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1 AGRICULTURA FAMILIAR E DESENVOLVIMENTO RURAL ENDÓGENO: elementos teóricos e um estudo de caso 1 Sergio SCHNEIDER 2 1. Introdução Atualmente, a discussão sobre a agricultura familiar vem ganhando legitimidade social, política e acadêmica no Brasil, passando a ser utilizada com mais freqüência nos discursos dos movimentos sociais rurais, pelos órgãos governamentais e por segmentos do pensamento acadêmico, especialmente pelos estudiosos das Ciências Sociais que se ocupam da agricultura e do mundo rural. Embora tardiamente, se comparada à tradição dos estudos sobre esse tema nos países desenvolvidos, a expressão “agricultura familiar” emergiu no contexto brasileiro a partir de meados da década de 1990. Neste período ocorreram a dois eventos que tiveram um impacto social e político muito significativo no meio rural, especialmente na região Centro-Sul. De um lado, no campo político, a adoção da expressão parece ter sido encaminhada como uma nova categoria-síntese pelos movimentos sociais do campo, capitaneados pelo sindicalismo rural ligado à Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Em meados dos anos de 1990, assistiu-se a uma verdadeira efervescência desses movimentos, que produziram inclusive formas de manifestação política que perduram até hoje, como é o caso dos eventos anuais em torno do “Grito da Terra”. Diante dos desafios que o sindicalismo rural enfrentava nesta época – impactos da abertura comercial, falta de crédito agrícola e queda dos preços dos principais produtos agrícolas de exportação –, a incorporação e a afirmação da noção de agricultura familiar mostrou-se capaz de oferecer guarida a um conjunto de categorias sociais, como, por exemplo, assentados, arrendatários, parceiros, integrados à agroindústrias, entre outros, que não mais podiam ser confortavelmente identificados com as noções de pequenos produtores ou, simplesmente, de trabalhadores rurais. De outro lado, a afirmação da agricultura familiar no cenário social e político brasileiro está relacionada à legitimação que o Estado lhe emprestou ao criar, em 1996, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Esse programa, formulado como resposta às pressões do movimento sindical rural desde o início dos anos de 1990, nasceu com a finalidade de prover crédito agrícola e apoio institucional às categorias de pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das políticas públicas ao longo da década de 1980 e encontravam sérias dificuldades de se manter na atividade. A partir do surgimento do Pronaf, o sindicalismo rural brasileiro, sobretudo aquele localizado nas regiões Sul e Nordeste, passou a reforçar a defesa de propostas que vislumbrassem o compromisso cada vez mais sólido do Estado com uma categoria social considerada específica e que necessitava de políticas públicas diferenciadas (juros menores, apoio institucional etc). 1 Trabalho apresentado no Seminário de Desenvolvimento rural: tendências e desafios contemporâneos, realizado em 26 e 27 de maio de 2003, pela UFSM, em Santa Maria. Agradeço ao Prof. Dr. José Marcos Froehlich pelo convite. 2 Sociólogo, Mestre e Doutor em Sociologia. Pesquisador do CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa). Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS. O autor registra seus agradecimentos ao CNPq pelo apoio concedido para continuidade de suas pesquisas sobre a agricultura familiar e o desenvolvimento rural. SCHNEIDER, S. Agricultura familiar e desenvolvimento rural endógeno: elementos teóricos e um estudo de caso. In: Froehlich, J.M.; Vivien Diesel. (Org.). Desenvolvimento Rural - Tendências e debates comtemporâneos. Ijuí: Unijuí, 2006

SCHNEIDER, S. Agricultura familiar e desenvolvimento rural ... · não apenas da agricultura e da produção agrícola, ... dos principais temas desse debate foi, e em larga medida

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AGRICULTURA FAMILIAR E DESENVOLVIMENTO RURAL

ENDÓGENO: elementos teóricos e um estudo de caso1

Sergio SCHNEIDER2

1. Introdução

Atualmente, a discussão sobre a agricultura familiar vem ganhando legitimidade social, política e acadêmica no Brasil, passando a ser utilizada com mais freqüência nos discursos dos movimentos sociais rurais, pelos órgãos governamentais e por segmentos do pensamento acadêmico, especialmente pelos estudiosos das Ciências Sociais que se ocupam da agricultura e do mundo rural.

Embora tardiamente, se comparada à tradição dos estudos sobre esse tema nos países desenvolvidos, a expressão “agricultura familiar” emergiu no contexto brasileiro a partir de meados da década de 1990. Neste período ocorreram a dois eventos que tiveram um impacto social e político muito significativo no meio rural, especialmente na região Centro-Sul. De um lado, no campo político, a adoção da expressão parece ter sido encaminhada como uma nova categoria-síntese pelos movimentos sociais do campo, capitaneados pelo sindicalismo rural ligado à Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Em meados dos anos de 1990, assistiu-se a uma verdadeira efervescência desses movimentos, que produziram inclusive formas de manifestação política que perduram até hoje, como é o caso dos eventos anuais em torno do “Grito da Terra”. Diante dos desafios que o sindicalismo rural enfrentava nesta época – impactos da abertura comercial, falta de crédito agrícola e queda dos preços dos principais produtos agrícolas de exportação –, a incorporação e a afirmação da noção de agricultura familiar mostrou-se capaz de oferecer guarida a um conjunto de categorias sociais, como, por exemplo, assentados, arrendatários, parceiros, integrados à agroindústrias, entre outros, que não mais podiam ser confortavelmente identificados com as noções de pequenos produtores ou, simplesmente, de trabalhadores rurais.

De outro lado, a afirmação da agricultura familiar no cenário social e político brasileiro está relacionada à legitimação que o Estado lhe emprestou ao criar, em 1996, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Esse programa, formulado como resposta às pressões do movimento sindical rural desde o início dos anos de 1990, nasceu com a finalidade de prover crédito agrícola e apoio institucional às categorias de pequenos produtores rurais que vinham sendo alijados das políticas públicas ao longo da década de 1980 e encontravam sérias dificuldades de se manter na atividade. A partir do surgimento do Pronaf, o sindicalismo rural brasileiro, sobretudo aquele localizado nas regiões Sul e Nordeste, passou a reforçar a defesa de propostas que vislumbrassem o compromisso cada vez mais sólido do Estado com uma categoria social considerada específica e que necessitava de políticas públicas diferenciadas (juros menores, apoio institucional etc).

1 Trabalho apresentado no Seminário de Desenvolvimento rural: tendências e desafios contemporâneos, realizado em 26 e 27 de maio de 2003, pela UFSM, em Santa Maria. Agradeço ao Prof. Dr. José Marcos Froehlich pelo convite.

2 Sociólogo, Mestre e Doutor em Sociologia. Pesquisador do CNPq (Bolsa Produtividade em Pesquisa). Professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS. O autor registra seus agradecimentos ao CNPq pelo apoio concedido para continuidade de suas pesquisas sobre a agricultura familiar e o desenvolvimento rural.

SCHNEIDER, S. Agricultura familiar e desenvolvimento rural endógeno: elementos teóricos e um estudo de caso. In: Froehlich, J.M.; Vivien Diesel. (Org.). Desenvolvimento Rural - Tendências e debates comtemporâneos. Ijuí: Unijuí, 2006

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Além desses dois elementos, pode-se destacar um terceiro, que diz respeito à

reorientação dos debates acadêmicos sobre a ruralidade. Surpreendentemente, a partir da segunda metade da década de 1990 assistiu-se a uma relativa retomada dos estudos agrários e rurais no Brasil que até então suscitara pouco interesse dos pesquisadores. Voltou-se a falar não apenas da agricultura e da produção agrícola, mas também do rural lato sensu. Esse novo cenário permitiu que os estudiosos ampliassem seu escopo temático para além das discussões acerca dos impasses e das possibilidades da reforma agrária e dos assentamentos, das questões relacionadas aos impactos do progresso tecnológico ou das migrações. Verifica-se, assim, a afirmação da temática ambiental e da sustentabilidade e assiste-se ao crescente interesse dos estudiosos por novos temas, como a agricultura familiar, a conformação dos mercados de trabalho e a dinâmica ocupacional da população rural.

Esse conjunto de novas temáticas, que passaram a ser objeto de pesquisas, ensejaram várias mudanças, que vão desde o estímulo ao interesse individual até reorientações de cunho teórico e epistemológico por parte de alguns investigadores. Contudo, a alteração de mais longo alcance, ainda não totalmente sedimentada nos meios sociopolíticos e no âmbito intelectual como um todo, talvez esteja relacionada à insistente afirmação de que não se pode mais confundir ou interpretar como sinônimos o espaço rural e as atividades produtivas ali desempenhadas. Embora isso não seja inteiramente novo, recentemente passou a ganhar projeção e reconhecimento no Brasil o argumento de que a agricultura como atividade produtiva não deixou de integrar o mundo rural, mas, em algumas regiões, observa-se a diminuição de sua importância no que concerne à geração de emprego e à ocupação.

Sem desconhecer que a agricultura ocupa um lugar de destaque no espaço rural, cuja importância varia segundo as regiões e os ecossistemas naturais, não se pode, contudo, imaginar que ela própria não tenha sido modificada no período recente. Em contextos internacionais, a dinâmica da própria agricultura no espaço rural vem sendo condicionada e determinada por outras atividades, passando a ser cada vez mais percebida como uma das dimensões estabelecidas entre a sociedade e o espaço ou entre o homem e a natureza. Talvez o exemplo emblemático dessa mudança estrutural seja a emergência e a expansão das unidades familiares pluriativas, pois não raramente uma parte dos membros das famílias residentes no meio rural passa a se dedicar a atividades não-agrícolas, praticadas dentro ou fora das propriedades. Essa forma de organização do trabalho familiar vem sendo denominada pluriatividade e refere-se a situações sociais em que os indivíduos que compõem uma família com domicílio rural passam a se dedicar ao exercício de um conjunto variado de atividades econômicas e produtivas, não necessariamente ligadas à agricultura ou ao cultivo da terra, e cada vez menos executadas dentro da unidade de produção. Ao contrário do que se poderia supor, esta não é uma realidade confinada ao espaço rural de países ricos e desenvolvidos.

2. Teoria Social e Agricultura Familiar

Uma revisão das principais contribuições teóricas do pensamento social que têm sido influentes no período recente para abordar os temas relacionados às sociedades rurais e à agricultura certamente apontaria o marxismo como uma das vertentes analíticas que mais se dedicou a esses objetos. O predomínio do instrumental analítico marxista é ainda mais significativo em relação às análises mais específicas sobre a agricultura familiar e as formas sociais de trabalho vigentes no mundo rural. Entre as hipóteses que justificam essa hegemonia pode-se apontar, provavelmente, o próprio referencial epistemológico com o qual opera a teoria social crítica, situado no campo dos aportes holísticos e nomológicos, que privilegiam o estudo das relações sociais e econômicas, a ação social e/ou os comportamentos e as

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representações dos indivíduos. Já com relação a outros temas, como é o caso dos processos de difusão e adoção do progresso tecnológico pelos agricultores, a contribuição da Sociologia Rural de orientação funcionalista (especialmente a norte-americana) certamente registra maior acúmulo de trabalhos. No entanto, as opções teóricas e metodológicas não devem ser feitas de acordo com a variação dos temas a serem estudados mas, ao contrário, orientadas pelas convicções epistemológicas e científicas do investigador.

Seguindo-se aos escritos fundadores de Marx, com a exceção notável das contribuições de Lênin e Kautsky (esse último escassamente difundido no Ocidente até meados da década de 1960), o debate marxista sobre a agricultura e as relações sociais por ela engendradas permaneceram circunscritos ao seu papel econômico no interior do processo de desenvolvimento do capitalismo. Ou seja, a principal questão perseguida pela maioria dos autores consistia em investigar se a instauração do modo de produção capitalista acarretava ou não determinadas formas de propriedade (que, assim acreditava-se, seriam necessariamente semelhantes àquelas estudadas por Marx em relação ao caso inglês) e, em conseqüência, um certo tipo de estrutura de classes. Por esta razão, entre a década de 1920 e meados dos anos sessenta, a maior parte dos estudos propriamente sociológicos sobre as sociedades agrárias e o mundo rural foram realizados por outras tradições teóricas do pensamento social que não o marxismo, como é o caso, em particular, do estrutural-funcionalismo (Newby, 1987).

Nesse sentido, é sintomático o fato de que, para o marxismo, no período mencionado, a agricultura e o mundo rural tivessem sido tratados como “questão agrária”, expressão que rotulou o debate acerca dos rumos e especificidades da penetração do capitalismo na agricultura, sob o ponto de vista do processo de acumulação de capital e de formação da estrutura de classes. As relações sociais e as categorias agrárias eram tratadas sob tal enfoque a partir da perspectiva do desenvolvimento do capitalismo. Embora tenham havido alguns impasses críticos em relação a certos aspectos dessa tradição, é preciso reconhecer que a abordagem marxista, ao contrário das outras vertentes sociológicas, teve o mérito de mostrar como determinadas formas sociais são superadas ou eliminadas, à medida que avança o processo de divisão social do trabalho na sociedade capitalista e indicar como aparecem novas categorias em seu lugar que são incorporadas às formas sociais pré-existentes. As ressalvas, referem-se sobretudo a um evidente grau de reducionismo conceitual, fruto de interpretações dedutivistas em relação à contribuição original de Marx, que acabou privilegiando excessivamente os aspectos econômicos das relações sociais do campo, relegando a plano secundário as demais dimensões que conformam os arranjos societários. Apesar disso, nenhuma outra tradição teórica do pensamento social foi capaz de produzir interpretações tão vigorosas e abrangentes sobre o desenvolvimento do capitalismo na agricultura e as transformações das sociedades rurais e agrárias.

Contudo, a partir de meados da década de 1970, a literatura marxista sobre a agricultura e o mundo rural ganhou novo impulso e passou a ser difundida nos principais centros universitários. Essa mudança parece estar fortemente relacionada, naqueles anos, à própria ascensão acadêmica do marxismo enquanto um método científico de análise do social. Em razão disso, houve um deslocamento da questão agrária original, tal como enfatizado nas obras de Marx, Lênin e Kautsky (aqui entendida como uma questão política de acumulação de forças a favor da luta de classes), para uma reflexão acerca das características e particularidades do processo de desenvolvimento do capitalismo no campo (Buttel, Larson, Gillespie, 1990). Um dos principais temas desse debate foi, e em larga medida ainda continua a ser, a reflexão acerca da estrutura social e das formas da organização produtiva que vigorariam na agricultura capitalista. Nesse sentido, em razão do amplo predomínio da agricultura familiar na estrutura agrária dos países desenvolvidos, que se ampliou fortemente a partir do final da Segunda Guerra Mundial e durante o ciclo expansionário dos “anos dourados” (1945-1973), o debate

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passou a concentrar-se em torno da persistência das unidades agrícolas baseadas no trabalho da família3. Por este motivo, quando se opta pelo estudo da agricultura familiar deve-se ter consciência de que se trata de um tema umbilicalmente arraigado no pensamento social marxista, embora não seja, evidentemente, de seu domínio exclusivo.

Pela sua complexidade e magnitude, uma revisão abrangente e detalhada da literatura marxista acerca da agricultura familiar certamente não é tarefa simples. Não cabe aqui um escrutínio dos erros e acertos do marxismo em relação aos desígnios do desenvolvimento do capitalismo no campo e tampouco um esforço comparativo de avaliação em relação às vertentes teóricas concorrentes. Acredita-se que a teoria marxista ainda guarda potencialidades explicativas quando se pretende discutir o trabalho e suas formas de materialização, quer sejam familiares ou sociais, em determinados ambientes econômicos e produtivos, como é o caso das famílias rurais que possuem pequenas propriedades de terra.

Assim, é preciso um esforço de situar a discussão teórica sobre a agricultura familiar no debate mais amplo sobre a persistência das formas familiares de trabalho e de produção no interior do capitalismo. A dinâmica socioeconômica destas formas sociais no meio rural configura-se como uma projeção particular do conjunto das relações de produção e trabalho que existem e se reproduzem nos marcos de uma sociedade mais ampla onde imperam as relações sociais de caráter capitalista. O modo pelo qual a forma familiar interage com o capitalismo pode variar e assumir feições heterogêneas e muito particulares. É bem verdade que em alguns casos históricos, as formas sociais identificadas com o trabalho familiar acabaram sucumbindo e foram absorvidas pelo próprio capitalismo. Em outros contextos, entretanto, a presença do trabalho familiar em unidades produtivas agrícolas pôde desenvolver relações estáveis e duradouras com as formas sociais e econômicas predominantes como é o caso, só para dar um exemplo, da integração dos agricultores familiares às empresas agroindustriais que operam no regime de integração. Em várias situações e contextos as unidades familiares subsistem com uma relativa autonomia em relação ao capital e vão se reproduzindo nessas condições. A sua permanência ao longo do tempo não é estática e vai depender de sua relação com as formas distintas e heterogêneas de estruturação social, cultural e econômica do capitalismo, em um certo espaço e contexto histórico.

Neste sentido, deve-se abandonar aquelas perspectivas de análise e interpretação que se baseiam em um raciocínio dualista, tipológico e ordenador da heterogeneidade social e econômica que caracteriza as formas familiares de produção. Para estas perspectiva, às formas familiares corresponderiam características como trabalho familiar, resistência à apropriação do excedente via mercado, propriedade de meios de produção, busca de autonomia etc. Já as formas capitalistas seriam definidas por assentarem-se em trabalho assalariado, apropriação de mais-valia, reprodução ampliada, racionalidade dirigida à obtenção de produtividade e rentabilidade, entre outros aspectos. Dessa classificação derivam qualificações empíricas, muitas vezes utilizadas para caracterizar os próprios produtores, como a polarização entre produtor tecnificado ou capitalizado versus os camponeses, pobres ou tradicionais. Segundo Neves (1995), esse tipo de raciocínio deriva de equívocos metodológicos que reduzem a compreensão e a análise das formas sociais existentes no campo à mera contraposição de dois segmentos: um social, caracterizado pelas unidades familiares, e outro, econômico, consagrado à empresa capitalista.

Para fugir a este tipo de raciocínio e interpretação é necessário elaborar uma outra compreensão. Como no espaço deste artigo não será possível abordar em profundidade estas questões, apresentar-se-á um síntese das idéias desenvolvidas em outro trabalho (Schneider,

3 Para um visão histórica da presença da agricultura familiar nos principais países ocidentais, consultar Veiga (1991), Abramovay (1992), Gervais, Jollivet e Tavernier (1977).

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2003). A seguir, são indicados alguns elementos que se consideram úteis na elaboração de uma definição mais abrangente para compreensão da categoria social denominada agricultores familiares a partir da perspectiva de análise mais geral das formas familiares de organização do trabalho e da produção existentes no interior da sociedade capitalista contemporânea.

O primeiro elemento diz respeito à forma de uso do trabalho. As unidades familiares funcionam, predominantemente, com base na utilização da força de trabalho dos membros da família que, por sua vez, podem contratar, em caráter temporário, outros trabalhadores. No entanto, a utilização de critérios de quantificação para determinar o limite a partir do qual uma unidade familiar que usa trabalho contratado deixa de ser considerada como tal constitui-se em operação heurística que, isoladamente, não é suficiente para se entender e se caracterizar sociologicamente sua natureza, ou seja, como vivem seus integrantes e por que tomam determinadas decisões.4

O segundo elemento refere-se aos obstáculos oferecidos pela natureza, que impedem uma eventual correspondência, em essência, entre a atividade produtiva agrícola e industrial. Embora notórios, os avanços científicos e tecnológicos ainda não conseguiram eliminar a “base natural” sob a qual se assenta a produção de alimentos e fibras, e muito menos subverter os processos produtivos agrícolas a ponto de suprimir a distinção, em termos de funcionamento, entre agricultura e indústria.5 De fato, malgrado argumentos contrários, um olhar atento sobre a produção agrícola é suficiente para convencer o observador de que se trata de uma atividade ainda muito dependente de fatores naturais como clima, solo, ou equilíbrio dos ecossistemas. Na agricultura, o tempo de trabalho que se gasta para produzir uma mercadoria, sobretudo nas situações em que a produção é especializada, não corresponde ao tempo de produção necessário à sua elaboração. Além disso, é cada vez mais perceptível o apelo que a produção dita “natural” exerce sobre os consumidores, forjando, inclusive, situações específicas de mercado para essas mercadorias. Portanto, as barreiras naturais continuam limitando o desenvolvimento de economias de escala na agricultura, impedindo, assim, uma total subordinação dos processos produtivos ao interesse do capital e, por isso, operando com base em relações de trabalho não assalariadas. Não é por acaso que uma parcela majoritária da produção agroalimentar dos países capitalistas mais desenvolvidos continua nas mãos dos agricultores familiares.

O terceiro elemento pode ser extraído da teoria social. A tradição marxista sempre privilegiou o enfoque do desenvolvimento agrário como um processo macrosocial e econômico sem considerar a resiliência das formas familiares e reconhecer a capacidade de adaptação e interação dessas categorias sociais com o sistema dominante. Considera-se que este enfoque precisa sofrer um ajustamento, sendo necessário deslocar seu referencial holística e nomológico para a compreensão das formas de articulação da agricultura familiar com o ambiente social e econômico em que estiver inserida. Este ambiente é constituído por um conjunto de instituições que fornece estímulos e determina os limites e as possibilidades, exercendo, assim, uma influência decisiva sobre as decisões individuais e familiares. As relações dos agricultores com o ambiente social e econômico podem ocorrer por meio do crédito, do financiamento ou de outra forma de apoio institucional – Estado ou ONGs –, e também pelo acesso a mercados de produtos (compra de insumos e venda de mercadorias,

4 Quando um pesquisador analisa uma situação concreta, tendo como variável a forma de uso da força de trabalho, e chega a conclusão de que a caracterização de determinadas unidades se dá pelo seu caráter familiar ou capitalista, ele está, no limite, reproduzindo uma fórmula dualista de pensamento que pouco auxilia a explicação sociológica. Para o aprofundamento dessa questão, consultar o excelente artigo de Neves (1995). 5 Há uma vasta bibliografia que discute as particularidades ou os obstáculos naturais para a realização da produção capitalista na agricultura. As posições mais interessantes sobre esse tema foram desenvolvidas por Mann (1990, cap. 1) e Abramovay (1992, p. 247).

[AN1] Comentário: Sugiro suprimir essa afirmação, pois da maneira como está dita soa estranho imaginar quais seriam as formas que os integrantes de uma família usam para se reproduzir.

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relação com a agroindústria etc.), mercado de trabalho (como a possibilidade de obter rendas em atividades não-agrícolas), acesso e informações e inovações produzidas pelo progresso tecnológico. Além disso, o ambiente social e econômico também compreende as expectativas cambiantes e as percepções que as famílias nutrem em relação ao seu futuro e às possibilidades de desenvolvimento do local em que vivem.

Contudo, o elemento central que patrocina a relativa estabilidade e exerce um papel regulador entre os diferentes aspectos aqui apresentados é a própria natureza familiar das unidades agrícolas, que está assentada nas relações de parentesco e de herança existentes entre seus membros. É no interior da família e do grupo doméstico que se localizam as principais razões que explicam, ao mesmo tempo, a persistência e a sobrevivência de certas unidades e a desagregação e o desaparecimento de outras.6 As decisões tomadas pela família e pelo grupo doméstico ante as condições materiais e o ambiente social e econômico são cruciais e definidoras das trajetórias e estratégias que viabilizam ou não sua sobrevivência social, econômica, cultural e moral.

Mesmo que em certos casos as unidades familiares estejam submetidas a determinados condicionantes externos como, por exemplo, o monopólio de preços ou os diferentes tipos de mercado (de trabalho, de crédito, de produtos e insumos, entre outros), o fato de estruturarem-se com base na utilização da força de trabalho de seus membros permite que determinadas decisões se tornem possíveis, o que muitas vezes um agricultor amplamente inserido na dinâmica capitalista, contando com a contratação de assalariados, não poderia concretizar ou sofreria fortes restrições. Isso não significa concordar com a idéia de que essa especificidade do caráter familiar seja suficiente para explicar por que algumas unidades conseguem reproduzir-se ou resistir, mesmo em condições adversas.

A reprodução social, econômica, cultural e simbólica das formas familiares dependerá de um intrincado e complexo jogo pelo qual as unidades familiares se relacionam com o ambiente e o espaço em que estão inseridas. Nele os indivíduos e a família devem levar em conta o bem-estar e o progresso de sua unidade de trabalho e moradia e as possibilidades materiais de alcançar determinados objetivos. Desse modo, a reprodução não é apenas o resultado de um ato da vontade individual ou do coletivo familiar, e tampouco uma decorrência das pressões econômicas externas do sistema social. A reprodução é, acima de tudo, o resultado do processo de intermediação entre os indivíduos-membros com sua família e de ambos interagindo com o ambiente social em que estão imersos. Nesse processo cabe à família e a seus membros um papel ativo, pois suas decisões, estratégias e ações podem trazer resultados benéficos ou desfavoráveis à sua continuidade e reprodução.

Essa perspectiva permite romper com o usual reducionismo classificatório dos estudos sobre a agricultura familiar, pois nem a categoria trabalho familiar estritamente, nem a contratação ou não de assalariados, nem tampouco as relações com o mercado servem, isoladamente, como critérios para definir a natureza de uma determinada forma social. Nesse sentido, é preciso admitir que determinadas formas sociais se transformam (no sentido de que se superam), se metamorfoseiam e se reproduzem fora do escopo rígido das leis de valorização do capital. Trata-se de aceitar a hipótese de que determinadas formas sociais estabelecem relações com o modo de produção dominante sem que, a priori, elas assumam um caráter capitalista. A contratação eventual ou regular de assalariados pelas unidades familiares ou sua inserção em circuitos mercantis, seja pela venda da força de trabalho (via atividades não-agrícolas), seja pela venda de produtos agrícolas, não autoriza a categorização compulsória como capitalistas.

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3. Metamorfoses da Agricultura Familiar no Rio Grande do Sul

A partir dos elementos teóricos delineados pretende-se examinar a dinâmica das formas familiares de organização do trabalho e da produção presentes no meio rural do Rio Grande do Sul expressas na categoria social dos agricultores familiares. O grupo social formado pela agricultura familiar será, portanto, o objeto de interesse desta reflexão sociológica.

Não obstante, quando se busca aproximar os conceitos analíticos e o referencial teórico das categorias empíricas e dos processos sociais concretos tornam-se necessárias duas mediações fundamentais. A primeira delas está na necessidade de se reconhecer que os conceitos e os referenciais analíticos nunca são instâncias abstratas prontas, terminadas e concluídas, pois nascem a partir de uma formulação original, são burilados ao longo do tempo, mas sempre ficam na dependência da renovação e atualização em virtude da mutabilidade constante da base empírica. Daí decorre a necessidade permanente de aperfeiçoamento das categorias de análise, algo que só pode ser adequadamente realizado através do processo contínuo de investigação.

Outra mediação necessária refere-se ao recorte espacial e temporal dos objetos e processos a serem investigados. No caso específico aqui abordado, a agricultura familiar, será necessário deixar claro que se trata da agricultura familiar do Rio Grande do Sul, cuja origem social remonta ao processo de ocupação espacial promovido pela colonização com imigrantes de origem européia iniciada na primeira metade do século XIX, com a chegado dos colonos de origem alemã, na localidade onde hoje se encontra o município de São Leopoldo, no ano de 1824.

Obedecendo-se a estas demarcações teóricas e conceituais e seguindo-se as recomendações sobre as mediações necessárias, nesta segunda parte do artigo pretende-se adiantar algumas noções que consideradas fundamentais para o estudo da agricultura familiar gaúcha na perspectiva analítica proposta na primeira seção.

Para o estudioso que analisa as formas familiares de trabalho e suas estratégias de reprodução ao longo da história, a primeira questão que se apresenta para ser respondida refere-se à comparação entre a configuração atual agricultura familiar (ou dos grupos sociais assim identificados) em relação àquelas formas sociais que se implantaram no Rio Grande do Sul através dos processos de colonização. Objetivamente, a indagação é sobre a possibilidade de se afirmar que o colono de antigamente é o agricultor familiar de hoje em dia7.

Segundo o entendimento que será adotado neste trabalho, embora os grupos sociais formados pelos assim denominados colonos de ontem e agricultores familiares de hoje sejam os mesmos, para efeito de sua compreensão teórica e conceitual é preciso distinguí-los e mostrar que sua existência e reprodução social obedece à características sócio-culturais e à uma racionalidade econômica que não são análogas. Portanto, vale a pena frisar, em termos empíricos e do senso comum, os indivíduos e as famílias que se denominam colonos e/ou agricultores familiares constituem um mesmo grupo social mas, do ponto de vista analítico e conceitual, eles formam duas categorias distintas.

Embora mantenham semelhanças objetivas entre si como a propriedade de um pequeno lote de terra, o uso predominante do trabalho da família na consecução das tarefas produtivas, o acesso à terra mediante a herança, a manutenção de vínculos sociais assentadas em relações de parentesco entre outras; o traço fundamental que distingue os agricultores familiares dos colonos assenta-se no caráter dos vínculos mercantis e das relações sociais que estas unidades

6 Essa perspectiva de análise está de acordo com as idéias de Friedmann (1978a, 1978b) e Carneiro (1996). 7 Semelhante questão se coloca na discussão entre campesinato versus agricultura familiar, em que a interrogação fundamental está na existência ou não de diferenças.

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passam a estabelecer à medida que se intensifica e se torna mais complexa a sua inserção na divisão social do trabalho. Ou seja, é o maior envolvimento social, econômico e mercantil que torna o agricultor familiar, ao mesmo tempo, mais integrado e mais dependente da sociedade capitalista moderna.

Neste sentido, a análise de situações e processos sociais concretas tentará identificar como se dá esta diferenciação, mostrando que não ocorre uma ruptura total e a polarização antagônica entre o colono e o agricultor familiar, mas uma metamorfose, que consiste em uma transformação com a manutenção de determinados características e a superação de outras. A tarefa que se impõem ao investigador, nestes termos, é verificar como se deu esta evolução ao longo do tempo, quais foram os processos que determinaram mudanças e/ou alterações fundamentais e de que modo os agentes (os indivíduos e as famílias envolvidas) reagiram a eles. Conforme antes indicado, o objetivo perseguido não será o de formular tipologias e classificações, mas refletir sobre processos sociais e identificar as estratégias de reprodução dos agentes buscando perceber como se dá a transformação e a integração de determinada categoria social específica à dinâmica econômica e societária mais geral.

Como ponto de partida, a abordagem sugerida começará pela análise dos aspectos sociais, econômicos e culturais que caracterizam o grupo social identificado como colonos, que se originou do processo de ocupação territorial e assentamento dos imigrantes de origem européia no Rio Grande do Sul. Os colonos configuram uma determinada formação social que pode ser caracterizada como um modo de vida (Schneider, 1999; 2002). A noção de modo de vida, aqui sugerida, inspira-se na idéia originalmente desenvolvida por Antônio Cândido (1987), em seu clássico estudo sobre os caipiras paulistas, onde indica que o funcionamento de um determinado grupo social sempre está assentado em uma forma de organização da produção e uma forma de sociabilidade. O conceito de formas sociais, que podem ser de trabalho e de produção bem como de sociabilidade, sugerido por Cândido, permite compreender tanto as relações materiais e as estratégias necessárias para garantir a organização dos meios de produção como as relações de sociabilidade (parentesco, reciprocidade, etc) e a cultura de um determinado grupo social. Trata-se, portanto, de um recurso analítico e interpretativo que pode ser utilizado para descrever e interpretar o funcionamento do modo de vida dos colonos no Rio Grande do Sul8.

Embora a forma de produção e a forma de sociabilidade estejam intimamente ligadas na formação deste modo de vida, para efeitos heurísticos acredita-se ser possível abordá-los de modo desagregado. Na segunda parte deste trabalho será adotado esse procedimento, conferindo-se maior ênfase aos aspectos econômicos e produtivos com o intuito de demonstrar como transcorreu o processo lento e gradual de mudança e superação do modo de vida colonial e, em seu lugar, emergindo a agricultura familiar, tal como definida nas seções anteriores. Neste sentido, buscar-se-á descrever o processo de evolução e transformação do que se chamará sistema produtivo colonial (ou seja, uma determinada forma social de organização da produção e do trabalho), que é entendido como um conjunto de estratégias produtivas e de manejo dos agroecossistemas que os colonos foram colocando em prática ao longo da história.

O entendimento do processo de evolução e transformação das formas familiares será baseado em um estudo de caso tomando-se como referência a região da Encosta Superior da

8 Para uma discussão do significado dos conceitos de modo de vida e formas sociais remete-se o leitor a obra de Marx (1986; Marx e Engels,1986) quando discute as relações ontológicas Homem X Natureza e o processo de socialização pelo labor como primeiro passo para o surgimento de uma divisão social do trabalho em grupos sociais. Cândido (1987), em sua obra referencial sobre os caipiras do Rio Bonito e a cultura do cururu, destaca o papel do uso dos meios de vida em sociedade simples (fatores de produção). Este autor ressalta que a reprodução social dos indivíduos e sua sociabilidade dependem da existência de uma organização social que possa prover os recursos mínimos vitais, sem os quais a existência social não é possível.

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Serra do Nordeste e o município de Veranópolis. Neste tipo de análise a atenção maior recairá sobre a forma de acesso da terra, o processo produtivo, o uso da força de trabalho, o acesso ao progresso técnico e ao crédito e as relações com o mercado.

No primeiro item aborda-se a ocupação e a formação do sistema produtivo colonial, indicando como se deu o processo de assentamento, arroteamento das terras, instauração dos primeiros cultivos e o frágil acesso aos mercados.

No segundo da discute-se a evolução do sistema produtivo colonial, identificando o processo de especialização de alguns cultivos e produtos que passaram a ter maior viabilidade comercial. Em razão disto, o comércio se intensifica e as comunicações com os centros consumidores se amplia. Em ambas as fases, indica-se que o sistema produtivo estabelecido permitia aos colonos uma reprodução social semi-autônoma.

A partir da década de 1970, contudo, o sistema produtivo colonial passou a ser submetido a um conjunto variado de pressões sociais e econômicas que resultaram em um processo de transformação estrutural que comprometeu várias de suas características originais. Estas mudanças na forma de produção também afetaram aspectos da cultura e da sociabilidade, o que acabou transformando e metamorfoseando o próprio modo de vida.

Neste terceiro item, analisa-se as mudanças ocasionadas pela modernização tecnológica dos processos produtivos agrícolas, procurando demonstrar que a mercantilização crescente da vida social e econômica dos colonos conduziu à uma integração social e econômica crescente e uma maior dependência do mercado. Como resultado deste processo, reduziu-se consideravelmente a autonomia das famílias rurais e as estratégias de reprodução social tornaram-se cada vez mais subordinadas e dependentes. É neste cenário que surge a agricultura familiar, que ao ampliar a interação mercantil com o ambiente social e econômico amplia também suas relações de dependência, o que resulta em um processo de reprodução social significativamente distinto daquele vivido pelos colonos, porque se torna mais dependente e subordinado.

Este processo de transformação econômico e produtivo e a metamorfose social que lhe corresponde, que faz a emergir a agricultura familiar como uma categoria-social síntese, constitui-se no que será denominado desenvolvimento rural endógeno.

4. O Desenvolvimento Rural Endógeno e a Agricultura Familiar na Encosta Superior do Nordeste: um estudo de caso

O principal objetivo desta seção consiste em apresentar a dinâmica local de evolução e transformação da agricultura familiar na região da Encosta Superior da Serra do Nordeste, focalizando o município de Veranópolis. Atenção especial será dada à compreensão das diferenciadas estratégias de reprodução social que foram aparecendo ao longo do tempo e o modo pelo qual os agricultores lograram uma inserção econômica e produtiva em sua região de origem, o que permitiu a emergência de um processo endógeno de desenvolvimento.

Sob este enfoque, buscar-se-á verificar suas raízes históricas e caracterizar a evolução deste processo desenvolvimento rural endógeno. Sinteticamente, este processo constitui-se no resultado da combinação de um conjunto de fatores sócio-econômicos e histórico-culturais que, reunidos em um mesmo território, levaram ao desenvolvimento de uma matriz produtiva e uma conformação social que se reproduz a partir das sinergias produzidas pelo próprio processo endógeno de acumulação de capital. Esta acumulação não se refere apenas ao capital na sua forma de mercadoria de troca mas também aos outros modos de valorização do trabalho de um determinado grupo social.

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Antes de referir especificamente o processo de ocupação, colonização e expansão

italiana em Veranópolis vale a pena situar o contexto mais geral em que ocorre este assentamento de imigrantes europeus. A Colônia de Alfredo Chaves, atual município de Veranópolis, foi criada em 1885 em uma localidade então conhecida como Roça Reúna. A colônia original era dividida em 53 linhas, com um total de 3.644 lotes e uma área de 93.500 hectares. Além dos italianos majoritários, em Alfredo Chaves também se estabeleceram poloneses e franceses. A religião amplamente majoritária dos colonos era a católica. A caracterização da estrutura fundiária aponta para a forte presença de estabelecimentos agropecuários com áreas não superiores a 20 hectares. Esta hegemonia das pequenas propriedades na região decorre das particularidades do processo de colonização e ocupação da região, que teve início no ano de 1875 através do assentamento de colonos de origem italiana.

A determinação das fases a seguir apresentadas não obedece a um rigor metodológico, razão pela qual ficará exposta as críticas de historiadores ciosos e cuidadosos em relação à datação cronológica dos eventos. Contudo, ciente deste limite, cabe informar que a inspiração para o estabelecimento destes períodos decorre da trajetória pessoal de estudos sobre a agricultura colonial no Sul do Brasil e de uma pesquisa de campo qualitativa no município de Veranópolis, na região estudada.

4.1 Ocupação e formação do sistema produtivo colonial (1875/1890 até 1930)

Este primeiro período corresponde a fase de ocupação dos lotes e assentamento dos colonos. Schmitt (2001), definiu este período como de uma “agricultura de corte e queimada com comercialização de excedentes”. Parece razoável imaginar que esta caracterização corresponda ao processo ocorrido, pois há que se considerar que a propriedade definitiva do lote colonial estava não só condicionada ao pagamento da terra e das despesas com a imigração pelos colonos, o que obviamente demandava recursos monetários, como também pela necessidade de justificar sua utilização produtiva. Em face da fertilidade inicial dos solos recém submetidos à queimada, os novos habitantes não precisavam se preocupar com a utilização de técnicas de cultivo e manejo que prezassem pelos cuidados ambientais.

Durante a primeira fase da agricultura os colonos cultivavam produtos vegetais como o milho, a abóbora, amendoim, batata-doce, feijão e mais tarde o trigo. A criação de animais era ainda muito restrita, limitando-se no geral aos animais de carga. Os principais instrumentos de trabalho eram basicamente o machado, a serra à mão, o facão, a enxada e a cavadeira. Estes cultivos e este meios de produção formam o sistema produtivo colonial, cujo principal propósito era prover a alimentação da família e conseguir pagar as dívidas do assentamento.

Um vez chegado ao lote colonial, a maioria dos colonos começava a desmatar e desbravar a floresta. Desta atividade inicial resultou inclusive uma outra acessória, de grande importância para os colonos e para a economia local da região da Encosta Superior da Serra que eram as serrarias. A exploração da madeira, especialmente a derrubada de araucárias, assim como o conserto de estradas e a construção de alojamentos para os novos colonos foram, por isto, uma fonte de recursos não-agrícolas importantes para os italianos recém chegados, que com isto puderam facilmente saldar suas dívidas de viagem a quitar a compra do loto colonial. Isto demonstra que a instalação dos colonos na Serra gaúcha ocorreu de forma integrada aos circuitos mercantis ali existentes ou criados em função do própria processo de colonização e não de instalação de uma economia de subsistência.

Além das serrarias, que conheceram seu auge na fase de 1890 a 1920, uma vez iniciado o cultivo agrícola nas propriedades, cujos principais produtos eram o milho, o trigo, a erva-mate e outros, os colonos logo passaram a demandar outros tipos de serviços fazendo com que

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as antigas habilidades artesanais dos imigrantes italianos pudessem também ganhar espaço e se desenvolver. Foi assim que, desde o início da colonização, uma gama variada de estabelecimentos industriais assumiu um papel de destaque na economia colonial. Tomando-se exclusivamente o caso de Veranópolis, verifica-se que no ano de 1911, quando foi realizado o recenseamento, havia um total de 45 moinhos, 30 alambiques, 35 sapatarias, 2 fábricas de chapéus, 7 fábricas de açúcar e rapadura, 5 cervejarias, 39 ferrarias, 32 carijos,13 curtumes, 6 selarias, 11 alfaiatarias, 7 funilarias, 20 carpintarias para construção de carroças, entre outros (Farina, 1992, p. 83).

Importante ressaltar que o assentamento dos colonos nas terras da Serra gaúcha dava-se sob certas condições de ocupação produtiva. Assim, o título definitivo da terra dependia da quitação integral do lote e das demais dívidas contraídas pelos colonos com a administração pública. Deveriam ainda ser capazes de comprovar a derrubada da mata após recebido o lote e fixar residência e cultivar a terra por período de pelo menos um ano. Para saldar estas exigências muitos colonos apelavam para o trabalho em atividades de prestação de serviços como a abertura de estradas, a construção de pontes, a instalação de barracões para alojamento de novos colonos, que representavam quase sempre a única fonte monetária utilizada para saldar as dívidas.

Estes condicionantes levaram a rápida derrubada das florestas e o início dos cultivos agrícolas, o que resultou quase sempre em uma agricultura predatória e altamente devastador das florestas sub-tropicais ali existentes. Além disso, deve-se também destacar que este modelo produtivo dependia, desde o princípio, da produção de excedentes comercializáveis. Do contrário, não seria possível ao colono, em prazo estabelecido, quitar suas dívidas e garantir a propriedade do lote. Em face a isto, os canais de comercialização da produção agrícola da Serra desenvolveram-se quase concomitantemente à ocupação das terras do planalto, pode-se afirmar que o sistema produtivo que aí nasce já está inserido nos circuitos mercantis desde o princípio.

A região de colonização italiana da Encosta Superior do Nordeste pôde desenvolver-se ainda mais intensamente a partir da melhoria dos meios de comunicação que ligavam a Colônia à Capital. Esta melhora ocorreu no período 1908-1910 mediante a extensão da rede ferroviária até Caxias do Sul e, já ano de 1919, foi estendido um ramal até Bento Gonçalves (Roche, 1969, 64). Os canais de comércio e escoamento da produção, na verdade, já existiam na região de colonização alemã, que havia se estabelecido do andar inferior da Serra do Nordeste. Nesta região, as vias fluviais (rio Caí e rio Taquari) eram navegáveis e representavam um excelente meio de transporte e acesso a ampla variedades de produtos como sementes e ferramentas de trabalho, por exemplo. Além disto, já no ano de 1908 a ferrovia alcança as colônias italianas da Serra ligando-as à Capital Porto Alegre ao sul e ao centro do País pelo norte, o que provoca uma reorientação econômica em toda a região pois ampliam-se drasticamente os canais para comercialização dos produtos coloniais9.

A partir da década de 1910 as colônias italianas da Serra gaúcha puderam abandonar rapidamente o extrativismo vegetal como principal fonte de renda monetária. Deste período em diante e, sobretudo, no imediato pós-I Guerra Mundial, em 1917, amplia-se a demanda por produtos alimentares da colônia e a produção agrícola que até então pequena e destinada exclusivamente para o autoconsumo passa a entrar nos circuitos mercantis. A partir de então o sistema produtivo colonial assume suas características mais acabadas, o que significa a manutenção de uma forte autonomia de reprodução social baseada na produção policultora de subsistência e na venda de excedentes comercializáveis. Estes excedentes passaram a ser o

9 Em 1908 a ferrovia chega a localidade de trinta e cinco (hoje Carlos Barbosa) e em 1918 estende-se um ramal por Bento Gonçalves que vai até Garibaldi. No final da década de 1970 a ferrovia Porto Alegre-Caxias foi desativada.

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trigo, o milho e o vinho e, mais tarde, a partir da década de 1920, os derivados de suínos, sobretudo a banha.

4.2. Evolução e crise do sistema produtivo colonial (1930 até 1960)

A partir da década de 1930 a agricultura colonial de Veranópolis como de resto de toda a região Encosta Superior da Serra do Nordeste se caracterizará por um processo de aprofundamento e diferenciação em relação ao período anterior sem, contudo, sofrer modificações estruturais no sistema de corte e queimada com comercialização de excedentes. De modo geral, o período de 1930 a 1960 pode ser entendido como uma época de especialização produtiva, com destaque para alguns cultivos, ampliação das áreas cultivadas nas propriedades, aprofundamento das relações mercantis e expulsão demográfica do excedente populacional.

Cabe registrar que entre 1930 e 1960 o sistema produtivo colonial da região vitinicultora passa por duas fases, ambas conduzindo a uma maior especialização produtiva das propriedades o que se deve, em boa medida, a diminuição da extração de madeiras devido ao desmatamento intensivo ocorrido no período anterior. A primeira fase compreende os anos entre 1930 e 1950, quando a presença dos cereais, especialmente o trigo e o milho, e a criação de suínos são as atividades mais importantes na região, particularmente no município de Veranópolis. A partir de 1950 a produção de cereais se desloca para a região do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, avançando também rapidamente em Santa Catarina e no Paraná, e a produção de suínos entra em crise devido ao surgimento dos óleos comestíveis vegetais à base de soja. Como alternativa produtiva, os agricultores da região se especializam na produção de uva e vinho (sobretudo Caxias, Bento, Antônio Prado, Fores da Cunha e outros) e introduzem novas variedades de produtos alimentares destinados ao mercado local e regional como é o caso da batata-inglesa em Carlos Barbosa, da maçã em Veranópolis e do alho em São Marcos.

Esta ampliação da superfície de terra utilizada provoca mudanças no sistema de rotação de terras produzindo como efeito imediato a redução do período de pousio de algumas áreas e a intensificação da sucessão de cereais no inverno e no verão (trigo/milho). Além disto, a introdução de equipamentos como o arado, agora possível devido a inexistência de tocos e toiceiras de árvores, ampliará a capacidade de produção e o rendimento do trabalho. Obviamente, o uso destes equipamentos e técnicas também prevê a demanda de animais de tração como bois, cavalos e mulas, observando-se com isto um aumento significativo de animais nas propriedades e, consequentemente o aparecimento da adubação do solo com o esterco.

Em razão disto, as décadas de 1930 e 1940 constituem-se, provavelmente, na era de ouro da agricultura na região do município de Veranópolis. Trata-se de um período de expansão impressionante dos volumes produzidos, o que faz ampliar a oferta de produtos da colônia (Farina, 1992; Costa, 1998). Como conseqüência, os agricultores tendem a se especializar em alguns cultivos “para a venda” e outros “para o gasto”. Planta-se trigo e uva para vender e milho para alimentar os porcos também destinados à venda e produz-se batata, feijão, leite, e outros para o consumo doméstico. Conforme antes mencionado, embora a agricultura colonial seja inserida aos circuitos mercantis desde sua origem, os colonos mantêm a autonomia alimentar ao produzir os produtos para autoconsumo e subsistência.

Este crescimento da produção agrícola é acompanhado pelo desenvolvimento de duas outras atividades econômicas: o transporte e o comércio local. Na maioria das vezes, quem realizava estas duas atividades era a mesma pessoa, o dono da Casa do Comércio. Os comerciantes centralizavam a produção agrícola em seus estabelecimentos e a conduziam até a ferrovia. Em Veranópolis, em razão da distância de 30 quilômetros a ser percorrida até Bento

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Gonçalves, a atividade de transporte de produtos agrícolas teve grande importância. Na década de 1920, somente nesta em Alfredo Chaves (atual Veranópolis) havia 29 Casas de Comércio (Farina, 1992, p. 92). Em razão disto, o comerciantes foram os primeiros indivíduos a ascender social e economicamente em relação aos demais colonos. Um dos sinais externos mais salientes desta diferenciação sócio-econômica a ostentação de seus caminhões importados como sinal de riqueza e distinção10. Eles eram as pessoas mais bem informadas, possuíam dinheiro, forneciam crédito a juros para quem tomasse empréstimos, tinham influência política sobre as decisões da comunidade. Numa única palavra, os comerciantes desempenhavam o papel que Mendras (1984), em seu clássico estudo sobre as sociedades camponesas, definiu como “agentes de ligação” entre a coletividade local e a sociedade englobante. Segundo este autor, esta função de ligação sempre cabe aos indivíduos que são os “notáveis” de uma coletividade local (padres, religiosos, anciões, comerciantes, etc.)

Do ponto de vista macroeconômico, deve-se ressaltar que este crescimento exponencial da agricultura colonial foi favorecido pela conjugação de dois fatores. De um lado, a melhoria das comunicações e das possibilidades de escoamento da produção, pois através das estradas de ferro que cruzavam a serra os produtos coloniais chegavam rapidamente aos principais centros consumidores, quer fosse Porto Alegre ou mesmo as cidades do centro do País. A partir de 1952 esta situação torna-se ainda mais favorável em razão da conclusão da Ponte Ernesto Dornelles, sobre o Rio das Antas, que se destaca por ser uma obra de rara beleza devido a sua arquitetura em forma de arcos. De outro lado, pelo aumento da demanda destes centros urbanos, São Paulo à frente, que nas décadas de 1940 e 1950 passavam por um processo de industrialização e urbanização, que possibilitou a expansão da oferta do produto colonial.

A intensificação do sistema produtivo colonial não repercutiu apenas no aumento da produção mas também afetou outros aspectos do modo de vida colonial como o aumento da população. Nesta segunda fase, as famílias dos colonos italianos passaram a ser muito mais numerosos devido ao aumento significativo do número de filhos. São facilmente encontráveis relatos e livros que narram a história da colonização que destacam que, em média, as famílias tinham entre 10 e 12 filhos (Costa, 1998; Frozi e Mioranza, 1975; Roche, 1969).

Outro aspecto que se modificou no período de 1930 a 1960 foi o grau de integração mercantil dos agricultores. Além da especialização na produção de alguns cultivos “para a venda”, a partir deste período os colonos passaram a adquirir sementes e implementos agrícolas para melhorar a produtividade. Mas o envolvimento comercial dos colonos não foi tão intenso à montante como à jusante, pois no referido período ampliaram-se as estratégias de organização das cooperativas para comercialização da produção.

O cooperativismo surge na região colonial da Encostas Superior da Serra a partir de 1911 por estímulo de Stéfano Paternó e da Igreja Católica. Contudo, até a década de 1930 estas iniciativas não haviam alcançado uma organização econômica expressiva dada a pequena oferta de produtos coloniais, especialmente o vinho. A partir deste período, no entanto, a oferta de produção aumento rapidamente e os empreendimentos cooperativos ganham um novo impulso. Em Veranópolis, por exemplo, surge em 1936 a Cooperativa Agrícola Alfredochavense (que desde 1940 comercializa produtos vinícolas da marca Noé), que se especializa na compra da uva e na comercialização dos seus derivados, sobretudo o vinho. Além desta, no então município de Veranópolis havia ainda a Cooperativa da Erva-mate, a Cooperativa de Fagundes Varela e a Cooperativa de cereais (trigo e milho), todas já encerradas no momento de realização desta pesquisa. São deste período também as Cooperativas

10 Segundo Farina (1992, p.118) em 1928 havia em Veranópolis 9 caminhões da marca Chevrolet, 9 da Ford, 4 da Rugby, 2 da Fiat, 1 da Dodge e 51 autos.

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importantes de outras municípios como a Aurora, de Bento Gonçalves, que é fundada em 1931, a Cooperativa Vinícola Garibalde, de 1939, entre outras11.

Não obstante, nenhum outro aspecto teve impacto tão decisivo na vida dos colonos , sobretudo a partir da década de 1940, do que o acesso crescente a renda. A partir deste período, muitos colonos conheceram melhorias significativa nas suas condições de moradia e nas instalações da propriedade (galpões, pocilgas, etc). Além disso, cabe ressaltar que o incremento da renda pessoal favoreceu o processo de monetarização de toda a economia local, representando um especial estímulo ao comércio e as atividades da indústria local. Na década de 1950, por exemplo, são criados dois bancos em Veranópolis e o comércio local diversifica-se de forma acelerada.

Além do comércio e das atividades de prestação de serviços, a economia local também passa por significativos avanços nos empreendimentos industriais. O que antes não passavam de pequenos ofícios rurais que combinavam o exercício de alguma atividade artesanal com as atividades agrícolas, em sua maioria ligados à própria agricultura, como no caso dos moinhos, atafonas e outros, a partir da década de 1950 passam a se especializar. Um primeiro efeito desta especialização foi o desaparecimento do caráter pluriativo destes estabelecimentos, que passam a operar com poucas atividades.

Este processo de especialização das atividades artesanais ocorre a partir de meados da década de 1950, tornando-se mais intenso no período seguinte. Fundamentalmente o que ocorre é um processo de reinvestimento local dos capitais acumulados na agricultura ao longo da década de 1940. Conforme mencionado, dadas as condições de fechamento da fronteira agrícola e de limitação de expansão da zona pioneira para o norte da região Meridional do Brasil, acrescidas de um processo de crescimento da especialização produtiva das propriedades na Encosta Superior da Serra do Nordeste e do incremento de determinadas tecnologias no processo produtivo agrícola, a alternativa que restava aos colonos era a de encontrar uma nova forma de ocupação para os filhos mais jovens na própria região ou localidade. A outra alternativa era modificar os padrões de herança assentados no minorato e dividir a propriedade entre todos os herdeiros, o que certamente inviabilizaria ainda mais o sistema produtivo vigente, pois um aumento considerável de pressão antrópica sobre a exploração e o uso do solo aceleraria a velocidade de exaustão de sua fertilidade. De fato, esta via foi seguida por várias famílias de colonos, sobretudo aquelas que residiam em áreas rurais mais distantes dos centros urbanos e proprietárias de terras mas declivosas. Inicia-se aí o processo de diferenciação social e econômica que irá se aprofundar ao longo da terceira fase do desenvolvimento da agricultura familiar na região.

Nestas condições, as possibilidades mais promissores para viabilizar a reprodução social das famílias de colonos apresentavam-se na indústria e no comércio local. No caso de Veranópolis, a existência destas atividades em bases artesanais de pequeno porte era antiga e o comércio local desempenhava o papel de centro aglutinador de toda a movimentação mercantil da região colonial situada em torno do Vale do Rio das Antas. A partir de meados da década de 1950, estas atividades comerciais e industriais passaram a captar os recursos financeiros gerados pela agricultura colonial, quer seja pela aquisição dos produtos dos colonos na condição de intermediários, quer seja mediante o empréstimo direto dos capitais, o que muitas vezes era propriamente um negócio em família devido as relações de parentesco vigentes na região. Na terceira fase do desenvolvimento este processo assumirá proporções cada vez mais expressivas até o momento de alterar a estrutura produtiva da economia local, conforme descreve-se a seguir.

11 Para maiores informações sobre a história do cooperativismo na região consultar Tavares dos Santos (1978, p 116) e Giron (1980).

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4.3. Modernização agrícola e mercantilização da agricultura familiar (1960 até 1990)

A terceira fase do processo de evolução da agricultura familiar na região da Encosta Superior da Serra do Nordeste caracteriza-se, genericamente, por um processo de transição do sistema produtivo colonial de reprodução semi-autônoma, baseado na combinação da produção para o autoconsumo e para subsistência com a venda de excedentes, para um modelo produtivo assentado na especialização produtiva de algumas culturas vegetais e na utilização crescente de insumos de origem industrial. Neste sentido, é possível afirmar que no período compreendido entre 1960 e 1990 a dinâmica produtiva e a reprodução sócio-econômica da agricultura praticada pelos colonos torna-se fortemente dependente do mercado.

Este processo de transição do sistema produtivo colonial constitui-se, fundamentalmente, em uma alteração no processo de produção agrícola até então vigente pois a produção para o autoconsumo e a subsistência diminuem significativamente e a produção voltada à venda amplia-se. Em decorrência disto, ocorre um processo de especialização produtiva destacando-se os cultivos mais rentáveis como a uva e a fruticultura de clima temperado como a maçã, pêssego e ameixas, entre outros. Os colonos ampliam as áreas destinadas a estes cultivos e, para tanto, necessitam modificar o esquema de produção utilizado. Com solos já relativamente degradados, com a fertilidade natural reduzida devida a utilização intensiva de décadas anteriores e sem a possibilidade desmatar novas áreas a alternativa encontrada será a de manter a intensidade de uso e a fertilidade do solo mediante o adubação inorgânica e a introdução de outros insumos de origem industrial. Uma vez iniciado este ciclo produtivo, de envolvimento gradual e crescente do colono com o mercado de sementes e insumos agrícolas (fertilizantes, pesticidas, etc), a especialização da produção com destino à venda passa a ser inexorável.

Este processo caracteriza-se pela mercantilização sócio-econômica. No geral, este processo avança à medida que um processo de produção qualquer começa a funcionar nos marcos das relações de troca de mercadorias. Assim entendido, o processo de mercantilização na agricultura refere-se a uma situação de crescente interação dos indivíduos com a divisão social do trabalho em que estão inseridos. Segundo Van der Ploeg (1990; 1992), existem vários graus e estágios na mercantilização. Esta complexificação da divisão social do trabalho ocorre através do incremento das relações de troca via mercado de produtos, serviços e de mão-de-obra, assim conformando relações típicas de uma economia capitalista. Contudo, conforme também indica o referido autor, a mercantilização não ocorre de forma homogênea porque cada indivíduo ou, neste caso, agricultor, tende a estabelecer distintas formas de relações com os circuitos mercantis. Por isto a mercantilização leva à diferenciação social e econômica dos agricultores.

Mas o processo de mercantilização das relações sociais de trabalho e produção também tende a alterar o ambiente social e econômico – o território – em que estão situadas as unidades familiares. Portanto, quanto maior for o grau de mercantilização em um determinado território mais forte tenderá a ser a pressão para que o conjunto das relações sociais siga este mesmo padrão de funcionamento. Neste sentido, pode-se resgatar a contribuição de Abromavay (1992), que afirma que a agricultura familiar tenderá se distinguir mais do campesinato (e das demais formas sociais que a ele se assemelham), quanto maior for a sua interação com o ambiente social e econômico onde imperar a impessoalidade das relações mercantis.

Embora de significado fundamental, o processo de mercantilização que integra e subordina as formações sociais mais simples e economicamente menos complexas (tais como as referidas neste trabalho, no caso o município de Veranópolis e a região da Encosta Superior da Serra do Nordeste) ao ritmo das relações capitalistas hegemônicas não provoca, inexoravelmente e universalmente, a superação de todas as características das formas sociais

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anteriores. No caso específico em questão, isto eqüivale a dizer que não obstante a mercantilização produzir a superação do sistema produtivo colonial enquanto modo de organização social e produtivo ele não elimina todas a suas características. O que ocorre, todavia, é a ampliação da dependência dos colonos em relação ao ambiente social e econômico local e nacional em que estão inseridos, mas nada impede que mantenham uma autonomia relativa sobre os fatores e meios de produção de que já dispunham e dos quais não foram desapropriados neste processo, particularmente a terra e a força de trabalho.

O período de 1960 até 1980 constitui-se em uma fase de modernização da base tecnológica da agricultura familiar. Esta modernização obedece ao processo mais geral de transformações técnico-produtivas que na literatura internacional são caracterizadas pela noção de “revolução verde”. Contudo, para compreender o processo pelo qual a agricultura familiar de Veranópolis e da região vitinicultora de Caxias altera seu perfil técnico-produtivo é necessário pensar em termos distintos do que aqueles que identificam a modernização com a ampliação de superfície cultivada ou pela introdução massiça de novas variedades vegetais, tal como ocorreu na região do Planalto Médio do Rio Grande do Sul ou em outras regiões Meridionais de Santa Catarina e do Paraná onde se disseminaram os monocultivos de cereais: soja, trigo e milho. A modernização agrícola que ocorreu em Veranópolis e região nos anos sessenta e setenta também se pautou pela moto-mecanização, especialmente pela introdução dos micro-tratores, pela “quimificação”, através da utilização de fertilizantes, corretivos e agrotóxicos e, pela utilização crescente de variedades de plantas geneticamente melhoradas, quer seja via utilização de sementes híbridas ou de mudas a aperfeiçoadas em viveiros. Contudo, os cultivos em que estas mudanças tecnológicas foram aplicados já existiam anteriormente como é o caso da uva, da maçã e de outras frutíferas.

Nas entrevistas e depoimentos coletados durante a pesquisa de campo ouviu-se com freqüência que na década de 1970 o fator decisivo para alteração do “jeito de trabalhar a terra” foram os problemas relacionadas a perda de fertilidade do solo e a oferta de condições favoráveis aos colonos para aquisição de máquinas e equipamentos como os microtratores. Com a apoio das cooperativas vitivinícolas e do apoio dos serviço de assistência técnica da EMATER (instalada no município a partir de 1958), muitos colonos tomaram empréstimos bancários para aquisição destes implementos. Dadas as condições altamente favoráveis ao pagamento dos juros e do capital emprestado, os agricultores entrevistados não hesitaram em afirmar que foi nesta época que sua atividade conheceu os maiores progressos tecnológicos. Nos depoimentos coletados à campo, este período é descrito como o início da “época do maquinismo”, onde os colonos adquirem uma série de pequenos implementos moto-mecanizados que substituem os implementos artesianas da fase anterior. Em muitos casos, este “maquinismo” foi narrado pelos entrevistados como o responsável pelo desaparecimento de invenções notáveis dos colonizadores pioneiros como no caso dos moinhos tocados a água, das pequenas oficinas de ferreiros e, principalmente, das oficinas especializadas no fabrico de barris e caves de vinho.

Mas não foi apenas a mudança da base tecnológica que alterou o processo produtivo da agricultura familiar de Veranópolis e da região, durante os anos setenta e oitenta, que estabeleceu um novo patamar de produção. A introdução de novas variedades de uva, mais produtivas e geneticamente melhoradas, alcançadas pelos agricultores via cooperativas, assistência técnica da EMATER ou empresas vinícolas particulares, foram decisivas para os agricultores. Não é demais lembrar que foi através da uva que surgiram na região os contratos de compra entre os agricultores e as cooperativas e as agroindustrias processadoras e engarrafadoras de vinho.

Mais significativo ainda, no entanto, para o caso específico de Veranópolis, parece ter sido o impacto do sucesso da fruticultura de inverno, primeiramente através da maçã e, a partir

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de meados dos anos oitenta, através do pêssego e da ameixa. Por serem cultivos pioneiros as frutas ali produzidas alcançam preços atraentes, elevando-se assim a renda dos agricultores. Além da capacidade de iniciativa e do pioneirismo dos agricultores de Veranópolis, cabe notar que o sucesso da fruticultura também está relacionado a necessidade dos agricultores em reduzir os cultivos de cereais (sobretudo trigo e milho) devido a maior produtividade das terras na região do Planalto Médio gaúcho. Com a ampliação da fruticultura a forma de uso dos solos também se alterou e o sistema de rotação de terras com pousio, predominante na fase anterior, foi modificado.

Nesta terceira fase, especialmente durante a década de 1960 até meados dos anos setenta, a maioria das propriedades passou a ter áreas abandonadas ao pousio permanente ou ao reflorestamento, áreas utilizadas como pastagem para o gado, pequenas áreas com plantios anuais e áreas destinadas ao cultivo de frutas como a uva e a maçã (o pêssego e a ameixa surgem como alternativas a maçã em Veranópolis a partir de meados dos anos oitenta, quando a região compreendida entre as cidades de Vacaria no Rio Grande do Sul e Lages em Santa Catarina passam a concentrar esta produção), entre outros. Além da produção vegetal, os agricultores aumentam a criação de animais para produção de leite e derivados como o queijo colonial, de excelente aceitação no mercado. Em síntese, a modernização agrícola que ocorreu na região de Veranópolis seguiu o caminho da especialização produtiva de alguns cultivos e criações além da introdução de alguns avanços técnico-produtivos, como a moto-mecanização e a utilização de insumos agro-químicos, especialmente pesticidas e biocidas recomendados para fruticultura.

Em razão destas características surgem em Veranópolis, a partir de 1980, duas novas atividades que se agregam a este novo modelo produtivo, mais dependente e subordinado ao mercado, que estava se formando. De um lado, surgem as empresas agroindustriais que além de atuarem na compra da uva também passam a oferecer contratos de produção e compra de frangos, suínos e leite, no esquema de integração (Sadia, Perdigão, etc). Os agricultores que puderam se inserir neste processo eram, em geral, dotados de algumas vantagens como a localização, a possibilidade de se adequar a escala pretendida pela empresa integradora e capacidade de contrair financiamentos12. De outro lado, surgem os “fruteiros”, agricultores que com esforço de autofinanciamento conseguiram adquirir um meio de transporte (caminhão ou caminhoneta) para escoamento da produção agrícola. De posse deste veículo, passam a escoar a produção própria e aquela comprada aos vizinhos da comunidade local, tornando-se comerciantes e intemediários, sem abandonar a atividade agrícola em sua propriedade.

Além destes dois grupos de agricultores, que emergem deste processo de diferenciação social e econômica decorrente da mercantilização da agricultura, há um terceiro grupo, que é formado pela grande maioria da população rural jovem que não percebe possibilidades de inserção no processo de produção agrícola. Este estrato também é integrado pelos agricultores mais pobres que não vislumbraram se integrar no processo de especialização produtiva. Em seu conjunto, trata-se de um população rural sobrante, que irá se deslocar para o mercado de trabalho industrial em face da demanda por força de trabalho.

Este processo de industrialização, ocorre primeiramente em municípios-pólo como Caxias do Sul e Bento Gonçalves nas décadas de 1950 e 1960 e, a partir da década de 1970, se estende para cidades como Farroupilha, Carlos Barbosa e Veranópolis (Herédia, 1997). Não se

12 Em Veranópolis, por exemplo, segundo o depoimento colhido na pesquisa de campo, a partir do momento em que as agroindústrias passaram a atuar com mais intensidade as formas tradicionais de venda e comercialização da produção agrícola foram superadas. Este foi o caso não apenas das casas de comércio e dos transportadores mas, sobretudo das cooperativas agrícolas, criadas na fase anterior. Em Veranópolis, no período de 1975 a 1980 desapareceram três dessas cooperativas: a Cooperativa de Fagundes Varela (até então pertencente a Veranópolis), a Cooperativa de Erva-Mate e a Cooperativa de Cereais.

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trata aqui de descrever o processo regional de industrialização, mas enfatizar que foi em direção às indústria instaladas na região da Encosta Superior da Serra do Nordeste que parcela expressiva da população rural excedente se deslocou no período entre 1970 e 1990. Mas o que diferencia o processo ocorrido em Veranópolis de outros, é que ali a expulsão da população rural pôde ser absorvida na própria região. Ou seja, ao invés de exportar seu excedente populacional, a região absorveu-o.

De um modo geral, o período de três décadas entre 1960 e 1990, representa a fase em que o sistema produtivo colonial existente em Veranópolis entrou em crise e passou por uma transição que o modificou estruturalmente. Esta transição ocorreu nas décadas de 1960-70 através da modernização da base tecnológica, via maior utilização de equipamentos moto-mecânicos e insumos de origem industrial. Neste modelo produtivo os agricultores ampliaram a produção para o mercado e se especializaram no cultivo de determinados produtos como a uva e a fruticultura de clima temperado (maçãs, pêssego, ameixas, etc). A partir dos anos oitenta, a produção agrícola vai sendo cada vez mais integrada as agroindústrias vinícolas, de leite, de aves e de suínos, e sua participação relativa vai sendo reduzida na economia do município, assim como a população rural também vai diminuindo.

4.4. Perspectivas e desafios da agricultura familiar em Veranópolis (1990 até hoje)

A atual fase de desenvolvimento da agricultura familiar em Veranópolis e na região vitinicultora de Caxias do Sul pode ser caracterizada como um processo de consolidação da mercantilização econômica e aprofundamento da diferenciação social. Trata-se de um processo de abertura de novas possibilidades de inserção mercantil dos agricultores familiares, agora não mais apenas via mercado de produtos e mercadorias mas também através da venda da força de trabalho. Este processo acaba gerando estratégias individuais e familiares que asseveram as diferenças entre os vários tipos de agricultores familiares, que passam a se utilizar de um repertório cada vez mais alargado de iniciativas para garantir sua reprodução social. Neste período, apresentam-se basicamente três alternativas aos agricultores familiares: a primeira, buscar a integração as agroindústrias e partir para especialização ainda maior da produção; a segunda, manter uma agricultura de subsistência e estimular a pluriatividade dos membros da família via inserção em atividades não-agrícolas fora da propriedade e; a última, investir na reconversão produtiva da propriedade adaptando-a a várias novas atividades como o turismo rural, a exploração do basalto, o artesanato, a produção de produtos coloniais típicos (vinho, derivados de uva, queijos, embutidos de carne, etc). Têm-se, portanto, uma situação de complexificação da divisão social do trabalho no espaço rural e de ampliação dos horizontes para inserção individual no tecido produtivo local.

Inicialmente cabe notar que a situação estrutural vigente no período anterior, sobretudo os anos oitenta, não se alterará nesta fase. A forma de uso da terra permanece assentado no esquema da rotação de culturas com áreas destinadas ao pousio permanente. A manutenção da fertilidade continua a depender da utilização de insumos agroquímicos. Também permanecem relativamente estáveis as perspectivas quanto a moto-mecanização e a utilização de sementes híbridas e mudas vegetais geneticamente melhoradas, especialmente no que se refere ao cultivo do milho e da fruticultura em geral, onde a técnica da enxertia é absolutamente dominante. A possibilidade de ocupação de novas áreas para agricultura sofre ainda mais restrições, agora de caráter coercitivo, pois o órgão estadual de proteção ambiental (FEPAM) passa a fiscalizar e multar com rigor os desmatamentos e a utilização de áreas de encosta e/ou próximas a nascentes. Em face disto, as áreas em pousio permanente com cobertura de matas crescem ainda mais rapidamente chegando a ocupar, em Veranópolis, uma média 24% da área de terra

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das propriedades. Pela mesma razão a área utilizada com pastagens sobe para 28,2% em média, tornando-se a cultura com maior área proporcional.

Em termos das atividades produtivas praticadas, a década de 1990 também não revelou grandes novidades em relação ao período anterior com exceção ao leite, cuja produção aumentou no último decênio, e a maçã, cuja produção foi praticamente abandonada no município. Em relação as demais atividades agrícolas, os sistemas produtivos praticados pelos agricultores estão assentados na combinação da fruticultura, especialmente pêssego e ameixa, associados a criação de animais (aves ou suínos, raramente praticados em uma mesma propriedade) no esquema de integração ou no sistema uva e criação. No caso das propriedades que praticam a produção leite ocorre uma ampliação no cultivo de pastagens perenes e de forrageiras, às vezes acrescida da produção de milho. Outra característica deste sistema é que em geral a produção leiteira é combinada com a vitinicultura. Independente de qual destas combinações for praticada em todas as propriedades, mesmo naquelas que operam com um padrão tecnológico mais sofisticado como no caso da criação de aves, verifica-se a presença da produção para subsistência de produtos hortícolas, de pomar e mesmo outros como a batata e o feijão, que são produzidos em pequenas quantidades para o autoconsumo humano.

Já com relação à forma de comercialização e o escoamento da produção agrícola verifica-se algumas alterações importantes, muitas das quais apenas embrionariamente desenvolvidas na década de 1980. São duas, basicamente, as mudanças mais relevantes. Primeiro, um aprofundamento na relação de dependência dos agricultores integrados em relação as agroindústrias, pois durante a década de 1990 estas empresas passaram a fornecer elas próprias a ração animal para aves e suínos e instalar comedouros automáticos, retirando do agricultor a autonomia sobre esta fase do processo produtivo. Este aumento do controle do processo produtivo por parte da agroindústria integradora implica em um maior rigor em relação à aplicação das recomendações técnicas a serem seguidas, um acompanhamento mais preciso do tempo de produção e das metas a serem alcançadas e um engessamento crescente dos custos fixos de produção, o sempre acaba afetando a margem de lucro do produtor. Em relação ao leite e a uva, resta aos agricultores uma autonomia maior, até porque muitos estão integrados a cooperativas locais (Aurora, Alfredochavense – Noé, Santa Clara, etc), cuja forma de gestão do processo produtivo não é tão rigoroso.

A segunda modificação nas estratégias mercantis e de escoamento se refere a presença cada vez mais relevante dos chamados “fruteiros”, que são os compradores diretos e intermediários que fazem o escoamento da produção via varejo. Muitos entrevistados, declararam que Veranópolis é a “Terra dos Fruteiros”. Embora muitos já atuassem na década de 1980, foi nos anos noventa que esta categoria se expandiu. Atualmente, segundo informações obtidas na pesquisa de campo, estima-se que existam na cidade em torno de 400 fruteiros, muitos deles proprietários de mais de um caminhão. Durante a pesquisa de campo, em visitas as propriedades, verificou-se que são raros os produtores de frutas (especialmente pêssego e ameixas) que não possuem um caminhão para venda direta de sua produção. Além do comércio a varejo, este tipo de atividade também gerou centros de armazenamento e conservação (refrigeração) que fazem a distribuição e o abastecimento no esquema de atacado. Segundo declarações dos entrevistados, em Veranópolis existem em torno de 12 mini e médias centrais de abastecimento que compram a produção local e regional de frutas de clima temperado (ameixa, pêssego, uva, kiwi, etc), fazem o transporte (em geral terceirizado para proprietários de caminhões) para as regiões Sudeste e Nordeste do país e de lá voltam carregados com frutas de clima tropical. Neste esquema, formam-se verdadeiras redes de distribuição de produtos coloniais os mais diversos, pois a maioria destes 400 fruteiros é composta de agricultores familiares que fazem este comércio de varejo nos finais de semana (no verão, época de colheita da maçã, do pêssego e da ameixa, deslocam-se para o litoral

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gaúcho e catarinense e durante o inverno, vendem a produção de mandioca, frutas cítricas e frutas tropicais retiradas nas centrais de abastecimento)13.

Não obstante esta capacidade de estabelecer novas estratégias e inovar na busca de soluções criativas e pioneiras para problemas estruturais (como a perda da fertilidade, a restrição ao aumento da área, etc) este modelo de desenvolvimento assentado na intensificação dos fatores produtivos, sobretudo força de trabalho e tecnologia, não têm sido capaz de assegurar a manutenção da vitalidade social e a reprodução econômica dos agricultores familiares de Veranópolis e região. Durante a realização do trabalho de campo, foi absolutamente consensual e uníssona a opinião de que estas estratégias produtivas e comerciais não têm sido suficientes para animar e assegurar a presença dos jovens no espaço, especialmente as mulheres, e tampouco garantir um nível de renda considerado aceitável pelos agricultores. Os entrevistados (agricultores, sindicalistas, técnicos, e membros do poder público local) concordaram com a idéia de que a continuar como está, a atividade agrícola no município de Veranópolis, tende a se tornar uma profissão cada vez menos estimulante14.

Desconsiderado-se as usuais lamúrias, o fato é que não se pode desconsiderar a preocupação local com a regressão e o abandono da atividade produtiva que foi responsável pelo sucesso da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Os indicadores demográficos são reveladores da queda expressiva da população rural em todos os municípios da região da Encosta Superior da Serra do Nordeste. Mais do que uma preocupação meramente quantitativa, o problema do esvaziamento demográfico do meio rural afeta aspectos da identidade social e cultural de quase toda a população de Veranópolis e da região, pois suas origens estão na “colônia”. Ou seja, o que está se esvaindo não é apenas o sistema produtivo colonial em suas dimensões produtivas e econômicas mas o próprio modo de vida e a forma de sociabilidade de uma determinada formação social. Por isto, a ligação com a terra, com a comunidade local, com a família, com os parentes, com o local de nascimento e com a vida social (gastronomia, festas, folclore, etc) provoca um sentimento de nostalgia e espanto.

De fato, ao se estudar a trajetória do setor agrícola no processo de desenvolvimento da economia e da sociedade da região da Encosta Superior da Serra do Nordeste percebe-se, com relativa facilidade, que, não obstante seu papel decisivo até a década de 1980, a partir deste período os incrementos tecnológicos e o aumento da produtividade não foram mais capazes de garantir o progresso material e o bem estar social. Os agricultores familiares de hoje passaram a perceber que dedicam um tempo de trabalho maior a suas atividades, mobilizam um conjunto cada vez mais expressivo de recursos técnicos e, no entanto, não percebem o reflexo disto na melhoria de sua condição social e econômica15.

Uma avaliação das transformações recentes que afetam o desenvolvimento rural de Veranópolis e das demais cidades da região da Encosta Superior da Serra do Nordeste, permitem identificar que enquanto uma parcela cada vez menor dos agricultores familiares trilha o caminho da especialização produtiva um outro conjunto passa a viabilizar sua reprodução social mediante a inserção de parte dos membros de sua família no mercado de trabalho de atividade não-agrícolas, formado basicamente pela expansão dos empregos

13 Devido ao volume impressionante deste comércio e de sua importância decisiva para a economia do município, seria necessário um aprofundamento posterior deste fenômeno, algo que a disponibilidade de tempo e espaço não permite ser feito neste trabalho.

14 Além das rendas insatisfatórias, os agricultores entrevistados destacaram a penosidade e a intensidade do trabalho agrícola como motivo de abandono pelos jovens, pois segundo eles os jovens preferem ter atividades mais leves e com jornadas de trabalho mais definidas e, sobretudo, não precisar trabalhar nos finais de semana.

15 Em Veranópolis, por exemplo, segundo dados colhidos na pesquisa de campo, existem apenas 85 estabelecimentos integrados à agroindústria de aves e 13 de suínos, que produziram 925.200 e 4.540 cabeças, respectivamente, no ano de 2000.

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ofertados pelas indústrias de materiais esportivos e de calçados. Este processo teve início em meados dos anos oitenta e sofreu um incremento significativo durante a década de 1990.

De certo modo, ocorre um ressurgimento da pluriatividade, no sentido de que ela pode ser entendida como a combinação de múltiplas atividades, prática comum desde a chegada dos imigrantes italianos, conforme descrito acima. Mas a pluriatividade atual da agricultura familiar parece ser mesmo uma decorrência da própria evolução do processo de mercantilização da vida social e econômica que, neste caso, chega ao mercado de força de trabalho. Ao invés das propriedades venderem mercadorias agrícolas elas passam a vender a própria força de trabalho de alguns de seus membros integrantes, sem que isto implique em abrir mão da propriedade. Portanto, em um contexto de ampliação da divisão social do trabalho e de mercantilização crescente das relações sociais a pluriatividade pode ser entendida como um estratégia individual e familiar de reprodução.

Além da pluriatividade, o espaço rural de Veranópolis e da região passou a contar recentemente com outras vantagens e potencialidades para o desenvolvimento não apenas da agricultura familiar mas da encomia local como um todo. A partir da década de 1990, Veranópolis passou a se beneficiar de um conjunto de novas demandas sobre o espaço rural que até então eram muito incipientes e quase inexploradas comercialmente. Entre estas demandas está a exploração da pedra de basalto (neste caso em município vizinhos como Vila Flores, Paraí, Nova Prata e outros) e as olarias (produção de tijolos), atividades que são realizadas pelos próprios agricultores em suas propriedades, eventualmente contratando algum empregado temporário. Mas as demandas recentes mais expressivas sobre o espaço rural estão relacionadas as potencialidades ligadas aos aspectos ambientais (trata-se de um região de serra com clima temperado dotada de vários atrativos naturais como quedas d’água, etc) e histórico-culturais (a gastronomia, o artesanato, entre outros), tornando a cidade e a região um pólo de atração de turistas. Muitos destes turistas não são sequer estranhos, pois nasceram nas localidades rurais da região e estão a retornar para elas na condição de aposentados em busca de tranqüilidade, sossego e qualidade de vida16.

5. Lições a partir do estudo de caso de Veranópolis

A análise do processo de evolução da agricultura familiar no município de Veranópolis e da microrregião de seu entorno revelou que até mais ou menos o final da década de 1980 e a primeira metade dos anos noventa ela seguiu um padrão técnico-produtivo semelhante aquele que se instaurou nas demais regiões agrárias do Sul do Brasil. Este processo foi capaz de, ao mesmo tempo, ampliar as escalas de produção e a produtividade agrícola e gerar desequilíbrios sociais (êxodo e migrações), econômicos (aumento da dependência), ambientais (degradação da natureza) e culturais (alteração da identidade e perda dos saberes tradicionais), o que resultou em uma espécie de jogo de soma zero onde as perdas a médio e longo prazo são sempre mais significativas do que as vantagens de curto prazo.

Também foi possível demonstrar que as economias locais que são fortemente baseadas na agropecuária tendem a ter maiores dificuldades para engendrar um processo de desenvolvimento rural menos dependente da matriz produtiva agrícola. Caso Veranópolis tivesse estagnado no estágio de modernização agrícola de sua base técnica, iniciada na década

16 Outro estímulo a este retorno ao meio rural é o fato de que o preço das terras é relativamente acessível, estimando-se em torno de R$ 1.000,00 o hectare. Além disto, o meio rural também conta com enrgia elétrica em todo município e um total de 235 telefones fixos (na média de 3,7 famílias por telefone) O preço atraente, a facilidade das vias de acesso e a proximidade com os centros urbanos fazem com que muitos moradores das cidades tenham sítios de lazer (chácaras) ou apenas uma “residência secundária” (casa de campo) no meio rural.

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de 1970, os problemas de ordem social, econômica, ambiental e cultural que começaram a aparecer a partir de meados da década de 1980 talvez não pudessem ter sido minimizados e absorvidos pela dinâmica do mercado de trabalho não-agrícola. Foi em função da articulação histórica entre a agricultura com as outras atividades econômicas (artesanato, comércio e pequenos ofícios industriais) que o excedente populacional produzido pelas transformações estruturais da agricultura familiar pôde ser assimilado pelo mercado de trabalho local.

Este processo se reforçou a partir de meados da década de 1970 e, especialmente, na década de 1980, quando novas indústrias se instalam e a industrialização de Veranópolis se consolida. Deste modo, a estrutura econômica e produtiva local passou a oferecer as condições para que determinados setores de atividades econômicas não-agrícolas, até então “adormecidos” ou em estado de latência, pudessem emergir e absorver o excedente de mão-de-obra que continuava a ser transferido do setor agrícola.

O resultado da análise do processo de evolução da agricultura familiar na região da Encosta Superior da Serra do Nordeste demonstra que historicamente ela estava interrelacionada com outras atividades econômicas. Por isso não basta fazer uma análise da agricultura mas do processo mais geral de desenvolvimento endógeno da economia local.

Neste sentido, o caso analisado vai de encontro aquilo que Abramovay (2003) vêm indicando como condições virtuosas e dotadas de determinadas prerrogativas que permitem uma interelação positiva entre as cidades e os espaços urbanos com o meio rural existente em seu entorno. Inspirando-se na contribuição de Jacobs (1986), Abramovay destaca a possibilidade que esta interelação permita que a população rural tire proveito do dinamismo que as cidades tendem a propagar ao seu redor (2003)17. A idéia central, segundo o autor, “é que o território, mais que simples base física para as relações entre indivíduos e empresas, possui um tecido social, uma organização complexa de laços que vão além de seus atributos naturais, dos custos de transportes e de comunicações. Um território representa uma trama de relações com raízes históricas, configurações políticas e identidades que desempenham um papel pouco conhecido no próprio desenvolvimento econômico” (Abramovay, Gazeta Mercantil, 12 de abril de 2001, página A3).

Por fim, resta uma indagação acerca das possibilidades de reaplicação deste processo de desenvolvimento rural em outros contextos. Embora o estudo de Veranópolis possa trazer lições interessantes sobre a natureza e as especificidades históricas de um processo de desenvolvimento rural endógeno, é preciso não esquecer que o caso estudado não funciona como um espaço hermético sem relação com o ambiente externo. Ou seja, a natureza endógena e territorial do processo analisado não significa que o espaço local de Veranópolis opere de forma isolada em relação ao sistema econômico geral. O que se pretendeu demonstrar é que o modelo de funcionamento da economia local de Veranópolis e da microrregião da Encosta Superior da Serra do Nordeste opera com alto poder de regulação endógena e capacidade de inovação. Para exemplificar esta compreensão pode-se citar as diferentes formas de relacionamento dos agricultores familiares com os mercados compradores como as agroindústrias, o comércio de atacado e varejo feito pelos fruteiros, etc. Além disto, importantes atores econômicos locais, que tiveram um papel decisivo na disversificação das oportunidades ocupacionais da força de trabalho, como as empresas de material esportivo e calçados, estão plenamente inseridas aos circuitos mercantis nacionais e mesmo estrangeiros.

17 Segundo Abramovay “este dinamismo é próprio a cidades que se convertem em centros regionais, como mostra Jacobs (1986) e não àquelas que podem ser encaradas como "enclaves". E é justamente este potencial de irradiação regional que está presente em grande quantidade de cidades médias brasileiras”.

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