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1 Segurança no Trabalho, Comportamento de Risco e Sofrimento: Estudo de Caso em uma Empresa de Mineração Autoria: Martha das Graças Ebert Fontes, Adriane Vieira Resumo As doenças ocupacionais provocadas por fatores ambientais associados ao trabalho e os acidentes de trabalho têm sido alvo de estudos que buscam estabelecer a conexão entre trabalho e adoecimento. Segundo Dejours (2006), os acidentes muitas vezes são banalizados ou reduzidos às causas imperícia, imprudência ou negligência. Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa foi analisar, por meio de um estudo de caso em uma empresa de mineração, quais os tipos de sofrimentos, associados ao comportamento de risco, estavam presentes antes e após a ocorrência dos acidentes. Um breve exame dos comportamentos comumente associados à segurança revela a criação de um tipo de dicotomia (seguro-inseguro) cujas propriedades caracterizam-se pela oposição entre si: uso ou não-uso, seguir ou não seguir, adequado ou inadequado. A análise do comportamento, contudo, permite descobrir que em muitas ocasiões existem contingências contrárias à conduta segura e favorável às condutas inseguras. A aceleração desigual das forças produtivas, das ciências, das técnicas e das máquinas, aliada às novas condições de trabalho facilitaram o aparecimento de sofrimentos insuspeitos na vida dos operários. Para enfrentá-lo, os trabalhadores constroem estratégias de defesa, utilizadas como meio de controle do sofrimento visando à manutenção da saúde. Este é um trabalho teórico-empírico de cunho qualitativo. A coleta de dados se deu através de entrevistas semi-estruturadas com seis trabalhadores de uma empresa de mineração vítimas de acidentes de trabalho, com afastamento, categorizados pela empresa como tendo sido causados pelo “fator humano”. Os mesmos haviam sido treinados de acordo com a política de segurança da empresa e considerados aptos quando submetidos ao Teste Reid, uma bateria psicométrica específica utilizada para a identificação de dificuldades em habilidades de risco. No Brasil é adotado como medida preventiva de acidentes em grandes empresas. Foram entrevistados também dois gestores objetivando-se descrever suas percepções sobre as causas e conseqüências do contexto sócio-afetivo do sujeito vinculados ao acidente. Os dados foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo através da interpretação das significações expressas nas falas dos oito sujeitos. Os principais resultados obtidos confirmam a relação entre acidente de trabalho e sofrimento e permitem identificar causas desse sofrimento e suas nuances no momento e após o acidente. Constatou-se a pressão do tempo, o medo da incompetência e o conflito competência versus culpa como os sofrimentos que acometem o trabalhador no momento do acidente. A negação da dor e o medo do desemprego foram identificados como sofrimentos após o acidente. A pesquisa também revelou o uso de mecanismos de defesa para evitar esse sofrimento. Além da negação, encontrou-se a projeção e a racionalização para o enfrentamento da dor.

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Segurança no Trabalho, Comportamento de Risco e Sofrimento: Estudo de Caso em uma Empresa de Mineração

Autoria: Martha das Graças Ebert Fontes, Adriane Vieira

Resumo As doenças ocupacionais provocadas por fatores ambientais associados ao trabalho e os acidentes de trabalho têm sido alvo de estudos que buscam estabelecer a conexão entre trabalho e adoecimento. Segundo Dejours (2006), os acidentes muitas vezes são banalizados ou reduzidos às causas imperícia, imprudência ou negligência. Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa foi analisar, por meio de um estudo de caso em uma empresa de mineração, quais os tipos de sofrimentos, associados ao comportamento de risco, estavam presentes antes e após a ocorrência dos acidentes. Um breve exame dos comportamentos comumente associados à segurança revela a criação de um tipo de dicotomia (seguro-inseguro) cujas propriedades caracterizam-se pela oposição entre si: uso ou não-uso, seguir ou não seguir, adequado ou inadequado. A análise do comportamento, contudo, permite descobrir que em muitas ocasiões existem contingências contrárias à conduta segura e favorável às condutas inseguras. A aceleração desigual das forças produtivas, das ciências, das técnicas e das máquinas, aliada às novas condições de trabalho facilitaram o aparecimento de sofrimentos insuspeitos na vida dos operários. Para enfrentá-lo, os trabalhadores constroem estratégias de defesa, utilizadas como meio de controle do sofrimento visando à manutenção da saúde. Este é um trabalho teórico-empírico de cunho qualitativo. A coleta de dados se deu através de entrevistas semi-estruturadas com seis trabalhadores de uma empresa de mineração vítimas de acidentes de trabalho, com afastamento, categorizados pela empresa como tendo sido causados pelo “fator humano”. Os mesmos haviam sido treinados de acordo com a política de segurança da empresa e considerados aptos quando submetidos ao Teste Reid, uma bateria psicométrica específica utilizada para a identificação de dificuldades em habilidades de risco. No Brasil é adotado como medida preventiva de acidentes em grandes empresas. Foram entrevistados também dois gestores objetivando-se descrever suas percepções sobre as causas e conseqüências do contexto sócio-afetivo do sujeito vinculados ao acidente. Os dados foram analisados por meio da técnica de análise de conteúdo através da interpretação das significações expressas nas falas dos oito sujeitos. Os principais resultados obtidos confirmam a relação entre acidente de trabalho e sofrimento e permitem identificar causas desse sofrimento e suas nuances no momento e após o acidente. Constatou-se a pressão do tempo, o medo da incompetência e o conflito competência versus culpa como os sofrimentos que acometem o trabalhador no momento do acidente. A negação da dor e o medo do desemprego foram identificados como sofrimentos após o acidente. A pesquisa também revelou o uso de mecanismos de defesa para evitar esse sofrimento. Além da negação, encontrou-se a projeção e a racionalização para o enfrentamento da dor.

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1 Introdução

As doenças ocupacionais provocadas por fatores ambientais associados ao trabalho e os acidentes de trabalho têm sido alvo de estudos que buscam estabelecer a conexão entre trabalho e adoecimento, como os realizado Coleta (1991), Lima (1998; 2002; 2006), Codo e Jacques (2002) e Codo (2004a; 2004b; 2006). Segundo Dejours (2006), os acidentes muitas vezes são banalizados ou reduzidos às causas imperícia, imprudência ou negligência. Os acidentes caracterizados como ‘imperícia do trabalhador’ dizem respeito à falta de habilidade para exercer a função. Os caracterizados como ‘imprudência’ se referem ao descumprimento de normas de segurança, quer por desconhecimento, quer por transgressão. Os acidentes por imprudência relacionados à transgressão das normas de segurança e os acidentes em que a negligência é considerada a causa fundamental são caracterizados como comportamentais, ou denominados ‘fator humano’, nas análises de causas de acidentes feitas pelas empresas (DEJOURS, 2006).

A abordagem da segurança do trabalho a partir do raciocínio de que o trabalhador erra ao executar suas tarefas porque é indisciplinado, displicente, negligente, imperito ou, simplesmente imprudente. “[...] é tão nociva às práticas prevencionistas quanto à crença de que o trabalhador por conta e risco nunca erra, e quando erra é porque foi induzido ao erro por motivos totalmente alheios à sua condição de humano” (OLIVEIRA, 2002, p. 59). Dessa maneira, pode-se incorrer no erro de desviar a atenção do ambiente e da organização do trabalho para a figura do trabalhador, criando mais dificuldades no enfrentamento dos riscos de trabalho.

Nessa perspectiva surge a presente proposta de pesquisa que é analisar quais os tipos de sofrimentos, associados ao comportamento de risco, estavam presentes antes e após a ocorrência dos acidentes. Os dados foram coletados por meio de entrevistados com seis trabalhadores de uma empresa de mineração vítimas de acidente de trabalho e dois gestores, entre os anos 2008 e 2009. Para preservar a identidade da empresa, objeto desse estudo optou-se por denominá-la ficticiamente de Mineralis.

Na seqüência desse artigo apresenta-se o referencial teórico, abordando os temas sofrimento no trabalho e comportamento de risco. Em seguida descreve-se o caso estudado e o detalhamento da metodologia utilizada, e, por último, discorre-se sobre a análise dos dados e as considerações finais do trabalho. 2 Referencial teórico 2.1 Acidentes no trabalho e Comportamento de risco

O Ministério da Previdência Social (INSS, 2008) define acidente do trabalho como aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou perturbação funcional, permanente ou temporária, que cause a morte, a perda ou a redução da capacidade para o trabalho. Considera-se acidente do trabalho a doença profissional e a doença do trabalho. Equipara-se também ao acidente do trabalho o acidente ligado ao trabalho que, embora não tenha sido a causa única, tenha contribuído diretamente para: a ocorrência da lesão; certos acidentes sofridos pelo segurado no local e no horário de trabalho; as doenças provenientes de contaminação acidental do empregado no exercício de sua atividade e o acidente sofrido a serviço da empresa ou no trajeto entre a residência e o local de trabalho do segurado e vice-versa.

Segundo dados divulgados pelos Ministérios da Previdência Social (MPS) e do Trabalho e Emprego INSS (2008), em 2006 houve registro de cerca de 503,9 mil acidentes de trabalho. Em 2007 foram registrados 653.090 acidentes e doenças do trabalho entre os

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trabalhadores assegurados da Previdência Social, o que representa um incremento de 27,5%, em 2008 houve 747.663 acidentes de trabalho, registrando um aumento de 13,4% em relação ao número de notificações de 2007. A psicologia da segurança no trabalho, definida por Meliá (1999) como a parte da psicologia que se ocupa do componente de segurança da conduta humana é uma especialidade que vem desenvolvendo desde a década de 1970 técnicas de intervenção que permitem identificar os elementos que sustentam ou poderiam sustentar os comportamentos seguros. Ainda segundo este autor, os tipos de comportamentos destacados por profissionais da segurança podem ser divididos, mesmo que didaticamente, em seguros ou de risco. O adjetivo “seguro” é utilizado referindo-se àquilo que o trabalhador faz e que contribui para a não ocorrência de acidentes. São exemplos de comportamentos seguros: o uso de equipamentos de proteção individual – EPIs; o cumprimento de normas de segurança; e o uso adequado de ferramentas e equipamentos. Os comportamentos considerados de risco são aqueles que contribuem para que os acidentes aconteçam (atos inseguros). Alguns exemplos são: não usar EPIs; não seguir padrões de segurança; e utilizar ferramentas de maneira inadequada. Assim como o acidente de trabalho, os comportamentos relacionados com a segurança também são determinados por causas internas e externas ao indivíduo. Um breve exame dos comportamentos comumente associados à segurança revela a criação de um tipo de dicotomia (seguro-inseguro) cujas propriedades caracterizam-se pela oposição entre si: uso ou não-uso, seguir ou não seguir, adequado ou inadequado. A análise do comportamento permite descobrir que, em muitas ocasiões, existem contingências contrárias à conduta segura e favorável às condutas inseguras. 2.2 Sofrimento no trabalho Segundo Dejours, Abdoucheli e Jayte (1994, p. 127), é “necessário considerar a ‘normalidade’ no trabalho como um enigma: como fazem os trabalhadores para resistir às pressões psíquicas do trabalho e para conjurar a descompensação ou a loucura?” Sob esse foco, o autor redefine sua linha de pesquisa como psicopatologia do trabalho:

A psicopatologia do trabalho tem como objeto de estudo o sofrimento no trabalho. Sofrimento compatível com a normalidade e com a salvaguarda do equilíbrio psíquico, mas que implica toda uma série de procedimentos de regulação. O sofrimento será concebido como a vivência subjetiva intermediária entre doença mental descompensada e o conforto (ou bem-estar) psíquico (DEJOURS; ABDOUCHELI; JAYTE, 1994, p.127).

Após 1968, a aceleração desigual das forças produtivas, das ciências, das técnicas e das máquinas, aliada às novas condições de trabalho facilitaram o aparecimento de sofrimentos insuspeitos na vida dos operários (DEJOURS, 2000). Entre eles incluem-se: o sofrimento singular (dimensão diacrônica), herdado da história psíquica de cada indivíduo; o sofrimento atual (dimensão sincrônica), observado quando há o reencontro do sujeito com o trabalho; o sofrimento criativo, verificado quando o sujeito produz soluções favoráveis à sua vida, especialmente à sua saúde; e o sofrimento patogênico, oposto ao sofrimento criativo, o qual ocorre quando o indivíduo produz soluções desfavoráveis à sua vida, relacionadas à sua saúde. O sofrimento vivenciado pelos trabalhadores em função da organização do trabalho, assinalada pela divisão do trabalho, pelos conteúdos das tarefas a serem desenvolvidas, pelo sistema hierárquico, pelas relações de poder e comando, pelos objetivos e metas da organização, além de outros aspectos, podem ter repercussões sobre a saúde dos trabalhadores (DEJOURS, 2000). A prática tem evidenciado que a doença física é admitida, mas não o sofrimento mental e a fadiga, razão pela qual o sofrimento só é percebido quando chega ao estágio de doença mental em si. Para enfrentá-lo, os trabalhadores constroem estratégias de defesa, utilizadas como meio de controle do sofrimento visando à manutenção da saúde.

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Dejours Abdoucheli e Jayte (1994, p. 36) argumentam que elas funcionam como uma proteção à saúde mental contra efeitos negativos, riscos, perigos, deletérios do sofrimento, além de aumentar a resistência, tornando o trabalho mais tolerável. Os autores esclarecem que, apesar de os mecanismos de defesa individual coexistirem com os coletivos, as estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores são, na maioria das vezes, coletivas. O grupo compartilha o sofrimento e encontra conjuntamente soluções para lidar com as situações desmotivadoras. Os principais mecanismos de defesa individuais podem ser assim definidos (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988): - projeção: operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisas, qualidades, sentimentos, desejos em objetos que ele desdenha ou recusa em si; - transferência: processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de certo tipo de relação estabelecida com eles; - negação: processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a defender-se dele negando que lhe pertença. - racionalização: processo através do qual os indivíduos buscam explicações lógicas para os motivos que causam o sofrimento; - sublimação: processo que consiste na busca de conciliação entre o desejo e a realidade, buscando objetivos substitutos para certas tendências e impulsos; - identificação: mecanismo pelo qual a pessoa busca sentir, pensar e agir da mesma forma que imagina que outra pessoa esteja sentindo, agindo e pensando.

Dentre os mecanismos de defesa grupal desenvolvidos pelos trabalhadores para possibilitar-lhes suportar ou atenuar as adversidades de seu dia-a-dia no trabalho, pode-se destacar os seguintes (DEJOURS, 2006): – minimização dos sentimentos de ansiedade, medo e insegurança: dinâmica de defesa grupal pela qual os trabalhadores desafiam o próprio medo, que passa a ser negado coletivamente; – realismo econômico: possibilita aos trabalhadores não se sentirem culpados, por exemplo, ao fazerem o trabalho de “enxugamento” do quadro de pessoal e efetuarem demissões, imbuídos na cultura do desprezo para com os excluídos da empresa, sob a justificativa de reformas estruturais e downsizing, acreditando estar convertendo o mal em bem; – a virilidade: estratégia que limita a percepção dos riscos pelo trabalhador, tendendo a agravá-los, ao invés de diminuí-los. Implica desprezo aos fracos, por seus sentimentos, suas idéias, seus modos de viver e pensar. Dejours (2000, p. 109), ao reportar-se aos trabalhadores da indústria petroquímica em seus “jogos relativos à segurança”, observa que dentre as estratégias de defesa normalmente construídas pelos trabalhadores destaca-se o consumo de álcool, considerado um poderoso sedativo, protetor dos medos e das ansiedades. Além disso, palavras como coragem, resistência à dor, força física e invulnerabilidade fazem parte do cotidiano dos relatos e conversas. Essas palavras são utilizadas pelos trabalhadores objetivam atenuar, antes de mais nada, o estado de medo e de alerta que sentem, quando estão desenvolvendo uma atividade profissional passível de colocar sua vida em risco, inclusive ao confrontarem grandes máquinas, consideradas ameaças à própria integridade física. A pressão para adaptarem-se às formas de produção também pode desencadear o medo e conseqüentes descompensações clínicas ou psicológicas sentidas pelos trabalhadores, as quais podem também ser resultantes da estrutura de personalidade, desenvolvida antes da entrada do indivíduo no processo produtivo. 3 Metodologia da pesquisa

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Embora acidentes de trabalho transformem-se em estatísticas ao pesquisar sofrimento como sua causa fundamental “hominiza-se” a pesquisa, que pretendeu compreender os significados do sofrimento no acidente de trabalho. Tendo em vista esse foco de interesse se elegeu a abordagem qualitativa como a mais adequada para realizar a coleta e a análise dos dados. Quanto aos fins e meios a pesquisa caracteriza-se como descritiva e interpretativa. Quantos aos meios, o presente trabalho caracteriza-se por ser um estudo de caso. Yin (2005) define tecnicamente o estudo de caso como uma investigação empírica sobre um fenômeno contemporâneo dentro de seu contexto da vida real.

A unidade de observação desta pesquisa foi constituída por trabalhadores, vítimas de acidentes de trabalho categorizados pela empresa como tendo sido causados pelo “fator humano”. Os mesmos haviam sido treinados de acordo com a política de segurança da empresa e considerados aptos quando submetidos ao Teste Reid, uma bateria psicométrica específica utilizada para a identificação de dificuldades em habilidades de risco. Os acidentes aconteceram entre 2008 e 2009 e levaram ao afastamento do trabalho. O teste mede atenção concentrada, atenção difusa, tomada de decisão, coordenação bimanual, coordenação visomotora. No Brasil é adotado como medida preventiva de acidentes na ArcelorMittal, White Martins e Comgas. A empresa disponibilizou registros individuais e estatísticos de acidentes, os formulários utilizados para análise de risco e os de análise de falhas. A escolha dos sujeitos de pesquisa deu-se de maneira não-probabilística e intencional, já que “a generalização, no sentido estatístico, não é o objetivo da pesquisa qualitativa” (GODOY, 1995, p. 61). Outra unidade de observação considerada, além dos acidentados, foram os gestores desses funcionários, por isso, dois deles foram selecionados, objetivando-se descrever suas percepções sobre as causas e conseqüências do contexto sócio-afetivo do sujeito vinculados ao acidente. A Figura 1 traz o perfil dos sujeitos, que receberam nomes fictícios.

Nome

Idade

Escolaridade

Estado Civil

No de filhos

Tempo de Empresa em anos

Acidente

Funcionário 1 Mário

41 Téc. Mecânico Casado 01 22 1. Prensamento de dedo 2. Fratura de falange 3. Prensamento e perda de dedo

Funcionário 2 Lucas

34 Téc.

Eletrotécnico

Casado 02 6 Prensamento de dedo

Funcionário 3 Otávio

40 Téc. Mecânico Casado 02 22 Prensamento de dedo

Funcionário 4 Luiz

38 Téc. Mecânico Casado 02 11 Atingido na perna por estilhaço de aço aquecido

Funcionário 5 Renato

26 Téc.

Eletrotécnica Casado

S/ FILHO

S 6

Prensamento e corte de dedo

Funcionário 6 Carlos

33 Téc. Mecânico

Casado 01 11

1. Prensamento de dedo 2. Prensamento de nariz 3. Queimadura na palma da mão

Gestor 1 César

43 Téc. Mecânico Casado 02 23 --

Gestor 2 André

38 Eng. Mecânico de Aeronáutica

Casado 02 14 --

Figura 1. Perfil dos sujeitos da pesquisa Nota. Fonte: dados da pesquisa.

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A coleta dos dados foi feita por meio de entrevistas semi-estruturadas e de observações livres. Outra fonte de coleta de dados utilizada foram os documentos institucionais de registros de acidentes. A análise triangulada de dados permitiu a compreensão das situações sob a perspectiva dos trabalhadores e da organização. Os entrevistados se mostraram receptivos à pesquisa, colaborando efetivamente. Observou-se, contudo, certo incômodo em todos eles, por terem sido lembrados pelo acidente sofrido.

Na fase de análise dos dados foi utilizada a interpretação das significações expressas nas falas dos atores por meio da técnica de análise de conteúdo. Dessa forma, o conteúdo expresso e latente pode ser analisado. As categorias de análise estabelecidas foram: 1. Sofrimento no trabalho antes do acidente

1.1 Pressão do tempo e sofrimento 1.2 Medo da incompetência e sofrimento

2. Sofrimento no trabalho após o acidente 2.1 Negação da dor 2.2 Medo do desemprego

3. Nem tudo são espinhos 4 O caso estudado Em 1971, grandes mineradoras iniciaram contatos visando à exploração de minério itabirítico (baixo teor de ferro), até então nunca explorado no Brasil. Em 1973, a empresa Mineralis foi criada, destinada a extrair e concentrar minério itabirítico, pelotizar o concentrado e exportar as pelotas em porto próprio. Em 1991, deu-se início à Implantação do Programa Qualidade Total na empresa e ocorreu o licenciamento ambiental em uma de suas unidades. Em 1994, foi implantado o Projeto de Expansão, que previu a construção da segunda usina de pelotização em uma das unidades e a ampliação da capacidade da usina de concentração de outra. Ainda, naquele ano, a empresa completou 365 dias sem acidentes com perda de tempo – CPT, e pela primeira vez obteve a certificação ISO 9002 tendo sido considerada pelo ranking Clima Organizacional da Hay do Brasil a melhor empresa para se trabalhar. Em 1998, ela foi a primeira mineradora do mundo a receber a certificação ISO 14001 de Meio Ambiente, para todas as etapas de seu processo e, em 2000, recebeu a certificação OHSAS 18001 de Segurança e Saúde do Trabalho. Em 2002, com 25 anos da existência, ela atingiu recordes de produção (15 milhões de toneladas de concentrado e 14,8 milhões de toneladas de produtos), e também de embarque (14,44 milhões de toneladas), e em 2004, recebeu certificação na norma BS 7799-2, que atesta a eficiência do Sistema de Gestão de Segurança da Informação, e no ISPS Codo, que reconhece a implantação de procedimentos de segurança portuária seguidos no mundo todo. A empresa contava em 2009 com 1.805 empregados diretos e 2.280 terceirizados.

A Tabela 1 ilustra a significativa queda dos índices de ocorrência de acidentes de trabalho na Mineralis e nas empresas contratadas, no período de 2003 a 2008, em termos de acidentes classificados (Homem/horas trabalhadas, englobando acidentes de trabalho com e sem perda de tempo) e acidentes registrados (Homem/horas trabalhadas, acrescentando tempo de tratamento médico). Tabela 1 Taxa de ocorrência de acidentes de trabalho na Mineralis e contratadas (2003-2008)

Acidentes 2003 2004 2005 2006 2007 2008

Registrados 7,29 6,39 6,48 6,5 2,83 2,27

Classificados 2,43 2,07 1,11 1,06 1,54 0,61 Nota. Fonte: Gerência de Segurança e Saúde da Empresa, 2009 (Adaptação).

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5 Descrição e análise dos resultados 5.1 Sofrimento no trabalho e comportamento de risco antes do acidente 5.1.1 Pressão do tempo e sofrimento A crença de que rapidez na execução da tarefa está diretamente associada à competência e à produtividade faz acelerar o ritmo de trabalho. Essa busca da otimização do tempo, herança do taylorismo, nem sempre se leva em consideração a natureza do trabalho e os riscos inerentes à tarefa executada, sejam eles físicos ou psíquicos. No entanto, a pressão externa, exercida pelas empresas e assimilada pelos trabalhadores, passa a ser interna e às vezes inconsciente. Utilizada como energia para impulsionar a força produtiva, a pressão do tempo faz parte de rotina, mesmo que a tarefa não exija rapidez. Independente da determinação externa do tempo de execução da tarefa, o trabalhador passa a executá-la o mais rápido possível, como se o fator tempo fosse determinante do seu grau de competência, ou como se, dessa execução rápida dependessem os resultados da empresa. Otávio, ao relatar o acidente sofrido, fala que “isso acontece na ânsia de liberar sua parte, para que nada fique agarrado”. Perguntado se daquela tarefa que executava dependia algum segmento de produção responde que não, porque havia outras tarefas rotineiras de manutenção acontecendo e que não existia nenhuma pressão da chefia. No entanto, acrescenta que: “(...) a mim não chegou essa pressão não, mas com certeza ela iria chegar. E o medo da pressão? Estava antecipando o sofrimento, eu acho”. A palavra sofrimento aparece associada a essa pressão internalizada, quando se evidencia a primeira relação com o acidente neste estudo. Observou-se, nesse ponto da entrevista, a mudança de comportamento do entrevistado. Otávio passa a falar mais baixo e também abaixa a cabeça e os olhos, como a se abater sob o peso de reconhecer o sofrimento. Fala que a ansiedade é uma constante na relação com a pressão do tempo internalizada. Acrescenta que vem trabalhando isso, principalmente porque foi transferido para a área de programação da empresa, onde a natureza das tarefas é totalmente diferente da área anterior, de execução da manutenção. A disponibilização do tempo é um fator importante para o pertencimento do trabalhador ao grupo. Carlos estava de folga no dia do acidente. Era sábado, estava chegando das compras com sua esposa quando ocorreu uma emergência e foi acionado. Perguntado sobre seus sentimentos ao acidentar-se em um dia de folga, responde:

O contrato que a empresa tem comigo é que eu presto serviço para ela. Quando você contrata alguém que mexe no computador na sua casa você só conhece aquela pessoa, você quer que ela te atenda. Quando a empresa me contrata, também ela quer uma pessoa que tenha uma relação direta: - quando eu precisar, ele está lá pra me ajudar. Como eu tinha terminado de fazer compras e ia estudar e dava pra estudar depois, eu falei: - não, vou aí sim e a gente resolve isso agora.

A centralidade do trabalho na vida do indivíduo fica evidente nessa fala. O importante é disponibilizar o tempo para a empresa e ser um bom funcionário. Como escreve De Masi (2000, p.172):

A empresa, por sua própria natureza, é uma instituição total, onívora, que gostaria de absorver o trabalhador o tempo todo. Se pudesse, o faria dormir no emprego. É uma necessidade psicológica, semelhante à que liga a vítima ao seu carrasco. O chefe não consegue abrir mão dos empregados subordinados a ele, e estes, por sua vez, não conseguem abrir mão da subordinação ao chefe.

Renato, perguntado sobre horas extras fala: “Eu estudo e procuro fazer tudo dentro do horário, de forma que quatro e dez ou quatro e quinze eu vou tomar meu banho para ir para a aula. É claro que às vezes não tem como. Aí a prioridade é a Empresa”. Observa-se que cada

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um sente-se responsável pela solução dos problemas da empresa, como se fossem os únicos capazes de os resolver. 5.1.2 Medo da incompetência e do sofrimento Os trabalhadores desenvolvem suas atividades visando ao reconhecimento de suas competências pela organização, e o conseqüente pertencimento ao grupo. Isso inclui tudo o que o trabalhador acrescenta à organização prescrita para torná-la eficaz. Segundo Dejours, Abdoucheli e Jayte (1994, p. 31), “em situações de trabalho comuns, é freqüente verificarem-se incidentes e acidentes cuja origem [...] não se consegue jamais entender e que abalam e desestabilizam os trabalhadores mais experientes.” Dejours, Abdoucheli e Jayte (1994) destacam que, nessas situações, nem sempre os trabalhadores têm como identificar se as falhas devem-se à sua incompetência ou a problemas técnicos. Para o autor, essa fonte de perplexidade é também causa de angústia e de sofrimento que toma a forma de medo de ser incompetente. Carlos, perguntado sobre seus sentimentos na hora em que se acidentou, responde:

Medo, medo. É uma coisa esquisita que a gente tem na hora em que acontece o acidente, porque a gente sabe o nível de compromisso, de comprometimento que a empresa exige da gente com relação à segurança, e a gente não quer que aconteça uma coisa dessas.

Essa fala expressa a preocupação com a exigência da empresa como mais importante do que a preocupação com a própria integridade. Em outra, o entrevistado revela o medo do impacto sobre o futuro profissional e, principalmente, do desemprego. O medo da incompetência alia-se, assim, ao sentimento de culpa, traduzido na palavra “erro”. Ele diz reflexivo: “Você pensa assim: será que eu não tenho condições, será que eu fiz isso, o que eu deixei de fazer, que eu não fiz? Fica se perguntando um punhado de coisas”. Diz que não consegue ter respostas para essas perguntas. Nesse ponto da entrevista, revela os mecanismos de defesa coletivos utilizados.

Chateou muito durante um tempo, mas só que, conversando com as pessoas acabou chegando o momento que consegui manter equilíbrio e esquecer isso. Eu estou relembrando agora. Esquecer isso, passar uma régua nisso e trabalhar os pontos que possam me ajudar a crescer.

O reconhecimento por parte dos “outros”, foi essencial para diminuir a angustia e o sofrimento. O que ele chama de “isso” é a culpa pelo erro, “passar a régua nisso” é negar o erro, e trabalhar o potencial de crescimento foi a estratégia utilizada para evitar o adoecimento. Ao falar do sentimento ao acidentar-se Otávio evidencia a necessidade de continuar mostrando competência, compromisso com a empresa e com a tarefa.

Não vamos ficar apavorados, acabou de acontecer, não tem o que reclamar mais, não tem o que chorar mais. Eu torcia pra não acontecer, mas aconteceu e vamos agir naturalmente. Eu penso assim, acho que meu sentimento na hora, sabe, eu queria trabalhar mais, eu queria que resolvesse aquilo rápido pra eu voltar pra trabalhar, mas como não deu.

A angústia surge sob duas formas: o sofrimento e a impossibilidade de vivê-lo. A primeira trazendo o herói que lida com naturalidade e equilíbrio com as adversidades. A segunda novamente provando competência e compromisso com a empresa. Quando questionado sobre os motivos para querer trabalhar mais um pouco ele responde que era o nome dele que estava na frente do serviço e que ele queria ver a tarefa concluída. Sobre o ato de reconhecimento, Dejours, Abdoucheli e Jayte (1994) salientam que o mesmo “é decisivo na dinâmica da mobilização subjetiva da inteligência e da personalidade no trabalho”. Quando a competência é reconhecida, também os esforços, angústias, dúvidas adquirem sentido e, portanto, o sofrimento não foi em vão. Perguntou-se a Otávio se ele já havia se colocado em risco em outras situações por causa dessa necessidade de manter o reconhecimento. Ele começa atribuindo esse tipo de

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conduta à antiga cultura da empresa, em seguida assume a característica como própria dizendo: “tinha esse tal de espírito de aventura, eu acho que eu tenho muito isso, sabe, e eu não negava esse tipo de serviço”. Essa fala traz a conduta do herói como merecedora de reconhecimento, apesar de a empresa lutar contra essa associação por meio da condenação escrita e explícita dos atos de exposição ao risco. 5.2 Sofrimento no trabalho e comportamento de risco após o acidente 5.2.1 Negação da dor A negação é o mecanismo utilizado para negar um pensamento ou sentimento que, caso seja admitido, causa grande angústia. Negar a dor provocada pelo acidente é negar o próprio acidente. A negação da dor foi utilizada por todos os entrevistados. Otávio diz que “na hora nem senti dor. Pensei: aconteceu alguma coisa. Na hora em que eu tirei a luva, o pessoal assustou, fez um rombo muito grande na pele.” Ele percebeu que aconteceu “alguma coisa”, mas a ausência da dor significa a ausência do acidente. Perguntou-se se ele havia se assustado como o pessoal, ao que responde: “Eu não. Falei assim: estou muito tranqüilo, não estou sentindo dor, nem nada.” Enquanto não sente dor, não constata o acidente e consequentemente não se angustia, não sofre. Luiz também relata que não sentiu dor e que os colegas avisaram-no. Também utiliza a palavra “assustar” para o sentimento resultante da constatação do acidente. “Eu não percebi. O pessoal foi que me falou: oh a sua calça está com sangue. Aí que eu fui olhar. Aí eu assustei, porque eu não estava sentindo dor nem nada.” Aqui, a repetição da expressão: “dor, nem nada”, ou seja, ambos não sentiram nada. A ausência total de qualquer sensação acentua a intensidade da angústia evitada pela negação.

Lucas relata que: “Não, até que na hora eu percebi a fisgada, que foi forte, mas não foi aquela dor exagerada”. Aqui se pode inferir que, como foi uma fisgada forte, mas a dor não foi exagerada, o problema não seria tão sério. Em seguida, Lucas diz que, logo depois, a dor veio exagerada, com intensidade e então ele teve:

(...) um início de desmaio porque a dor foi muita. Na verdade foi uns trinta segundos depois do acidente que começou a dor, então eles fizeram, fizeram um pouco de massagem levantando meus braços. Aí eu fui melhorando, eles me levaram lá pro hospital, mas eu já estava com dor, já estava sentindo muita dor porque represou o sangue.

A dor começou uns 30 segundos depois do acidente. O tempo de negação foi curto, mas imediatamente após a percepção da dor, Lucas sofreu o que ele chama de início de desmaio, melhorando, quando houve o socorro dos colegas, inclusive da chefia, segundo seu relato. A ajuda dos companheiros ameniza a constatação do acidente. É o acolhimento atenuando o sofrimento.

Carlos minimiza o acidente dizendo: “foi uma queimadura superficial, leve.” Diz que:

(...) na hora eu nem tive tempo de ter susto, de tomar susto. Depois que eu saí, eu fui ter susto. É esquisito, é muito rápido. Na hora você pensa é em tentar corrigir o que aconteceu, não dá tempo de pensar no que você vai sentir depois. Depois é que começa a sentir medo.

Ele não fala de dor. Fala do susto e do medo. O susto refere-se novamente à constatação do acidente. O medo tem relação com as conseqüências, passando pela questão da incompetência, até chegar ao temor da demissão. Renato relata que concluiu a atividade antes de tomar as providências necessárias:

Então eu machuquei. Assim que eu percebi mesmo, por pequeno que seja, sentimento ruim, aí conclui a atividade, desci até a sala do supervisor e falei com ele. Aí eu contei a história toda e mostrei pra ele e tal, aí daí pra frente fomos ao ambulatório e tal, fez curativo, aquele negócio todo.

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A fala “assim que eu percebi mesmo”, traz a noção de um intervalo de tempo entre o acidente e a percepção do mesmo. “Por pequeno que seja”, seguido da expressão “sentimento ruim” traz dubiedade: acidente pequeno e pequeno sentimento ruim. Ambas levam à banalização tanto do acidente, quanto do sentimento ruim, o que é uma forma de exercer a negação. Mário também relata não haver sentido dor na hora do acidente e traz claramente a angústia: “(...) então é ruim, muito ruim. Eu vim a sentir dor mais à noite, de tanta preocupação com o emprego.” Inferiu-se que, por estar em estado de profundo sofrimento, busca expressar seus sentimentos esperando algum tipo de ajuda. Diz ainda: “eu caminhei, eu cresci, eu me desenvolvi profissionalmente foi aqui. Então eu deixei a dor de lado, não preocupei com a dor. Preocupei foi em perder o meu emprego.” Aqui fica traduzido literalmente o sentimento subentendido dos outros cinco entrevistados: negar a dor é negar o acidente e preservar o emprego. 5.2.2 Medo do desemprego

Se o desemprego é fonte de sofrimento e injustiça, a ameaça a ele é sofrimento duplo. Há o real e o imaginário. O real se refere à situação do país e à condição de vida do desempregado e de sua família. O imaginário refere-se à subjetividade do trabalhador. Permeando o real e o imaginário estão a cultura e a subcultura da empresa. O real – é inquestionável a desagradável situação do desempregado. Alienado do mundo corporativo, sem identidade, sem condições financeiras de sobrevivência, muitas vezes, sem perspectiva de futuro, vive à margem da sociedade. Na empresa em questão, essa realidade torna-se ainda mais dolorosa, visto que o grupo social dos empregados é, em sua maioria, composto pelos colegas de trabalho. Assim, perder o emprego significa de certa forma, perder também o grupo social. Além disso, a vergonha perante a família e os amigos se torna maior. Não há como esconder nem camuflar perante os amigos. Também dentro da realidade, está a possível avaliação dos gestores. César, perguntado sobre as causas fundamentais do acidente de trabalho, na maioria das vezes, responde: “Eu vejo que basicamente, se você for analisar bem, a culpa sempre é do acidentado”. No que se refere à demissão do funcionário após um acidente, César deixa claro que:

Com toda essa parte da segurança que a gente tem, se a gente vê que foi uma falha muito grave, eu acho que deve demitir. Porque a partir do momento que aquela pessoa não cumprir uma norma que é muito clara e sofrer um acidente, ela poderá sofrer um novo acidente. Poderá até perder a vida ou então colocar outras pessoas em risco. Eu acho que não vale a pena você insistir com ela não, porque as regras são claras. Os EPI’s estão disponíveis pra todo mundo, todo mundo está treinado.

Observa-se que, no imaginário dos funcionários entrevistados, não existe a diferenciação entre acidente e acidente grave. A culpa aparece independente da gravidade ou do não cumprimento de normas. No imaginário, o risco de demissão é referente ao acidente em si. Na subcultura, acidentar-se é correr risco de ser demitido. O que se repete, além das regras e do treinamento, é a evidente dificuldade em demitir. Os dois gestores falam em demissão como último recurso. André também acrescenta à conversa, a tentativa de fazer com que o funcionário preze as normas de segurança. Nesse momento da entrevista, mostra um manual de mais de 300 páginas, mas questiona se todas as pessoas vão seguir as instruções para minimizar ou eliminar os riscos. Renato reclama que sempre é lembrado pelo acidente. O convite para participar da pesquisa o incomodou. “Eu estou exposto aqui agora, igual eu fui lembrado pra essa pesquisa, uma posição de certa forma ruim. É talvez, uma retaliação.” A fala traz o medo imaginário de uma punição. Compara o acidente a uma mancha no currículo e diz: “Eu estou

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aqui agora. Então de certa forma tem esse histórico lá no departamento pessoal. É a mesma coisa na escola, suas notas estão lá.” Ser lembrado pelo acidente é uma ameaça ao emprego. As palavras “histórico” e “retaliação” evidenciam isso. No entanto, diz que a ameaça clara de demissão nunca ocorreu. É na subjetividade que isso acontece. Justifica-se antecipadamente. Refere-se à epoca do acidente dizendo: “na mesma época, no mesmo período, quanta coisa nós fizemos. Ajudamos a empresa a crescer.” Fica claro que é por isso que quer ser lembrado – pelas coisas boas que fez, e não pelo acidente. No imaginário, o acidente pode sobrepor-se às atitudes positivas, anular o bom profissional. Luiz também fala do medo de uma punição, onde a demissão fica subentendida. “Eu fiquei nervoso. Eu comecei a chorar, preocupado com uma punição. A preocupação mesmo foi com a punição, medo de encarar uma.” Diz que não é agradável enfrentar uma análise de falhas e que até chegar à causa final do acidente “a gente fica muito constrangido, fica com medo, mesmo que você não tenha culpa, mesmo assim a gente fica com receio, fica preocupado com o que pode acontecer. A gente fica tensa demais da conta, não é bom.” Uma seqüência de palavras e expressões traduzem a intensidade do medo imaginário do desemprego: nervoso, constrangido, preocupado, punição, medo, culpa, receio, tenso. A palavra “preocupado” aparece duas vezes num pequeno trecho, traduzindo o imaginário – ocupar-se antes, sem saber o que realmente vai ocorrer. Mário deixa claro o medo do desemprego. Emociona-se e chora muito ao falar desse medo. “Eu vim a sentir dor mais à noite, de tanta preocupação com o emprego.” Relembra que está há 22 anos na empresa, que foi seu primeiro emprego. Considera que está com quarenta anos e que não vai conseguir outro emprego como esse que tem. Relata que “(...) os meus dois chefes estavam lá e eu, com meus dedos, com tudo sangrando, pele caindo, dedo pendurado, eu cheguei pra eles e perguntei: o que vai acontecer comigo?” A realidade da dor, da perda do dedo é menor frente à dor do medo de perder o emprego. Fala do sofrimento constante que esse medo causa a ele. “Fico contando os dias: até quando eles vão me aceitar? Então isso não sai da minha cabeça.” Diz que, antes do acidente, sentia-se tranqüilo porque sabia de sua competência. Novamente é o acidente, apagando o passado de competências por um presente e futuro imaginariamente incertos. Quando se perguntou o que mais o incomoda hoje, responde: “A insegurança. Tirei trinta dias de férias, contando os meus dias: o que será que vai acontecer comigo quando eu voltar?” Acrescenta que “Do lado de fora a gente escuta muitas piadas, a gente não quer perder o emprego. Mandar currículo pra outra empresa e, poxa, fulano de tal trabalhou 22, 23 anos na empresa, por que saiu? Número de acidentes? Competência? Então isso tudo vai acarretando um ponto negativo pra você.” O medo de perder o emprego e, ainda mais, de não conseguir recolocação no mercado de trabalho, evidente nessa fala, leva ao sofrimento. Forrester (1997) afirma que “Não é o desemprego em si que é nefasto, mas o sofrimento que ele gera e que para muitos provém de sua inadequação àquilo que o define, àquilo que o termo “desemprego” projeta. Mário diz que fica incomodado com essa lembrança, com o emprego, com o que faz. “Eu saio de casa diferente do que eu saía no dia 6 de julho. Dessa data pra cá eu mudei. Saio bem mais preocupado.” Há uma cisão, um corte – antes e depois do acidente. Antes, era competente, tranqüilo. Depois, o questionamento, a dúvida sobre a competência e o próprio destino. O conflito entre a culpa e o medo. Para Sennet (2007), “diante de alguma coisa conflituosa, a atenção da pessoa fica pregada mais em suas circunstâncias imediatas que numa visão de perspectiva.” Mário sente necessidade de provar que o acidente não foi por incompetência, não apaga seu passado de virtudes, que não causará a demissão. Acrescido a isso, Mário passa pelo medo da exclusão pelo grupo. Conta que, logo depois de voltar ao trabalho, após o afastamento pelo acidente recebeu uma ligação. Quando se identificou ao telefone, o interlocutor perguntou sem se identificar: “então quer dizer que foi você que abaixou os números da placa da portaria?” Os números da placa são referentes

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ao número de dias sem acidentes, atualizados diariamente em um outdoor situado na portaria. Mário prossegue dizendo:

É bastante duro, doloroso, saber que foi você quem fez os números da placa caírem. O meu corpo, o sangue ferveu. E com quem que eu estava falando? Eu não sei com quem que eu estava falando. Deixou esse recado pra mim. Eu pus o telefone no gancho e fui pro banheiro, e as pessoas sempre me culpam...

Apesar de relatar a apenas um episódio, Mário generaliza: “as pessoas sempre me culpam”. É o grupo que pode excluí-lo, reforçar a noção de erro, falha, incompetência. Culpa agora pelo resultado geral da empresa no tocante a acidentes. Permeando o real e o imaginário estão a cultura e a subcultura da empresa. A cultura da empresa passou por transformações substanciais com relação à conduta de risco e a segurança do trabalho. Se hoje a fala é “Segurança antecede Produção”, e todo um arsenal de procedimentos é implementado, antes a produção estava acima de tudo. Resquícios dessa cultura ainda estão presentes. Competência ainda está ligada apenas a resultados de produção no inconsciente de muitos. Hoje a empresa mensura resultados de acidentes e incidentes e esses entram nas estatísticas dos resultados da empresa com a mesma importância das estatísticas de produção e lucro. No entanto, em contatos informais com os funcionários em momento de treinamento, ouviu-se a expressão “super-herói” ou similar em diversas ocasiões, referindo-se ao funcionário que se arriscava em nome da produção. César, ao ser perguntado sobre isso, responde que: “há uns 20 anos atrás, existia muito isso, muita gente fazia loucura.” Nessa fala, César conjuga os verbos no passado – “existia”, “fazia”. Na seqüência, porém passa o verbo para o presente: “(...) tem pessoas que realmente, parece que por instinto, gostam de desafiar mais, ou então gostam de viver perigosamente, e que realmente é preciso ter mais cuidado com essas pessoas.” Assim a fala sugere que a cultura do super-herói ainda persiste. Isso é reforçado, quando completa dizendo que “a cada dia que passa a gente nota que o pessoal também vai assimilando e a gente tenta captar e abolir.” Os gestores já captaram. O “pessoal” refere-se ao trabalhador operacional. Este ainda está assimilando. André salienta que isso vem diminuindo principalmente à medida que novas pessoas vão chegando. Explica que, antes, um mecânico, por exemplo, era uma pessoa sem formação técnica, treinada pela empresa, e que, há algum tempo, “admitimos pessoas formadas no SENAI, ou que tenha algum curso técnico. Então, já têm uma outra visão do mundo, entendem as coisas com mais facilidade.” Otávio reforça essa constatação, quando fala que o serviço tinha que ser rápido e bem feito, independente dos riscos, para que o funcionário fosse considerado competente. “Quando eu iniciei aqui, em 86, havia a cultura dos mecânicos. Na época era: parou? Vai lá e libera o mais rápido possível. Era chegar e: deu o tiro e saiu a fumaça.” Diz que tinham que dar um jeito de resolver qualquer situação e que “bom funcionário era aquele da marreta bem batida.” Reforça também a mudança de cultura e a dificuldade que os funcionários mais antigos, como ele, sentem ao enfrentar essa mudança. “Eu vi muita mudança. Mudou muita coisa e vem mudando. A gente vai se adaptando. Mas a gente fica com o restinho dessa coisa de chegar e liberar o mais rápido possível.” A fala traz a necessidade de adaptação, em detrimento da dificuldade de mudança. “O restinho dessa coisa” é a expressão desse estereótipo. Acrescenta a estranheza diante dessa nova cultura da segurança, dizendo: “Tanto é que se eu for à área hoje, eu vou estranhar demais, porque os mecânicos se cercam de uma papelada e tem que preencher, preencher e ir na área olhar o que pode dar errado, ver qual medida de segurança pode ser tomada.” Ao contrário do bom funcionário ser aquele da “marreta bem batida”, considera que “hoje, bom de serviço é aquele que sabe se antecipar ao risco, que sabe prever situações que vão acontecer, que trabalha com visão preventiva do acidente de trabalho.” Acrescenta que “antigamente, o cara que ficava se cercando demais com esse nhem-nhem-nehm era criticado, era ruim de serviço. Aí houve a inversão de

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papéis.” Nesse momento, percebeu-se na entonação do entrevistado, um tom de desdém. Ele ri da própria afirmação. A expressão “nhém-nhém-nhém” traduz o sentimento de desqualificação atribuída ao preenchimento dos formulários de análise de risco. Numa instância mais profunda, remete à resistência da mudança de cultura e ao que ele chama de “inversão de papéis”. Apesar de reconhecer a necessidade de adaptação, evidencia o conceito de que, ainda acha “bom de serviço”, aquele que faz rapidamente e resolve a situação, sem análise prévia de risco. Também ficou evidente a cultura da ameaça latente da demissão e a atribuição da culpa do acidente ao acidentado. Parafraseando Dejours (2006), pode-se associar o super-herói ao homem corajoso e viril. Executar a tarefa sem análise de risco, ser um bom funcionário usando a “marreta bem batida”, é sinônimo de coragem e competência. A “inversão de papéis” citada por Otávio reflete a perplexidade diante da mudança de valores. Perplexidade que leva ao conflito. Se antes ele era um bom funcionário pela coragem, é o seu antagônico, a covardia que hoje é valorizada? Por outro lado, o antagonismo realmente existe. André quando diz que:

(...) um funcionário perfeito é aquele que conjuga a pro atividade, o que a gente pode chamar de super-herói, a pro atividade com cuidado, com segurança. Nós também não queremos um cara medroso, o cara também não trabalha, não é isso. Ele tem que fazer de forma consciente, ele sabe do risco. Aí ele toma medidas preventivas e faz o trabalho que tem que ser feito, ele está na frente.

É possível associar a pró-atividade ao cuidado. Porém são anos de cultura da virilidade, da coragem. O que é visto por Otávio, quando diz “inversão de papéis”, refere-se basicamente ao sentimento de inversão de valores, a mudança de atitude frente ao medo, ao risco de acidente. De acordo com Dejours (2006), segundo a psicodinâmica do trabalho, a coragem, quando mobilizada para responder a uma ordem ou uma missão, necessita da virilidade como suplemento. Quando existe uma pressão para superar o medo, os processos psíquicos individuais e coletivos apelam mais para a virilidade defensiva do que para a coragem moral. Nesse cenário, como então lidar com o medo? A proteção estaria nos manuais de normas e procedimentos de segurança. Porém, vez ou outra, o medo sobrepõe-se e o inconsciente burla as normas. Não podendo verbalizar o medo, o trabalhador vê-se na obrigação de exibir seus antônimos: coragem, resistência à dor, força física, invulnerabilidade. Como foi dito anteriormente, os entrevistados não sentiram dor na hora. Eles também estavam seguros de que não aconteceria o acidente. Embora os acidentados dessa pesquisa não estivessem necessariamente descumprindo normas prescritas, possivelmente descumpriram normas reais. 5.3 Nem tudo são espinhos Sofrimento e prazer no trabalho, nem sempre são opostos, ao contrário, podem caminhar juntos. O relato dos entrevistados nos traz isso. Talvez isso seja um dos sentidos do trabalho. A empresa desperta a devoção e o amor incondicional do trabalhador. É o lugar que supre as carências individuais de gratificação. Ela é a responsável pela identidade social do trabalhador. Os entrevistados, seduzidos pela garantia da sobrevivência material, pelo desenvolvimento profissional e pela identidade adquirida, entregam-se a ela. Dessa forma, não só produzem mais e melhor, como, através do reconhecimento, conhecem o prazer do trabalho. Mário fala que gosta de “tudo um pouquinho”. A noção da empresa como seu lugar fica evidente e reforça o que já se descreveu no que diz respeito à identidade. O que deve ser ressaltado aqui, principalmente no caso de Mário, é que quanto maior a identidade do sujeito

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com a empresa, maior o sofrimento. Sua fala também traz a empresa como Superego - continuação do pai, dos valores aprendidos.

O que eu mais gosto aqui na empresa? Meu trabalho, eu gosto do meu setor, da atividade que faço. É daqui que sai o meu sustento. Eu tenho que ter amor por aquilo que estou fazendo. Desde pequeno, os meus pais falavam: mesmo que não tenha ninguém olhando o seu serviço Deus está. Então, tudo o que fizer, faça com amor. Eu aprendi isso e trouxe comigo de criança até hoje.

Diz, ainda, que nunca se imaginou trabalhando em outra empresa. Fala de seu sonho: “O meu sonho... uma pessoa que trabalha em uma empresa que te atende, que te dá conforto, que faz você crescer, então, o meu sonho é fechar com chave de ouro, ou seja, se Deus me permitir, der uma possibilidade, é de aposentar aqui.” Relembra que, ainda era menor de idade, e limpando o jardim da residência de um dos gestores da empresa, perguntou a ele se era difícil conseguir um emprego. O gestor orientou-o a preencher uma ficha de solicitação de emprego assim que completasse dezoito anos de idade. Mário preencheu essa ficha e foi chamado para um trabalho temporário. Conta que o gestor, na época, perguntou se ele aceitaria um contrato por nove meses de trabalho temporário ao que ele respondeu: “o contrato, eu vou correr atrás pra ver se renovo e permaneço na empresa, porque aqui, aqui é o meu lugar.” Quando reforça que a empresa é o seu lugar, Mário remete-nos à servidão voluntária, reforçando a idéia que, muito mais do que obediência e a servidão, a devoção à empresa é central em sua vida. E conseguir permanecer em seu lugar, até “fechar com chave de ouro”, é fonte de felicidade e prazer para ele. Lucas também diz gostar do que faz e ressalta as condições que a empresa dá a ele e a sua família. “É uma empresa boa, uma empresa que te dá oportunidade de crescer, te dá conhecimento e que visa a segurança.” A oportunidade de crescimento citada pelos entrevistados, nos reporta ao reconhecimento, fator importante de motivação e fonte de identidade do sujeito, como descrito anteriormente. Isso é reforçado na fala de Carlos: trabalhar nessa empresa “significa pra mim uma janela de oportunidades, como já tem sido.”

Para Renato, a vida profissional é essa empresa: “A minha vida profissional eu construí toda aqui na empresa. As oportunidades para melhorar, a empresa me deu. Eu sempre quero ter mais, mas hoje eu estou muito satisfeito, estou feliz e tenho projetos pra aqui”.

Se existe o temor do desemprego, também existe a visão de futuro. Na verdade, perceber o quão grandioso pode ser o futuro do profissional competente dentro da empresa, pode agravar o temor do desemprego. Mas, enquanto ele existe, o prazer de fazer-se o que gosta, num ambiente de camaradagem e reconhecimento ajuda a manter o equilíbrio psíquico do trabalhador.

6 Considerações finais Ao se analisar o sofrimento presente antes da ocorrência dos acidentes de trabalho pode-se verificar que a pressão do tempo para a execução da tarefa já não é mais necessariamente imposta pela empresa, pela chefia ou mesmo pela urgência real, mas interiorizada como sinônimo de competência. Assim, o trabalhador competente é aquele que executa o trabalho com rapidez e exatidão, independente do tempo real disponível ou necessário para aquela atividade. A análise da fala dos sujeitos sugere que a pressão internalizada do tempo torna-se fator ansiogênico, capaz de precipitar ações em detrimento da segurança física. Por outro lado, o tempo dos trabalhadores já não pertence mais a eles, mas à empresa. Disponibilizam-se durante as folgas, priorizam as demandas e necessidades da empresa independente das suas próprias necessidades. Isso faz com que se sintam ao mesmo tempo únicos (no sentido de que, se a empresa solicita sua presença, reconhece que é o único competente o suficiente para realizar a tarefa) e pertencentes ao grupo (no sentido de que estar

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sempre disponível para a empresa é uma das “regras” subentendidas). O reconhecimento e o pertencimento ao grupo são fatores importantes para esses trabalhadores, já que a simples ameaça de não existirem, causa sofrimento. Outro sofrimento identificado no momento do acidente foi o medo da incompetência. A perplexidade frente ao acidente evidencia a angústia ocasionada pelo medo da incompetência sentido pelos sujeitos da pesquisa. Esse sofrimento está baseado no fato de que buscavam dar o melhor de si, utilizar todas as suas competências na realização da tarefa e, mesmo assim, ocorreu o acidente. Questionam o que pode ter ocorrido de errado e, a partir daí, angustiam-se. Além disso, a construção da imagem da competência, conquistada ao longo do tempo está ameaçada. Dar o melhor de si significa então dar a si mesmo, uma parte do corpo ou a própria vida pela empresa. A análise sobre o medo da incompetência revelou, ainda, um sofrimento maior: o que se refere a esse medo associado ao sentimento de culpa. Os entrevistados passam a questionar onde foi que eles erraram, já que executavam as tarefas da melhor forma possível. Passam da angústia da perplexidade à dor da culpa. No que se refere ao sofrimento após o acidente, ficou evidenciado o uso dos mecanismos de defesa individuais e coletivos. A negação da dor foi utilizada por todos os entrevistados. Constatou-se que, para eles, admitir a dor, seria admitir o acidente. E admitir o acidente traria a angústia. Só conseguiram admitir a dor, quando foram acolhidos pelos companheiros, traduzindo assim a necessidade de pertencer ao grupo. Esse pertencimento alivia em parte a angústia. Ainda assim, os relatos reforçaram o adiamento da admissão do acidente, quando os acidentados tentavam terminar a tarefa para depois cuidarem de si. Enquanto isso ocorre, estão protegidos pelo mecanismo de defesa. O acolhimento do grupo evidencia o mecanismo de identificação. Constatou-se também o uso da projeção, quando atribuem aos outros os próprios sentimentos. O forte sentimento de culpa é projetado para os colegas que os consideram culpados, ou ao RH que, por culpá-los, mantém o histórico do acidente registrado, ou ainda à chefia, que pode inclusive retaliá-los ou demiti-los. É uma forma de proteger-se do autoflagelo e ser flagelado pelo outro. Encontrou-se também a racionalização, traduzida em fatalidade. Em situações de acidente de trabalho, a fatalidade é culturalmente aceita, tornando o fato lógico e racional. O sofrimento pelo temor do desemprego, como conseqüência do acidente, foi constatado através dos relatos extremamente angustiados dos entrevistados. Nesse ponto, percebeu-se aspectos reais e imaginários, permeados pela cultura e pela subcultura da empresa. O temor foi suscitado pelo medo de serem considerados incompetentes pelo erro que ocasionou o acidente. Essa incompetência temida, também não foi imputada a eles pela empresa. É no imaginário que esse quadro é desenhado e o temor do desemprego desenvolve-se causando sofrimento. Ressalta-se, aqui, o que se considera ser a maior contribuição dessa pesquisa: o reconhecimento. Se reconhecidos sentem-se pertencentes ao grupo e valorizados. Só assim, terá valido a pena o esforço para desempenhar um bom trabalho. Ser reconhecido significa ser visto, um caminho de mão dupla: eu enxergo a importância da empresa na minha vida e a empresa enxerga a minha importância na vida dela. Esse reconhecimento pode vir em forma de salários justos, plano de benefícios, porém, o que ganha mais relevo nessa pesquisa é a subjetividade. O trabalhador, aqui representado pelos entrevistados, quer ser reconhecido pelo seu esforço e sua competência. Os estilos de liderança são decisivos no reconhecimento das competências. Se um líder quer a colaboração efetiva e o comprometimento com resultados precisa reconhecer seu subordinado. Quando uma pessoa acidenta-se, independente do motivo, seu passado não pode ser apagado. Esse tipo de cisão chega próximo ao psicopatológico, à medida que, ao deixar de ser reconhecido pelo seu trabalho e distanciar-se do sentido de sua relação com ele, o indivíduo vê-se reconduzido somente ao seu sofrimento.

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Sofrimento este, capaz de desestabilizar a identidade e a personalidade e de levar à doença mental. Outro achado da pesquisa foi o sofrimento dos gestores. Também neles fica evidenciado o sentimento de culpa e o medo da incompetência. Sentem-se responsáveis em tomar todas as medidas de controle para que os acidentes não ocorram e a culpa por não ter conseguido evitar o acidente resulta em sofrimento pelo medo da incompetência. O medo da incompetência é permeado pelas duas facetas da liderança: de um lado está o subordinado acidentado, ao qual ele não conseguiu “proteger”, apesar de todos os procedimentos de segurança criados; de outro lado, os seus superiores hierárquicos, aos quais tem que prestar contas tanto dos resultados de produção, quanto dos resultados de acidentes. Entre os dois lados, está o gestor: identificado com seu subordinado, cobrado de seu superior. Não obstante todo esse sofrimento, o prazer também existe. Quando o trabalhador sente-se pertencente ao grupo, percebe que pode desenvolver-se através do reconhecimento da empresa, essa passa a ser a sua casa, o seu lugar, o seu sobrenome. Percebeu-se orgulho e felicidade quando da abordagem desse tema com os entrevistados. Todo o sofrimento desaparece e, como mágica, vem o prazer, a constatação de que vale a pena pertencer ao quadro de uma empresa que dá oportunidade de crescimento, preocupa-se com segurança, incentiva os valores familiares, cuida do trabalhador. É a alienação trazendo benefícios ao trabalhador. Considera-se que essa pesquisa contribuiu tanto pelas respostas que trouxe à problemática proposta, como pelas reflexões que formulam novas perguntas. Acredita-se que a busca de novas respostas levará a um caminho cada vez mais humanizado nas relações homem/trabalho. Afinal, por mais que se desenvolvam melhores e maiores empresas para o futuro, precisa-se desenvolver pessoas melhores para trabalhar nessas empresas.

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