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Se..., Não...Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

Editor / PublisherAssociação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

Director / DirectorCarlos Amaral Dias, PhD

(Professor Catedrático; Psicanalista e Presidente da Comissão de Ensino da AP)

Editor Chefe / Editor in ChiefAntónio Pazo Pires, PhD

(Professor Associado do Departamento de Psicologia Clínica e Saúde do Instituto Superior de Psicologia Aplicada – IU; Psicanalista; Fundador e

Associado da AP)

Co -edição /Co -editorsAntónio Alvim, MSc Psicoterapeuta Psicanalítico; Fundador e

Associado da AP); Ana Batarda, MsC (Psicoterapeuta e Terapeuta Familiar; Fundador e Associado da AP); Isabel Botelho MSc (Psicóloga; Psicoterapeuta, Fundadora e Associada da AP); João Pedro Dias MSc (Psicólogo Clínico; Fundador e Associado da AP); João Ferreira, MSc (Psicólogo Clínico; Associado da AP); Elisabete Fradique, MSc (Psiquiatra e Psicoterapeuta; Fundadora Associada da AP); Filipe Arantes Gonçalves MSc (Psiquiatra, Psicoterapeuta; Fundador e Associado da AP); Camilo Inácio MSc (Psicólogo Clínico; Associado da AP); Ângela Lacerda Nobre, PhD (Doutorada em Gestão; Professora Adjunta do Instituto Politécnico de Setúbal, Fundadora e Associada da AP); António Mendes Pedro, PhD (Visiting Professor da Universidade Paris XIII e Professor Associado da Universidade Autónoma; Psicoterapeuta, Psicanalista e

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Psicossomaticista; Fundador e Associado da AP); José de Matos Pinto, PhD (Psicólogo Clínico; Professor Coordenador da ESE de Coimbra; Fundador e Associado da AP); Isabel Plantier MSc (Psicoterapeuta Psicanalítica; Associada da AP); Clara Pracana, PhD (Psicanalista, Professora Convidada do Instituto Superior Miguel Torga, do ISMAT e do ISPA; Consultora; Fundador e Associado da AP); Catarina Rodrigues, MSc (Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta; Associada da AP); Manuela Gonçalves dos Santos, MSc (Grupanalista; Fundador e Associado da AP).

Conselho Editorial / Editorial BoardCarlos Alberto Afonso, PhD (Professor Associado do ISPA; MFAPA

e MFTPP da AP); Conceição Almeida, MSc (Psicanalista; Membro da Comissão de Ensino da AP); Maria do Rosário Belo, MSc (Psicanalista; Membro da Comissão de Ensino da AP); José Henrique Dias, PhD (Pofessor Jubilado da UNL; Director da Escola Superior de Altos Estudos do ISMT); Maria do Rosário Dias, PhD (Professora Associada no Instituto Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz; Fundadora Associada da AP); Jorge Caiado Gomes, PhD (Professor da Universidade Atlântica; Fundador Associado da AP); Mário Horta, PhD (Psicanalista; Membro da Direcção da AP); João Justo, PhD (Professor Auxiliar da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa); Michael Knock, PhD (Professor Associado do ISMT; Teólogo); António Coimbra de Matos, MSc (Psicanalista; Psiquiatra; Presidente da Direcção da AP); Carlos Campos Morais, MFaPA da AP, Investigador -Coordenador apos. do LNEC, Membro Emérito da Academia de Engenharia; Cristina Nunes, MSc (Psicanalista; Membro da Comissão de Ensino e da Direcção da AP); José Gouveia Paz, PhD (Professor Auxiliar da UAL; Psicoterapeuta); Henrique Garcia Pereira, PhD (Professor Catedrático do IS; Escritor); José Carlos Coelho Rosa, MSc (Psicanalista; Vice -Presidente da Direcção e Membro da Comissão de Ensino da AP); Luís Sozcka, PhD (Psicanalista; Professor Catedrático aposentado do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade do Porto); Ana Vasconcelos, MSc (Pedopsiquiatra; Membro da Direção e da Comissão de Ensino da AP)

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Conselho Editorial Internacional / International Editorial BoardNancy Burke, PhD (Associate Professor of Clinical Psychiatry and

Behavioural Science in Northwestern University Feinberg School of Medicine – Chicago); Rochelle Suri, PhD (Licenced Marriage & Family Therapy; Associate Director of the International Journal of Transpersonal Psychology – San Francisco – California); Judith Parker, PhD (Psychoanalyst in private practice) – Beverly Hills – California); Lynn Somerstein, PhD (Director of the Institute of Expressive Analysis; Book Review Editor Psychoanalytic Review; Psychoanalyst in Practice – New York); Sandra Segan, PhD (Member of the WMAAPP (Western Massachusetts and Albany Association for Psychoanalytic Psychology; Psychoanalyst in Practice -New York)

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«Se..., Não... Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica» publica artigos originais do campo disciplinar, científico e praxiológico (clínica e aplicação) da Psicanálise e da Psicoterapia Psicanalítica. Contudo, também são aceites, de forma complementar, textos que exprimam a rica diversidade de interfaces entre estes domí-nios e as diversas facetas do Desenvolvimento Humano

© 2016, AP – Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

TítuloSe..., Não... Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica

CapaCoisas de Ler

PaginaçãoCoisas de Ler

Impressão e acabamentoXXXXXXX

Depósito legal314677/10

ISSN1647 -7367

data de edição1.ª edição, Lisboa, Junho de 2016

Coisas de Ler EdiçõesTel.: 211 919 350 – Fax: 211 919 349

[email protected]

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Índice

EditorialJosé Manuel Pinto

O Terror e o EstranhoO estranho caso do “menino de ouro”: A transgeracionalidade

e a perversãoAlexandra Medeiros

Inocêncio X e a teoria das transformações: O terror puroLuís Delgado

O vazio desiludido e a desvinculação de si próprioConceição Almeida

Do terror à realidade: O holograma, o ornitorrinco, o desenho e o psicoterapeuta

Ricardo Gameiro Mendes

O estranho entre amor e morte. Uma análise psicanalíticaMichael Knoch

O estranho no processo analíticoJosé Manuel Pinto

Teoria e ClínicaDor psíquica e risco de suicídio. Notas para uma

compreensão dos comportamentos suicidáriosRui Campos

A palavra, o corpo e o “verdadeiro outro” – O modelo AEDP (Accelerated Experiential Dynamic Psychotherapy)

João Ferreira

[11 -14]

[17 -44]

[45 -53]

[55 -62]

[63 -76]

[77 -85]

[87 -97]

[101 -110]

[111 -130]

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O lugar da rêverie na obra de BachelardAna Gaspar

Investigação e PsicanáliseSobre os ombros de gigantesAlexandre Vaz

O estudo da representação de si através da obra fotográfica de Francesca Woodman numa perspetiva psicodinâmica e projetiva

Mariana Mendonça e Luís Delgado

Fazer rir para não chorar. Abordagem psicanalítica do humorInês Francisco e Luís Delgado

[131 -141]

[145 -153]

[155 -176]

[177 -192]

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O Terror e o Estranho

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45Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica, 2016 7(1): 45-53

INOCÊNCIO X E A TEORIA DAS TRANSFORMAÇÕES:O TERROR PURO

Luís Delgado1

[email protected]

RESUMOO autor debruça -se sobre a (in)capacidade de pensar o horror através de duas das

cerca de quarenta interpretações realizadas pelo pintor Francis Bacon – O Papa a Gritar (1953) e Figura com Carne (1954) – do retrato Papa Inocêncio X (1650) realizado por Diego Velázquez, as quais podem ser compreendidas à luz da Teoria das Transformações de Wilfred Bion (1965), em que cada interpretação/transformação leva o pintor à intensificação de um terror sem nome, visceralmente sentido, sem qualquer capacidade de mentalização, de nomeação, de sonho e à difusão do sentimento de identidade. Para isso criou uma técnica capaz de reproduzir a realidade psíquica profunda e não a aparência das pessoas. O seu objetivo não foi pintar o horror que origina o ”grito”, mas o próprio “grito” de terror, de modo a tornar audível o inaudível.

Palavras -chave

O quadro de Diego Velázquez, Papa Inocêncio X (1650) encontra -se em Roma na Galeria Doria Pamphigli. É uma pintura ao estilo realista representando um Papa fulgente, radioso, magnífico, seguro, em suma simbolizando a robustez de um dos pilares fundamentais da cultura e civilização ocidentais. Quando o Papa viu pela primeira vez o quadro pintado por Velasquez terá exclamado “Troppo vero!”. Trezentos anos depois Francis Bacon viu -o em reprodução e reuniu depois uma vasta coleção de reproduções, através das quais veio a estudar e a conhecer profundamente o quadro. Teve o cuidado de nunca o ver ao vivo e mesmo quando esteve em Roma evitou a todo o custo o encontro. Entre 1951 e 1965 pintou 45 estudos, variações, reações ao quadro de Velázquez, sentindo sempre uma fortíssima obsessão por ele.

1 – Psicanalista Titular da AP. Professor Universitário (ISPA-IU).

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Figura1 – Papa Inocêncio X (Velázquez, 1650)

Antes de passarmos à descrição do primeiro estudo de Bacon do quadro, proponho que ouçamos primeiro o próprio pintor sobre o sentido e a técnica da sua pintura em geral, assim como as circunstâncias históricas e culturais da altura:

“A arte é um método de abrir áreas de sensibilidade, mais do que a mera ilustração de um objeto” (Bacon citado por Sinclair, 1995, p. 232).

“Eu pinto forças, não figuras” (entrevista a Sylvester, 2007).

“A maior parte de um quadro é sempre uma convenção, a aparência e é isso que eu tento eliminar nos meus quadros. Procuro o essencial, que a pintura assuma do modo mais diretamente possível a identidade material daquilo que represento. O meu modo de deformar as imagens aproxima -me muito mais do ser humano do que se me sentasse e fizesse o seu retrato (…) Procurei encontrar uma técnica capaz de reproduzir a realidade profunda e não a aparência das pessoas” (entrevista a Ramón Chao, 1982).

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Figura 2 – Francis Bacon (1909 -1992)

Em suma, o que Bacon tenta captar é o estado emocional e sensitivo de um sujeito num determinado momento, o seu objetivo é captar uma identidade.

À semelhança de muitos outros artistas do pós -II Guerra Mundial tentou reproduzir o clima de terror absoluto e descrença na cultura, expressando o que aconteceu à humanidade finda a Guerra e o Holocausto nazi: a destruição geral, a morte, o flagelo, o holocausto nuclear, a despersonalização do homem que se converte em cadáver atirado para valas comuns, seres asfixiados, queimados e atirados fora como lixo, o desespero mudo dos rostos de bocas abertas, incapazes de produzir qualquer som…

Theodor Adorno, um dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, afirmou que seria impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Enganou -se, mas é um facto que Bacon nunca pinta a figuração do horror, nunca há qualquer narração e ilustração de uma cena de horror. O que ele pinta é o grito como a captação de uma força invisível. O seu objetivo é expressar a realidade torturante do homem contemporâneo traumatizado pela impossibilidade de erradicar o Mal, pior ainda, pela descrença total no progresso civilizacional e cultural, pelo paradoxo enlouquecedor da associação entre progresso e barbárie: uma cultura que pode produzir, em conluio com os progressos técnico -científicos, a morte planificada do campo de extermínio ou a aniquilação instantânea, à distância, de centenas de milhares de seres humanos. Cito Freud em O Futuro de uma Ilusão: “As criações dos homens são fáceis de destruir, e a ciência e a técnica por eles edificadas também podem ser utilizadas para a sua destruição”. O que Bacon pretende metaforizar é o desamparo

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aflitivo e raivoso do desastre na cultura, o desencanto do mundo. Recordo as palavras lúcidas de Primo Levi em, e o título é certeiro, Se isto é um Homem: “a ofensa feita ao humano (…) a natureza insanável da ofensa que se propaga como um contágio, o qual é uma fonte inesgotável do mal” (A Trégua, 1963/2010, p. 9). O que Bacon nos dá a ver é uma metáfora do sentimento interno perante a falência total da cultura tal como Freud a concebeu no início do seu ensaio O Futuro de uma Ilusão. Para ele, a cultura é um esforço coletivo para “dominar a Natureza, extrair bens naturais com que satisfazer as necessidades humanas e por outro lado todas as organizações necessárias para regular as relações dos homens entre si” (1927/1981, pp. 2961 -2962). Bacon tenta dar corpo à sua obsessão, a agressividade do ser humano e aquilo que ele entende como a sua inata e inexorável inclinação para a violência ou, ainda nas palavras de Freud em Mal -Estar na Civilização quando questiona a vocação da humanidade, de “satisfazer no outro a agressão, explorar a sua força de trabalho sem ressarci -lo, usá -lo sexualmente sem o seu consentimento, tirar -lhe a posse do seu património, humilhá -lo, infligir--lhe dores, martirizá -lo e assassiná -lo” (1929/1981, p. 3046).

Porquê a escolha da figura do Papa? Precisamente porque ele representa um dos fundamentos maiores da nossa civilização ocidental. Ouçamos ainda Freud em O futuro de uma ilusão: “(as doutrinas religiosas) constituem a base da nossa civilização (…) Se lhes ensinarmos (aos homens) que a existência de um Deus omnipotente e justo, de uma ordem moral universal e de uma vida futura são puras ilusões, considerar -se -ão desligados de toda a obrigação de acatar os princípios da cultura. Cada um seguirá, sem freio nem temor, os seus instintos, sociais e egoístas e tentará afirmar o seu poder pessoal, e deste modo surgirá de novo o caos, o que poderá pôr um termo a um trabalho civilizacional ininterrupto através de muitos milénios.” (1927/1981, p. 2979).

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Figura 3 – O Papa a gritar (Bacon, 1953)

O quadro de Francis Bacon, Estudo Baseado no Retrato do Papa Inocêncio X Segundo Velázquez (1953), mais conhecido por O Papa a Gritar apresenta -nos uma vociferante e desesperada figura papal em queda livre, encerrada numa cadeira e num cubo, com a sua parte superior esfumada entre as cortinas do fundo e uma borla encimando o lugar que deveria estar ocupado pelo cérebro. A silhueta encontra -se ataviada com encaixes brancos e vestimentas de tom púrpura e ultramar, parecendo uma caricatura do retrato pintado por Velázquez. A figura do Papa situa--se atrás de lâminas espessas duma cortina de transparência sombria. Para além da sensação de movimento descendente da figura, quando Bacon pinta o Papa que grita, não há nada que provoque horror e a cortina diante dele não é só uma maneira de o isolar, de o subtrair aos olhares, é muito mais para mostrar que ele não vê nada, que grita diante do invisível.

Para além da crítica feroz à “religião organizada” sob a forma de gritos e esgares dum rei da igreja católica e monarca do mundo, Bacon colocou na tela os seus medos e raivas mais profundas, expulsou -os e alcançaram uma nova intensidade. Não nos podemos esquecer que Bacon traz consigo toda uma infância marcada pela morte (de duas irmãs) de uma juventude perturbada pela extrema incompreensão do seu pai (expulsou -o de casa pelas suas manifestações homossexuais), o suicídio de dois dos seus amantes, assim como de todo o horror da guerra civil da Irlanda, das duas Guerras Mundiais e o início da Guerra Fria. A figura vertiginosamente em queda e aos gritos, solitária e enjaulada, sem

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qualquer possibilidade de fuga é uma infindável máscara de sofrimento, raiva, angústia de desamparo e terror da decrepitude e da morte.

Apesar de todo o realismo da sua pintura, Bacon acreditava haver “realidades interiores”, admitindo inclusivamente que as obras de Freud tinham modificado o seu próprio sentido de realismo “devido a que ficámos mais conscientes do modo como o realismo se pode alimentar do subconsciente (…) A gente vive quase o tempo todo encoberto por véus… É uma existência velada. E às vezes penso, quando as pessoas dizem que os meus quadros parecem violentos, que eu consigo de vez em quando levantar algum véu ou afastar algum biombo”. De facto o quadro de Bacon é um levantar do véu das aparências da representação de Velázquez, confrontando -se a si próprio e o espectador com “a brutalidade dos factos”, com o grito espasmódico e convulsivo de forma a atingir direta e violentamente o sistema nervoso. Primeiro sente -se e depois pensa -se. Segundo a célebre fórmula de Paul Klee “em vez de dar o visível, tornar visível”, em arte trata -se não de reproduzir ou inventar formas, mas de captar forças (Klee cit. por Deleuze, 1984). Bacon declarou a um jornalista que os seus estudos sobre Velázquez constituíam “uma intenção de converter um certo tipo de sensação em algo visível”. A sensação era o seu próprio temor visceral da morte e a sua rebeldia contra a autoridade. “A pintura representa as características do sistema nervoso do seu autor projetadas na tela” (Bacon citado por Deleuze, 1984, p. 120).

Wilfred Bion afirma no seu livro Transformations (1965/1982), hoje um clássico: “A teoria das transformações e o seu desenvolvimento não pertencem ao corpus central da teoria psicanalítica, mas à prática da observação psicanalítica. As teorias psicanalíticas, assim como os enunciados do paciente ou do analista, são representações de uma experiência emocional. A compreensão do processo de representação ajudar -nos -á a compreender a representação e o que é representado” (pp. 43 -44). O pintor, pelo seu talento artístico, conseguiu transformar uma pessoa, uma paisagem (“a realização”) num quadro (“a representação”) e isto graças às invariantes. “Designarei ´invariantes` os elementos que dão conta do aspeto inalterado da transformação” (p. 7). E mais adiante: “A análise, no seu estado pré -catastrófico, distingue -se do estado pós -catastrófico pelas seguintes características: ela não é emocional, teórica

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e desprovida de qualquer modificação exterior notável (…) No estado pós -catastrófico, pelo contrário, a violência é patente, mas o seu conteúdo ideativo, até então evidente, parece faltar. A emoção é evidente e atinge o analista” (p. 15) – no nosso caso atinge o espectador. Bion propõe que as transformações psíquicas se processam por três modalidades distintas entre si e que ele denomina como “transformações de movimento rígido”, “transformações projetivas” e “transformações em alucinose”.

No estudo presente e de acordo com a teoria de Bion, concebemos o quadro de Velázquez como uma representação da mente em estado pré -catastrófico (parte neurótica da mente) de Bacon realizando uma transformação de movimento rígido, em que distorce minimamente o facto original – Inocêncio X – e permite ao espectador encontrar o elemento invariante com muita facilidade (“Troppo vero!”). As características aparentes do Papa são visíveis: poder, serenidade, infalibilidade, proteção, confiança na vida do além, crença no amor…

Já o quadro O Papa a Gritar representa a projeção da mente em estado pós -catastrófico, numa transformação de tipo projetivo, deformando mais intensamente o facto original devido às emoções intensas, desvirtuando as noções de espaço/tempo e postura papal sem, no entanto, impedir completamente que o espectador possa reconhecer os invariantes que possibilitam o reconhecimento.

Figura 4 – Figura com carne, Bacon, 1954

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Num outro estudo do Papa Inocêncio X, intitulada Figura Com Carne (1954) vemos, em cores de tom lúgubre, um corpo que se esfuma e decompõe, escapando -se por uma boca que grita, atrás do qual duas carcaças enormes de animal surgem penduradas. Aqui já não distinguimos o homem do animal, o morto do vivo. Este corpo totalmente desfigurado e mutilado, no limite do desaparecimento e confundido com a carne, sugere a perda da identidade básica e a presença da morte. “Tenho sempre a consciência da minha condição de mortal. E odeio essa condição: não queria morrer nunca”. Bacon sente -se tocado pelo cheiro da morte e pelo facto da violência da vida, em que “cada um vive para comer o outro” (Bacon citado por Sinclair, 1993/1995, p. 47). Bacon expõe na sua obra algo da morte e da real incompletude quando afirma: “Existe sempre um sentimento de morte nas pessoas quando elas vêm os meus quadros (…) Talvez eu carregue esse sentimento de morte o tempo todo (…) Surpreendo -me sempre quando acordo de manhã” (op. cit., p. 78). Nesta obra a deformação é de tal magnitude que roça a transformação em alucinose, relacionada com uma catástrofe primitiva devida a uma ansiedade de aniquilamento primordial, não encontrando o sujeito qualquer capacidade continente interno, reintrojetada sob a forma de um “terror sem nome”. Esta tela é claramente a representação de uma experiência emocional catastrófica (Tbeta na nomenclatura bioniana). O terror e a dor no seu estado puro.

REFERÊNCIAS

Bion, W. R. (1965/1982). Transformations – Passage de l`Apprentissage à la Croissance. Paris: PUF.

Deleuze, G. (1984). Francis Bacon, Logique de la Sensation. Paris: Édit. de la Différence.Delgado, L. (2012). Psicanálise e Criatividade: estudo psicodinâmico dos processos

criativos artísticos. Lisboa: ISPA.Feud, S. (1927/1981). O Futuro de uma Ilusão. Sigmund Freud, Obras Completas

(Tomo III, 2962 -2992). Madrid: Biblioteca Nueva.Freud, S. (1929/1981). Mal Estar na Civilização. Sigmund Freud, Obras Completas

(Tomo III, 3018 -3067). Madrid: Biblioteca Nueva.Levi, P. (1958/2010). Se Isto É um Homem. Lisboa: Teorema.Levi, P. (1963/2010). A Trégua. Lisboa: Teorema.Sinclair, A. (1995). Francis Bacon. Su Vida en una Época de Violência. Barcelona: S.A.

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Title: Innocent X and Theory of Transformations.

ABSTRACTThe author focuses on the (in)capacity of thinking horror through two of aroud forty

interpretations performeded by the painter Francis Bacon – Screaming Pope (1953) and Figure with Meat (1954) – from the portrait painted by Diego Velázquez (1650), which can be understood in the light of the Theory of Transformations of Wilfred Bion (1965) where each interpretation/transformation push the painter to a intensification of a nameless terror, viscerally sensed, without any capacity of mentalization, naming, dream and to a degration of sense of identity. For this purpose Bacon created a new technique able to reproducting the deep psychic reality and not only the appearence of people. Its aim was not to paint horror that originates the ´scream` but the ´scream` of terror itself in order to make the inaudible audible.

Keywords:

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INSTRUÇÕES AOS AUTORES

A «Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica» publica artigos originais do campo disciplinar, científico e praxiológico (clínica e aplicação) da Psicanálise e da Psicoterapia Psicanalítica e textos que exprimam a rica diversidade de interfaces entre estes domínios e os outros ramos da cultura, da ciência e da arte.

Regemo -nos por um sistema de arbitragem anónima por avaliadores externos (referees), através de um procedimento de Double Blind (duplamente cego): neste processo os intervenientes (autores, revisores e gestores de artigo) são tornados anónimos. O artigo é enviado para três Pares Revisores, que o examinam e arbitram sobre a sua qualidade. O editor enviará ao autor informação sobre a eventual aceitação para publicação; reformulação e submissão para nova avaliação por pares; ou não aceitação. No caso de reformulação, os autores receberão os pareceres e recomendações dos Pares Revisores e deverão proceder às alterações recomendadas.

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

Deverão ser enviados para o editor da revista dois ficheiros:

No primeiro constará a identificação dos autores (num máximo de seis), com o nome, instituição (s) onde exercem, funções e os contactos (morada, e-mail e telefone).

No segundo, devem ser apresentados o artigo integral, com o título em português e inglês, o resumo e as palavras-chave, abstract e key -words, mas sem quaisquer elementos que façam referência explí-cita ao autor.

NORMAS GERAIS DE FORMATACÃO

Os artigos não deverão ultrapassar as 15 páginas (salvo algumas exceções), já incluindo referências, notas, tabelas, e figuras. Os últimos três elementos deverão ser evitados, exceto quando forem indispensáveis para a compreensão do texto.

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O corpo do texto deve ser precedido pelo título, um resumo entre 150 e 200 palavras e quatro a seis palavras-chave. O título, resumo e palavras -chave deverão ser apresentados na língua portuguesa e inglesa.

Só são aceites notas de rodapé na primeira página do artigo relativas ao título e à identificação do autor. Estas notas são identificadas por numeração árabe em vez de asterisco.

Todas as outras notas, apresentadas apenas quando forem consideradas essenciais, são reunidas no final do texto como notas finais antes das referências.

As fotografias, figuras, esquemas e gráficos devem ter um título e ser enumeradas por ordem de inclusão no texto.

REGRAS DE CITAÇÃO E DE REFERENCIAÇÃO

As regras de citação e de referenciação devem ser elaboradas de acordo com as normas sugeridas pela A.P.A. (American Psicological Association).

CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E SUBMISSÃO DE TEXTOS

Revista Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia PsicanalíticaRua António Pedro, 127 – 3º1000-037 LisboaE-mail: [email protected]

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