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SEMINÁRIO TEOLÓGICO PRESBITERIANO REVERENDO ASHBEL GREEN SIMONTON RAFAEL RODRIGUES DA SILVA O PAPEL DAS BOAS OBRAS CRISTÃS: UMA VISÃO REFORMADA

SEMINÁRIO TEOLÓGICO PRESBITERIANO REVERENDO …...cristãos quanto ao papel das obras segundo o padrão estabelecido por Deus, bem como a importância de executá-las da maneira

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  • SEMINÁRIO TEOLÓGICO PRESBITERIANO REVERENDO

    ASHBEL GREEN SIMONTON

    RAFAEL RODRIGUES DA SILVA

    O PAPEL DAS BOAS OBRAS CRISTÃS: UMA VISÃO

    REFORMADA

  • RIO DE JANEIRO2017

    RAFAEL RODRIGUES DA SILVA

    O PAPEL DAS BOAS OBRAS CRISTÃS: UMA VISÃO

    REFORMADA

    Monografia apresentada ao SeminárioTeológico Presbiteriano Reverendo AshbelGreen Simonthon, como requisito final deconclusão do curso.

    Orientador: Reverendo Antônio José do Nascimento Filho

  • RIO DE JANEIRO2017

    AGRADECIMENTOS

    Agradeço, em primeiro lugar, ao meu Deus, criador de todas as coisas e sustentador

    de tudo em minha vida, que me criou para servi-lo e me deu o privilégio de glorificar ao

    nome Dele exercendo o ministério de Sua Santa Palavra. Glorificado seja o nome do

    Senhor!

    Agradeço, especialmente, a minha esposa Juliana, que, mais que uma auxiliadora,

    provou ser o suporte tangível de Deus em minha vida, cuidando de minha mente e coração,

    proporcionando um ambiente tranquilo e apto para os estudos. Seu companheirismo e

    dedicação são impressionantes e inspiradores, e sua paixão por Jesus é admirável.

    Agradeço, também, ao Presbitério Centro-capixaba e à Igreja Presbiteriana de

    Laranjeiras, igreja que me enviou ao seminário, e reconheceu o ministério da Palavra em

    minha vida. Foi um tempo precioso, de muito aprendizado, que vou guardar em minha

    memória por toda a vida.

    Também louvo a Deus pela Primeira Igreja Presbiteriana de Campo Grande, igreja

    que “nasci”, que nos acolheu e que hoje tenho o privilégio de servir como seminarista.

    Agradeço em especial, pela vida do pastor e amigo Rômulo Schade Barcellos e de sua

    esposa, Aline (e das meninas Elis e Júlia), que não só se mostraram amigos na caminhada,

    mas também se fizeram consolo de Deus para o meu coração e de minha esposa. A vida de

    vocês nos inspira, e a amizade, um presente!

  • Agradeço a direção do Seminário Presbiteriano do Rio de Janeiro, em especial na

    pessoa do Reverendo Romer Cardoso dos Santos, que se mostra, cada vez mais, um

    exemplo de fé e práxis cristã. Sua piedade é inspiradora!

    Agradeço, por fim, ao conselho da Igreja Presbiteriana das Graças, à Primeira Igreja

    Presbiteriana de Vila Velha e à Primeira Igreja Presbiteriana do Recife, que me ajudou

    nessa reta final dos estudos nos custos necessários à conclusão desta etapa.

  • SUMÁRIO

    CAPÍTULO 1 – INTRODUÇÃO......................................................................................06

    1.1 DEFINIÇÃO DOS TERMOS........................................................................................08

    1.1.1 Definição de “boas obras”...........................................................................................08

    1.1.2 Definição de “boas obras” no AT................................................................................08

    1.1.3 Definição de “boas obras” no NT................................................................................09

    1.2 BASE CONFESSIONAL...............................................................................................13

    1.2.1 A doutrina das Boas Obras nos Símbolos de Fé de Westminster...............................13

    1.2.2 Exposição da Seção I do Capítulo XVI.......................................................................13

    1.2.3 Exposição da Seção II do Capítulo XVI.....................................................................14

    1.2.4 Exposição da Seção III do Capítulo XVI....................................................................15

    1.2.5 Exposição da Seção IV do Capítulo XVI....................................................................16

    1.2.6 Exposição da Seção V do Capítulo XVI.....................................................................17

    1.2.7 Exposição da Seção VI do Capítulo XVI....................................................................18

    1.2.8 Exposição da Seção VII do Capítulo XVI...................................................................18

    1.2.9 Exposição da Pergunta 73 do Catecismo Maior de Westminster...............................19

    1.3 A DOUTRINA DAS BOAS OBRAS EM ALGUNS DOCUMENTOS DA

    TRADIÇÃO REFORMADA...............................................................................................20

    1.3.1 As Boas Obras como procedentes da fé

    salvadora...............................................................................................................................20

    1.3.2 As Boas Obras como incapazes de justificar por si mesmas, mas como evidências da

    justificação............................................................................................................................21

    1.3.3 As Boas Obras imperfeitas por causa do pecado........................................................23

    1.3.4 As Boas Obras não recompensadas por si mesmas, mas pela graça de Deus.............24

  • CAPÍTULO 2 – A PERSPECTIVA BÍBLICA DAS BOAS OBRAS EM TIAGO EPAULO................................................................................................................................25

    2.1 O APARENTE CONFLITO ENTRE TIAGO E PAULO ACERCA DAS BOAS

    OBRAS.................................................................................................................................25

    2.2 A PERSPECTIVA DE TIAGO.....................................................................................28

    2.2.1 Contexto Histórico/Cultural da Epístola de Tiago......................................................28

    2.2.2 Fé e Obras (Tiago 2.14-26).........................................................................................30

    2.3 A PERSPECTIVA DE PAULO.....................................................................................32

    2.3.1 Contexto Histórico/Cultural da Epístola de Efésios....................................................32

    2.3.2 Fé e Obras (Efésios 2.1-10).........................................................................................33

    2.4 RESUMO.......................................................................................................................35

    CAPÍTULO 3 – A PERSPECTIVA TEOLÓGICA ACERCA DAS BOAS OBRAS..36

    3.1 MARTINHO LUTERO..................................................................................................36

    3.2 JOÃO CALVINO...........................................................................................................41

    3.3 OS PURITANOS...........................................................................................................48

    CAPÍTULO 4 – A PERSPECTIVA BÍBLICO-CONTEMPORÂNEA ACERCA DASBOAS OBRAS....................................................................................................................52

    4.1 AS BOAS OBRAS E O PACTO DE LAUSANNE I....................................................52

    4.2 AS BOAS OBRAS E O PACTO DE LAUSANNE II...................................................58

    4.3 AS BOAS OBRAS E O PACTO DE LAUSANNE III..................................................59

    4.4 O CONSELHO DE AÇÃO SOCIAL DA IGREJA PRESBITERIANA DO BRASIL

    (CAS-IPB)............................................................................................................................64

    CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................68

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................71

  • 7

    CAPÍTULO 1 - INTRODUÇÃO

    Com o advento do movimento Renascentista no fim do século XVII e posteriormente

    o Iluminismo no século XVIII, o homem se tornou o centro da história e a partir disso, a

    salvação de sua alma passou a ser definida por atitudes que dizem respeito às ações do

    homem, também conhecidas por boas obras.

    Infelizmente, essa influência antropocêntrica tem se infiltrado dentro das igrejas

    evangélicas, que buscam fugir da passividade e da inércia cristã focando todos seus

    esforços em obras, desprezando o ensino de caráter doutrinário em suas igrejas.

    O resultado direto desse fato são igrejas abarrotadas, mas de pessoas rasas no

    conhecimento das Escrituras (Bíblia Sagrada), que vivem e acreditam que sua aceitação e

    aprovação por Deus depende de seu sucesso em realizar boas obras, cujos líderes priorizam

    a “execução prática” visando apenas resultados numéricos, desprezando os referenciais e

    limites das Escrituras, relativizando a fé e o serviço cristão a meras boas ações em prol do

    ser humano, como se a humanidade detivesse a liberdade de servir a Deus como bem

    entendesse.

    É de suma importância entender que por melhores que sejam nossas obras, nunca

    serão dignas de merecimento do perdão de pecado e vida eterna, pois não podemos saldar a

    dívida de nossos pecados anteriores.

    Embora as obras feitas pelos não regenerados sejam coisas que Deus ordena, e úteis

    tanto a eles mesmos quanto a outros, não procedem de corações purificados pela fé,

    portanto, não são feitas devidamente segundo a Palavra, nem para um fim justo que é

    glorificar a Deus.

    A Bíblia Sagrada, como regra de fé e prática, possui métodos e princípios que nos

    possibilitam servir a Deus e agradá-lo em qualquer área de nossa vida. Portanto, é de suma

  • 8

    importância que aquele que busca agradar verdadeiramente a Deus, e ser reconhecido

    como um salvo em Cristo Jesus conheça a identidade, pessoa, obra e mandamentos dele,

    revelados nas Escrituras.

    O interesse em realizar este estudo relacionado à Perspectiva Cristã das Boas Obras

    surgiu a partir de atividades evangelísticas que me envolvi junto à igreja, em que pude

    observar a grande estima que as pessoas davam ao fato de se julgarem dignas da Salvação

    em Cristo Jesus por praticarem boas obras.

    Isso me motivou a verificar sistematicamente o papel das obras na perspectiva cristã

    a partir de um estudo aprofundado, expondo à luz das Escrituras Sagradas que Deus tem o

    seu método próprio como parâmetro absoluto para definir o que são obras “boas” e o que

    são obras “más”.

    As informações geradas terão relevância para a conscientização de cristãos e não

    cristãos quanto ao papel das obras segundo o padrão estabelecido por Deus, bem como a

    importância de executá-las da maneira que O agrada.

    O objetivo é comprovar a partir das Verdades Bíblicas e da Teologia Reformada que

    existem padrões e condições estabelecidos por Deus que necessitam ser cumpridos para

    que Ele seja agradado e obedecido por meio das boas obras.

    A explanação do tema servirá tanto para explicar biblicamente a posição reformada

    sobre a importância das boas obras, como resultado de uma vida transformada por Cristo, e

    não como veículo salvífico, como para incentivar a correta prática delas, que honram e

    glorificam o nosso Deus e Senhor.

    1.1 DEFINIÇÃO DOS TERMOS

  • 9

    Alguns termos serão usados com grande frequência neste trabalho, portanto, se faz

    necessário defini-los para que haja consenso entre o que quer ser transmitido pelo autor,

    em virtude da compreensão do leitor.

    Os termos serão definidos em conformidade com a Teologia Reformada,

    logicamente, fundamentados completamente na Bíblia Sagrada.

    1.1.1 Definição de “boas obras”

    A definição de “boas-obras” será dada a partir dos princípios estabelecidos por Deus

    em sua Escritura, se utilizando dos termos em sua linguagem original, ou seja, hebraico

    para o Antigo Testamento (AT) e grego para o Novo Testamento (NT).

    1.1.2 Definição de “boas obras” no AT

    A partir de uma simples pesquisa podemos inferir que não existe a expressão “boas

    obras” nos escritos do AT, entretanto, o capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster,

    que trata das “Boas Obras”, cita algumas referências que tratam o assunto em seu contexto.

    Deuteronômio 10.12-13: “Agora, pois, ó Israel, que é que o SENHOR requer de ti?

    Não é que temas o SENHOR, teu Deus, e andes em todos os seus caminhos, e o ames, e

    sirvas ao SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração e de toda a tua alma, para guardares os

    mandamentos do SENHOR e os seus estatutos que hoje te ordeno, para o teu bem?”

    1Samuel 15.22: “Porém Samuel disse: Tem, porventura, o SENHOR tanto prazer em

    holocaustos e sacrifícios quanto em que se obedeça à sua palavra? Eis que o obedecer é

    melhor do que o sacrificar, e o atender, melhor do que a gordura de carneiros”.

    2Reis 10.30: “Pelo que disse o SENHOR a Jeú: Porquanto bem executaste o que é

    reto perante mim e fizeste à casa de Acabe segundo tudo quanto era do meu propósito, teus

    filhos até à quarta geração se assentarão no trono de Israel”.

  • 10

    Miquéias 6.8: “Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR

    pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu

    Deus”.

    Podemos inferir a partir dos textos acima que “boas obras” são somente aquelas que

    Deus ordena de acordo com os seus estatutos e propósitos, não as que são aconselhadas

    pelos homens movidos de um zelo cego ou sob qualquer outro pretexto de boa intenção.

    Prosseguindo em nossa verificação iremos analisar o texto de Eclesiastes 12.14, por

    ser o único texto no AT que as expressões “boas” e “obras” aparecem no mesmo

    versículo1:

    Porque Deus há de trazer a juízo todas as obras, até as que estãoescondidas, quer sejam boas, quer sejam más2.

    O termo hebraico para “obras” nesse texto é )mהמֲעעֶשש (ma·‘ă·śêh); substantivo

    masculino que pode ser traduzido por trabalho ou feito3.

    O termo hebraico para “boas” nesse texto é בטו (ṭôḇ); adjetivo procedente do verbo

    .ṭôḇ): ser bom, ser agradável, ser amável, ser excelente, ser correto4) בטו

    Sendo assim, podemos entender que “boas obras” segundo o contexto

    veterotestamentário é um trabalho executado de maneira correta e que seja bom, agradável

    e em obediência a Deus, seus estatutos e propósitos.

    1 Pesquisa eletrônica através do programa “Logos Bible Software”, no módulo Bíblia Hebraica Stuttgartensia: with Westminster 4.2 Morphology.

    2 A Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. 2ª Ed. Edição Almeida Revista e Atualizada no Brasil. SãoPaulo: SBB, 1977, grifo meu.

    3 Pesquisa eletrônica através do programa “Olive Tree Bible Study”, no módulo Almeida Revista e Atualizada (RA) com Strongs.

    4 Idem.

    http://biblehub.com/hebrew/bemaaseh_4639.htmhttp://biblehub.com/hebrew/vetov_2895.htmhttp://biblehub.com/hebrew/vetov_2895.htm

  • 11

    Mais adiante iremos definir o termo a partir da base confessional desta pesquisa.

    1.1.3 Definição de “boas obras” no NT

    O termo “boas obras” aparece catorze vezes no NT5. Seguem abaixo os textos

    bíblicos na versão Almeida Revista e Atualizada em que os termos “boas obras” são

    encontrados, e seus respectivos correspondentes gregos descritos na Bíblia Grega.

    “Assim brilhe também a vossa diante dos homens, para que vejam as vossas boas

    obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus”. (Mateus 5.16, grifo meu) - καλὰ ἔργα

    (kalá erga).

    “Disse-lhes Jesus: Tenho-vos mostrado muitas obras boas da parte do Pai; por qual

    delas me apedrejais?” (João 10.32, grifo meu) - ἔργα καλὰ (erga kalá).

    “Havia em Jope uma discípula por nome Tabita, nome este que, traduzido, quer dizer

    Dorcas; era ela notável pelas boas obras e esmolas que fazia”. (Atos 9.36, grifo meu) -

    ἔργων ἀγαθῶν (érgon agathôn).

    “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de

    antemão preparou para que andássemos nelas”. (Efésios 2.10, grifo meu) - ἔργοις ἀγαθοῖς

    (érgois agathoís).

    “[...], porém com boas obras (como é próprio às mulheres que professam ser

    piedosas)”. (1Timóteo 2.10, grifo meu) - ἔργων ἀγαθῶν (érgon agathôn).

    “[...] seja recomendada pelo testemunho de boas obras, tenha criado filhos,

    exercitado hospitalidade, lavado os pés aos santos, socorrido a atribulados, se viveu na

    prática zelosa de toda boa obra. (1Timóteo 5.10, grifo meu) - ἔργοις καλοῖς (érgois kaloís).

    5 Pesquisa eletrônica através do programa “Olive Tree Bible Study”, no módulo Almeida Revista e Atualizada (RA) com Strongs.

  • 12

    “Da mesma sorte também as boas obras, antecipadamente, se evidenciam e, quando

    assim não seja, não podem ocultar-se”. (1Timóteo 5.25, grifo meu) - ἔργα τὰ καλὰ (erga tá

    kalá).

    “[...] que pratiquem o bem, sejam ricos de boas obras, generosos em dar e prontos a

    repartir;” (1Timóteo 6.18, grifo meu) - ἔργοις καλοῖς (érgois kaloís).

    “Torna-te, pessoalmente, padrão de boas obras. No ensino, mostra integridade,

    reverência,” (Tito 2.7, grifo meu) - καλῶν ἔργων (kalôn érgon).

    “[...] o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e

    purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras”. (Tito 2.14,

    grifo meu) - καλῶν ἔργων (kalôn érgon).

    “Fiel é esta palavra, e quero que, no tocante a estas coisas, faças afirmação,

    confiadamente, para que os que têm crido em Deus sejam solícitos na prática de boas

    obras. Estas coisas são excelentes e proveitosas aos homens”. (Tito 3.8, grifo meu) -

    καλῶν ἔργων (kalôn érgon).

    “Agora, quanto aos nossos, que aprendam também a distinguir-se nas boas obras a

    favor dos necessitados, para não se tornarem infrutíferos”. (Tito 3.14, grifo meu) -

    καλῶν ἔργων (kalôn érgon).

    “Consideremo-nos também uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas

    obras”. (Hebreus 10.24, grifo meu) - καλῶν ἔργων (kalôn érgon).

    “[...] mantendo exemplar o vosso procedimento no meio dos gentios, para que,

    naquilo que fala contra vós outros como de malfeitores, observando-vos em vossas boas

    obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação”. (1Pedro 2.12, grifo meu) - καλῶν ἔργων

    (kalôn érgon).

  • 13

    Podemos inferir que nos textos gregos existem dois termos (com suas devidas

    variações) para a palavra “boas” [καλóς (kalós) e αγαθóς (agathós)] e um termo para a

    palavra “obras” [ἔργoν (érgon)]6.

    Segue abaixo uma análise lexicográfica de cada palavra:

    καλóς, ή, óν (kálos, é, ón): Pode ser traduzido, neste contexto, por moralmente bom,

    nobre. A palavra “καλóς” aparece 64 vezes no NT com esse sentido. Também é definido

    como: bonito (2 vezes), melhor (8 vezes), certo (6 vezes), honroso (4 vezes), nobre (2

    vezes), bem (1 vez), honesto (1 vez)7.

    αγαθóς, ή, óν (agathós, é, ón): É traduzido por útil, saudável, bom, de boa

    constituição ou natureza, agradável, amável, excelente, honrado8.

    ἔργoν , oυ, τó (érgon, ou, to): Proveniente do verbo trabalhar. É traduzido por

    negócio, serviço, empreendimento, tarefa, aquilo com o que alguém está ocupado, aquilo

    que alguém se compromete a fazer.

    Sendo assim, podemos entender que o termo “boas obras” no NT possui a ideia de

    uma tarefa que produz frutos que sejam bons, excelentes e honrados, e que cumprem seus

    objetivos dentro de um propósito.

    1.2 BASE CONFESSIONAL

    6 Novo Testamento Grego. Disponível em https://net.bible.org/

    7 Pesquisa eletrônica através do programa “Logos Bible Software”, no móduloThe Lexham Sintactic Greek NewTestament, SBL Edition: Expansions and Annotations.

    8 Pesquisa eletrônica através do programa “Olive Tree Bible Study”, no módulo Almeida Revista e Atualizada (RA) com Strongs.

  • 14

    1.2.1 A doutrina das Boas Obras nos Símbolos de Fé de Westiminster.

    Iniciaremos coma a Confissão de Fé de Westminster que teve seu esboço inicial

    preparado a partir de outubro de 1644, com a plena participação dos representantes da

    Igreja da Escócia. No dia 26 de novembro de 1646 o texto ficou pronto, com a exceção do

    prefácio e de algumas emendas que foram concluídas em 4 de dezembro de 16469.

    A Confissão de Fé de Westminster é um dos símbolos de fé da Igreja Presbiteriana do

    Brasil e aborda com maestria no seu capítulo XVI a respeito das boas obras. Portanto, faz-

    se necessário uma explanação de tal capítulo por meio da exposição de cada seção presente

    e, também, através de comentários a respeito das afirmações contidas, analisando-as com

    base nas Escrituras.

    1.2.2 Exposição da Seção I do capítulo XVI

    A seção I do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster afirma:

    Boas obras são só aquelas que Deus ordenou em sua santa Palavra, e nãoaquelas que, sem a autorização dela, são inventadas pelos homens que,movidos por um zelo cego, nutrem alguma pretensão de boa intenção10.

    Alexander A. Hodge afirma que essa seção nos propõe que, para as obras serem

    realmente boas devem conter algumas características essenciais: deve ser algo direto ou

    implicitamente ordenado por Deus, e deve provir de um princípio interno da fé e amor no

    coração, caso contrário, são totalmente destituídas de caráter moral, e, se oferecidas no

    lugar da obediência requerida, são ofensivas11.

    Louis Berkhof, em sua Teologia Sistemática afirma:

    9 MATOS, Alderi. História da Confissão de Fé de Westminster. Disponível em http://www.mackenzie.com.br/7060.html

    10 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.124.

    11 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.299.

    http://www.mackenzie.com.br/7060.html

  • 15

    Eis as características das obras espiritualmente boas: (1) São frutos de umcoração regenerado, visto que, sem isso, ninguém pode ter a disposição(obedecer a Deus) e o motivo (glorificar a Deus) exigidos, Mt 12.33; 7.17,18. (2) Não estão apenas em externa conformidade com a lei de Deus, mastambém são feitas com consciente obediência à vontade revelada de Deus,isto é, porque são exigidas por Deus. Elas brotam do princípio do amor aDeus e do desejo de fazer a sua vontade, Dt 6.2; 1Sm 15.22; Is 1.12; 29.13;Mt 15.9. (3) Seja qual for o seu objetivo, seu alvo final não é o bem-estardo homem, mas a glória de Deus, que é o supremo alvo concebível da vidahumana. 1Co 10.31; Rm 12.1; Cl 3.17-2312.

    A Seção I nos infere, portanto, que não podemos julgar as obras dos homens com

    base nos benefícios sociais morais que elas possivelmente venham causar, mas sim pelo

    padrão perfeito de Deus.

    1.2.3 Exposição da Seção II do capítulo XVI

    Prosseguindo, a seção II do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster afirma:

    Estas obras feitas em obediência aos mandamentos de Deus, são o fruto eevidências de uma fé viva e verdadeira; por ela os crentes manifestam suagratidão, fortalecem sua certeza, edificam seus irmãos, adornam a profissãodo evangelho, fecham a boca dos adversários e glorificam a Deus, de cujafeitura somos, criados em Cristo Jesus para isso mesmo, a fim de que,tendo seu fruto para a santidade, tenham no final a vida eterna13.

    Alexander A. Hodge afirma que esta seção estabelece os efeitos e usos das boas obras

    na vida dos cristãos, a saber: 1. Expressam a gratidão dos cristãos e manifestam a graça de

    Deus, e assim adornam a profissão do evangelho; 2. Glorificam a Deus; 3. Desenvolvem a

    graça através de exercício, e assim fortalecem a certeza do crente; 4. Edificam os irmãos;

    5. Fecham a boca dos adversários; 6. São necessárias para a consolidação da vida eterna14.

    12 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, 4ª edição revisada, p. 497.

    13 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.126.

    14 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.300.

  • 16

    A Seção II nos propõe, portanto, que as boas obras devem ser realizadas em

    obediência aos mandamentos de Deus, para assim configurar fruto de uma fé viva e

    verdadeira, pois por meio dessas obras podemos manifestar nossa gratidão a Deus, bem

    como edificar o nosso próximo; ser padrão para aqueles que não conhecem a Cristo, e

    também, cessar as falácias caluniosas a nosso respeito, levando-os a glorificarem a Deus e

    desfrutarem no final a eternidade.

    1.2.4 Exposição da Seção III do capítulo XVI

    A seção III do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster afirma:

    A capacidade de fazer boas obras de modo algum provém dos crentes, masinteiramente do Espírito de Cristo. A fim de que sejam para issohabilitados, além da graça que já receberam, é necessário que recebam ainfluência efetiva do mesmo Espírito Santo para operar neles tanto o querercomo o realizar segundo o seu beneplácito; contudo, não devem, por isso,tornar-se negligentes, como se não fossem obrigados a cumprir qualquerdever senão quando movidos especialmente pelo Espírito; pelo contrário,devem esforçar-se por dinamizar a graça de Deus que está neles15.

    Alexander A. Hodge em seu comentário da Confissão de Fé de Westminster expõe:

    Esta seção assevera:

    1. Que a capacidade do cristão para realizar boas obras não é de formaalguma dele próprio, mas totalmente do Espírito de Cristo. 2. Que paraisso, além da graça implantada na regeneração, há necessidade de umacontinua influência do Espírito Santo em todas as faculdades da almarenovada, pela qual o cristão é capacitado a querer e a agir segundo seubeneplácito. 3. Que esta doutrina da dependência absoluta da alma nãodeve ser pervertida, dando ocasião à indolência, nem diminuir em qualquergrau nosso senso de obrigação pessoal. A vontade de Deus nos é exibidaobjetivamente na Palavra escrita. O dever em relação à obediênciavoluntária obriga nossas consciências. O Espírito Santo não operaindependentemente da Palavra, e, sim, através da Palavra; nem realiza ele aobra à parte de nossas faculdades constitucionais da razão, da consciência eda vontade, mas através delas. Daí, segue-se que jamais honraremos oEspírito Santo, esperando por seus impulsos especiais; ao contrário, nosentregamos a ele e com ele cooperamos quando, enquanto buscamos suaorientação e assistência, usamos todos os meios de graça e todas as nossasmelhores energias, sendo e fazendo tudo quanto a lei de Deus requer de

    15 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.128.

  • 17

    nós. Deus aprova não é aquele que fica a esperar pela graça, mas sempreaquele que busca a graça e pratica sua palavra. Lc 11.9-13; Tg 1.22,2316.

    O Teólogo Reformado João Calvino afirma que Deus começa a boa obra em nós

    despertando o amor em nosso coração, o desejo e o zelo pela justiça, dirigindo-nos o

    coração, ou seja, o próprio Deus, na pessoa do Espírito Santo, nos instrui e nos guia

    naquilo que ele quer que façamos para honra e louvor da glória dEle17.

    Esta seção assegura que é o Espírito Santo o responsável por despertar o homem a

    fazer o que é bom, e que a capacidade do cristão realizar boas obras não é de forma alguma

    dele próprio, mas totalmente do Espírito Santo. A presente seção assegura também que a

    doutrina da dependência absoluta do Espírito Santo não deve ser pervertida, fazendo com

    que o homem regenerado viva na expectativa de uma revelação sobrenatural por parte do

    próprio Espírito, nem diminuir de forma alguma o seu senso de obrigação pessoal, como se

    estivesse desobrigado de realizar qualquer obra.

    1.2.5 Exposição da Seção IV do capítulo XVI

    Nestes termos se manifesta a Seção IV do capítulo XVI da Confissão de Fé de

    Westminster:

    Os que alcançam, mediante sua obediência, a maior perfeição que lhe épossível nesta vida estão longe de exceder e de fazer mais do que Deusrequer e não são capazes de corresponder aos muitos deveres que sãoobrigados a cumprir18.

    Alexander A. Hodge comenta que, com base nesta seção, as chamadas “obras de

    supererrogação” estão longe de ser possíveis:

    16 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.303-304.

    17 FERREIRA, Franklin. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 2007, p.884.

    18 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.129.

  • 18

    O termo “supererrogação” significa “mais do que exigido”. As obras desupererrogação são, em sua própria natureza, impossíveis à luz da lei moralde Deus19.

    João Calvino também definiu detalhadamente o termo:

    “Obras de supererrogação” são aquelas obras praticadas pelos fiéis e queexcederam o que lhes era necessário para a sua salvação, e que estão empoder da igreja, disponíveis para o benefício de quem precisar20.

    Esta seção afirma, portanto, que o homem, mesmo justificado por Deus mediante a

    fé, ainda assim não possui qualquer mérito diante dele, pois, como foi visto anteriormente,

    o seu querer e o seu realizar provém do próprio Deus.

    1.2.6 Exposição da Seção V do capítulo XVI

    A seção V do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster afirma:

    Não podemos, por meio de nossas melhores obras, merecer da mão de Deuso perdão de pecado, ou a vida eterna, em razão da imensa desproporção quehá entre elas e a glória por vir, e a infinita distância que há entre nós eDeus, a quem não podemos ser úteis nem quitar a dívida de nossos pecadosanteriores; mas quando tivermos feito tudo quanto pudermos, outra coisanão fizemos senão nosso dever, e seremos servos inúteis; e porque, sendoboas, elas provêm do Espírito; e, como são realizadas por nós, elas sãomanchadas e misturadas com tantas fraquezas e imperfeições, que nãopodemos suportar a severidade do juízo divino21.

    Prosseguindo o raciocínio que vem sendo desenvolvido, reafirma-se que as boas

    obras humanas, por melhores que sejam, não são merecedoras do favor de Deus, pois

    sempre se apresentarão a ele com alguma imperfeição.

    19 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.305.

    20 CALVINO, João. As Institutas. Vol. II. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 218.

    21 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.130.

  • 19

    A presente seção se vale do princípio defendido na seção anterior, afirmando que a

    obediência a Deus não garante ao homem qualquer tipo de mérito, pois o que o capacita a

    fazê-lo é o próprio Deus, e sua obediência ainda será falha pelo pecado que habita nele.

    1.2.7 Exposição da Seção VI do capítulo XVI

    Prosseguindo, a seção VI do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster

    afirma:

    Não obstante, sendo as pessoas dos crentes aceitas através de Cristo, suasboas obras são também aceitas nele; não como se fossem, nesta vida,perfeitamente intocáveis e incensuráveis à vista de Deus; mas que ele,vendo-as através de seu Filho, aprouve aceitar e recompensar o que é feitocom sinceridade, ainda que seja acompanhado de intocáveis fraquezas eimperfeições22.

    Alexander A. Hodge afirma:

    Não obstante, as boas obras dos crentes sinceros são, como o são suaspessoas, a despeito de suas imperfeições, aceitas em virtude de sua uniãocom Cristo Jesus, e galardoadas por amor dele. Todos os nossos acessos aDeus são feitos através de Cristo23.

    Ressalta-se, portanto, nesta seção, que nossas obras só são aceitas por meio de Cristo,

    que cumpriu as exigências do pacto das obras em favor do seu povo, e oferece os

    benefícios de sua obediência perfeita mediante o pacto da graça; que não anula o pacto das

    obras, antes é entendido como a oportunidade concedida graciosamente ao homem por

    Cristo, mediante a fé nele.

    1.2.8 Exposição da Seção VII do capítulo XVI

    Finalizando, a seção VII do capítulo XVI da Confissão de Fé de Westminster afirma:

    22 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.131.

    23 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.308.

  • 20

    As obras realizadas pelos não-regenerados, ainda que sejam, quanto àmatéria, coisas que Deus ordena e de bom proveito tanto a eles mesmosquanto a outros, contudo, porque não procedem de um coração purificadopela fé, não são praticadas de uma maneira correta, segundo a Palavra, nemcom um propósito correto, que é a glória de Deus, são, portanto,pecaminosas, nem podem agradar a Deus, e nem levar uma pessoa areceber a graça de Deus. E, não obstante, negligenciá-las é ainda maispecaminoso e ofensivo a Deus24.

    De início, Alexander A. Hodge afirma:

    É óbvia a distinção entre uma ação intrinsecamente considerada, econsiderada em seus motivos e objetivos. Uma obra verdadeiramente boa éaquela que emana de um princípio de amor divino, e tem a glória de Deuscomo seu alvo e a vontade revelada de Deus como sua norma. Nenhumadas ações de uma pessoa não regenerada contém esse caráter25.

    Com isto, encerra-se esta seção, reafirmando que, à luz da Escritura e da tradição

    reformada, pode-se perceber que toda e qualquer obra só poderá ser aceita diante de Deus

    se for ordenada por Ele, for feita mediante Jesus Cristo, visar sua glória e demonstrar viva

    obediência, fruto de um coração regenerado.

    Abordaremos agora a parte que nos convém a respeito das boas obras do Catecismo

    Maior de Westminster, concluído em 22 de março de 1648 e adotado como símbolo de fé

    da Igreja Presbiteriana em 1729.

    1.2.9 Exposição da Pergunta 73 do Catecismo Maior de Westminster.

    Como é que a fé justifica o pecador diante de Deus?

    R: A fé justifica o pecador diante de Deus não por causa das demais graçasque sempre a acompanham, nem por causa das boas obras que delaresultam, nem como se a graça da fé, ou qualquer ação dela decorrente, lhefosse imputada para a justificação, mas apenas como o instrumento peloqual ele recebe e aplica Cristo e Sua justiça a si mesmo.

    Ref. Gl 3.11; Rm 3.2826.

    24 A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, 17ª edição, p.133.

    25 Confissão de Fé de Westminster Comentada por A. A. Hodge. São Paulo: Os Puritanos, 1999, 2ª edição, p.310.

  • 21

    Johannes Geerhardus Vos comenta tal questão da seguinte forma:

    A Escritura contrasta a fé com “a lei” e “as obras”; não somos, portanto,justificados por aquelas graças que acompanham a fé, ou pelas boas obrasque são frutos da fé. Rm 4.5 comparado a Rm 10.10. Crer em Cristo para ajustificação é comparado a trabalhar pela salvação, a fé não é, portanto,uma obra do crente, mas o aceitar da obra de Cristo. Por isso a fé em saimesma não é impulsionada ao crente como a base da sua justificação27.

    Sendo assim, o único fundamento da nossa justificação é a expiação e a justiça do

    nosso Salvador Jesus Cristo. Somos salvos pela graça, mediante a fé, por conta da justiça

    de Cristo. A fonte da nossa salvação é a graça, o meio da nossa salvação é a fé, e o

    fundamento da nossa salvação é a obra consumada de Cristo.

    1.3 A DOUTRINA DAS BOAS OBRAS EM ALGUNS DOCUMENTOS DA

    TRADIÇÃO REFORMADA.

    Apresentar-se-á neste ponto como o conceito de boas obras é mostrado em

    documentos da fé reformada. Exclui-se desta análise a Confissão de Fé de Westminster,

    pois o capítulo XVI da mesma, que trata do assunto em questão, foi exposto, na íntegra, no

    ponto anterior do trabalho. Portanto, passa-se a abordar a questão das boas obras em alguns

    dos principais documentos da tradição reformada, fazendo citações deles em trechos que

    defendem pontos similares, e verificando a exatidão das afirmações à luz da Escritura.

    26 O Catecismo Maior de Westminster Comentado por Johannes Geerhardus Vos. São Paulo: Os Puritanos, 2007, 1ª edição, p. 206.

    27 O Catecismo Maior de Westminster Comentado por Johannes Geerhardus Vos. São Paulo: Os Puritanos, 2007, 1ª edição, p. 206.

  • 22

    1.3.1 As boas obras como procedentes da fé salvadora

    Confissão Belga (1561) Artigo 24:

    [...] Estas obras, se procedem da boa raiz da fé; são boas e agradáveis aDeus, porque todas elas são santificadas por sua graça. Entretanto, elasnão são levadas em conta para nos justificar. Porque é pela fé em Cristoque somos justificados, mesmo antes de fazermos boas obras. De outromodo, estas obras não poderiam ser boas, assim como o fruto da árvore nãopode ser bom, se a árvore não for boa [...]28.

    Catecismo de Heidelberg (1563):

    Pergunta 91: Que são boas obras? Resposta: São somente aquelas que são feitas com verdadeira féconforme a lei de Deus e para sua glória; não são aquelas que se baseiamem nossa própria opinião ou em tradições humanas29.

    Segunda Confissão Helvética (1566):

    Ensinamos que as verdadeiras boas obras nascem de uma fé viva, peloEspírito Santo, e são praticadas pelos fiéis segundo a vontade ou a regrada Palavra de Deus [...]30.

    Percebe-se que os documentos citados estão em perfeita harmonia nos seus ensinos

    entre si e com as Escrituras neste ponto, pois, somente podem ser chamadas de “boas” as

    obras que são consequência da obra de salvação de Cristo, na cruz. Essas obras autenticam

    a salvação recebida por uma fé eficaz e operante, e desperta o homem por ela alcançado a

    lutar contra a natureza pecaminosa que ainda está presente nele por meio da obediência aos

    perfeitos padrões de Deus.

    28 BRES, Guido; OLEVIANO, Gaspar; URSINO, Zacarias. Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 12 (grifo meu).

    29 Ibid, p.74.

    30 Segunda Confissão Helvética. Capítulo XVI. Disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf (grifo meu).

    http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf

  • 23

    1.3.2 As boas obras como incapazes de justificar por si mesmas, mas como

    evidências da justificação.

    Confissão Belga (1561) Artigo 24:

    [...] Estas obras, se procedem da boa raiz da fé; são boas e agradáveis aDeus, porque todas elas são santificadas por sua graça. Entretanto, elas nãosão levadas em conta para nos justificar. Porque é pela fé em Cristo quesomos justificados, mesmo antes de fazermos boas obras. De outro modo,estas obras não poderiam ser boas, assim como o fruto da árvore não podeser bom, se a árvore não for boa [...]31.

    Catecismo de Heidelberg (1563)

    Pergunta 62: Mas por que nossas boas obras não nos podem justificarperante Deus, pelo menos em parte?

    Resposta: Porque a justiça que pode subsistir perante o juízo de Deusdeve ser absolutamente perfeita e completamente conforme a lei deDeus. Entretanto, nesta vida, todas as nossas obras, até as melhores, sãoimperfeitas e manchadas por pecados32.

    Segunda Confissão Helvética (1566):

    Portanto, desaprovamos tais obras, mas aprovamos e estimulamos aquelasque são da vontade e de mandado de Deus. Essas mesmas obras nãodevem ser praticadas para, por meio delas, ganharmos a vida eterna,pois, como diz o apóstolo, a vida eterna é dom de Deus. Nem devem serelas praticadas por ostentação, o que o Senhor rejeita (Mateus 6), nem paralucro, o que também ele rejeita (Mateus 23), mas para a glória de Deus,para adornar a nossa vocação, para manifestar gratidão a Deus e parabenefício do próximo33.

    Também neste ponto pode-se verificar que os documentos citados encontram-se em

    perfeita harmonia entre si mesmos e com as Escrituras. Destaca-se que as obras que são

    31 BRES, Guido; OLEVIANO, Gaspar; URSINO, Zacarias. Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 12 (grifo meu).

    32 Ibid, p.62.

    33 Segunda Confissão Helvética. Capítulo XVI. Disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf (grifo meu).

    http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf

  • 24

    consideradas “boas” são posteriores à justificação, e que qualquer obra praticada antes ou

    fora deste evento são rejeitadas por Deus, pois são feitas fora dos padrões dele.

    1.3.3 As boas obras imperfeitas por causa do pecado

    Confissão Belga (1561) Artigo 24:

    [...] E, em seguida, mesmo que façamos boas obras, nelas nãofundamentamos nossa salvação. Porque, por sermos pecadores, nãopodemos fazer obra alguma que não esteja contaminada e não mereçaser castigada. E, ainda que pudéssemos produzir uma só boa obra, alembrança de um só pecado bastaria para torná-la rejeitável perante Deus.Assim, sempre duvidaríamos levados de um lado para o outro, sem certezaalguma, e nossa pobre consciência estaria sempre aflita, a não ser que seapoiasse no mérito do sofrimento e da morte de nosso Salvador34.

    Catecismo de Heidelberg (1563):

    Pergunta 62: Mas por que nossas boas obras não nos podem justificarperante Deus, pelo menos em parte?

    Resposta: Porque a justiça que pode subsistir perante o juízo de Deus deveser absolutamente perfeita e completamente conforme a lei de Deus.Entretanto, nesta vida, todas as nossas obras, até as melhores, sãoimperfeitas e manchadas por pecados35.

    Segunda Confissão Helvética (1566):

    [...] Além disso, mesmo nas obras dos santos há muitas coisas indignasde Deus e muitas mais que são imperfeitas. Mas, porque Deus recebe emgraça e acolhe os que praticam obras por amor a Cristo, confere-lhes aprometida recompensa. A assim que em outro contexto as nossas justiçassão comparadas a “trapo de imundícia” (Is 64.6)36.

    34 BRES, Guido; OLEVIANO, Gaspar; URSINO, Zacarias. Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 12 (grifo meu).

    35 Ibid, p.62.

  • 25

    É ponto comum entre os documentos citados que mesmo depois da salvação, as obras

    dos homens continuam sendo imperfeitas. Porém, o homem alcançado pela graça salvadora

    de Deus está apto, em razão dessa obra graciosa, a agradar a Deus como ele quer ser

    agradado.

    1.3.4 As boas obras não recompensadas por si mesmas, mas pela graça de Deus

    Confissão Belga (1561) Artigo 24:

    [...] Contudo, não queremos negar que Deus recompensa as boas obras;mas, por sua graça, Ele coroa seus próprios dons37.

    Catecismo de Heidelberg (1563):

    Pergunta 63: Nossas boas obras, então, não têm mérito? Deus não prometerecompensá-las, nesta vida e na futura?

    Resposta: Essa recompensa não nos é dada por mérito, mas por graça38.

    Segunda Confissão Helvética (1566):

    Ensinamos que Deus dá uma rica recompensa aos que praticam boasobras [...] Atribuímos, entretanto, esta recompensa, que o Senhor dá,não ao mérito do homem que a recebe, mas à bondade ou generosidadee veracidade de Deus, que a promete e a dá, e que, embora não deva nadaa ninguém, contudo prometeu que dará recompensa a seus fiéis adoradores;mas ele lhes dá para que eles o adorem39.

    36 Segunda Confissão Helvética. Capítulo XVI. Disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf (grifo meu).

    37 BRES, Guido; OLEVIANO, Gaspar; URSINO, Zacarias. Confissão Belga e Catecismo de Heidelberg. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 12 (grifo meu).

    38 Ibid, p.62.

    39 Segunda Confissão Helvética. Capítulo XVI. Disponível em http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf (grifo meu).

    http://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdfhttp://www.monergismo.com/textos/credos/seg-confissao-helvetica.pdf

  • 26

    Os documentos citados harmonizam-se entre si, como pode ser analisado. Logo,

    podemos inferir que não há desacordos entre tais confissões, nem pontos conflitantes com

    as Escrituras ou com este trabalho, no que tange à definição de Boas Obras e seus

    desdobramentos, conforme analisadas exaustivamente na exposição do Capítulo XVI da

    Confissão de Fé de Westminster. Destaca-se que a recompensa que o homem recebe por

    praticar as boas obras provém da graça de Deus, mesma fonte da obra de salvação. A

    salvação tem seu início na iniciativa de Deus em purificar o homem, convencendo-o da sua

    obra de salvação. E, uma vez, que é o próprio Deus que efetua no homem tanto o querer,

    quanto o realizar40, então, ao recompensar uma obra do homem, Deus o está fazendo de

    fato com base em sua graça, pois todas as obras do homem que são consequência de

    salvação também têm sua origem nele. Encerra-se esse ponto afirmando que não há

    desacordos entre os documentos, nem pontos conflitantes com as Escrituras ou com este

    trabalho.

    CAPÍTULO 2 – A PERSPECTIVA BÍBLICA DAS BOAS OBRAS EM TIAGO E

    PAULO

    2.1 O APARENTE CONFLITO ENTRE TIAGO E PAULO ACERCA DAS BOAS

    OBRAS

    É impossível desenvolvermos o assunto sem mensurar o aparente conflito entre Tiago

    e Paulo a respeito da fé e obras; assunto esse que foi discutido, até mesmo, por Martinho

    Lutero e João Calvino41.

    40 Cf. Filipenses 2.13.

    41 DAVID, Peter. The Epistole of James. Pennsylvania: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1982, p. 47.

  • 27

    Tanto Tiago quanto Paulo desenvolvem o tópico de fé e obras, cada um em sua

    perspectiva e cada um com seu propósito.

    Tiago escreve em sua epístola: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que

    tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?” (Tiago 2.14)

    Paulo escreve: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é

    dom de Deus, não de obras, para que ninguém se glorie”. (Efésios 2.8-9)

    Será que Tiago contradiz Paulo ou quer complementá-lo?

    Tiago salienta que as obras caminham lado a lado com a fé, enquanto Paulo enfatiza a

    justificação pela fé e não pelas obras.

    A relação entre fé e obras é diferente para Tiago e Paulo?

    É essencial que este assunto seja investigado. Uma grande diversidade de

    comentaristas responde a esta pergunta.

    Quanto ao questionamento levantado, Simon Kistemaker afirma:

    Paulo está dizendo uma coisa e Tiago outra? De forma alguma. Na verdade,Tiago observa um lado da moeda chamada fé, e Paulo, o outro. Em outraspalavras, Tiago explica o lado ativo da fé, e Paulo, o lado passivo. De certomodo, os escritores dizem a mesma coisa, mesmo encarando a fé porperspectivas diferentes. Paulo se dirige ao judeu que procura obter asalvação obedecendo à Lei de Deus. Para ele, Paulo diz: “Não são as obrasda lei, mas a fé em Cristo que produz a salvação”. Tiago, pelo contrário,dirige seus comentários à pessoa que diz ter fé, mas não a coloca emprática42.

    Russel Shed também comenta o assunto:

    “Vejam que uma pessoa é justificada por obras, e não apenas pela fé”(Tiago 2.24). Superficialmente, contradiz diretamente o ensino paulino:“Ninguém será declarado justo diante dele baseando-se na obediência àLei” (Romanos 3.20). Mas não; devemos entender que Paulo se refere àdependência da Lei, e não à transformação de vida de uma pessoa egoísta e

    42 KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.27.

  • 28

    avarenta transformado em humilde, generoso, capaz de se sacrificar porórfãos e viúvas. Por isso a fé salvadora é também transformadora43.

    Tiago ensina que existe uma relação íntima entre fé e obras. A fé motiva as obras e as

    obras não podem ser separadas da fé. Para Paulo, fé é o meio de unir-se a Cristo, e inclui

    um compromisso de obediência a Cristo.

    João Calvino trata a questão no segundo volume de As Institutas:

    Em suma, Tiago não discute o meio pelo qual somos justificados, masexige dos crentes aos quais escreve uma justiça que se manifeste pelasobras. E assim como Paulo afirma que o homem é justificado sem ajuda dassuas obras, assim também Tiago não admite que aquele que se diz justoesteja desprovido de boas obras44.

    De semelhante forma, François Vouga discute o assunto:

    Mas será que Tiago está realmente em conflito com o próprio Paulo?Antes, parece-nos que está em discussão com cristãos que se servem daherança paulina para exprimir uma interpretação helenizada e conformistado cristianismo contra a qual o Apóstolo já tivera de bater-se: a fé, segundoessa interpretação. De certa maneira, e na tradição que é sua, Tiago lembra,depois de Paulo, que a fé é compreensão nova da existência45.

    E por fim, Douglas J. Moo faz sua análise da questão em voga:

    [...] Tiago e Paulo estão de acordo na compreensão que possuemsobre fé e obras e o relacionamento delas com a justificação. Tiagonão está dizendo que a fé não pode salvar; ele está afirmando que a féque esta pessoa afirma ter, uma fé sem obras, não pode salvar.Portanto, embora a opinião de Tiago acerca da fé não seja diferentedaquela defendida por Paulo e todo o Novo Testamento, em Tiago2.14-26 “fé” quase sempre se refere a uma fé “espúria” que nemPaulo nem Tiago considerariam como a genuína fé cristã. Paulo eTiago também estão operando com interpretações de “obras”basicamente semelhantes: qualquer coisa feita em obediência a Deuse a serviço dele. A diferença entre Paulo e Tiago está na sequênciadas obras e da conversão: Paulo nega a eficácia de obras praticadas

    43 SHEDD, Russel. Uma exposição de Tiago. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 94.

    44 CALVINO, João. As Institutas. Vol. II. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 251.

    45 VOUGA, François. A carta de Tiago. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 93.

  • 29

    antes da conversão, mas Tiago está apelando à necessidade absolutade obras praticadas depois dela46.

    Podemos observar que os comentaristas citados são unânimes quanto ao

    posicionamento de não haver conflito entre Tiago e Paulo acerca das boas obras, mas sim

    que estão trabalhando sob perspectivas distintas de acordo com o seu contexto e cultura.

    Quando Tiago aborda a questão da fé certamente não está se referindo a uma

    declaração doutrinária de fé, como, por exemplo, o testemunho de que Jesus é o Senhor47.

    A diferença entre expressar fé numa confissão e confessar nossa fé ativamente em palavras

    e obras é que a fé expressa numa confissão pode resultar apenas em concordância

    intelectual sem obras para confirmá-la.

    Paulo por sua vez, em sua discussão, representa um estágio avançado do ensinamento

    que relaciona a fé com obras. Fé é o meio pelo qual o cristão é justificado diante de Deus 48.

    A fé é o meio pelo qual o cristão se apropria dos méritos de Cristo, capacitando-o a

    executar as boas obras.

    No intuito de embasar solidamente esse assunto iremos fazer a seguir uma análise,

    separadamente, da perspectiva de Tiago e Paulo a respeito do tema proposto.

    2.2 A PERSPECTIVA DE TIAGO

    2.2.1 Contexto Histórico/Cultural da Epístola de Tiago

    A Epístola refere-se ao seu público como "as doze tribos que se encontram na

    dispersão" (Tiago 1.1). Os leitores eram judeus, pois o termo “doze tribos” é uma

    46 MOO, Douglas. Tiago: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1985, p. 101-102.

    47 Cf. 1Coríntios 12.3

    48 Cf. Efésios 2.8

  • 30

    referência bíblica a Israel49, que deve ser entendida de forma figurativa, e não literalmente.

    Tiago se dirige a representantes dessas doze tribos que, pela obra de Cristo, são agora o

    novo Israel50.

    A linguagem utilizada, também, apoia que a epístola foi endereçada aos judeus. A

    maneira natural de mencionar o AT51, a referência ao lugar onde os destinatários se

    reuniam como uma sinagoga52 e o uso disseminado de metáforas do Antigo Testamento e

    do judaísmo53. Além disso, o novo Testamento descreve Tiago como um ministro para os

    judeus54.

    Tiago também comenta sobre as “primeiras e as últimas chuvas”55, descrição essa que

    se encaixa no clima de Israel, e não no clima de outros países ao redor do Mar

    Mediterrâneo56.

    Tiago não indica em sua epístola nenhuma referência explícita de tempo ou de

    circunstâncias específicas que possa nos ajudar a determinar uma data exata, mas se

    revisarmos o conteúdo da epístola e analisarmos as referências indiretas à cultura e às

    condições da época na qual o autor escreveu, seremos capazes de determinar a data

    aproximada em que a carta foi escrita.

    Kistemaker afirma em seu comentário:

    49 Cf. Êxodo 24.4

    50 KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.15.

    51 Cf. Tiago 1.25; 2.8-13

    52 Cf. Tiago 2.2

    53 CARSON. D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.460.

    54 Cf. Gálatas 2.9

    55 Cf. Tiago 5.7

    56 KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.15.

  • 31

    Tiago escreveu sua epístola depois de tornar-se líder da igreja de Jerusalém,no ano de 44 d.C., e antes de morrer como mártir, em 62 d.C [...]. Tiagonão indica uma divisão entre cristãos e judeus, o que é um tantopronunciado nos evangelhos e nas epístolas [...]. Pelo fato de nada naepístola de Tiago indicar controvérsia entre judeus e gentios que levou àconvocação da reunião geral dos apóstolos e presbíteros em Jerusalém(Atos 15), a carta provavelmente foi escrita antes dessa reunião do concílio.Os estudiosos acreditam que o concílio reuniu-se no ano de 49 d.C57.

    De acordo com Kirstemaker não podemos datar exatamente a elaboração da carta,

    mas podemos afirmar que ocorreu em meados da década de 40; posição essa, também

    adotada por Augustos Nicodemos58, Douglas J. Moo59, D. A. Carson60 e Russel Shedd61 em

    seus respectivos comentários da epístola de Tiago.

    2.2.2 Fé e Obras (Tiago 2.14-26)

    Usaremos como texto base para abordar o assunto o capítulo 2, versos 14-26, por se

    tratar de um texto que enfatiza bem a relação fé e obras.

    A palavra fé é encontrada nessa passagem onze vezes e na forma do verbo “crer” é

    encontrada três vezes. Fé, nessa passagem, tem dois significados: a fé verdadeira que

    resulta em obras que mostram um estilo de vida cristão aprovado e demonstram que o

    cristão encontra-se em um relacionamento de salvação com Deus, e a fé que está morta,

    57 Ibid, p.30-31.

    58 LOPES, Augustus Nicodemus. Interpretando o Novo Testamento: Tiago. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 19.

    59 MOO, Douglas. Tiago: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1985, p. 34.

    60 CARSON. D. A. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997, p.459.

    61 SHEDD, Russel. Uma exposição de Tiago. São Paulo: Shedd Publicações, 2010, p. 9.

  • 32

    sem obras, meramente intelectual e sem valor. Uma fé desacompanha de obras não é

    autêntica e, portanto, difere completamente da fé que tem um compromisso com Cristo62.

    Para Tiago, a fé e as obras andam juntas e não podem ser separadas, pois a verdadeira

    fé resulta em obras aprovadas por Deus.

    A relação entre fé e obras é ilustrada pelos exemplos de Abraão e Raabe. Tiago

    escreveu: “Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas

    obras que a fé se consumou”63. Tiago conecta a fé de Abraão com as suas obras e conclui

    que operando juntas lhe creditaram justiça.

    A palavra grega “συνήργει” traduzida por “operava” tem o significado de “trabalhar

    em conjunto”. O prefixo “συν” significa “em conjunto/junto” frente a palavra “ἔργoν” que

    significa “trabalho/obras” 64, ou seja, a fé em conjunto com a obra creditaram justiça a

    Abraão, que não hesitou em sacrificar Isaque no altar65.

    Por sua vez, fé e obras também são evidentes na vida de Raabe, pois ela também

    demonstrou sua fé no Deus de Israel, ao esconder os espias hebreus, poupando suas vidas e

    mandando-os para um lugar seguro, e agiu pela fé66. Por essa razão, ela é considerada

    justificada. Assim como Abraão, Raabe colocou sua fé em prática no cotidiano. Deus a

    justificou por causa da sua fé, que foi demonstrada por meio de suas obras67.

    62 KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.124.

    63 Cf. Tiago 2.22

    64 Pesquisa eletrônica através do programa “Olive Tree Bible Study”, no módulo Almeida Revista e Atualizada (RA) com Strongs.

    65 Cf. Gênesis 22

    66 Cf. Josué 2

    67 KISTEMAKER, Simon. Comentário do Novo Testamento – Tiago e Epístolas de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.139.

  • 33

    É importante salientar que Abraão e Raabe não foram justificados por meio de sua

    obra aprovada, pois o pecador não pode justificar-se a si mesmo por meio de suas próprias

    obras, por melhores que sejam.

    Para Tiago e Paulo, as obras são uma consequência natural da verdadeira fé68. É

    evidente, como já foi demonstrado anteriormente na Seção V do capítulo XVI da

    Confissão de Fé de Westminster, que o ser humano não pode usar suas boas obras para

    alcançar o favor de Deus, mas o recebe como dádiva de Deus – pela graça e por meio da

    fé, “não de obras”, diz Paulo, “para que ninguém se glorie”69. Portanto, por si mesmas, as

    obras não têm poder de salvar. Mas, no contexto que Tiago escreve sua epístola, afirma a

    necessidade das obras para a salvação. Entretanto, Tiago não está sugerindo aos seus

    leitores que, por meio das suas obras, eles podem ser salvos. Pelo contrário, ele ensina que

    as obras fluem de um coração que foi salvo por Deus70.

    Kistemaker afirma que Tiago não deixa implícito que uma pessoa que tem a

    verdadeira fé pode trabalhar para merecer a salvação, pois elimina essa possibilidade no

    versículo 24. “Vocês vêem que uma pessoa é justificada [por Deus] por aquilo que ela faz,

    e não somente pela fé”. Deus justifica a pessoa tendo como base não os méritos, mas a

    graça.

    O uso que Tiago faz da palavra “justificar” é diferente do uso feito por Paulo. Paulo

    interpreta o termo dentro de um contexto legal – como se o homem estivesse em um

    tribunal. Tiago usa uma abordagem bem mais prática e diz que a pessoa que expressa sua

    fé por intermédio de obras é justificada por Deus71.

    68 Cf. Filipenses 1.27; 1Tessalonicenses 1.3; Tiago 2.20-24

    69 Cf. Efésios 2.8-9

    70 KISTEMAKER, Simon, op. cit., p.125.

    71 DAVIDS, Peter H. The Epistole of James: A commentary on the Greek Text. Grand Rapids: Eerdmans, 1982, p. 132.

  • 34

    Em suma, nesta passagem, Tiago tenta provar, historicamente, que fé e obras andam

    juntas e toma como exemplo o episódio de Abraão e Raabe, a fim de mostrar que fé e

    obras formam uma unidade. Tiago emprega a imagem de um corpo sem vida, no qual não

    há mais espírito, assim também é a fé desprovida de obras, morta72.

    2.3 A PERSPECTIVA DE PAULO

    2.3.1 Contexto Histórico/Cultural da Epístola de Efésios

    Usaremos como base a Epístola de Paulo aos Efésios, pois, segundo Arthur Patzia,

    Efésios é considerada um resumo da teologia de Paulo, ou o elevado louvor da teologia de

    Paulo para a igreja de outra geração73. Portanto, julgamos relevante analisar a perspectiva

    de Paulo sobre o tema proposto a partir da Epístola de Efésios.

    Há uma discussão sobre quem eram os destinatários da Epístola de Efésios. As

    palavras “em Éfeso74” não são encontradas nos manuscritos mais antigos existentes75.

    O mais antigo manuscrito de Efésios que possuímos, o papiro de “Chester Beatly” do

    ano 200, os grandes códices do quarto século, Sinaítico e Vaticano, e algumas outras fontes

    autorizadas, não têm as palavras “em Éfeso76”. Entretanto, Hendriksen nos dá uma

    excelente explicação, também defendida por João Calvino77, amplamente aceita na

    atualidade:

    72 Cf. Tiago 2.26

    73 PATZIA, Arthur. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo: Efésios, Colossenses, Filemon. São Paulo: Vida, 1995, p. 125.

    74 Cf. Efésios 1.1

    75 HENDRIKSEN, Willian. Comentário do Novo Testamento – Efésios. São Paulo: Cultura Cristã, 1992, p.73.

    76 FOULKES, Francis. Efésios: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 16.

    77 CALVINO, João. Efésios: Comentário à Sagrada Escritura. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 15.

  • 35

    A carta foi dirigida aos crentes que residiam na província da qual Éfeso eraa principal cidade. Era uma carta circular, destinada não só à igreja local,mas também às congregações da Ásia Proconsular78.

    Podemos, então, concluir que a Epístola foi circular, e, de fato foi destinada aos

    efésios, sendo escrita em Roma, em meados do período 61-62 d.C.

    A Bíblia de Estudo de Genebra também se posiciona a respeito da data e ocasião da

    Epístola de Efésios:

    A prisão de Paulo mencionada em Efésios 3.1 e 6.20 é a mesma referida emColossenses 4.3,10,18, e foi, provavelmente, a prisão domiciliar de doisanos de Paulo em Roma (60-62 d.C), descrita em Atos 2879.

    2.3.2 Fé e Obras (Efésios 2.1-10)

    Usaremos como texto base para abordar o assunto o capítulo 2, versos 1-10, por se

    tratar de um texto que enfatiza bem a relação fé e obras.

    Ao definirmos fé “πιστις” (pistis) e obras “εργον” (ergon), devemos considerar o

    contexto de Paulo. Devemos analisar o que Paulo quer dizer com a frase “mediante a fé”.

    O que é “fé”? A salvação é mediante a fé e “não de obras”, mas por que Paulo escreve que

    fomos criados em Jesus Cristo para boas obras? Qual é o lugar correto das boas obras?

    O objeto da fé é o próprio Jesus Cristo, como ressaltam os versículos 4-7. Deus, rico

    em misericórdia, mesmo sendo tão pecadores, deu-nos vida com Cristo. A fé é o modo que

    a salvação vem, não a causa dela.

    Lloyd Jones comenta brilhantemente a respeito da fé:

    78 HENDRIKSEN, Willian. Comentário do Novo Testamento – Efésios. São Paulo: Cultura Cristã, 1992, p.75.

    79 Bíblia de Estudo de Genebra. São Paulo: Cultura Cristã e SBB, 1999, p. 1399.

  • 36

    A fé é o canal, é o instrumento através do qual a salvação, por meio dagraça, vem a mim. A fé, por si só, não salva, nem a crença, somente Jesussalva80.

    Berkhof nos dá um panorama a respeito da fé, nas Epístolas paulinas, de grande valia:

    Paulo teve que contender particularmente com o legalismo inveterado dopensamento judaico. Os judeus jactavam-se da justiça da Lei.Consequentemente, o apóstolo teve que reivindicar o lugar da fé como oúnico instrumento da salvação. Ao fazê-lo, naturalmente se demoravalongamente em Cristo como o objeto da fé, desde que é unicamente desteobjeto de fé que deriva a sua eficácia. A fé justifica e salva somente porqueela se agarra a Jesus Cristo81.

    A fé é a convicção produzida no coração pelo Espírito Santo, quanto à veracidade do

    Evangelho, e a confiança nas promessas de Deus em Cristo. A fé, por si só, justifica os

    ímpios, de forma que as obras da lei não tem nenhum benefício salvífico.

    Paulo explica a doutrina da justificação pela graça, mediante a fé, contra a

    compreensão de que um relacionamento com Deus pode ser alcançado e mantido através

    das obras da lei82.

    A fé é muito mais do que apenas conhecimento intelectual de Jesus Cristo; é o

    veículo pelo qual os pecadores são salvos. A fé é uma confiança de todo o coração em

    Deus, que por meio de sua graça nos dá a salvação como um presente, além de todos os

    esforços e obras83.

    80 JONES, Lloyd. A Unidade Cristã. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 98.

    81 BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Sâo Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 460.

    82 Idem.

    83 BAVINCK, Herman. Dogmática Reformada, Vol. 4. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 130.

  • 37

    Paulo usa o termo “obras” de duas maneiras distintas: primeiramente de forma

    negativa, “não de obras84”; posteriormente, de forma positiva, “criados em Cristo Jesus

    para boas obras85”.

    Paulo enfatiza que as “boas obras” não contribuem em nada para a salvação. O termo

    “obras” é a antítese da graça, pois “pela graça sois salvos... não de obras”. A graça de Deus

    para a salvação é um dom, um presente, e como é um dom, logo, não é pela virtude

    humana, ou seja, boas obras.

    “As obras” em um sentido positivo, utilizado pelo apóstolo, significa que as “boas

    obras” fazem parte da nova vida, como uma condição inalienável, ou seja, sua nova criação

    deve ser encarada como sendo para uma vida em justiça e retidão86.

    O fato é que as obras não são meritórias, mas são tão importantes que Deus nos criou

    a fim de que a praticássemos. Além de nos criar, Deus, também preparou as boas obras,

    primeiramente, dando-nos seu Filho, nosso grande Habilitador, em quem as boas obras

    encontram sua mais gloriosa expressão. Jesus não só nos habilita a realizar as boas obras,

    mas Ele também é o nosso exemplo na prática delas87.

    2.4 RESUMO

    A partir dessas informações podemos perceber que Paulo e Tiago não estão se

    contradizendo, Mas sim, abordando a fé e obras sob perspectivas distintas. Tiago explica o

    lado ativo da fé, não admitindo que aquele que se diz possuidor da fé salvífica esteja

    84 Cf. Efésios 2.9

    85 Cf. Efésios 2.10

    86 FOULKES, Francis. Efésios: Introdução e Comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 66.

    87 HENDRIKSEN, Willian. Comentário do Novo Testamento – Efésios. São Paulo: Cultura Cristã, 1992, p.158.

  • 38

    desprovido de boas obras. Tiago não discute o meio pelo qual somos justificados, mas

    exige dos crentes uma justiça que se manifeste pelas obras.

    Paulo, por sua vez, explica o lado passivo da fé, recebida em Cristo Jesus que produz

    a salvação. Assim como Paulo afirma que o homem é justificado sem ajuda das suas obras,

    assim também Tiago não admite que aquele que se diz justo esteja desprovido de boas

    obras.

    Quando Tiago aborda a questão da fé certamente não está se referindo a uma

    declaração doutrinária de fé, como, por exemplo, o testemunho de que Jesus é o Senhor88.

    A diferença entre expressar-se fé numa confissão e confessar nossa fé ativamente em

    palavras e obras é que a fé expressa numa confissão pode resultar apenas em concordância

    intelectual sem obras para confirmá-la.

    Paulo por sua vez, em sua discussão, representa um estágio avançado do ensinamento

    que relaciona a fé com obras. Fé é o meio pelo qual o cristão é justificado diante de Deus 89.

    A fé é o meio pelo qual o cristão se apropria dos méritos de Cristo, capacitando-o a

    executar as boas obras.

    CAPÍTULO 3 – A PERSPECTIVA TEOLÓGICA ACERCA DAS BOAS OBRAS

    3.1 MARTINHO LUTERO

    Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, filho de um

    minerador de prata de classe média. Destinado para o estudo de Direito, voltou-se para o

    mosteiro, no qual, após muitas lutas, desenvolveu uma nova compreensão de Deus, da fé e

    da igreja. Isso o envolveu num conflito com o papado, seguido de sua excomunhão da

    88 Cf. 1Coríntios 12.3

    89 Cf. Efésios 2.8

  • 39

    Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e da fundação da Igreja Luterana, a qual

    presidiu até morrer, em 154690.

    Foi, sobretudo, o sistema de penitências desenvolvido pela igreja católica romana, e o

    tráfico das indulgências, que deu ímpeto a Lutero para iniciar sua obra de reforma91.

    No dia 31 de outubro de 1517, Lutero fixou na porta da igreja do castelo de

    Wittenberg, suas 95 teses, que contrapunham as doutrinas da ICAR, marcando

    historicamente o começo da Reforma Protestante.

    Berkhof faz um comentário a respeito de Lutero:

    Estava ele mesmo profundamente imerso em obras de penitenciais quando,com base em Romanos 1.17, raiou-lhe a verdade que o homem é justificadoexclusivamente pela fé, e ele pôde entender que o arrependimento, exigidoem Mateus 4.17, nada tem em comum com as obras de reparaçãopostuladas pelo romanismo; antes, o arrependimento consiste de realcontrição íntima do coração, como fruto da graça de Deus comexclusividade92.

    Por meio do conhecimento e estudo das Escrituras Sagradas, Lutero chegou à

    conclusão de que a ICAR havia distorcido a doutrina das boas obras, e estava equivocada

    ao estabelecer penitências, por meio das quais os fieis poderiam obter o perdão pelos seus

    pecados.

    Lutero chegou a seguinte conclusão:

    [...] a justiça do justo não é obra sua, mas dom de Deus. A justiça de Deus éa que tem quem vive pela fé, não porque seja em si mesmo justo, ou porquecumpra as exigências da justiça divina, mas porque Deus lhe dá esse dom. ajustificação pela fé não quer dizer que a fé seja uma obra mais sutil que asboas obras, e que Deus nos paga por essa obra. Quer dizer sim que, tanto afé como a justificação do pecador, são obras de Deus, dom gratuito93.

    90 GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 53.

    91 BERKHOF, Louis. A história das doutrinas cristãs. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 195.

    92 Idem.

  • 40

    Lutero, portanto, entendeu que todas as suas tentativas de satisfazer a Deus – orações,

    jejuns, vigílias, boas obras – deixavam-no com uma consciência totalmente intranquila.

    Além disso, ele criticava persistentemente Paulo, meditando dia e noite em seu estudo na

    torre, até que:

    [...] comecei a entender que “a justiça de Deus” significava aquela justiçapela qual o homem justo vive mediante o dom de Deus, isto é, pela fé. Éisso o que significa: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, umajustiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé,como está escrito: “Aquele que pela fé é justo, viverá”. Aqui, senti queestava nascendo completamente de novo e havia entrado no próprio paraísoatravés de portões abertos94.

    A doutrina da justificação de Lutero caiu como uma bomba na paisagem teológica do

    catolicismo medieval. Ela arrasou toda a teologia dos méritos. Jacob Hochstraten,

    inquisidor dominicano de Colônia, considerava blasfêmia Lutero descrever a união da alma

    com Cristo como um matrimônio espiritual baseado na fé somente:

    Como pode Cristo ser unido assim a um pecador? Isso significa tornar aalma “uma prostituta e adúltera” e o próprio Cristo, “um alcoviteiro eprotetor covarde da desgraça dela”95.

    Hochstraten estava chocado com o significado da mensagem de Lutero. Mas ela não

    é menos chocante do que a afirmação de Paulo na qual estava embasada: “Deus justifica os

    ímpios”, nem a narrativa de Jesus acerca do pai amoroso que dá as boas-vindas a seu filho

    rebelde, mesmo estando ele ainda coberto de lama do chiqueiro.

    93 GONZÁLES, Justo. Uma história ilustrada do cristianismo: A era dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1981, p. 54.

    94 GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 64.

    95 Ibid, p.73.

  • 41

    Então, será que Lutero não tinha lugar algum para as boas obras? Será que Lutero

    abriu porta ao antinomismo, a visão de que os cristãos são isentados pela graça da

    necessidade de observar qualquer lei moral? De forma alguma. Lutero entendia que de

    maneira alguma somos justificados pelas obras, mas elas devem seguir-se à fé como seu

    fruto característico:

    “Sim”, você diz: “mas a fé não justifica sem as obras da lei?” Sim, éverdade. Mas onde está a fé? Que acontece a ela? Onde ela se mostra?Porque, certamente, ela não pode ser uma coisa tão apática, inútil, surda oumorta, deve ser uma árvore viva e produtiva, que dê frutos96.

    Para Lutero o fruto da justificação é a fé ativa no amor. Tal amor é dirigido em

    primeiro lugar não a Deus, na esperança de conseguir algum mérito para a salvação, mas

    ao próximo, porque o cristão vive não em si mesmo, mas em Cristo e em seu próximo.

    Lutero incitava os cristãos a realizarem boas obras, a partir de um amor espontâneo,

    em obediência a Deus por causa dos outros. Por outras palavras, a justificação pela fé

    somente liberta-me para amar meu próximo desinteressadamente, por causa dele mesmo,

    com meu irmão ou irmã, não como meio calculado para meus próprios objetos desejados.

    Visto que não mais carregamos o insuportável peso da autojustificação, estamos livres para

    ser Cristo uns para os outros, para nos consumirmos em favor dos outros, mesmo como

    Cristo também nos amou e deu a si mesmo por nós97.

    Em suas “95 teses” podemos ver a preocupação de Lutero em relação à prática de

    boas obras, mais focada nas questões de justiça social. Mesmo conhecendo a relevância

    das boas obras, ele rejeita a concepção de que os pecados são perdoados pelas boas obras

    realizadas e pela compra de indulgências.

    96 GEORGE, Timothy. Teologia dos Reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 74.

    97 Idem.

  • 42

    Seis teses, dentre as 95, abordam claramente o pensamento de Lutero sobre as boas

    obras com relação à justiça social:

    42 – Deve-se ensinar aos cristãos que não é pensamento do papa que acompra de indulgências possa, de alguma forma, ser comparada com asobras de misericórdia. 43 – Deve-se ensinar aos cristãos que, dando ao pobre ou emprestando aonecessitado, procedem melhor do que se comprassem indulgências.44 – Ocorre que através da obra de amor cresce o amor e a pessoa se tornamelhor, ao passo que com as indulgências ela não se torna melhor, masapenas mais livre da pena.45 – Deve-se ensinar aos cristãos que quem vê um carente e o negligenciapara gastar com indulgências obtém para si não as indulgências do papa,mas a ira de Deus.46 – Deve-se ensinar aos cristãos que, se não tiverem bens em abundância,devem conservar o que é necessário para sua casa e de forma algumadesperdiçar dinheiro com indulgência.51 – Deve-se ensinar aos cristãos que o papa estaria disposto – como é seudever – a dar o seu dinheiro àqueles muitos de que alguns pregadores deindulgências extraem ardilosamente o dinheiro, mesmo que para isto fossenecessário vender a Basílica de S. Pedro98.

    Em 1520, Lutero publicou uma carta aberta à Nobreza Cristã da Alemanha,

    convocando-os a se unirem contra Roma. Negou os poderes sobrenaturais do papa e do

    clero, provou que todos os cristãos tem acesso a Deus mediante a fé em Cristo e afirmou

    que qualquer crente sincero podia interpretar as Escrituras, não somente o papa, e

    denunciou a corrupção, visando à reforma econômica e social por parte do Estado para

    melhorar a vida dos menos privilegiados economicamente99.

    Segundo o entendimento de Lutero, a justiça social é dividida em duas espécies, que

    foram abordadas em seu sermão, intitulado “Sermão sobre as duas espécies de justiça”100.

    Nesse sermão, Lutero discorre sobre a justiça que vem de Deus, cuja qual, Cristo é justo e

    98 BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 2001, p. 285, 286, 287.

    99 NICHOLS, Robert. História da Igreja Cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 164.

    100 LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol. 1. São Leopoldo e Porto Alegre: Sinodal Concórdia, 1987, p. 242, 243.

  • 43

    justifica pela fé os homens, e a justiça humana, que é reflexo daquilo que Cristo fez em

    favor do homem perdido.

    Dessa forma prosseguimos na vida cristã, partindo da primeira espécie de justiça para

    a segunda espécie de justiça, e nesta caminhada as boas obras desempenham um papel

    importante, como um sinal de que a fé verdadeira de fato existe em nós, por meio de Jesus

    Cristo.

    Portanto, podemos afirmar que para Lutero as boas obras compõem a segunda

    espécie de justiça – a justiça humana –, testemunhando que fomos alcançados pela

    primeira espécie de justiça – a justiça de Deus. E tais obras, motivadas por um amor

    espontâneo, em obediência a Deus em prol dos outros, confirma que somos livres para

    sermos servos uns para os outros, para nos consumirmos em favor dos outros, como Cristo

    nos amou e deu a si mesmo por nós.

    3.2 JOÃO CALVINO

    João Calvino nasceu em 1509, na França, filho de pais de classe média residentes da

    cidade de Noyon. Seu pai trabalhava como secretário do bispo e procurador da biblioteca

    central, e devido a este contato com as camadas eclesiásticas, utilizou de tal benefício para

    custear os ensinos de Calvino101.

    Em Noyon, no colégio dos Capetos, o futuro Reformador iniciaria os seus estudos,

    tomaria as primeiras lições de latim e preparar-se-ia para os estudos mais elevados na

    Universidade, em Paris. Enquanto a Europa começava a agitar-se com as questões

    religiosas levantadas por Martinho Lutero, ao pregar as suas 95 teses na porta da capela de

    Wittemberg, um jovem menino começava a se preparar para ser o grande consolidador da

    101 GONZÁLES, Justo. Uma história ilustrada do cristianismo: A era dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1981, p.108.

  • 44

    Reforma, o autor da teologia dogmática, sólida, bíblica, postulador de uma ética e filosofia

    cristãs genuínas e de uma forma de governo democrático e viril102.

    O relato sobre a conversão de Calvino é, ao mesmo tempo, revelador e enigmático.

    Ele indica que considerava a si mesmo separado por Deus, como havendo sido chamado

    para servir a Deus. Os conceitos centrais à doutrina da justificação pela fé de Lutero

    ecoavam no jovem Calvino: Deus chama os pecadores, os rejeitados e aqueles que não têm

    esperança, aqueles que são estúpidos e fracos aos olhos do mundo.

    Há importantes paralelos entre o relato de Calvino sobre sua própria conversão e seus

    comentários sobre a conversão de Paulo, sugerindo que ele reconhecia uma afinidade

    histórica e religiosa entre os dois eventos103.

    Mesmo não sendo possível precisar as circunstâncias e a data da súbita conversão de

    Calvino; contudo, as evidências apontam para um período entre 1532 e 1534 (entre 23 e 25

    anos), portanto, em Orléans ou Paris.

    Assim como Martinho Lutero, João Calvino se opôs ao conceito salvífico das boas

    obras enfatizado pela ICAR. A ênfase do pensamento de Calvino estava baseada na

    soberania de Deus e na salvação exclusiva pela graça.

    Em sua máxima literária, As Institutas, Calvino reserva o Capítulo VI do segundo

    volume, exclusivamente para tratar sobre a justificação pela fé e os méritos das obras.

    Calvino afirma que a justificação é por meio da fé em Cristo Jesus; tal fé não é ociosa

    e destituída de boas obras, assim por ela obtemos a justiça gratuita, graças à misericórdia

    de Deus; sendo também necessário entender quais são as boas obras dos santos104.

    102 FERREIRA, Wilson. Calvino: Vida, Influência e Teologia. Campinas: Luz para o Caminho, 1985, p. 37.

    103 MCGRATH, Alister. A Vida de João Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.89.

    104 CALVINO, João. As Institutas. Vol. II. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 187.

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    Em seu entendimento, o homem seria justificado por suas obras, se em sua vida

    houvesse tal pureza que mereceria o título de justo diante de Deus, ou então, aquele que

    pela integridade das suas obras, pudesse responder e satisfazer ao juízo de Deus.

    Entretanto, o verdadeiro justificado pela fé é aquele que sendo excluído da justiça das

    obras, apropria-se da justiça de Cristo pela fé, e revestido desta, comparece a presença de

    Deus, não mais como pecador, mas como justo105.

    Ele prossegue abordando um ponto muito importante, que trata a “justiça mista”,

    visto que muitas pessoas imaginam a justiça pela fé e pelas obras. Muitos imaginam que a

    fé em Cristo e suas atividades religiosas e agradáveis diante da sociedade são, igualmente,

    necessárias para conseguir o favor de Deus Pai. Contudo, a justiça da fé difere da justiça

    das obras, pois se uma for estabelecida, a outra será anulada. O apóstolo Paulo afirma que

    considera “todas estas coisas” como “refugo, para ganhar a Cristo, e ser achado nele, não

    tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça

    que procede de Deus, baseada na fé106”.

    Calvino observa que o apóstolo, nessa passagem, as compara, por contraste, como

    coisas contrárias, e mostra que é necessário que aquele que quiser obter a justiça de Cristo,

    abandone a sua própria.

    O Reformador entende o valor das obras, mas como resultado da fé em Cristo por

    meio da graça, e afirma que o valor das obras está na obediência a Deus:

    E, de fato, todo o valor das obras baseia-se neste ponto: quando o homemvisa obedecer a Deus por meio delas. Por isso o apóstolo, querendo provarnoutra passagem (Gálatas 3.17,18) que Abraão não poderia ser justificadopor suas obras, afirma que a lei foi publicada cerca de quatrocentos anosdepois de lhe haver sido outorgada a aliança da graça. Os ignorantespoderiam zombar desse argumento, achando que Abraão podia ter boasobras antes da publicação da lei. Mas, como ele sabia muito bem que as

    105 Ibid., p. 188.

    106 Cf. Filipenses 3.8-9.

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    obras só têm dignidade ou valor à medida que são aceitas por Deus, tomoucomo coisa notória que elas não podiam justificar antes de serem feitaspromessas da lei. Vemos então por que ele se expressa com os termos“obras da lei”, em seu desejo de eliminar das obras a faculdade dejustificar, a saber: porque ele não queria que as obras constituíssem matériade controvérsia ou de contradição107.

    Logo, em seu entendimento, as boas obras devem visar única a exclusivamente a

    nossa obediência a Deus, e não a tentativa de nos justificar ou nos tornar justos para a

    salvação por méritos. A justiça da fé é a reconciliação com Deus, consistindo na remissão

    dos nossos pecados, que não são absolvidos pelas nossas boas obras, mas unicamente por

    meio da morte e ressurreição de Cristo sendo verdade em nossas vidas.

    Ele prossegue comentando que as boas obras procedem de Deus, que imprimiu no

    coração de cada ser humano a distinção entre as obras honestas e as obras vis, e tem

    confirmado frequentemente por sua providência. Aqueles que praticam virtude entre os

    homens são abençoados, mas não que essa virtude mereça sequer o menor dos benefícios,

    mas a Deus agrada demonstrar quanto ele ama a verdadeira virtude não deixando sem

    alguma recompensa temporal. Portanto, como já fora citado, essas virtudes procedem de

    Deus, visto que não existe coisa alguma louvável que não proceda dele.

    Calvino cita Agostinho para elucidar ainda mais:

    [...] Todos os que são estranhos à religião do Deus único, por maisadmiração que tenhamos po