema de sade capaz de responder as demandas prevalentes, organizado deforma democrtcia em sua gesto e administrado com base na racionalidade do planejamento(Fleury, 1988:196).

    Nessa perspectiva, o conceito ampliado de sade e dos seus determinantesassumido pela 8 Conferncia Nacional de Sade e posteriormente incorporado pelaConstituio da Repblica e pela legislao infra-constitucional fundamenta-se em parteda produo terico-crtica da Sade Coletiva no Brasil. Do mesmo modo, os princpiose diretrizes relativos ao direito sade, cidadania, universalizao, equidade, ademocracia e a descentralizao conferem uma atualidade dessa produo, sobretudopela contribuio das cincias sociais ao campo da Sade Coletiva. J as propostas desistema nico de sade, de rede regionalizada e hierarquizada de servios de sade, deatendimento integral, de participao da comunidade, e de aes de promoo, proteoe recuperao da sade, presentes naquele arcabouo jurdico, tiveram como matrizconceitual o paradigma originrio do movimento preventivista e da sade comunitria.

    OS OBSTCULOS DA PRTICA DA REFORMA SANITRIA

    Os impasses relativos realizao dos princpios e diretrizes da Reforma Sani-tria nas relaes entre os servios de sade, trabalhadores do setor e os usurios/cidados no podem ser explicados, obviamente, pelos limites dos seus paradigmas.Existem situaes muito concretas e objetivas que tm sido apontadas como responsveispelas distores verificadas nas tentativas de implantao do projeto da ReformaSanitria (Paim, 1989), ao se distanciar do que fora concebido originalmente, tal comose pode verificar no trecho:

    A anlise da conjuntura no indica, portanto, um tempo prximo favorvel concretizaode todas as proposies formuladas na VIII CNS. Evidentemente que certos avanos poderoocorrer a partir dos resultados da implantao do SUDS, nos textos das constituintes estaduaise das leis orgnicas dos municpios e da sade, entre outros. Mas a crise fiscal do Estado noparece ter soluo prxima. A dvida externa constrange a economia e o financiamento dos serviospblicos fica comprometido. Se o SUDS era uma possibilidade da passagem de polticasracionalizadoras para polticas democratizantes do setor sade, a Reforma Sanitria, enquantoexpresso dessas ltimas, impensvel sem os investimentos necessrios ampliao da redepblica de servios (Paim, 1991:114).

  • 15SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Desse modo, distintas perspectivas de anlise e de posies poltico-ideolgicasapontaram para muitas das ambiguidades do projeto reformista (Gallo, 1995). O debateverificado ao final dos oitenta sobre a natureza e o estgio da Reforma Sanitria Brasileirailustra parcialmente seus impasses. Muitos questionamentos foram feitos porcompanheiros que defendiam a Reforma Sanitria movidos, certamente, pelo intuito defaz-la avanar o mais rapidamente possvel, sem comprometer os seus traos funda-mentais. compreensvel que muitos centrassem a sua ateno no apenas naquilo queconsideravam mais importante para o avano mas, tambm, em funo de posiespoltico-ideolgicas e de inseres poltico-institucionais diversas. O trecho a seguirilustra parte daquelas ambiguidades:

    As Aes Integradas de Sade (AIS) eram consideradas como estratgicas para aimplantao da Reforma Sanitria mas a sua defesa no deveria representar nenhum empecilhopara seu incio (da Reforma). Os Sistemas Unificados e Descentralizados de Sade (SUDS) soconsiderados como um passo fundamental para a Reforma, assim como a criao de um Sistemanico de Sade. Ambos, porm, no devem ser confundidos com a prpria Reforma (Arouca,1988:2).

    Se a Reforma Sanitria no eram as AIS, no eram os SUDS nem o SUS, o queseria, afinal, a Reforma Sanitria? Talvez essa fosse uma das perguntas que maisatormentava as cabeas dos seus militantes. Tratar-se-ia de um ideal a ser perseguidoque, apesar dos passos dados, jamais seria alcanado? Ou seriam apenas manifestaesparciais de uma totalidade na dependncia do ngulo pelo qual se dirigisse o olhar?

    Ainda que no se questionasse o projeto da Reforma Sanitria nem a busca deuma teoria para o mesmo, foi criticada a via prussiana de operar modificaes refor-mistas no modelo assistencial e aqueles que estavam adotando uma concepo restritada Reforma Sanitria escudados em um pensamento de fundo conservador, o da dialtica dopossvel (Campos, 1988:189).

    Se a Reforma Sanitria um processo que passou pelas AIS e SUDS, ainda queno se confundisse com os mesmos, sofreu a implantao distorcida do SUS (conduzidapor muitos dos seus oponentes), e no se restringe a uma reforma administrativa, caberiaresgatar nesse tortuoso percurso, at mesmo para reforar o moral dos militantes ecombatentes, as vitrias conquistadas e os elementos eventualmente concretizados. Osesforos para a unificao e descentralizao (Cordeiro, 1991; Brasil, 1993), bem comoas tentativas, de mudana do modelo assistencial hegemnico (Teixeira & Paim, 1990;Merhy et alii, 1991; Campos, 1992; Mendes, 1993; Ceclio, 1994; Ayres, 1994; Teixeira &Melo, 1995; Schraiber et alii, 1996) nos ltimos anos, inscrevem-se nesse resgate.

    Contudo, compe a radicalidade do projeto a conscincia de que o mesmo in-tegra uma totalidade de mudanas, inclusive de rdem tica e cultural. Nesse sentidodeve fazer parte dessa radicalidade uma certa distncia entre realidade e projeto namedida em que novos propsitos sejam historicamente estabelecidos. No fora assim orisco seria o conformismo e o conservadorismo. Mas a referncia a uma Reforma quenunca se reconhece na realidade, enquanto processo, e uma reiterao obsessiva do queno Reforma Sanitria tem tambm o risco do fatalismo e do imobilismo.

    Se a leitura da crise do setor sade efetuada pelo projeto da Reforma implicava areorganizao dos sistema de sade, a gesto democrtica e o planejamento participativo,como no considerar, seriamente, os resultados alcanados nesses componentes tcnico-institucionais? Se a unidade dialtica entre a construo de um saber, a ideologia e as

  • 16 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    prticas tem uma histria que precisa ser contada e ensinada, a unidade dialtica dateoria da Reforma Sanitria com a prxis no sistema de servios de sade tem que ser,progressivamente, posta em prova gerando acumulaes de fatos poltico-sociais.

    No parece convincente, portanto, aguardar o Grande Dia em que seria decla-rada, finalmente, a implantao da Reforma Sanitria. Muito menos esperar que todosos objetivos perseguidos resultem aes concretas a partir das prticas terica, polticae ideolgica do movimento sanitrio. Se o triedro da Sade Coletiva o conhecimento,a conscincia sanitria e a organizao do movimento e as trs faces da luta contra-hegemnica so o saber, a ideologia e a prtica poltica (Fleury, 1988), cabe discutir,concretamente, onde realiz-los. Tratar-se-iam de elementos exclusivos dos movimentossociais que operam na sociedade civil e tm horror do Estado e dos seus aparelhos ou,enquanto componentes da contra-hegemonia deveriam ser acionados na arena de lutaque a realidade apresentasse, seja no Estado ampliado, seja nas instituies, seja nasociedade civil no sentido estrito.

    Mesmo no incio do processo da Reforma Sanitria esta era vista como um projetosocial que enfrenta impasses na construo e na conduo - aspectos do denominadodilema reformista (Fleury, 1988) e j se questionava se o paradigma adotado seria capazde dar conta da complexidade e da abrangncia do projeto. Reconhecia-se, ainda, que aatuao governamental tende a tornar absolutos os aspectos racionalizantes da Reforma Sanitria,minando, dessa forma, sua base poltica, imprescindvel para que essse processo transcenda oslimites administrativos (Fleury, 1988:204). Isto faz supor que a insistncia de distinguir aReforma Sanitria enquanto projeto relativamente puro do seu processo em queapareceriam seus elementos contraditrios de concretizao, sejam racionalizadores, sejamdemocratizantes, corresponderia a cautela de no reforar seus componentes tcnico-administrativos e tcnico-operacionais s custas do sacrifcio de uma base social, uma coalizode foras, cuja unidade construida em torno do desejo, da utopia (Fleury, 1988:205).

    Para alm da polmica entre a dialtica do possvel e a dialtica do desejohavia uma ameaa mais grave pairando sobre todos:

    Este quadro fortalece a tese de que a Reforma Sanitria no tem sada se confinada aoslimites de uma reforma administrativa setorial na qual a lei, simplesmente, estabelea a organizaodo Sistema nico de Sade. Permanecendo estreitas as suas bases financeira e poltica corre orisco de se desmoralizar perante a populao. Contra esses riscos novos esforos devem serenvidados nos campos cultural e poltico. A reconceitualizao das necessidades de sade e acrtica das prticas sanitrias apresentam-se como pertinentes deslocando-se a nfase da questodos servios para as condies de sade e seus determinantes. Tais alternativas precisam serexploradas para facilitar a repolitizao da sade numa conjuntura que tende a banalizar o projetoda Reforma Sanitria (Paim, 1991:115).

    DESAFIOS TERICOS E PRTICOS PARA A REFORMA SANITRIA BRASILEIRA

    No obstante certas perplexidades que acompanharam o processo reformista, aolado da crise de financiamento e dos retrocessos poltico-institucionais, significativosesforos terico-conceituais e tcnico-operativos foram realizados na primeira metadeda dcada de noventa buscando superar as lacunas tericas e as ausncias de prticassolidrias ao processo da Reforma Sanitria.

  • 17SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    No que diz respeito reconceitualizao das necessidades de sade, procura-se recu-perar os aspectos culturais envolvidos na sua definio e, especialmente, seus compo-nentes psicolgicos e subjetivos:

    Sade e doena, bem-estar e mal-estar so fenmenos no apenas fsicos que se manifestampelo bom ou mal funcionamento de um rgo, mas ao mesmo tempo possuem uma dimensopsicolgica que passa pelo vivenciar e pela emoo de cada indivduo. So fenmenos que possuemuma dimenso scio-cultural, coletiva, e outra psicobiolgica, individual, que no deveriam serdicotomizadas. Devem ento ser compreendidos enquanto parte do modo de organizao da vidacotidiana e da histria pessoal de cada um (Vaitsman, 1992:157-158).

    Ao questionar a noo economicista das necessidades humanas, a autora criticao chamado conceito ampliado de sade por restringir-se concepo de sade comoresultado das formas de organizao da produo. Mesmo admitindo que as relaesde classe geradas no processo social da produo determinem desigualdades nascondies de vida e de sade, ressalta que existem outros fatores tambm relevantescomo gnero, cor, idade, entre outros, que contribuem para acentuar tais desigualdades.Lembrando a existncia de um conjunto mais amplo de necessidades humanas -subsistncia, proteo, afeto, compreenso, participao, lazer, criao, identidade eliberdade - a autora apresenta a seguinte reconceitualizao de sade:

    A existncia de sade, que fsica e mental - est ligada a uma srie de condiesirredutveis umas s outras (...) produzida dentro de sociedades que, alm da produo, possuemformas de organizaao da vida cotidiana, da sociabilidadede, da afetividade, da sensualidade, dasubjetividade, da cultura e do lazer, das relaes com o meio ambiente. antes resusltante doconjunto da experincia social, individualizada em cada sentir e vivenciada num corpo que tambm, no esqueamos, biolgico. Uma concepo de sade no-reducionista deveria recuperaro significado do indivduo em sua singularidade e subjetividade na relao com os outros e como mundo. Pensar a sade hoje passa ento por pensar o indivduo em sua organizao da vidacotidiana, tal como esta se expressa no s atravs do trabalho mas tambm do lazer - ou da suaausncia, por exemplo - do afeto, da sexualidade, das relaes com o meio amiente. Uma concepoampliada da sade passaria ento por pensar a recriao da vida sobre novas bases (...) (Vaitsman,1992:171).

    No que se refere crtica s prticas sanitrias, poderia tambm ser entendida comocontribuio luta contra o risco da banalizao da Reforma Sanitria a reflexo tericasobre prticas de sade e tecnologias (materiais e no materiais), particularmente aelaborao do conceito de modelo de organizao tecnolgica do trabalho (Mendes-Gonalves,1991). O privilegiamento do conceito de prticas de sade poderia at no ser consideradona anlise poltica do movimento sanitrio ou no estudo da formulao de macro-polticas governamentais, mas seria imprescindvel para balizar a implementao deum projeto com a amplitude e a ousadia que marcaram a Reforma Sanitria. Tratarteoricamente a especificidade dessas prticas e induzir experincias crticas e inovadorasfazia-se necessrio no apenas para reformar o final da linha ou o colquio singular(Fleury, 1988) mas tambm para superar certos equvocos presentes na trincheira tcnico-institucional da luta pela construo da Reforma Sanitria Brasileira.

    Assim, as prticas de sade constituem uma prtica social e apresentam, simul-taneamente, uma dimenso tcnica e uma dimenso social (econmica, poltica e ideo-lgica). A tecnologia presente nas prticas de sade, por conseguinte, no uma questoexterna da prtica social devendo ser considerada nuclear para a sua redefinio.Aceitando-se a tese de que a Reforma Sanitria construida por um movimento que

  • 18 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    articula as prticas terica, poltica e ideolgica numa luta contra-hegemnica, deve-seconsiderar, tambm, a hiptese de que parte significativa da Reforma Sanitria se realizano plano tcnico-institucional no encontro de indivduos ou cidados com a burocraciae com os agentes das prticas de sade. Comporia a vida concreta dos homens ou aprtica emprica, isto , a relao concreta entre a a prtica tcnica e a prtica poltica emuma sociedade dada (Herbert, 1976:200-201). Faz sentido, no entanto, a advertnciaembutida na reflexo exposta a seguir:

    Como a reproduo social no se orienta, entretanto, basicamente, nem pela falta delgica das ideologias, nem pela consistncia terica de suas crticas (...), impe-se aproveitar essaexperincia histrica (a Sade Pblica em So Paulo nos anos 70 e a Reforma Sanitria no Brasildos anos 80) como lio para as aes futuras que pretendam transformar as prticas de sade(...). Nenhuma perspectiva tecnocrtica ter doravante como justificar-se diante de seus fracassos,quaisquer que sejam seus mritos lgicos ou cientficos, o que quer dizer que haver sempre quebuscar slidas e profundas bases de apoio ao transformadora no tecido social, para que elapossa viabilizar-se, e mesmo que deva ento seguir o rtmo lento dos atalhos transversais e dasretiradas (Mendes-Gonalves, 1991:101-102).

    A BUSCA DE OUTROS PARADIGMAS

    Ainda como parte dos esforos acima mencionados, cabe registrar o desen-volvimento de uma linha de pesquisa sobre prticas de sade em distintos centros acad-micos e a experimentao de modelos assistenciais, de planejamento e de gesto. Avalorizao da dimenso subjetiva dessas prticas, das vivncias dos usurios e dostrabalhadores do setor, alm de uma preocupao com a constituio dos sujeitos sociais,tem proporcionado espaos de comunicao e dilogo com outros saberes e prticasabrindo outras perspectivas de reflexo e de ao. Do mesmo modo, a reviso crticamais recente de alguns paradigmas, elaborados em outros contextos e reatualizados noBrasil, tais como o campo de sade (Lalonde, 1974), a promoo da sade (Otawa), avigilncia sade (Mendes, 1993), confere novos sentidos para as perguntas formuladaspelo movimento sanitrio na dcada de oitenta.

    Assim, entre os paradigmas que contemplam o processo sade/doena destaca-se o chamado campo da sade (Lalonde, 1974), composto por quatro polos:

    biologia humana: maturidade e envelhecimento, sistemas internoscomplexos e herana gentica;

    sistema de organizao dos servios: recuperao, curativo e preventivo; ambiente: social, psicolgico e fsico; estilo de vida: participao no emprego e riscos ocupacionais, padres de

    consumo e riscos da atividade de lazer.

    Apesar do simplismo que lhe caracteriza, esse modelo teria influenciado, a reformado sistema de sade canadense (Terris, 1984). Tendo conseguido maior difuso na ltimadcada, representa uma verso ampliada do preventivismo ao propiciar as noes depreveno primordial, interveno individual e interveno populacional. Noutraperspectiva, a revalorizao contempornea da promoo da sade (OPS,1989; OPS,1990) e a reviso crtica da Teoria e Prtica da Sade Pblica (PAHO, 1993) e arenovao da proposta Sade para Todos, baseada nas noes de equidade,

  • 19SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    solidariedade, sustentabilidade e integralidade (WHO, 1995; WHO, 1996), podero,tambm, influenciar a formulao de polticas de sade.

    No que se refere ao paradigma assistencial da Promoo da Sade, ressalta-sena Carta de Otawa, durante a I Conferncia Internacional sobre Promoo da Sade,em 1986, que a paz, a educao, a habitao, a alimentao, a renda, um ecossistema estvel, aconservao dos recursos, a justia social e a equidade so requisitos fundamentais para a sade(Mendes, 1993:11). Esta concepo encontra-se presente entre os secretarios municipaisde sade que subscreveram a Carta de Fortaleza e tende a ser difundida pela ao doConselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade (Carta, 1995).

    O fenmeno sade tem sido tambm pensado na Amrica Latina como expressodas condies ou do modo de vida, especialmente nas suas articulaes com quatrodimenses da reproduo social: a reproduo biolgica onde se manifesta a capacidadeimunolgica e a herana gentica; a reproduo das relaes ecolgicas, que envolve ainterao dos indivduos e grupos com o ambiente residencial e do trabalho; a reproduodas formas de conscincia e comportamento, que expressam a cultura; e a reproduodas relaes econmicas, onde se realizam a produo, distribuio e o consumo(Castellanos, 1987a). A partir desse modelo, so identificados diferentes espaos eestratgias de interveno sanitria. Assim, para o espao singular (indivduo) teramosas estratgias de alto risco. Para o espao particular (grupos sociais) haveria as estratgiaspopulacionais(Finalmente, para o espao geral (modelos econmicos) dispramos daspolticas de sade (Castellanos, 1987b).

    No que diz respeito s respostas sociais ao fenmeno sade/doena, o modelode vigilncia sade constitui-se numa prtica sanitria que organiza os processosde trabalho em sade, sob a forma de operaes, para confrontar prooblemas deenfrentamento contnuo, num territrio determinado (Mendes, 1993), especialmenteatravs de intervenes setoriais organizadas. Ao utilizar o modelo de vigilncia emsade que considera esquematicamente o processo sade/doena na coletividade e asintervenes centradas sobre danos, riscos e determinantes scio-ambientais (PAIM,1993) esse paradigma estimula uma reatualizao da reflexo sobre as noes depromoo da sade e qualidade de vida (Souza & Kalichman, 1993; Schraiber & Mendes-Gonalves, 1996).

    Algumas possibilidades de adoo desses paradigmas e modelos assistenciaisalternativos tm sido criadas pela municipalizao, pela distritalizao e por certasiniciativas de articulao entre a universidade, os servios e a comunidade. Nesseparticular, modelos tecno-assistenciais de base epidemiolgica, tais como ofertaorganizada, as aes programticas em sade, a vigilncia em sade, polticas pblicassaudveis, etc, j resultam da reatualizao e crtica dos paradigmas sanitrios. Certasexperincias desenvolvidas no Brasil em municpios como Santos, Campinas, So Paulo(rea do Butant) e Curitiba permitem considerar a pertinncia desses esforos, alm depor em discusso propostas como as polticas pblicas saudveis (PAHO, 1993) ou ascidades saudveis (Carta, 1995).

    Considerando a reflexo em curso sobre modelos de ateno em sade e asiniciativas inovadoras de alguns municpios e distritos sanitrios no Brasil pode-seafirmar que a Reforma Sanitria, enquanto processo, mantem-se viva apesar dosobstculos econmicos, polticos e ideolgicos que historicamente enfrenta. A intensaparticipao social verificada nas etapas municipal, estadual e nacional das confernciasde sade no Brasil (CEBES & ABRASCO, 1992) reitera a vitalidade do projeto. A prpria

  • 20 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    temtica da X Conferncia Nacional de Sade e os debates nela realizados estimulam aousadia de construir um modelo de ateno voltado para a qualidade de vida.

    Portanto, a discusso entre as finalidades das prticas de sade e o seu objeto,meios de trabalho e atividades bem como a anlise das relaes tcnicas e sociais dotrabalho em sade como via de aproximao entre os modelos assistenciais e de gesto,constituem desafios tericos e prticos para a Reforma Sanitria Brasileira nos anos queho de vir. Do mesmo modo, as interaes entre propsitos, mtodos e organizao talcomo concebido pelo postulado de coerncia, ao estabelecer as vinculaes com o papeldo Estado, com a Teoria e com a Histria (Testa, 1995), podero representar algunscaminhos investigativos que respaldem novos passos para a Reforma Sanitria no Brasil.

    COMENTRIOS FINAIS

    Nos tpicos anteriores constata-se que a Reforma Sanitria tem sido tratada comomovimento, proposta, projeto e processo. Seriam conceitos distintos em estado prtico?

    Houve textos consultados em que todos esses termos foram empregados. Aomesmo tempo afirmava-se que a reforma sanitria simultaneamente bandeira especfica eparte de uma totalidade de mudanas (Arouca, 1988:3). Assim, poder-se-ia concluir que aReforma Sanitria uma proposta que encerra um conjunto de princpios e proposiestal como disposto no Relatrio Final da 8a. CNS. tambm um projeto pois consubstanciaum conjunto de polticas articuladas que requerem uma dada conscincia sanitria, umaparticipao da cidadania e uma vinculao com as lutas polticas e sociais mais amplas. ainda um processo porquanto a proposta formulada no se conteve nos arquivos nemnas bibliotecas mas transformou-se em bandeira de luta, articulou um conjunto deprticas, e teceu um projeto poltico-cultural consistente enquanto prtica social,tornando-se Histria. Trata-se, consequentemente, de um conjunto complexo de prticas(inclusive prticas de sade) que integram a prtica social.

    Enquanto totalidade de mudanas a contemplar questes como estrutura do SUS,cincia e tecnologia, produo, modernidade, e controle social (Arouca, 1988), a ReformaSanitria demanda por paradigmas que no se esgotem nas prticas terica, poltica eideolgica. O conceito de totalidade empregado para se referir situao de sade reabreo espao para a discusso da prtica social que d conta dessa realidade. As prticas desade, tm, como j foi assinalado, uma natureza tcnica porm so, ao mesmo tempo,prticas sociais com dimenses econmicas, ideolgicas e polticas.

    Questes referentes cincia e tecnologia ou a certos aspectos da modernidadeno so externas situao de sade mas uma das suas dimenses. A tecnologia,enquanto meio de trabalho acionado nas prticas de sade, faz parte da situao sanitriaa ser modificada pela Reforma. Assim, tanto as tecnologias materiais quanto as nomateriais precisam ser recriadas tendo em conta as reconceitualizaes acerca do objetodas prticas de sade e da instaurao de novas relaes sociais nas diferentesmodalidades de prestao de servios de sade (Paim, 1993a). Nesse particular, caberessaltar no s as tecnologias utilizadas no cuidado a sade de carater individual ecoletivo mas tambm o conjunto de tcnicas referentes ao planejamento, gesto,informao, comunicao, etc.

  • 21SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    A abertura para a filosofia e para a arte, representa outra via progressivamenteexplorada pelas reflexes e propostas atuais no campo da Sade Coletiva:

    Alm das condies especficas do trabalho em sade, entre outros, para propiciar avanosno sentido da constituio objetiva dos espaos da ao comunicativa, nos sentidos j apontados,h um outro, ainda relativamente mais inexplorado, mas cujas promessas tericas so maisdecisivas: trata-se evidentemente da presena essencial dos consumidores de servios de sade,dos educandos, dos receptores de mensagens, dos fruidores das objetivaes estticas, dosnecessitados de filosofias (Mendes-Gonalves, 1995;23).

    Assim, a discusso de valores que informam as prticas e, especialmente, os queorientam as escolhas, seja nas consultas individuais, seja nas intervenes de caratercoletivo, est possibilitando, presentemente, repensar a autonomia dos agentes, ao ladodas questes mais estruturais remetidas anlise do processo de trabalho em sade(Schraiber, 1995). Do mesmo modo, o dilogo iniciado com diferentes manifestaesartsticas, recusando o dirigismo (Capinan, 1995) mas convidando para outras leiturasda realidade, especialmente no que se refere ao mundo subjetivo, permite cogitarmodelos de ateno para a qualidade de vida fundamentados num agir comunicativoque leve em conta as dimenses psicolgicas e culturais dos problemas de sade (Paim,1995a), particularmente os vinculados ao modo de vida (doenas cardio-vasculares,AIDS, violncia, transtornos mentais, etc). Se a arte amiga da vida pode ser da sade,tambm (Paim, 1995b).

    Apesar de todos essas iniciativas, no ocioso lembrar que o chamado para-digma flexneriano continua orientando a organizao dos servios de sade no sentidode reforar o modelo mdico hegemnico (Paim, 1994). Dirigentes, empresrios,trabalhadores de sade, populao e mdia continuam reproduzindo tal paradigma aoreduzir o sistema de sade a um conjunto de estabelecimentos de assistncia mdico-hospitalar, centrados no diagnstico e na teraputica aloptica.

    Evidentemente que o modo de vida prevelescente na sociedade brasileira, prenhede desigualdades e gerador de doenas e agravos, produz incessantemente umapopulao necessitada de servios mdicos que no pode ser ignorada. No h, portanto,como conter essa demanda espontnea, seja produzida pelo sofrimento, pela misria,ou mesmo pela oferta de servios mdicos. Mas a reorientao do sistema de ateno adoena vigente para a construo de um sistema de sade que, alm de controlar danos eriscos preocupe-se com os determinantes scio-ambientais da sade (PAIM, 1993b),impe novos desafios. Enfatizar a promoo da sade, a qualidade de vida e do ambiente,a preveno das doenas reorganizando a assistncia mdico-hospitalar eletiva eemergencial em funo de modelos assistenciais centrados na oferta organizada e navigilncia em sade, pode ser um dos caminhos. Nessa perspectiva, modelos de atenovoltados para a qualidade de vida, requerem paradigmas alternativos tais como os quese tem tentado, ultimamente, no Brasil.

    O repensar dos paradigmas, pressupostos e fundamentos tericos da ReformaSanitria no pode, desse modo, aprisionar-se na conexo com as prticas estritamentepolticas. Para que a Reforma Sanitria no crie falsos dilemas faz-se necessrio que talconexo seja acompanhada por um conjunto de iniciativas no mbito das instituies,servios de sade e grupos sociais, tal como se observa nos processos de municipalizaoe distritalizao voltados para a adoo de modelos assistenciais, de planejamento egesto alternativos. E para que o otimismo da prtica no caia no idealismo ou novoluntarismo cabe lembrar que a Reforma Sanitria ainda dispe de um referencial

  • 22 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    terico fundamental: a filosofia da praxis - dialgica, plural, comunicativa (Gramsci,1966; Habermas,1990).

    A vigilncia crtica contra os desvios tecnocrticos do proceso da Reforma Sani-tria no deve conduzir ao equvoco oposto de desqualificar as bases tcnico-cientficaspara a sua implementao nem ignorar os obstculos ainda presentes na burocracia ena administrao pblica brasileira, bem como nas questes polticas e econmicas maisgerais. Do mesmo modo, a prxis necessria gerao de novos paradigmas e a mudanado contedo das prticas de sade requer a elaborao de tecnologias nas reas daateno, do planejamento, da epidemiologia, da comunicao, entre outras, progres-sivamente orgnicas ao projeto da Reforma Sanitria Brasileira.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ALMEIDA FILHO, N.; PAIM, J.S. Contribuio crtica da abordagem sistmica em sade. In: PAIM,J.S. & ALMEIDA FILHO, N. Introduo Crtica do Planejamento de Sade. Textos Didticos.Universidade Federal da Bahia, Salvador-Bahia, 1982 p.24-36.

    AROUCA, A.S. da S. A histria natural das doenas. Sade em Debate, 1:15-19, 1976.

    AROUCA, A. Reforma sanitria brasileira, Tema/Radis, 11: 2-4, 1988.

    AYRES, J.R. de C.M. Ao programtica e renovao das prticas mdico-sanitrias: sade eemancipao na adolescncia. Sade em Debate, 42:54-58, 1994.

    BRASIL. Ministrio da Sade. Descentralizao das aes e servios de sade. A Ousadia de Cumprir e FazerCumprir a Lei. Braslia, 1993a.67p.

    CAPINAN, J.C. Aleatria janela. In: OPS/OMS Informao e Comunicao Social em Sade. Braslia,1995, p. 43-49 (Srie Desenvolvimento de Servios de Sade, 15).

    CAMPOS, G.W. de S. A Reforma Sanitria Necessria. In: BERLINGUER, G.; FLEURY, S.; CAMPOS,G.W.de S. Reforma Sanitria - Itlia e Brasil. HUCITEC-CEBES, So Paulo, 1988, p.179-194.

    CAMPOS, G.W. de S. Modelos de ateno em sade pblica: um modo mutante de fazer sade. Sadeem Debate, 37:16-19, 1992.

    CARTA de Fortaleza. Sade em Debate, 48:77-78, 1995.

    CASTELLANOS, P.L. Sobre el concepto de salud-enfermedad. Un punto de vista epidemiolgico. Colombia,1987, 15p. presentado en Congreso Latino Americano, 4 y Congreso Mundial de Medicina Social,5, Medellin, Colombia, Julio 1987a.

    CASTELLANOS, P.L. Epidemiologia y organizacin de los servicios. Mexico, 1987b. (Srie Desarrollo deRecursos Humanos, 88).

    CEBES-ABRASCO Sade Qualidade de Vida. Sade em Debate, 36:7-18, 1992.

    CECILIO, L.C. de (org.) Inventando a mudana na sade. HUCITEC, So Paulo, 1994, 334p.

    CORDEIRO, H. Sistema nico de Sade. Ayuri Editorial/ABRASCO, Rio de Janeiro,1991. 184p.

    CORDONI Jr. L. Medicina Comunitria: O conceito se materializa... Espao para a Sade/NESCO.Curitiba, Ano 1, No. 0:11-12, s/d,

    DONNNGELO, M.C.F. Sade e sociedade. So Paulo, Duas Cidades, 1976, 124p.

    ESCOREL, S. Revirada na sade Tema/Radis, 11:5-7, 1988.

    FLEURY, S. O dilema da Reforma Sanitria Brasileira. In: BERLINGUER, G.; FLEURY, S.; CAMPOS,G.W.de S. Reforma Sanitria - Itlia e Brasil. HUCITEC-CEBES, So Paulo, 1988, p.195-207.

    FLEURY, S. Democracia e sade. In: FLEURY, S. (org.) Sade: Coletiva? Questionando a onipotncia dosocial. Rio de Janeiro: Relum-Dumar, 1992, p.9-12.

  • 23SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    GALLO, E. (org). Razo e Planejamento. Reflexes sobre Poltica, Estratgia e Liberdade. HUCITEC/ABRASCO. So Paulo-Rio de Janeiro, 1995, 154p.

    GARCIA, J.C. Paradigmas para la enseanza de las ciencias sociales en las escuelas de medicina.Educ. Med. y Salud, 5(2):130-164, 1971.

    GRAMSCI, A. Concepo Dialtica da Histria. Ed. Civilizao Brasileira, Rio de Janeiro, 1966, p.91-139.

    HABERMAS, J. Teoria y praxis. Estudios de filosofia social. 2a. ed. Madrid, Ed Tecnos, 1990, 439p.

    HERBERT, T. La prctica terica y las ciencias sociales. In: VERON, E. El proceso ideologico. EditorialTiempo Contemporaneo. 3a. ed., Buenos Aires, 1976, p.197-223.

    KUHN, T.S. A estrutura das revolues cientficas. Ed. Perspectiva, So Paulo, 1975, 257p

    LALONDE, M. A new perspective on the health of Canadians: a work document. Otawa, 1978.

    MENDES, E.V. A construo social da vigilncia sade no Distrito Sanitrio. In: OPS A vigilncia sade no distrito sanitrio. Representao do Brasil, Braslia, 1993, p.7-19. (Srie de Desenvolvimentode Servios de Sade, 10)

    MENDES GONALVES, R.B. Medicina e histria.Raizes sociais do trabalho mdico. Dissertao demestrado, rea de Medicina Preventiva do Curso de Ps-Graduao da Faculdade de Medicinada Universidade de So Paulo, 1979, 209p.

    MENDES GONALVES, R.B. O processo tecnolgico do trabalho em sade. Divulgao em Sade ParaDebate, 4:97-102, 1991.

    MENDES GONALVES, R.B. Seres humanos e prticas de sade: comentrios sobre razo eplanejamento. In: GALLO, E. (org). Razo e Planejamento. Reflexes sobre Poltica, Estratgia eLiberdade. HUCITEC/ABRASCO. So Paulo-Rio de Janeiro, 1995, p.13-31.

    MERHY, E.E.; CECILIO, L.C. de O.; NOGUEIRA FILHO, R.C. Por um modelo tecno-assistencial dapoltica de sade em defesa da vida: contribuio para as confer6encias de sade. Sade em Debate,33:83-89, 1991.

    OPS El Modelo de Prestacin de Servicios de Salud. 1 - La recuperacin de la salud. Promocin de liderazgo yformacin avanzada en salud pblica. Taller de anlisis del Modelo de Prestacin de Servicios deSalud. 1 - Recuperacin de la Salud. Lima, 20-24 noviembre, 1989, OPS: Washingtos, D.C; 1989(Documento de discussin; tercer borrador).

    OPS El Modelo de Prestacin de Servicios de Salud. 2 - Estrategia de prevencin. Promoocin de liderazgo yformacin avanzada en salud pblica. Taller de anlisis del Modelo de Prestacin de Servicios deSalud. 2 Estrategia de prevencin. So Paulo, 30 de abril - 4 de mayo 1990. OPS: Washington, D.C;1989 (Documento de discussin; segundo borrador).

    PAIM, J.S. Medicina comunitria: introduo a uma anlise crtica. Sade em Debate, Rio de Janeiro,(1):9-12, out./dez. 1976.

    PAIM, J.S. Sade, Crises, Reformas. Salvador: Centro Editorial e Didtico da UFBa, 1986, 250 p.

    PAIM, J.S. Nascimento e Paixo de uma Poltica de Sade. Sade em Debate 27: 5-11, 1989.

    PAIM, J.S. A Universidade e a Reforma Sanitria. Divulgao em Sade Para Debate, 4:108-116, 1991.

    PAIM, J.S. Collective Health and the challenges of practice. In: PAHO, The Crisis of Public Health:Reflections for the Debate. Washington, D.C.: PAHO, 1992, p.136-150

    PAIM, J. S. A reorganizao das praticas de sade em distritos sanitrios. In: MENDES, E. V. (org.)Distrito Sanitrio: o processo social de mudana das prticas sanitrias do Sistema nico de Sade.HUCITEC - ABRASCO, So Paulo - Rio de Janeiro, 1993a p. 187 - 220.

    PAIM, J. S. A Reforma Sanitria e os Modelos Assistenciais. In: ROUQUAYROL, M. Z. (org.)Epidemiologia e Sade. MEDSI, Rio de Janeiro, 1993b p. 455 - 466.

    PAIM, J.S Recursos humanos em sade no Brasil: problemas crnicos e desafios agudos. So Paulo, Faculdadede Sade Pblica/USP, 1994, p.9-51.

    PAIM, J.S Informao e comunicao social em sade: janelas abertas para a arte e para a vida. In:OPS/OMS Informao e Comunicao Social em Sade. Braslia, 1995a, p. 55-58 (SrieDesenvolvimento de Servios de Sade, 15).

  • 24 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    PAIM, J.S. Resenha: Memrias da Sade Pblica - a fotografia como testemunha (Coordenadora:Maria da Penha C. Vasconcelos). Sade em Debate, 47:70, 1995b.

    PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION. On the theory and practice of public health: one debate,several perspectives. Washington, D.C., 1993. (PAHO - Human Resources Development Series, 98).

    SCHRAIBER, L.B. Polticas pblicas e planejamento nas prticas de sade. Sade em Debate, 47:28-35,1995.

    SCHRAIBER, L.B.; NEMES, M.I.B.; MENDES-GONALVES, R.B. (org.) Sade do Adulto. Programas eaes na unidade bsica. HUCITEC, So Paulo, 1996 290p.+anexos.

    SILVA, G.R. da S. Origens da medicina preventiva como disciplina do ensino mdico. Rev. Hosp. Clin.Fac. Med. S. Paulo, 28(2):31-35.

    SOUZA,M.de F.M. & KALICHMAN, A. O. Vigilncia sade: Epidemiologia, servios e qualidadede vida. In: ROUQUAYROL, M.Z. (org.) Epidemiologia & Sade. Rio de Janeiro, MEDSI Editora,1993, p.467-476.

    TEIXEIRA, C.F.; MELO, C. (org.) Construindo distritos sanitrios. A experincia da Cooperao Italiana noMunicpio de So Paulo. HUCITEC/COOPERAO ITALIANA EM SADE. So Paulo-Salvador,1995, 107p.

    TEIXEIRA, M. da G. L. C.; PAIM, J.S. Os programas especiais e o novo modelo assistencial, Cadernos deSade Pblica, RJ, 6 (3): 264-277, jul/set 1990.

    TERRIS, M. Newer Perspectives on the Health of Canadians: Beyond the Lalonde Report. J. of PublicHealth Policy, 5(3):327-337,1984.

    TESTA, M. Pensamento estratgico e lgica de programao. O caso da sade.HUCITEC/ABRASCO, SoPaulo- Rio de Janeiro, 1995, 306p.

    VAITSMAN, J. Sade, Cultura e Necessidades. 1992. In: FLEURY, S. (org.) Sade: Coletiva? Questionandoa onipotncia do social. Rio de Janeiro: Relum-Dumar, 1992, p.157-173.

    WHO Renewing the Health-for-All Strategy. Elaboration of a policy for equity, solidarity and health. Gineva,1995, 37p.

    WHO Renovacin de la estrategia de salud para todos. Informe del Drector General sobre los progresos realizados.A49/12, 4 de marzo de 1996, 6p.

  • 25SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    A QUESTO DEMOCRTICAA QUESTO DEMOCRTICAA QUESTO DEMOCRTICAA QUESTO DEMOCRTICAA QUESTO DEMOCRTICANA SADENA SADENA SADENA SADENA SADE

    Sonia Fleury

    SADE E DEMOCRACIA

    A constituio da Sade Coletiva como campo do saber e espao de prtica socialfoi demarcada pela construo de uma problemtica terica fundada nas relaes dedeterminao da sade pela estrutura social, tendo como conceito articulador entreteoria e prtica social, a organizao social da prtica mdica, capaz de orientar a anliseconjuntural e a definio das estratgias setoriais de luta. Assim, enquanto a noo dedeterminao social nos remetia estrutura produtiva, subsumindo ao econmico opoltico e o ideolgico, o conceito de organizao social da prtica mdica situava-se aonvel poltico, ainda que operando uma segunda reduo da problemtica do poder, aonucle-la a partir de sua dimenso de materializao institucional.

    As decorrncias desta construo terico-poltica foram j apontadas em relao centralidade que a atuao do Estado passaria a ter como campo privilegiado de inter-veno e desenvolvimento das lutas polticas. No entanto, esta mesma concepo podeser responsabilizada pela estruturao de um movimento social to importante comotem sido o movimento sanitrio neste ltimos 20 anos, bem como por suainstitucionalizao atravs do CEBES-Centro Brasileiro de Sade Coletiva.

    A construo de um ator poltico passa pelo reconhecimento de um ns poroposio a eles, ou seja, pela construo de uma identidade simblica que possa dife-renciar um certo grupo dos demais, bem como dar a ele a possibilidade de representar-se diante de si e dos outros. Trata-se, portanto, de um conceito relacional de poder,supondo que a construo do um se d por diferenciao do alter. Esta repre-sentao, s deixa de ser individual, no sentido de privado, para alcanar uma dimensopblica, quando a definio do projeto deste grupo articula-se a uma concepo geraldo mundo, transcendendo seus interesses individuais e corporativos.

    Tal se verificou, na luta pela democratizao da sade, j que, ainda que oriundede um grupamento de profissionais e intelectuais da rea de sade , o movimentosanitrio se prope a incorporar em sua luta as demandas da sociedade como um todo,partindo da considerao de que as condies de exerccio profissional esto submetidass mesmas determinaes que se responsabilizam pela precariedade da sade dapopulao. Esta expanso do grupo parte do processo de construo de hegemonia,isto , de uma nova relao entre classe/Estado/Sociedade1.

    Entretanto, a eficcia da ao poltica de um ator social no decorre apenas deseu momento de construo de uma identidade poltica mas fundamentalmente, emtermos leninistas, do momento estratgico-militar, no qual so construdos os instru-

  • 26 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    mentos de luta dos quais depender a possibilidade de alterao real da correlao deforas. Ou seja, parafraseando Gramsci, quando as ideologias se tornam partido, quese est colocando em questo a hegemonia dominante.

    Neste sentido, a institucionalizao do movimento sanitrio atravs da criaodo CEBES, alcanando assim constituir-se em um verdadeiro partido sanitrio, foi ca-paz de organizar as diferentes vises crticas do sistema de sade, definindo um projetocomum e estratgias e tticas de ao coletiva. O CEBES representou a possibilidade deuma estrutura institucional para o triedro que caracterizou o movimento da reformasanitria brasileira: a construo de um novo saber que evidenciasse as relaes entresade e estrutura social; a ampliao da conscincia sanitria onde a Revista Sade emDebate foi, e continua sendo, seu veculo privilegiado; a organizao do movimentosocial, definindo espaos e estratgias de ao poltica.

    No editorial do nmero 1 da Revista Sade em Debate, de 1976 pode-se ler: Aanlise do setor sade como componente do processo histrico-social vem sendo feitade forma frequente por estudiosos, que nem sempre encontram os veculos de divulgaomais apropriados. Sade em Debate pretende ampliar e levar adiante tais discusses,no sentido de reafirmar a ntima relao existente entre sade e a estrutura social2.

    J no editorial da revista no 10 reafirma-se o papel poltico da entidade, naconduo do movimento sanitrio: O Centro de Estudos, como articulador do sabercom a prtica poltica tem assegurado hoje, mais do que nunca, a sua funo deformulao de contra-polticas e definio de novos modelos de atuao, frente a umquadro institucional em transformao e grupos de profissionais e contingentes dapopulao em processo de definio poltica e encaminhamento de suas lutas3.

    No entanto, tal protagonismo na conduo do processo de formulao de contra-polticas no esteve imune ao debate nacional sobre as diferentes concepes e estratgiasdemocrticas que passaram a permear toda a trajetria do CEBES. No editorial daRevista Sade em Debate no 3, de 1977, encontramos uma diviso explcita entre umaorientao mais institucional e outra, orientada de forma mais movimentista:

    Existem duas concepes da atuao do CEBES, no excludentes, que polari-zam os interesses de grande numero de associados. A primeira afirma o CEBES comoaglutinador das tendncias renovadoras do setor sade, em nvel profissional, com oobjetivo de coordenar esforos para desenvolver polticas de sade mais adequadas realidade brasileira (ou necessidades sanitrias da populao).

    A segunda concepo, sem subestimar o trabalho realizado nas entidades deprofissionais de sade, quer desenvolver atividades voltadas mais diretamente comunidade, atravs de suas vrias organizaes (Sociedades Amigos de Bairros,Sindicatos, Clubes de Mes, entidades estudantis etc.).

    Na realidade as duas concepes se harmonizam quando o CEBES concebidocomo um movimento de opinio.... trata-se ento de desenvolver o CEBES como umrgo democrtico e que preconiza a democratizao do setor sade, recebendo todasas contribuies que atendam aos objetivos de uma Reforma Sanitria, que deve tercomo um dos marcos a unificao dos servios de sade, pblicos e sem fins lucrativos,com a participao dos usurios estimulada, crescente, possibilitando sua influncianos nveis decisrios e ampliando o acesso aos servios de sade de boa qualidadade4.

    Apesar da posio do Editorial buscar a conciliao entre as duas posiesapontadas, em torno a um projeto comum de sistema democrtico de sade, certo que

  • 27SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    tais contradies foram vividas intensamente pelo movimento sanitrio, e, talvez, portoda a sociedade brasileira, durante o processo de transio, caracterizando diferentesconcepes e estratgias democrticas que podemos designar como democracia comoconflito, democracia como movimento e democracia como institucionalidade .

    A proposta de democracia com a qual se trabalhava nos anos 70 tinha um fortecontedo anrquico e contra-cultural, na medida em que se rebelava contra todo processode normalizao e institucionalizao do poder, vistos como rede de macro e micro-poderes que, por meio de um conjunto de prticas sociais, subordinavam a energiacriadora e potencialmente revolucionria a uma ordem que reproduzia, desde sua macro-estrutura at aos comportamentos e smbolos, a engrenagem da dominao. A democraciaera vista como comportando um elemento social que se traduzia na proposta dedesalienao da populao e sua consequente organizao em direo a uma melhorapropriao da riqueza social. O mecanismo que permitiria esta passagem seria aparticipao popular, mstica do desvendamento das estruturas da dominao e da cria-o de uma nova lgica de ordenao das relaes de poder, marca que pode serencontrada em situao to paradigmtica como foi o Projeto Montes Claros5.

    O conflito seria, pois, o caminho atravs do qual se poderia desmontar as estru-turas de dominao, ao mesmo tempo em que, ao assim proceder, se estaria produ-zindo a desalienao do sujeito que se constitui por meio de sua participao. Apostulao do conflito como estratgia de redirecionamento das prticas sociais implicano reconhecimento das diferenas e na sua elaborao ao nvel poltico, entrando emcontradio com toda perspectiva homogeneizadora, mesmo aquela que recorta arealidadade a partir do seu contedo classista.

    Bastante influenciada pelo pensamento foucaultiano e de outros intelectuaiseuropeus vinculados ao movimento contra-cultural, tal corrente vai progressivamenteperdendo vigor dentro do movimento sanitrio, restando apenas sua influncia nareforma psiquitrica, para a qual a questo do resgate do sujeito a essncia mesma domovimento reformador.

    Uma perspectiva poltica de orientao mais movimentista se associa ao prpriosurgimento e crescimento do Partido dos Trabalhadores e das Comunidades Eclesiaisde Base, orientada por uma perspectiva de mobilizao da comunidade e socializaopoltica, vivendo, no entanto, a contradio crescente entre tomar o Estado como alvode suas crticas e de suas demandas, ao mesmo tempo em que pretendia que sua lutapelo poder se circunscresse ao mbito societrio. No por acaso, esta contradio sedesenvolve, algumas dcadas depois, com a forte presena dos governos municipais doPartido dos Trabalhadores sendo os principais implementadores das reformasinstitucionais democratizadoras, tanto na sade como em outras reas da gesto pblica.

    A perspectiva democrtica institucionalista, predominante a partir dos anos80, recorreu ao conceito estratgico de desenvolvimento da conscincia sanitria comoforma de articulao de diferentes nveis, possibilitados pela concomitncia do corpobiolgico com o corpo socialmente investido; o corpo produtivo. A articulao se dariaentre a experincia singular do sofrimento, a vivncia das necessidades vitais, e adimenso pblica do indivduo enquanto cidado, portanto, portador de um conjuntode direitos e deveres diante do Estado, e, sua insero na luta entre dominados edominadores, aos quais remetem tanto as carncias vitais quanto a negao dos direitossociais. Em outros termos, assumindo o carater dual da sade, como valor universal encleo subversivo de desmontagem da ordem social em direo construo de uma

  • 28 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    nova correlao de foras, o movimento sanitrio pretendeu ressignificar politicamentea noo de cidadania, dando a ela um carter transformador.

    A Reforma Sanitria, desde esta posio poltica, foi por mim definida comoreferindo-se a um processo de transformao da norma legal e do aparelho institucionalque regulamenta e se responsabiliza pela proteo sade dos cidados e correspondea um efetivo deslocamento do poder poltico em direo s camadas populares, cujaexpresso material se concretiza na busca do direito universal sade e na criao deum sistema nico sob a gide do Estado6.

    O dilema reformista, enfrentado como tenso permanente durante todo o processoda Reforma Sanitria, estava dado a partir da interpelao cidad e da luta pelo direito sade, o que implicava necessriamente tomar o Estado - em seu aparato jurdico eadministrativo - como locus privilegiado das prticas reformadoras. Para isto, o que serequeria era a ampliao de alianas e a construo de um novo consenso e de umanova institucionalidade, enquanto a transformao social das prticas sanitrias e aconstruo de sujeitos polticos e suas estratgias de enfrentamento do conflito provocavatenses, fragmentaes e dissensos.

    A posio do CEBES foi consolidada no documento apresentado no I Simpsiosobre Poltica Nacional de Sade na Cmara Federal, em outubro de 1979, onde foiapresentada a plataforma programtica do movimento sanitrio, alcanando adeso deparlamentares e sindicalistas, dando incio a uma trajetria que culminaria com ainscrio destas propostas na Constituio Federal de 1988. impressionante reler aqueledocumento e verificar o grau de amadurecimento da proposta reformadora, dez anosantes de se transformar em norma legal, no que se define uma sade autenticamentedemocrtica como:

    1.o reconhecimento do direito universal e inalienvel, comum a todos oshomem, promoo ativa e permanente de condies que viabilizem apreservao de sua sade.

    2. o reconhecimento do carter scio-econmico global destas condies:emprego, salrio, nutrio, saneamento, habitao e preservao de nveisambientais aceitveis.

    3. o reconhecimento da responsabilidade parcial, porm intransfervel dasaes mdicas propriamente ditas, individuais e coletivas, na promooativa da sade da populao.

    4. o reconhecimento, finalmente, do carter social deste Direito e tanto daresponsabilidade que cabe coletividade e ao Estado em sua representao,pela efetiva implementao das condies supra mencionadas7.

    Para viabilizar tais propostas, so enunciadas medidas concretas contra oempresariamento da medicina, pela gratuidade da ateno mdica, pela criao doSistema nico de Sade, pela atribuio ao Estado da responsabilidade na administraodeste sistema, que dever coordenar a planificao e execuo de uma poltica nacionalde sade; pelo estabelecimento de mecanismos financeiros capazes de sustentar osistema, pela descentralizao do sistema de sade que garanta maior controle social eparticipao poltica, pela regulao da prtica mdica privada, pela definio de umaestratgia de produo e distribuio de medicamentos.

    A constituio do movimento sanitrio como ator poltico adotou como estratgia,por um lado, a difuso e a ampliao da conscincia sanitria, com vistas a alterar a

  • 29SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    correlao de foras e a inserir-se no processo de construo de uma sociedadedemocrtica. Por outro lado, sob a bandeira Sade e Democracia (ou seria, Sade Democracia?), o movimento da Reforma Sanitria alia a eficiente organizao polticado movimento social com a busca da formulao de um projeto alternativo para o sistemade sade, alcanando ser, ao incio do processo de democratizao, um ator polticoimpossvel de ser ignorado. Alm de ter formado quadros tcnicos que estavam aptos aassumir a conduo das instituies formuladoras de polticas, era, inegavelmente, onico portador de um projeto reformador consistente e amplamente acordado.

    Portanto, a relao da Reforma Sanitria com a democracia revelou-se com todasua complexidade: como formulao doutrinria que corporifica, na poltica pblica, osideais igualitrios;como frente de luta e arena na qual se construiram, reforaram-se oureformularam-se identidades polticas; como processo de transformao da gesto sociale reforma democrtica do Estado, dentro dos limites constitucionais.

    DEMOCRACIA E TEORIA

    Quando se fala em teoria da democracia seria mais prprio se falar emdemocracias, j que no existe democracia no singular, mas sim um conjunto diferenciadode concepes e mecanismos de governo. Neste sentido, seria necessrio clarificar dequal democracia estamos falando quando afirmamos que o movimento sanitrioalcanou vincular sade e democracia, atravs de sua prtica terica e social. Para tanto,torna-se oportuno rever as principais concepes de democracia oriundas da teoriapoltica.

    Bobbio8(1994:37) procura simplificar esta difcil tarefa encontrando dois sentidosbsicos para o conceito de democracia: inegvel que historicamente democraciatem dois significados prevalecentes, ao menos na origem, conforme se ponha em maiorevidncia o conjunto das regras cuja observncia necessria para que o poder polticoseja efetivamente distribudo entre a maior parte dos cidados, as chamadas regras dojogo, ou o ideal em que um governo democrtico deveria se inspirar, que o da igualdade. base dessa distino costuma-se distinguir a democracia formal da substancial...

    No caso da democracia formal, o princpio reitor a liberdade, que precederia,para os jusnaturalistas a prpria organizao poltica, definindo os direitos individuaiscomo liberdades individuais que definem os limites da ao do Estado. Alm dos direitosindividuais, e para preserv-los da ditadura da maioria, a nfase dada nosprocedimentos necessrios garantia do gozo das liberdades em uma sociedadecomplexa. O mecanismo de representao e as regras de eleio daqueles que tomamdecises que afetam toda a coletividade - o governo representativo - passa a ser o fococentral do debate sobre a democracia liberal.

    No caso da democracia substancial, prepondera o contedo tico baseado nasolidariedade e no desenvolvimento integral da comunidade poltica, assegurando aparticipao mais ampla possvel cidadania, quer seja no exerccio do poder poltico,quer seja na distribuio das riquezas sociais. Esta viso socializante da democracia encontrada desde os escritos clssicos de Rousseau9, para quem a soberania no podeser representada, at autores como Lenin10, para quem a democracia burguesa, e seuintrumentos como a representao, so reduzidos a uma mera ditadura de classe, sem

  • 30 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    se dar conta que sua ausncia viria a comprometer as formas de democracia direta debase.

    Os modelos alternativos de democracia, dentro da teoria poltica liberal, ganhamsua mais clara conformao na proposta de Schumpeter11, no caso da democraciarepresentativa, e no de Macpherson12, para a democracia participativa.

    Schumpeter (1984:337) define: o mtodo democrtico aquele acordo institu-cional para se chegar a decises polticas em que os indivduos adquirem o poder dedeciso atravs de uma luta competitiva pelos votos da populao.

    Chaui (1990:138)13 chama a ateno para a relao entre Estado interventor eeconomia oligoplica embutida nesta definio e resume os traos do modelo schum-peteriano: a) a democracia um mecanismo para escolher e autorizar governos, a partirda existncia de grupos que competem pela governana, associados em partidos polticose escolhidos pelo voto; b) a funo dos votantes no a de resolver problemas polticos,mas a de escolher homens que decidiro sobre quais so os problemas polticos e comoresolv-los - a poltica uma questo de elites dirigentes; c) a funo do sistema eleitoral,sendo a de criar o rodzio dos ocupantes do poder, tem como tarefa preservar a sociedadecontra os riscos da tirania; d) o modelo poltico baseia-se no mercado econmico fundadono pressuposto da soberania do consumidor e da demanda que, na qualidade demaximizador racional dos ganhos, faz com que o sistema poltico produza distribuiotima de bens polticos; e) a natureza instvel e consumidora dos sujeitos polticos obriga existncia de um aparato governamental capaz de estabilizar as demandas, reforaracordos e moderar os conflitos. Em outros termos, a burocracia imprescindvel paramanter um certo equilbrio entre procura e oferta de bens pblicos.

    A crtica a este modelo assinala o esvaziamento do contedo moral da democraciabem como a pressuposio de que o homem poltico seja essencialmente um consumidore apropriador, reduzindo a participao cidad escolha dentre as ofertas polticaselaboradas pelas elites, o que provocaria tanto a alienao como a perda de legitimidadeda prpria representao democrtica (partidos, sistema eleitoral, governo).

    Macpherson (1978:94) vai mais alm ao afirmar que um sistema de elites emcompetio com um baixo nvel de participao pelos cidados uma exigncia de umasociedade em que h desigualdade.

    Em uma combinao original de pluralismo e corporativismo, Hirst14 (1992:13)faz igualmente a crtica da democracia representativa e do socialismo, propondo comosoluo vivel o gerenciamento econmico por meio da coordenao dos grandesinteresses sociais e da orquestrao do acordo pela negociao entre os grupos deinteresse. Faz em seguida a defesa do corporativismo e do pluralismo (modalidadesde representao de interesses geralmente vistas como antitticas por outros autores, jque implicam em situaes opostas do ponto de vista da relao entre Estado e sociedade,e da mesmo quanto competio no interior da sociedade), concluindo: o que se afirmaaqui que a representao corporativa dos interesses organizados pode fortalecer ademocracia, no sentido de aumentar a influncia popular sobre o governo, e no adebilita, como supem muitos crticos do corporativismo (1992:13). As formas maissofisticadas de pluralismo no pretendem abolir a democracia representativa e substitu-la por um sistema novo e nico de democracia funcional. O que pretendem multiplicaros corpos representativos e complement-los por formas de representao funcional deinteresses organizados (1992:15).

  • 31SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    Em outras palavras, trata-se de buscar novos mecanismos em um corporativismosocietrio e competitivo, que restitua a funcionalidade do modelo de democraciarepresentativa, em crise nos dias atuais.

    Partindo tambm da crtica democracia representativa j Macpherson procuraformular um modelo de democracia participativa enfatizando os movimentos sociais ea ampliao do espao poltico pela sociedade civil. Diferentemente dos modelosanteriores - voltados, em termos concretos, para a estruturao da engenhariainstitucional da democracia - o modelo de Macpherson (1978:114) mais bem um projeto,com toda a carga de utopia que carrega este termo, no qual busca combinar osmecanismos da democracia representativa com aqueles experimentados como modelopiramidal de participao direta e indireta dos cidados, atravs de conselhos. Acombinao de um aparelho democrtico piramidal direto e indireto com a continuaode um sistema partidrio parece essencial. Nada, a no ser um sistema piramidal,incorporar qualquer democracia direta numa estrutura de mbito nacional de governo,e exige-se certa significativa quantidade de democracia direta para o que quer que sepossa chamar de democracia de participao. Ao mesmo tempo, partidos poltcos emconcorrncia devem ser presumidos, e partidos cujas reivindicaes no casemcoerentemente com o que se possa chamar de democracia liberal devero ser repelidos.

    O prprio Macpherson (1978:115) acredita que seu modelo de democracia partici-pativa seja compatvel com a democracia liberal, a meu ver, no mesmo sentido queBobbio (1994:43) afirma que o encontro entre liberalismo e democracia se d com omtodo democrtico como salvaguarda dos direitos fundamentais da pessoa, que, porsua vez, condio para o correto funcionamento do mtodo democrtico.

    Acerca deste encontro nos fala outro terico da democracia, Robert Dahl15 quandoidentifica dois eixos histrico-analticos de desenvolvimento poltico das sociedades: oeixo da liberalizao, referente ao grau de institucionalizao alcanado pelas regras decompetio poltica e acatamento dos seus resultados, e o eixo da participao, referindo-se proporo da populao qual direitos e liberdades so garantidos (Santos, 1993:27).

    A situao ideal de democracia corresponderia ao encontro entre odesenvolvimento mximo nos dois eixos, ou seja, quando a maior aceitao das regrasde competio institucionalizadas tambm correspondesse maior participao doscidados. Como no costuma ocorrer uma sincronia entre a evoluo dos dois eixosencontramos situaes histricas onde primeiro houve a institucionalizao dacompetio entre as elites, para s depois abrir a participao na competio para apopulao (caso anglo-saxo), e casos em que as oligarquias foram progressivamenteincluindo maiores contingentes da populao em sistemas de participao (nem sempreeleitoral, na Amrica Latina a incorporao se deu por meio da proteo social), mesmoque as regras do jogo poltico ou no existissem ou no fossem respeitadas. Para Dahl,o caminho via liberalizao menos instvel que a alternativa via participao, chamandoateno para o componente de governana requerido para a estabilidade democrtica.Para Santos, mais do que instabilidade, a incorporao via polticas sociais, distributivas,em um contexto de baixa institucionalizao poltica leva ao populismo irresponsvel,que se torna, progressivamente, um elemento antagnico necessria institucionalizaopoltica.

    A nfase de tais autores na constitucionalizao como aspecto fundamental dademocracia liberal, que posteriormente viria a encontrar um contedo mais democrticocom a ampliao da participao, crucial para o entendimento do predomnio assumido

  • 32 SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    pela conformao de um corpo jurdico-institucional nos processos histricos dedemocratizao. No entanto, deixam de tomar em conta dois aspectos cruciais para ademocracia: em primeiro lugar, a necessidade que um processo institucional que assegurea igualdade bsica da cidadania seja acompanhado de uma realidade social compatvel,isto , onde a desigualdade de renda esteja minimizada; e, em segundo lugar, o fato deque o encontro entre liberalizao e participao embora no defina o modelo departicipao adotada, o que quer dizer que no qualifica a democracia que se funda noencontro entre os dois eixos, termina por subsumir a participao ao espao estrito dogoverno representativo.

    O dilema entre representao (enquanto formato adotado predominantementepara institucionalizao da competio) e participao tambm se coloca para osmarxistas, tendo sido expresso por Poulantzas16(1981:293) em termos da opo polarizadaentre a aceitao do Estado existente, introduzindo modificaes secundrias que noalteram a natureza do estatismo social-democrata e do parlamentarismo liberal, ou,alternativamente, ater-se apenas democracia direta de base, o que para o autor conduzinelutavelmente a um despotismo social-democrata ou a uma ditadura dos especialistas.

    A sada deste dilema seria: como compreender uma transformao radical doEstado articulando a ampliao e o aprofundamento das instituies da democraciarepresentativa e das liberdades (que foram tambm conquista das massas populares)com o desenvolvimento das formas de democracia direta na base e a proliferao defocos autogestores, esse o problema essencial de uma via democrtica para o socialismoe de um socialismo democrtico.

    A proposta de uma via democrtica para um socialismo democrtico feita porPoulantzas consiste em transformar, fortalecer e/ou criar os centros de resistncia difusos,que as massas sempre tiveram no seio das redes estatais, em centros efetivos de poder,o que no significa uma sucesso progressiva de reformas mas um movimento derupturas reais da relao de foras no interior do Estado. Para tanto, trata-se de fugir daperspectiva de uma luta interna nos aparelhos do Estado tanto quanto de uma estratgiade luta fisicamente exterior a estes aparelhos, para pensar uma estratgia frontal depoder dual: lutas populares de movimentos e proliferao de democracia direta na baseacompanhadas da constituio de ncleos reais de poder popular no seio do Estado (oque no se confunde com uma via eleitoral ou parlamentar).

    Na tentativa de sumarizar o debate terico acerca da democracia podemosassinalar como pontos cruciais:

    a democracia no pode prescindir da dimenso liberal representada peladefesa das liberdades individuais bsicas;

    por conseguinte, a juridicizao das relaes polticas uma consequnciainevitvel, j que as liberdades se objetivam em um corpo de direitospositivos e instituies estatais;

    a cidadania, como dimenso pblica dos indivduos resgata a mediaoentre Estado e sociedade, materializando-se em uma pauta de direitos edeveres, restituindo e revitalizando a comunidade poltica;

    a cidadania enquanto um processo de incluso na comunidade poltica uma expresso do processo de expanso da hegemonia, pelo qual o Estadorestrito se transforma em um Estado ampliado;

    a burocracia estatal requerida como fundamento da igualdade polticados cidados;

  • 33SADE E DEMOCRACIA - A LUTA DO CEBES

    neste sentido, a cidadania no pode deixar de ser compreendida em todasua complexidade contraditria: entre o individual e o coletivo; entre opblico e o privado; entre homogeneidade e singularidade;

    a participao cidad nas decises coletivas que afetam a comunidade pol-tica deve ser reguardada por um corpo de regras reconhecidas e aceitas,em relao representao dos interesses e negociao dos conflitos;

    o sistema de representao com base territorial e a definio da participaoatravs dos mecanismos de organizao partidria e de competio eleitoraltm sido escolhido como aquele que melhor garante a igualdade decondies para que as opinies individuais sejam consideradas nas decisescoletivas;

    imprescindveis para garantir a participao democrtica e a legitimidadedo governo, tais mecanismos, so, no entanto, considerados comoinsuficientes, em funo da distribuio desigual de recursos quecondicionam a participao dos diferentes grupos na sociedade e pelalimitado espectro de poder de deciso da cidadania em sistemasrepresentativos;

    a cidadania, como concepo igualitria, requer a positivao dos direitossociais e a atuao estatal como garantia de sua vigncia;

    a dimenso social da democracia, representada pelo valor atribudo igual-dade, revela os limites da democracia representativa, exigindo novas formasconcomitantes de participao no poder poltico;

    a combinao do sistema de representao territorial com uma modalidadede representao corporativa, pretende ampliar assim o poder da cidadania,reduzindo as disfuncionalidades do sistema representativo;

    a combinao do sistema representativo com a participao direta emorganizaes pblicas auto-geridas pretende transformar a correlao deforas, alterando o equilbrio da hegemonia dominante, conformando umnovo Estado, em sua dimenso tanto de pacto de domnio quanto demodalidade de co-gesto pblica implementada por governos locais17.

    SADE: UTOPIA E PRTICA SOCIAL

    O projeto da Reforma Sanitria portava um modelo de democracia cujas baseseram, fundamentalmente: a formulao de uma utopia igualitria; a garantia da sadecomo direito individual e a construo de um poder local fo