SELEÇÃO DE POEMAS

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Dedicatria(A Ccero)

Pegue o que quiser,no h direitossomente deveres autorais

godard a bertolucci,que solicitara imagenspara os sonhadores

se hum poema foi feito para se darnenhum poema deveria aguardarno sto na gaveta no porohangartodo poema se existe domnem comrcio nem benodoaomesmo no-poema, ou quase, um poemaA contrapelo de cofre gavetargido disco ou escapegrtis esvoaa entoandoo sim mais o noum poema no se furtadoa veia a veia toa

toa como a vidase abre armazen

por isso todo poemase dedica mesmo(beltrano sicarno fulano)quando no portanome senha indicao

escrever transferirsem escrituraatestado ou possecertido

mesmo na dvidamesmo na dvidasalto sem proteoo poema escapolepronto se foisem controlede si autorizadoum mote para outros & mais outrosao infinitore ver ber a r

(30.XII.04)UFBA Instituto de Letras :: Prof. Lvia Maria Natlia SSantos ::Seleo de textos

1

{NASCIMENTO, Evando. Dedicatria. In:___. Retrato Desnatural (dirios 2004 a 2007). Rio de Janeiro: Record, 2008}

I.

Por viver muitos anos dentro do matomoda aveO menino pegou um olhar de pssaro Contraiu viso Fontana.Por forma que ele enxergava as coisaspor igualcomo os pssaros enxergam.As coisas ainda inominadas.gua no era ainda a palavra gua.Pedra no era ainda a palavra pedra.E tal.As palavras eram livres de gramticas epodiam ficar em qualquer posio.Por forma que o menino podia inaugurar.Podia dar s pedras costumes de flor.Podia dar ao canto formato de sol.E, se quisesse caber em uma abelha, eras abrir a palavra abelha e entrar dentrodela.Como se fosse a infncia da lngua.

{BARROS, Manoel de. Cano do ver. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004}

SONATA AO LUAR

Sombra Boa no tinha e-mail.Escreveu um bilhete:Maria me espera debaixo do ingazeiroquando a lua estiver arta.Amarrou o bilhete no pescoo do cachorroe atiou:Vai, Ramela, passa!Ramela alcanou a cozinha num timo.Maria leu e sorriu.Quando a lua ficou arta Maria estava.E o amor se fezSob um luar sem defeito de abril.

{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004}

VENTO

Se a gente jogar uma pedra no ventoEle nem olha pra trs.Se a gente atacar o vento com uma enxadaEle nem sai sangue da bunda.Ele no di nada.Vento no tem tripa.Se a gente enfiar uma faca no ventoEle nem faz ui.A gente estudou no Colgio que vento o ar em movimento.E que o ar em movimento vento.Eu quis uma vez implantar uma costelano vento.Depois me ensinaram que vento no temorganismo.Fiquei estudado.

{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004}

O COPO

Estava o jacar na beira do brejotomando um copo de sol.Foi o meninoE tascou uma pedraNo olho do jacar.O bicho soltou trs urrosE quebrou o silncio do lugar.Os cacos do silncio ficaram espalhadosna praia.O copo de sol no rachou nem.

{BARROS, Manoel de. Desenhos de uma voz. In:___. Poemas Rupestres. Rio de Janeiro: Record, 2004}

NOTCIA DE JORNALHaroldo Barbosa e Luiz Reis

Tentou contra a existncia num humilde barracoJoana de talpor causa de um tal Joo.

Depois de medicada retirou-se pro seu lar

A, a notcia carece de exatido:O lar no mais existe, ningum volta ao que acabou.Joana mais uma mulata triste que errou.Errou na dose, errou no amor,Joana errou de Joo,Ningum notou.Ningum morouNa dor que era o seu malA dor da gente no sai no jornal

NO CORPO

De que vale tentar reconstruir com palavrasO que o vero levouEntre nuvens e risosJunto com o jornal velho pelos aresO sonho na boca, o incndio na cama,o apelo da noiteAgora so apenas estacontrao (este claro)do maxilar dentro do rosto.A poesia o presente.

{GULLAR, Ferreira. No corpo. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008}

SUBVERSIVA

A poesiaQuando chegaNo respeita nada.

Nem pai nem me. Quando ela chegaDe qualquer de seus abismos

Desconhece o Estado e a Sociedade CivilInfringe o Cdigo de guasRelincha

Como puta Nova Em frente ao Palcio da Alvorada.

E s depoisReconsidera: beijaNos olhos os que ganham mal Embala no colo Os que tm sede de felicidade E de justia.

E promete incendiar o pas.

{GULLAR, Ferreira. Subversiva. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008}

POEMA BRASILEIRONo Piau de cada 100 crianas que nascem78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piaude cada 100 crianas que nascem78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piaude cada 100 crianas que nascem78 morremantesde completar8 anos de idade

Antes de completar 8 anos de idadeAntes de completar 8 anos de idadeAntes de completar 8 anos de idadeAntes de completar 8 anos de idade

{GULLAR, Ferreira. Poema Brasileiro. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008}

UM SORRISO

Quandocom minhas mos de labaredate acendo e em rosaembaixote espetalasquandocom meu facho aceso e cegopenetro a noite de tua flor que exalaurinae melque busco com toda essa assassinafria de macho?que busco euem fogoaqui embaixo?seno colher com a repentinamo do delriouma outra flor: a do sorrisoque no alto o teu rosto ilumina?

{GULLAR, Ferreira. Um sorriso. In:___. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008}

Reinveno

A vida s possvelreinventada.

Anda o sol pelas campinase passeia a mo douradapelas guas, pelas folhas...Ah! tudo bolhasque vem de fundas piscinasde ilusionismo... mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida, a vida s possvelreinventada.

Vem a lua, vem, retiraas algemas dos meus braos.Projeto-me por espaoscheios da tua Figura.Tudo mentira! Mentirada lua, na noite escura.

No te encontro, no te alcano...S no tempo equilibrada, desprendo-me do balanoque alm do tempo me leva.S na treva, fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida, a vida s possvel reinventada.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

TRANSFORMAO DO DANARINO

Nasce da sombra o danarino,de um ovo de seda e mistrio.E seu perfil transparente,e sua carne a de um inseto.

Eu o amo como s borboletas, asa das liblulas - e erro

no seu mundo sem solo, reino,que se vai tornando sidreo.

Suas tnues mos nada tocam,e olha entre verdes guas, cego.Cada posio de seu corpo um smbolo instantneo e hermtico.

Toma nos lbios o silncioe um peixe bebendo o mar, quieto.Gira, e sbito se divide,como espelho que cai de um prego.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Cano

Pus o meu sonho num navioe o navio em cima do mar;- depois, abri o mar com as mos,para o meu sonho naufragar

Minhas mos ainda esto molhadasdo azul das ondas entreabertas,e a cor que escorre de meus dedos colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,a noite se curva de frio;debaixo da gua vai morrendomeu sonho, dentro de um navio...

Chorarei quanto for preciso,para fazer com que o mar cresa,e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desaparea.

Depois, tudo estar perfeito;praia lisa, guas ordenadas,meus olhos secos como pedrase as minhas duas mos quebradas.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Cano

No desequilbrio dos mares,as proas giram sozinhas...Numa das naves que afundaram que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os sculossem desespero e sem desgosto,e morri de infinitas mortesguardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregarammeu olhos, entre guas e areias,cegaram como os das esttuas,a tudo quanto existe alheias.

Minhas mos pararam sobre o are endureceram junto ao vento,e perderam a cor que tinhame a lembrana do movimento.

E o sorriso que eu te levavadesprendeu-se e caiu de mim:e s talvez ele ainda vivadentro destas guas sem fim.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Motivo

Eu canto porque o instante existee a minha vida est completa.No sou alegre nem sou triste:sou poeta.

Irmo das coisas fugidias, no sinto gozo nem tormento.Atravesso noites e diasno vento.

Se desmorono ou se edifico, se permaneo ou me desfao, no sei, no sei. No sei se ficoou passo.

Sei que canto. E a cano tudo.Tem sangue eterno a asa ritmada.E um dia sei que estarei mudo: mais nada.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Retrato

Eu no tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos to vazios, nem o lbio amargo.

Eu no tinha estas mos sem fora, to paradas e frias e mortas;eu no tinha este coraoque nem se mostra.

Eu no dei por esta mudana, to simples, to certa, to fcil: Em que espelho ficou perdidaa minha face?

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Marinha

O barco negro sobre o azul.

Sobre o azul os peixes so negros.

Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.

Sobre o azul, os peixes so negros.Negras so as vozes dos pescadores,atirando-se palavras no azul.

o ltimo azul do mar e do cu.

A noite j vem, dos lados de Burma,toda negra,molhada de azul:

a noite que chega tambm do mar.{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

PRINCIPIANTE

Sua mo mal se movimenta,custa a escorregar pela mesa,caracol no jardim da cincia,desenrolando letra a letraa obscura linha do seu nome.

Ah, como leve o tomo puro,e gil o equilbrio do mundo,e rpido, e clere, o cursodo cu, do destino de tudo!

Mas na terra o plido alunodevagar escreve o seu nome.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

Leveza

Leve o pssaro:e a sua sombra voante,mais leve.

E a cascata areade sua garganta,mais leve. E o que lembra, ouvindo-se deslizar seu canto,mais leve. E o desejo rpidodesse mais antigo instante, mais leve.E a fuga invisveldo amargo passante,mais leve.

{MEIRELES, Ceclia. Obras Completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.}

VERSOS ESCRITOS NGUA

Os poucos versos que a vo,Em lugar de outros que os ponho.Tu que me ls, deixo ao teu sonhoImaginar como sero

Neles pors tua tristezaOu bem teu jbilo, e, talvez,Lhes achars, tu que me ls,Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu no os amou.Meus pobres versos comovidos!Por isso fiquem esquecidosOnde o mau vento os atirou.

{BANDEIRA, Manuel. In:___. A cinza das horas. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

BalezinhosNa feira livre do arrabaldezinho Um homem loquaz apregoa balezinhos de cor: - "O melhor divertimento para as crianas!" Em redor dele h um ajuntamento de menininhos pobres, Fitando com olhos muito redondos os grandes balezinhos muito redondos.No entanto a feira burburinha. Vo chegando as burguesinhas pobres, E as criadas das burguesinhas ricas, E mulheres do povo, e as lavadeiras da redondeza.Nas bancas de peixe, Nas barraquinhas de cereais, Junto s cestas de hortalias O tosto regateado com acrimnia.Os meninos pobres no vem as ervilhas tenras, Os tomatinhos vermelhos, Nem as frutas, Nem nada.Sente-se bem que para eles ali na feira os balezinhos de cor so a [nica mercadoria til e verdadeiramente indispensvel.O vendedor infatigvel apregoa: - "O melhor divertimento para as crianas!" E em torno do homem loquaz os menininhos pobres fazem um [crculo inamovvel de desejo e espanto.{BANDEIRA, Manuel. In:___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Teresa

A primeira vez que vi TeresaAchei que ela tinha pernas estpidasAchei tambm que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novoAchei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez no vi mais nadaOs cus se misturaram com a terraE o esprito de Deus voltou a se mover sobre a face das guas.{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

A morte absoluta

Morrer.Morrer de corpo e de alma.Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,A exangue mscara de cera,Cercada de flores,Que apodrecero - felizes! - num dia,Banhada de lgrimasNascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...A caminho do cu?Mas que cu pode satisfazer teu sonho de cu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,A lembrana de uma sombraEm nenhum corao, em nenhum pensamento,Em nenhuma epiderme.

Morrer to completamenteQue um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,- Sem deixar sequer esse nome.

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Lira dos cinquentanos. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Meninos carvoeiros

Os meninos carvoeirosPassam a caminho da cidade. Eh, carvoero!E vo tocando os animais com um relho enorme.

Os burros so magrinhos e velhos.Cada um leva seis sacos de carvo de lenha.A aniagem toda remendada.Os carves caem.(Pela boca da noite vem uma velhinha que os recolhe, dobrando-se com um gemido.)

Eh, carvoero!S mesmo estas crianas raquticasVo bem com estes burrinhos descadeirados.A madrugada ingnua parece feita para eles...Pequenina, ingnua misria!Adorveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincsseis!Eh, carvoero!

Quando voltam, vm mordendo num po encarvoado,Encarapitados nas alimrias,Apostando corrida,Danando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados.

Petrpolis, 1921

{BANDEIRA, Manuel. In: ___. Ritmo dissoluto. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Pneumotrax

Febre, hemoptise, dispnia e suores noturnos.A vida inteira que podia ter sido e que no foi.Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o mdico: Diga trinta e trs. Trinta e trs . . . trinta e trs . . . trinta e trs . . . Respire.

...............................................................................................................

O senhor tem uma escavao no pulmo esquerdo e o pulmo direito infiltrado. Ento, doutor, no possvel tentar o pneumotrax? No. A nica coisa a fazer tocar um tango argentino.

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Profundamente

Quando ontem adormeciNa noite de So JooHavia alegria e rumorVozes cantigas e risosAo p das fogueiras acesas.

No meio da noite desperteiNo ouvi mais vozes nem risosApenas balesPassavam errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO rudo de um bondeCortava o silncioComo um tnel.Onde estavam os que h poucoDanavamCantavamE riamAo p das fogueiras acesas?

Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente.

*

Quando eu tinha seis anosNo pude ver o fim da festa de So JooPorque adormeci.

Hoje no ouo mais as vozes daquele tempoMinha avMeu avTotnio RodriguesTomsiaRosaOnde esto todos eles? Esto todos dormindoEsto todos deitadosDormindoProfundamente.

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Libertinagem. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Vou-me embora pra Pasrgada

Vou-me embora pra PasrgadaL sou amigo do reiL tenho a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasrgada

Vou-me embora pra PasrgadaAqui eu no sou felizL a existncia uma aventuraDe tal modo inconseqenteQue Joana a Louca de EspanhaRainha e falsa dementeVem a ser contraparenteDa nora que eu nunca tive

E como farei ginsticaAndarei de bicicletaMontarei em burro braboSubirei no pau-de-seboTomarei banhos de mar!E quando estiver cansadoDeito na beira do rioMando chamar a me-d'guaPra me contar as histriasQue no tempo de eu meninoRosa vinha me contarVou-me embora pra Pasrgada

Em Pasrgada tem tudo outra civilizaoTem um processo seguro De impedir a concepoTem telefone automticoTem alcalide vontadeTem prostitutas bonitas Para a gente namorar

E quando eu estiver mais tristeMas triste de no ter jeitoQuando de noite me der Vontade de me matar L sou amigo do rei Terei a mulher que eu queroNa cama que escolhereiVou-me embora pra Pasrgada

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Evocao do Recife

RecifeNo a Veneza americanaNo a Mauritsstad dos armadores das ndias OcidentaisNo o Recife dos MascatesNem mesmo o Recife que aprendi a amar depois Recife das revolues libertriasMas o Recife sem histria nem literaturaRecife sem mais nadaRecife da minha infnciaA rua da Unio onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraas da casa de dona Aninha ViegasTotnio Rodrigues era muito velho e botava o pincen na ponta do narizDepois do jantar as famlias tomavam a calada com cadeirasmexericos namoros risadasA gente brincava no meio da ruaOs meninos gritavam:Coelho sai!No sai!

A distncia as vozes macias das meninas politonavam:Roseira d-me uma rosaCraveiro d-me um boto

(Dessas rosas muita rosaTer morrido em boto...)De repentenos longos da noiteum sinoUma pessoa grande dizia:Fogo em Santo Antnio!Outra contrariava: So Jos!Totnio Rodrigues achava sempre que era so Jos.Os homens punham o chapu saam fumandoE eu tinha raiva de ser menino porque no podia ir ver o fogo.

Rua da Unio...Como eram lindos os montes das ruas da minha infnciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)Atrs de casa ficava a Rua da Saudade......onde se ia fumar escondidoDo lado de l era o cais da Rua da Aurora......onde se ia pescar escondidoCapiberibe CapiberibeL longe o sertozinho de CaxangBanheiros de palhaUm dia eu vi uma moa nuinha no banhoFiquei parado o corao batendoEla se riuFoi o meu primeiro alumbramentoCheia! As cheias! Barro boi morto rvores destroos redemoinho sumiuE nos peges da ponte do trem de ferroos caboclos destemidos em jangadas de bananeiras

NovenasCavalhadasE eu me deitei no colo da menina e ela comeoua passar a mo nos meus cabelosCapiberibe CapiberibeRua da Unio onde todas as tardes passava a preta das bananasCom o xale vistoso de pano da CostaE o vendedor de roletes de canaO de amendoimque se chamava midubim e no era torrado era cozidoMe lembro de todos os preges:Ovos frescos e baratosDez ovos por uma patacaFoi h muito tempo...A vida no me chegava pelos jornais nem pelos livrosVinha da boca do povo na lngua errada do povoLngua certa do povoPorque ele que fala gostoso o portugus do BrasilAo passo que nsO que fazemos macaquearA sintaxe lusadaA vida com uma poro de coisas que eu no entendia bemTerras que no sabia onde ficavamRecife...Rua da Unio...A casa de meu av...Nunca pensei que ela acabasse!Tudo l parecia impregnado de eternidadeRecife...Meu av morto.Recife morto, Recife bom, Recife brasileirocomo a casa de meu av.

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Poema do beco

Que importa a paisagem, a Glria, a baa, a linha do horizonte? O que eu vejo o beco.{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Poema tirado de uma notcia de jornal Joo Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilnia num barraco sem nmeroUma noite ele chegou no bar Vinte de NovembroBebeuCantouDanouDepois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

Trem de ferro

Caf com poCaf com poCaf com po

Virge Maria que foi isso maquinista?

Agora simCaf com poAgora simVoa, fumaaCorre, cercaAi seu foguistaBota fogoNa fornalhaQue eu precisoMuita foraMuita foraMuita fora(trem de ferro, trem de ferro)

O...Foge, bichoFoge, povoPassa pontePassa postePassa pastoPassa boiPassa boiadaPassa galhoDa ingazeiraDebruadaNo riachoQue vontadeDe cantar!O...(caf com po muito bom)

Quando me prenderoNo canaviCada p de canaEra um oficiO...Menina bonitaDo vestido verdeMe d tua bocaPra matar minha sedeO...Vou mimbora vou mimboraNo gosto daquiNasci no sertoSou de OuricuriO...

Vou depressaVou correndoVou na todaQue s levo Pouca gentePouca gentePouca gente...(trem de ferro, trem de ferro)

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

ltima Cano do BecoBeco que cantei num dsticoCheio de elipses mentais,Beco das minhas tristezas,Das minhas perplexidades(Mas tambm dos meus amores,Dos meus beijos, dos meus sonhos),Adeus para nunca mais!Vo demolir esta casa.Mas meu quarto vai ficar,No como forma imperfeitaNeste mundo de aparncias:Vai ficar na eternidade,Com seus livros, com seus quadros,Intacto, suspenso no ar!Beco de saras de fogo,De paixes sem amanhs,Quanta luz mediterrneaNo esplendor da adolescnciaNo recolheu nestas pedrasO orvalho das madrugadas,A pureza das manhs!Beco das minhas tristezas.No me envergonhei de ti!Foste rua de mulheres?Todas so filhas de Deus!Dantes foram carmelitas...E eras s de pobres quando,Pobre, vim morar aqui.Lapa-Lapa do Desterro-,Lapa que tanto pecais!(Mas quando bate seis horas,Na primeira voz dos sinos,Como na voz que anunciavaA conceio de Maria,Que graas angelicais!)Nossa Senhora do Carmo,De l de cima do altar,Pede esmolas para os pobres,Para mulheres to tristes,Para mulheres to negras,Que vm nas portas do temploDe noite se agasalhar.Beco que nasceste sombraDe paredes conventuais,s como a vida, que santaPesar de todas as quedas.Por isso te amei constanteE canto para dizer-teAdeus para nunca mais!

{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

"A ltima Cano do Beco" o melhor poema para exemplificar como em minha poesia quase tudo resulta de um jogo de intuies. No fao poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer. E ela quer s vezes em horas impossveis: no meio da noite, ou quando estou em cima da hora para ir dar uma aula na Faculdade de Filosofia ou sair para um jantar de cerimnia... "A ltima Cano do Beco" nasceu num momento destes, s que o jantar no era de cerimnia. Na vspera de me mudar da Rua Morais e Vale, s seis e tanto da tarde, tinha eu acabado de arrumar meus troos e cara exausto na cama. Exausto da arrumao e um pouco tambm da emoo de deixar aquele ambiente, onde vivera nove anos. De repente a emoo se ritmou em redondilhas, escrevi a primeira estrofe, mas era hora de despedir-me para sair, vesti-me com os versos surdindo na cabea, desci rua, no Beco das Carmelitas me lembrei de Raul de Leoni, e os versos vindo sempre, e eu com medo de esquec-los, tomei um bonde, saquei do bolso um pedao de papel e um lpis, fui tomando as minhas notas numa estenografia improvisada, seno quando l se quebrou a ponta do lpis, os versos no paravam...Chegando ao meu destino, pedi um lpis e escrevi o que ainda guardava de cor...De volta a casa, bati os versos na mquina efiquei espantadssimo ao verificar que o poema se compusera, minha revelia, em sete estrofes de sete versos de sete slabas. {BANDEIRA, Manuel. In: Itinerrio de Pasrgada. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soubeEscolher bem uma gravata;Pernambucano a quem repugnaA faca do pernambucano;Poeta ruim que na arte da prosaEnvelheceu na infncia da arte,E at mesmo escrevendo crnicasFicou cronista de provncia;Arquiteto falhado, msicoFalhado (engoliu um diaUm piano, mas o tecladoFicou de fora); sem famliaReligio ou filosofia;Mal tendo a inquietao de espritoQue vem do sobrenatural,E em matria de profissoUm tsico profissional.{BANDEIRA, Manuel. In:___. Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993}

INICIAO AMOROSA

A rede entre duas mangueirasbalanava no mundo profundo.O dia era quente, sem vento.O sol l em cima,as folhas no meio,o dia era quente.E como eu no tinha nada que fazer vivia namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um dia ela veio para a rede,se enroscou nos meus braos,me deu um abrao,me deu as maminhasque eram s minhas.A rede virou,o mundo afundou.

Depois fui para a camafebre 40 graus de febre.Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas, girava no espao verde.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

Ausncia

Por muito tempo achei que a ausncia falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje no a lastimo.No h falta na ausncia.A ausncia um estar em mim.E sinto-a, branca, to pegada, aconchegada nos meus braos,que rio e dano e invento exclamaes alegres,porque a ausncia, essa ausncia assimilada,ningum a rouba mais de mim.

Carlos Drummond de Andrade Graa Drummond

Ausncia

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que so doces.Porque nada te poderei dar seno a mgoa de me veres eternamente exausto.No entanto a tua presena qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.No te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado. Quero s que surjas em mim como a f nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldioada.Que ficou sobre a minha carne como ndoa do passado. Eu deixarei... tu irs e encostars a tua face em outra face. Teus dedos enlaaro outros dedos e tu desabrochars para a madrugada. Mas tu no sabers que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande ntimo da noite. Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa. Porque meus dedos enlaaram os dedos da nvoa suspensos no espao. E eu trouxe at mim a misteriosa essncia do teu abandono desordenado. Eu ficarei s como os veleiros nos pontos silenciosos. Mas eu te possuirei como ningum porque poderei partir. E todas as lamentaes do mar, do vento, do cu, das aves, das estrelas. Sero a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

MORAES, Vincius de. ANTOLOGIA POTICA.

O lutadorLutar com palavras a luta mais v.Entanto lutamosmal rompe a manh.So muitas, eu pouco.Algumas, to fortescomo o javali.No me julgo louco.Se o fosse, teria poder de encant-las.Mas lcido e frio, apareo e tentoapanhar algumaspara meu sustentonum dia de vida.Deixam-se enlaar,tontas carciae sbito fogeme no h ameaae nem h sevciaque as traga de novoao centro da praa.Insisto, solerte.Busco persuad-las.Ser-lhes-ei escravode rara humildade.Guardarei sigilode nosso comrcio.Na voz, nenhum travode zanga ou desgosto.Sem me ouvir deslizam,perpassam levssimase viram-me o rosto.Lutar com palavrasparece sem fruto.No tm carne e sangue...Entretanto, luto.Palavra, palavra(digo exasperado),se me desafias,aceito o combate.Quisera possuir-teneste escampado,sem roteiro de unha

ou marca de dentenessa pele clara.Preferes o amorde uma posse impurae que venha o gozoda maior tortura.Luto corpo a corpo,luto todo o tempo,sem maior proveitoque o da caa ao vento.No encontro vestes,no seguro formas, fluido inimigoque me dobra os msculose ri-se das normasda boa peleja.Iludo-me s vezes,pressinto que a entregase consumir.J vejo palavrasem coro submisso,esta me ofertandoseu velho calor,outra sua glriafeita de mistrio,outra seu desdm,outra seu cime,e um sapiente amorme ensina a fruirde cada palavraa essncia captada,o sutil queixume.Mas ai! o instantede entreabrir os olhos:entre beijo e boca,tudo se evapora.O ciclo do diaora se consumae o intil duelojamais se resolve.O teu rosto belo, palavra, esplendena curva da noiteque toda me envolve.Tamanha paixoe nenhum peclio.Cerradas as portas,a luta prosseguenas ruas do sono.

ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.As casas espiam os homensque correm atrs de mulheres.A tarde talvez fosse azul,no houvesse tantos desejos.O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu corao.Porm meus olhosno perguntam nada.O homem atrs do bigode srio, simples e forte.Quase no conversa.Tem poucos , raros amigoso homem atrs dos culos e do bigode.Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu no era Deusse sabias que eu era fraco.Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundo,seria uma rima, no seria uma soluo.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto meu corao.Eu no devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

Procura da poesia

No faas versos sobre acontecimentos.No h criao nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida um sol esttico,no aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversrios, os incidentes pessoais no contam.No faas poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortvel corpo, to infenso efuso lrica.Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuroso indiferentes.Nem me reveles teus sentimentos,que se prevalecem do equvoco e tentam a longa viagem.O que pensas e sentes, isso ainda no poesia.

No cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto no o movimento das mquinas nem o segredo das casas.No msica ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto linha de espuma.

O canto no a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperana nada significam.A poesia (no tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

No dramatizes, no invoques,no indagues. No percas tempo em mentir.No te aborreas.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abuses, vossos esqueletos de famliadesaparecem na curva do tempo, algo imprestvel.

No recomponhastua sepultada e merencria infncia.No osciles entre o espelho e amemria em dissipao.Que se dissipou, no era poesia.Que se partiu, cristal no era.Penetra surdamente no reino das palavras.L esto os poemas que esperam ser escritos.Esto paralisados, mas no h desespero,h calma e frescura na superfcie intata.Ei-los ss e mudos, em estado de dicionrio.Convive com teus poemas, antes de escrev-los.Tem pacincia se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silncio.No forces o poema a desprender-se do limbo.No colhas no cho o poema que se perdeu.No adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitar sua forma definitiva e concentradano espao.

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrvel, que lhe deres:Trouxeste a chave?

Repara:ermas de melodia e conceitoelas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda midas e impregnadas de sono,rolam num rio difcil e se transformam em desprezo.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Rosa do povo. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

LIQUIDAOA casa foi vendida com todas as lembranastodos os mveis todos os pesadelostodos os pecados cometidos ou em via de cometera casa foi vendida com seu bater de portascom seu vento encanado sua vista do mundoseus imponderveispor vinte, vinte contos.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Boitempo. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

Poesia

Gastei uma hora pensando em um versoque a pena no quer escrever.No entanto ele est c dentroinquieto, vivo. Ele est c dentroe no quer sair.Mas a poesia deste momentoinunda minha vida inteira.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

Os poemas

Os poemas so pssaros que chegamno se sabe de onde e pousamno livro que ls.Quando fechas o livro, eles alam vocomo de um alapo.Eles no tm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mose partem.E olhas, ento, essas tuas mos vazias,no maravilhoso espanto de saberesque o alimento deles j estava em ti...

{QUINTANA, Mrio. Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM,1980.}

ANUNCIAO DO POETA

Ave, vido.Ave, fome incansvel e boca enorme,come.Da parte do Altssimo te concedoque no descansar e tudo te ferir de morte:o lixo, a catedral e a forma das mos.Ave, cheio de dor.

{PRADO, Adlia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004}

ORFANDADE

Meu Deus,me d cinco anos.Me d um p de fedegoso com formiga preta,me d um Natal e sua vspera,o ressonar das pessoas no quartinho.

Me d a negrinha Fia pra eu brincar,me d uma noite pra eu dormir com minha me.me d a mo, me cura de ser grande, meu Deus, meu pai,meu pai.

{PRADO, Adlia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004}

AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXODesejo, como quem sente fome ou sede,um caminho de areia margeado de boninas,onde s cabem a bicicleta e seu dono.Desejo, com uma funda saudadede homem ficado rfo pequenino,um regao e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedospara um forte carinho em minha nuca.Brotam os matinhos depois da chuva,brotam desejos do corpo.Na alma, o querer de um mundo to pequenocomo o que tem nas mos o Menino Jesus de Praga.

{PRADO, Adlia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004}

JANELAJanela, palavra linda.Janela o bater das asas da borboleta amarela.Abre pra fora as duas folhas de madeira toa pintada,janela jeca, de azul.Eu pulo voc pra dentro e pra fora, monto a cavalo em voc,

meu p esbarra no cho.Janela sobre o mundo aberta, por onde vio casamento da Anita esperando nenm, a medo Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vimeu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:minhas intenes com sua filha so as melhores possveis. janela com tramela, brincadeira de ladro,clarabia na minha alma,olho no meu corao.

{PRADO, Adlia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004}

COM LICENA POTICAQuando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espcie ainda envergonhada.Aceito os subterfgios que me cabem,sem precisar mentir.No sou to feia que no possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora no creio em parto sem dor.Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.Inauguro linhagens, fundo reinos- dor no amargura.Minha tristeza no tem pedigree,j a minha vontade de alegria,sua raiz vai ao meu mil av.Vai ser coxo na vida maldio pra homem.Mulher desdobrvel. Eu Sou.

{PRADO, Adlia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2004}

Nada, Esta EspumaPor afrontamento do desejo insisto na maldade de escrever mas no sei se a deusa sobe superfcie ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero tanto os seios da sereia.{Ana Cristina Csar}

PRIMEIRO POEMA

Ao F. Paulo Mendes, amigo

Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas?Trago a paz e as distncias que veem comigona boca tenho mundos e nos olhos palavras.Ouvi-me.

Todas as coisas so palavras minhas:a mais pura das nuvensa mais pura que veio de longe e no se dissolveuas colunas incolores alm se levantandoquebradas luminosas lquidas colunas colunasos cavalos que se empinam sobre a espumae o calmo silncio povoando o mar.Minhas palavras.Antigas porm h pouco descobertas.Lentas como o escurecer das nuvens refletidascomo o tremular tranqilo da vaga adolescente.Materiais lmpidas palpveisfrias e mornas coloridas de ondas e descendentes pssaros.Resumida numa nica palavraimpronuncivel Palavra.

Mas eu no sou Senhorembora venham comigo a Msica e o Poema:Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondase s tenho palavras?Ouvi minha voz de anjo que acordou:

Sou Poeta.

21.2.48

{FAUSTINO, Mrio. Poesia completa; Poesia traduzida. So Paulo: Max Limonad, 1985}

O capoeira

- Qu apanh sordado?- O qu?- Qu apanh?Pernas e cabeas na calada.

{ANDRADE, Oswald. Poemas da Colonizao. In:__. Pau-Brasil (Obras completas.). So Paulo: globo, 2002.}

Autopsicografia O poeta um fingidor. Finge to completamenteQue chega a fingir que dor A dor que deveras sente.

E os que lem o que escreve, Na dor lida sentem bem, No as duas que ele teve, Mas s a que eles no tm.

E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razo, Esse comboio de corda Que se chama corao.

{Fernando Pessoa}

Psicologia da composioA Antonio Rangel Bandeira

I

Saio de meu poemacomo quem lava as mos.

Algumas conchas tornaram-se,que o sol da atenocristalizou; alguma palavraque desabrochei, como a um pssaro.

Talvez alguma conchadessas (ou pssaro) lembre,cncava, o corpo do gestoextinto que o ar j preencheu;

talvez, como a camisavazia, que despi.

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Psicologia da composioA Ldo Ivo

II

Esta filha brancame proscreve o sonho,me incita ao versontido e preciso.

Eu me refugionesta praia puraonde nada existeem que a noite pouse.

Como no h noitecessa toda fonte;como no h fontecessa toda fuga;como no h fuganada lembra o fluirde meu tempo, ao ventoque nele sopra o tempo.

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Psicologia da composio

III

Neste papelpode teu salvirar cinza;

pode o limovirar pedra;o sol da peleo trigo do corpovirar cinza

(Teme, por issoa jovem manhsobre as floresda vspera.)

Neste papellogo fenecemas roxas, mornasflores morais;todas fluidasflores da pressa;todas as midasflores do sonho.

(Espera, por isso,que a jovem manhte venha revelaras flores da vspera.)

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Psicologia da composio

IV

O poema, com seus cavalos,quer explodirteu tempo claro; romperseu branco fio, seu cimentomudo e fresco.

(O descuido ficara abertode par em par;um sonho passou deixandofiapos, logo rvores instantneascoagulando a preguia.)

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Psicologia da composio

V

Vivo com certas palavras,abelhas domsticas.

Do dia aberto(branco guarda-sol)esses lcidos furos retiramo fio de mel(do dia que abriutambm como flor)

que na noite(poo onde vai tombara area flor)persistir: lourosabor, e cido,contra o acar do podre

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Psicologia da composio

VINo a forma encontradacomo uma concha, perdidanos frouxos areaiscomo cabelos;

no a forma obtidaem lance santo ou raro,tiro nas lebres de vidrodo invisvel;

mas a forma atingidacomo a ponta do noveloque a ateno, lenta,desenrola,aranha; como o mais extremodesse fio frgil, que se rompeao peso, sempre, das mosenormes.

{MELO NETO, Joo Cabral de. Psicologia da composio. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994}

Os Objetos

Os objetospermanecem claros.

Habita a moldurauma mulher de facescor-de-rosa.

Sobre a mesa de mrmoreum cavaleiro de porcelanasada as visitas.

A caneta ainda escrevecom a mesma tintade um azul levemente melanclico.

Na gaveta, dormindosob cartas e poemas,o revlver aguarda.

{FILHO, Ruy Espinheira. Helboro (1966-1973. In:__. Cano de Beatriz e outros poemas ; Poesia Reunida 1966/1990. So Paulo: Brasiliense, 1990}

In Angello cum libelloA Antonio Carlos Secchin

Nunca me procuremaqui, neste canto.Pois, se aqui estou,no estou, no entanto.

Na verdade, aquih s aparnciade algum que se vailonge de sua essncia.

A idade do serrote

As tmporas de Antonieta. As tmporas da begnia.

As tmporas da rom, as tmporas da ma, as tmporasda hortel.

As pitangas tempors. O tempo temporo. O tempo-ser.As tmporas do tempo. O tempo da ona.

As tmporas da ona. O tampo do tempo.

O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulherestempors.

O tempo atual, superado por um tempo de outra dimenso,e que no aquele tempo. Temporizemos.

{Murilo Mendes}

FUNERAL

Assustadoramente toca o sino.A morte, com seus ternos e tapetessensacionais, conduz, em caracis,dolentes multides to carregadas

de vozes que desguam cemitrios.Exposta a dor dos que ficam suspensos,comeam a florescer outros smbolos:rosas brancas ressurgem nas lembranas.

Os pssaros da noite esto no vento,vozes que vibram dentro do silncio,tumulto na frieza de uma lpide.

Na agonia de viver tudo morre.E o mistrio da vida desenvolve,na morte, novas vidas em instantes.

JOS INCIO VIEIRA DE MELO

ROSA VIVA

Estas rosas que vs em mim so brasas.Por isso, muito cuidado ao tocarem suas pedras ptalas sagradas.

Minhas palavras ardem a forjarestas flores que canto por prazere que do febre e fazem delirar.

Meu corao mesmo a rosa viva.Por isso, muito carinho ao pegarsuas ptalas pedras to aflitas.

JOS INCIO VIEIRA DE MELO

CNTICO DOS CNTICOS

Que as tuas ndegas aventureiras estejam abertaspara o poema em linha reta que te ofereo,que a minha escrita torta e avessachegue linheira na olaria de tua carnee ardas e ardo neste morno fornodas tuas ndegas to abundantes.

Das tuas ndegas to montanhosaso horizonte mais macio e a minha linguagemsaboreia o mel do fel que trazese de teus olhos gemem os arco-rise teu corpo todo um esplendor, uma assombraoe quanta delcia anunciam teus arrepiose tuas ndegas aventureiras to venturosasso uma tempestade de emoes.

Que idioma mgico que tu inventasquando me aventuro por tuas ndegase me perco profundamente e profundamenteme encontro na plenitude cega que tudo enxergae profundamente me encanto cantando unssononeste nosso idioma o novo cntico dos cnticos.

JOS INCIO VIEIRA DE MELO

Poema do livro Roseiral

SETE IRMSPara Remedios Varo

Essas sete musas mal-assombradasde cabeleiras ruivas, encardidas,so santas de bocetas encarnadas,trazem entre as mos minhas sete vidas.

As cabeleiras ruivas dessas musasso trepadeiras msticas em rito,um anelo claro como um orculoa escalar as formas breves do mito.

So sete noites vividas por Borges,so sete fadas da ilha de Lesbos,so sete acordes de Joaquin Rodrigo,so sete facas de Aderaldo, o Cego.

Ah minhas sete irms, filhas de Safo,lamber vossos cus meu paraso!A plenitude de vossas entranhas o aconchego destes meus delrios.

Sete musas grvidas, musas graves,a gravidade no pesa no abrigo.A minha voz um caminho cegocomo Borges, Aderaldo e Rodrigo.

Ah minhas sete irmzinhas serenas,vamos jogar enquanto h tabuleiro,sete damas-rainhas, sete Helenas,sou vosso servo, vosso cavaleiro.

Musas oblongas, ventres salientes,em vossas carnes quentes eu reparo,de fora a fora, com prazer e encanto,as sete faces de Remedios Varo.

JOS INCIO VIEIRA DE MELO

A costureirapara Danielle Jensen

Ela ouve o tecido, ela pousa o ouvido, ela ouve com os olhos. fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaara, distinguindo a linha, o intervalo, o vo, o entreato, atenta

para o que na fala geomtrica e repetida dos fios um outro vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; culospostos para a escuta, a escuta desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;fecha os olhos; ouvecom as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo, os limites, a funo, a oficina,a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser; e costura como quem mo e mquina descosturasse

o dicionrio, rasgando em moles mbiles seus hbitos, o vinco de sua farda.

{FERRAZ, Eucana. In:___. Cinemateca. So Paulo: Companhia das Letras, 2008.} {FERRAZ, Eucana. In:___. Cinemateca. Lisboa: Quasi Edies, 2009.}

Non sense

1. Fila: arranjo linear do caos 2. Reunio: tudo que vivo est l fora 3. Papel de seda: pele das coisas inesperadas 4. Pedra: guas mal criadas 5. Vida: distraes antes da morte 6. Esttica: jejum diante da mesa de iguarias 7. Insistncia: plissado regular do tecido 8. Diamante: susto de cristal 9. Gota: mundo em miniatura 10. Amor eterno: voc nunca vai saber o que eu jamais esquecerei 11. O camafeu a casa do segredo 12. Flores: quando a natureza d gritos de xtase 13. Traio: mesmo filtrada, a gua um suco de vidro

{Eliana Mara http://inscricoessempreabertas.blogspot.com/}

ComooSegunda-feira, 23 de Abril de 2010

Tenho verdadeira comoo pelo ser humano. Sua arrogncia, seu apelo, sua solido. Todos so doces, at aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, esto definitivamente perdidos. isso que causa essa minha enorme comoo, a ponto de eu chorar forte por algum que vi uma nica vez na vida. Ou de vibrar, feliz, ao conhecer olhos adolescentes sem qualquer mcula, completamente abertos ao que vir. Sentir pele macia de beb derreter-se em minhas mos tambm comoo, ternura se espalhando, vontade de reter o curso do mundo, guardando o beb no fundo das mos. E quantos olhos verdes, pretos, castanhos, azuis andando por a, meu Deus. Para que tanta gente nas ruas, nos apartamentos, nas casas, nas varandas? Para que essa povoao sem fim, se tudo um dia envelhece e sofre e desaparece? Oh, como no amar quem me odeia se seremos, juntos, passageiros de Caronte; e possivelmente contaremos uma anedota enquanto atravessarmos o rio, para assim quebrarmos o tdio de uma existncia fleumtica e solene, distante e perdida... Diga-me, como no me comover com o imprio dos homens, se fotografias de pessoas bailando sempre desaparecem no poro do castelo?

{Angela Vilma wwwaeronauta.blogspot.com}

Da Calma e do Silncio

Quando eu mordera palavra,por favor,no me apressem,quero mascar,rasgar entre os dentes,a pele, os ossos, o tutanodo verbo,para assim versejaro mago das coisas.

Quando meu olharse perder no nada,por favor,no me despertem,quero reter,no adentro da ris,a menor sombra,do nfimo movimento.

Quando meus psabrandarem a marcha,por favor,no me forcem.Caminhar para qu?Deixem-me quedar,deixem-me quieta,na aparente inrcia.Nem todo viandanteanda estradas,h mundos submersos,que s o silncioda poesia penetra.

EVARISTO, Conceio. Da calma e do Silncio. In:___. Poemas de recordao e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

EU-MULHER

Uma gota de leiteme escorre entre os seios.Uma mancha de sangueme enfeita entre as pernasMeia palavra mordidame foge da boca.Vagos desejos insinuam esperanas.Eu-mulher em rios vermelhosinauguro a vida.Em baixa vozviolento os tmpanos do mundo.Antevejo.Antecipo.Antes-vivoAntes - agora - o que h de vir.Eu fmea-matriz.Eu fora-motriz.Eu-mulherabrigo da sementemoto-contnuodo mundo.

{Conceio Evaristo}

ESTAES INTERNAS

Estou contandocom a primavera.Ultimamenteno tem havido floresDentro de mim;Tenho andadomeio chuvoso,Horizontes nublados,embora tempestuososSo frios, frios.Hoje de manh no abri a janelaSa de surpresa,E de surpresa vi o diaEstava lindo.E fiquei sem vontadeDe mudar minhameteorologia interiorDecididamentevou rompercom este inverno,Estou muito midopor dentro.E para tanto,receita simples,Vou com o ventocomer, devorar,Um raio,um raio de sol.

Jos Carlos Limeira

Aniversrio

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ningum estava morto. Na casa antiga, at eu fazer anos era uma tradio de h sculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religio qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande sade de no perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a famlia, E de no ter as esperanas que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanas, j no sabia ter esperanas. Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de corao e parentesco. O que fui de seres de meia-provncia, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui ai, meu Deus!, o que s hoje sei que fui... A que distncia!... (Nem o acho... ) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme atravs das minhas lgrimas), O que eu sou hoje terem vendido a casa, terem morrido todos, estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fsforo frio... No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo fsico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafsica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como po de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que h aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loia, com mais copos, O aparador com muitas coisas doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alado, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . . Pra, meu corao! No penses! Deixa o pensar na cabea! meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje j no fao anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de no ter trazido o passado roubado na algibeira! ... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

{lvaro de Campos}

RASTROAraripe Coutinho

Arrumo as malasPartoEstou farto de ser mulherA porta fechadaA rosa de vidro desbotouCarlitos me entende caladoPosso ser teus olhos(incenso e mirra)Miro meu gestoTeu sexoMinha mo profanaRasgo com os dentes teus lados.

Pegue no meu ombroQuebre o batom que no gostas.

No me tocasSe me tocasPermaneo exaustaHomem-mulherEntre a vidraaO estilhaoO rastro.

O LoucoPara Altamirando CamacamEnlouqueci, um girassol nasceu na minha boca.Os pssaros j esto fazendo ninhoAtrs da minha orelha.Enlouqueci, o azul explodiu em fevereiro.Vou conhecer Londres no meu bergantim de pirata.As ruas so-me passarela para bailar.No me conheceis, transeuntes?No me conheceis, moa de olhos calmosDo ltimo andar do edifcio?Sou o Louco.Prometi as chuvas do ms passado.Prometi as rvores.Prometi os vinhos.Prometi este intenso azul de fevereiro.Fao promessas maravilhosas.E vede que se cumprem.Abram as portas.Chamem vossos filhos.Chamem vossas noivas.Os garotos vo rir de mim.Por acaso, no quereis que as vossas noivas se divirtam?No h quem no ache graaDo meu aspecto excessivo de profeta.Convidem todo mundo.Trago uma flor no bolso de dentro do paletPara ofertar ao sorriso mais inocente da cidade.No tenham medo.No fao mal a ningum.Sou o Louco.

Affonso Manta[O Retrato de um Poeta]

O Buraco do Espelho

Arnaldo Antunes

o buraco do espelho est fechadoagora eu tenho que ficar aquicom um olho aberto, outro acordadono lado de l onde eu ca

pro lado de c no tem acessomesmo que me chamem pelo nomemesmo que admitam meu regressotoda vez que eu vou a porta some

a janela some na paredea palavra de gua se dissolvena palavra sede, a boca cedeantes de falar, e no se ouve

j tentei dormir a noite inteiraquatro, cinco, seis da madrugadavou ficar ali nessa cadeirauma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho est fechadoagora eu tenho que ficar agorafui pelo abandono abandonadoaqui dentro do lado de fora

(in o carioca - revista de arte e cultura n 2/ julho e agosto 1996)

JOS

E agora, Jos? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, Jos? e agora, voc? voc que sem nome, que zomba dos outros, voc que faz versos, que ama, protesta? e agora, Jos? Est sem mulher, est sem discurso, est sem carinho, j no pode beber, j no pode fumar, cuspir j no pode, a noite esfriou, o dia no veio, o bonde no veio, o riso no veio no veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, Jos? E agora, Jos? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerncia, seu dio - e agora? Com a chave na mo quer abrir a porta, no existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas no h mais. Jos, e agora? Se voc gritasse, se voc gemesse, se voc tocasse a valsa vienense, se voc dormisse, se voc cansasse, se voc morresse... Mas voc no morre, voc duro, Jos! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, voc marcha, Jos! Jos, para onde?

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Jos. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

MOA E SOLDADOMeus olhos espiama rua que passa.

Passam mulheres,passam soldados.Moa bonita foi feita para namorar.Soldado barbudo foi feito parabrigar.

Meus olhos espiamas pernas que passam.Nem todas so grossas...Meus olhos espiam.Passam soldados,...mas todas so pernas.Meus olhos espiam.Tambores, clarinse pernas que passam.Meus olhos espiamespiam espiamsoldados que marchammoas bonitassoldados barbudos...para namorarpara brigar.S eu no brigo.S eu no namoro.

{ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. In:___. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.}

EXLIO Ceclia Meireles

Das tuas guas to verdesNunca mais me esquecerei.Meus lbios mortos de sedePara as ondas inclinei.Romperam-se em teus rochedos:S bebi do que chorei.Perderam-se os meus suspirosDesanimados, no vento.Recordo tanto o martrioEm que andou meu pensamento!E meus sonhos ainda giramComo naquele momento.Os marinheiros cantavam.Ai, noite do mar nascida!Estrelas de luz instvelSaam da gua perdida.Pousavam como assustadasEm redor da minha vida.Dos teus horizontes quietosNunca mais me esquecerei.Por longe que ande, estou perto.Toda em ti me encontrarei.Foste o campo mais funestoPor onde me dissipei.Remos de sonho passavamPor minha melancolia.Como um nufrago entre os salvos,Meu corao se volvia.- Mas nem sobra de palavrasHouve em minha boca fria.No rogava. No chorava.Unicamente morria.