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Anais do IV Fórum de Ciências da FCT Presidente Prudente – SP, 15 a 17 de maio de 2003 p. 000-000 L. A. FURINI; E. M. GÓES A SEGREGAÇÃO FORÇADA DA POPULAÇÃO DE RUA EM PRESIDENTE PRUDENTE (SP) LUCIANO ANTONIO FURINI EDA MARIA GÓES UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE SISTEMA DE INFORMAÇÃO E MAPEAMENTO DA EXCLUSÃO SOCIAL PARA POLÍTICAS PÚBLICAS (SIMESPP) [email protected] [email protected] RESUMO – Diversas formas de inserção precária podem ser constatadas na cidade de Presidente Prudente (SP), a população de rua – pessoas que usam a rua como local de moradia – é uma delas. Propomos apresentar algumas particularidades da organização socioespacial própria a este segmento da população e parte dos processos que acabam por gerá-lo. Esta apresentação é parte da pesquisa relativa à dissertação de mestrado que estamos elaborando. Ater-se a uma parcela bastante vulnerável da população desta cidade traz resultados se a mesma for articulada com outros trabalhos, daí nos motivarmos a relacioná-la com outros trabalhos relativos a população de rua em âmbito mundial e à exclusão social abordada pelo nosso grupo de pesquisa. Forçados a segregar-se, aqueles que estão moradores de rua acabam sendo afastados de uma relação social composta de trabalho formal, residência fixa e familiares, enfim, vêem fragilizar o laço social que possuem passando a relacionar-se por meio de uma linha tênue com a sociedade institucionalizada. Sem um lugar considerado legal passam a ser vistos na ilegalidade e a ser estigmatizados devido as carências a que foram submetidos. Esse contexto acaba por criar um campo representacional no qual a população de rua é ligada ao perigo. A Ilegalidade e perigo que permeiam o universo do seu cotidiano os tornam passíveis de expulsão, embora encontre-se algumas manifestações de solidariedade. A existência de população de rua na cidade aponta duas características contraditórias: testemunham contra qualquer pretensa apresentação de uma sociedade minimamente solidária; sua permanência atesta que é suportada ao contrário de cidades que os expulsam, embora este suportar possa se dar apenas devido a pressões de grupos humanitários. ABSTRACT – It’s possible to verify saverad forms of precarions insertion in Presidente Prudente city (SP), the homeless – people who use the street as their residence – is on of them. We propose to show some characteristics of social and spatial organization that belong to this population’s segment and part of the processes that engendr it. This presentation is port of the research realing to the master’s dissertation we are preparing. To rely on a very vulnerable part of this city’s population brings rersults if this population is articulated with other works, what motivated us to relate it with other world wide researchs about homeless and with social exclusion boarded by our research group. Forced to be segregated, the ones who live temporaruly on the streets are finally removed fron the social relationship composed by formal work, stable residence and realatives, at last, theyperceive that the social bond becomes weaker and they become linked by a really fragile line with the institutional society. Without a place considered legal they start to be seen in the illegality and to be marked due to the needs they were submitted. This context criates a presentational field where the homeless is linked to danger. The illegality and the danger that fill their quotidian become them suscetible of expulsion, although they find some manifestations of solidarity. The existence of the homeless inside the city shows two contradictory characteristics: they testify against any presumed presentation of ci minimally solidary society, its permanence attests that it is suported here instead of some other cities that expulse them, even though this suporting may exist only because of the pressure of humanitarian groups. --

Segregação Forçada Da População

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A segregação forçada da população de rua em Presidente Prudente (SP)

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L. A. FURINI; E. M. GÓES

A SEGREGAÇÃO FORÇADA DA POPULAÇÃO DE RUA EM PRESIDENTE PRUDENTE (SP)

LUCIANO ANTONIO FURINI

EDA MARIA GÓES

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA

CAMPUS DE PRESIDENTE PRUDENTE SISTEMA DE INFORMAÇÃO E MAPEAMENTO DA EXCLUSÃO

SOCIAL PARA POLÍTICAS PÚBLICAS (SIMESPP) [email protected] [email protected]

RESUMO – Diversas formas de inserção precária podem ser constatadas na cidade de Presidente Prudente (SP), a população de rua – pessoas que usam a rua como local de moradia – é uma delas. Propomos apresentar algumas particularidades da organização socioespacial própria a este segmento da população e parte dos processos que acabam por gerá-lo. Esta apresentação é parte da pesquisa relativa à dissertação de mestrado que estamos elaborando. Ater-se a uma parcela bastante vulnerável da população desta cidade traz resultados se a mesma for articulada com outros trabalhos, daí nos motivarmos a relacioná-la com outros trabalhos relativos a população de rua em âmbito mundial e à exclusão social abordada pelo nosso grupo de pesquisa. Forçados a segregar-se, aqueles que estão moradores de rua acabam sendo afastados de uma relação social composta de trabalho formal, residência fixa e familiares, enfim, vêem fragilizar o laço social que possuem passando a relacionar-se por meio de uma linha tênue com a sociedade institucionalizada. Sem um lugar considerado legal passam a ser vistos na ilegalidade e a ser estigmatizados devido as carências a que foram submetidos. Esse contexto acaba por criar um campo representacional no qual a população de rua é ligada ao perigo. A Ilegalidade e perigo que permeiam o universo do seu cotidiano os tornam passíveis de expulsão, embora encontre-se algumas manifestações de solidariedade. A existência de população de rua na cidade aponta duas características contraditórias: testemunham contra qualquer pretensa apresentação de uma sociedade minimamente solidária; sua permanência atesta que é suportada ao contrário de cidades que os expulsam, embora este suportar possa se dar apenas devido a pressões de grupos humanitários. ABSTRACT – It’s possible to verify saverad forms of precarions insertion in Presidente Prudente city (SP), the homeless – people who use the street as their residence – is on of them. We propose to show some characteristics of social and spatial organization that belong to this population’s segment and part of the processes that engendr it. This presentation is port of the research realing to the master’s dissertation we are preparing. To rely on a very vulnerable part of this city’s population brings rersults if this population is articulated with other works, what motivated us to relate it with other world wide researchs about homeless and with social exclusion boarded by our research group. Forced to be segregated, the ones who live temporaruly on the streets are finally removed fron the social relationship composed by formal work, stable residence and realatives, at last, theyperceive that the social bond becomes weaker and they become linked by a really fragile line with the institutional society. Without a place considered legal they start to be seen in the illegality and to be marked due to the needs they were submitted. This context criates a presentational field where the homeless is linked to danger. The illegality and the danger that fill their quotidian become them suscetible of expulsion, although they find some manifestations of solidarity. The existence of the homeless inside the city shows two contradictory characteristics: they testify against any presumed presentation of ci minimally solidary society, its permanence attests that it is suported here instead of some other cities that expulse them, even though this suporting may exist only because of the pressure of humanitarian groups. --

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L. A. FURINI; E. M. GÓES

1 INTRODUÇÃO

Em meio a tantos projetos e propostas de desenvolvimento social, os quais sabemos carregam pesada carga ideológica, diversos países, inclusive os mais enriquecidos economicamente, apresentam índices de vulnerabilidade socioespacial.

Vários processos contribuem para o surgimento desta vulnerabilidade e o conjunto deles forma os processos sociais excludentes, os quais são alimentados com intensidade diferenciada de acordo com o modo de produção ou regimes políticos adotados ou impostos. Outros fatores também influenciam para gerar ou perpetuar esses processos, porém em sua grande maioria relacionam-se com a acumulação das riquezas, o que gera desigualdades específicas a cada tipo de política econômica adotada.

Os processos sociais excludentes deixam suas marcas em Presidente Prudente (SP). Embora existam particularidades locais, as matrizes geradoras desses processos parecem ser semelhantes as de outras cidades médias e metrópoles, inclusive de outros países.

Este trabalho apresenta elementos relativos a organização espacial na cidade de Presidente Prudente (SP) no que se refere à população de rua – pessoas que usam as ruas como local de moradia.

A população de rua está segregada em certa área da cidade na qual consegue sobreviver minimamente. Nossa pesquisa permitiu-nos compreender alguns processos que forçam este segmento da população a se estabelecer em tais áreas específicas da cidade, o que caracteriza uma contradição locacional opondo na mesma área a existência de edificações de alto valor financeiro e simbólico à ocupação da população de rua, desvalorizada financeira e simbolicamente.

Considerando que em sua análise a segregação não pode ser vista como uma doença social, pois existem diversos tipos de segregação, inclusive a que culmina com os condomínios fechados, Lefebvre (1991, p. 94) propõe três aspectos para se focalizar a segregação: o espontâneo, o voluntário e o programado. Pensamos que em parte a população de rua pode ser incluída no aspecto programado ou então como um resultado deste.

Oposta a auto-segregação, a segregação da população de rua se apoia na centralidade das atividades comerciais e de serviços da cidade, para ali se estabelecer após ter sido desenraizada de seus laços sociais. Isso se deve, principalmente, devido a possibilidade de acesso a estratégias de sobrevivência.

Dessa forma, alguns interstícios da cidade permitem a sobrevida da população de rua. Não são auto-segregações como os condomínios fechados, nem segregações forçadas como os assentamentos urbanos ou áreas de habitações precárias, mas sim pontos específicos, porém fugazes, nas áreas de maior densidade técnica da cidade.

2 OS PONTOS DE PERNOITE DA POPULAÇÃO DE RUA

Público e privado se misturam no cotidiano do

morar da população de rua. Ruas e avenidas são ocupadas literalmente para morar.

Tipificamos os abrigos em relação ao seu uso e sua forma: nas calçadas, onde há um ponto de ônibus, uma árvore, uma marquise ou somente a calçada; nas praças, onde há jardins, coretos, escadas ou árvores; nos viadutos ou pontes; nos terrenos baldios, nas construções abandonadas e em equipamentos públicos diversos. Entidades de recolhimento, hospitais de saúde mental, casas de recuperação e albergues também são abrigos possíveis. Estes tornam-se locais de permanência e moradia intermitentes, pois são ocupados temporariamente. Contudo, existem locais já bastante vinculados a função de permanência ou moradia da população de rua na cidade.

Em Presidente Prudente, podemos estabelecer um esquema de localização da população de rua que considera como eixo de ocupação a área de adensamento das atividades comerciais e de serviços.

É relevante notarmos que a área na qual a população de rua mais permanece nesta cidade é a considerada de maior inclusão – eixo centro em direção à zona sul – que possui intenso tráfego de veículos e menor ocorrência de áreas residenciais. Estar situado onde os recursos são fartos, onde muitas pessoas possam vê-los e onde não existam tantas residências, cujos donos possam chamar a polícia, parecem ser características importantes para comparações com outras cidades, quando se ampliar o campo de análise.

Como já enfatizamos, uma característica geral para o estabelecimento de pontos de pernoite é a proximidade com locais que possam dinamizar as estratégias de sobrevivência. Mas outros aspectos também são relevantes para se escolher um local específico, como os fatores: proteção contra intempéries, proteção contra agressores, luminosidade, conflitos possíveis e disponibilidade de recursos.

As marquises – saliência existente na fachada dos edifícios para proteção contra intempéries – se constituem na forma mais procurada para o pernoite. Cerca de doze pontos de pernoite com marquises são conhecidos, embora alguns tenham sido abandonados como proteção.

Um meio de se protegerem contra agressores, além da formação de grupos, é encontrar locais que dão visibilidade – para que motoristas e pedestre possam vê-los. Ser visto dormindo, embora implique em perder a intimidade, acaba por estabelecer certo padrão de proteção e por definir a imposição de uma hierarquia de prioridades.

Dessa maneira é que a luminosidade deve ser tal que permita o sono – baixa intensidade – mas que também permita que sejam vistos, em caso de ataque noturno. Quando realizamos esta pesquisa (2002), o grupo que se localizava no ponto de pernoite do Posto Rio 400 é o que dormia em local com menor luminosidade e menor fluxo de pedestres e veículos. Neste caso, a grande quantidade de pessoas facilitava a proteção mútua.

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Evitar conflitos possíveis também influencia a escolha do ponto. Em geral a presença da população de rua gera muitas reclamações junto à Prefeitura. A disponibilidade de recursos também acaba influenciando. Lugares para sentar-se, fazer necessidades fisiológica e adquirir alimentos constituem pólos de atração. Arranjar um ponto de pernoite implica, muitas vezes, em gerar conflitos que podem chegar ao extremo da expulsão por meio da ação policial ou da apartação material por meio da construção de grades.

Em Presidente Prudente (SP), encontramos cinco pontos de pernoite que foram inviabilizados por meio da colocação de grades. As grades comportam duas materializações: a do poder e a do não eu. Estas materializações geram, por sua vez, o não lugar. O Ginásio Municipal de Esportes da cidade é um exemplo dessa materialização. Os vizinhos tanto reclamaram que ali foram instaladas grades por meio da Prefeitura, que despendeu recursos públicos em favor do restabelecimento da ordem, com a expulsão dos desordeiros. Ainda que não surpreenda, tal atitude revela-se imediatista e mesmo inconseqüente, na medida em que insiste em tratar a questão social como caso de polícia, nada fazendo, portanto, para solucioná-la. Neste caso, trata-se, literalmente, de deslocar o problema, dentro do mesmo espaço urbano. Até quando?

3 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

Nos deslocamentos populacionais que acabam constituindo canais de circulação da população de rua em meio as áreas que ocupam nas cidades, observamos que as pessoas que compõem a população de rua em Presidente Prudente (SP) são provenientes de cidades de outros Estados; de cidades do Estado de São Paulo, sendo que muitas da região de Presidente Prudente; e algumas pessoas da própria cidade. O fluxo mostra, então, que o desenraizamento socioespacial lança estas pessoas para uma área da cidade que acreditamos configurar-se num lugar padrão de inserção precária para a população de rua, o qual engloba, entre outras, as áreas que são compostas por rodoviária, postos de combustíveis rodoviários, locais de prestação de ação assistencial para migrantes e áreas de adensamento das atividades comerciais e de serviços.

Os bairros residenciais não são, em geral, acolhedores da população de rua. O grau de estranheza aumenta quando a pessoa, que se encontra neste patamar, adentra universos privados, os quais tendem a ser mais expulsivos, daí estarem circunstancialmente também em áreas com menor grau de uso residencial.

A população de rua simboliza para nós uma crítica à organização socioespacial característica do modo de produção capitalista. Neste sentido os aspectos da relação entre esfera pública, esfera privada e sociedade civil vão ser reveladores da dinâmica expulsiva que atinge pessoas lançando-as para o morar nas ruas.

Os espaços públicos são mais apropriados pela população de rua do que os espaços privados. Contudo não é somente este segmento da população que o faz.

Uma série de agentes privados os ocupam também: restaurantes, lojas, camelôs, oficinas, entre outros. Muitas vezes estas ocupações são regulamentadas, como nos casos dos camelôs, bancas de revistas ou barracas de lanche, pois possuem o componente mercadoria, o qual fornece um meio de sobrevivência, para aquele que ali está e gera impostos para o órgão regulamentador. A função social da ocupação é dessa maneira valorizada. Estas ocupações também geram atritos e a regulamentação ocorre após embates com os comerciantes lojista.

Chegamos assim ao questionamento relativo à apropriação das áreas públicas. Como lutar pelo uso adequado dos espaços públicos sem antes resolver a questão da prioridade de sobrevivência de pessoas em situações bastante limitadas? As condições precárias das pessoas que foram expulsas de um suporte social propício a uma vida amparada por laços sociais fortes, demonstram que existem muitas lutas pontuais que não consideram o conjunto social e sim aspirações particulares.

Percebemos que em hipótese alguma podemos equacionar a questão do uso projetado sem antes resolver a questão do uso forçado do espaço público.

No contexto da vida socioespacial observamos que na cidade, como decorrência do processo de urbanização, a localização possui uma escala de valores que tem, nos equipamentos urbanos, infra-estruturas e proximidade com o centro comercial, a base de sua organização.

Residir fora ou longe dos equipamentos urbanos ou do centro comercial pode ser bastante difícil para pessoas com limitações financeiras ou físicas. O simples fato de precisar utilizar-se do transporte coletivo pode tornar-se um grande obstáculo, favorecendo – no caso da população de rua – a busca por uma localização que, embora não seja adequada ao morar, possibilite viver com menor dificuldade.

A população de rua, caracteristicamente, possui baixa mobilidade intraurbana, exceto no que se refere a área de trabalho e aos fluxos que estabelece ali. Mas parte dessa população possui grande mobilidade interurbana. No intraurbano, a população de rua une local de trabalho, local de moradia e local de lazer num só, sendo que é o local de trabalho em sentido amplo – que se torna o eixo da territorialização. Aqui o movimento é lento, o tempo é o do andar e o do caminhar. Se considerarmos, como mostra Santos (1994, p. 84) que na cidade: “a força é dos lentos” podemos contribuir para destacar e valorizar a capacidade criativa da população de rua. No âmbito interurbano, a população de rua se movimenta em um tempo rápido, o tempo da expulsão. Dar passagens e não oferecer um local em que a pessoa, em situação de assistência, possa permanecer por longo período – em Presidente Prudente o prazo de permanência no Centro de Referência é de três dias – são ações que estabelecem o ritmo do movimento interurbano da população passível, ou já tida, como de rua.

Os pesquisadores norte americanos Snow e Anderson apresentam os argumentos de um colaborador de suas pesquisas quando este refere-se aos motivos da grande mobilidade de pessoas, da população de rua, em

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Austin (Texas): “Você quer saber porque a gente está sempre em movimento? Vou dizer por quê. O Sally não deixa você ficar mais de três dias de graça na maioria dos lugares” (SNOW; ANDERSON, 1998, p. 286). O Sally era um dos abrigos identificados quando da pesquisa naquela cidade, e apesar da diferença de contexto, possui o mesmo prazo de permanência que o Centro de Referência em Presidente Prudente (SP).

Nesta cidade, uma pesquisa relativa ao Centro de Referência ao Migrante e População de Rua (antiga Casa de Passagem) revelou a intensidade do fluxo de pessoas: “Pelo que nos mostram os dados, o que encontramos foi um movimento de ir e vir constante, uma migração permanente de pessoas livres sem ‘estação final’” (RANGEL, 1996, p. 92, grifo nosso). A autora aponta que os fluxos são constantes e nós podemos perceber como estas pessoas estão presas neste processo, que lembra uma cama elástica, ou seja, ao tocarem no chão da cidade os mecanismos de expulsão os impulsionam para outra cidade. A itinerância é fabricada, o movimento é criado e estimulado, o provisório e o esporádico são transformados em padrão de atendimento constante. A territorialização aqui, ocorre no próprio processo de territorialização. A busca de um lugar para viver: a procura de um lugar, passa a ser o padrão, o modo de vida e a busca se torna ela mesma o encontro. Contudo, em determinado momento, esta itinerância é interrompida, tantos nãos e tantas recusas acabam sendo assimilados e o permanecer entra em atrito com o movimentar-se constantemente. Contraditoriamente as duas possibilidades possuem fluxos bem distintos e o morar nas ruas configura, em parte, uma estabilidade territorial. Existem, no entanto, pessoas que misturam as duas dinâmicas e se movimentam no âmbito interurbano, caminhando ou de carona.

Como dissemos anteriormente, o trabalho é o eixo locacional principal no intraurbano para a população de rua. Já no interurbano, outros fatores podem contribuir para a fixação, o acesso aos abrigos, a comida, o tratamento governamental e policial são referências importantes nesse âmbito. Daí decorre a dificuldade de se estabelecer relações entre uma cidade bem administrada e a presença (ou ausência) de moradores de rua.

Rangel (1997) apresenta um dos motivos do incentivo à mobilidade interurbana que parte de Presidente Prudente (SP):

De acordo com o depoimento de diversos profissionais envolvidos com o atendimento, é menos oneroso criar mecanismos de dispensa de migrantes do que tentar fazer projetos de fixação desses migrantes. (RANGEL, 1997, p. 19).

4 A RUA DA POPULAÇÃO DE RUA

A rua da população de rua, caracteriza-se pelo uso e apropriação e não pela propriedade, assim, a rua ocupada por essa população torna-se uma área diferenciada na cidade com a função interina de morar. Para Carlos (1996):

[...] a cidade é produzida a partir da articulação de áreas diferenciadas com temporalidades diferenciais que se produzem, fundamentalmente, da constituição de uma forma de apropriação para uso que envolve especificidades que dizem respeito à cultura, aos hábitos, costumes, etc., que produzem singularidades espaciais que criam lugares na cidade das quais a rua aparece como elemento importante de análise. (CARLOS, 1996, p. 86).

Processos sociais excludentes produzem uma

cidade não somente diferenciada, mas também com desigualdades socioespaciais, na qual a rua revela mais que o simples circular.

Entre os vários sentidos da rua, o sentido de morar, nela adaptado pela população de rua, não só modifica sua função social como confere nova temporalidade e nova espacialidade a mesma. Essa diferenciação entra em atrito com a hierarquia social dos costumes e normas, gerando padrões de estranheza entre domiciliados e os moradores de rua.

A aproximação e identificação fricciona-se com a expulsão e o estranhamento num ranger constante. O tempo lento e o lugar hegemoneizado da população de rua tornam-se residuais por se encaixarem precariamente no tempo rápido e no lugar hegemoneizante do Mercado e do Estado.

A rua apropriada pela população de rua possui, então, função desencaixada do planejamento urbano que busca organizar e dirigir a cidade, porém se encaixa perfeitamente na explicação sobre a real função social da propriedade privada no contexto do modo de produção capitalista: gerar um acirramento da desigualdade socioespacial.

REFERÊNCIAS CARLOS, Ana Fanni A. O lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 1991. RANGEL, Maria C. Restos Humanos em Mobilidade: Casa de Passagem de Presidente Prudente e a mobilidade do (não) trabalho – 1988 – 1996. 1996. 99f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. ______. Migrantes da casa de passagem de Presidente Prudente. Travessia, Revista do Migrante, São Paulo, ano X, n. 29, p. 17-24, Set.-Dez. 1997. SANTOS, Milton. Metrópole: a força dos fracos é seu tempo lento. In: ___. Técnica, espaço, tempo. São Paulo: 1994, p. 81-86. SNOW, David A.; ANDERSON, Leon. Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua. Petrópolis: Vozes, 1998.