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A Realidade e a Imagem | Manuel Bandeira O arranha-céu sobe no ar puro lavado pela [chuva E desce refletido na poça de lama do pátio. Entre a realidade e a imagem, no chão seco que as separa, Quatro pombas passeiam. A uma passante (trecho) | Baudelaire. Da série “Quadros parisienses”. Trad. Ivan Junqueira A rua em torno era um frenético alarido. Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa, Uma mulher passou, com sua mão suntuosa Erguendo e sacudindo a barra do vestido. Mercês de cima | Drummond. Da série “Estampas de Vila Rica” Pequena prostituta em frente à Mercês de [Cima Dádiva de corpo na tarde cristã. Anjos saídos da portada E nenhum Aleijadinho para recolhê-los. Janela | Drummond Tarde dominga tarde pacificada como os atos definitivos. Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho. Outras estão apenas nascendo, verde polido onde a luz estala. O tronco é o mesmo e todas as folhas são a mesma antiga folha a brotar de seu fim, enquanto roazmente a vida, sem contraste, me destrói. Soneto I (Canto da desaparição) | Jorge de Lima Aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo em que até aves vêm cantar para encerrá-lo. Em cada poço, dorme um cadáver, no fundo, e nos vastos areais – ossadas de cavalo. Entre as aves do céu: igual carnificina: se dormires cansado, à face do deserto, quando acordares hás de te assustar. Por certo, corvos te espreitarão sobre cada colina. E, se entoas teu canto a essas aves (teu canto que é debaixo dos céus, a mais triste canção), vem das aves a voz repetindo teu pranto. E, entre teu angustiado e surpreendido espanto, tangê-las-ás de ti, de ti mesmo, em que estão esses corvos fatais. E esses corvos não vão. Fim | Murilo Mendes Eu existo para assistir ao fim do mundo. Não há outro espetáculo que me invoque. Será uma festa prodigiosa, a única festa. Ó meus amigos e comunicantes, tudo o que acontece desde o princípio é a sua

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Alguns poemas modernos. Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Baudelaire.

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A Realidade e a Imagem | Manuel Bandeira

O arranha-cu sobe no ar puro lavado pela [chuvaE desce refletido na poa de lama do ptio.Entre a realidade e a imagem, no cho seco que as separa,Quatro pombas passeiam.

A uma passante (trecho) | Baudelaire. Da srie Quadros parisienses. Trad. Ivan Junqueira

A rua em torno era um frentico alarido.Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,Uma mulher passou, com sua mo suntuosaErguendo e sacudindo a barra do vestido.

Mercs de cima | Drummond. Da srie Estampas de Vila Rica

Pequena prostituta em frente Mercs de[CimaDdiva de corpo na tarde crist.Anjos sados da portadaE nenhum Aleijadinho para recolh-los.

Janela | DrummondTarde dominga tardepacificada como os atos definitivos.Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho.Outras esto apenas nascendo,verde polido onde a luz estala.O tronco o mesmoe todas as folhas so a mesma antigafolha a brotar de seu fim,enquanto roazmentea vida, sem contraste, me destri.

Soneto I (Canto da desapario) | Jorge de LimaAqui o fim do mundo, aqui o fim do mundoem que at aves vm cantar para encerr-lo.Em cada poo, dorme um cadver, no fundo,e nos vastos areais ossadas de cavalo.Entre as aves do cu: igual carnificina:se dormires cansado, face do deserto,quando acordares hs de te assustar. Por certo,corvos te espreitaro sobre cada colina.E, se entoas teu canto a essas aves (teu cantoque debaixo dos cus, a mais triste cano),vem das aves a voz repetindo teu pranto.E, entre teu angustiado e surpreendido espanto,tang-las-s de ti, de ti mesmo, em que estoesses corvos fatais. E esses corvos no vo.Fim | Murilo Mendes

Eu existo para assistir ao fim do mundo.No h outro espetculo que me invoque.Ser uma festa prodigiosa, a nica festa. meus amigos e comunicantes,tudo o que acontece desde o princpio a sua [preparao

Eu preciso assistir ao fim do mundopara saber o que Deus quer comigo e com todose para saciar minha sede de teatro.Preciso assistir ao julgamento universal,ouvir os coros imensos,as lamentaes e as queixas de todos,desde Ado at o ltimo homem.

Eu existo para assistir ao fim do mundo,eu existo para a viso beatfica.

O tonel do dio (trecho) | Baudelaire. Trad. Ivan Junqueira.

O dio o tonel das plidas Danaides frias;Por mais que da Vingana o brao rubro e forteDerrame-lhe s entranhas ermas e sombriasBaldes cheios de sangue e lgrimas da morte,

O Diabo lhe abre furos nunca imaginados(...)

O dio um brio perdido ao fundo da taverna,Que sente sua sede emergir do licor.

Declarao em juzo (trecho) | Drummond

Peo desculpas de ser o sobrevivente.No por longo tempo, claro.Tranquilizem-se.Mas devo confessar, reconhecerQue sou sobrevivente.Se triste/cmicoficar sentado na plateiaquando o espetculo acaboue fecha-se o teatro,mais triste/grotesco permanecer no palco,ator nico, sem papel,quando o pblico j virou as costase somente baratas circulam no farelo.

Fim no comeo | Drummond

A palavra cortadana primeira slaba.A consoante esvanecidasem que a lngua atingisse o alvolo.O que jamais se esqueceriapois nem principiou a ser lembrado.O campo havia, havia um campo?irremediavelmente murcho em sombraantes de imaginar-se a figurade um campo.

A vida no chega a ser breve.

sem nome | lvaro de Campos

Meu corao, bandeira iadaEm festas onde no h ningumMeu corao, barco atado margemEsperando o dono, cadver amarelado entre os [juncais...Meu corao, a mulher do forado,A estalajadeira dos mortos da noite,Aguarda porta com um sorriso maligno,Todo o sistema do universo,Concluso a podrido e esfinges...Meu corao, algema partida...

A fatalidade | Murilo Mendes

Um moo azul atirou-se de um jasmineiroOs sinos perderam a falaA frtil sementeira de espadasAtrai o olhar das crianas

No existem mais dimensesNem clculos possveisO vento caminhaA lguas da histria,As rosas quebram a vidraa.

Demoliram uma mulherA sons de clarinete.

Escrevo para me tornar invisvel,Para perder a chave do abismo.

Comunho | Drummond

Todos os meus mortos estavam de p, em crculo,eu no centro.Nenhum tinha rosto. Eram reconhecveispela expresso corporal e pelo que diziamno silncio de suas roupas alm da modae de tecidos; roupas no anunciadasnem vendidas. Nenhum tinha rosto. O que diziamescusava resposta, ficava parado, suspenso no salo, objetodenso, tranquilo.Notei um lugar vazio na roda.Lentamente fui ocup-lo.Surgiram todos os rostos, iluminados

Girassol | Ferreira Gullar

girafa farol

gira

sol girassol faro

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