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Katia Regina Machado karegimachado @ hotmail.com Doutora em sociologia pela Université de la Sorbonne Nouvelle A política da estética da fotografia de Sebastião Salgado Resumo Toda representação visual midiática cuja temática trata de um aspecto problemático qualquer da realidade do mundo social tem como objetivo, declarado ou não, politizar seu espectador. Essa politização contribui para reforçar ou transfor- mar a forma de percepção da realidade representada. A formalização estética adotada pelo fotógrafo Sebastião Salgado para construir suas enunciações visuais faz emergir o debate sobre a questão das “boas” e “más” formas de politização do espectador de imagens, e dos efeitos sociais produzidos por essas. No presente artigo discutiremos sobre a proposição de politização da fotografia de Salgado, sobre o tipo de politização a que ela se opõe, e sobre a visão do mundo que ela visa a promover. Palavras-chave: fotografia; Sebastião Salgado; politização da imagem. Abstract Every visual media representation that depicts a problematic characteristic of the social world aims to, explicitly or not, politicise its viewers. is action helps either to reinforce or to transform the perception of the depicted reality. e aes- thetic formatting the photographer Sebastião Salgado adopts in his visual statements brings to the surface the discussion about “the good” and “the bad” ways for the viewers to be politicised, besides the social effects this particular choice may have. In this article we discuss the proposal of politicization found in Salgado’s photography as well as to which form of proposition it is opposed. In addition, we examine what kind of world view it aims to promote. Keywords: photography; Sebastião Salgado; politicization of image.

Sebastião Salgado - A Política Da Estética Da Fotografia de Sebastião Salgado

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Sebastião Salgado - A Política Da Estética Da Fotografia de Sebastião Salgado.

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  • Katia Regina Machado

    karegimachado @ hotmail.comDoutora em sociologia pela Universit de la Sorbonne Nouvelle

    A poltica da esttica da fotografia de Sebastio Salgado

    Resumo

    Toda representao visual miditica cuja temtica trata de um aspecto problemtico qualquer da realidade do mundo social tem como objetivo, declarado ou no, politizar seu espectador. Essa politizao contribui para reforar ou transfor-mar a forma de percepo da realidade representada. A formalizao esttica adotada pelo fotgrafo Sebastio Salgado para construir suas enunciaes visuais faz emergir o debate sobre a questo das boas e ms formas de politizao do espectador de imagens, e dos efeitos sociais produzidos por essas. No presente artigo discutiremos sobre a proposio de politizao da fotografia de Salgado, sobre o tipo de politizao a que ela se ope, e sobre a viso do mundo que ela visa a promover.

    Palavras-chave: fotografia; Sebastio Salgado; politizao da imagem.

    Abstract

    Every visual media representation that depicts a problematic characteristic of the social world aims to, explicitly or not, politicise its viewers. This action helps either to reinforce or to transform the perception of the depicted reality. The aes-thetic formatting the photographer Sebastio Salgado adopts in his visual statements brings to the surface the discussion about the good and the bad ways for the viewers to be politicised, besides the social effects this particular choice may have. In this article we discuss the proposal of politicization found in Salgados photography as well as to which form of proposition it is opposed. In addition, we examine what kind of world view it aims to promote.

    Keywords: photography; Sebastio Salgado; politicization of image.

  • A poltica da esttica da fotografia de Sebastio Salgado | PROA revista de antropologia e arte

    O fotgrafo documentarista brasileiro Sebastio Salgado, conhecido e reconhecido inter-nacionalmente pela produo de seus retratos do sofrimento do mundo em preto e branco, est habituado a receber crticas virulentas acusando-o de, por meio da formalizao esttica, transformar as vtimas que ele fotografa em heris. No entender dos crticos que comparti-lham dessa opinio, o fato de as pessoas fotografadas no serem vistas como vtimas sugere ao espectador que no haveria necessidade de mudar a situao deplorvel em que elas se encon-tram ou que no se deveria fazer nada para tal. Essa uma das principais razes para lanarem o argumento de que estetizar esse tipo de realidade social a despolitiza. No entanto, tratando-se de representaes do mundo social, podemos mostrar que nenhum produtor de imagens pode ser acusado de despolitizar, ou parabenizado por politizar, seus espectadores, pois a temtica em questo , em si mesma, politizadora. Assim sendo, toda imagem que mostra uma realidade problemtica do mundo social politiza, para o bem ou para o mal, seus receptores.

    muito provvel que aqueles que detm o controle do poder socioeconmico ou que se encontram em uma situao favorvel graas existncia de desigualdades sociais aberrantes digam que os efeitos da politizao so para o bem quando contribuem para a manuteno do status quo, e para o mal quando incitam mudana. Assim, a partir de uma viso reivindicadora de transformao das realidades deplorveis do mundo social, diremos que um dos principais efeitos que esperamos da fotografia documental de Sebastio Salgado o de suscitar a consci-ncia crtica do espectador. Levando em conta as argumentaes dos crticos a favor e contra a abordagem fotogrfica de Salgado, mostraremos em que consiste a modalidade de politizao proposta pelo fotgrafo.

    A representao da realidade e a questo dos efeitos sociaisPodemos falar que a representao fotogrfica do mundo social politiza o espectador de

    imagens no sentido de que essa modalidade de enunciao visual interfere em seu modo de ver o mundo. A fotografia faz ver para fazer crer. Esse meio (medium) mecnico de reproduo da imagem dispe efetivamente de recursos muito eficazes para produzir todo tipo de crenas sociais. Assim, Philippe Dubois (1983) chama a ateno para o fato de que, embora tenhamos conscincia de seu efeito de simulacro, no conseguimos nos livrar de seus efeitos do real.

    Uma refutao frequente do argumento da interveno da fotografia na realidade represen-tada consiste em apontar a fotografia objetiva como uma modalidade de expresso visual capaz de construir seus enunciados sobre a realidade sem julg-la. Sua objetividade reside assim na no interferncia do fotgrafo, que, abrindo mo dos artifcios estticos, se limitaria a apenas nos informar sobre o mundo. Para mostrarmos a fragilidade dessa noo recorreremos anedota mencionada pelo socilogo americano Howard Becker (1999, p. 97) ao abordar a questo da relao entre composio esttica e objetividade discursiva em fotografia:

    Em 1978, Margaret Mead e Gregory Bateson tiveram um debate muito interessante sobre esta ques-to (tratava-se de cinema e no de fotografia, mas os problemas so idnticos). Mead pensava que o nico modo srio de fazer fotografias antropolgicas consistia em colocar a cmera sobre um trip e no mais toc-la. Com efeito, no momento em que a tocamos as escolhas pessoais do investigador prevalecem. J Bateson pensava que era necessrio deslocar a cmera para poder seguir o que inte-ressa ao observador. O que Mead no conseguia ver que o simples fato de colocar a cmera em um lugar e ali deix-la tambm representava uma tomada de partido do pesquisador.1

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    A produo da imagem fotogrfica de uma realidade social sempre implica que o ato foto-grfico constitui um julgamento da realidade representada. Diante de imagens desse gnero seria um equivoco separar a questo esttica da questo poltica. Do mesmo modo que impossvel produzir uma imagem fotogrfica sem fazer escolhas que no constituam uma interferncia, cada uma das escolhas que participam da composio da imagem (enquadramento, distncia focal, iluminao, tiragem, elementos includos ou excludos, colocados em evidncia ou em segundo plano, entre outras) resulta na criao de um determinado ambiente esttico. A mnima mudana de uma delas levaria a um resultado fotogrfico diferente, o que interferiria no somente no modo de apreenso e compreenso do espectador, mas tambm em seu modo de sentir.

    Chegamos aqui a um ponto crucial. A questo dos efeitos sociais produzidos pela imagem fotogrfica. Como ressalta Marie-Jos Mondzain (2003, p. 230), a imagem, mesmo a imagem fotogrfica, s vale pela emoo que suscita e jamais pela verdade que prova. Esse postulado se aplica de maneira bastante pertinente fotografia, porque, em primeiro lugar, mesmo consti-tuindo testemunha ocular, de uma maneira geral, as imagens no dizem nada; e, em segundo lugar, porque, como toda imagem, ela tem por especificidade emocionar. Em relao primeira parte dessa proposio, podemos dizer que a constatao evidente; no que diz respeito segunda, os estudos sobre a assimilao psquica da imagem mostram que efetivamente impossvel ver ou conceber uma imagem sem que essa representao visual seja acompanhada de emoes, de sensaes e at mesmo de impulsos ao ato (TISSERON, 1998, p. 42).

    Por estarmos tratando do caso especifico de imagens fotogrficas que circulam no espao publico de comunicao, a questo do sentir, como um dos efeitos por elas produzidos, ganha uma dimenso particularmente importante, pois nos referimos experincia do sentir juntos. Trata-se de um efeito que possui uma dimenso sociolgica. Fazer ver mais do que mostrar, mais do que exibir, pois implica compartilhar um espao e um discurso (MONDZAIN, 2003, p. 182). Mesmo que as emoes possam variar em funo da individualidade, nada impede que sejam subjetividades intersubjetivas.

    Ningum poder jamais se gabar de saber o que o outro v ou sente diante do espetculo do mundo, e, no entanto, a participao de uma comunidade na diviso desse mundo s sustentvel se esta ofe-rece meios de constituir redes de signos que circulam entre os corpos e produzem uma sociabilidade poltica das emoes. (Ibid., p. 180).

    Toda anlise de imagens inseridas no contexto pblico de circulao deveria ento levar em conta que as emoes visuais por elas suscitadas so socializadas. medida que nos aprofunda-mos na reflexo de Mondzain, essa questo torna-se mais complexa, ou, at mesmo, mais delica-da, pois a experincia esttica do sentir juntos acaba se revelando uma modalidade de exerccio do poder. O visvel nos afeta a partir do momento em que atia a potncia do desejo e nos intima a encontrar meios de amar ou odiar juntos, expe Mondzain (2002, p. 22). E acrescenta:

    o poder sempre quer controlar o amor e o dio e, na medida em que a emoo visual est justamente relacionada a essas paixes, o dispositivo que mostra, a forma escolhida para fazer isso, o espao dado palavra, o risco que se corre ao fazer um enquadramento, uma montagem, so todos eles gestos polticos nos quais o destino do espectador em sua prpria liberdade o que est em jogo (Ibid., p. 56-57).

    Sob outro ngulo de anlise, Bourdieu (1997, p. 2) tambm aponta a enunciao visual que diz algo sobre a condio de vida de pessoas como uma modalidade de poder: porque o mundo

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    social , de um lado, representao e vontade; porque a representao que os grupos fazem de si mesmos e dos outros grupos contribui em grande medida a fazer que eles sejam como so e que faam o que fazem [...]. Certos produtores de imagens constroem suas enunciaes sobre a realidade problemtica do mundo social de modo que elas sirvam para legitimar o estado de coisas; outros, para transformar essa realidade. Sebastio Salgado faz parte do segundo grupo.

    O conceito esttico de sua fotografia corresponde ao que chamamos em sociologia da ima-gem de fotorreportagem de autor. Isso implica uma esttica particular baseada em uma estili-zao evidente das imagens (MOREL, 2007). De modo que podemos notar na obra fotogrfica de Salgado a presena de marcas visuais fortes e insistentes. Embora sua fotografia no se inscreva na categoria da fotografia de arte, a composio de suas imagens se caracteriza pelo aspecto ar-tstico. Para Howard Becker, a utilizao de um mtodo estilstico especfico possibilita ao fotgrafo obter provas necessrias para responder s questes que fundamentam seu trabalho. Segundo o socilogo, toda fotografia pode ser interpretada como uma resposta a uma ou vrias questes (BECKER, p. 197). Aquelas levantadas previamente pelo prprio fotografo e as que elas susci-tam nos espectadores. E o estilo que fornece fotografia meios para que ela possa responder a tais questes; ao mesmo tempo, ele tambm que faz com que essa mesma imagem seja objeto de questionamentos.

    Salgado escolheu fazer perguntas difceis de serem respondidas. Embora se proponha des-vendar os danos causados pela misria do mundo, ele recusa todo tipo de viso redutora da condio de existncia das pessoas fotografadas:

    extraordinrio ver pessoas que lutam para manter suas vidas, [...] no somente pela sobrevida e dignidade da vida, como tambm para salvaguardar sua comunidade. Quando vemos essa coragem, essa vontade de lutar, nos damos conta de que a histria no acabou, de que eles no abaixaram os braos e desistiram de lutar. preciso mostrar isso. (SALGADO apud CAMPBELL, 2003, p. 77-78).

    Enquanto no modo clssico de representar essas pessoas busca-se apresentar o ngulo me-nos favorvel, realar os aspectos que as desvalorizam seja nas roupas, nos pertences etc. , elaborando uma composio esttica que resulte em uma viso que cause repulso ou mesmo abjeo, Salgado procura o melhor ngulo. De modo que a abordagem esttica de sua fotografia est em contraste com um tipo adverso de representao fotogrfica, aquele que coloca em cena o que John Berger designa como a vitimizao das vtimas. Segundo Berger, existe uma sndro-me, alimentada pela mdia, em torno da catstrofe e da vitimizao, e que promove somente um senso de piedade (The Guardian, 10 June 2000).

    Salvaguardando esteticamente a imagem de si das pessoas representadas, Salgado impede que o espectador coloque sobre elas um olhar humilhante. Ou seja, evita que o espectador olhe-as sem v-las corretamente, pois justamente isso que o incita a qualific-las como sub-homens e a no reconhec-las como agentes sociais.

    Eu sempre me propus respeitar as pessoas o mximo possvel, diz ele, me esforando em elaborar a melhor composio e a captar a mais bela iluminao... Se podemos mostrar uma situao dessa maneira focalizar a beleza e a nobreza e ao mesmo tempo o desespero , podemos ento mostrar a algum na Amrica ou na Frana que essas pessoas no so diferentes. Minha inteno fazer com que os americanos olhem a imagem dessas pessoas e enxerguem a si mesmos (SALGADO apud CAMPBELL, 2003, p. 85).

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    Tal inteno leva-o a se ocupar cuidadosamente do tratamento do que est no quadro. O recurso a uma srie de tcnicas fotogrficas tais como a focalizao em contraluz, o contraste claro/escuro, a profundidade de campo, a granulao, a valorizao de texturas contribuem para criar uma composio esttico-artstica. Outro aspecto que ganha ateno particular a escolha de como e em quais circunstncias fotografar as pessoas. Suas imagens no mostram simplesmente homens em sofrimento social, mas homens em ao social apesar de tudo. O momen-to decisivo para ele o momento que cristaliza a resistncia, o olhar indignado dos personagens de sua narrao fotogrfica. Trata-se de um tratamento esttico que tem por objetivo reivindicar um tipo de tratamento poltico que no subjugue a condio humana das pessoas fotografadas.

    Dois remdios e trs medidas para os sofrimentos sociaisRecorreremos a Luc Boltanski (2007) para servir de fio condutor a nossa reflexo, a fim de

    explicitarmos, de um ponto de vista epistemolgico, em que consiste esse tipo de sofrimento e suas formas de tratamento. Segundo o socilogo, ao contrrio dos sofrimentos inerentes con-dio humana ou queles causados pelas adversidades da natureza, os sofrimentos sociais so provocados diretamente pela ao dos homens seja por meio da guerra ou da explorao e da misria (Ibid., p. 442). Trata-se, portanto, de sofrimentos para os quais existe uma causa poltica e social e, por conseguinte, tambm remdios polticos e sociais (Ibid., p. 123). As formas cls-sicas de tratamento desse tipo de patologia so a poltica da justia e a poltica da piedade.

    O primeiro remdio e medida para os sofrimentos sociais a poltica da piedade. Seu pri-meiro trao caracterstico o estabelecimento ntido de uma distino entre duas classes de homens: homens que sofrem e homens que no sofrem. Isso feito, para tal poltica ser operante, o sofrimento dos que sofrem deve ser exibido ao olhar dos que no sofrem. Por estarem ao abrigo do sofrimento e no terem uma experincia direta de tal situao, os observadores dos que so-frem so considerados pessoas felizes, cujo papel ser o de espectadores do espetculo do sofrimento. Esse quadro enunciativo em si j sugere que para a poltica da piedade casos individuais no so levados em considerao, pois ela se ocupa de preferncia de casos coletivos. Por conseguinte, necessita da composio de um quadro no qual os sofredores representados sejam hipersingula-rizados pelo acmulo de detalhes do sofrimento e, ao mesmo tempo, subqualificados, percebidos como simples representantes da realidade sofrida na qual se encontram inseridos.

    J para caracterizar a poltica da justia, o segundo remdio e medida para os sofrimentos sociais, Boltanski destaca trs pontos essenciais. Em primeiro lugar, essa poltica define e avalia os mritos respectivos dos cidados, opondo, em uma escala social, os grandes aos pequenos. Ento, por exemplo, o fato de ser pequeno uma justificativa para que um indivduo no tenha direito de acesso a um servio mdico especfico. O foco no a questo do sofrimento, mas o modo como as pessoas so ordenadas segundo sua dimenso ou seu estatuto social, e se ele justo ou no. Em segundo lugar, os qualificativos grande e pequeno no definem coletividades, pois, embora essa classificao considere as pessoas parte de uma massa, o que conta a lgica de cada caso. Em terceiro lugar, a poltica da justia solicita a apresentao de provas. nessa ocasio que a grandeza das pessoas revelada, pois elas fazem valer os objetos de um mundo comum. Assim, para um indivduo que mora em uma favela, ela a prova de sua condio de misria. A ordem das coisas tal como colocada em evidncia pelas provas considerada justa, porque, como j foi dito, as pretenses das pessoas em conflito so confrontadas com a realidade. Para a poltica

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    da justia, portanto, pouco importa se o pequeno feliz ou infeliz, pois, sob sua tica, ele tem o que merece (Ibid. p. 23).

    Na terceira medida para tratamento dos sofrimentos sociais, a simpatia que sentimos pela infelicidade alheia no pena, mas compaixo. Do mesmo modo que a poltica da piedade, a compaixo uma resposta viso do estado deplorvel das pessoas que se encontram na misria. Porm no se deixa constituir em poltica, j que se caracteriza pela predominncia de um prag-matismo que mobiliza imediatamente aquele do qual se apodera. Ela tambm difere da piedade na sua forma de expresso. Em vez de palavras, a compaixo exprime-se por gestos e expresses do corpo, ou melhor, por aes. Enfim, do mesmo modo que a poltica da justia, ela no procura generalizar, ocupando-se de sofredores singulares.

    Com base nos elementos apresentados, podemos identificar melhor em que consiste a po-ltica proposta pela fotografia de Sebastio Salgado. Ao mesmo tempo, possvel colocar em evidncia certos aspectos implicados na questo das imagens da denncia social e que permitem estabelecer um julgamento apropriado da questo das boas ou ms formas de representar o so-frimento do mundo. Bem entendido: o critrio do que apropriado pode variar em funo da orientao poltica do leitor.

    O modelo de denncia social da fotografia de SalgadoComo a fotografia de Salgado pertence ao gnero da fotografia documental, atribui-se au-

    tomaticamente a ela a finalidade de denncia social. Entretanto, a pertinncia da formalizao esttica adotada pelo fotgrafo para atingir esse objetivo colocada em debate. Uma das crticas fotografia de Salgado concerne ao efeito de generalizao produzido por suas imagens:

    Os gestos das vtimas do xodo, seus olhares, seus movimentos, sua desgraa, so erigidos em esteretipos. Quanto mais uma obra globalizante, menos ela perturba, repete frequentemente a artista americana Martha Rosler [...] Para o pregador marxista que ele (Salgado) , o bem da humanidade mais importante que os destinos individuais. (GUERRIN, 2000).

    Em sua crtica, Susan Sontag (2003, p. 86-87) salienta:Coisa significativa, as legendas no mencionam os nomes dos impotentes. Um retrato que se recusa a denominar as pessoas retratadas torna-se cmplice, mesmo que por inadvertncia, do culto celebri-dade que alimenta o apetite insacivel do pblico por uma forma adversa de fotografia: dando nome somente aos ilustres, rebaixamos os outros a simples categoria de representantes de sua profisso, de sua etnia, de seu triste estado.

    De sua parte, Jean-Franois Chevrier (2000) estima que toda fisionomia para ele [Sal-gado] somente a aparncia momentnea de um fenmeno de massa. Tudo indica que o que d margem aos comentrios desfavorveis o fato de a generalizao no ser um dispositivo de uma poltica da justia que se interessa, como vimos, pelo singular. Aliado a isso, considera-se que os efeitos produzidos por essa modalidade de politizao favorecem os interesses de dife-rentes orientaes sociopolticas.

    A sociedade liberal considera o argumento do justo a abordagem discursiva a ser privile-giada, visto que seu princpio de equidade permite decidir, por uma avaliao de mritos, se a misria das pessoas justificada. Para um homem de esquerda, aceitar a caridade renunciar revoluo, no procurar tomar o poder em nome da justia (BOLTANSKI, 2007, p. 326). De

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    maneira geral, podemos dizer que a noo de justia tem conotao social positiva, j que indica uma forma de tratamento na qual colocamos as pessoas em p de igualdade. Como a enunciao de Salgado recorre generalizao, coloca-se em dvida a capacidade de suas imagens produzi-rem efeitos prprios a esse tipo de politizao. Entretanto, Boltanski indica que, em si mesma, a denncia social invoca a metafsica da justia. E por esse vis que a enunciao fotogrfica de Salgado a atinge. Pois uma das caractersticas do discurso da denncia social referir-se terceira pessoa do plural e dirigir-se primeira ou segunda pessoa do plural.

    Notamos frequentemente que Salgado procura apresentar em suas imagens elementos sim-blicos capazes de caracterizar os indivduos fotografados como representantes de sua profisso, de sua etnia, de seu triste estado. Como, por exemplo, em uma foto feita no Zaire, mostrando uma estrada onde mulheres passam em fila indiana, carregando, na cabea, gales, bacias e ou-tros utenslios. Parado beira da estrada, um grupo de adolescentes fixa o espectador com um olhar indignado. O garoto em primeiro plano leva uma panela na cabea, como se fosse um chapu. Para quem se encontra ao abrigo da misria, essa panela nada mais que um utenslio domstico. No entanto, para as populaes dizimadas pela fome, essa panela pode, talvez, servir ao menos para proteg-las contra as intempries ou inclemncias da guerra. Ou ainda, em uma foto dos sem-terra, em que o movimento da porteira, ela mesma smbolo de propriedade, que se abre, ou melhor, que foi aberta, evoca o movimento de pessoas que se insurgem. O indivduo que encabea a multido empunha uma foice. Uma referncia ao marxismo? Utilizando os termos de Boltanski, na fotografia de Salgado as pessoas atuam como representantes de um sistema injusto, o que lhe confere um carter de grande generalidade.

    Na expresso e nos gestos dos personagens da fotografia de Salgado, o sofrimento identi-ficado com o mal o mal descrito por Boltanski (2007, p. 236) como sendo irredutvel a toda compreenso, quer cientfica quer religiosa, e que somente pode ser decifrado por uma apreenso esttica do mundo. Perguntar se a condio na qual essas pessoas encontram-se justificada constitui uma atitude cnica, ou, para sermos mais precisos, indecente. Do ponto de vista de uma poltica transformadora, seria, ento, desejvel incitar o espectador a ver a condio deplorvel das pessoas fotografadas, no com um olhar fatalista, mas, sim, inquiridor das causas produtoras dos sofrimentos sociais. Falamos aqui da busca da expresso adequada, da sensibilidade que invoca a corresponsabilidade social2 como dispositivo inibidor da indiferena do espectador mi-ditico para com a misria do mundo. Para isso, necessrio que a enunciao fotogrfica no cesse na retrica de uma poltica da justia.

    Crtica poltica da justiaOs benefcios gerados pelo regime de justia so incontestveis. No entanto, com frequncia

    a poltica da justia pode acabar tornando-se injusta. Trata-se de uma poltica que discute as questes sociais conforme os termos de direito quem tem direito a qu, quem tem direito a ter qual direito , mas no mundo em que vivemos a realidade mostra que a distribuio dos direitos extremamente desigual. Segundo a lgica da justia, possuir a qualidade pequeno no o que importa. No entanto, no caso dos deserdados de todos os direitos dos homens justamente esse fator que determina sua condio de misria. De modo que somente em um mundo do qual o sofrimento tenha sido banido que a justia poder fazer valer seus direitos (BOLTANSKI, 2007, p. 24).

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    Assim sendo, se pensamos a realidade social somente em termos de direito, tornamo-nos insensveis a muitas injustias sociais respaldadas pela racionalidade do justo. Do mesmo modo que a justia evoca o princpio de igualdade, tambm podemos proceder de maneira equitativa adotando uma conduta injusta. Em seu apelo por uma Sociedade decente, Avisha Margalit (2007, p. 261) chama a ateno para isso, quando cita pessoas que distribuem alimentos s vtimas da fome na Etipia jogando-os de um caminho, como para cachorros, mas assegurando-se que todas sejam beneficiadas por uma partilha igualitria:

    A ideia de que uma sociedade equitativa possa colocar em prtica ms maneiras pode parecer in-significante: confundir o problema essencial da tica com o problema secundrio da etiqueta. Na verdade, essa ideia no insignificante: ela reflete o velho temor de ver a justia carecer de compaixo at tornar-se a expresso da maldade pblica.

    Boltanski aponta, no estilo de representao realista, estilo diametralmente oposto ao da fotografia de Salgado, um problema tico de mesma natureza. A descrio factual implica uma economia da representao articulada por um dispositivo do tipo sujeito-objeto. Razo pela qual esse procedimento enunciativo sempre passvel de crticas quando se trata da representao de pessoas. Ele assimtrico, no sentido de que distribui desigualmente a humanidade entre os diferentes indivduos, e particularmente vulnervel quando as pessoas descritas encontram-se em sofrimento (BOLTANSKI, 2007, p. 57). Ao descrever factualmente o estado fsico das pes-soas, tendo como principal preocupao assegurar um valor de objetividade discursiva, o enun-ciador no leva em conta o fato de exp-las ao olhar depreciativo ou humilhante do espectador. Objeto (ou, como dizemos, brinquedo nas mos) do sofrimento, o sofredor tambm objeto de uma descrio que, atravs do realismo, distribui o controle exclusivamente ao descritor (Ibid., loc. cit.).

    Os problemas colocados pela representao factual de pessoas em sofrimento social com-portam no somente uma dimenso tica, mas tambm, como tentaremos mostrar a seguir, uma dimenso poltica. Dado que, nesse modo de representao, a imagem das pessoas representadas tende a causar repugnncia ou abjeo, elas tornam-se objeto de piedade.

    Por que recorrer compaixo?Pelo fato de procurar sempre sensibilizar o espectador para o triste estado das pessoas que se

    encontram na misria, a piedade parece eticamente mais humana e socialmente mais igualitria que a compaixo. Entretanto, Martha Nussbaum (2001), ao apresentar uma discusso apro-fundada sobre a questo do papel poltico das emoes sociais, enfatiza que a piedade costuma implicar condescendncia e superioridade. Avisha Margalit (2007, p. 221) explica que isso ocorre porque a relao de piedade no simtrica. Existe um sentimento de superioridade por trs dela. Isso aconteceu com voc, mas no pode acontecer comigo. De modo que a dissimetria reside no ponto de vista privilegiado a partir do qual a pessoa que sente pena do outro se sente ao abrigo do sofrimento e da misria. Ento, se por um lado a piedade moralmente aceitvel, por outro, como mostra Margalit (2007, p. 221-222), ela politicamente, em vrios aspectos, perversa:

    Aqueles que se beneficiam da piedade tm uma boa razo para suspeitar que no so respeitados, visto que a piedade ativada pela viso da impotncia e da vulnerabilidade. Se as pessoas so senho-ras de si mesmas, no temos pena delas, mesmo quando caem na misria. A piedade concedida s

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    pessoas que perderam importantes motivos para ter autorrespeito e que esto a ponto de perder os meios de defender sua dignidade pessoal.

    A noo do desprezo que acompanha a piedade pode, sem dvida, ser aplicada s represen-taes miditicas das pessoas afetadas pelo sofrimento social, quando as descrevem de maneira humilhante. desse ponto de vista que Eduardo Galeano (1990) salienta que a abordagem fotogrfica de Salgado contrasta com a fotografia de reportagem que representa o terceiro--mundo o Outro mundo como se fosse somente digno de desprezo ou pena. Na fotografia de Salgado, ao contrrio, a condio de pobreza no motivo para que a pessoa representada seja considerada aniquilada pela impotncia. As pessoas por ele fotografadas olham diretamente para o espectador. Desse modo, a enunciao fotogrfica de Salgado invoca a compaixo, que no comporta o inconveniente de fundar-se sobre uma relao assimtrica.

    Ao destacar o potencial da compaixo para estabelecer uma relao simtrica, Martha Nus-sbaum (2001, p. 306-321) coloca em evidncia trs fatores. Primeiramente, diz que a compaixo pelo outro sugere implicitamente que seu sofrimento profundo. Em segundo lugar, afirma que a compaixo, ao contrrio da piedade, no v a pessoa afetada pelo sofrimento como culpada por sua situao. Em terceiro lugar, afiana que a compaixo assegura que a situao degradante do outro seja vivida como uma violao da expanso da nossa humanidade como um todo. Portanto, finaliza, a boa ao revela-se como algo crucial para os objetivos e aspiraes da humanidade em geral.

    Como vemos, socialmente falando, a compaixo mais tica e mais justa do que a piedade, porm suspeita de ser politicamente inoperante. Para Hannah Arendt (1985), isso se deve ao fato de ela se dirigir ao singular e de sua capacidade de generalizao ser precria. Martha Nuss-baum tambm v nessa caracterstica da compaixo um tipo de debilidade poltica. Contudo, em certos casos, como o da abordagem fotogrfica de Salgado, observamos que possvel constituir um indivduo singular como representante de um agregado, j que a viso da pessoa representa-da evoca imediatamente seu estatuto coletivo, ecoando a generalidade. Alm disso, Nussbaum sugere a adequao da poltica da compaixo, ao descrev-la como possuidora de uma estrutura cognitiva e relacionada estreitamente razo. Com efeito, a compaixo nos coloca na perspec-tiva daquele que sofre e nos faz admitir que o que aconteceu com ele pode acontecer conosco tambm. Assim, bastante provvel que sejamos levados a indagar por que a pessoa encontra-se em tal situao e por que o mesmo ainda no aconteceu conosco. Nossas interpelaes derivam, com efeito, de uma reflexo, que, por sua vez, ativada pela razo.

    Todavia, a reticncia compartilhada por Arendt e Nussbaum a respeito dos limites da com-paixo tem sua razo de ser. Para Salgado (2001), a compaixo est longe de ser suficiente: Se as pessoas que olham minhas fotos sentem somente compaixo, acreditarei ter fracassado com-pletamente. Mas, se a compaixo motiva nossa ao generosa em favor daqueles que sofrem, por que no nos contentamos com esse sentimento? O problema encontra-se, sem dvida, na qualidade dessa ao. Mesmo que a compaixo no se fundamente em uma relao assimtrica (como o caso da piedade), quando agimos motivados por ela, a ideia predominante que so-mos orientados a agir em benefcio exclusivo daquele que se encontra afetado pelo sofrimento. Por conseguinte, ela se associa a uma ao caritativa. Salgado visa que os efeitos produzidos por suas imagens motivem o espectador a engajar-se em aes solidrias. Como a frmula sugestiva de Eduardo Galeano indica: Caridade, vertical, humilhao. Solidariedade, horizontal, ajuda.

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    A esttica que inspira solidariedadeA solidariedade um sentimento que evoca interdependncia entre as pessoas. Assim,

    quando agimos para combater as misrias do mundo inspirados por esse sentimento, temos a impresso de que, de certo modo, agimos tambm em nosso prprio benefcio. De maneira que a solidariedade no somente coloca os homens em p de igualdade, mas tambm, como aponta Hannah Arendt (1985, p. 126-127), leva sua unio:

    por piedade que as pessoas so atradas pelos fracos, mas por solidariedade que formam, intencionalmente, uma comunidade com os oprimidos, com os explorados. O interesse comum, ento, seria a grandeza do homem, ou a honra da raa humana, ou ainda, a dignidade do homem. Com efeito, por conter uma parcela de razo, a solidarie-dade , assim, capaz de conceber a generalizao, ou de compreender conceitualmente a massa. No somente a massa formada por uma classe ou uma nao, mas, caso neces-srio, pela humanidade inteira.

    Notemos que, ao contrrio do que ocorre com a piedade, essa generalizao no faz refern-cia a um vocs, mas situa no campo do ns pessoas que anteriormente considervamos eles. Tal o argumento central da anlise desenvolvida por Richard Rorty (1993) sobre a dimenso poltica da solidariedade. Essa extenso de sentido do ns no uma questo de reconhecimento de algo previamente compartilhado, mas, sim, de identificao imaginativa. A solidariedade algo que fabricamos, e no algo que surge por acaso. Ela um produto da histria, e no um fato anti-histrico (RORTY, 1993, p. 267).

    Assim sendo, a percepo do outro como um dos nossos solicita algo mais prximo e mais local por exemplo: ela , como eu, me de crianas pequenas, ou: ele , como eu, um trabalhador explorado do que o simples pertencimento comum espcie humana. Ento, fa-lando de forma esttica, preciso construir esteretipos capazes de evocar qualidades que apro-ximam as pessoas de uma identificao social. No somos solidrios com o outro simplesmente porque ele um ser humano, mas porque temos a capacidade de reconhecer o sofrimento e a humilhao como nossos, e de, a partir disso, nos identificarmos com ele.

    A poltica da solidariedade proposta pela enunciao fotogrfica de Salgado inspira-se, so-bretudo, no princpio de identificao, tal como concebido pela utopia liberal de Richard Rorty. Enfatizando os aspectos que valorizam as pessoas representadas, Salgado prope uma formali-zao esttica em que os danos produzidos pelo sofrimento no impedem que os espectadores as identifiquem como pertencentes a uma classe de seres humanos equivalente deles. Alm disso, na fotografia humanista de Salgado, o homem no captado desprovido de todas as quali-dades que caracterizam o ser humano como um ser social. Encontramos um bom exemplo disso em uma foto tirada no campo de refugiados ruands de Benako. Em segundo plano, veem-se pessoas inseridas em uma condio de vida extremamente precria em termos de moradia, ves-timenta etc. Em primeiro plano, diante de uma mquina de costura e reparando roupas, destaca--se um indivduo que, embora descalo, esteja, digamos, naquele contexto, bem apresentvel, vestindo at um palet e um bon elegante. Essa imagem leva o espectador a ver que, apesar de toda dificuldade de sobrevivncia e da precariedade dos meios disponveis, o rapaz que aqui aparece como um representante de seu grupo social se ocupa de uma atividade que comporta um valor social. Esse tipo de metfora visual caracterstico da narrativa fotogrfica de Salgado,

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    que, desse modo, faz com que o espectador, quer queira quer no, reconhea nas pessoas repre-sentadas traos que as caracterizam como um dos nossos.

    Segundo os termos de Richard Rorty, trata-se de um convite criao de um thos cada vez mais vasto e diversificado. David Levi Strauss (2003, p. 10) enfatiza que a estetizao um dos meios de fazer com que pessoas diferentes reconheam-se umas s outras. Isso certamente incomoda aqueles que se esforam para salvaguardar as classificaes de excluso legitimadoras de nossas aes, que riscam pessoas afetadas pelo sofrimento social da lista de nossas correspon-sabilidades polticas.

    Apesar de os indivduos fotografados por Salgado se encontrarem em condio precria de vida ou, com frequncia, em situao muito abaixo do admissvel, suas imagens no fazem deles refns de seu sofrimento. Em xodos, por exemplo, Salgado (2000, p. 8) escreve que cada fotografia capta um momento trgico, dramtico ou heroico de uma existncia individual. No obstante, Jean-Franois Chevrier (2000) reprova-o por ele tornar as vtimas semelhantes a heris, acorrentando-as a essas imagens. A insinuao aqui no poderia ser mais clara. No o sofrimen-to que se encontra em primeiro plano, como estamos acostumados a ver na forma clssica de retratar esse tipo de situao. As imagens que predominam no circuito miditico apresentam uma composio esttica que coloca em evidncia somente aspectos fsicos degradantes ou par-ticularidades depreciativas de seus objetos pessoais ou vestimentas. Pautam-se pela ideia de que quanto pior melhor. Ou seja, trata-se de uma formalizao esttica que qualifica as pessoas representadas unicamente pelo sofrimento que as afeta.

    Uma vez compreendido que o propsito de Salgado o de produzir imagens cujos efeitos vo alm da compaixo, para assim suscitar o sentimento de solidariedade do espectador, a es-tratgia enunciativa por ele adotada j no nos parece surpreendente. Pois a solidariedade, como explica Hannah Arendt, por estar vinculada s ideias grandeza, honra e dignidade , pode ser ativada pelo sofrimento, mas no guiada por ele. No plano poltico, a lgica da so-lidariedade no sectria, ela engloba os fortes e os ricos da mesma forma que os fracos e os pobres (ARENDT, 1985, p. 127). por isso que o objeto principal de discusso da fotografia de Salgado no o sofrimento que distingue as pessoas , mas a resistncia que as une. A resistncia da massa que no renuncia, comenta Rgis Debray (1999).

    A eficcia poltica da abordagem enunciativa fundamentada no princpio de generalizao tambm colocada em questo. Assim, a crtica de Susan Sontag (2003, p. 86-87) salienta que, em xodos,

    [...] as fotografias de Salgado renem, sob o ttulo de migraes, uma variedade de motivos e de tipos de desgraa. Ampliar o espectro do sofrimento, globalizando-o, pode induzir, no pblico, o senti-mento de que ele deve envolver-se mais com tais causas. Porm isso tambm incita os espectadores a pensar que os sofrimentos e as desgraas so muito vastos, muito irrevogveis, muito picos para que uma interveno poltica local possa transformar a situao de maneira decisiva.

    Com efeito, notamos que, ampliando o espectro do sofrimento, Salgado chama a ateno para o fato de que os problemas se avolumam, de modo que, mais cedo ou mais tarde, acabam por nos atingir direta ou indiretamente. Da o sentimento de que devemos nos envolver mais com as situaes apresentadas. claro que o espectador no to inocente para acreditar que uma interveno poltica local possa resolver os problemas globais do mundo, mas tambm no

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    cego a ponto de no ver que um conjunto de intervenes locais pode pesar de maneira decisiva no seu combate.

    Sem sombra de dvida, a misso de incitar o espectador distanciado do sofrimento a jun-tar-se ao combate contra as injustias provocadas pela misria do mundo no algo simples. Parece-nos, entretanto, que Luc Boltanski tem razo em acreditar que a representao miditica do sofrimento de seres humanos distantes pode ser um instrumento capaz de produzir efeitos que levem o espectador a interessar-se por causas humanas e a engajar-se nelas. Sabemos que acontece de os seres humanos unirem-se em grupos e constiturem interesses especficos em favor de seres de outra espcie, da qual nunca se aproximaram baleias ou ursos, por exemplo. Ento, seria impossvel suscitar a solidariedade inspiradora e guia da ao, principalmente da ao poltica? Para tanto, seria necessrio, como pondera Boltanski (2007, p. 342-343), que as mdias fizessem uma representao desses sofredores no somente na passividade do sofrimento, mas tambm em aes que eles executam para enfrentar e superar essa condio.

    Nesse sentido, podemos dizer que, ao focalizar frequentemente pessoas em ao, at mes-mo em ensaios fotogrficos como Sahel e xodos (que mostram a condio de vida de extrema precariedade dos campos de refugiados), Salgado preserva em suas enunciaes visuais o papel de atores sociais das pessoas fotografadas.

    ConclusoConsiderando os elementos apresentados, seria muito simplista designar a poltica da est-

    tica fotogrfica de Salgado com um nico qualificativo. Seria poltica da justia, poltica da sen-sibilizao, poltica da solidariedade, poltica do reconhecimento social? Podemos perceber que sua abordagem enunciativa constitui, de fato, uma reivindicao de tudo isso. E todas essas rei-vindicaes fazem, sem dvida, oposio s representaes miditicas que induzem o espectador a ver as pessoas afetadas pelo sofrimento social com um olhar orientado pela falta de compaixo, pelo esquecimento de reconhecimento e pela tentao do recuo individualista.

    A compaixo, como vimos, est, do ponto de vista poltico, longe de ser suficiente. Porm sua ausncia total e absoluta pode revelar-se problemtica, pois ela o sinal mais autntico da sensibilidade fundadora de nossa humanidade. Nesse sentido, podemos dizer que a compaixo, contanto que no seja pervertida em piedade, mas convertida em solidariedade, um escudo eficaz contra nossa indiferena pela misria do mundo. Todavia, neste mundo onde estamos cada vez mais acostumados a ver impassveis a crueldade e o sofrimento, no faltam defensores da crtica que Jean-Franois Chevrier (2000) dirige a Salgado: a retrica da compaixo por vezes um pouco pesada. No entanto, essa crtica pode ser facilmente rebatida com o comentrio de David Campbell (2003, p. 89), segundo o qual a ideia da lassitude da compaixo um mito bastante conveniente para aqueles que detm o poder poltico.

    A reivindicao de reconhecimento social feita pela fotografia de Salgado exprime-se de maneira evidente. Ao observarmos qualquer uma das sries de imagens de seus projetos foto-grficos, concordamos facilmente com a constatao de David Levi Strauss de que a politizao da fotografia de Salgado passa pela compaixo, mas no para a. Ela vai em direo do reconhe-cimento social. Para comear, reconhece, s pessoas representadas e sua dignidade, o direito ao respeito. E esse reconhecimento no somente possvel, mas, em certo sentido, torna-se obri-gatrio, pois Salgado no retrata a condio de pobreza de maneira humilhante. No humilhar

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    as pessoas , conforme mostra Avisha Margalit, a primeira condio para a edificao de uma sociedade decente, e somente uma sociedade decente em esprito pode constituir uma sociedade igua-litria no verdadeiro sentido poltico do termo.

    Colocando em prtica o conceito amplo de justia social, Salgado prope uma poltica est-tica que restitui o estatuto de Homem s pessoas frequentemente tratadas como sub-homens. Aos espectadores no resta alternativa seno detectar as semelhanas que os aproxima delas. assim que sua fotografia ajuda a utilizar de forma correta o slogan temos obrigaes com o ser huma-no como tal que consiste em tentar sem cessar ampliar o mximo possvel nosso senso do ns (RORTY, 1993, p. 268). Na fotografia de Salgado, assinala Rgis Debray (1999), o eles (os perigosos, os intrusos, os clandestinos, as pessoas a serem controladas e rejeitadas) tornam-se um ns (quando ser nossa vez?). E esse exerccio de reconhecimento do outro um excelen-te remdio contra o culto do individualismo, to em voga nos dias atuais. Constatamos, dessa maneira, que fotografia de Salgado cabe, no mnimo, o mrito de opor-se aos efeitos perversos produzidos pela poltica da piedade adotada pelas formas clssicas e predominantes no circuito miditico ao representar as pessoas afetadas pela misria social.

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    Notas1. So nossas todas as tradues de citaes deste artigo.

    2. Postulando a existncia de uma corresponsabilidade em vez de uma culpa coletiva, Jean-Franois Giovannini as-sinala que a ao e at mesmo a inao de cada indivduo singular contribuem para determinar o destino da humanidade no seu todo. Mesmo que um indivduo no possa ser culpabilizado pelos atos que no cometeu, podemos sempre responsabiliz-lo por no ter agido quando tinha conscincia dos danos que sua inao causaria ao outro. Assim, Giovannini (1998, p. 182) enfatiza que, embora no matemos as pessoas que a cada ano morrem aos milhares devido falta de acesso aos tratamentos e alimentao, elas morrem por causa de nossa indiferena.

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    Recebido para publicao 30 de Setembro de 2012

    Aprovado para publicao em 10 de Maro de 2013