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68 | sagarana Extrativismo e artesanato Sempre-vivas, flores da vida sagarana | 69 A sempre-viva, símbolo de temperança e beleza dos povos tradicionais do Alto Jequitinhonha, tornou-se base para o desenvolvimento de um mercado lucrativo e sus- tentável, capaz de gerar novas perspectivas para famílias que vivem da coleta da planta há mais de um século. Reportagem Carolina Pinheiro Fotos André Dib

Sempre-vivas, - André Dib Fotografia · Zé Licuri,um dos interessantes e ricos personagens da região. ... o Toco, é o principal atravessador e comerciante de flores local. De

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Extrativismo e artesanato

Sempre-vivas, flores da vida

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A sempre-viva, símbolo de temperança e beleza dospovos tradicionais do Alto Jequitinhonha, tornou-se basepara o desenvolvimento de um mercado lucrativo e sus-tentável, capaz de gerar novas perspectivas para famíliasque vivem da coleta da planta há mais de um século.

Reportagem Carolina PinheiroFotos André Dib

No centro/noroeste dosertão mineiro, o caminhodas flores abriga assementes de uma tradiçãocentenária. Dezenas decomunidades extrativistasse espalham por pradariasrepletas de sempre-vivas,espécie nativa da região. Aplanta, colhida o ano todo,é um marco da economiade subsistência do lugar.Do Serro a Diamantina,cerca de três mil famílias seajustam a uma mesmacadeia produtiva. Pesquisasrealizadas nas áreas deocorrência da eriocaulaceae— a família da autênticasempre-viva — apontam que70% das espécies domundo estão concentradasna cordilheira doEspinhaço — fator degrande apelo para a criação,em 2002, do ParqueNacional (Parna) dasSempre-Vivas. O parqueintegra o Mosaico deUnidades de Conservação(UCs) do Espinhaço edivide os biomas Cerrado eMata Atlântica.

De acordo com RenatoRamos, biólogo ecoordenador de projetos naFundação Comunitária deEnsino Superior de Itabira(Funcesi), pelo menos 20municípios localizadosentre as Serras Negra e doCabral estão envolvidos

direta ou indiretamentecom a atividade. “Omercado de floresornamentais gera rendapara a população desde oinício do século XX, tendoum pico de comercializaçãono período da SegundaGuerra Mundial, quandoeram utilizadas para afabricação de arranjosfúnebres”, diz.

Manejo controlado

O colapso não tardou. Acoleta indiscriminadaresultou, em 1997, naproibição do extrativismo,medida que gerou impactoimediato na rotina dascomunidades tradicionais.Do entrave, brotou oímpeto capaz detransformar a realidadesocial dos moradores. Há12 anos, diversos projetosde manejo controlado daflora são desenvolvidos emvilas como a de Galheiros,na zona rural deDiamantina e deAndrequicé e Raiz, distritosde Presidente Kubitschek.

As novas perspectivasasseguram fonte detrabalho e renda parainúmeras pessoas. “Osprincipais objetivos sãodiversificar a produção eincrementar os serviços,

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Dezenas de comunidadesextrativistas se espalham por

pradarias repletas de sempre-vivas,como na localidade de Galheiros.

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Vista panorâmica do

Parque Nacional dasSempre-Vivas, queintegra o Mosaico deUnidades de Conservação(UCs) do Espinhaço e divideos biomas Cerrado e MataAtlântica.

estimulando a capacidadede autogestão dosparticipantes”, afirmaRamos. Entre as ações —que contam com o apoiodo SEBRAE, UFVJM(Universidade Federal dosVales do Jequitinhonha eMucuri) e EMATER —destacam-se o cultivo deflores típicas em vasos parafins paisagísticos e aimplantação de campos deflores experimentais para aconfecção de artesanato. Aspráticas agregam valor aosprodutos e garantem aoferta sustentável dematéria-prima, ampliandoos potenciais do comérciolocal.

Capacitação ecompetitividade

Galheiros foi o povoado adar os primeiros passos nodesenvolvimento deestudos sobre o manejoadequado das flores. MariaAraújo, a matriarca de 85anos da família Borges,relata que a equipe chegouao local com o objetivo decapacitar os moradores paraa realização de um projetoviável ambientalmente. “Osespecialistas foramacolhidos aqui. Marcaramreunião. Pediram pra gentefazer um levantamento dasplantas. Qual que estavaacabando? Qual quepoderia ser colhida?Mostraram que a gente nãoestava deixando sementeno campo, estava colhendode qualquer jeito,queimando em épocaerrada. Ficamos dois anossó de curso. Depois é que

eles trouxeram umprofessor pra ensinar oartesanato”, diz.

Tânia Machado,presidente do Centro Cape(Instituto CentroCapacitação e Apoio aoEmpreendedor), de BeloHorizonte, e uma dascriadoras da AssociaçãoBrasileira de Exportação deArtesanato (ABEXA),afirma que o princípio dotrabalho de fomento é gerara reflexão nos produtores.“O nosso papel é dar asferramentas, é facilitar, maseles é quem devem pensarse querem mudar e comoquerem fazer isso. Acomunidade é que decidesobre o caminho e o ritmoque seguirá para atingir assuas metas”, conta. Com oartesanato de sempre-vivascompetitivo no mercado,em pouco tempo, Galheirosconquistou a suaindependência financeira.

Referência internacional

Fundada em 2001, aAssociação dos Artesãos deSempre-Vivas, hoje com 29associados, é um espaço dediscussão e planejamentocoletivo. O negócio, cadavez mais rentável,transformou a comunidadeem referênciainternacional. Os artesãosexpõem em feiras e lojas de

Diamantina, Ouro Preto,Tiradentes e BeloHorizonte; participam deeventos em São Paulo, Riode Janeiro, Brasília e Recife;e em setembro de 2013,integraram a mostraMulher Artesã Brasileira,

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Dona Maria Araújo, a matriarca de 85 anos de uma família deextrativistas, na lida diária no campo.

realizada durante aAssembleia Geral daOrganização das NaçõesUnidas (ONU), em NovaIorque.

Tânia afirma que oProjeto Brazilian CraftsWomen, promovido peloCentro Cape em parceriacom o Governo Federal,nasceu da intenção dedesvendar a alma demulheres que alcançaram,por meio da produção

artesanal, uma forma desubsistência e motivaçãoconstante de transformaçãoda sua realidade social.“São mulheres que se valemde toda a sua força psíquicae física no esforço dedominar o manuseio dosdiversos materiaisencontrados no meioambiente, elevando-os aostatus de obras de artegenuínas”, comenta.

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Zé Licuri, um dos interessantes e ricos personagens da região.

Antônio de Zé Basílio: colheita de 1.200 quilos de sempre-vivas pé de ouro por safra.

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Artesãos associados

Juracy Borges da Silva foia escolhida para representarGalheiros na exposição quecontou com a presença de15 artesãs de 12 estados dopaís. “Foi uma grandealegria poder levar o nossotrabalho para o mundo,mostrar a simplicidade donosso povo.” O grupo deassociados, que possui, háseis anos, um contrato coma rede de lojas varejistaTok&Stok, cultiva asespécies ameaçadas deextinção pé de ouro echuveirinho em um campoexperimental de 300metros quadrados. Acolheita é realizada tambémem campos naturais,espalhados pela região, eem particulares, já quealguns moradores cultivamflores no quintal de suascasas. “Cada mês, colhe-seum tipo de flor e cadaassociado colhe de 20 a 30quilos por espécie. Para nósé um privilégio servir deexemplo para as novasgerações, que terãocondições de darcontinuidade a essahistória. Sou orgulhosa domeu trabalho”, diz a artesã.

Entre as peças produzidasestão abajures, guirlandas,árvores de natal, porta-guardanapos, arranjos demesa e luminárias. Na horade criar, Ivete Borges daSilva, uma das filhas deMaria, esclarece queescolhe as cores de acordocom o estado de espírito —“se a pessoa está alegre, oarranjo fica alegre” — e como gosto do cliente —“depende sempre do

pedido que chega pragente.” O preço estipuladopara cada uma é definidopelo grupo de artesãos. Paraavaliar, são consideradositens como o trabalho quedá para fazer, a matéria-prima escolhida e otamanho da peça. Aprodução é individual, masa comercialização é coletiva.“Nosso plano é alcançar os50 associados. Quanto maispessoas envolvidas, maioresas chances de crescimentopara todos”, diz.

Conflitos

Apesar da experiênciabem-sucedida de algunsvilarejos, a criação doParque Nacional (Parna)das Sempre-Vivas gerouconflitos que restringem odesenvolvimento regional.Existem, por exemplo,grandes propriedadesparticulares dentro doparque — duas delas sãoReservas Particulares doPatrimônio Natural(RPPNs) —, e áreas de terrasque, de acordo com oEstado, são devolutas,pertencentes a União. Há,em determinados lotes, aincidência de posseiros.Alguns alegam ter direito aeles por usucapião, porémnem todos possuemdocumentação. Oimbróglio ultrapassa asfronteiras da Unidade,multiplica demandas, geracrise de interesses e umdesajuste econômico quecoloca em risco a dinâmicasocial das comunidades.

Segundo Márcio Lucca,biólogo e chefe do PARNA

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A sempre-viva, colhida o anotodo, é o símbolo da economia desubsistência da região. Do Serro aDiamantina, cerca de três milfamílias se ajustam a uma mesmacadeia produtiva. A bela imagemdesvela a essência da lidacotidiana dos extrativistas.

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das Sempre-Vivas, oInstituto Chico Mendes deConservação daBiodiversidade (ICMBio),órgão público responsávelpela gestão da UC, estáaberto ao diálogo. “Pararegulamentar o uso daspropriedades, construímosum termo de compromissojunto com a população. Oproprietário que ainda nãofoi indenizado tem odireito de continuarutilizando a terra. O quenão pode é aumentar a suaatividade dentro dela”,reitera.

Cultura popularextrativista

As flores nativas doCerrado são umpatrimônio naturalindissociável da culturapopular dos altos da serra.Antônio do Carmo Alves,conhecido como Antôniode Zé Basílio, sempre viveuda lida nos campos. Hoje,aos 71 anos, o senhor deface alongada delega afunção. O pessoal quecontrata passa semanascoletando sempre-vivas péde ouro nas beiradas daslapas, um tipo de caverna.“Nós tiramos 1.200 quilospor safra”, conta. É umajornada solitária a doscoletores, que seembrenham nas matas pararecolher do solo a matéria-prima que sustenta muitagente.

Houve tempo em queuma colheita rendiatoneladas. Contudo, oesvaziamento dos camposreduziu consideravelmente

a pesagem. Zé Basílio extraias flores de forma artesanal,mas, como tantos,aprendeu a manusear daforma correta. O que surteefeito. O coletor devolve assementes ao chão. Natemporada de floração,retorna sempre ao mesmolote, que afirma ser seu porusucapião. “O terreno detrês mil hectares foiintegrado ao parque, maseu ainda não recebi nadapor ele”, diz. Zé Basíliorelata que já teve muitosproblemas comfuncionários do ICMBiopor conta da práticaextrativista. “Uma vez,bateram na minha casa,ameaçaram me prender. Eucolhi flor a vida inteira nomeu terreno, e só vou pararno dia que eles tratarem daminha família. Casocontrário, vou continuarcolhendo.”

O atual chefe do Parqueenfatiza que a regularizaçãoda atividade compete aórgãos como aSuperintendência Regionalde RegularizaçãoAmbiental (Supram), doponto de vistametodológico, e o InstitutoBrasileiro do MeioAmbiente e dos RecursosNaturais Renováveis(IBAMA), do ponto devista comercial. “Oscampos de sempre-vivas daregião que integra oMosaico estão sendogeoreferenciados.Precisamos de um contatodireto com a problemáticapara entendermos ocontexto regional. Hoje, émais fácil licenciar paraplantar eucalipto do que

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As flores nativas do Cerradosão um patrimônio naturalindissociável da culturapopular dos altos da serra. Nafoto, Dona Anita.

regularizar uma atividadeextrativista. Essa lógica éesquizofrênica para apreservação ambiental”, dizLucca.

Comércio sem fronteiras

No Espinhaço, a pujançada natureza garante umaexpressiva variedade deespécies. São mais de 180entre flores, frutos e folhascoletadas para fins decomércio. Adolfo CirinoPereira, o Toco, é oprincipal atravessador ecomerciante de flores local.De origem humilde, osenhor de prosa ligeiracontrola mais de 60% domercado de sempre-vivas naregião do Mosaico.

Natural de ConselheiroMata, com cinco anos odescendente de índio jácolhia flores. Na mocidade,Toco começou a comprarpara revender. “Conhecium comerciante alemãochamado Schneider, deJoinville, Santa Catarina. Ohomem veio para o Brasil

fugido da guerra. Na época,se interessou pela venda deflores e passou a exportar”,recorda. Schneider setornou o maior exportadorde sempre-viva do Brasil.“Quando parou, passei avender pra outros clientes eo negócio foi tomandoforma”, diz Toco.

Cerca de dez tipos de florpossuem grande valorcomercial. A pé de ouro,cujo quilo no mercadointerno custa R$ 9,00 e noexterno U$ 8,00, é a maisvaliosa. Outras são achapadeira; a sapatinha e abrejeira. Países comoEstados Unidos, China,Japão, Alemanha, Holandae Itália são os compradoresde maior destaque. “Em1982, comecei a investirnos primeiros campos.Hoje, tenho mais de 500hectares de área cultivada”,comenta o atravessador. Omaior deles se distribui portrês fazendas em Augustode Lima, a 70 km deDiamantina. O plantiorende a Toco uma safra

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Dona Maria Terezinha,da Comunidade de Raiz,

produz artesanato.

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anual de 30 toneladas. Dototal, metade é exportada emetade comercializada paraempresas varejistas de SãoPaulo, Paraná, Rio de Janeiroe Goiás, sendo as feiras doCEASA paulistano oprincipal polo de distribuiçãonacional. A legalização atualprevê a prática extrativistadentro de propriedadesrurais. “Só é possível exportarflores de campos cultivadosmediante autorização doIBAMA e registro noInstituto Estadual deFlorestas (IEF)”, afirma.

Perspectiva real

Famílias inteiras dependemdo manejo das flores noEspinhaço. Há uma cadeiageracional que com o apoioda sociedade civil organizadaestá conseguindo romper abarreira protecionista pormeio de iniciativas cujafinalidade é a inclusão social.Em Galheiros, dona Maria eos seus sete filhos trabalhamcom o cultivo e a produçãode artesanato a partir dassempre-vivas. Nos distritos deAndrequicé e Raiz, osmoradores encontramsolução para o impasse noresgate de espécies emextinção e na venda deexemplares envasados. Ocaminho a ser seguido pelascomunidades isoladas doAlto Jequitinhonha já apontano horizonte.

A região de biodiversidadefarta, que inspirou opaisagista Roberto Burle

Marx, tem no vínculo dosertanejo com as flores amedida certa para amanutenção da culturapopular integrada à natureza.Há que se ter atenção a estemovimento. Cabe aoGoverno participar mais,criando políticas públicasque instrumentalizem ascomunidades para queconsigam se autogerir semque precisem abrir mão daprática extrativista. Afinal,preservar o meio ambiente étão importante quantoestabelecer o homem na zonarural, lar para uma vidadigna. Nos camposmundialmente conhecidoscomo o jardim do Brasil, atradição tem um espaço dedireito que deve serassegurado hoje para que aperspectiva de futuro dosresidentes seja a damultiplicação e não a dodesaparecimento.

ServiçoSerra Sertão Expedições eVivências(38) [email protected]

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A linda cachoeira deSanta Rita, um dos muitosencantos do Parque Nacional

das Sempre-Vivas.