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Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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SEMINÁRIO DE LEITURAS 2

As encruzilhadas da linguagem – (Nós, enlaces até que...)

Alduisio M. de Souza

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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SEMINÁRIO DE LEITURAS 2

As encruzilhadas da linguagem – (Nós, enlaces, até que...)

Alduisio M. de Souza

[SEGUNDA AULA DO “...OU PIOR” – DÉCIMA AULA DO “MAIS, AINDA” ]

15 de dezembro de 1971 e 15 de maio de 1973: Jacques Lacan

[Na primeira aula tratei en passant sobre traduções. O mais surpreendente,

senão arrasador da teoria e comandando uma ética de contrafação com a psicanálise está

na consideração sobre a tradução de rencontre de l´objet por reencontro do objeto. É

um equívoco que conduz a uma prática inaceitável e que temos visto nas apresentações

de casos clínicos nos Encontros e Jornadas em Recife quase sempre terminadas com a

exposição de passagem ao ato do analista e respondida especularmente pelo cliente].

[No seminário “Os quatro conceitos”, na página 53/54 da edição francesa e 56

da brasileira encontramos o seguinte]:

“Primeiramente a tiquê que tomei emprestada, eu lhes disse da última vez, do

vocabulário de Aristóteles em sua pesquisa em busca da causa. Nós a traduzimos por

encontro do real. O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência

dos signos aos quais vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige

sempre por trás do autômaton e do qual é evidente em toda pesquisa de Freud que é do que

ele cuida”. Jacques Lacan o.c.

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[Apesar da tradução como sempre capenga podemos para além de questões de

tradução sacar uma quarta proporcional entre encontro e reencontro com o para além do

princípio do prazer, do gozo e o reencontro com quê? Com os signos, traços, sinais que

permite conferir borda ao Real. Ou seja, o trabalho com a escrita tal qual o início com os

nós, então feito significantes. O literal da escrita faz a borda do Real para um real. O que

veremos na relação do zero absoluto e do zero relativo].

[O nó borromeano, diz Lacan, foi trazido para traduzir a fórmula da demanda: eu

te demando [peço] de recusar o que te ofereço, porque não é isso. O isso aí sendo o

objeto a. Ele mesmo se propõe escandir a fórmula narrativa da demanda: eu te demando

[peço] – o que? – de recusar – o quê? – o que te ofereço – por quê? – por que não é isso

– [mas o que é isso?] – é o objeto a. Objeto que não tem nenhum ser e que supõe o vazio

de uma demanda já que é pedido incondicional de amor. O que peço então ao outro? O

seu vazio para que possa ali ancorar, dando espaço a minha carência. Peço uma abertura,

um acolhimento para existir na inexistência do Outro. Haveria um desejo que nenhum ser

o sustenta? E Lacan responde: um desejo sem nenhuma outra substância do que a que

se assegura do próprio nó ele mesmo. Ou seja, da pura escrita. Veremos o que isso tem a

ver com a carta de almor das fórmulas da sexuação].

Leiamos o meu Lacan, ou seja, tal qual eu o leio:

“É um fato – pelo menos para mim – é quando escrevo que encontro alguma

coisa. Isso não implica que se não escrevesse nada encontraria. Mas, enfim, se não

escrevesse não me daria conta. No fim das contas, a idéia que eu faço dessa função do

escrito (...) eu disse a mim mesmo que o escrito isso pode ser muito útil para encontrar

alguma coisa (...) Então, me arrisco de dizer certas coisas, assim, que se solta. A idéia que

faço do escrito, para situá-la, para partir daí, poderíamos discutir após, bem, enfim,

digamos, dois pontos: é o retorno do recalcado”.

[Mas então o que é o retorno do recalcado? Todos sabem a distinção entre os

chamados procedimentos de defesa que melhor seria chamar de mecanismos de inscrição

ou de escrevência. Lacan vai tomá-los pela via das modalidades tendo como

denominador comum à problemática da negação. Se lermos “A denegação” de Freud

com os quantificadores lógicos veremos a surpresa da precisão. Vejamos também como

Lacan a introduziu na Aula 1 do “...ou pior” e a distinção entre o dizer e o dito. Mas,

antes leiamos o que Recanati disse no comentário de Pearce no Seminário “...ou pior” no

sub-comentário sobre Condilac]:

“Condillac se dá conta do problema: o significante novo representa o significado

originário, mas por seu ponto de vista atual de significante; : e como representar o

significado, por uma operação que é o campo do significante, senão pelo fato de

transformá-lo em significante, quando então o significado originário estando perdido para

a representação, o significante aí então somente representa a si mesmo. Querer traçar

uma linha entre um canto e um outro canto do significado resultará em corte dos liames.

Essa ruptura não explicaria para Peirce a nostalgia que o significante tem do significado

sob a forma do quantificador universal. O que permite essa nostalgia é a perenidade do

potencial: sempre atual, não cessa de apontar a discordância entre suas possibilidades

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irredutíveis e a pobreza das realizações que só se produzirão uma única vez -: uma

realização se efetua no lugar da infinidade daquelas que o potencial guardava em reserva.

A inscrição negativa dessa infinidade, pela realização atual, conduz a uma tentativa de

exaustão que consiste em inscrevê-la, por sua vez; mas, desde que uma nova realização se

inscreva, mesmo sendo senão como possibilidade, uma nova infinidade faz-lhe eco, ao que

ela substituiu por ser única. Há aí uma verdadeira progressão aritmética”.Recanati.

Voltemos à Aula 1 do “...ou pior”:

“O terceiro termo [plano] é o da negação (...) para saber que há duas formas de

negação totalmente diferentes de negação possíveis sendo já pressentidas pelos

gramáticos. (...) A distinção, portanto, já feita entre a forclusão e a discordância deve ser

lembrada no limiar do que faremos este ano. (...) a forclusão não poderia, (...) ser ligada

em si mesma ao “não”, “nenhum”, “nada”, “nadinha”, “coisa alguma”, “nadica” ou a

outros desses acessórios que parecem suportar a negação na língua francesa. No entanto

devemos destacar o que vai de encontro é precisamente o nosso “não todo”. Nosso “não-

todo” é a discordância. Mas, o que é a forclusão? Ela deve ser posta num registro

diferente desse da discordância. Ela deve ser posta no ponto em que escrevemos o termo

dito função. Aqui se formula a importância do dizer. Só há forclusão do dizer. Que, disso

que existe, a existência deve ser já promovida ao que devemos conferir um estatuto, que

alguma coisa possa ser dita ou não, é disso que se trata na forclusão. E dessa alguma coisa

que não poderia ser dita seguramente só poderíamos concluir de uma questão sobre o

Real. No momento a função x tal como escrevi somente nos diz que no que diz respeito

ao ser falante a relação sexual produz uma questão. E isso é toda nossa experiência, quer

dizer, o mínimo que devemos sacar. Esta questão como toda questão – não haveria questão

se não houvesse resposta pelos modos sob os quais esta questão é posta, isto é, as respostas

é precisamente o que se trata de escrever nessa função – é isso que vai nos permitir sem

nenhuma dúvida de fazer junção entre o que foi elaborado da lógica e o que pode, sob o

princípio considerado como efeito do Real, princípio de que não pode escrever a relação

sexual, sobre este princípio mesmo que pode fundar a própria função que rege tudo o que

diz respeito a nossa experiência, pelo fato mesmo de constituir questão, a relação sexual

não é nesse sentido o que não possamos escrever, essa relação sexual determina tudo o que

se elabora num discurso do qual a natureza é de ser um discurso de ruptura, ousado,

desbravador e trabalhoso”.

[O final da Aula 1 com o termo idiomático rompu [rompido], que quer dizer

ousado e ao mesmo tempo encarniçado – usando uma expressão bem mineira – Lacan dá

o tom desse seminário “...ou pior”: os prosdiorismos; as formas de oposição das

modalidades e a negação. Podemos ler que o não-todo remete a discordância ocupando o

lugar do argumento enquanto que o forclusivo remete à função, o que é realmente

surpreendente].

[Vamos então formar um quadro referencial entre encontro <> reencontro, o

escrever, dentro da problemática em continuidade com “Uma carta de Almor”. O

impossível, o contingente, o possível e o necessário. Lacan vai inverter a perspectiva de

Aristóteles: o impossível que ele opõe ao possível e o necessário que ele opõe ao

contingente, Lacan oporá o impossível com o necessário e o possível com o contingente

isso tomado na distinção aventada do dizer e do dito, e podemos inferir que as

condições de enunciação de Lacan foram a problemática da massa e da forma em

Platão, da potência e do ato em Aristóteles (primeiro e segundo motor)].

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“(.../...) o simbólico só se sustenta pela ex-sistência. (...) Em que? É uma das

coisas essenciais que disse outras vezes – a análise se distingue de tudo o que foi produzido

como discurso até então, no que ela afirma e isso é o cerne de meu ensino, que eu falo sem

sabê-lo. Falo com meu corpo, e isso sem sabê-lo. Digo sempre mais do que sei. (...). É aí

que chego ao sentido do termo sujeito no discurso analítico. O que fala sem saber me faz

eu [je], sujeito do verbo”. (...) Em Platão, a forma é o que consuma o ser. A forma não

sabe nada mais a não ser que diz. Ela é real, na medida em que sustenta o ser de cima

abaixo. Ela é o saber do ser. O discurso do ser supõe que ele seja e é isso que o sustenta.

(...) Há relação do ser que não se pode saber. É desse saber que no meu ensino eu

interrogo a estrutura enquanto saber – acabo de dizer – saber impossível e por isso

interdito (...) esse saber impossível é censurado, proibido, mas deixa de sê-lo se escreverem

como convém: inter-dito, é dito entre as palavras entre as linhas.

[Aqui temos de ter uma atenção especial, pois se a leitura do ponto de vista do

analista é no literal, ao pé da letra, referindo-nos ao saber do discurso devemos distinguir

o que é inter-dito, intra-dito e mesmo extra-dito. O que Lacan aí nos fala refere-se à

relação do enunciante como Outro ocasionalmente ocupado por um outro. É inter-dito,

entre um e Outro].

Trata-se de denunciar a qual espécie de real ele nos permite o acesso. Trata-se de

mostrar o alcance de sua formalização, essa metalinguagem que por não haver eu a faço

ex-sistir. Sobre o que não pode ser demonstrada alguma coisa pode ser dita que seja

verdadeira. É assim que se abre essa espécie de verdade, a única que nos é acessível e que

recai, por exemplo, sobre o não-saber-fazer. (...) É essa discordância do saber e do ser que

constitui nosso tema”.

[Leiamos com atenção: “por não haver eu a faço ex-sistir”. Guimarães Rosa ao

falar de Deus e do Diabo [figuras do Outro] eis o que ele nos diz:

[“Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa existir para

haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo” GSV]

[Acrescentemos ao tema que Lacan se refere: Encore, mais, ainda, em corpo,

poderá talvez suplementar a discordância e possa nos levar mais, ainda mais para um

gozo consonante com seu fim].

“Eu quero dizer que é sob esta forma – e é isso talvez que tenha causado

confusão em certos escritos meus – é que se pude às vezes deixar a impressão de que eu

identifico o significante com a letra, é porque é enquanto letra que ele me toca mais, eu

como analista, é enquanto letra que na maioria das vezes eu o vejo retornar, o

significante, o significante recalcado precisamente. (...) a letra vem no lugar do

significante que faz retorno. Ela aí vem para marcar um lugar, o lugar de um

significante que, ele, é um significante a deriva, que pode circular por toda parte.

Mas só vemos a letra, ela é feita de certa forma para isso e apercebemos que ela é tão

feita para isso que é assim que ela se manifesta primeiramente”.

[Acreditamos que Freud percebeu o processo muito cedo em sua obra, 1894,

quando fala em falsas conexões em “As psiconeuroses de defesa” e na “Psicoterapia da

Histeria”].

“Não sei se deram conta, mas enfim eu espero que possam pensar a respeito,

pois isso supõe ainda alguma coisa que não foi dita no que aqui formulo para vocês. É

necessário que haja uma espécie de transmutação que se opera do significante para a

letra, quando o significante não está ali, ele está à deriva, não é mesmo, escapou do

campo [picou a mula] e devemos nos perguntar como é que isso se produz?”

“Mesmo assim não podemos fazer de conta que sobre esse assunto desta letra

não tenhamos de imediato, relação no campo que chamamos de matemática onde não

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podemos escrever uma coisa qualquer. Claro. Isso não é... bem, agora não irei me

engajar sobre isso. Vou simplesmente observar que é nisso que este domínio se

distingue e é mesmo o que provavelmente isso que constitui o que ainda não fiz alusão

aqui, no seminário, que levei com certos propósitos onde vários dos que estão aqui

assistiram, lá no Sainte-Anne, quando formulei a questão do que poderíamos chamar de

matema, destacando que é o ponto pivô de todo ensino, dito de outra maneira que só há

ensino de matemática o restante é divertimento”.

[Qual seria o matema de Lacan e de qualquer um de nós analistas ou

analisantes? O matema quando interrogado dessa maneira nada mais é que o projeto

inconsciente [potencial] para constituir uma casa para o objeto a já que ele oscila como

efeito do encontro com o Real e comanda uma escrita e mesmo um estilo [estilete,

cálamo, litura] na qual o eu nada mais é que suposto ao falante].

“ O eu [je] não é um ser, é um suposto àquele que fala. Aquele que fala somente

tem a ver com a solidão por causa da relação que não pode ser escrever. Essa solidão, ela

pode se escrever, como ruptura do saber, não somente pode, mas ela é o que se escreve por

excelência, pois essa escrita é o traço da ruptura do ser com o saber]. “(...) É o que disse

em um texto, certamente com imperfeições e que chamei de Lituraterra. O vapor

[respingos] da linguagem – expressei-me metaforicamente – produz escrita”.

[...ou pior, o vapor que respinga são os três pontinhos, traços da linguagem que

estão presentes para tornar existência de um impossível que é a elisão do verbo, sem o

qual não há argumento. Ou seja, a existência da inexistência, já que o verbo não pode

estar elidido na proposição. Lacan comenta o idealismo que atribui um saber à natureza

de forma que somos parceiros do mundo e o situa pela impossibilidade de escrever a

relação sexual entre dois corpos de sexos diferentes e situa também a reprodução como

um equívoco do corpo em relação ao seu próprio gozo. Situa também a sublimação, a

contemplação da Beleza, o Bem e mesmo a Verdade. Mas, só temos um parceiro, um

parceiro outro para sexo que é o Outro].

“Isso nos trás o outro aspecto do escrito do que este que me referi de partida. A

junção entre eles será no curso deste ano o que irei dizer; é o que tentarei fazer.

Esperando, minha dificuldade é esta que apesar de tudo me apego – não que isso vem de

mim ou antes pela presença de vocês – minha dificuldade é que o meu matema, visto o

campo do discurso que tenho de estabelecer me confina ao absurdo [à besteira]. Isso vai

de par com o que lhes disse já que em suma, do que se trata é que a relação sexual não

há – seria necessário escrever QUE NÃO HÁ [Il y en a pas] [H-I-H-A-N e appât com

dois p, acento circunflexo e um t no fim : H-I-H-A-N Â-P-P-A-T] relações sexuais, o

que há são encontros sexuais, sempre falhos mesmo e sobretudo quando produzem um

ato”. (1)

“(...) Bem, o texto que tomarei é alguma coisa que é um achado e um achado

comum como muitos o são, se assim posso dizer, inexplorado, é o Parmênides de

Platão que muito nos servirá”.

“Na Metafísica de Aristóteles trata-se assim em sua essência, no significado, em

tudo que já lhes foi explicado a partir deste magnífico texto, tudo o que o faz

absolutamente fabuloso. Fala-se no fim da metafísica em nome de quê? Enquanto

houver este livro, poderemos sempre fazê-la. Este livro é um livro e é muito diferente da

metafísica, é um livro, um “escrito” do qual falava há pouco. Foi-lhe dado um sentido

..........................................................................................................................................................................

(1) [il y en a pas : ilanapas: não há : o um aí não há] O jogo que Lacan propõe pela homofonia poderia

ser vertido da seguinte maneira: é o um quen faz a isca, que engana. Um, da suposta conjunção sexual e

do amor que constitui aquilo que se busca que por ser impossível nos perdemos no logro. Âppat é o que

escapa, a isca que se apresenta, mas que jamais é alcançada.

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que chamamos de metafísica, mas devemos mesmo assim saber distinguir o sentido e o

livro”.

[“Podemos aqui brincar coma as modalidades tal como Lacan no Aturdito: Que

se diz [no livro] fica escondido por trás do escrito e no que é lido”].

“Para aqueles que entrarem no texto verão para aqueles que têm [sabem de]

uma disciplina, e existe, disciplina que se chama método histórico, crítico, exegético,

tudo o que quiserem e que assim são capazes de lerem o texto evidentemente com uma

maneira de fazer obstáculo ao sentido, e quando olharem o texto, aí então, vai

evidentemente lhes ocorrer dúvidas. Eu diria que, como este obstáculo de tudo o que

dito e entendido, isso só poderia existir ao nível universitário e a universidade não existe

desde sempre, enfim, na Antiguidade, três ou quatro séculos após Aristóteles,

começaram a surgir dúvidas naturalmente das mais sérias sobre este texto, pois não

sabíamos ainda ler, emitiram dúvidas dizendo que era uma compilação de um aluno,

ajuntando textos. (...) Isso porque o método histórico florescia então e os havia

incomodado com as dúvidas emitidas não sem fundamento já que remontam a mais alta

Antiguidade”.

“Verdadeiramente eu diria que a besteira [que é dito de forma inusitada] (1) nos

prova o que é a autenticidade. O que domina é a autenticidade da besteira. Talvez este

termo “autêntico” que sempre foi um pouco complicado para nós, com suas

ressonâncias etimológicas gregas, havendo línguas onde ele é mais bem representado, é

“echt”, mas não sei como se faz com isso um nome deve ser o Echtigkeit ou algo assim,

pouco importa. Não há nada tão autentico quanto à besteira. Mas, esta autenticidade não

é talvez a autenticidade de Aristóteles, mas a Metafísica – falo do texto – é autêntico, o

que não pode ter sido feito de retalhos, está à altura do que deverei chamar de, que

justifica ser chamado de besteira, a besteira é isso, é isso com que quando colocamos

uma questão de um nível que é este precisamente, determinado pelo fato de linguagem,

quando nos aproximamos de sua função essencial que é de cumprir tudo que deixa

hiante que não possa haver relação sexual, o que quer dizer que nenhum escrito não

possa dar conta de forma satisfatória por ser o escrito um produto de linguagem. Por

isso, claro, depois que temos os gametas, poderemos escrever no quadro: “homem =

portador de espermatozóides”, o que seria uma definição um pouco engraçada já que

não há somente ele que seja portador, há um monte de animais, e esses

espermatozóides, espermatozóides de homens, então começamos a falar de biologia!

Porque os espermatozóides de homens são justamente os que são portados pelos

homens, já que são os espermatozóides do homem que faz o homem, entramos num

círculo giratório e daí! Mas, acontece que isso nós podemos escrever”.

[Aqui nós temos mais que uma alegoria jocosa, pois temos o confronto entre o

que é o pensamento binário é o ternário. A pesquisa genética, binária, com o

mapeamento do genoma exorciza a morte e perpetua a vida como perene. A manutenção

da vida, a reprodução, o viver sem a morte, sem o mistério, sem a interrogação do que

ex-siste à vida no seu imediato o que é?]: Atentemos ao que diz Dany-Robert Dufour: ..........................................................................................................................................................................

(1) Lacan usa o termo francês bêtise, que tanto poderá isoladamente ser traduzido por besteira ou asneira,

ou, de forma mais rigorosa como um efeito inusitado do saber inconsciente: topada, aquilo que se solta

sem que houvesse tido uma intencionalidade. Eis como se expressa Lacan: “É um fato – pelo menos

para mim – é quando escrevo que encontro alguma coisa. Isso não implica que se não escrevesse nada

encontraria. Mas, enfim, se não escrevesse não me daria conta. No fim das contas, a idéia que eu faço

dessa função do escrito (...) eu disse a mim mesmo que o escrito isso pode ser muito útil para encontrar

alguma coisa (...) Então, me arrisco de dizer certas coisas, assim alguma coisa se solta [escapa]”.

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[“Se perder a morte, perco o medo da morte. Se perder o medo da morte, perco a

sublimação do medo da morte. Se perder a sublimação do medo da morte, perco a arte,

inclusive a música. Isto não é tudo. Se perder a morte, perco a reprodução sexuada e a

termo, perco a divisão sexuada. Se perder a divisão sexuada, perco o amor. Se perder o

amor, perco o ódio. Se perder o ódio o amor e a morte, perco tudo... eu perco a vida...”

Dany-Robert Dufour, Os mistérios da Trindade].

“Somente isso não tem nenhuma relação com qualquer coisa que possa ser

escrito, se posso dizer, de sensato, isto é, que tenha uma relação com o Real. Não é

porque é biológico que seja mais real: é o fruto da ciência que se chama biologia. O

Real é outra coisa: o Real é o que comanda toda a função da significância. O Real é o

que vocês encontrarão justamente por não poderem, em matemática, escrever uma coisa

qualquer. O Real é o que interessa no que é a nossa função a mais comum: são

banhados pela significância, mas não poderão segurar todos ao mesmo tempo, os

significantes. Isso é interditado por sua própria estrutura: quando têm alguns, um

pacote, não terão os outros, eles são recalcados. Isso não quer dizer, mesmo assim que

não sejam ditos: justamente vocês os dizem “inter”. Eles são interditos, o que não

impede de dizê-los, mas serão ditos censurados. Ou, então o que é a psicanálise não tem

nenhum sentido, é a ser descartada, ou, o que vocês dizem aí deve ser a verdade

primeira de vocês”.

“É disso que iremos tratar neste ano, se colocando num certo nível – Aristóteles

ou não, mas em todo caso o texto está aqui, autêntico – quando nos colocamos num

certo nível, isso não caminha por si mesmo. É apaixonante de ver alguém tão agudo, tão

sábio, tão alerta, tão lúcido se colocar a patinhar aí dessa maneira por qual razão?

Simplesmente porque ele se interroga sobre o princípio. Naturalmente ele não tem

nenhuma idéia de que o princípio é este: não há relação sexual. Se ele não faz idéia

disso, podemos ver que é nesse nível que ele se coloca todo tipo de questões. Então o

que ele faz um salto acima de suas especulações [vol d’oiseau] como um pássaro que

tira da cartola, ou simplesmente ele formulou uma questão da qual não sabemos a

natureza, compreendam, como um prestidigitador que acredita ver... enfim, se

introduzimos o coelho, naturalmente o que deve sair, enfim, poderá daí tirar um

rinoceronte! É bem assim para Aristóteles, pois onde está o princípio se é o gênero, mas

então se é o gênero ele se enraivece, pois se trata do gênero geral ou o gênero mais

especificado? É evidente que o gênero geral é o mais essencial, mas mesmo assim o

gênero o mais especificado é o que permite que haja um único em cada um. (1) Então

sem mesmo se dar conta – ainda bem, pois graças a isso ele não se confunde – que esta

história de essencialidade e de unicidade é a mesma coisa ou mais exatamente é

homônima ao que ele interroga. Ainda bem que ele não se confunde, não foi daí que ele

tirou coelho e rinoceronte, ele se diz: será que o princípio é o Um ou ele é o Ser. Então

aí isso ele se atrapalha completamente! Como deve de toda forma que o Um seja e que o

Ser seja um, aí, perdemos o norte. Pois, justamente, é o que tentamos fazer em seguida.

Bem, chega de Aristóteles”.

“Anuncio-lhes que ultrapassei o passo do ano passado de que essa não-relação se

posso assim me expressar, nós temos de escrevê-la, escrevê-la de qualquer maneira, isto

é, escrever a outra relação, este que faz obstáculo [bouchon] à possibilidade de escrever

a este [que não há relação sexual]. Já no ano passado havia escrito no quadro algumas

coisas que enfim não acho que são ruins de serem postas de início. Naturalmente que há

aí algo de arbitrário. Não irei me desculpar me protegendo com as matemáticas: os

matemáticos fazem o que querem e eu farei também. Mesmo assim para aqueles que ..........................................................................................................................................................................

(1) Lacan aqui está se referindo ao que ficou conhecido como “árvore de Porfírio” na classificação

diferencial derivada da lógica aristotélica: gênero próximo e diferença específica.

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necessitam de me desculpar posso lhes observar que, nos Elementos de Bourbaki,(1)

começa-se por jogar as letras sem nada dizer a que elas podem servir. Eu falo,

chamemos isso de símbolos escritos, pois isso na se parece com nenhuma letra e estes

símbolos representam algo que podemos chamar de operações sem mesmo dizer de

quais operações se trata, e somente vinte páginas depois que começamos a pode deduzir

retroativamente por sua forma de uso, para que servem. Não chegarei a isso. Tentarei

logo em seguida interrogar os que querem falar das letras que irei escrever. Mas, por

pensar que para vocês isso seria mais complicado se trouxesse uma a uma, pois elas

se animarão e tomarão valor de função, prefiro colocá-las [essas letras] como sendo em

torno delas que trabalharei em seguida”.

“Já no ano passado acreditei poder colocar para vocês do que se trata x e creio

que, por razoes que são nada mais que tentativas, poder escrevê-las como em

matemática, isto é, da função que se constitui pelo fato que o gozo chamado de gozo

sexual é o que faz barreira à relação [sexual]. Que o gozo sexual abra para o ser

falante a porta do gozo, por favor, aqui tem de ter bom ouvido: observem que o gozo,

quando o chamamos assim, de maneira curta [e grossa], pode ser o gozo para alguns,

aos quais não descarto, mas não é o gozo sexual”.

“A escrita [escritura] é um traço onde se lê um efeito de linguagem. É o que

acontece quando rabiscam alguma coisa. Eu não me privo, pois é com rabiscos que

preparo o que tenho para dizer. É surpreendente como nós temos de nos assegurar com a

escrita. No entanto não é uma metalinguagem mesmo podendo ocupar uma função

análoga. Esse efeito mesmo assim é secundário em vista do Outro onde a linguagem se

inscreve como verdade (...) mas nada disso se sustentaria se não houvesse o dizer que é

esse da língua e de uma prática na qual há pessoas que dão ordens em nome de certo

saber”.

“O que produz esta relação do significante com o gozo é o que exprimo por esta

noção de x. Este x somente designa um significante – um significante, isso pode

ser cada um de vocês, cada precisamente no nível o mais fino no qual existem como

sexuados. É tão fino em espessura, se posso assim dizer, mas é muito maior na

superfície, maior do que para os animais, para quem, quando não estão no cio, vocês

não os distinguem, o que chamei na aula passada de menininho e menininha: os filhotes

de leão, por exemplo, são muito parecidos em seus comportamentos. Não vocês, por

causa de que é como significantes que se sexualizam. [Φx] Então, aí não temos de fazer

distinção marcando o significante-homem como distinto do significante-mulher,

chamando-os um de x e outro de y, pois é aí que se situa a questão: como nos

distinguimos? É por isso que coloco o x neste lugar como uma variável aparente, o que

quer dizer que cada vez que irei fazer este significante ser sexual, isto é, a essa coisa que

se liga ao gozo, vou ter a ver com o x, e há alguns que, quaisquer, específicos entre

estes x que são tais que podemos escrever: para todo x, qualquer que seja, x, isso quer

dizer que funciona o que chamamos em matemática uma função , isto é, isso pode se

escrever: x . x”.

“É pelo mérito do texto de Sade que chamou a coisa pelo seu nome [deu nome

aos bois]: gozar é gozar de um corpo. Gozar é beijar, se apertar, abraçar até se ..........................................................................................................................................................................

(1) BOURBAKI, Nicolas – Autor-patrono-imaginário de um coletivo formado em 1933 por jovens

matemáticos da Escola Normal Superior de Paris. Publicaram a partir de 1940 uma gigantesca obra de

referência: Os Elementos das Matemáticas, publicados sob a forma de monografias acrescidos de

Elementos Históricos das Matemáticas, em 1969. Retomou a matemática moderna em seus fundamentos

para edificar sobre bases axiomáticas rigorosas segundo o pensamento de Hilbert. Clarifica e codifica a

linguagem matemática com a ajuda da lógica formal e a teoria dos conjuntos, unificando essa ciência pelo

estabelecimento de estruturas comuns em seus diversos ramos. Robert – Noms Pròpres.

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arrebentar [despedaçar]. De direito, gozar, ter gozo de alguma coisa é justamente isso:

époder tratar algo como um corpo, isto é, demoli-lo, não é mesmo. É o modo de gozo o

mais regular, é talvez por isso que seus enunciados têm sempre uma ressonância

sadiana”.

“Vou em seguida, já, lhes esclarecer, enfim... esclarecer... somente vocês que

serão esclarecidos, enfim, esclarecidos por um pequeno momento; como diziam os

estóicos, não é mesmo, quando é de dia faz claro. Eu, evidentemente que sou, como

escrevi no dorso de meus Escritos, partidário das luzes: esclareço [ilumino]... na

esperança [esperando] do Dia “D”, é claro. Somente que, é justamente o dia “D”, não

será para amanhã. O primeiro passo a ser dado para a Filosofia das Luzes é saber que o

dia ainda não nasceu e o dia do qual se trata nada mais é que este de uma pequena luz

num campo perfeitamente [totalmente] obscuro. Irão pensar que já é a luz quando lhes

disser que o x isso quer dizer à função que chamamos de castração. Como vocês

acreditam saber o que é a castração então eu penso que estão contentes, pelo menos no

momento! Observem bem, se escrevo isso no quadro, e daí irei continuar, se escrevo é

porque não sei de nada do que é a castração! Espero que com a ajuda desse jogo de

letras chegarem enfim, justamente como o nascer do dia, [D] saber, que saibamos o que

é a castração. Temos de passar por aí, e não haveria discurso sadio, isto é, que não

deixa na sombra a metade de seu estatuto e de seu condicionamento, o que para isso

temos que, saibamos ou não, devemos jogar com vários e diferentes níveis de relações

topológicas, numa certa maneira de trocas de letras e de ver como isso poderá se

repartir. Até lá, [este dia D] estão reduzidos [limitados] a pequenas historietas, saber que

Papai disse “eu vou cortar o teu”, como se estas historietas não fossem besteiras dessa

ordem”.

[Aqui temos um exemplo para pensarmos a função do que Lacan chamou de

discurso ingênuo [naïf] quando falamos em desejo e castração sem inscrevê-los numa

lógica precisa e atualizada].

“Há em alguma parte um lugar onde podemos dizer que podemos dizer que tudo

que se articula pelo significante cai sob o lance de x, dessa função da castração. Que

isso queira dizer que a relação a certo significante – vejam, eu ainda não disse, mas

enfim vamos dizê-lo – um significante que seja por exemplo “um homem” – tudo isso

porque temos muito a remoer, e como ninguém fez antes de mim, isso corre o risco de

degringolar sobre minha cabeça – “um homem”... Eu não disse “homem”. É bastante

engraçado, mesmo assim, que o uso do significante, assim, nós dizemos ao rapaz: “seja

um homem”, não lhe dizemos “seja homem”, dizemos “seja um homem”. Por quê? O

que é curioso que raramente é dito “seja uma mulher”, mas falamos da “a mulher”,

com artigo definido. Especula-se muito sobre o artigo definido. Iremos encontrá-lo

quando chegar à hora. Simplesmente o que quero lhes dizer que o que escreve x, isso

quer dizer, não direi esses dois significantes aí precisamente, mas eles e certo número de

outros que se articulam, tem por efeito que não podemos mais dispor do conjunto de

significantes e é talvez o que aí, seja uma primeira abordagem do que chamamos de

castração, claro, do ponto de vista dessa função matemática que imito com minha

escrita. Num primeiro tempo lhes peço somente de reconhecerem que se trata de uma

imitação. Isso não quer dizer que não tenha refletido e que isso não irá muito longe.

Enfim, há um meio de escrever que para todo x, isso funciona. É o próprio de uma

forma de escrita [écriture] que decorre do primeiro esboço lógico do qual Aristóteles é o

responsável, o que lhe deu prestígio que se deve ao fato de que é formidavelmente

gozadora [jouissif] a lógica, justamente porque isso se relaciona com este campo da

castração. Enfim, como poderíamos justificar através da história que, um período tão

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

11

amplo como tempo, tão efervescente como inteligência, tão borbulhante como

produção, que a nossa Idade Média, pode tanto se excitar a tal ponto sobre justamente

com a lógica, e a lógica aristotélica? Para que isso pudesse ter-lhes colocado nesse

estado, pois isso mobilizava multidões, pois, por intermédio dos lógicos houve

conseqüências teológicas nas quais a lógica dominava completamente o teo [de

teológica] o que não é como para nós, pois o teo permanece bem sólido em sua

imbecilidade, onde a lógica está quase evaporada, tudo isso pode deduzir e se deve ao

fato de que a lógica é muito gozadora [produtora de gozo]. Foi por isso todo o prestígio

que, da construção de Aristóteles repercutiu nessa famosa Metafísica onde ele

desentope os canos a pleno vapor. Mas, nesse nível, pois não quis fazer para vocês um

curso de história da lógica se vocês quiserem ir além procurem simplesmente os

Primeiros Analíticos, o que é chamado de Analíticos Anteriores, mesmo para aqueles,

mais numerosos, que não tiveram a coragem de lê-los, mesmo sendo fascinantes, sim.

Eu lhes recomendo lá no livro I, capítulo 46, para verem o que Aristóteles produz sobre

o que é a negação, ou seja, a diferença que há entre dizer “o homem não é branco”, que

mesmo sendo o contrário “o homem é branco”, ou se, como muitos pensavam já

naquela época – e isso continua – ou se o contrário deveria ser dito “o homem é não-

branco”. Não se trata da mesma coisa. Penso que, somente enunciando dessa maneira a

diferença é sensível. É importante que possam ler este capítulo, depois que lhes falei

tantas coisas sobre a lógica dos predicados, pelo menos aqueles que já esbarraram em

lugares onde se fala dessas coisas aí, poderão imaginar que o silogismo está

inteiramente na lógica dos predicados. É uma pequena indicação lateral. Como não quis

me atrasar – talvez tenha tempo de retomar noutro dia – quero simplesmente dizer que

houve, para que possa escrever dessa maneira, no começo do século XIX uma mutação

essencial: foi a tentativa de aplicar esta lógica ao que já aventei há pouco, mas com um

estatuto particular, aplicá-la ao significante matemático”. “Isso resultou este modo de escrita do qual, penso, terei tempo noutro dia para

lhes falar e perceber o relevo e a originalidade, ou seja, que isso não diz mais da mesma

maneira sobre as proposições – pois é disso que se trata – o que funciona no silogismo,

isto é, como escrevi no ano passado: o signo da negação sobre o , é uma possibilidade

que nos foi aberta justamente por esta introdução dos quantificadores: ”.

“No uso desses quantificadores, os quantum, assim chamados em geral – não

sou o primeiro e nem o único a chamá-los assim de quantificadores, pois o que é

importante é que saibam, é evidente que isso nada tem a ver com a quantidade. Isso é

assim chamado porque foi considerado melhor, o que é um signo – enfim esta

articulação dos quantificadores nos permite o que nunca havia sido feito nessa lógica

[dos quantificadores] e é o que faço, pois considero que para nós pode ser produtivo que

é a função do “não-todo”. Há um conjunto desses significantes que suplementa a função

sexuada e que suplementa para o que trata do gozo: há em alguma parte um lugar onde é

o “não-todo” que funciona na função da castração”.

“Há uma forma de que podemos articulá-los, é escrevendo: , o , isso que

dizer “existe”. Existe o que? Um significante. Quando tratarem de significantes

matemáticos, os que têm outro estatuto que os pequenos significantes sexuados de

vocês, que tem outro estatuto que toma [morde] de outra maneira o Real, – mesmo

assim vou tentar talvez fazer prevalecer no espírito de vocês que há pelo menos uma

coisa real e é a única da qual estamos seguros: é o número. O que conseguimos fazer

com ele não é nada mal! Para chegar até a construir números reais, isto é, justamente

aqueles que não são, é necessário que o número ele seja algo real! Enfim, endereço isso

passando para os matemáticos que poderão até me jogar tomates podres, pouco importa,

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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eles farão em privado, pois eu os intimido. Retornemos ao que temos de dizer. “Existe”,

x, esta referência não é simplesmente uma digressão é para lhes dizer que “existe” é aí

que tudo isso tem um sentido. Isso tem um sentido precário, pois é enquanto

significante que vocês existem. Existem seguramente mas isso não se sustenta. Vocês

existem enquanto significantes. Tentem lhes imaginar desarmados de tudo isso, e sei

que me dirão novidades. Após a guerra foram incitados a viverem de forma acentuada

como contemporâneos, bem, olhem o que restou! Compreendam, ousarei dizer que as

pessoas tinham um pouquinho mais de idéias na cabeça quando demonstravam a

existência de Deus. É evidente que Deus existe, não mais que vocês, como vocês! Isso

não vai longe. Mas, enfim, isso para colocar no ponto o que se trata da existência”.

“O que pode nos interessar concernente ao que existe em matéria de

significante? Será que seria a existência do “aomenosum” [aumoinzum] que sem isso

não funciona? Isso da castração? E foi bem por isso que foi inventado: ele se chama o

pai. É por isso que o pai existe ao mesmo título que Deus, ou seja, não muito.

Naturalmente que há certos pequenos malandros – sou cercado de pequenos malandros,

o que transforma o que formulo em “polução intelectual” como se expressava uma de

minhas pacientes a quem agradeço de ter me ofertado isso. Ela encontrou sozinha, pois

é sensível, inclusive, em geral só as mulheres compreendem o que digo – há mesmo

algumas que descobriram que eu dizia que o pai é um mito, já que é claro que x não

funciona ao nível do Édipo: o pai não é castrado, pois senão como poderia ter todas

[mulheres]? Elas só existem aí como todas... Pois é para as mulheres que isso convém, o

“não–todo”, mas enfim, comentarei isso da próxima vez”.

“Então, a partir do “existe um” é a partir daí que todos os outros podem

funcionar, é em referência a esta exceção, a esse “existe”. É isso aí, para que

compreendamos bem que podemos escrever a rejeição da função: é negado, “não é

verdade” que isso se castre, isso é um mito. Somente que, o que não se aperceberam, os

espertinhos, é que isso é correlativo da existência e que isso seja posto ao lado, o

“existe” de “não é verdade” da castração”. “São 2 horas, então vou marcar a quarta maneira de fazer uso da negação quando

trabalharem com os quantificadores que seria escrever “não existe”, x. “Não existe”,

o que, como? Pelo que a função x seja o que domina o que é o uso do significante.

Mas, é isso que isso quer dizer? Pois, há pouco, a existência eu a distingui para vocês da

exceção, e se a negação aí queria dizer: sem exceção desta posição

significante ela poderá se escrever na negação da castração, na rejeição do “não é

verdade que a castração domina a tudo”. É sobre este pequeno enigma que lhes

deixarei hoje, pois na verdade é muito esclarecedor sobre o tema do saber da negação e

não é algo que possamos usar assim de uma forma simplesmente unívoca como é feito

na tória das proposições onde tudo que não é verdade é falso e onde – outra

enormidade! – tudo o que não é falso se torna verdadeiro!... Bem, deixo as coisas assim,

pois a hora me obriga e retomarei na segunda quarta-feira de janeiro no ponto preciso

onde interrompi hoje”.

Abramos um grande parêntese e retomemos Recanati para terminar:

“Haverá então três níveis: 1) um vazio (nada) germinal 2) o traço forclusivo 3) a

repetição infinita do traço. O essencial é que o 1) seja # de 3). É o sentido da asserção:

não é suficiente obstruir (barrar) o após para reencontrar o antes, já que o após nada

mais será que um antes obstruído (barrado), e o depois de obstruído (barrado) será tão

somente um antes duplamente obstruído (barrado). O próprio do vazio (nada) germinal,

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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como antes, sê-lo-á por não ter sido inscrito. Se tivermos uma eficácia de inscrição (isso

tem alcance geral), não poderemos tentar apagar a inscrição, pois assim a duplicaremos.

Essa duplicação é a repetição dita acima que veicula o traço forclusivo”.

“O duplo valor do zero aparece imediatamente: o potencial só perdurará

inexistindo efetivamente; a alternativa então será: o potencial como possibilidade infinita

não possui nenhuma garantia de sua possibilidade se não for inscrito. Ao se inscrever, ele

se perde, já que, sendo portador da universalidade potencial sobre o modo de inscrição,

só lhe resta esgotar essa universalidade com a exaustão de inscrições, tarefa impossível

por causa do primeiro traço irredutível. O que está em jogo é a salvaguarda do todos

para a existência ”.

“O exemplo que demos da inscrição do conjunto vazio é insuficiente para pontuar

essa implicação; os diferentes traços não são aí distintos: , (traço forclusivo),

, (repetição)... Mas é, no entanto, no entanto, interessante acentuar que cada

conjunto tem um outro conjunto (aquele de suas partes)”.

“O potencial permite definir a hipótese do contínuo: se a um ponto de um

conjunto contínuo, potencial, vier lhe ser conferida uma determinação, uma inscrição,

uma existência precisa, então a continuidade foi rompida”.

“Retomemos a Cosmologia: o zero absoluto, diferente do zero que se repete na

série de inteiros, nada mais é que a ordem geral do potencial. Assim, o zero absoluto tem

uma dimensão própria. O problema é o seguinte: como poderíamos passar dessa

dimensão à outra? Peirce o apresenta da seguinte maneira: como não pensar

temporalmente o que havia antes do tempo? Isso lembra Spinoza e Santo Agostinho, mas

isso lembra, sobretudo, os empiristas que por sua excelência prepararam Peirce.

Reconhecemos o estilo em muitos de seus escritos. O que foi menos observado foi à

questão das duas dimensões, potencial e temporal, ou seja, a do zero absoluto e do zero

da repetição é uma questão que está presente desde o começo da época empirista.

Gostaria de dizer ainda uma palavrinha, antes de abordar a Semiótica de Peirce”.

“O exemplo que demos da inscrição do conjunto vazio é insuficiente para pontuar

essa implicação; os diferentes traços não são aí distintos: , (traço forclusivo),

, (repetição)... Mas é, no entanto, no entanto, interessante acentuar que cada

conjunto tem um outro conjunto (aquele de suas partes)”.

“Um modelo preferível seria aquele no quais os traços fossem ligados aos

quantificadores como índices de ordem (potencial ou singular). Se for explicitado, o

teorema dos pontos fixos pode servir a essa intenção”.

“O que funda o quantificador universal, já o disse, é a eliminação antecipada e

inscrita dos valores que o contradiz; aí, então, não teremos mais quantificador universal.

Podemos, no entanto, ter uma saída, mantendo a distinção potencial-singular”.

“O traço forclusivo, que poderia enunciar o potencial, transforma-o em

impotencial, deixando mesmo assim possíveis muitas impossibilidades, mas não todas.

Dito de outra maneira, a ação do potencial não é diminuída, mas sua recuperação na

inscrição se perpetua como impossível. O que podemos escrever assim”:

onde vemos se ordenarem diferentes relações. Os termos são os seguintes:

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

14

1) O quantificador universal decorre do potencial (É impossível...);

2) O traço forclusivo (especificação do potencial – posição correlativa de uma

impossibilidade);

3) As negações específicas como função do traço forclusivo;

4) As existências singulares como efeito das negações impossíveis.

“Se intervertermos os termos nas relações, a proposição torna-se diferente: a

existência singular (4), vindo em segundo lugar (relação 1-4), terá papel de traço

forclusivo etc. Então os lugares determinam as funções, e o quadro pode se escrever em

sua generalidade”:

“Assim a fórmula , pode se decompor como segue: o traço da

negação superior = traço forclusivo (se existe, então não é verdadeiro), o traço da

negação inferior à esquerda = negação como função da forclusão (não podemos dizer). A

proposição propriamente dita: existência singular que diz que existe um x que

nega Φx. O primeiro, é inadequado para representar o potencial. O abraço das chaves

{ } representa melhor essa função. A existência singular terminal se constitui como fato

de negação.

As três relações aparecem claramente neste esquema:

(...), que são as

relações do potencial respectivamente à negação (função forclusiva), à existência

singular e ao traço forclusivo. Essas três relações que conotam a inscrição do potencial

são indissociáveis. Entre o potencial por um lado e a existência singular por outro, há

duas outras, a inscrição do potencial (traço forclusivo) e a repetição da inscrição

(negação como função)”.

“Essa inscrição do que não é desde então o potencial – faz-se sobre o encargo do

quantificador universal. É estritamente a seu encargo que se constitui a existência

singular. Se quisermos tentar estabelecer uma aplicação de todos os pontos de um disco

sobre sua borda, o único meio de fazê-lo, e bem, é devermos começar por estabelecer um

ponto que escapa à deformação de tal forma que possamos escrever , somente após

ter posto: . O exemplo clássico é o da taça de café onde a colher não poderia

remexer deslocando continuamente todos os pontos do liquido. É o que caracteriza

Sócrates, diz Peirce, é por ser sábio, e não é verdade que todo homem é sábio e nem que

todo homem não seja”.

“A distância entre o universal e a existência raramente foi positivamente tão bem

colocada como o foi por Peirce. Nesse sentido ele é irredutível ao empirismo (que eu

apresentei de uma forma por demais simpática). (As três categorias que exprimem essa

distância (potencial) potencialidade, inscrição e repetição) estão presentes em todos os

momentos de seu desenvolvimento”.

“O interesse é que as três categorias, nesse texto, não sejam nomeadas como tal

por potencialidade, inscrição, repetição, mas como qualidade, fatos, leis. Isso permite

fazer o laço entre o que nos ocupa e a Psicologia empirista”.

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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“Acontece a Peirce apegar-se a uma fenomenologia do potencial e ele

exemplifica isso como sendo o puro feeling [impressão]. É o que basta por si mesmo, o

indiferenciado não singularizado, não destacado como fato, não posto em relação. A pura

qualidade é diferente do fato que se destaca dela, que a recorta, que a informa

brutalmente. O feeling [impressão] como qualidade é uma continuidade melodiosa, na

qual não poderíamos estabelecer fronteiras a não ser considerando a irrupção dos

acontecimentos, dos fatos, para os quais a materialidade, qualificada por Peirce de

brutal, é considerada primeiramente como uma chama, e enquanto tal, um bloco de

materialidade flutuante e irredutível. A qualidade então é focalizada no fato e ordena-se à

sua imagem: ela toma conhecimento de suas bordas, perde toda sua potencialidade e

torna-se um feito singular. O fato, feito, é nada mais que um precipitado de qualidade

endurecida e entificada. Há, diz Peirce, no fato, alguma coisa que não vai bem, que

resiste que tropeça. Que resiste a quê? Ao que resta do dado como qualidade potencial e

da qual a natureza flutuante se choca com a solidez dos gargalos que ela carregou. Toda

singularidade faz da qualidade um fato. As sensações em geral são um composto de

indiferenciados qualitativos e diferenciados factuais. Mas a diferenciação factual não

poderia jamais esgotar as possibilidades do indiferenciado qualitativo potencia”l.

A terceira categoria depois da qualidade e do fato é esta das leis:

“The third category of elements of phenomena consists of what we call laws

when we contemplate them outside, but which when we see both sides of the shield we

call thoughts”.

“As bordas da qualidade se constituem com seu agrupamento como fato: as leis;

é a tomada em consideração das fronteiras nelas mesmas enquanto que tendo um papel

privilegiado. A tendência dos fatos é de reordenação segundo a continuidade original

potencial: como uma corrida de rolamentos (carrinho que desliza) querendo imitar o mar.

Assim é criada uma espécie de continuidade-de-singularidades que é impossível por

definição, diz-nos Peirce. O contínuo é o potencial. O contínuo singularizado não

funciona para todas as singularidades. Claro, o contínuo nada será se não for verificado

em pelo menos uma singularidade. Assim o elemento para o qual é evocado o contínuo é

um compromisso entre o potencial e o singular, que é o geral: the general facts, [fatos

gerais] distinto tanto do fato singular quanto do que se oporia ao potencial. O potencial

seria a ausência de razão para se justificar pelo seu ser. O fato singular é a negação de

qualquer razão que se imponha brutalmente (de maneira bruta). O geral, ao contrário, é a

ordem da razão, do funcionamento, da fórmula. Ele produz a relação entre o potencial e

o singular”: “As general, the law, or general fact, concerns the potential world of quality,

while as fact, in concerns that actual world of actuality”.

“É a matemática como ordem do processo, a ordem da produção. Seu objeto é a

fronteira entre os fatos, que permite sacar seu movimento interno em equilíbrio sempre

instável, que conduz um fato por engendrar outro. Isso se deve ao que, nos general facts,

[fatos gerais] o potencial sempre real continua a se opor às figurações singulares que se

destacam: pelo fato singular nada mais é que uma das realizações possíveis do potencial

ordena o que falta em outras realizações, produz-se em seguida para que ela mesma seja

nada mais que uma singularidade dentre outras etc. A Matemática é a paixão do

quantificador universal. Peirce diz que é como se houvéssemos vestido o potencial com

uma roupa que não é conveniente a seu ser de universalidade e, como não há roupas

universais, desnudamo-lo para que possa vestir uma outra e assim com a esperança de

que um dia tudo possa ser ordenado”:

“Uma série infinita de representações, cada uma representando a precedente,

pode ser concebida como tendo um objeto absoluto em seu limite. O sentido de uma

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

16

representação não poderia ser outra coisa que uma representação. De fato, a

representação em si não é nada, concebida como despojada de vestes inadequadas:

mas essas vestes não poderão ser totalmente sacadas, são somente substituídas por

outras mais diáfanas. Há então uma regressão infinita...” (Vol. I, p.171.)

“A distância entre o fim e os meios muito aparente nessa fórmula é comparável

àquela da pulga e da luva de boxe. O objeto da Matemática é uma impossível

reconciliação. A terceiridade (em referência à Matemática) é sempre para Peirce ao

mesmo tempo produto e totalização dos termos precedentes (primeiridade e

terceiridade) (By the third, I mean the médium [mediação, relação] or connecting

bond [vínculo] between tha absolute first and last), mas totalização fracassada, já que

impossível: totalização que não ultrapassa e não suprime nada. A dialética de Peirce é

materialista: o processo aí está limitado o seu espaço de partida (a falha entre o potencial

e o singular, entre o universal e o existente). O geral, enquanto partícipe ao mesmo

tempo do potencial e da singularidade, concentra nele as duas dimensões das quais

exprime a discordância: a Matemática, por exemplo, deve dar conta destas duas

dimensões e desta discordância que estão em obra em suas definições:

“A definição cantoriana da continuidade não responde a critérios bem

definidos pelo fato de reenviar de forma confusa a todos os pontos o que nos deixa

perplexo. Parece-me necessário sublinhá-lo: é impossível por isso fazer uma idéia da

continuidade sem conceber duas dimensões. Uma linha oval é contínua porque é

impossível passar do interior ao exterior por um ponto da curvatura”. (Vol. VI, § 165).

“Isso quer dizer: para toda possibilidade de uma passagem do interior ao

exterior existe um ponto da curvatura que faz obviedade, o universal estando do lado

do potencial, a singularidade ficará do lado da existência”.

“Vamos agora dar algumas precisões de como se organizam esses diferentes

níveis. Os elementos de cada nível têm como objeto àqueles dos níveis precedentes:

como objeto, significa que eles são tomados na perspectiva formal de sua colocação em

relação com os elementos, que não são eles mesmos, mesmo sendo da mesma categoria.

A operação dessa tomada em perspectiva será tanto a observação de Locke quanto a

interpretação de Peirce. No que concerne à passagem do primeiro nível (qualitativo)

para o segundo (factual) não se trata de uma simples revelação da objetividade dos

elementos, mas de sua própria constituição, por imposição das bordas e fronteiras. O

paradoxo dessa operação é que, pela imposição dessas bordas, acredita dizer a verdade

sobre os elementos, já que eles não são compreensíveis por si próprios e só o serão após

essa transformação. Os novos objetos representam, então, pela operação que os

transforma, os elementos indiferenciados iniciais. É o que diz também Condillac: de um

significado originário e flutuante se destaca algo de diferente, graças à intervenção das

operações do entendimento. Esse algo o chame de significante, não será outra coisa que

o significado originário, mas, transformado. Ele representa ao nível real esse significado,

já que o inscreveu, mas, ao inscrevê-lo, ele fez dele outra coisa. Segundo Port-Royal:

“Mesmo que uma coisa num certo estado não possa ser signo de si mesma

nesse mesmo estado, já que todo signo demanda uma distinção entre a coisa

representante e aquela que é representada, no entanto, é bastante possível que uma

coisa num certo estado possa se representar em outro estado... “Assim a única

distinção de estado basta entre a coisa figurante e a coisa figurada, o que quer dizer

que uma mesma coisa pode ser em certo estado coisa figurante e em outro estado coisa

figurada”. (Logique, I, IV).

“Condillac se dá conta do problema: o significante novo representa o significado

originário, mas por seu ponto de vista atual de significante; : e como representar o

significado, por uma operação que é o campo do significante, senão pelo fato de

transformá-lo em significante, quando então o significado originário estando perdido

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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para a representação, o significante aí então somente representa a si mesmo. Querer

traçar uma linha entre um canto e um outro canto do significado resultará em corte dos

liames. Essa ruptura não explicaria para Peirce a nostalgia que o significante tem do

significado sob a forma do quantificador universal. O que permite essa nostalgia é a

perenidade do potencial: sempre atual, não cessa de apontar a discordância entre suas

possibilidades irredutíveis e a pobreza das realizações que só se produzirão uma única

vez -: uma realização se efetua no lugar da infinidade daquelas que o potencial guardava

em reserva. A inscrição negativa dessa infinidade, pela realização atual, conduz a uma

tentativa de exaustão que consiste em inscrevê-la, por sua vez; mas, desde que uma nova

realização se inscreva, mesmo sendo senão como possibilidade, uma nova infinidade faz-

lhe eco, ao que ela substituiu por ser única. Há aí uma verdadeira progressão aritmética”.

“Em um primeiro tempo, então, o que ainda não tinha valor inscreve-se: como o

que quer se inscrever, é o que poderá sê-lo, a inscrição inicial deve, por sua vez,

inscrever-se como não-única, como pontualidade entre as possibilidades infinitas. É

então a relação da inscrição do que queria ser inscrito que fará objeto de uma segunda

inscrição; e nesse nível a operação se repete”.

“ : potencial como nada de inscrito. : inscrição única do potencial.

: inscrição da primeira inscrição como sem exaustão de seu objeto etc. Se

quiséssemos retomar o quadrante lógico de Peirce, deveríamos, como já sublinhado,

estabelecer que as duas porções que satisfazem verdadeiramente às exigências do

quantificador universal são: uma porção inteiramente branca e uma porção inteiramente

preta”.

“A terceira categoria é das leis; a Matemática tem por objeto o signo como

elemento da fusão do significante destacado do significado assim rebaixado. Como essa

função consiste ativamente em um recorte, é a geração de fronteiras que é o verdadeiro

objeto. Essa categoria e em seguida o signo vem como uma tríade do que ela condensa

os dois níveis precedentes ao qual ela é indissociavelmente ligada, à maneira borroméia,

ou seja, se dois são estabelecidos o terceiro também o será. Desde que é dado o recorte

do material, o funcionamento [a função] tem lugar. No entanto, há uma distinção a ser

feita: se a inscrição do significante como descolado conduz quase necessariamente à

repetição, isso não implica em si a descolagem do significante por si mesmo, que é um

verdadeiro salto, passagem fundamental do potencial à inscrição. A distribuição das três

categorias (qualidade, fatos, leis) responde aos três ramos da Semiótica, e aos três

elementos indecomponíveis do φανερόν [fânero]. Ao mesmo tempo, as três categorias

são categorias de estrutura e é interessante ver que a cada ponto da estrutura corresponde

uma categoria de elementos – (num nível elevado onde estão em causa os signos). Cada

idéia é, inclusive para Peirce, um composto de primeiridade, de secundidade e de

terceiridade, no qual uma das três domina mais particularmente. Assim, toda a teoria de

Peirce decorre de algo como o senso comum, já que a idéia de signo em geral implica a

terceiridade. Mas o valor dessas categorias não sofre por isso nenhum prejuízo, pois, de

um ponto de vista global, o signo é a idéia de signo. É curioso constatar por essa

observação que a constituição real de uma idéia transparece imediatamente, para Peirce,

no seu conteúdo: o que justifica a correspondência entre os estádios genéticos do

processo dos signos, por um lado, e as classes de signos singulares, por outro lado.

Assim, isso se agencia com o fato de que o que caracteriza um signo é a posição de suas

bordas, e o que distingue os três níveis é justamente a função das fronteiras. Há,

entretanto, um paradoxo que aqui se resolve: a primeiridade, a secundidade e a

terceiridade não transparece no conteúdo imediatamente, já que todo signo passa pela

ternaridade [terceiridade]. A primeiridade não pode dominar em uma idéia a não ser que

os outros dois níveis, que dizemos ser indissociáveis, sejam postos negativamente, por

exemplo, como na idéia de liberdade: é livre qualquer coisa que não tenha nada atrás de

Alduisio M. de Souza – Seminário de Leituras 2: As encruzilhadas da linguagem.

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si para determinar suas ações. Há aí, diz Peirce, uma relação negativa com o Outro,

como ground [fundo] negativo do primeiro. Da mesma forma, a idéia secundária põe

negativamente o terceiro termo”.

“O ground [O fundo] é o que representa o geral para o singular: a adequação do

ground [do fundo] geral com o signo mais singular é o problema da gramática

especulativa. O ground [O fundo] permite uma abstração, ao especificar-se como

predicado por um signo singular. (Exemplo: Esse forno é escuro = há escurecimento

nesse forno)”. (1).

“A ciência do elemento matemático do signo é assim a retórica pura, o sistema de

signos sendo a metáfora da falha (2). Não me refiro à exposição didática sobre a

Semiótica de Peirce, que vale por si mesmo, nem àquela de Locke-Condillac-Maine de

Biran. Trabalho já há bastante tempo sobre esses autores para que haja a retomada do

que no começo me surpreendeu, mas que perdeu para mim toda sua graça, surpresa que é

inclusive difícil de resumir. O único ponto que desses estudos não transparece no que

venho dizer sobre Peirce é o problema do tempo e da pontualidade, mas não é nada mais

que um empréstimo que ele toma para formular as mesmas vias do potencial, o que não

tem grande importância”.

[Só para não concluir]:

[“O psicanalista é um mestre de retórica. Continuando na equivocação, diria que

ele rhetifica [rhétifie], o que implica que retifica. O analista sendo um rhéteur [reitor],

que advém do rectus, do latim, equivoca com retificação. Tentamos dizer a verdade.

Tentamos dizer a verdade, mas não é fácil já que há enormes obstáculos para que

possamos dizê-la, pois podemos mesmo nos enganar na escolha das palavras. A Verdade

tem a ver com o Real e o Real é duplicado, se assim podemos dizer, pelo Simbólico”]. O

momento de concluir – Jacques Lacan.

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(1) Cf. DUNS SCOT, Tratactus de modis significandi seu grammatica speculativa; e para a

“singularidade predicativa” a exposição de 12 de dezembro sobre a Lógica de Port-Royal no seminário

do Doutor Lacan, N.A.

(2) No meu manuscrito acabei de escrever: phaille. (N.A.) [Possivelmente referido a phallus, mas não

foi dito pelo autor.] (N.T.)