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Sempre Vivemos no Castelo - Sociedade Monstros Vivemos no... · 2019. 11. 20. · Da última vez que dei uma olhada nos livros da biblioteca que estavam na prateleira da cozinha,

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DADOSDECOPYRIGHT

Sobreaobra:

ApresenteobraédisponibilizadapelaequipeLeLivroseseusdiversosparceiros,comoobjetivodeoferecerconteúdoparausoparcialempesquisaseestudosacadêmicos,bemcomoosimplestestedaqualidadedaobra,comofimexclusivodecomprafutura.

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Éexpressamenteproibidaetotalmenterepudiávelavenda,aluguel,ouquaisquerusocomercialdopresenteconteúdo

Sobrenós:

OLeLivroseseusparceirosdisponibilizamconteúdodedominiopublicoepropriedadeintelectualdeformatotalmentegratuita,poracreditarqueoconhecimentoeaeducaçãodevemseracessíveiselivresatodaequalquerpessoa.Vocêpodeencontrarmaisobrasemnossosite:LeLivros.siteouemqualquerumdossitesparceirosapresentadosnestelink.

"Quandoomundoestiverunidonabuscadoconhecimento,enãomais

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lutandopordinheiroepoder,entãonossasociedadepoderáenfimevoluira

umnovonível."

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ParaPascalCovici

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Sumário

12345678910Sobreaautora

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M

1

eu nome é Mary KatherineBlackwood. Tenho dezoitoanosemorocomaminhairmã

Constance. Volta e meia penso que setivesse sorte teria nascido lobisomem,porque os dois dedos médios das minhasmãossãodomesmotamanho,mastenhodemecontentar comoque tenho.Nãogostodetomarbanho,nemdecachorrosnemdebarulho.GostodaminhairmãConstance,ede Richard Plantagenet, e de Amanita

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phalloides, o cogumelo chapéu-da-morte.Todoorestodaminhafamíliamorreu.

Da última vez que dei uma olhada noslivros da biblioteca que estavam naprateleiradacozinha,oprazodelesjáestavamaisdecincomesesvencido,emepergunteiseeuescolheriadiferentecasosoubessequeseriam os últimos livros, aqueles queficariamparasemprenaprateleiradanossacozinha.Raramentemudávamosascoisasdelugar: os Blackwood nunca foram umafamíliamuitoativaouinquieta.Trocávamosos objetos transitórios de pequenassuperfícies,oslivros,asfloreseascolheres,mas embaixo deles sempre tivemos umabase sólida de objetos estáveis. Sempredevolvíamos as coisas ao seu lugar.Tirávamos o pó e varríamos debaixo das

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mesas e cadeiras e camas, dos retratos etapetese luminárias,masosdeixávamosnomesmo lugar; as caixinhas em padrãotartaruganapenteadeiradanossamãenuncase mexiam mais que uma fração decentímetro. Os Blackwood sempremoraram na nossa casa e mantiveram suascoisas em ordem; assim que a nova esposadeumBlackwoodsemudava,achava-seumlugarparaseuspertences,eentãonossacasafoi ficandomaispesadacomascamadasdebens dos Blackwood, elas a mantinhamfirmecontraomundo.

Foinumasexta-feiranofinaldeabrilqueeutrouxeoslivrosdabibliotecaparaanossacasa. Sextas e terças eram dias terríveisporque eu tinha de ir ao vilarejo. Alguémprecisava ir à biblioteca e ao mercado;

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Constance nunca andava além do própriojardim,eo tio Juliannãopodia.Entãonãoera o orgulho o que me levava ao vilarejoduas vezes por semana, nem mesmo ateimosia,masasimplesnecessidadedelivrose comida. Talvez fosse o orgulho que melevasse a entrar na cafeteria da Stella paratomar uma xícara de café antes de voltarparacasa;eudisseamimmesmaqueeraomeu orgulho e que não evitaria entrar láindependentemente do quanto quisesseestaremcasa,mastambémsabiaqueStellame veria passar caso não entrasse, e talvezpensassequeeutinhamedo,eessaideiaerainsuportávelparamim.

“Bomdia,MaryKatherine”,Stellasempredizia,esticandoobraçoparalimparobalcãocomumpanoúmido,“comovocêestáhoje?”

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“Muitobem,obrigada.”“EConstanceBlackwood,estábem?”“Muitobem,obrigada.”“Ecomoéqueeleestá?”“Bem, namedida do possível.Café puro,

porfavor.”Se mais alguém entrava e se sentava no

balcão,eulargavaocafésemdaraimpressãode estar compressa e ia embora, acenandocomacabeçaparamedespedirdeStella.“Secuida”, ela sempre dizia mecanicamentequandoeusaía.

Escolhia os livros da biblioteca comcuidado.Tínhamoslivrosemcasa,éclaro;oescritório do nosso pai tinha duas paredescobertasdelivros,maseugostavadecontosde fadas e livros com temas históricos, eConstance gostava de livros de culinária.

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Mesmoque o tio Juliannuncapegasse umlivrosequer,gostavadeobservarConstancelendo nos finais de tarde enquanto eleprópriosedebruçavasobreseuspapéis,eàsvezesviravaacabeçaparaolhá-laeassentia.

“O que você está lendo, minha querida?Umabelavisão,umadamacomumlivro.”

“EstoulendoumlivroquesechamaAartedecozinhar,tioJulian.”

“Admirável.”A gente nunca fica quieta por muito

tempo, é claro, como tio Julianporperto,mas não me lembro de Constance e eutermos sequer chegado a abrir os livros dabiblioteca que continuam na prateleira danossacozinha.Eraumabelamanhãdeabrilquandosaídabiblioteca;osolbrilhava,easfalsas promessas gloriosas da primavera

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estavam por todos os lados, destacando-seda sujeira do vilarejo de um jeito estranho.Eume lembro de ter parado na escada dabiblioteca com os livros nas mãos paraobservar por um instante o verde-claro seinsinuando nos galhos contra o céu,desejando,comosempre,quepudessevoltarpara casa pelo céu em vez de cruzar ovilarejo.Daescadadabibliotecaeupoderiaatravessar logoaruaeandardooutro ladoemdireçãoaomercado,masassim teriadepassar pela mercearia e pelos homens queficavam sentados ali na frente. Nessacidadezinhaoshomenspermaneciamjovense faziam as fofocas, enquanto as mulheresenvelheciam com seu cansaço colorido poruma maldade cinzenta, esperando emsilêncio que os homens se levantassem e

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fossem para casa. Eu poderia sair dabiblioteca e percorrer a rua deste lado atéchegar aomercado e então atravessar; issoera preferível, apesar de ter de passar nafrentedocorreio eda casaRochester, comas pilhas de latas enferrujadas e osautomóveisquebradoseaslatasdegasolina,os colchões velhos e as instalaçõeshidráulicaseostanquesdelavarroupaqueafamíliaHarlerlevavaparacasae—acreditosinceramente—amavam.

A casa Rochester era a mais bonita dacidade e antigamente tinha uma bibliotecarevestida com lambris de nogueira e umsalão de festas no segundo andar e ummonte de rosas espalhadas pela varanda;nossamãetinhanascidoali,epordireitoolugar deveria ser de Constance. Resolvi,

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comosempre,que seriamais seguropassarpelocorreioepelacasaRochester,apesardenão gostar de ver a casa onde nossa mãenasceu. Este lado da rua geralmente ficavadesertodemanhã,jáquefaziasombra,edequalquer maneira depois de entrar nomercado eu teria de passar pela merceariaparavoltarparacasa,epassarporelaindoevindoiaalémdosuportável.

Saindo do vilarejo, na Hill Road e naRiverRoadenaOldMountain,gentecomoos Clarke e os Carrington haviamconstruído casas novas muito bonitas.Precisavamatravessarovilarejoparachegara Hill Road e River Road porque a ruaprincipal também era a estrada maisconhecida para cruzar o estado, mas osfilhos dos Clarke e os meninos dos

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Carrington frequentavam escolasparticulares,eacomidanascozinhasdeHillRoadvinhadascidadezinhaspróximasedeuma cidade maior; a correspondência eralevada de carro da agência do vilarejo,passandopelaRiverRoadesubindoatéOldMountain, mas o pessoal da Mountainpostava suas cartas nas cidadezinhas, e opessoal daRiverRoad cortava o cabelo nacidadegrande.

Sempre me intrigou que as pessoas dovilarejo,morandoemsuascasinhasimundasna estrada principal ou na Creek Road,sorrissemeassentissemeacenassemquandoos Clarke e os Carrington passavam decarro; quando Helen Clarke entrava noMercado doElbert para comprar a lata demolho de tomate ou omeio quilo de café

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que a cozinheira tinha esquecido, todomundo lhe dava “Bom dia” e dizia que otempo hoje estava melhor. A casa dosClarke é mais nova, mas não é melhor doqueacasadosBlackwood.Nossopaitrouxeparacasaoprimeiropianoqueovilarejojáviu.OsCarringtonsãodonosdafábricadepapel,masosBlackwoodpossuemtodasasterras entrea estradaeo rio.OsShepherddeOldMountain deram ao vilarejo a sededa prefeitura, que é branca e pontuda econstruída emum gramado verde comumcanhão na frente.Teve uma época em queconversaram sobre estabelecer leis dezoneamento no vilarejo e derrubar osbarracosdeCreekRoadparareconstruirovilarejo inteiro combinando com aprefeitura,masninguémmoveuumapalha;

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talvez imaginassem que os Blackwoodpassariam a comparecer às reuniõesmunicipais se fizessem alguma coisa. Osmoradores tiram suas licenças para caçar epescarnaprefeitura, e uma vezpor anoosClarke e os Carrington vão à reuniãomunicipalevotamsolenementepelaretiradadoferro-velhodosHarlerdaMainStreetepela retirada dos bancos na frente damercearia,etodososanososmoradoresosvencem alegremente. Depois da prefeitura,virandoàesquerda,ficaaBlackwoodRoad,o caminho de casa. A Blackwood Roadforma um grande círculo em torno doterrenoBlackwood,ecadacentímetrodelaéfechado por uma cerca de arame farpadolevantadapelonossopai.Nãomuito longedaprefeituraficaaenormepedrapretaque

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marcaaentradada trilhaondedestrancooportão e o tranco logo depois de passar eatravessoobosqueechegoemcasa.

Opessoaldovilarejosemprenosodiou.

Eu fazia uma brincadeira quando ia àscompras.Pensavanosjogosinfantisemqueo tabuleiro é dividido em quadradinhos ecada jogadormexeaspeçasdeacordocomosdados: semprehavia riscos, como “fiqueumarodadasemjogar”,“voltequatrocasas”e “volte ao ponto de partida”, e ajudinhas,como“avancetrêscasas”e“joguemaisumavez”.Abibliotecaerameupontodepartidae apedrapreta erameuobjetivo.Tinhadedescer por um lado da Main Street,atravessaredepoissubirpelooutroladoatéchegar à pedra preta, e assim eu vencia.

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Comecei bem, fazendo uma virada segurapela calçada vazia daMain Street, e talvezesseacabassesendoumdosdiasótimos;àsvezeseraassim,masnemtantonasmanhãsdeprimavera.Sefosseumdiaótimo,depoiseufariaumaoferendadejoiasnumgestodegratidão.

Comecei andando rápido, respirei fundopara continuar enãoolhei ao redor; estavacom os livros da biblioteca e a sacola decompras,eobservavameuspéssemovendo,um depois do outro; dois pés nos velhossapatos marrons da nossa mãe. Senti quealguémmeolhavadedentrodocorreio—não aceitávamos correspondências, e nãotínhamos telefone: ambos haviam setornado insuportáveis seis anos antes —,mas eu conseguira aguentar uma rápida

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olhadela vinda do correio; era a velha srta.Dutton, que nunca encarava ninguém àsclaras como outras pessoas, somente porentreaspersianasedetrásdascortinas.EununcaolhavaparaacasaRochester.Achavainsuportávelpensarnanossamãenascendoali.De vez emquandome perguntava se afamília Harler sabia que morava em umacasaquedeveria ter sidodeConstance;noquintaldeleshaviasempretantobarulhodemetal batendo que não conseguiam meouvirandar.TalvezosHarler imaginassemqueaquelabarulheirasemfimespantasseosfantasmas,outalvezgostassemdemúsicaeachassemosomagradável;talvezosHarlervivessem lá dentro como viviam ali fora,sentados em banheiras velhas e jantandocompratos quebrados apoiados na carcaça

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de um velho Ford, chacoalhando latasdurantearefeiçãoeconversandoaosberros.Sempre havia uma mancha de sujeira nacalçadaemqueosHarlermoravam.

Atravessararua(percaasuavez)vinhaemseguida,parachegaraomercadoexatamentedo outro lado. Eu sempre hesitava,vulnerável e desprotegida, na beira da ruaenquantooscarrospassavam.OtráfegonaMainStreeteraquasesemprerápido,carrosecaminhõescruzandoovilarejoporqueeraisso o que a estrada fazia, então osmotoristasraramenteolhavamparamim;eupodia identificar os carros dos moradorespela olhadela desagradável do motorista emeperguntava,sempre,oqueaconteceriaseeudescessedomeio-fioparaapista;haveriauma guinada rápida, quase involuntária, na

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minhadireção?Sóparameassustar,talvez,só para me verem dar um salto e meesquivar? E depois a gargalhada, vinda detodos os lados, de trás das persianas docorreio,doshomensemfrenteàmercearia,das mulheres espreitando da porta domercado, todosassistindoe tripudiandoaover Mary Katherine Blackwood correndoparasairdafrentedeumcarro.Àsvezeseuperdia duas ou até mesmo três rodadasporqueaguardavaatentamentequeapistaseesvaziasse em ambas as direções antes deatravessar.

Nomeiodarua,saídasombraeentreinoclaro, enganoso sol de abril; em julho asuperfíciedapistajáestariamoledocaloremeus pés grudariam, tornando a travessiamaisperigosa(MaryKatherineBlackwood,

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opépresonopiche, encolhidaenquantoocarro avançava em sua direção; volte aoinício, comece tudo de novo), e as casasficariammais feias. O vilarejo todo era deumtipo,umaépocaeumestilo;eracomoseaspessoasprecisassemdafeiuradovilarejoese nutrissem dela. As casas e as lojaspareciamtersidomontadascomumapressadesdenhosa só para oferecer abrigo aosdesmazelados e aos desagradáveis, e a casaRochester e a casa dos Blackwood e até asede da prefeitura talvez tenham sidolevadas para lá por acidente vindas dealgumacidadezinhadistanteeadorávelondese vivia com elegância. Talvez as casasbonitas tivessem sido capturadas— talvezcomo castigo aos Rochester e aosBlackwood e seus corações secretamente

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malvados?— e estivessem aprisionadas novilarejo; talvez a vagarosa putrefação delasfosse um sinal da feiura dosmoradores.Afileira de lojas na Main Street erainvariavelmente cinza. Os donos moravamemcimadelas,numafileiradeapartamentosde segundo andar, e as cortinas na linhauniformedejanelasdosegundoandarerampálidasesemvida;aquiloqueplanejavasercoloridologoperdiaavontadenovilarejo.Adesgraça do vilarejo nunca partira dosBlackwood; osmoradores faziam parte dolugar, e o vilarejo era o único lugarconvenienteparaeles.

Eusemprepensavaemputrefaçãoquandome aproximava da fileira de lojas; pensavaemumaputrefaçãopreta,ardenteedolorosaque corroía por dentro, ferindo

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terrivelmente. Era o que eu desejava aovilarejo.

Tinha uma lista de compras para omercado;Constanceafaziaparamimtodasasterçasesextasantesdeeusairdecasa.Opovodovilarejonãogostavadofatodequesempre tínhamos muito dinheiro paracomprar o que quiséssemos; havíamostiradonossodinheirodobanco,éclaro,eeusabiaquefalavamdodinheiroescondidonanossa casa, como se houvesse montesenormesdemoedasdeouroeConstanceetio Julian e eu nos sentássemos à noite, oslivros da biblioteca esquecidos, ebrincássemos com elas, passando a mãonelas e contando-as e empilhando-as egirando-as, zombando e escarnecendo aportas fechadas. Imagino que haviamuitos

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coraçõesapodrecidosnovilarejocobiçandonossaspilhasdemoedasdeouro,maseramcovardes e tinham medo dos Blackwood.Quando tirei a lista de compras da sacolapeguei tambéma bolsa para queElbert domercado soubesse que eu estava comdinheiro,eelenãopoderiasenegaravenderparamim.

Nunca importava quem estava nomercado. Eu sempre era atendidaimediatamente; o sr. Elbert e sua pálidaesposa gananciosa sempre vinham de ondeestivessem na loja para buscar o que euqueria. Às vezes, quando o garoto maisvelho estava ajudando durante as fériasescolares, corriam para garantir que nãofosse ele a me atender, e uma vez quandoumamenininha—umacriançaestranhaao

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vilarejo,éclaro—chegoupertodemimnomercado, a sra. Elbert puxou-a com tantaforça que ela berrou e então houve umlongo minuto de imobilidade enquantotodomundoesperava, atéquea sra.Elberttomoufôlegoedisse:“Maisalgumacoisa?”.Eusempreficavabemeretaerígidaquandocriançaschegavampertoporquetinhamedodelas.Tinhamedodequetocassememmimeasmãesmeatacassemcomoumarevoadade falcões com garras; era sempre essa aimagem que eu tinha em mente — avesdescendo, colidindo, ferindo com as garrasafiadas.HojetivequecomprarmuitascoisasparaConstance,efoiumalívioverquenãohaviacriançasnalojanemmuitasmulheres;joguemaisumarodada,pensei,edisseaosr.Elbert,“Bomdia”.

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Ele assentiu paramim; não poderia ficartotalmente sem me cumprimentar e alémdisso as mulheres na loja estavamobservando. Virei as costas para elas, maspodia senti-las paradas atrás de mim,segurandoumalataouumsacodebiscoitoscheiosópelametadeouummaçodealface,semvontadedesemexeratéqueeutivesseatravessado a porta outra vez e a onda deconversascomeçasseefossemarrastadasdevoltaàsprópriasvidas.Asra.Donellestavaem algum canto ali no fundo; eu a vira aoentrar,emepergunteiassimcomotinhameperguntadoantesseelaentroudepropósitoquando percebeu que eu estava chegando,porque ela sempre tentava dizer algumacoisa; era uma das poucas pessoas quefalavam.

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“Um frango para assar”, eu disse ao sr.Elbert, e do outro lado da loja a esposagananciosa abriu a vitrine refrigerada epegouumfrangoeoembrulhou.“Umapatade cordeiro pequena”, eu disse, “meu tioJulian sempre fica com vontade de comercordeiro assado nos primeiros dias daprimavera.” Não devia ter falado isso, eusabia, e uma arfada percorreu a loja comoum grito. Poderia fazê-los correr feitocoelhos,pensei,seeulhesdissesseoqueeuqueriadeverdade,masapenassereuniriamde novo lá fora e me observariam de lá.“Cebolas”,pedieducadamenteaosr.Elbert,“café, pão, farinha. Nozes”, eu disse, “eaçúcar; nosso açúcar está quase acabando.”Em algum lugar atrás de mim ouvi umarisadinha horrorizada, e o sr. Elbert olhou

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para além, rapidamente, e depois para osprodutosqueorganizavasobreobalcão.Emuminstanteasra.Elberttrariameufrangoeminhacarne,embrulhados,eoscolocariaaolado das outras coisas; eu só precisariamevirar quando estivesse pronta para irembora. “Uma garrafa de leite”, eu disse.“Meio litro de creme, meio quilo demanteiga.”OsHarristinhamparadodenosentregarlaticíniosfaziaseisanos,eagoraeucomprava leite e manteiga nomercado. “Eumadúziadeovos.”Constanceseesqueceradecolocarosovosnalista,massótinhadoisemcasa.“Umacaixadepédemoleque”,eudisse; tio Julian mastigaria e faria barulhoem cima da papelada dele esta noite, e iriaparaacamamelado.

“Os Blackwood sempre puseram belas

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mesas.”Foiasra.Donell,falandoclaramentedealgumpontoàsminhascostas,ealguémdeu risadinhas e outra pessoa disse “Shh”.Nuncamevirava; jábastavasenti-los todosatrásdemimsemverseusrostoscinzentoseimpassíveis com olhos cheios de ódio.Queriaque todosvocês estivessemmortos,pensei, e senti ânsia de falar em voz alta.Constance dizia, “Nunca deixe que elesvejam que você se importa” e “Se você deralgumaatenção, a situação só vaipiorar”, eera provável que fosse verdade, mas euqueria que estivessemmortos. Gostaria deentrarnomercadoumamanhã e ver todoseles,atéosElberteascrianças,deitadasali,chorando de dor e agonizando. Entãopegaria os produtos por conta própria,imaginei,pisandoemseuscorpos,tirandoo

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quequisessedasprateleiras,eiriaparacasa,talvez com um chute na sra. Donell, alideitada.Nuncasentiaremorsoquandotinhapensamentos como esse: só queria que setornassem verdade. “É errado odiá-los”,Constance dissera, “só serve paraenfraquecervocê”,maseuosodiavamesmoassim,emequestionavaatémesmoporqueelestinhamsidocriados.

Osr.Elbertpôstodososmeusprodutosjuntos sobre o balcão e esperou, olhandopara alémdemim,para algodistante. “Porhojeésóisso”,eulhedisse,esemmeolhareleanotouospreçosemumblocoesomou,depoismeentregouoblocoparaqueeumecertificassedequenãohaviatrapaceado.Eusempre fazia questão de verificar osnúmeroscomcuidado,emboraelenuncase

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enganasse; não havia muitas coisas que eupudesse fazer para me vingar deles, masfazia o possível. As compras encheramminhasacolae tambémoutrosaco,eeusópoderia levá-las para casa carregando.Ninguém jamais se ofereceria para meajudar,éclaro,mesmoseeuquisesseaceitar.

Fique duas rodadas sem jogar. Com oslivros da biblioteca e as compras, indodevagar, precisava andar pela calçada damercearia para entrar na Stella. Parei naportadomercado,buscandodentrodemimalgumpensamentoquemedeixassesegura.Às minhas costas, começaram osburburinhos e as tossidelas.Preparavam-separa falar de novo, e na outra extremidadedalojaosElbertprovavelmentereviravamosolhos, aliviados. Enrijeci o rosto. Hoje eu

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iria pensar em arrumar nosso almoço nojardim,eapesardemanterosolhosabertossóobastanteparaveraondeia—ossapatosmarronsdenossamãe subindo edescendo—, na minha imaginação eu arrumava amesa com uma toalha verde e levava ospratos amarelos emorangos emuma tigelabranca. Pratos amarelos, pensei, senti osolhares dos homens enquanto seguia emfrente, e tio Julian comeria um belo ovomole com torradas quebradas, e vou melembrardepediraConstancequeponhaumxale nos ombros dele porque a primaveraestá só no comecinho. Sem olhar euconseguiaverossorrisoseosgestos;queriaque estivessem todos mortos e eu andassesobre seus corpos. Raramente dirigiam apalavraamim,mas sempreunsaosoutros.

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“Essa é uma dasmeninas dos Blackwood”,ouvi um deles anunciar em voz aguda,zombeteira, “uma das meninas dosBlackwood,daFazendaBlackwood.”“Umapenao que aconteceu comosBlackwood”,disseoutro,altoobastante,“umapenaparaessas pobres meninas.” “A fazenda é umabeleza”,elesdisseram,“umbomterrenoparacultivar. Um homem poderia enriquecercultivandoaterradosBlackwood.Setivesseum milhão de anos e três cabeças, e nãoligasse para o que brotaria, um homemficariarico.Manteroterrenobemtrancado,é isso o que os Blackwood fazem.” “Umhomem ficaria rico.” “Uma pena o queaconteceu com as meninas da famíliaBlackwood.” “Nunca se sabe o que vaibrotarnoterrenodosBlackwood.”

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Caminho sobre seus corpos, pensei,almoçamos no jardim e tio Julian usa seuxale. Eu sempre segurava firme minhascompras ao passar ali, pois numa manhãtenebrosaasacoladecomprascaiueosovosquebrarameoleiteentornoueeucateitudoenquanto eles gritavam, dizendo a mimmesma que de jeito nenhum eu sairiacorrendo, enfiando latas e caixas e açúcarderramadonasacoladecomprascomoumalouca,dizendoamimmesmaparanão saircorrendo.

Em frente à Stella havia uma fissura nacalçada que parecia um dedo apontandoparaalgumacoisa;afissurasempreestiveraali. Outros marcos, como a impressão damãoqueJohnnyHarrisdeixaranocimentodasededaprefeituraeasiniciaisdomenino

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Mueller na entrada da biblioteca, foramimplementados em épocas de que merecordava; eu estava na terceira série daescola quando a prefeitura foi construída.Mas a fissurada calçada em frente àStellasempre estivera ali, assim como a Stellasempre estivera ali. Lembro de patinar porcima da fissura, e tomar o cuidado de nãopisar nela, senão daria muito trabalho ànossamãe, e passar pedalandopor ali commeu cabelo esvoaçando; osmoradores nãodemonstravam nos detestar naquela época,embora nosso pai declarasse que eles eramumlixo.Umaveznossamãemedissequeafissura já existia quando ela era menina emorava na casa Rochester, portanto deviaexistirquandoelacasoucomnossopaiefoimorar na Fazenda Blackwood, e imagino

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que a fissura existisse, como um dedoapontandoparaalgumacoisa,desdequandoo vilarejo se formou a partir de madeiravelhaecinzentaedaspessoasfeiasderostosperversos trazidas de algum lugarinsuportável e postas para morar naquelascasas.

Stella comprou a cafeteira e instalou obalcão de mármore com o dinheiro doseguroquandoomaridomorreu,masalémdisso nadamudou na Stella desde quemeentendo por gente; Constance e eu íamosatéláparagastarnossoscentavosdepoisdaescola e todas as tardes comprávamos ojornalparalevá-loparacasa,paraquenossopaipudesselê-loànoite;nãocomprávamosmaisjornais,masStellacontinuavaavendê-los,alémderevistasebalasecartões-postais

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cinzentosdasededaprefeitura.“Bom dia, Mary Katherine”, Stella disse

quandomesenteidiantedobalcãoedeixeias compras no chão; às vezes quando eudesejava que todo o povo do vilarejomorresse pensava que talvez eu poupasseStella porque de todos era ela quem maischegava perto de ser amável, e a única queconseguia manter alguma cor. Era roliça erosada e quando usava vestidos comestampas vivazes eles mantinham avivacidade por um tempo antes de sefundirem ao cinza sujo do resto. “Comovocêestáhoje?”,perguntouela.

“Muitobem,obrigada.”“EConstanceBlackwood,estábem?”“Muitobem,obrigada.”“Ecomoéqueeleestá?”

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“Bem, namedida do possível.Café puro,por favor.”Naverdadeeupreferiaaçúcarecreme nomeu café, já que era umnegóciomuito amargo,mas como só ia lá porumaquestão de orgulho eu precisava aceitarapenas o mínimo possível para sersimbólico.

Se alguém entrava na Stella quando euestava lá, eu me levantava e saíadiscretamente, mas em certos dias eu davaazar.Nestamanhãelahaviaacabadodepôrmeu café sobre o balcão quando umasombra apareceu contra o vão da porta, eStella levantou a cabeça e disse, “Bom dia,Jim”.Elafoiatéocantoopostodobalcãoeaguardou, esperandoque ele se sentasse aliparaqueeupudessesairdespercebida,maseraJimDonell,esoubedeimediatoquehoje

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tinhadadoazar.Algunsdosmoradoresdovilarejo tinham rostos reais que eureconhecia e podia odiar individualmente;JimDonelleaesposaeramdoisdeles,poiseram ponderados em vez de odiarestupidamenteeporhábitocomoosoutros.Amaioria das pessoas ficaria na ponta dobalcão onde Stella aguardava, mas JimDonell veio direto à ponta onde eu estavasentadaeocupouobancoaomeulado,tãopróximo demim quanto podia porque, eusabia,nestamanhãelequeriasermeuazar.

“Mecontaram”,eledisse,movendo-separasentardeladonobancoeolhardiretoparamim,“mecontaramquevocêvaisemudar.”

Queriaquenãosentassetãopertodemim;Stella se aproximou detrás do balcão, edesejei que ela lhe pedisse para mudar de

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lugarparaqueeupudessemelevantaresairsem ter de lutar parame afastar dele. “Mecontaramque você vai semudar”, ele dissecerimoniosamente.

“Não”, respondi, já que ele estavaesperando.

“Engraçado”, ele disse, olhando de mimpara Stella e depois voltando. “Eu poderiajurarquealguémtinhameditoquevocêiriaemboralogo.”

“Não”,eudisse.“Café,Jim?”,perguntouStella.“Quemvocêachaquepodeter inventado

umahistóriadessas,Stella?Quemvocêachaque iria querer me contar que eles vão semudar se isso não vai mesmo acontecer?”Stella fezquenãoparaele,masela tentavanão sorrir. Reparei que minhas mãos

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rasgavam o guardanapo de papel no meucolo, arrancando uma pontinha, e forceiminhasmãosa ficaremparadasecrieiumaregraparamimmesma:semprequevisseumpapelzinhome lembrariadesermaisgentilcomtioJulian.

“Nunca se sabecomoas fofocas correm”,disse Jim Donell. Talvez em breve JimDonell morresse; talvez já houvesse umapodridão crescendo dentro dele que iriamatá-lo. “Você já se deu conta daquantidade de fofoca que rola nestacidade?”,eleperguntouaStella.

“Deixeelaempaz,Jim”,pediuStella.Tio Julian era umhomem velho e estava

morrendo, mas de forma lastimável,certamentemaisdoqueJimDonelleStellaequalqueroutrapessoa.Ocoitadodovelho

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tio Julian estava morrendo, e criei a regraresolutadesermaisgentilcomele.Faríamosdo almoço um piquenique no quintal.Constance levaria o xale dele e o colocariaemseusombros,eeudeitarianogramado.

“Nãoestou incomodandoninguém,Stell.Estou incomodando alguém? Estou sóperguntando para a srta. Mary KatherineBlackwoodaquicomoéqueacidadeinteiraandafalandoqueelaeairmãmaisvelhavãonos deixar logo. Vão se mudar. Vão viveremoutrolugar.”Elemisturouocafé;comocanto do olho eu via a colher girando egirando e girando, e tive vontade de rir.Havia algo tão simples e tolo na colhergirando enquanto Jim Donell falava; meperguntei se ele pararia de falar caso euesticasseobraçoepegasseacolher.Erabem

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provávelquesim,eudissesabiamenteamimmesma,bemprovávelque jogasseocafénaminhacara.

“Vãoviveremoutrolugar”,eledissecomtristeza.

“Jáchega”,pediuStella.Eu ouviria commais atenção quando tio

Julian contasse sua história. Já estavalevandopédemoleque;eraumbompasso.

“E eu aqui todo chateado”, disse JimDonell,“achandoqueacidadeiaperderumade suas ótimas famílias tradicionais. Seriamesmopéssimo.”Elesevirounobancoparao outro lado porque outra pessoaatravessava a porta; eu olhava paraminhasmãosnocoloeclaroquenãovirariaparaverquemera,masentãoJimDonelldisse“Joe”,eeusoubequeeraDunham,ocarpinteiro;

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“Joe, você não ouviu essa?A cidade inteiraanda dizendo que os Blackwood vão semudardaqui,eagoraasrta.MaryKatherineBlackwoodsentaaqui e sepronuncia edizquenãovãomudar.”

Fez-se um breve silêncio. Sabia queDunham estava carrancudo, olhando paraJim Donell e para Stella e para mim,refletindo sobre o que acabara de escutar,destrinchando as palavras e resolvendo oque cada uma delas queria dizer. “Émesmo?”,eledisseporfim.

“Escutem, vocês dois”, disse Stella, masJimDonellseguiuadiante,falandodecostasparamimedepernasesticadasparaqueeunãoconseguissepassarporeleesair.“Hojedemanhãmesmo eu estava falando para opessoal que é péssimo quando as famílias

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tradicionais vão embora. Apesar de que sepode dizer com razão que um monte degenteda famíliaBlackwood já foi embora.”Ele gargalhou e estapeou o balcão com amão. “Já foi embora”, ele repetiu.A colherdentro da xícara estava imóvel, mas eleprosseguia.“Umvilarejoperdeboapartedoseu estilo quando gente de tradição vaiembora. Todo mundo ia achar”, ele dissedevagar,“quenãoqueriamelesporperto.”

“Temrazão”,disseDunham,eriu.“Do jeito que eles vivem nas suas belas

propriedadesantigas,comsuascercasesuastrilhas particulares e seus estilos de vidaelegantes.” Ele sempre continuava até secansar.QuandoJimDonellpensavaemalgoparadizereleofaziacommuitafrequênciaede todas as formas que fossem possíveis,

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talvezporque tivessepouquíssimas ideias eprecisasse espremer cada uma até a últimagota.Alémdisso, a cada vezque se repetiaele se achavamais engraçado; eu sabia queera capazdeprosseguir assimaté terplenacerteza de que ninguém mais lhe davaouvidos,ecrieiumaregraparamimmesma:nunca pensar em nadamais de uma vez, epus as mãos no colo em silêncio. Estouvivendo na lua, disse amimmesma, tenhoumacasinhasóminhanalua.

“Bom”, disse JimDonell; ainda por cimaelefedia.“Vousemprepodercontarparaaspessoas que eu conheci os Blackwood.Nunca fizeramnada contramim, pelo queme lembro, sempre forammuito educadoscomigo. Não”, ele disse, e gargalhou, “queeles tenham me convidado para jantar ou

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algoassim.”“Agora chega”, disse Stella, e sua voz era

ríspida. “Vai arrumar outra pessoa paraazucrinar,JimDonell.”

“Eu azucrinei alguém?Você acha que euqueriaserconvidadoparajantar?Vocêachaquesoulouco?”

“Eu”,disseDunham,“eupossocontarquearrumeiodegrauquebradodelesumavezenuncamepagaram.”Eraverdade.Constancememandoulhedizerquenãopagaríamosovalordoserviçodeumcarpinteiroporumatábua qualquer pregada torta no degrauquandoeletinhadeterconstruídoumnovoe bem-acabado. Quando fui lá e lhe disseque não pagaríamos ele me arreganhou osdentesecuspiu,epegouomarteloesoltouatábuaeatirou-anochão.“Poisarrumevocê

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mesma”, ele me disse, e subiu nacaminhonete e foi embora. “Nunca recebipeloserviço”,elediziaagora.

“Devetersidoumacidente,Joe.Ésóvocêir lá e falar com a srta. ConstanceBlackwoodeelavaipagaroquelhedeve.Sóque se for convidado para jantar, Joe, vocênão deixe de dizer não obrigado à srta.Blackwood.”

Dunham riu. “Eu não”, ele disse. “Euarrumeiodegrauparaelasenuncarecebi.”

“Engraçado”, disse Jim Donell, “elasarrumandoacasaetale fazendoplanosdesemudardaqui.”

“Mary Katherine”, disse Stella, indo, pordentro do balcão, para onde eu estavasentada, “pode ir para casa. Levanta dessebancoevaiparacasa.Sóvaihaverpazaqui

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quandovocêfor.”“Issosiméverdade”,disseJimDonell.Ela

oencarou,eeletirouaspernasemedeixoupassar.“Ésófalar,srta.MaryKatherine,quea gente vai lá para ajudar a encaixotar ascoisas.Ésófalar,Merricat.”

“E fala para a sua irmã…” Dunhamcomeçou, mas eu me apressei e quandochegueiláforasóouviaasgargalhadas,dosdoisedeStella.

Gostavadaminha casana lua, epusnelaumalareiraeumjardimdoladodefora(oque floresceria, cultivado na lua? Precisavaperguntar a Constance) e almoçaria ao arlivre,nomeujardimnalua.Ascoisasnaluaeram bem iluminadas, e tinham coressingulares: minha casinha seria azul.Observeimeus pezinhosmarrons sumirem

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e aparecerem e deixei a sacola de comprasbalançar um pouquinho ao meu lado;estivera na Stella e agora precisava apenaspassarpela prefeitura, que estaria deserta anão ser pelas pessoas que emitiam licençaspara cães e as pessoas que computavam asmultas de trânsito dos motoristas queentravamnovilarejopelarodoviaeseguiamem frente, e das pessoas que davam avisossobre água e esgoto e lixo e proibiam osoutrosdequeimarfolhasoudepescar;essestodos seriam enterrados em algum cantodentro da prefeitura, trabalhando juntosativamente; eu não tinha que ter medoalgumdeles anão ser que eupescasse forada temporada. Pensei em fisgar peixesescarlatenosriosdaluaeviqueosmeninosdafamíliaHarrisestavamnojardimdecasa,

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bradandoebrigandocomoutrameiadúziade garotos.Só consegui vê-los aodobrar aesquinadaprefeitura,eaindaassimpoderiater dado meia-volta e seguido o outrocaminho,pegandoa rodoviaemdireçãoaoriacho e depois o atravessado e chegandopela outra metade da trilha rumo à nossacasa,masera tardedemais, e estavacomascompras, e o riacho estava um nojo paraentrar com os sapatos marrons da nossamãe,epensei,estoumorandonalua,eandeirápido.Elesmeviramlogo,eeuosimagineiapodrecendo e se encolhendo de dor,urrando; eu os queria se contorcendo echorandonochãoàminhafrente.

“Merricat”, eles gritaram, “Merricat,Merricat”,etodosforamjuntosseenfileiraraoladodacerca.

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Questionei se os pais haviam lhesensinado,JimDonelleDunhameoimundoHarrisconduzindoexercíciosregularescomos filhos, ensinando com carinho, fazendoquestão de que entoassem a voz da formacerta; de que outro jeito tantas criançasaprenderiamtãobem?

Merricat, disse Connie, você não querumaxícaradechá?

Ah não, disse Merricat, você vai meenvenenar.

Merricat, disse Connie, você não quer irdormir?

Lánocemitério,comaterraateengolir!Fingia não falar a língua deles; na lua

falávamos uma língua suave, líquida, ecantávamos à luz das estrelas, olhando doaltoomundomortoeseco;euestavaquase

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nametadedacerca.“Merricat,Merricat!”“Cadê a velha Connie — está em casa

preparandoojantar?”“Nãoquerumaxícaradechá?”Eraesquisitoestardentrodemimmesma,

andando com firmeza e severidade junto àcerca, pisando forte mas sem que elespudessem notar a pressa, estar dentro esaber que olhavam paramim;me escondiabemládentromasaindaosescutavaeosviapelo canto dos olhos. Desejava queestivessemtodosmortosnochão.

“Lánocemitério,comaterraateengolir.”“Merricat!”Uma vez, quando passava por ali, a mãe

dos meninos Harris foi à varanda, talvezparaverporque todoselesgritavamtanto.

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Ficouparadaporumminutoobservandoeouvindo, e eu estanquei e olhei para ela,mirando seus olhos opacos e insípidos eciente de que não podia falar com ela ecientedeque falaria. “Nãodáparamandareles pararem?”, perguntei naquele dia, mequestionando se haveria algo naquelamulher que eu pudesse mobilizar, se elativesse algumdia corrido alegremente pelogramado, ou contemplado as flores, ouconhecido prazer ou amor. “Não dá paramandarelespararem?”

“Crianças”,eladisse,semalteraravozouaexpressão ou o ar de divertimentoenfadonho,“nãoxinguemamoça.”

“Está bem,mãe”, umdosmeninos teve ojuízodedizer.

“Não cheguem perto de cercas. Não

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xinguemmoçanenhuma.”Eseguiadianteenquantoseesganiçavame

berravameamulherpermanecianavarandaeria.

Merricat, disse Connie, você não querumaxícaradechá?

Ah não, disse Merricat, você vai meenvenenar.

A línguadeles vai queimar, pensei, comose tivessem comido fogo.As gargantas vãoqueimar quando as palavras saírem, e nabarrigavãosentirumtormentomaisquentedoquemilharesdeincêndios.

“Adeus,Merricat”,elesgritaramenquantoeupassavajuntoàpontafinaldacerca,“nãoprecisavoltarcorrendo.”

“Adeus, Merricat, manda lembranças àConnie.”

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“Adeus,Merricat”,maseuestavanapedrapretaealiestavaoportãoqueseabriaparaanossatrilha.

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P

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recisava largar a sacola de comprasparaabriratrancadoportão;eraumsimples cadeado e qualquer criança

seria capaz de quebrá-lo, mas havia umaplaca que avisava PARTICULAR. NÃO

ULTRAPSSE, e ninguém poderia cruzá-lo.Nosso pai providenciara as placas e osportõeseastrancasaofecharatrilha;antes,todos usavam a trilha como atalho dovilarejo para onde parava o ônibus, najunção de quatro rodovias; talvez

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caminhassem uns quatrocentos metros amenos usando nossa trilha e passando nafrentedanossaporta.Nossamãedetestavaolharparaqualquerumquequisessepassarpelanossaporta,equandonossopaialevouparavivernacasadosBlackwood,umadasprimeirascoisasquetevedefazerfoiisolaratrilha e cercar todo o terreno dosBlackwood, da rodovia ao riacho. Haviaoutro portão na outra ponta da trilha,emboraeuraramentepassasseporlá,eesseportão também tinha um cadeado e umaplaca avisando PARTICULAR. NÃO

ULTRAPSSE. “A rodovia foi feita para gentecomum”, nossa mãe disse, “e a entrada daminhacasaéparticular..”

Quem ia nos visitar, devidamenteconvidado, chegava pela entrada principal,

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quelevavadiretodoportãonaestradaatéaporta.Quandoeuerapequenaficavadeitadano meu quarto nos fundos da casa eimaginavaarampadecarroseatrilhacomoumcruzamentoqueseencontravadiantedanossa porta, e iam subindo e descendo aentradaaspessoasboas,osasseadosericosvestindo cetim e renda, que vinham nosvisitarpordireito,eindoevindopelatrilha,sorrateiros e ziguezagueantes e seesquivando servilmente, iam as pessoas dovilarejo. Eles não têm como entrar, eucostumava dizer a mim mesma repetidasvezes,deitadanomeuquartoescurocomasárvores desenhando sombras no teto, elesnão têm mais como entrar; a trilha foifechadaparasempre.Àsvezeseuparavadacerca para dentro, escondida entre os

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arbustos,eobservavaaspessoasandandonarodovia para ir do vilarejo à junção dasrodovias. Pelo que eu sabia, ninguém dovilarejotentarausaratrilhadesdequenossopaihaviatrancadoosportões.

Depoisdepôrasacoladecomprasdentrodecasa,tomeiocuidadodetrancaroportãooutra vez e testar o cadeado para ter acertezadequeestavafirme.Umavezqueocadeado estivesse bem fechado, eu estava asalvo.A trilha era escura, já que depois denosso pai desistir de qualquer ideia de terlucro com o terreno ele deixara árvores earbustos e florzinhas crescerem onde bemquisessem,eàexceçãodeumgrandepradoedos jardins, nosso terreno era bastantearborizado, e ninguém além de mimconheciaseuscaminhossecretos.Aocruzar

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a trilha, agora tranquila porque estava emcasa,euconheciacadadegrauecadacurva.Constance sabia o nome de tudo o quecrescia,maseumecontentavaemconhecê-los pelo jeito e pelo lugar onde nasciam esuas inesgotáveis ofertas de refúgio. Asúnicasmarcasnatrilhaeramasminhas,indoe voltando do vilarejo. Depois da curvatalvezachasseaspegadasdeConstance,poisàsvezeselaiaatéaliparameesperar,masamaioria dos vestígios de Constance estavano jardim e dentro de casa.Hoje ela tinhavindo até o final do jardim, e eu a avisteiassim que fiz a curva; estava parada diantedecasa,àluzdosol,ecorriemdireçãoaela.

“Merricat”, ela disse, sorrindo para mim,“olhasóatéondeeuvimhoje.”

“Élongedemais”,eudisse.“Daquiapouco

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vocêvaiatrásdemimatéovilarejo.”“Talvez,quemsabe”,eladisse.Aindaquesoubessequeestavazombando

de mim gelei, mas ri. “Você não ia gostarmuito”, eu lhedisse. “Aqui, suapreguiçosa,pegaessespacotes.Cadêomeugato?”

“Ele foi caçar borboleta porque você seatrasou.Você se lembroudoovo?Esquecideteavisar.”

“Claro que sim. Vamos almoçar noquintal.”

Quando eu era pequena, achava queConstanceeraaprincesadasfadas.Tentavadesenhar seu retrato, com cabelo lourocompridoeolhostãoazuisquantoogizdecera poderia deixá-los, e um borrão bemrosado em ambas as faces; os retratossempre me surpreendiam, porque ela era

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dessejeitomesmo;aténospioresmomentoserarosaebrancaedourada,enadapareciaturvar seu esplendor. Era a pessoa maisvaliosadomeumundo,sempre.Euaseguiapelo gramado macio, pelas flores de quecuidava, nossa casa adentro, e Jonas, meugato,surgiadeentreasfloresemeseguia.

Constance esperoudo lado de dentro daenorme porta da frente enquanto eu subiaos degraus atrás dela, e depois botei asembalagens em cima da mesa do hall etranqueiaporta.Sóausaríamosnovamentedetarde, jáqueboapartedanossavidaerapassada mais para os fundos da casa, noquintaleno jardim,ondeninguémmais ia.Saímos da parte da frente da casa, viradaparaarodoviaeovilarejo,eseguimosnossopróprio caminho atrás de sua fachada

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austera, hostil. Embora fizéssemos amanutenção da casa, os aposentos queusávamos eram os de trás, a cozinha e osquartosdosfundoseoquartinhoquenteaolado da cozinha onde vivia tio Julian; naparte externa ficava o castanheiro deConstanceeoamplo,adorávelgramadoeasfloresdeConstanceedepois,maisadiante,ahortadequeConstancecuidavae,depois,asárvores que faziam sombra no riacho.Quando nos sentávamos no gramado doquintalninguémconseguianosverdelugarnenhum.

Lembrei que deveria sermais gentil comtio Julian quando o vi sentado diante damesa velha no canto da cozinha brincandocom seus papéis. “Você deixa o tio Juliancomer pé de moleque?”, perguntei a

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Constance.“Depoisdealmoçar”,disseConstance.Ela

tirou as compras das sacolas com cuidado;qualquer tipo de comida era umapreciosidade para Constance, e ela sempretocavanelascomumrespeitosilencioso.Eunão era autorizada a ajudar; não eraautorizada a preparar a comida, tampoucoeraautorizadaaapanharcogumelos,apesarde às vezes eu trazer legumes da horta, oumaçãs das árvores antigas. “Vamos comerbolinhos”, anunciou Constance, quasecantarolando porque estava separando eguardando os alimentos. “O tio Julian vaicomer ovo, bemmolinho e amanteigado, eumbolinhoeumpedacinhodepudim.”

“Papa”,dissetioJulian.“AMerricatvaicomerumacarnemagrae

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saborosaetemperada.”“OJonasvaipegarumratoparamim”,eu

disseaomeugato,queestavanomeujoelho.“Eu sempre ficomuito felizquandovocê

voltadovilarejo”,disseConstance;elaparouparameolharemelançarumsorriso.“Atécerto ponto porque você traz comida, éclaro. Mas também porque fico comsaudades.”

“Eu sempre fico feliz quando chego emcasadepoisdeiraovilarejo”,eulhedisse.

“Foi muito ruim?” Ela tocou rápido naminhabochechacomumdedo.

“Nemqueirasaber.”“Umdiaeuvou.”Eraasegundavezqueela

falavadesair,eeugelei.“Constance”,dissetioJulian.Elelevantou

um papelzinho da mesa e o examinou, a

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testafranzida.“Achoquenãoseiseoseupaifoi lá para o jardim com o charuto delecomodehábitonaquelamanhã.”

“Elefoi,semdúvida”,disseConstance.“Ogatoandapescandonoriacho”,mecontou.“Elevoltou todoenlameado.”Eladobrouasacola de compras e colocou-a com asoutras, na gaveta, e pôs os livros dabiblioteca na prateleira, onde ficariamparasempre. Jonas e eu deveríamos ficar nonosso canto, fora do caminho, enquantoConstancetrabalhavanacozinha,eeraumaalegriaobservá-la,movimentando-sedeumjeito tão bonito à luz do sol, tocando nascomidascomtamanhadelicadeza.“ÉdiadaHelenClarke”,anunciei.“Estácommedo?”

Elasevirouparasorrirparamim.“Medonenhum”, ela declarou. “Estou cada vez

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melhor,euacho.Ehojevoufazerbolinhosderum.”

“E a Helen Clarke vai gritar e devorartodoseles.”

Mesmohoje,Constanceeeuaindaéramosum pouco sociáveis, conhecidos nosvisitavam, subiam a rampa de carros paranos chamar. Helen Clarke tomava o cháconosco às sextas-feiras, e a sra. Shepherdouasra.Riceouavelhasra.Crowleydavamuma passadinha às vezes, no domingo,depoisdaigreja,paranosdizerqueteríamosgostado do sermão. Vinham por senso deobrigação, embora nunca retornássemosseus telefonemas, e ficavam por algunsminutos convenientes e vez por outratraziamfloresde seus jardins,ou livros,ouuma canção que Constance pudesse ter

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vontadedetentartocarnaharpa;falavamdeforma cortês e havia breves momentos derisadas, e nunca deixavam de nos convidarpara iràssuascasasapesardesaberemquejamais iríamos. Eram respeitosas com tioJulian, e pacientes com suas conversas, seofereciam para nos levar para passear emseuscarros,sereferiamaelasmesmascomonossas amigas. Constance e eu semprefalávamosbemdelasumacomaoutra,poisacreditavam que suas visitas nos davamprazer. Elas nunca percorriam a trilha.QuandoConstancelhesofereciaumamudada roseira, ou lhes convidava para ver umaalegredisposiçãodecoresnova,elasiamaojardim, mas nunca se dispunham aultrapassar as áreas predefinidas; passavampelo jardim e entravamnos carros parados

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emfrenteàportaesaíamportãoafora.Osr.e a sra. Carrington vieram algumas vezesparavercomoestávamosnossaindo,jáqueosr.Carringtoneramuitoamigodonossopai.Elesnuncaentravamouaceitavamfazerum lanche, mas vinham de carro até aentrada e ficavam dentro do carro econversavam por uns minutinhos. “Comovocês estão se saindo?”, sempreperguntavam, olhando de Constance paramimevoltando;“Estãodandocontadetudosozinhas?Vocêsprecisamdealgumacoisa,tem algo que a gente possa fazer?Como éque vocês estão se saindo?” Constancesempreosconvidavaaentrarporquefomoscriadas para acreditar que era umadescortesia deixar as visitas conversando láfora,masosCarringtonnuncaentravamna

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casa.“Ficomeperguntando”,falei,pensandoneles, “se os Carrington me trariam umcavaloseeupedisse.Eupoderiacavalgarnoprado.”

Constanceseviroueolhouparamimporum instante, franzindo um pouco a testa.“Vocênãovaipedirparaeles”,eladisseporfim.“Nãopedimosnadaaninguém.Nãoseesqueça.”

“Estavabrincando”,expliquei,eelasorriude novo. “A verdade é que eu só queromesmoumcavaloseforalado.Poderíamostelevarparaaluaevoltar,meucavaloeeu.”

“Lembroqueantigamentevocêqueriaumgrifo”, eladisse. “Agora,donaPreguiça, vailáforacolocaramesa.”

“Eles tiveram uma briga horrível naquelaúltima noite”, disse tio Julian. “‘Eu não

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aceito’, ela falou, ‘Eu não aceito isso, JohnBlackwood’, e ‘A gente não tem outraalternativa’, ele falou. Fiquei atrás da portaescutando,éclaro,maschegueitardedemaispara ouvir qual era o motivo da briga;imaginoquefossedinheiro.”

“Eles não eram de brigar”, disseConstance.

“Eramquasesemprecivilizadosumcomooutro, sobrinha, se é isso o que você querdizercomnãobrigar;umexemplobastanteinsatisfatórioparatodosnós.Minhaesposaeeupreferíamososgritos.”

“Àsvezesnemparecequejáfazseisanos”,disse Constance. Peguei a toalha de mesaamarelaefuiparaoquintalparacomeçaraarrumar a mesa; atrás de mim, escutei-adizeraotioJulian,“Àsvezesachoquedaria

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tudoparaqueelesvoltassem.”Quandocriança,euacreditavaqueumdia

cresceriaeseriatãoaltaquetocarianapartedecimadasjanelasdasaladevisitasdanossamãe.Eramjanelasfeitasparaoverão,jáquea casa na verdade era para ser uma casaapenas de veraneio e nosso pai só haviainstalado um sistema de calefação porquenossafamílianãotinhaoutracasaparaondese mudar durante o inverno; por direito,deveríamos ficar com a casa Rochester novilarejo,masfaziatempoquenósatínhamosdado por perdida. As janelas da sala devisitasdanossacasa iamdochãoaoteto,eeununcaconseguiatocarnoalto;nossamãediziaàsvisitasqueascortinasdesedaazul-claras tinham quatro metros decomprimento.Haviaduasjanelasgrandesna

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saladevisitaseduasjanelasgrandesnasalade jantar do outro lado do corredor, e defora elas pareciam estreitas e mirradas edavamàcasaumardesolado.Pordentro,noentanto, a sala de visitas era linda. Nossamãetrouxeracadeirascompésdouradosdacasa Rochester, e sua harpa ficava ali, e oambiente reluzia com os reflexos dosespelhosevidrosbrilhantes.Constanceeeuusávamos a sala somente quando HelenClarke vinha para o chá, mas nós aconservávamosàperfeição.Constancesubiana escada para lavar o alto das janelas, etirávamosapoeiradasestatuetasdeDresdenem cima da cornija da lareira, e com umpano enrolado no cabo da vassoura eulimpavaosacabamentosdebolodenoivanoalto das paredes, fitando as frutas e folhas

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brancas,tirandoopódoscupidosenósdefitas, sempre tonta por olhar para cima eandar para trás, e rindo de Constancequando ela me segurava. Encerávamos opiso e remendávamos pequenos rasgos nobrocado rosa dos sofás e poltronas.Haviaumdosseldouradosobrecadajanelagrande,earabescosdouradosemtornodalareira,eoretratodenossamãeestavapenduradonasala de visitas; “Não suporto ver minhasalinha encantadora desarrumada”, nossamãeviviadizendo,eporissoConstanceeeununca tínhamos permissão para entrar lá,masagoraamantínhamosresplandecenteesedosa.

Como nossa mãe sempre servira chá àsamigas na mesinha que ficava ao lado dalareira,eraláqueConstancesemprepunhaa

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mesa.Elasesentounosofácor-de-rosacomoretratodenossamãeolhando-adecima,eeu sentei na minha poltrona pequena nocantinhoeobservei.Eupodialevarxícarasepires e distribuir sanduíches e bolos, masnão servir o chá.Não gostava de ninguémme olhando enquanto eu comia, então eutomava meu chá depois, na cozinha.Naqueledia,aúltimavezqueHelenClarkeveioparaochá,Constancetinhaarrumadoamesa comodepraxe, comas lindas xícarasrosadasefinasquenossamãesempreusava,edoispratosdemetal,umcomsanduíchespequeninos e um com bolinhos de rummuito especiais; dois bolinhos de rum meaguardavam na cozinha, no caso deHelenClarkecomertodos.Constanceficouquietano sofá; ela nunca se remexia, e as mãos

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ficavamimpecáveisnocolo.Euesperavanajanela, à procura de Helen Clarke, quesempre chegava pontualmente. “Você estácom medo?”, perguntei uma vez aConstance, e ela disse, “Não, de jeitonenhum.” Sem me virar, percebia pela suavozqueelaestavatranquila.

Vi o carro dobrar na rampa e entãopercebiquehaviaduaspessoasneleemvezde uma; “Constance”, eu disse, “ela trouxemaisalguém.”

Constanceficouparadaporuminstanteedepois declarou com bastante firmeza,“Achoquevaificartudobem”.

Eumevireiparaolhá-la,eelaestavacalma.“Voumandá-losembora”,eudisse.“Elasabequenãopodefazerisso.”

“Não”,disseConstance. “Euachomesmo

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que vai ficar tudo bem. Presta atenção noquevoufazer.”

“Masnãovouaceitarquedeixemvocêcommedo.”

“Maiscedooumaistarde”,eladisse,“maiscedo ou mais tarde eu vou ter que dar oprimeiropasso.”

Gelei.“Queromandarelesembora.”“Não”, Constance disse. “De jeito

nenhum.”Ocarroparouemfrentedecasa,efuiao

hall para abrir a porta, que eu haviadestrancado antes porque não era educadodestrancar a porta na cara das visitas.Quando fui à varanda vi que não era tãoruim quanto eu imaginara: não era umestranhoqueestavacomHelenClarke,masa pequena sra. Wright, que já tinha vindo

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uma vez e ficado com mais medo do quequalquerpessoa.Elanão seria demais paraConstance,masHelenClarkenãodeviatê-latrazidosemmeavisar.

“Boa tarde, Mary Katherine”, HelenClarke disse, dando a volta no carro esubindoosdegraus, “nãoestáumlindodiade primavera? Como está a queridaConstance? Eu trouxe a Lucille.” Elaconduziriaasituaçãocomaudácia,comoseaspessoaslevassemsemidesconhecidosparaverConstancetodososdias,enãogosteideter de sorrir para ela. “Você se lembra daLucille Wright?”, ela me perguntou, e apobrezinha da sra. Wright disse em vozbaixa que ela queria tanto vir de novo.Segurei a porta aberta, e elas entraram nohall. Não estavam de casaco porque o dia

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estavamuito agradável,masHelenClarke,dequalquermodo, teveobomsensode sedeter por um instante; “Avise à queridaConstancequeestamosaqui”,elamedisse,epercebiqueelaestavamedandotempoparadizeraConstancequemestavaali,entãodeiuma escapulida até a sala de visitas, ondeConstancepermanecia sentada, tranquila, edisse,“Éasra.Wright,aquelaassustada”.

Constance sorriu. “É um primeiro passomeio fraco”, ela disse. “Não temproblema,Merricat.”

No hall, Helen Clarke exibia a escada àsra.Wright,contandoahistóriafamiliardoentalhamento e da madeira importada daItália; quando saí da sala de visitas ela meolhouderelanceedisse,“Essaescadaéumadas maravilhas do condado, Mary

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Katherine.Éumapenaquefiqueescondidadomundo.Lucille?”.Elassedirigiramàsaladevisitas.

Constance estava perfeitamente serena.Levantou-se e sorriu e disse estar feliz emvê-las.ComoHelenClarkeeradeselegantepor natureza, conseguiu fazer do simplesatodeentrarnumambienteesesentarumcomplexo balé de três pessoas; antes deConstance terminarde falar,HelenClarkedeu um encontrão na sra. Wright eempurrou a sra.Wright para o lado comouma bola de croqué lançada para o cantooposto da sala, onde se sentou brusca enitidamente sem intenção em uma cadeirapequenaedesconfortável.HelenClarkefoipara o sofá onde Constance estava, quasederrubando amesinhado chá, e, apesar de

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havermuitas poltronas na sala e um outrosofá, ela acabou se sentando a umaproximidade incômoda de Constance, quedetestava que qualquer um além de mimficasse a seu lado. “Bem”, disse HelenClarke,seespraiando,“quebomrevê-la.”

“Uma gentileza vocês nos receberem”,disse a sra. Wright, inclinando-se para afrente.“Quelindaescada.”

“Você está com uma aparência ótima,Constance.Estavatrabalhandonojardim?”

“Não deu para evitar, com um dia comoeste.”Constanceriu;estavasesaindomuitobem.“Étãoempolgante”,eladisseparaasra.Wright. “A senhora também gosta dejardinagem?Essesprimeirosdiasclarossãotão empolgantes para quem gosta dejardinagem.”

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Falava um pouco demais e meio rápidodemais, mas ninguém além de mimpercebeu.

“Eu amo jardins”, a sra.Wright declarounuma breve rajada. “Eu realmente amojardins.”

“Como vai o Julian?”, Helen Clarkeperguntou antes de a sra.Wright terminardefalar.“ComoestáovelhoJulian?”

“Ele vai muito bem, obrigada. Ele vaitentartomarumaxícaradecháconoscoestatarde.”

“VocêconheceJulianBlackwood?”,HelenClarke perguntou à sra. Wright, e a sra.Wright, fazendo que não, começou,“Adoraria conhecê-lo, é claro; já ouvi falartanto…”esecalou.

“Eleéumbocadinho…excêntrico”,Helen

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Clarke declarou, sorrindo para Constancecomo se até então isso fosse um segredo.Fiquei pensando que se ser excêntricosignifica,comoodicionáriodiziaserocaso,aqueleque sedesviado centro,HelenClarkeeramuitomaisexcêntricadoquetioJulian,com seus movimentos desajeitados eperguntasinesperadas,etrazendoestranhospara o chá; tio Julian vivia comtranquilidade, num padrão perfeitamenteplanejado, redondo e fluido. Ela nãoprecisava chamar as pessoas de coisas quenãoeram,pensei,lembrandoqueeudeveriasermaisgentilcomtioJulian.

“Constance, você sempre foi uma dasminhasmelhoresamigas”,eladiziaagora,efiqueiadmirada;elarealmentenãoviacomoConstancerecuavadiantedepalavrasassim.

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“Só vou te dar um pequeno conselho, elembre-se,elevemdeumaamiga.”

Devo terpressentidooqueela iriadizer,pois gelei; o dia inteiro havia sido umaescalada rumo ao que Helen Clarke diriaagora. Afundei-me na poltrona e fiteiConstance,querendoqueelaselevantasseefugisse,querendoqueelanãoouvisseoqueestava para ser dito, mas Helen Clarkeprosseguiu, “É primavera, você é jovem, élinda,temodireitodeserfeliz.Volteparaomundo”.

Fosse outra época, até um mês atrásquando ainda era inverno, palavras comoessas fariam Constance se retrair e saircorrendo; agora, via que ela escutava esorria,emborafizessequenãocomacabeça.

“Sua penitência já durou tempo demais”,

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disseHelenClarke.“Eu gostaria tanto de oferecer um

almocinho…”,começouasra.Wright.“Você se esqueceu do leite; vou pegar.”

Levantei-me e falei diretamente comConstance, e ela olhou ao redor até meencontrar,quasesurpresa.

“Obrigada,querida.”Saí da sala de visitas e passei pelo hall e

rumeiparaacozinha;estamanhãacozinhaestivera clara e alegre, e agora, fria, percebique estava lúgubre. Constance dava aimpressãodequederepente,depoisdetodoaquele tempo se recusando e negando, elacomeçava a ver que talvez fosse possível,afinaldecontas,sairdecasa.Percebiaagoraqueessaeraaterceiraveznomesmodiaqueoassuntoeraabordado,etrêsvezestornava

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a coisa real. Eu não conseguia respirar;estavaamarradacomarame,eminhacabeçaestava enorme e iria explodir; corri para aporta dos fundos e a abri para respirar.Queria correr; se pudesse correr até o fimdonossoterrenoevoltareuficariabem,masConstance estava sozinha com elas na saladevisitas, eu tinhadevoltardepressa.Tivequemecontentaremquebrarojarrodeleiteque esperava sobre a mesa; tinha sido danossamãe, e deixei os cacos no chão paraque Constance os visse. Peguei o segundomelhor jarro de leite, que não combinavacomas xícaras; como tinhapermissãoparaservir o leite, euo enchi e o levei à saladevisitas.

“… fazer isso com a Mary Katherine?”,Constance dizia, e então se virou e sorriu

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para mim na soleira da porta. “Obrigada,querida”, ela disse, e olhou para o jarro deleiteeparamim.“Obrigada”,repetiu,epusojarronabandeja.

“Não precisa fazer muita coisa, aprincípio”, disse Helen Clarke. “Pareceriaestranho, eu admito. Mas um ou doistelefonemas para velhas amigas, quem sabeumdianoshoppingdacidade—ninguémtereconhecerianacidade,sabe?”

“Um almocinho?”, disse a sra. Wright,esperançosa.

“Tenho de pensar.” Constance fez umgesto mínimo, risonho, desconcertado, eHelenClarkeassentiu.

“Vocêvaiprecisarderoupas”,eladisse.Levanteidomeulugarnocantoparapegar

umaxícaradechádeConstancee levá-laà

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sra.Wright, cujamão tremeu ao segurá-la.“Obrigada,minhaquerida”,eladisse.Euviochátremernaxícara;eraapenassuasegundavisita,afinaldecontas.

“Açúcar?”,ofereci;nãopudeevitare,alémdisso,eraeducado.

“Ah,não”, eladisse. “Não,obrigada.Semaçúcar.”

Pensei, olhando para ela, que hoje elatinha se vestido para vir aqui;Constance eeununcausávamospreto,mas talvez a sra.Wright achasse conveniente, e hoje usavaumvestidopretocomumcolardepérolas.Também usara preto da outra vez, melembrei; sempre de bom gosto, refleti, sóque não na sala de visitas da nossa mãe.VolteiparaConstance epeguei opratodebolinhos de rum e o levei à sra. Wright;

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tambémnãoeraumagentileza,eelacomeriaprimeiroos sanduíches,masqueriaqueelaficasse infeliz, vestida de preto na sala devisitas da nossa mãe. “Minha irmã fez demanhã”,declarei.

“Obrigada”, ela disse. Sua mão hesitousobreopratoedepoiselapegouumbolinhode rum e o colocou cuidadosamente nabeirada do pires. Achei que a sra. Wrightestavaagindocomumacortesiahistérica, eeu disse, “Pegue dois. Tudo o que minhairmãfazéumadelícia”.

“Não”, ela respondeu. “Não, não.Obrigada.”

Helen Clarke comia os sanduíches,esticando o braço além deConstance parapegar um após o outro. Ela não secomportariaassimemnenhumoutrolugar,

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pensei, só aqui. Ela nunca liga para o queConstance pensa ou eu penso sobre seusmodos;sóimaginaqueficamosfelicíssimasem vê-la. Sai daqui, eu lhe dissementalmente. Sai daqui, sai daqui. Fiqueimeperguntando seHelenClarkeguardavaroupas específicas para as visitas à nossacasa. “Isso aqui”, eu a imaginava dizendo,revirandooguarda-roupas,“nãofazsentidojogarissoaquifora,eupossousarparavisitara querida Constance.” Comecei a vestirHelen Clarke na minha imaginação,colocando-a em ummaiô sobre um bancode neve, botando-a no alto dos galhosgrossos de uma árvore em um vestido dedelicados babados cor-de-rosa que seprendiam e repuxavam e rasgavam; elaestava enroscada na árvore e berrava, e eu

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quaseri.“Por que não chamar umas pessoas

daqui?”, Helen Clarke dizia a Constance.“Uns poucos velhos amigos — tem váriaspessoas que queriam manter contato comvocê, Constance querida — uns velhosamigosumanoitedessas.Parajantar?Não”,ela disse, “Talvez não para jantar. Talveznão,pelomenosporenquanto.”

“Eu mesma…”, a sra. Wright retomou;tomaracuidadoaodeixaraxícaradecháeobolinhoderumnamesaaolado.

“Masporquenãoumjantar?”,disseHelenClarke.“Afinal,umahoraououtravocêvaiterdesearriscar.”

Eu ia falar alguma coisa. Constance nãoolhava para mim, somente para HelenClarke.“Porquenãochamarumaspessoas

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bacanasdovilarejo?”,pergunteiemvozbemalta.

“SantoDeus,MaryKatherine”, exclamouHelenClarke.“Quesustovocêmedeu.”Elariu.“Peloqueeumelembro,osBlackwoodnunca se relacionaram socialmente com osmoradores”,eladisse.

“Elesnosodeiam”,declarei.“Eu não dou ouvidos às fofocas deles, e

espero que você também não dê. E, MaryKatherine,vocêsabetãobemquantoeuquenoventaporcentodessasensaçãoéfrutodasua imaginação, e se você tentasse serminimamente amistosa eles nunca falariamuma palavra que fosse contra você. SantoDeus. Eu garanto que pode até ter havidoalgumacoisaantes,masdasuaparteelafoicompletamentesuperdimensionada.”

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“As pessoas vão fofocar”, a sra. Wrightconstatouemtomapaziguador.

“Essetempotodovenhodizendoquesoumuito amiga dos Blackwood e que nãotenho vergonha nenhuma disso. Você temqueseaproximardaspessoasdoseuprópriotipo,Constance.Elasnãofalamdenós.”

Eu gostaria que elas fossem maisdivertidas; achei que agora Constanceparecia um pouco cansada. Se elas fossemembora logo eu pentearia o cabelo deConstanceatéeladormir.

“O tio Julian está chegando”, anunciei aConstance. Escutei o barulho suave dacadeirade rodasnohall eme levanteiparaabriraporta.

Helen Clarke disse, “Você acha que aspessoasvãomesmotermedodeviraqui?”,e

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tio Julian estancou na soleira da porta.Elepusera a gravata elegante por causa dascompanheiras de chá, e lavara o rosto atédeixá-lo rosado. “Medo?”, eledisse. “Deviraqui?”Desuacadeiraelefezumareverênciaà sra. Wright e depois a Helen Clarke.“Madame”, ele disse, e “Madame.” Percebiqueelenãoselembravadonomedeambas,ousejáastinhavistoantes.

“Você está ótimo, Julian”, disse HelenClarke.

“Medo de vir aqui? Me desculpe porrepetir suas palavras, madame, mas estouperplexo. Afinal de contas, a minhasobrinha foi absolvida do homicídio. Nãoexisteperigonenhumemviraquiagora.”

A sra. Wright fez um movimentoconvulsivoemdireçãoàxícaraedepoispôs

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asmãosnocolocomfirmeza.“Pode-sedizerqueexisteperigoemtodo

lugar”, continuou tio Julian. “O perigo doenvenenamento, sem dúvida. Minhasobrinha pode lhes contar sobre os riscosmaisimprováveis—plantasdejardimmaisfataisquecobraseervascomunsquerasgama mucosa da sua barriga que nem faca,madame.Aminhasobrinha…”

“Um jardim encantador”, a sra. Wrightdisse a Constance com sinceridade.“Garantoquenãoseicomofazerigual.”

HelenClarkedeclaroucomfirmeza,“Ora,tudo isso foi esquecido há muito tempo,Julian.Ninguémmaispensanisso”.

“Lamentável”, disse tio Julian. “Um casofascinante, um dos poucos mistériosverdadeiros da nossa época. Da minha

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época, principalmente. A obra da minhavida”,eledeclarouàsra.Wright.

“Julian”, Helen Clarke intercedeudepressa;asra.Wrightpareciahipnotizada.“Existe uma coisa chamada bom gosto,Julian.”

“Gosto,madame?Você já sentiu o gostode arsênico?Garanto que tem um instantedeprofundaincredulidadeantesdeamenteaceitar…”

Um momento antes a pobre coitada dasra. Wright provavelmente prefeririamorderalínguaamencionaroassunto,masagora dizia, quase sem fôlego, “Quer dizerquevocêselembra?”.

“Lembrar.” Tio Julian suspirou,balançandoalegrementeacabeça.“Vaiver”,eledissecomentusiasmo, “vaivervocênão

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conheceahistória.Quemsabeeunão…”“Julian”, interrompeu Helen Clarke, “a

Lucillenãoquer saber.Vocêdeveria sentirvergonhadefalarissoparaela.”

Pensei que a sra. Wright queria muitosaber,eolheiparaConstancenoinstanteemque elame olhou; ambas estávamosmuitosérias, para combinar com o tema,mas eusabia que ela estava se divertindo tantoquantoeu;erabomescutartioJulian,quenamaiorpartedotempoficavatãosozinho.

E a pobre, pobre sra. Wright, afinaltentada a um nível insuportável, nãoconseguiu mais se conter. Ela ficou muitovermelha e vacilou, mas tio Julian era umsedutor, e a boa educação da sra. Wrightnão poderia resistir para sempre.“Aconteceu bem aqui nesta casa”, ela disse

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comonumaprece.Todos fizemos silêncio, fitando-a com

cortesia, e ela sussurrou, “Eu peço perdãomesmo”.

“Naturalmente, nesta casa”, Constanceconcordou. “Na sala de jantar. Estávamosjantando.”

“Uma família reunida para a refeiçãonoturna”, disse tio Julian, acariciando aspalavras.“Semnuncacogitarqueserianossaúltimavez.”

“Arsêniconoaçúcar”,disseasra.Wright,deixando-se levar, perdendoirremediavelmentetodoodecoro.

“Eu usei aquele açúcar.” Tio Julianbalançou o dedo para ela. “Eumesmouseiaquele açúcar nas minhas amoras. Porsorte”,eeledeuumsorrisosuave,“odestino

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interferiu.Elelevouinexoravelmentealgunsde nós, naquele dia, às portas da morte.Algunsdenós,inocentesesemsuspeitardenada, deram, sem querer, aquele últimopasso rumo ao esquecimento. Algunstomarammuitopoucoaçúcar.”

“Nunca toco em amoras”, declarouConstance; ela olhou direto para a sra.Wrightedisseemtomdiscreto,“raramenteusoaçúcarnoquequerqueseja.Atéhoje.”

“Isso pesou muito contra ela nojulgamento”,tioJuliandisse.“Digo,ofatodeque ela não usava açúcar. Mas a minhasobrinha nunca gostou de amora. Atéquando era criança ela tinha o hábito derecusaramora.”

“Porfavor”,HelenClarkedissealto,“éumultraje, de verdade; acho insuportável ouvir

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sobreisso.Constance...Julian...oqueéqueaLucillevaipensardevocês?”

“Não, tudo bem”, disse a sra. Wright,levantandoasmãos.

“Não vou ficar aqui sentada, não queroouvir mais nem um pio”, declarou HelenClarke. “A Constance tem que começar apensarnofuturo;ficarremoendoopassadonão é saudável; a pobre coitada já sofreumuito.”

“Bom, eu tenho saudade de todos eles, éclaro”,disseConstance.“Ascoisassãobemdiferentesdesdequeelespartiram,masnãomevejocomoumapessoasofrida.”

“Decertaforma”,tioJuliancontinuou,“eutive uma sorte extraordinária. Sobrevivi aocasodeenvenenamentomaissensacionaldoséculo. Tenho todas as matérias de jornal.

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Eu conhecia as vítimas, a acusada,intimamente, como apenas um parentemorando na casa poderia conhecê-las.Tenho anotaçõesminuciosas sobre tudo oqueaconteceu.Nuncamerecuperei.”

“Eu já falei que não quero discutir esseassunto”,disseHelenClarke.

Tio Julian se deteve. Olhou para HelenClarke e depois para Constance. “Nãoaconteceu de verdade?”, ele perguntou umminutodepois,osdedossobreaboca.

“Claro que aconteceu de verdade.”Constancesorriuparaele.

“Tenhoosrecortesdosjornais”,tioJuliandisse com insegurança. “Tenho minhasanotações”,eledisseaHelenClarke,“eupustudonopapel.”

“Foiumacoisaterrível.”Asra.Wrightse

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inclinou para a frente gravemente, e tioJuliansevoltouparaela.

“Apavorante”, concordou. “Aterrador,madame.”Elemanobrouacadeiraderodaspara ficar de costas para Helen Clarke.“Quer ver a sala de jantar?”, convidou. “Atábua fatal? Não contribuí com nenhumaevidência no julgamento, entende; minhasaúdenãoestavaàaltura,naépocaeagora,das perguntas grosseiras de estranhos.” Elebalançou a cabeça de leve em direção aHelen Clarke. “Eu queriamuito sentar nobanco das testemunhas. Creio que eu nãoteria causado nenhuma impressãodesvantajosa.Mas é claro que no final dascontaselafoiinocentada.”

“Claroquefoi inocentada”,HelenClarkedisse com veemência. Ela pegou sua bolsa

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enorme, colocou-a sobre o colo e tateou-aem busca das luvas. “Ninguémmais pensanisso.”Elaeasra.Wrightseentreolharam,eentãoelasepreparouparalevantar.

“A sala de jantar…?”, a sra.Wright dissecomacanhamento.“Sóumaolhadinha?”

“Madame.” Tio Julian forçou umareverência da cadeira de rodas, e a sra.Wright se apressou para chegar à porta eabri-la para ele. “Bem do outro lado docorredor”, tio Julian explicou, e ela seguiu.“Admiro mulheres razoavelmente curiosas,madame;deuparaperceberdecaraquevocêfoidevoradapelofurordeverocenáriodatragédia;aconteceubemaquinestecômodo,econtinuamosajantaraquitodasasnoites.”

Nósoouvíamoscomclareza;pareciadaravoltananossamesadejantarenquantoasra.

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Wright o observava da soleira da porta.“Vocêpercebequeanossamesaéredonda.Agoraelaégrandedemaisparaolastimávelrestante da nossa família, mas temosrelutadoemperturbaroqueé,nofinaldascontas, uma espécie de monumento;antigamente, um retrato desta sala valeriaum bom dinheiro de qualquer jornal. Jáfomos uma família numerosa, você deve selembrar, uma família grande e feliz.Tínhamos umas discórdias bobas, é claro,não fomos todos imensamente abençoadoscompaciência; dá até para dizer que haviabrigas.Nadasério;maridoemulher, irmãoe irmã nem sempre estavam de plenoacordo.”

“Entãoporqueela…”“Sim”, tio Julian disse, “isso é

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desconcertante, não émesmo?Meu irmão,como chefe de família, logicamente sesentavanacabeceiradamesa,aqui,decostaspara a janela e com o decantador à frentedele. John Blackwood se orgulhava destamesa,dafamília,daposiçãoqueocupavanomundo.”

“Ela nem sequer o conhecia”, HelenClarke disse. Olhou com raiva paraConstance.“Eumelembrobemdoseupai.”

Rostos se dissipam da memória, pensei.Fiquei me questionando se reconheceria asra.Wright caso a visse no vilarejo. Fiqueime questionando se no vilarejo a sra.Wright passaria por mim, sem me ver;talvezelafossetãotímidaquenuncaolhasseparaorostodeninguém.Axícaradecháeobolinho de rum ainda estavam em cima da

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mesa,intocados.“E eu era muito amiga da sua mãe,

Constance. É por isso que me sinto àvontade para falar abertamente com você,pelo seu próprio bem. Sua mãe gostariaque…”

“… minha cunhada, madame, era umamulherdelicada.Vocêdeveterreparadonoretratodela na sala de visitas, e no traçadosutildomaxilarsobapele.Umamulherquenasceu para a tragédia, talvez, apesar datendência a ser meio boba. À direita dela,nestamesa,eu,maisjovemnaquelaépoca,enão um inválido; foi só a partir daquelanoite que virei um desvalido. À minhafrente,omeninoThomas—vocêsabiaquetiveumsobrinho,quemeuirmãotinhaumfilho? Sem dúvida você já leu sobre ele.

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Tinha dez anos e muito dos traços depersonalidademaiscontundentesdopai.”

“Foi ele quem usoumais açúcar”, disse asra.Wright.

“Infelizmente”, disse o tio Julian. “Então,ao ladodomeu irmão, a filhaConstance eminhaesposa,Dorothy,quemedeuahonradejuntarapartedelacomaminha,apesardeeu achar que ela não imaginava nada tãograve quanto arsênico nas amoras dela. Aoutrafilha,minhasobrinhaMaryKatherine,nãoestavaàmesa.”

“Estava no quarto dela”, disse a sra.Wright.

“Uma criança ótima de doze anos, quemandaramparaacamasem jantar.Maselanãonosdavapreocupação.”

Eu ri, eConstancedisse aHelenClarke,

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“Merricat sempre caía em desgraça. Eusempre subia pela escada dos fundos comuma bandeja de jantar para ela depois quemeupai saía da salade jantar.Ela eraumacriança terrível, desobediente”, e ela sorriuparamim.

“Um ambiente insalubre”, disse HelenClarke. “A criança deve ser castigada pelastransgressões, mas é preciso que ela sintaque continua sendo amada. Eu jamaistolerariaarebeldiainfantil.Eagoraagenteprecisa mesmo…” Ela começou a vestir asluvasdenovo.

“…cordeirinhodeleiteassadocomgeleiade hortelã feita com folhas da horta daConstance.Batataemrodelas,ervilhafresca,umasalada,denovodahortadaConstance.Eu me lembro perfeitamente, madame.

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Ainda é uma das minhas refeiçõesprediletas. Também fiz, é claro, anotaçõesbemdetalhadasdetudooquedizrespeitoaesse jantar e, a bem da verdade, àquele diainteiro.Você vai logoverqueo jantar giraemtornodaminhasobrinha.Overãoestavacomeçando, a horta estava indo bem— oclimaestavaumadelícianaqueleano,eumelembro; desde então não tivemos outroverão como aquele, ou vai ver que estouficando velho. A gente contava com aConstancepara várias iguariazinhasque sóela era capaz de proporcionar; é claro quenãomerefiroaarsênico.”

“Bom,aamorafoiumaparteimportante.”Asra.Wrightpareciameiorouca.

“Quementeasua,madame!Tãocerteira,tão infalível.Dáparaperceberquevocêvai

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meperguntarpor que seria concebível queela usasse arsênico. Minha sobrinha não écapaz de tamanha sutileza, e por sorte oadvogado dela disse isso no julgamento.Constance pode pôr as mãos numa gamaassombrosa de substâncias fatais sem nemsequersairdecasa;elapoderialhefazerummolhodecicuta,membrodafamíliadasalsaquecausaparalisiaimediataemortequandoingerida.Elapoderiaterfeitoumageleiadasadoráveis figueiras-do-infernoou ervas-de-são-cristóvão, poderia ter salpicado nasaladaumHolcuslanatus,chamadodeerva-lanar e cheio de ácido cianídrico. Tenhoanotaçõessobretudoisso,madame.Adoce-amarga é parente do tomate; será que nós,algum de nós, teríamos a premonição derecusar caso Constance servisse isso para

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nós, temperado e em conserva? Ou penseentãonafamíliadoscogumelos,ricacomoéem tradição e armadilhas. Nós sempregostamos de cogumelo—minha sobrinhafaz uma omelete de cogumelo que sóprovandoparaacreditar,madame—eotãocomumchapéu-da-morte…”

“Ela não devia ser a responsável porcozinhar”,disseasra.Wrightcomfirmeza.

“Bom, é claro, essa é a raiz do nossoproblema. Claro que ela não devia estarcozinhandoseaintençãodelafossedestruirtodos nós com veneno; seria um altruísmocegodanossaparte incentivá-la a cozinharsefosseesseocaso.Maselafoiinocentada.Nãosóemrelaçãoaoatocomoàintenção.”

“O que haveria de errado na sra.Blackwoodprepararaprópriacomida?”

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“Faça-me o favor.” A voz de tio Juliantinhacertotremor,esoubequaleraogestoquefaziaapesardenãoestaraoalcancedosmeus olhos. Ele teria levantado a mão, osdedosafastados,esorridoparaelaporcimados dedos; era um gesto galante, típico detioJulian;eujáovirausá-locomConstance.“Pessoalmente, eu preferiria arriscar oarsênico”,declaroutioJulian.

“Precisamos ir para casa”, Helen Clarkeanunciou.“NãoseioquedeunaLucille.Eufalei para ela antes de chegar que não eraparamencionaresseassunto.”

“Esteanovoucolhermorangossilvestres”,Constancemedisse.“Repareinumafaixadeterrarazoávelcheiadelespertodapontadahorta.”

“Queenormefaltadetato,adela,eelame

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deixaesperando.”“…oaçucareironoaparador,oaçucareiro

pesadodepratacheiodeaçúcar.Éherançade família;meu irmão dava grande valor aele.Imaginoquevocêestejaseperguntandosobreoaçucareiro.Aindaestáemuso?,vocêestáseperguntando;foi lavado?,vocêpodemuito bem questionar; foi bem lavado?Posso ir garantindo logo. Minha sobrinhaConstance lavou antes de o médico ou apolícia chegar, e como você deve terdeduzido não foi um momento oportunopara lavar o açucareiro. Os outros pratosusadosnojantaraindaestavamnamesa,masaminhasobrinhalevouoaçucareiroparaacozinha,esvaziou-oeesfregou-omuitobemcomáguafervente.Foiumgestocurioso.”

“Tinha uma aranha dentro”, Constance

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disseparaachaleira.Usamosumaçucareiroenfeitadocomrosasparaoscubosdeaçúcardochá.

“…tinhaumaaranhadentro,elafalou.Foiissoo que ela faloupara a polícia.Foi porissoqueelalavou.”

“Bom”,disseasra.Wright,“meparecequeelapoderiaterpensadonumarazãomelhor.Mesmo se fosse uma aranha de verdade...bem,vocênãolava...querdizer,vocêsótiraaaranhadedentro.”

“Quemotivovocêteriadado,madame?”“Bom,eununcamateininguém,entãonão

sei… quer dizer, não sei o que eu diria.Aprimeiracoisaquemepassassepelacabeça,imagino. Quer dizer, ela devia estarchateada.”

“Garanto que as pontadas foram

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horrendas; você disse que nunca sentiu ogostodearsênico?Nãoéagradável.Eusintomuitíssimoportodoseles.Eumesmopasseivários dias com dores tenebrosas;Constance teria, sem dúvida, demonstradoprofunda compaixão pormim,mas àquelaaltura, é claro, ela estava totalmenteinacessível.Elafoidetidanamesmahora.”

Asra.Wright soavamaisenérgica,numaansiedade quase involuntária. “Sempreimaginei, desde que nosmudamos para cá,que seria uma oportunidade incrívelconhecervocêsedescobriroqueaconteceudeverdade,porqueéclaroquesempreexisteaqueladúvida,aquelaàqualninguémnuncaconseguiu responder; claro que nemesperava conversar com vocês sobre isso, evejasó.”Ouviu-seoruídodeumacadeirada

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sala de jantar sendo arrastada; estava claroque a sra. Wright tinha resolvido seacomodar. “Primeiro”, ela disse, “elacomprouoarsênico.”

“Para matar os ratos”, Constance disseparaachaleira,depoissevirouemelançouumsorriso.

“Paramatarosratos”,disseotioJulian.“Oúnico outro uso popular do arsênico é nataxidermia, e minha sobrinha não seriasequer capaz de fingir que tem algumconhecimentopráticodoassunto.”

“Elapreparouojantar,elapôsamesa.”“Confesso que estou surpresa com essa

mulher”,declarouHelenClarke.“Elapareceserumapessoatãoreservadinha.”

“Foi Constance quem viu eles morrendoque nem moscas — com o perdão da

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expressão—esóchamouomédicoquandojáeratardedemais.Elalavouoaçucareiro.”

“Tinha uma aranha dentro”, declarouConstance.

“Elafalouparaapolíciaqueelesmereciammorrer.”

“Elaestavaagitada,madame.Podeserqueo comentário tenha sido mal interpretado.Minha sobrinha não é uma pessoa cruel;alémdisso,naquelemomentoelaachavaqueeu era um deles, e apesar de eu merecermorrer—todosmerecemos,nãoéverdade?—, nem de longe imagino que minhasobrinhaéquemdevedizeressascoisas.”

“Elafalouparaapolíciaquefoitudoculpadela.”

“Aí”, disse tio Julian, “eu acho que elacometeu um erro. É bem verdade que no

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começoelaachavaqueacomidadela tinhacausadoaquilotudo,masaoassumirtodaaculpa acho que foi impetuosa demais. Euteria aconselhado que não tomasse essaatitudecaso tivessesidoconsultado;pareceautocomiseração.”

“Masagrandequestão,semresposta,éporquê?Porqueelafezisso?Querdizer,anãoserqueagenteconcordequeConstanceeraumamaníacahomicida…”

“Vocêconheceuela,madame.”“Eu o quê? Ah, meuDeus, sim. Esqueci

totalmente.Nãoconsigolembrarqueaquelajovenzinhabonitaénaverdade…bom.Suagenocida deve ter algum motivo, sr.Blackwood, ainda que seja deturpado,perverso... ah, valha-me Deus. Ela é umamenina encantadora, sua sobrinha; nem

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lembroquandofoiquemeafeiçoeiaalguémcomome afeiçoei a ela.Mas se ela é umamaníacahomicida…”

“Estou indo embora.” Helen Clarke selevantou e enfiou a bolsa enfaticamentedebaixo do braço. “Lucille”, ela chamou,“estouindoembora.Jáultrapassamostodososlimitesdodecoro;jápassadascinco.”

A sra. Wright saiu apressada da sala dejantar, atormentada. “Mil desculpas”, elapediu. “Estávamos batendo papo e perdi anoçãodahora.MeuDeus.”Elacorreuatéacadeiraparapegarabolsa.

“Você nem tocou no chá”, eu disse,querendovê-lacorar.

“Obrigada”, ela disse; olhou para baixo,paraaxícara,ecorou.“Estavaumadelícia.”

Tio Julian parou a cadeira de rodas no

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meio do cômodo e juntou as mãos comalegria. Olhou para Constance e entãolevantou os olhos para fitar um canto doteto,sóbrioemodesto.

“Julian, adeus”, Helen Clarke dissebruscamente. “Constance, desculpe por terficado tanto tempo; foi imperdoável.Lucille?”

A sra. Wright parecia uma criança quesabe que será punida, mas não tinha seesquecidodosbonsmodos.“Obrigada”,eladisse a Constance, esticando a mão erecolhendo-a rapidamente. “Foi muitoagradável. Adeus”, ela disse ao tio Julian.Elasforamaohall,eeuasseguiparatrancara porta depois que saíssem. Helen Clarkedeu partida no carro antes que a pobrecoitadadasra.Wrightterminassedeentrar,

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eaúltimacoisaqueouvidasra.Wrightfoium gritinho quando o carro seguiu pelarampa.Estava gargalhandoquando voltei àsala de visitas, me aproximei e beijeiConstance.“Umótimochá”,declarei.

“Que mulher insuportável.” Constanceencostouacabeçanosofáeriu.“Malcriada,pretensiosa,burra.Nuncavouentenderporqueelasemprevoltaaqui.”

“Ela quer te botar nos eixos.” Peguei axícaradasra.Wrighteobolinhoderumeosleveiatéabandejadechá.“Coitadinhadasra.Wright”,eudisse.

“Vocêestavacaçoandodela,Merricat.”“Um bocadinho, talvez.Não consigome

segurar quando as pessoas têm medo;sempre tenho vontadedebotarmaismedoaindanelas.”

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“Constance?”TioJulianvirouacadeiraderodasemsuadireção.“Comoeumesaí?”

“Foi soberbo, tio Julian.” Constance selevantouefoiatéeleedeuumlevetoqueemsua velha cabeça. “Você não precisou dassuasanotaçõesparanada.”

“Aconteceu de verdade?”, ele lheperguntou.

“Sem sombra de dúvida. Vou levar vocêparaoquartoparavocêolharseusrecortesdejornal.”

“Acho que agora não. Foi uma tardeexcelente,masachoqueestoumeiocansado.Voudescansaratéahoradojantar.”

Constance empurrou a cadeira de rodascorredorafora,eeuseguicomabandejadechá. Como tinha permissão para carregarpratossujosmasnãolavá-los,pusabandeja

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na mesa da cozinha e fiquei observandoConstanceempilharospratosaoladodapiapara lavar depois, varrer o jarro de leitequebrado do chão e pegar as batatas paracomeçaraprepararojantar.Porfim,tivedelhe perguntar; a ideia me deixara gelada atarde inteira. “Você vai fazer o que elafalou?”, perguntei. “O que aHelen Clarkefalou?”

Ela não fingiu não entender. Ficou aliolhando as próprias mãos trabalhando esorriudeleve.“Nãosei”,eladisse.

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mamudança estavapara acontecereninguémalémdemimsabiadisso.Constance talvez desconfiasse;

reparei que ela às vezesparavano jardimeolhavanãoparaasplantasdasquaiscuidava,e não para a nossa casa,mas para fora, emdireçãoàsárvoresqueescondiamacerca,ede vez em quando olhava por bastantetempo e com curiosidade para a rampa decarros, como se estivesse se perguntandocomo seria percorrê-la até o portão. Eu a

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observei. Na manhã de sábado, depois deHelen Clarke vir para o chá, Constanceolhouparaarampadecarrostrêsvezes.TioJuliannãoestavabemnamanhãdesábado,após se exaurir no chá, e permaneceu nacama em seu quarto quente ao lado dacozinha, junto ao travesseiro olhando pelajanela, chamando vez por outra para queConstance lhe desse atenção. Até Jonasestavainquieto—faziatempestadeemcopod’água,nossamãecostumavadizer—enãoconseguiadormirsossegado;durantetodosaqueles dias em que amudança estava porvir, Jonas ficouagitado.Dosonoprofundoeledespertavadesúbito,levantandoacabeçacomoseescutassealgo,eemseguida,depéesemovendocomumaleveagitação,elesubiaa escada correndo e atravessava as camas e

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entravaesaíapelasportasedepoisdesciaaescada e cruzava o corredor e subia nacadeira da sala de jantar e dava a volta namesa e percorria a cozinha e saía jardimafora, onde desacelerava, vagando, e entãoparavaparalamberapataemexeraorelhaedarumaolhadanodia.Ànoiteoouvíamoscorrendo,osentíamospassandoporcimadenossos pés quando estávamos deitados nacama,umatempestadeemcopod’água.

Todos os augúrios indicavam mudanças.Acordei numa manhã de sábado e penseiouvi-losmechamando;elesqueremqueeumelevante,penseiantesdedespertardeveze lembrar que estavam mortos; Constancenuncameacordava.Quandomevestiedescinaquelamanhãelaaguardavaparafazermeucafé,eeulhedisse,“Imagineiterouvidoeles

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mechamandoagorademanhã”.“Anda logo com o café”, ela disse. “Está

umdialindodenovo.”Nasboasmanhãsemquenãoprecisavair

aovilarejo,eutinhameutrabalhoparafazerapósocafé.Nasmanhãsdequarta-feiraeusempredavaavoltanacerca.Eranecessárioexaminarconstantementeparatercertezadeque os arames não estavam rompidos e osportões estavambem trancados.Conseguiafazer os consertos sozinha, enrolando oarameondeestavaquebrado,apertandofiossoltos, e era um prazer saber, todas asmanhãs de quarta, que passaríamos maisumasemanaasalvo.

Nas manhãs de domingo eu examinavaminhassalvaguardas,acaixacommoedasdedólares de prata que eu havia enterrado

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perto do riacho, e a boneca enterrada nocampo, e o livro pregado na árvore dopinheiral; contantoqueestivessemondeeuoscolocara,nadapoderiavirparanosfazermal. Eu sempre enterrei coisas, desdequando era pequena; lembro que uma vezdividio campoemquatropartes e enterreialgoemcadaumadelaspara fazeragramacrescer mais à medida que eu crescesse,assim sempre conseguiria me esconder lá.Umavezenterreiseisbolinhasdegudeazuisnoleitodoriachoparaqueoriomaisalémsecasse. “Aqui está um tesouro para vocêenterrar”,Constancemediziaquandoeuerapequena,medandoumamoedinhaouumafitacolorida;enterreitodososmeusdentesde leite à medida que foram caindo um aum,equemsabeumdianãocresceriamna

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formadedragões.Nossoterrenointeiroeraadubado com os tesouros que eu haviaenterrado,densamentepovoadologoabaixoda superfície pelasminhas bolas de gude emeus dentes e minhas pedras coloridas,todas talvez transformadas em pedraspreciosas a esta altura, aglomeradas sob osoloemumaredepotenteefirmequenuncaseafrouxou,masresistiuparanosproteger.

Àsterçasesextas-feiraseuiaaovilarejo,ena quinta-feira, o meu dia mais intenso,entrava no sótão grandioso e vestia asroupasdeles.

Nasegunda-feiranósarrumávamosacasa,Constance e eu, indo de cômodo emcômodo com esfregões e pano de chão,tomandoocuidadodebotarascoisinhasdevolta no lugar depois de tirarmos o pó,

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jamais alterando a fileira perfeita daspresilhasempadrãotartarugadanossamãe.Todaprimaveralavávamoseencerávamosacasa para o ano seguinte, mas às segundasfazíamosfaxina;pouquíssimapoeiraentravanosquartosdeles,masnãopodíamosdeixarficar nem esse pouquinho. Às vezesConstance tentava arrumaroquartode tioJulian, mas tio Julian não gostava de serincomodado e mantinha as coisas em seuslugares, eConstanceprecisava se contentarem lavar os copinhos que ele usava paratomar remédios e trocar a roupa de cama.Eu não tinha permissão para entrar noquartodetioJulian.

Nas manhãs de sábado eu ajudavaConstance. Eu não tinha autorização paramanusear facas, mas quando ela mexia no

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jardim eu cuidava de suas ferramentas,deixando-asreluzenteselimpas,ecarregavacestas grandes de flores, vez por outra, ouverduras que Constance colhia etransformava em comida.O porão da casaestavacheiodecomida.Todasasmulheresda família Blackwood haviam preparadocomida e se orgulhado de fazercontribuições à grande provisão do nossoporão. Havia potes de geleia feita porbisavós, com rótulos em letras fracasdesbotadas, já quase ilegíveis, e conservasfeitasportias-avóseverdurascolhidaspelanossa avó, e até nossa mãe havia deixadopara trás seis potes de geleia de maçã.Constance havia passado a vida inteira sededicando a fazer acréscimos à comida doporão, suas fileiras emais fileiras de potes

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eramsemsombradedúvidaasmaisbonitas,ereluziamemmeioàsoutras.“Vocêenterracomidaquenemeuenterrotesouros”,eulhediziaàsvezes,eumavezelamerespondeu:“Acomidavemdaterraenãosepodedeixarque ela fique lá apodrecendo; tem que sefazer alguma coisa com ela”. Todas asmulheres da família Blackwood tiraram acomida que viera do solo e a conservaram,de geleias e picles de cores intensas everduras e frutas em potes, marrons eâmbareseverdemusgo,ficavamenfileiradosno nosso porão e permaneceriam ali parasempre, um poema feito pelas mulheresBlackwood. Todo ano Constance e tioJulianeeucomíamosageleiaouaconservaou o picles que Constance preparava, masnunca tocávamos no que era das outras:

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Constancediziaqueaquilonosmatariacasocomêssemos.

Este sábado de manhã passei geleia dedamasco na minha torrada, e pensei emConstance preparando-a e guardando-acom carinho para que eu a comesse emalgumamanhãensolarada,jamaissonhandoque uma mudança ocorreria antes que opotefosseesvaziado.

“Merricat preguiçosa”, Constance medisse, “para de ficar aí sonhando enquantocome torrada; quero você no jardim nestedialindo.”

Ela arrumava a bandeja de tio Julian,botandooleitequenteemumjarropintadocom margaridas amarelas, e aparando atorradaparaqueficassepequenina,quenteequadrada; se algo parecesse grande, ou

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difícildecomer,tioJuliandeixavanoprato.Constance sempre levava a bandeja de tioJulianpelamanhãporqueelesentiadoresaodormir e às vezes ficava acordado, deitadona escuridão esperando a primeira luz e oconforto de Constance com sua bandeja.Certas noites, quando o coração lhe doíamuito, ele tomava um comprimido a maisque o habitual e depois passava a manhãinteira deitado, grogue e melancólico,relutante em bebericar o leite quente, masquerendo ter a certeza de que Constanceestaria ocupada na cozinha ao lado de seuquartoouno jardim,ondepoderiavê-ladeseutravesseiro.Nasmanhãsmuitoboaselao levavaàcozinhapara tomarcafé,eele sesentava na velha escrivaninha no canto,espalhando migalhas entre as anotações,

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estudando sua papelada enquanto comia.“Se eu for poupado”, ele sempre dizia aConstance, “eu mesmo escrevo o livro. Senão,confieasminhasanotaçõesaumcéticodigno que não se preocupe demais com averdade.”

Como eu queria ser mais gentil com tioJulian, esta manhã esperava que eleaproveitasseocafédamanhãedepoisfossepara o jardim na cadeira de rodas e sesentasseaosol.“Quemsabeumatulipanãoseabrehoje”,falei,olhandopelaportaabertadacozinhaparaosolradiante.

“Só amanhã, eu acho”, respondeuConstance, que sempre sabia. “Use bota seforpassearhoje;aindavaitermuitaumidadenosbosques.”

“Algumacoisavaimudar”,falei.

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“É a primavera, sua boba”, ela disse, epegouabandejadetioJulian.“Nãovaifugirenquantoeuestiverfora;temtrabalhoparafazer.”

Ela abriu a porta de tio Julian, e eu aescutei dar bom-dia a ele. Quando eleretribuiu o bom-dia sua voz estavaenvelhecida, e percebi que não estava bem.Constance teria de ficar ao ladodele o diainteiro.

“Seupai já chegouemcasa,menina?”, eleperguntouparaela.

“Não, hoje não”, disseConstance. “Deixaeu pegar outro travesseiro pra você.O diaestálindo.”

“Ele é um sujeito atarefado”, disse tioJulian. “Me traz um lápis, minha querida;quero fazerumaanotaçãosobre isso.Eleé

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umsujeitomuitoatarefado.”“Toma um pouco de leite quente; vai te

esquentar.”“Você não é a Dorothy. É a minha

sobrinhaConstance.”“Bebe.”“Bomdia,Constance.”“Bomdia,tioJulian.”Resolviqueescolheriatrêspalavrasfortes,

palavras de proteção firme, e contanto queessas palavras formidáveis nunca fossemditas em voz alta nenhuma mudançaocorreria. Escrevi a primeira palavra —melodia—na geleia de damasco daminhatorradacomocabodacolheredepoisenfieiatorradanabocaecomibemdepressa.Umterço da segurança garantido. Constancesaiu do quarto de tio Julian carregando a

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bandeja.“Elenãoestábemhoje”,disseela.“Deixou

boapartedocaféeestáexausto.”“Se eu tivesse um cavalo alado poderia

levar ele para a lua; ele ficaria maisconfortávellá.”

“Mais tarde vou levar o tio Julian paratomar um sol, e quem sabe não faço umagemada.”

“Tudoestáseguronalua.”Elame olhou, distante. “Folha de dente-

de-leão”, ela disse. “E rabanete. Estavapensando em mexer na horta agora demanhã, mas não quero deixar o tio Julian.Espero que a cenoura…” Ela tamborilousobreamesa,refletindo.“Ruibarbo”,disse.

Leveiospratosqueuseinocafédamanhãpara a pia e os deixei lá; estava decidindo

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minha segunda palavra mágica, que penseique poderiamuito bem serGloucester. Eraforte, e achei que serviria, emborabasicamente qualquer coisa pudesse passarpelacabeçadetioJulianenenhumapalavraeradefatoseguraquandoelefalava.

“Por que não fazer uma torta para o tioJulian?”

Constance sorriu. “Quer dizer, por quenãofazerumatortaparaaMerricat?Quetaleufazerumatortaderuibarbo?”

“Jonaseeudetestamosruibarbo.”“Mas tem as coresmais lindas; nada fica

tãolindonaprateleiraquantoumageleiaderuibarbo.”

“Entãofazparaaprateleira.Fazumatortadedente-de-leãopramim.”

“Merricat boba”, disse Constance. Ela

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usavaovestidoazul,osolformavadesenhosno chão da cozinha e a cor começava atransparecer no jardim lá fora. Jonas sesentou no degrau, se lavando, eConstancepassouacantarenquantosededicavaalavara louça. Minha segurança estava em doisterços,comapenasumapalavramágicaparaencontrar.

MaistardetioJuliancontinuavaadormireConstancepensouemtirarcincominutospara ircorrendoatéahortaecolheroquedesse; me sentei à mesa da cozinhaprestando atenção ao tio Julian para poderchamar Constance caso ele acordasse, masquando ela voltou ele continuava quieto.Comi cenourinhas doces enquantoConstance lavava e guardava as verduras.“Vamoscomerumasaladaprimavera”,disse

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ela.“Agentecomeoanointeiro.Comemosa

primavera e o verão e o outono. A genteesperaumacoisabrotarecome.”

“Merricatboba”,disseConstance.Às onze e vinte segundo o relógio da

cozinhaelatirouoavental,deuumaolhadaem tio Julian e subiu, como sempre fazia,para seu quarto para aguardar que eu achamasse. Fui à porta da frente e adestranqueieaabrinomomentoexatoemque o carro do médico virava na rampa.Tinha pressa, sempre, e estacionou logo ecorreu escada acima; “Bom dia, srta.Blackwood”, eledisse,passandopormimecruzando o corredor, e quando chegou àcozinha já tinha tirado o casaco e estavaprestes a colocá-lonoespaldardeumadas

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cadeirasdacozinha.FoidiretoaoquartodetioJuliansemdarumaolhadaparamimouparaacozinha,eentão,aoabriraportadetio Julian, de repente ficou tranquilo eafável.“Bomdia,sr.Blackwood”,eledisse,avoz serena, “como é que estão as coisashoje?”

“Cadê aquele velho idiota?”, tio Julianquestionou,comosemprefazia,“PorqueoJackMasonnãoveio?”.

Odr.MasonfoiquemConstancechamounanoiteemquetodosmorreram.

“Odr.Masonnãopodiavirhoje”,disseomédico, como sempre fazia. “Eu sou o dr.Levy.Soueuquemvaiexaminarosenhor.”

“PreferiaoJackMason.”“Voumeesforçar.”“Sempre falei que eu viveria mais que

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aquele velho idiota.” Tio Julian deu umarisadinha sutil. “Por que é que você estámentindopramim?JackMasonmorreufaztrêsanos.”

“Sr. Blackwood”, disse o médico, “é umprazer tê-lo como paciente.” Ele fechou aporta com bastante discrição. Pensei emusar digitalina como a terceira palavramágica, mas era muito fácil que alguém adissesse, e por fim me decidi por Pégaso.Peguei um copo no armário, e disse apalavra de forma bem nítida dentro dovidro,depoisoenchideáguaebebi.Aportade tio Julian se abriu, e omédico ficou nasoleiraporuminstante.

“Agora, lembre-se”, ele disse. “E vejo osenhornopróximosábado.”

“Charlatão”,retrucoutioJulian.

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Omédico se virou, sorridente, e então osorriso desapareceu e ele tornou a seapressar.Recolheuocasacoetomouorumodocorredor.Euoseguiequandochegueiàporta da frente ele já descia os degraus.“Adeus, srta.Blackwood”,despediu-se, semolharaoredor,eentrounocarroedeulogopartida,acelerandomaisemaisatéchegaraoportãoepegara rodovia.Tranqueiaportadafrenteefuiaopédaescada.“Constance?”,chamei.

“Já vai”, ela disse lá de cima. “Já vai,Merricat.”

Tio Julian estavamelhor no fim daqueledia,esesentouaoarlivre,aosolquentedatarde, as mãos dobradas no colo, meiosonhador.Eumedeiteipertodele,nobancodemármoreemquenossamãegostavadese

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sentar, eConstanceseajoelhouna terra,asmãos enterradas como se ela estivessebrotando, remexendoa terra e revirando-a,tocandoasplantasemsuasraízes.

“A manhã estava linda”, tio Juliandeclarou,avoz sem interrupção, “umabelamanhãensolarada,enenhumdelessabiaqueseriaaúltima.Foielaquemdesceuprimeiro,minha sobrinhaConstance.Acordei e ouvisua movimentação pela cozinha — eudormia lá em cima na época, aindaconseguia subir a escada, e dormia com aminhaesposanonossoquarto—epensei,quemanhãlinda,semnemsonharqueseriaa última para eles. Em seguida ouvi meusobrinho — não, foi o meu irmão; meuirmão foi o primeiro a descer depois daConstance. Escutei o assobio dele.

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Constance?”“Poisnão?”“Qual era a canção que meu irmão

assobiava,esemprenotomerrado?”Constance pensou, as mãos no solo, e

murmuroubaixinho,eeuestremeci.“Claro. Nunca tive cabeça boa para

música;conseguiamelembrardaaparênciadaspessoasedoquediziamedoquefaziammasnuncaeracapazdemelembrardoquecantavam.Foimeuirmãoquedesceudepoisda Constance, sem dar a mínimaimportância, é claro, se acordaria alguémcom seus barulhos e assobios, sem nuncapensar que talvez eu ainda estivessedormindo, apesar de que por ironia dodestino eu já estava acordado.” Tio Juliansuspirouelevantouacabeçaparalançarum

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olhar curioso,umavez,parao jardim. “ElenuncasoubequeseriasuaúltimamanhãnaTerra.Achoqueteriaficadomaisquietosesoubesse. Eu o escutei na cozinha com aConstanceedisseparaminhaesposa—elatambémestavaacordada;obarulhodelefezcom que ela despertasse —, eu disse paraminha esposa, émelhor você se vestir; nósmoramosaquicomomeuirmãoeaesposadele, afinal de contas, e temos de noslembrar de mostrar a eles que somoscordiaiseestamosloucosparaajudarnoquepudermos;sevistaeváencontrarConstancenacozinha.Elafezoqueeumandei;nossasesposas sempre faziam o que mandavam,apesardeminhacunhadaterficadodeitadana cama até tarde; vai ver que ela teve apremonição e quis aproveitar seu descanso

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mundano enquanto fosse possível.Eu ouvitodoseles.Ouviomeninodescer.Penseiemmevestir;Constance?”

“Poisnão,tioJulian?”“Eu ainda conseguia me vestir naquela

época, sabe, apesar de aquele ter sido oúltimo dia. Ainda conseguia andar por aísozinho, emevestir, emealimentar, enãosentia dor. Eu dormia bem naquela época,comoumhomemfortedevedormir.Eunãoera jovem, mas era forte e dormia bem eaindapodiamevestirsozinho.”

“Querumamantaparabotaremcimadaperna?”

“Não,minha querida, eu agradeço. Vocêtem sido uma boa sobrinha para mim,apesar de eu ter alguns motivos paraimaginar que você foi uma filha

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desobediente.Minha cunhadadesceu antesdemim.Nossocafédamanhãfoipanqueca,panqueca fininha e quente, e meu irmãocomeudois ovos fritos, eminha esposa—emboraeunãoaincentivasseacomermuito,jáqueestávamosmorandocomomeuirmão— comeu basicamente linguiça. Linguiçacaseira,feitapelaConstance.Constance?”

“Poisnão,tioJulian?”“Acho que se eu soubesse que seria o

último café da manhã teria deixado elacomer mais linguiça. É uma surpresa,pensando nisso agora, que ninguém tenhadesconfiado de que seria a última manhãdeles; talvez não ficassem de má vontadeporqueminha esposa queriamais linguiça,se fosse o caso. Meu irmão às vezes teciacomentários sobre o que a gente comia,

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minha esposa e eu; ele era um homemnormal e nunca racionava a comida,contanto que a gente não pegasse demais.Eleficouobservandominhaesposaseservirdelinguiçanaquelamanhã,Constance.Euviqueeleficouolhando.Nóspegávamosbempoucodele,Constance.Elecomeupanquecae ovo frito e linguiça,mas senti que ele iafalarcomaminhaesposa;omeninocomiasemparar.Meagradaqueocafédamanhãtenhasidoespecialmentebomnaqueledia.”

“Posso fazer linguiçapra vocêna semanaquevem,tioJulian;achoquelinguiçacaseiranão lhe faria mal se você comesse bempouquinho.”

“Meu irmão nunca ficava demá vontadecomanossacomidaseagentenãopegassedemais. Minha esposa ajudava a lavar a

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louça.”“Eumesentiamuitogrataaela.”“Elapoderia ter feitomais,eupensohoje

em dia. Ela divertia minha cunhada, ecuidavadasnossas roupas, eajudavacomalouçademanhã,mascreioqueomeuirmãoachava que ela poderia fazermais.Ele saiudepois do café para uma reunião denegócioscomumsujeito.”

“Elequeriaqueconstruíssemumapérgula;oplanodeleeracomeçarumparreiral.”

“Sinto muito por isso; a esta alturapoderíamos estar comendo geleia feita dasnossas próprias uvas.Eu sempre conseguiaconversar melhor depois que ele saía;lembro que diverti as senhoras naquelamanhã, e ficamos sentados aqui no jardim.Falamos demúsica;minha esposa era bem

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musical apesar de nunca ter aprendido atocar. Minha cunhada tinha um toquedelicado; sempre se dizia que ela tinhaumtoquedelicado,eemgeralelatocavaànoite.Não naquela noite, é claro. Ela não pôdetocarnaquelanoite.Demanhãimaginamosqueelatocariaànoitecomodepraxe.Vocêse lembra que eu fui bem divertido nojardimnaquelamanhã,Constance?”

“Eu estava tirando as ervas daninhas dahorta”, declarou Constance. “Ouvi vocêstodosdandorisada.”

“Euestavamuitodivertido;agoraficofelizpor isso.” Ele se calou por um instante,entrelaçando e desentrelaçando os dedos.Euqueria sermaisgentil comele,masnãopoderiaentrelaçarseusdedosnolugardeleenão havia nada que pudesse lhe trazer,

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portanto fiquei quieta escutando-o falar.Constance franziu a testa, fitando umafolha, e as sombras se movimentaramlentamentenogramado.

“Omenino tinha ido a algum lugar”, tioJulian enfim disse com sua triste vozenvelhecida. “Omenino tinha ido a algumlugar—elefoipescar,Constance?”

“Eleestavasubindonumcastanheiro.”“Eume lembro.Claro.Eume lembrode

tudo com muita nitidez, minha querida, eestátudonasminhasanotações.Foiaúltimamanhã de todas, e não gostaria de meesquecer.Eleestavasubindonocastanheiro,berrandopragentebemládoaltodaárvore,e ficou atirando raminhos até a minhacunhada levantar a voz para ele. Ela nãogostava que os ramos caíssem no cabelo, e

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minhaesposatambémnãogostava,maselajamais seria a primeira a se pronunciar.Achoqueaminhaesposaerarespeitosacomasuamãe,Constance.Detestariapensarquenãoera;agentevivianacasadomeuirmãoecomia a comida dele. Sei que meu irmãoveioalmoçaremcasa.”

“Nós comemos torrada com queijoderretido”,disseConstance.“Passeiamanhãinteira mexendo nas hortaliças e precisavapreparar alguma coisa rápida para oalmoço.”

“Foitorradacomqueijoderretidooqueagentecomeu.Voltaemeiameperguntoporqueo arsêniconão foi postona torrada.Éuma questão interessante, e vou serobrigadoatocarnelanomeulivro.Porqueo arsênico não foi posto na torrada? Eles

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perderiam algumas horas de vida naqueleúltimo dia, mas tudo acabaria bem maiscedo.Constance,setemumpratoquevocêprepara e que eu detesto com todas asminhas forças é a torrada com queijo.Nuncagosteidetorradacomqueijo.”

“Eusei,tioJulian.Nuncafaçoparavocê.”“Seriaomaisconvenienteparaoarsênico.

Eu me lembro de ter comido salada. Desobremesa tinha torta demaçã, uma sobradanoiteanterior.”

“O sol está se pondo.” Constance selevantoue limpoua terradasmãos. “Se eunão te levar lá para dentro, você vai passarfrio.”

“Seria bem mais conveniente na torrada,Constance. Esquisito que esse argumentonão tenha sido trazido à tona na época.

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Arsênico não tem gosto, entende, mas eujuroquea torrada tem.Aondeéqueestouindo?”

“Vocêvai láparadentro.Vaipassarumahora descansando no quarto até a hora doseujantar,edepoisdojantarvoutocarparavocê,sevocêquiser.”

“Não posso desperdiçar o tempo, minhaquerida. Tenho milhares de detalhes paralembrarepôrnopapelenãotenhonemumminuto sequer para perder. Detestariadeixar de fora qualquer coisinha sobre oúltimo dia deles; meu livro tem que serfinalizado.Euachoque,nocômputogeral,foi um dia agradável para todos eles, e éclaroque foibemmelhorpor jamais teremimaginado que seria o último. Acho queestoucomfrio,Constance.”

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“Daquiapoucovocêjávaiestarquentinhonacama.”

Fui atrás deles devagarinho, sem vontadedeabandonarojardimondeescurecia;Jonasveioatrásdemim,seaproximandodaluzdacasa. Quando Jonas e eu entramos,Constance estava fechando a porta doquartode tio Julian, e ela sorriuparamim.“Elejáestáquasedormindo”,dissebaixinho.

“Quando eu estiver velha que nem o tioJulian,vocêvaicuidardemim?”

“Se eu ainda estiver por aqui”, elarespondeu,eeugelei.Senteinomeucantosegurando Jonas e observei-a semovimentando ligeira e silenciosamentepela nossa cozinha iluminada. Em poucosminutos me pediria para pôr a mesa paranós três na sala de jantar e então após o

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jantar já seria noite e afetuosamente nossentaríamosjuntasnacozinhaondeéramosresguardadaspelacasaeninguémdomundoexteriorviasequerumaluz.

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N

4

amanhãdedomingoamudançaestava um dia mais próxima.Estavadeterminadaanãopensar

nas minhas três palavras mágicas e nãodeixariaqueelasentrassemnaminhamente,masaatmosferademudançaestavatãoforteque não havia maneira de evitá-la; amudançapairavasobreaescadaeacozinhaeojardimfeitoumanévoa.Nãoesqueceriadasminhaspalavrasmágicas:eramMELODIA

GLOUCESTER PÉGASO,mas eume negava a

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deixá-las entrar na minha mente. O climanãoestavasossegadonamanhãdedomingo,e imaginei que talvez Jonas enfimconseguiria fazer tempestade em copod’água;osolbrilhavanacozinha,mashavianuvens se movendo com rapidez no céu eumalevebrisacortanteentrandoesaindodacozinha enquanto eu tomava meu café damanhã.

“Usaabotaseforpassearhoje”,Constancemerecomendou.

“ImaginoqueotioJuliannãovaisesentarláforahoje:vaifazerfriodemaispraele.”

“Puro clima de primavera”, mencionouConstance,esorriuparaoseujardim.

“Euteamo,Constance”,disse.“Eutambémteamo,Merricat,suaboba.”“OtioJulianestámelhor?”

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“Acho que não. Levei a bandeja delequandovocêaindaestavadormindoeacheiqueelepareciabemcansado.Ele falouquetomou um comprimido a mais durante anoite.Talvezestejapiorando.”

“Estápreocupadacomele?”“Estou.Muito.”“Elevaimorrer?”“Sabe o que foi que ele me disse esta

manhã?”Constancevirou-se,encostando-seàpia,emeencaroucomtristeza.“EleachouqueeueraatiaDorothy,pegouminhamãoe falou, ‘É horrível ser velho, ficar deitadoaquipensandoquandoéquevaiacontecer’.Elequasemeassustou.”

“Vocêdeviaterdeixadoqueeuolevasseàlua”,reclamei.

“Eu servio leitequente, e ele se lembrou

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dequemeuera.”Imaginei que tio Julian estivesse

provavelmente muitíssimo feliz, comConstanceetiaDorothyparacuidardele,edisseamimmesmaquecoisaslongasefinasme lembrariam de ser mais gentil com tioJulian; este seria umdia de coisas longas efinas,poisjáhaviaencontradoumcabelonaminhaescovadedente,eumpedaçode fioestavapresonalateraldaminhacadeiraeeuenxergavaumalascaquebradanaescadadosfundos.“Fazumpudimparaele”,sugeri.

“Talvez eu faça mesmo.” Ela pegou aespátulalongaefinaedeixou-anapia.“Ouuma xícara de chocolate.E pãezinhos paraelecomercomfrangohojeànoite.”

“Vocêprecisademim?”“Não,minhaMerricat.Podeirandando,e

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usasuabota.”O dia lá fora estava repleto de luzes

instáveis, e Jonasdançavapordentro eporfora das sombras enquanto me seguia.QuandoeucorriaJonascorria,equandoeuparava e ficava imóvel ele parava e melançava um olhar e então seguiabruscamenteemoutradireção,comosenãonos conhecêssemos, e aí se sentava eesperava por mim para correr de novo.Íamos ao campoquehoje parecia ummar,embora eu nunca tivesse visto o mar; ogramadosemoviasobabrisaeassombrasdas nuvens iam e voltavam e as árvores aolonge se mexiam. Jonas desapareceu nagrama,tãoaltaqueeuconseguiatocá-lacomas mãos enquanto caminhava, e ele faziapequenosmovimentos tortuosos por conta

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própria; por um instante a grama toda securvavaaomesmotemposobabrisaeentãoera possível ver um desenho feito pelavelocidade da corrida de Jonas. Comeceinumapontaepercorriocamponadiagonalemdireçãoaocantooposto, enomeiomedepareicomapedraquecobriaolocalondea boneca foi enterrada; sempre conseguiaachá-la apesar de grande parte dos meustesouros enterrados ter se perdido parasempre.Apedraestavaintocadaeportantoa boneca estava a salvo. Estou andandosobre tesourosenterrados,ponderei, comagramaroçandominhasmãosenadaaomeuredor além da extensão do campo com ogramado ao vento e os pinheiros naextremidade;atrásdemimestavaacasa,elálonge,àesquerda,escondidapelasárvorese

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quase fora do alcance da visão, a cerca dearame farpado erguida por nosso pai paraimpediraentradadaspessoas.

Quando saí do campo passei entre asquatromacieirasquechamávamosdenossopomar e percorri a trilha em direção aoriacho. Minha caixa de moedas de prataenterradaàmargemdoriachoestavaasalvo.Pertodoriacho,bemcamuflado,estavaumdosmeusesconderijos,euhaviacriadocomtodo o cuidado e usado bastante. Tinhacortado dois ou três arbustos baixos eaplainado o solo; por todos os lados haviamais arbustos e galhos de árvores, e aentrada estava coberta por um galho quequaseencostavanochão.Nãoerarealmentenecessário que fosse tão secreto, já queninguém nunca me procurava ali, mas

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gostavadedeitarládentrocomJonasesaberque jamaisseriaencontrada.Usava folhasegalhos comouma cama, eConstance tinhame dado um lençol.As árvores ao redor eacima eram tão grossas que sempre estavasecoaliembaixo,enamanhãdedomingoeudeiteicomJonas,escutandoashistóriasdele.Todasashistóriasdegatoscomeçamcomoenunciado: “Minhamãe,que foiaprimeirafelina,me contou a seguinte história”, e euficavadeitadacomacabeçapertodeJonaseprestava atenção. Não havia mudança porvir, pensei enquanto estava ali, apenas aprimavera; era um erro ficar tãoamedrontada.Osdiasseriammaisquentes,e tio Julian se sentaria ao sol, eConstanceriria quando mexesse no jardim, e seriasempre igual. Jonas falava sem parar (“E

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então cantamos! E então cantamos!”) e afolhagemsemexialáemcimaeseriasempreigual.

Achei um ninho de serpente perto doriacho ematei todosos filhotes;não gostode serpentes, e Constance nunca tinha mepedido para não fazer isso. Voltava paracasa quando me deparei com um maupresságio,muitomau,umdospiores.Meulivroqueestavapregadoemumaárvorenopinhal havia caído. Resolvi que o pregotinha enferrujado e o livro — era umcaderninho do nosso pai, no qual eleanotavaonomedaspessoasquelhedeviamdinheiroedaspessoasque tinhamodever,ele achava, de lhe prestar favores— agoraerainútilcomoproteção.Euoembalaraporcompletoempapelgrossoantesdepregá-lo

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à árvore, mas o prego enferrujara e caíra.Acheiqueeramelhordestruí-lo,paraocasode agora ser ativamente ruim, e levaroutracoisaàárvore,quemsabeumxaledanossamãe,ouumaluva.Eramesmotardedemais,embora eu não estivesse consciente dissonaquelemomento;elejáestavaacaminhodecasa. Quando achei o livro eleprovavelmente já havia deixado a mala nocorreio e pedia informações sobre ocaminhoatomar.AúnicacoisaqueJonaseeu sabíamos então era que estávamos comfome,ecorremosjuntosemdireçãoàcasa,eentramoscomabrisanacozinha.

“É sério que você esqueceu da bota?”,Constancecomentou.Tentoufecharacaramas acabou rindo. “Como você é boba,Merricat.”

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“O Jonas não tem bota. O dia estámaravilhoso.”

“Quemsabeamanhãagentenãovaicatarcogumelo.”

“Jonaseeuestamoscomfomehoje.”Aessaalturaelejácruzavaovilarejorumo

àpedrapreta,comtodosoobservandoesequestionando e sussurrando enquantopassava.

Foi o último de nossos dias agradáveis evagarosos, apesar de que, conforme tioJulianteriaressaltado,jamaissuspeitaríamosnaquele momento. Constance e eualmoçamos, rindo e sem nem sequersuspeitar de que aomesmo tempo em quenos alegrávamos ele mexia no portãotrancado e espiava entrada abaixo, eperambulava pelo bosque, por um tempo

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isolado pela cerca de nosso pai. A chuvacomeçou quando estávamos na cozinha, edeixamosaportadacozinhaabertaafimdecontemplarachuvaenviesandonasoleiradaporta e banhando o jardim; Constanceestava contente, assim comoqualquerbomjardineiroficacontentecomachuva.“Daquia pouquinho a gente vai ver o colorido láfora”,eladisse.

“Nóssemprevamosficaraqui juntas,nãovamos,Constance?”

“Você não quer sair daqui nunca,Merricat?”

“Paraonde a gente iria?”, perguntei a ela.“Quallugarseriamelhorparaagentedoqueeste?Quemqueragente,láfora?Omundoestácheiodegenteterrível.”

“Fico pensandonisso às vezes.”Ela ficou

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muitosériaporuminstante,depoissevirouemelançouumsorriso.“Nãosepreocupe,minha Merricat. Nada de ruim vaiacontecer.”

Deve ter sidoneste exatominutoqueeleachouaentradaecomeçouasubirarampadecarros,correndosobachuva,porquesóme restava um ou dois minutos até vê-lo.Poderia ter usado esse minuto para tantascoisas: poderia ter avisado aConstance, dealguma forma, ou poderia ter pensado emuma palavra mágica nova, mais segura, oupoderiaterempurradoamesacontraaportada cozinha; na verdade, brinquei com aminha colher e olhei para Jonas, e quandoConstancesearrepioueudisse,“Voupegaroseusuéter”.Foiissooquemelevouaohallnoinstanteemqueelesubiaosdegraus.Eu

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o vi pela janela da sala de jantar e por uminstante, gelada, fui incapaz de respirar.Sabiaqueaportadafrenteestavatrancada;pensei primeiro nisso. “Constance”, faleimansamente,semmemexer,“temalguémláfora.Aportadacozinha, rápido.” Imagineique tivesse me escutado porque ouvi seusmovimentosnacozinha,mastioJuliantinhaacabadodechamareelafoivê-lo,deixandoocoraçãodanossacasadesprotegido.Corriaté a porta da frente e me encostei nela eouvi os passos lá fora. Ele bateu, primeirobaixinhoedepoiscomfirmeza,emejogueicontra a porta, sentindo as batidas meatingirem, consciente da proximidade dele.Já sabia que ele era umdos ruins; vira seurostoporuminstanteeeleeraumdosruins,que rodeiam e rodeiam a casa, tentando

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entrar, olhando pelas janelas, puxando eremexendoeroubandolembrancinhas.

Elebateudenovo e em seguida chamou,“Constance?Constance?”.

Bom,sempresabiamonomedela.Sabiamo nome dela e de tio Julian e como elaarrumavaocabeloeacordostrêsvestidosqueela tiveradeusarno tribunalea idadequeelatinhaeojeitocomofalavaeandavaequandopodiamexaminavambemseurostopara ver se estava chorando. “Quero falarcom aConstance”, ele disse de fora, comosemprefaziam.

Fazia bastante tempo que nenhum delesaparecia, mas não tinha me esquecido dasensação que me causavam. No começo,estavam sempre ali, à esperadeConstance,querendo apenas vê-la. “Olha”, elesdiziam,

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se cutucando e apontando, “é aquela ali,aquelamoça,éela,aConstance.”“Nãotemcara de assassina, tem?”, diziam uns aosoutros; “escuta, você poderia tentar tiraruma foto dela da próxima vez que elaaparecer”.“Vamoslevarumasfloresdessas”,combinavamemtomdespreocupado;“pegaruma pedra ou alguma coisa do jardim, agentepodelevarparacasaemostrarparaascrianças.”

“Constance?”, ele disse lá de fora.“Constance?”Tornou abater. “Quero falarcomaConstance”,eledeclarou,“tenhoumacoisaimportanteparafalarparaela.”

SempretinhamalgoimportanteparadizeraConstance, estivessemeles empurrando aporta ou berrando do lado de fora ouchamando no telefone ou escrevendo as

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terríveis terríveis cartas. Às vezes queriamJulianBlackwood,masnunca perguntavampormim.Eufuimandadaparaacamasemjantar, não tive permissão para entrar notribunal, ninguém tirou minha foto.Enquanto olhavam Constance no tribunaleu estava deitada no catre do orfanato,fitando o teto, desejando que todos elesestivessem mortos, esperando Constancechegaremelevarparacasa.

“Constance, você está me ouvindo?”, elechamouládefora.“Porfavor,meescutasóumminutinho.”

Imaginava se ele me ouvia respirar dooutroladodaporta;sabiaoqueelefariaemseguida. Primeiro ele se afastaria da casa,protegendoosolhosdachuva,eergueriaoolhar para as janelas do segundo andar,

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esperandoverumrostoolhandoparabaixo.Depois caminharia junto à lateral da casa,seguindoacalçadaquesupostamentesóerautilizadaporConstanceepormim.Quandoachasse a porta lateral, que não abríamosnunca, bateria nela, chamando Constance.Àsvezesiamemboraseninguématendessenemàportadafrentenemàlateral;aquelesque sentiam um leve constrangimento sópor estarem ali e gostariam de não ter sedado ao trabalho de vir para começo deconversaporquenaverdadenãohavianadapara ver e poderiam ter poupado o tempoou ido a outro lugar — eles geralmentesaíamcorrendoquandodescobriamquenãoentrariam para ver Constance, mas osteimosos,osqueeudesejavaquemorresseme ficassem ali caídos na rampa dos carros,

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davamvoltasemaisvoltasnacasa,mexendoem cada porta e batendo nas janelas. “Agentetemodireitodeverela”, costumavamgritar, “elamatou ummonte de gente, nãomatou?”Encostavamseuscarrosnaescadaeestacionavam.Amaioria trancavaos carroscomtodoocuidado,certificando-sedequetodas as janelas estavam fechadas, antes debater na casa e chamar por Constance.Faziam piqueniques no gramado e unstiravamfotosdosoutrosnafrentedacasaedeixavamoscachorroscorreremno jardim.Escreviam seus nomes nas paredes e naportadafrente.

“Olha”,eledisseládefora,“Vocêtem quemedeixarentrar.”

Eu o escutei descendo os degraus eentendi que estava olhando para cima. As

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janelas estavam todas trancadas. A portalateralestavatrancada.Sabiamuitobemquenãodeviaespiarpelasvidraçasestreitasqueladeavam a porta; eles reparavam até nosmínimosmovimentos,eseeuencostasseumdedinho na cortina da sala de jantar elecorreriaemdireçãoàcasa,berrando,“Olhaela aí, olha ela aí”. Eu me apoiei contra aporta da frente e imaginei abri-la para medepararcomelemortonarampa.

Ele erguia o olhar para a fachadainexpressiva da casa que olhava para baixoporquesempredeixávamosaspersianasdasjanelasdo segundo andar fechadas; ele nãoobteriarespostaali,eeuprecisavapegarumsuéterparaConstance antesque ela ficassemais arrepiadade frio.Era seguro ir lá emcima, mas eu queria voltar para perto de

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Constanceenquantoele aguardasse lá fora,entãocorriescadaacimaepegueiosuéterdacadeira do quarto de Constance e corriescadaabaixoeatravesseiocorredorrumoàcozinha e ele estava sentado à mesa naminhacadeira.

“Eu tinha trêspalavrasmágicas”, declarei,segurando o suéter. “Eram MELODIA

GLOUCESTER PÉGASO, e estávamos a salvoatéelasseremditasemvozalta.”

“Merricat”,disseConstance;elaseviroueme olhou, sorridente. “É o nosso primo,nossoprimoCharlesBlackwood.Reconhecielenahora:éigualzinhoaopai.”

“Bem, Mary”, ele disse. Levantou-se; eramais alto agora que estava ali dentro, elecresciaecresciaàmedidaqueseaproximavademim.“Nãovaidarumbeijonoseuprimo

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Charles?”Atrás dele, a porta da cozinha estava

escancarada; ele foi o primeiro a entrar eConstancelhedeupermissão.Constanceselevantou; sabia muito bem que não deviatocar em mim, mas disse “Merricat,Merricat”comsuavidadeeesticouosbraçosnaminha direção. Fui abraçada com força,enroladaemarame,nãoconseguiarespiraretivedecorrer.Jogueiosuéternochãoesaíporta afora e fui até o riacho aonde eusempre ia. Jonas me achou depois de umtempoe ficamosdeitados juntos,abrigadosda chuva pelas árvores amontoadas sobrenossas cabeças, ofuscantes e esplêndidas àsábia,possessivamaneiraqueasárvorestêmde se imprensar. Olhei para trás, para asárvores,eescuteiosomsuavedaágua.Não

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havia nenhum primo, nenhum CharlesBlackwood,nenhum intruso ládentro.Eraporqueolivrotinhacaídodaárvore;eunãotiveraocuidadodesubstituí-lologoenossamuralha de segurança rachara. Amanhã euacharia um objeto poderoso e o pregaria àárvore. Adormeci ouvindo Jonas, nomomentoemqueassombrascaíam.Acertaalturadanoite,Jonasmelargouparaircaçare meu sono acabou ficando um poucomenos pesado quando ele retornou, seapertando em mim para se esquentar.“Jonas”, eu disse, e ele ronronou,confortável.Quando acordei a cerração doiníciodamanhãvagavalevementeàmargemdo riacho, circundando meu rosto e metocando. Fiquei deitada, rindo, sentindo oroçarquaseimagináriodaneblinanosmeus

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olhoseerguendooolharparaasárvores.

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Q

5

uando entrei na cozinha, aindaarrastando a névoa do riacho,Constancearrumavaabandejacom

o cafédamanhãde tio Julian.Estava claroquetioJuliansesentiabemnaquelamanhã,vistoqueConstancelheserviriacháemvezdeleitequente;eledeviateracordadocedoepedido chá. Eu me aproximei dela e pusmeusbraçosaoseuredoreelasevirouemeabraçou.

“Bomdia,minhaMerricat”,eladisse.

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“Bomdia,minhaConstance.Otio Julianacordoumelhorhoje?”

“Muito,muitomelhor.Eosolvaibrilhardepois da chuva de ontem. E vou fazermousse de chocolate para o seu jantar,minhaMerricat.”

“Euteamo,Constance.”“E eu amo você. Bem, o que você vai

quererdecafédamanhã?”“Panqueca. Aquelas pequenininhas

quentes.Edoisovosfritos.Hojemeucavaloaladochegaeeuvoutelevarparaaluaenaluanósvamoscomerpétalasderosas.”

“Algumaspétalasderosassãovenenosas.”“Não na lua. É verdade que se pode

plantarfolha?”“Algumas folhas. Folhas peludas. Você

podepôrnaáguaeelascriamraízesedepois

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vocêplantaeelasviramumaplanta.Otipodeplantaqueeramdesdeoprincípio,claro,nãoumaplantaqualquer.”

“Sintomuito se é assim. Bom dia, Jonas.Euachoquevocêéumafolhapeluda.”

“Comovocêéboba,Merricat.”“Eu gosto de folha que vira uma planta

diferente.Todapeluda.”Constanceria.“OtioJuliannãovaitomar

ocafénuncaseeutederouvidos”,eladisse.Constance pegou a bandeja e entrou noquarto de tio Julian. “Chá quente acaminho”,anunciou.

“Constance, minha querida. Que manhãgloriosa, eu acho. Dia esplêndido paratrabalhar.”

“Eparatomarbanhodesol.”Jonas se sentou na porta ensolarada,

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lavando o próprio rosto. Eu sentia fome;talvez hoje fosse uma gentileza com tioJulianeubotarumaplumanogramado,nolugarondeacadeiradetioJulianficaria;eunão tinha permissão para enterrar objetosno gramado. Na lua usávamos plumas nocabelo e rubis nas mãos. Na lua tínhamoscolheresdeouro.

“Talvez hoje seja um bom dia paracomeçarumcapítulonovo.Constance?”

“Poisnão,tioJulian?”“Você acha que eu devo começar o

capítuloquarentaequatrohoje?”“Claro.”“Algumasdasprimeiraspáginasprecisam

de um pente-fino. Uma obra como essanuncaficapronta.”

“Querqueeupenteieoseucabelo?”

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“Acho que hoje voume pentear sozinho,obrigado.Acabeçadeumhomemdeveserda responsabilidade dele, afinal. Não temgeleia.”

“Querqueeupegue?”“Não, porque estou percebendo que de

um jeito ou de outro comi toda a minhatorrada.Estoucomvontadedealmoçarumfígadogrelhado,Constance.”

“Assimserá.Possolevarasuabandeja?”“Pode, obrigado. E eu vou pentear o

cabelo.”Constancevoltouparaacozinhaelargou

a bandeja. “E agora vem o seu, minhaMerricat”,eladeclarou.

“EdoJonas.”“OJonastomouocaféhámuitotempo.”“Vocêvaiplantarumafolhaparamim?”

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“Um dia desses.” Ela virou a cabeça eescutou com atenção. “Ele ainda estádormindo”,constatou.

“Quem está dormindo? Posso ver ocrescimento?”

“O primoCharles ainda está dormindo”,eladisse,eodiadesmoronouaomeuredor.Vi Jonas na porta e Constance junto aofogão, mas eles não tinham cor. Eu nãoconseguiarespirar,euestavaamarradacomforça,tudoestavagelado.

“Eleeraumfantasma”,eudisse.Constance riu, e foi um som muito

distante.“Entãotemumfantasmadormindonacamadopai”,elaretrucou.“Equecomeuum baita de um jantar ontem à noite.Quandovocêsaiu”,eladisse.

“Eusonheiqueeleveio.Dorminochãoe

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sonheiqueeleveio,masdepois sonheiqueele foi embora.” Eu estava tensa; quandoConstance acreditasse em mim eu poderiarespiraroutravez.

“Passamos um bom tempo conversandoontemànoite.”

“Vaieolha”,pedi,semrespirar,“vaieolha:elenãoestálá.”

“Comovocêéboba,Merricat”,eladisse.Eu não podia correr; precisava ajudar

Constance.Pegueimeu copo e o estilhaceinochão.“Agoraelevaiembora”,declarei.

Constance veio até a mesa e se sentou àminha frente, a expressão muito séria. Euqueriadara voltanamesaeabraçá-la,masela continuava sem cor. “Minha Merricat”,ela falou devagar, “o primo Charles estáaqui. Ele é nosso primo. Enquanto o pai

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deleestavavivo—eraArthurBlackwood,oirmãodopai—oprimoCharlesnãopodiavir nos ver, ou tentar nos ajudar, porque opaidelenãodeixava.Opaidele”,eladisse,edeuumlevesorriso,“pensavamuitomaldagente. Ele se negou a tomar conta de vocêduranteojulgamento,sabia?Enãopermitiaque nossos nomes fossemmencionados nacasadele.”

“Então por que você menciona o nomedelenanossacasa?”

“Porque estou tentando explicar. AssimqueopaidelemorreuoprimoCharlesveiocorrendonosajudar.”

“De que forma ele vai nos ajudar? Nóssomos muito felizes, não somos,Constance?”

“Muito felizes, Merricat. Mas por favor

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sejasimpáticacomoprimoCharles.”Conseguirespirarumpouco;tudoficaria

bem.PrimoCharles era um fantasma,masum fantasma que poderia ser afugentado.“Elevaiembora”,eudisse.

“Imagino que o plano dele não seja ficarparasempre”,disseConstance. “Elesóveiofazerumavisita,afinal.”

Euteriadeacharalgo,alguminstrumento,parausarcontraele.“TioJulianjáviuele?”

“TioJuliansabequeeleestáaqui,mastioJulianestavasesentindomaldemaisontemànoiteparasairdoquarto.Elecomeuojantarna bandeja, só um pouquinho de sopa.Fiqueicontentequandoelepediucháagorademanhã.”

“Hojeagentearrumaacasa.”“Mais tarde, depois que o primoCharles

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acordar. E é bom eu varrer esses cacos devidroantesdeeledescer.”

Fiquei observando-a varrer o vidro; hojeseriaumdiacintilante,repletodecoisinhasbrilhantes. Como não havia razão paraapressarmeucafédamanhã, jáquehojeeusópoderia sairdepoisque arrumássemosacasa, esperei, tomando leite devagarinho eolhandoJonas.AntesqueeuterminassetioJulianchamouConstanceparaajudá-loaseacomodaremsuacadeira,eelaolevouparaacozinhaeocolocoudiantedesuamesaeseuspapéis.

“Eurealmenteachoqueeudeviacomeçaro capítulo quarenta e quatro”, ele disse,batendo as mãos. “Vou iniciar, penso eu,com um leve exagero e em seguida partirpara uma mentira rematada. Constance,

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minhaquerida?”“Poisnão,tioJulian?”“Voufalarqueminhaesposaeralinda.”Todos nos calamos por um instante,

intrigadoscomoruídodeumpéandandoláem cima onde antes sempre havia silêncio.Era desagradável, esse caminhar acima denós.Constancesemprepisavacomleveza,etio Julian nunca andava; esses passos erampesadoseregularesehorríveis.

“ÉoprimoCharles”,anunciouConstance,olhandoparacima.

“De fato”, disse tio Julian. Foi cuidadosoao arrumar um papel à sua frente e pegouumlápis.“Prevejoumdeleiteconsiderávelapartir da convivência com o filho do meuirmão”, ele disse. “Quem sabe ele nãoforneça alguns detalhes sobre o

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comportamento da família dele durante ojulgamento. Embora, confesso, eu já tenhafeito anotações em algum lugar sobre apossível conversa que talvez tenhamtravado…” Ele se voltou para um doscadernos. “Desconfio que isso vá atrasar ocapítuloquarentaequatro.”

Peguei Jonas e fui para o meu canto, eConstance foi ao corredor encontrarCharles quando ele desceu a escada. “Bomdia,primoCharles”,eladisse.

“Bomdia,Connie.”Eraamesmavozqueele usara na noite anterior. Eume encolhiainda mais no meu canto quando ela otrouxeparaacozinha,etioJuliantocounospapéisevirouorostoparaaporta.

“Tio Julian. Que prazer finalmenteconhecê-lo.”

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“Charles.Você é o filho doArthur,masparecemeuirmãoJohn,jáfalecido.”

“OArthurtambémjáéfalecido.Éporissoqueestouaqui.”

“Ele morreu rico, certo? Eu era o únicoirmãosemjeitoparaganhardinheiro.”

“Na verdade, tio Julian, meu pai nãodeixounada.”

“Umapena.Opaideledeixouumaquantiadigna de nota. Foi uma quantia digna denota, mesmo dividida entre nós três. Eusempre soube que minha parte acabariaderretendo, mas não imaginaria que issofosse acontecer ao meu irmão Arthur.Quem sabe sua mãe não era uma mulherextravagante? Não me lembro muito bemdela.LembroquequandoaminhasobrinhaConstance escreveu para o tio durante o

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julgamento, foi a esposa dele quemrespondeupedindoqueolaçofamiliarfosserompido.”

“Euquisvirantes,tioJulian.”“Imagino.Ajuventudeésemprecuriosa.E

umamulher coma enormenotoriedadedasuaprimaConstance seriapercebida comouma figura romântica para um rapaz.Constance?”

“Poisnão,tioJulian?”“Eujátomeiocafédamanhã?”“Já.”“Entãovoutomaroutraxícaradechá.Este

rapazeeutemosmuitooquediscutir.”Eu continuava sem conseguir enxergá-lo

com nitidez, talvez porque fosse umfantasma,talvezporquefossetãogrande.Oenormerostoredondo,tãoparecidocomo

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denossopai,virou-sedeConstanceparatioJulian e voltou, sorrindo e abrindo a bocapara falar.Eumeescondinomeucantodamelhorformapossível,masporfimorostoenormesevoltouparamim.

“Olha,éaMary”,disse.“Bomdia,Mary.”BaixeiacabeçaemdireçãoaoJonas.“Tímida?”, ele perguntou a Constance.

“Não importa. As crianças sempresimpatizamcomigo.”

Constance riu. “Não vemos muita gentedesconhecida”, ela justificou. Não estavanem um pouco desajeitada oudesconfortável;eracomosetivesseesperadoa vida inteira pela chegada do primoCharles, como se tivesse planejadoexatamenteoquefazeredizer,quasecomosenacasadesuavidasempretivesseexistido

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umquartoreservadoparaoprimoCharles.Eleselevantoueseaproximoudemim.“É

umbelogato”,eledisse.“Eletemnome?”Jonaseeuoolhamoseentãopenseiqueo

nome de Jonas talvez fosse a coisa maisseguraalhedizerprimeiro.“Jonas”,declarei.

“Jonas?Eleéseubichinhodeestimação?”“É”, respondi. Olhamos para ele, Jonas e

eu, sem ousar piscar ou desviar o olhar.Aenorme cara branca estava perto, aindaparecida com a de nosso pai, e a bocaenormesorria.

“Vamosserbonsamigos,você,Jonaseeu”,eledisse.

“Oquevocêvaiquererdecafédamanhã?”,Constance perguntou a ele, e sorriu paramim porque eu dissera a ele o nome deJonas.

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“O que você estiver servindo”, ele disse,enfimtirandoosolhosdecimademim.

“Merricatcomeupanqueca.”“Panqueca é uma ótima ideia. Um bom

cafédamanhãemcompanhiaagradávelnumbelodia;oquemaiseupoderiaquerer?”

“Panqueca”, observou tio Julian, “é umpratomuitoapreciadonestafamília,emboraeumesmoraramentecoma:minhasaúdesóadmiteosalimentosmaislevesesaborosos.Panqueca foi a comida servida no café damanhãdoúltimo…”

“Tio Julian”, interrompeu Constance,“seuspapéisestãocaindonochão.”

“Deixa que eu pego, senhor.” PrimoCharlesseajoelhoupararecolherapapeladaeConstanceanunciou,“Depoisdocafévocêvaiveromeujardim”.

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“Umcavalheiro”,tioJuliandisse,aceitandoospapéisdamãodeCharles.“Euagradeço;não posso pular para o lado oposto docômodo e me ajoelhar no chão e ficosatisfeitodeveralguémquepode.Creioquevocê tenha coisa de um ano a mais queminhasobrinha?”

“Tenhotrintaedois”,Charlesdisse.“E a Constance tem aproximadamente

vinte e oito. Faz muito tempo queabandonamosaobservânciadeaniversários,masdevesermesmovinteeoito.Constance,eu não devia falar tanto de barriga vazia.Cadêomeucafé?”

“Você terminou de comer há uma hora,tioJulian.EstoufazendoumaxícaradecháparavocêepanquecaparaoprimoCharles.”

“Charlesévalente.Asuaculinária,apesar

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de sem dúvida ser de altíssima qualidade,temcertasdesvantagens.”

“Não tenho medo de comer nada que aConstancefaz”,declarouCharles.

“Sério?”,indagoutioJulian.“Eulhedouosparabéns. Estava me referindo ao impactoqueumpratopesadocomopanquecatendea causar em estômagos sensíveis. Imaginoqueasuareferênciatenhasidoaarsênico.”

“Vem tomar seu café da manhã”,Constancechamou.

Eu ria, embora Jonas escondesse meurosto. Charles levoumais de meiominutopara pegar o garfo e não parava de sorrirpara Constance. Por fim, ciente de queConstance e tio Julian e Jonas e eu oobservávamos, ele cortouumpedacinhodepanquecaeo levouemdireçãoàboca,mas

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lhe faltava coragem de comê-lo. Por fim,deixou o garfo com o pedacinho depanquecanopratoesevirouparatioJulian.“Sabe,euandeipensando”,eledisse.“Quemsabe durante a minha estadia não tenhacoisas que eu possa fazer por vocês —escavar o jardim, talvez, ou fazer coisas narua.Soumuitobomnotrabalhoduro.”

“Você jantou aqui ontem à noite eacordouvivohoje”,disseConstance;euria,masderepenteelapareciaquasezangada.

“O quê?”, exclamou Charles. “Ah.” Eleolhou para o garfo como se o tivesseesquecido e por fim o pegou e enfiou opedaço de panqueca na boca rapidinho, emastigou e engoliu e ergueu os olhos paraConstance. “Uma delícia”, elogiou, eConstancesorriu.

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“Constance?”“Poisnão,tioJulian?”“Nãoachoquedevo,no finaldas contas,

começarocapítuloquarentaequatrohoje.Achomelhorretomarocapítulodezessete,ondelembrodeterfeitoumabrevemençãoao seu primo e à família dele, e a atitudedelesduranteojulgamento.Charles,vocêéumrapazesperto.Estouansiosoparaouvirsuahistória.”

“Faztantotempo”,disseCharles.“Vocêdeviaterfeitoanotações”,retrucou

tioJulian.“Quer dizer”, Charles disse, “a gente não

pode esquecer essa história toda? Não fazsentidomanteressaslembrançasvivas.”

“Esquecer?”,repetiutioJulian.“Esquecer?”“Foiumaépocatristeehorrívelenãovai

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fazer bem nenhum à Connie ficar falandodisso.”

“Rapaz,creioquevocêestejadesdenhandodo meu trabalho. Um homem não leva otrabalho na brincadeira. Um homem temtrabalho a fazer e faz. Lembre-se disso,Charles.”

“Sóestou falandoquenãoquero falardaConnieedaquelaépocapéssima.”

“Eu vou ser obrigado a inventar, aromancear,aimaginar.”

“Eumerecusoacontinuaressadiscussão.”“Constance?”“Pois não, tio Julian?” Constance estava

muitoséria.“Aconteceu mesmo? Eu lembro que

aconteceu”, questionou tio Julian, osdedosnaboca.

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Constancehesitouedepoisdisse,“Éclaroquesim,tioJulian”.

“Minhasanotações…”AvozdetioJulianfoi sumindoe ele fezumgesto emdireçãoaospapéis.

“Sim,tioJulian.Foideverdade.”Eu fiquei com raiva porque Charles

precisavasergentilcomtioJulian.Lembreique hoje deveria ser um dia de coisas quebrilhavam e de luz, pensei em achar algoluminosoebeloparapôraoladodacadeiradetioJulian.

“Constance?”“Poisnão?”“Possoirláfora?Estoubemagasalhado?”“Acho que sim, tio Julian.” Constance

também estava pesarosa. Tio Julianbalançava a cabeça para frente e para trás

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com tristeza e havia largado o lápis.Constance foi ao quarto de tio Julian etrouxeoxale,quepôsemseusombroscomtoda a delicadeza.AgoraCharles comia aspanquecas com coragem e não erguia oolhar; fiquei me perguntando se ele seimportava de não ter sido gentil com tioJulian.

“Agora você vai lá pra fora”, Constancedissebaixinhoao tio Julian, “osolvaiestarquentinho e o jardim iluminado e você vaialmoçarfígadogrelhado.”

“Talveznão”,dissetioJulian.“Talvezsejamelhoreucomersóumovo.”

Constanceoempurroucomcarinhoatéaporta emoveu a cadeira vagarosamente nahoradedescerosdegraus.Charlestirouosolhosdapanqueca,masquandofezmenção

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de se levantar para ajudar ela fez que não.“Voubotar vocêno seu cantinhoespecial”,eladisseatioJulian,“ondedáparaeuteverotempotodoevouacenarcincovezesporhora.”

Nós a escutávamos falar durante todo otempoqueempurravatioJulianparaocantodele.Jonasmedeixouefoisesentarnaportae observá-los. “Jonas?”, Charles chamou, eJonassevirouparaele.“AprimaMarynãogostademim”,CharlesdisseaJonas.EunãogostavadamaneiracomofalavacomJonasenão gostava do fato de que Jonas pareciaprestaratençãonele.“OqueeupossofazerparaaprimaMarygostardemim?”,Charlesperguntou, e Jonas me lançou um olharligeiroevoltouamirarCharles. “Euvenhovisitar as minhas duas primas queridas”,

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explicou Charles, “minhas duas primasqueridas e meu velho tio que não via háanos,eminhaprimaMarynãoquernemsereducadacomigo.Oquevocêacha,Jonas?”

A pia cintilava, uma gota d’água inchavaantes de cair. Talvez se prendesse arespiração até a gota cair Charles fosseembora,maseu sabiaquenãoera verdade;prenderarespiraçãoerafácildemais.

“Bem”, Charles disse a Jonas, “Constancegostademim, e eu achoque é só isso queinteressa.”

Constance apareceu na porta, esperouJonas se mexer e, como ele não se mexeu,passou por cima dele. “Mais panqueca?”,ofereceuaCharles.

“Não,obrigado.Estoutentandoconhecermelhoraminhapriminha.”

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“Não vai levar muito tempo para ela seafeiçoaravocê.”Constancemeolhava.Jonastinhapassadoaselavar,eporfimtiveideiadoquedizer.

“Hojeagentearrumaacasa”,declarei.

TioJulianpassouamanhãinteiradormindono jardim. Constance volta emeia ia até ajaneladosquartosdosfundosparadarumaolhada nele enquanto trabalhávamos etambém parava, às vezes, com a flanela namão, como se estivesse se esquecendo devoltaretiraropódacaixadejoiasdanossamãe, que abrigava as pérolas, e seu anel desafira, e o broche de diamantes. Só olheipela janelaumavez,evitioJuliandeolhosfechados e Charles de pé ao seu lado. Erafeio pensar em Charles andando no meio

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dashortaliças edebaixodasmacieiras enogramadoondetioJuliandormia.

“Hojeagentedeixapraláoquartodopai”,anunciouConstance,“porqueoCharlesestámorandonele.”Umtempodepoiseladisse,como se estivesse ponderando o assunto,“Me pergunto se seria correto eu usar aspérolasdamãe.Nuncauseipérolas”.

“Elas sempre ficaramna caixa”, respondi.“Vocêvaiterquetirarelasdelá.”

“Comosealguémfosseseimportar”,disseConstance.

“Eu me importaria, se você ficasse maisbonita.”

Constanceriu,edisse,“Agoraeuquesoua boba. Para que eu iria querer usarpérolas?”.

“Elasficammelhornacaixa,queéolugar

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delas.”Charles tinha fechado a porta do quarto

para que eu não pudesse olhar lá dentro,porémmepergunteiseelehaviamexidonascoisasdenossopaioupostoumchapéuoulenço ou luva na cômoda, ao lado dasescovasdepratadenossopai.Questioneiseeleteriaespiadooarmárioouasgavetas.Oquartodeleficavanapartedafrentedecasa,eeuimaginavaseCharlestinhaolhadoparabaixoatravésdajanelaeparaogramadoealongarampaatéarodovia,esetinhavontadedeiratéarodoviaeiremboraparacasa.

“QuantotempoCharleslevouparachegaraqui?”,pergunteiaConstance.

“Acho que umas quatro ou cinco horas”,ela respondeu. “Ele chegou ao vilarejo deônibuseveioandandoatéaqui.”

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“Então ele tambémvai levarumasquatrooucincohorasparachegaremcasa?”

“Imaginoquesim.Quandoforembora.”“Masanteselevaiterdeirandandoatéo

vilarejo?”“Anão serque vocêo leveno seu cavalo

alado.”“Nãotenhocavaloalado”,retruquei.“Ah,Merricat”,disseConstance.“Charles

nãoéumhomemruim.”Osespelhoscintilavam,edentrodacaixa

de joias de nossa mãe os diamantes e aspérolas reluziam na escuridão. Constanceprojetava sombras de ambos os lados docorredoraoiràjanelaparaolhartioJulianelá fora as folhas jovens se mexiam rápidodebaixo do sol. Charles só havia entradoporque amagia se rompera; se eu pudesse

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vedar de novo a proteção em torno deConstance e impedir a entrada de Charlesele teria de ir embora da casa.Cada toqueque dera em nossa casa precisava serapagado.

“Charles é um fantasma”, declarei, eConstancesuspirou.

Lustreiamaçanetadoquartodenossopaicom aminha flanela e pelomenosumdostoquesdeCharlesfoierradicado.

Depois de arrumarmos os quartos dosegundo andar, descemos juntas, levandonossas flanelas e vassoura e pá e esfregãocomoumpardebruxasindoparacasa.Nasaladevisitastiramosopódaspoltronasdepés dourados e da harpa, e tudo brilhavapara nós, até o vestido azul no retrato denossamãe.Tireiopódosadornostipobolo

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denoivacomumpanonapontadavassoura,cambaleante, olhandopara cima e fingindoqueo teto erao chãoe euvarria,pairandoem movimento no espaço, olhando paraminha vassoura, leve e voadora, até oambiente rodarvertiginosamentee euestardenovoolhandodochãoparacima.

“Charlesaindanãoconheceestecômodo”,disseConstance.“Amãeseorgulhavatantodele;eutinhaquetermostradoaelelogodecara.”

“Possoalmoçarsanduíche?Euqueroiratéoriacho.”

“Maiscedooumaistardevocêvaiterquesesentaràmesacomele,Merricat.”

“Hojeànoite,nojantar.Prometo.”Tiramos a poeira da sala de jantar e do

aparelho de chá de prata e dos espaldares

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altosdemadeiradascadeiras.Depoucosempoucos minutos Constance ia à cozinhaparaolhartioJulianpelaportadosfundos,eumavezaescuteirirepedir,“Cuidadocoma lama aí embaixo”, e soube que estavafalandocomCharles.

“Onde foi que você deixou o Charlessentarontemànoite,no jantar?”,pergunteiderepente.

“Na cadeira do pai”, ela respondeu, e emseguida,“Eletemtodoodireitodesentarali.Ele é o convidado, e é até parecido com opai.”

“Elevaisesentarláestanoite?”“Vai,Merricat.”Limpei bem a cadeira de nosso pai,

embora fosse de pouca serventia já queCharles se sentarianelaoutra vezdenoite.

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Euteriadelimparapratariatoda.Quando acabamos de arrumar a casa

voltamosàcozinha.Charlesestavasentadoàmesa fumando cachimbo e olhando paraJonas, que retribuía o olhar. A fumaça decachimbo na nossa cozinha eradesagradável, e eu não gostava que Jonasolhasse para Charles. Constance saiu pelaportados fundosparapegar tio Julian, e oouvimos dizer, “Dorothy? Eu não estavadormindo,Dorothy”.

“A prima Mary não gosta de mim”,Charles comentou com Jonas novamente.“FicomeperguntandoseaprimaMarysabecomoéque eu acerto as contas comquemnão gosta de mim. Posso ajudar com acadeira,Constance?Ocochilofoibom,tio?”

Constance preparou sanduíches para

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Jonas e para mim, e os comemos em umaárvore:mesenteiemumaforquilhabaixaeJonasseacomodouemumgalhinhoaomeulado,deolhonospássaros.

“Jonas”, eu disse a ele, “você não dêmaisouvidosaoprimoCharles”,eJonasmefitounumaestupefaçãodeolhosarregalados,poiseu tentava tomar decisões por ele. “Jonas”,expliquei, “ele é um fantasma”, e Jonasfechouosolhosevirouacara.

Era importante escolher o instrumentoexato para afugentar Charles. Uma magiaimperfeita,ouusadade forma incorreta, sópoderia causarmais desastres à nossa casa.Penseinasjoiasdeminhamãe,vistoqueesteeraodiadedarbrilhoàscoisas,mastalvezelasnãofossemtãofortesemumdiaopaco,eConstance se zangaria se eu as tirasse da

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caixa em que deveriam ficar, se elamesmahavia sedecidido contra.Pensei nos livros,sempre muito protetores, mas o livro demeupaihaviacaídodaárvoreepermitidoaentrada de Charles: talvez, então, os livrosfossem impotentes contra Charles. Entãomerecosteinotroncodaárvoreepenseiemmagia:casoCharlesnãotivessepartidodaliatrêsdiaseuestilhaçariaoespelhodohall.

Elesesentouàminhafrentenojantar,nacadeiradenossopai, com sua enorme carabrancaencobrindoapratarianobufêàssuascostas.Ele ficouolhandoConstance cortarofrangodetioJulianecolocá-lodamaneiracertanoprato,eobservouquandotioJuliandeuaprimeiragarfadaerevirouacomidanabocaváriasvezes.

“Aqui um pãozinho, tio Julian”, disse

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Constance.“Comeomioloqueémolinho.”Constance tinha se esquecido e colocado

molho na minha salada, mas de qualquermodo eu não comeria com aquela enormecara branca me assistindo. Jonas, proibidodecomerfrango,estavasentadonochãoaoladodaminhacadeira.

“Ele sempre come com vocês?”, Charlesperguntou, indicando tio Julian com acabeça.

“Quando ele se sente bem o suficiente”,respondeuConstance.

“Não sei como você aguenta”, disseCharles.

“Pois eu te digo, John”, de repente tioJulian disse a Charles, “os investimentos jánãosãooqueeramnaépocaemqueopaiganhouodinheirodele.Ele eraum sujeito

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sagaz, mas nunca entendeu que as coisasmudam.”

“Com quem é que ele está falando?”,CharlesperguntouaConstance.

“Eleachaquevocêéoirmãodele,John.”Charles passou um longo minuto

encarando tio Julian, depois balançou acabeçaevoltouparaofrango.

“Essa cadeira à sua esquerda era a daminha finada esposa, rapaz”, declarou tioJulian.“Eumelembromuitobemdaúltimavezqueelasesentouaí;nós…”

“Nada disso”, decretou Charles, e eleergueuodedoparatioJulian;eleseguravaofrango com as mãos para comê-lo, e osdedosbrilhavamporcontadagordura.“Nósnãovamosmaisfalardisso,tio.”

Constanceestavasatisfeitacomigoporque

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eu tinha me sentado à mesa e quando euolhavaemsuadireçãoela sorria.Sabiaqueeu não gostava de comer na frente deninguém,eguardoumeupratoemeserviriana cozinha depois; ela não se lembrava, eupercebia, de que tinha botado molho naminhasalada.

“Reparei hoje de manhã”, disse Charles,fitandoatravessadefrangoeexaminando-acomatenção,“quetemumdegrauquebradolánosfundos.Quetaleuarrumarparavocêsum dia desses? Seria bom eu fazer jus àminhaestadia.”

“Seria muita gentileza da sua parte”,respondeuConstance.“Aqueledegrauéumestorvojáfazbastantetempo.”

“Eeuqueroiraovilarejocomprartabacoparaomeucachimbo,entãopossocomprar

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oquevocêsprecisarem.”“Mas eu vou ao vilarejo na terça-feira”,

expliquei,espantada.“Vai?” Ele me olhou do lado oposto da

mesa, a enorme cara branca virada diretoparamim.Fiqueicalada;lembreiqueandaraté o vilarejo era o primeiro passo nocaminhodeCharlesdevoltaparacasa.

“Merricat, minha querida, acho que seCharles não se importar a ideia pode serboa. Nunca fico totalmente tranquilaenquanto você está no vilarejo.”Constanceriu.“Voutedaralista,Charles,eodinheiro,evocêvaiseroentregadordascompras.”

“Vocêguardadinheiroemcasa?”“Éclaro.”“Nãomeparecemuitosensato.”“Estánocofredopai.”

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“Mesmoassim.”“Eu te garanto, senhor”, tio Julian disse,

“fiz questão de examinar os livros a fundoantes de me comprometer. Não existepossibilidadedeeutersidoenganado.”

“EntãoestoutirandoatarefadapriminhaMary”, disse Charles, me encarando denovo.“Vocêvaiterqueacharalgumaoutracoisaparaelafazer,Connie.”

Eutinhaverificadooquedizeraeleantesdeirparaamesa.“AAmanitaphalloides”,eulhedisse,“temtrêstoxinasdiferentes.Temaamanita,queagedevagareéamaispotente.Tem a faloidina, que tem ação imediata, etem a falina, que dissolve os glóbulosvermelhos,emborasejaamenospotente.Osprimeiros sintomas só aparecem de sete adozehorasapósaingestão,emcertoscasos

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só após vinte e quatro ou até mesmoquarentahoras.Ossintomascomeçamcomdores estomacais lancinantes, calafrios,vômito…”

“Escuta”, disse Charles. Ele deixou ofrango no prato. “Você pare com isso”,ordenou.

Constance ria. “Ah, Merricat”, ela disse,rindo entre uma palavra e outra, “você éboba mesmo. Ensinei a ela”, explicou aCharles, “que tem cogumelos perto doriachoenocampoefizcomqueaprendessequaissãoosquematam.Ah,Merricat.”

“Amorteocorredecincoadezdiasapósaingestão”,concluí.

“Não vejo muita graça nisso”, disseCharles.

“Como você é boba, Merricat”, disse

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Constance.

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A

6

casa não estava segura só porqueCharles tinha saído para ir aovilarejo; em primeiro lugar,

Constance lhe dera a chave do portão.Nocomeço havia uma chave para cada um denós;nossopaitinhaumachave,enossamãe,easchaveseramdeixadasemumaprateleiraao lado da porta da cozinha. QuandoCharles partiu em direção ao vilarejo,Constancelhedeuumachave,talvezachavede nosso pai, e uma lista de compras, e o

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dinheiroparapagaroqueelecompraria.“Vocênãodeviaguardardinheiroemcasa

desse jeito”, ele recomendou, segurando-ocomforçanamãoporuminstanteantesdeenfiar a mão no bolso de trás e pegar acarteira.“Mulheressozinhasquenemvocêsnão deviam guardar dinheiro dentro decasa.”

Euoobservavadomeucantonacozinha,masnãodeixavaJonasseaproximardemimenquanto Charles estivesse em casa. “Temcertezadequeanotoutudo?”,eleperguntouaConstance.“Detestofazerduasviagens.”

Esperei Charles estar bem longe, talvezquasechegandoàpedrapreta,eentãodisse,“Eleesqueceuoslivrosdabiblioteca”.

Constance me encarou por um tempo.“Dona Malvadeza”, repreendeu. “Você

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queriaqueeleesquecesse.”“Como é que ele saberia dos livros da

biblioteca?Olugardelenãoénestacasa;elenãotemnadaavercomosnossoslivros.”

“Você sabia”, disse Constance, olhandodentrodobulesobreofogão,“euachoquedaqui a pouco a gente vai poder colheralface;oclimacontinuoubemquente.”

“Nalua”,comecei,eentãoparei.“Na lua”, Constance repetiu, virando-se

parame dar um sorriso, “tem alface o anointeiro,nãoé?”

“Na lua a gente tem tudo.Alface, e tortade abóbora e Amanita phalloides. Templantas com pelugem de gato e cavalosdançandocomasasas.Todasastrancassãofortesebemfechadasenãoexistefantasma.Na lua o tio Julian ficaria bem e o sol

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brilharia todos os dias. Você usaria aspérolas da nossa mãe e cantaria, e o solbrilhariaotempotodo.”

“Queriapoderiràsualua.Seráquedevocomeçar a fazer o biscoito de gengibreagora?VaiesfriarseoCharlesdemorar.”

“Euvouestaraquiparacomer”,anunciei.“Mas oCharles falou que adora biscoito

degengibre.”Eu construía uma casinha em cima da

mesacomos livrosdabiblioteca, apoiandoumdeitadosobreabeiradadeoutrosdois.“Bruxavelha”,eudisse, “vocêtemumacasadebiscoitodegengibre.”

“Não tenho, não”, disse Constance.“Tenho uma casa linda onde moro com aminhairmãMerricat.”

Ridela:estavapreocupadacomobuleno

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fogãoetinhafarinhanorosto.“Quemsabeelenãovoltanuncamais”,eudisse.

“Eletemquevoltar;voufazerbiscoitodegengibreparaele.”

Como Charles se apropriara da minhafunçãonasmanhãsdeterçaeufiqueisemteroque fazer.Pensei em iratéo riacho,masnãotinhanenhummotivoparaimaginarqueo riacho sequer estaria lá, já que nunca ovisitava nas manhãs de terça; será que aspessoas do vilarejo estariamme esperando,lançando olhares para ver se eu estavachegando, trocando cutucadas, e então sevirariamestupefatasaoavistarCharles?Seráque o vilarejo inteiro iria hesitar edesacelerar, perplexo ante a falta da srta.Mary Katherine Blackwood? Soltei umarisadinha ao pensar em Jim Donell e nos

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meninos da família Harris espiando a ruacom ansiedade para ver se eu estavachegando.

“Qual é a graça?”, Constance perguntou,virando-separaver.

“EstavapensandoquevocêpodiafazerumhomenzinhodegengibreeeupoderiadaronomedeCharlesecomê-lo.”

“Ah,Merricat,faça-meofavor.”DavaparaperceberqueConstanceiaficar

irritada, um tanto por minha causa e umtanto por causa do gengibre, então acheimelhorfugir.Jáqueeraumamanhãlivre,eme causava apreensão atravessar as portas,poderia ser um bom momento paraprocurar um instrumento para usar contraCharles, eparti escada acima;o cheirodosbiscoitos de gengibre no forno me seguiu

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até quase a metade do caminho. Charleshavia deixado sua porta aberta, nãoescancarada, mas o bastante para euconseguirenfiarminhamão.

Quandoempurreiumpouquinhoaportaseabriutodaeolheioquartodenossopai,que agora era de Charles. Ele tinhaarrumado a cama, reparei; a mãe devia terensinado. A mala estava em cima de umacadeira,mas fechada; havia objetos dele nacômoda em que os pertences de nosso paisempre haviam ficado; vi o cachimbo deCharles, e um lenço, coisas que Charleshavia tocado e usado, sujando o quarto denossopai.Umagavetadacômodaestavaumpouco aberta e pensei denovo emCharlesrevirandoasroupasdenossopai.Andeidefininhopeloquartoporquenãoqueriaque

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Constancemeouvisseláembaixo,eolheinagaveta aberta. Imaginei que Charles nãoficaria contente em saber que o pegueiexaminandoosobjetosdenossopai,ealgodaquela gaveta talvez tivesse um poderextraordinário, já que estaria carregado daculpa de Charles. Não me surpreendi aodescobrirqueeleandavaolhandoasjoiasdenossopai;dentrodagavetahaviaumacaixadecouroqueabrigava,eusabia,umrelógioe uma corrente feita de ouro, além deabotoaduras, e um anel de sinete. Eu nãoencostaria nas joias de nossa mãe, masConstancenãodissenada sobreas joiasdenosso pai, não tinha nem entrado naquelequarto para arrumá-lo, então pensei emabriracaixaetiraralgumacoisa.Orelógioestava ali, numa caixinha própria, apoiado

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num forro de cetim e sem funcionar, e acorrentedorelógioestavaenroladaaolado.Eu não encostaria no anel; a ideia de umanelemtornodomeudedosempremedeuasensaçãodeestaramarradacomforça,poisanéisnãotinhamaberturaparaescapar,masgostavadacorrentedorelógio,queretorciae enroscava na minha mão quando eu asegurava. Devolvi a caixa de joias à gavetacom cuidado, e fechei a gaveta, e saí doquarto,efecheiaporta,eleveiacorrentedorelógioparaomeuquarto,ondeelatornoua se enrolar sobre o travesseiro em umapilhadouradaadormecida.

Minha intenção era enterrá-la, mas tivepenaquandopenseiemquantotempoficaraalinaescuridãodacaixanagavetadenossopai, epensei que elahavia conquistadoum

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lugar alto, onde poderia brilhar ao sol, eresolvipregá-laàárvoredaqualolivrocaíra.Enquanto Constance fazia biscoito degengibrenacozinhae tio Juliandormianoquarto eCharles entrava e saía de lojas dovilarejo, eu estava deitada na minha camabrincandocomaminhacorrentedeouro.

“Essa é a correntedeourodo relógiodomeu irmão”, reconheceu tio Julian, seinclinando para a frente com curiosidade.“Imagineiqueeletivessesidoenterradocomela.”

A mão de Charles tremia quando ele aesticou; dava para ver o tremor contra oamarelo da parede às suas costas. “Numaárvore”, ele comentou, a voz tambémtrêmula.“Acheipregadaaumaárvore,peloamordeDeus.Quetipodecasaéesta?”

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“Não tem importância”, disse Constance.“Sério,Charles,nãotemimportância.”

“Nãotemimportância?Connie,essetrecoéfeitodeouro.”

“Masninguémquer.”“Umadasargolasestáamassada”,Charles

disse, lamentando-se pela corrente. “Eupoderia ter usado; que jeito infernal detratarumobjetovalioso.Agentepoderiatervendido”,disseaConstance.

“Masporquê?”“Eunãotinhadúvidadequeeletinhasido

enterrado com ela”, disse tio Julian. “Elenunca foi de dar as coisas fácil assim.Imaginoquenunca ficou sabendoque elestinhamguardadoissopraele.”

“Valedinheiro”,disseCharles,explicandocuidadosamente a Constance. “É uma

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correntede relógiodeouro, épossívelquevalha uma boa grana.Quem é sensato nãosai por aí pregando objetos valiosos comoesseemárvores.”

“O almoço vai esfriar se você ficar aí sepreocupandocomisso.”

“Voubotar elade voltana caixa,queéolugar dela”, declarou Charles. Ninguémalém de mim reparou que ele sabia ondeestivera guardada. “Mais tarde”, ele disse,olhandoparamim,“agentedescobrecomoéquefoipararnaárvore.”

“Foi aMerricat quem pôs lá”, esclareceuConstance.“Porfavor,sentaparaalmoçar.”

“Comoéquevocêsabe?SobreMary?”“Ela sempre faz isso.” Constance sorriu

paramim.“Comovocêéboba,Merricat.”“Faz mesmo?”, disse Charles. Ele se

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aproximoudevagardamesa,meencarando.“Ele era um homem muito apegado a si

mesmo”,dissetioJulian.“Dadoaseenfeitar,enãomuitoasseado.”

A cozinha estava silenciosa; Constanceestavanoquartodetio Julian,colocando-onacamaparaocochilodatarde.“ParaondeapobreprimaMaryiriaseairmãbotasseelapra fora?”, Charles perguntou a Jonas, queescutou silenciosamente. “O que a pobreprima Mary faria se Constance e Charlesnãoaamassem?”

Não sei por que me pareceu que eupoderiasimplesmentepedirparaCharles irembora.Talvezeuachassequeprecisarialhepedireducadamenteapenasumavez;talveza ideia de ir embora simplesmente nãotivesse lhe passado pela cabeça e fosse

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necessário incuti-la. Resolvi que pedir aCharles que fosse embora seria a próximamedida a tomar, antes que estivesse portodos os cantos da casa e se tornasseimpossível de erradicar. A casa já tinha ocheirodele,deseucachimboesualoçãodebarbear, os ruídos dele ecoavam noscômodosodiainteiro;ocachimboàsvezesestavaemcimadamesadacozinhaeasluvasou a bolsinha de fumo ou as constantescaixasdefósforosseespalhavamnosnossoscômodos.Eleiaaovilarejotodasastardesevoltavacomjornaisquedeixavaemqualquerlugar, até mesmo na cozinha, ondeConstance poderia vê-los. Uma faísca docachimbo tinha deixado uma queimadurapequenina no brocado de rosas de umapoltrona da sala de visitas; Constance não

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havia reparado, epensei emnão lhe contarporque esperava que a casa, machucada, orejeitariaporcontaprópria.

“Constance”, chamei em uma manhãradiante; calculei que fazia três dias queCharlesestavananossacasa;“Constance,elefaloualgumacoisasobreirembora?”

Ela se aborrecia cada vez mais comigoquandoeuqueriaqueCharlesfosseembora;antesConstance sempreouvia e sorria e sezangava apenas quando Jonas e eu éramosmaldosos, mas agora ela volta e meia mefranziaa testa, comosedealgummodoeulhe parecesse diferente. “Já te falei”, elamedisse,“játefaleiváriasvezesquenãoqueromais ouvir bobagens sobre Charles. Ele énossoprimoefoiconvidadoanosvisitareprovavelmentevaiemboraquandosesentir

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prontoparair.”“EledeixaotioJulianmaisindisposto.”“Ele só está tentando impedir que o tio

Julianpenseemcoisastristesotempotodo.Eeuconcordocomele.OtioJuliandeviaseanimar.”

“Por que ele devia se animar se vaimorrer?”

“Não tenho cumprido meu dever”,afirmouConstance.

“Não entendo o que você está querendodizer.”

“Fico escondida aqui”, Constance dissedevagar, como se não tivessemuita certezadaordemcertadaspalavras.Ficouparadaaolado do fogão ao sol com cor no cabelo enos olhos e sem sorrir, e disse devagar,“Deixei o tio Julian passar o tempo todo

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vivendo no passado e sobretudo revivendoaquelediahorrível.Deixeivocêcorrersolta;quanto tempo faz que não penteia ocabelo?”

Não podia me permitir ficar brava, eprincipalmente ficar brava comConstance,masdesejei amortedeCharles.Constanceprecisavademaisproteçãodoquenunca,ese eu ficasse brava e desviasse o olhar elapoderiamuitobemseperder.Eudissecommuitocuidado,“Nalua…”.

“Na lua”, Constance disse, e eu dei umarisadadesagradável.“Foitudoculpaminha”,ela declarou. “Não me dei conta de comoestava errada, deixando as coisas rolaremsemfreioporquequeriameesconder.Nãofoi justo nem com você nem com o tioJulian.”

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“E Charles também está consertando odegrauquebrado?”

“Tio Julian devia estar no hospital, comenfermeirasparacuidardele.Evocê…”Elade repente arregalou os olhos, como setornasse a ver sua antigaMerricat, e entãoesticouosbraçosparamim.“Ah,Merricat”,ela disse, e soltou uma risadinha. “Olha sóeuterepreendendo;quebobaeusou.”

Eu me aproximei e a envolvi com osbraços.“Euteamo,Constance.”

“Você é uma boa menina, Merricat”, eladisse.

Foi então que larguei dela e fui lá foraconversar com Charles. Eu sabia que nãogostariadeconversarcomele,maseraquasetarde demais para pedir educadamente eachava que devia pedir uma vez só. Até o

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jardim tinha viradoumapaisagemestranhacom a presença de Charles nele; eu o viaparado debaixo das macieiras e as árvorespareciamtortasepequenasaoladodele.Saípelaportadacozinhaeandeidevagaratéele.Tentava pensar bem de Charles, já que senãofosseassimnuncaconseguiriafalarcomgentileza,mas sempre que pensava em suaenorme carabrancame lançandoum largosorriso do outro lado da mesa ou meobservando sempre que me mexia tinhavontadedebaterneleatéquefosseembora,tinha vontade de pisoteá-lo depois queestivesse morto, e vê-lo caído morto nagrama. Portanto tornei minha mentebenevolente em relação a Charles e meaproximeideledevagar.

“Primo Charles?”, chamei, e ele se virou

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para me olhar. A imagem dele morto meveioàcabeça.“PrimoCharles?”

“Oi?”“Resolvi te pedir para por favor ir

embora.”“Tudobem”,eledisse.“Vocêpediu.”“Vocêporfavorvaiembora?”“Não”,elerespondeu.Não consegui pensar em nada mais a

dizer. Reparei que usava a corrente derelógiodeourodenossopai,mesmocomaargola torta, e eu soube sem ver que orelógio do nosso pai estava em seu bolso.Penseiqueamanhãestariausandooaneldesinete de nosso pai, e fiquei pensando sefaria Constance botar as pérolas de nossamãe.

“FicalongedoJonas”,ordenei.

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“Abemdaverdade”,eledisse,“daquiaummês, quem será que ainda vai estar aqui?Você”,eledisse,“oueu?”

Volteicorrendoparacasaefuidiretoparao quarto de nosso pai, onde martelei comumsapatooespelhoemcimadacômodaatéelerachardepontaaponta.Depoisfuiparaomeuquartoedeiteiacabeçanopeitorildajanelaedormi.

Nessa época estava me lembrando de sermais gentil com tio Julian. Estava tristeporqueelepassavacadavezmaistemponoquarto,tomandoocafédamanhãetambémalmoçandonabandejae comendoapenasajanta na sala sob o olhar desdenhoso deCharles.

“Não dá pra você dar comida pra ele ou

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coisa assim?”, Charles perguntou aConstance.“Eleestátodosujodecomida.”

“Nãoeraminhaintenção”,dissetioJulian,olhandoparaConstance.

“Tem que usar um babador”, decretouCharles,aosrisos.

Enquanto Charles estava sentado nacozinha pela manhã, comendo muitopresuntoebatata eovos fritos epãezinhosquentes e rosquinhas e torradas, tio Juliancochilavanoquartodiantedoleitequenteeàs vezes, quando chamava Constance,Charles dizia, “Fala pra ele que você estáocupada; você não tem que ir correndosemprequeelemolhaacama;elegostaédeserservido”.

EusempretomavaocafédamanhãantesdeCharles naquelasmanhãs ensolaradas, e

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seeledescesseantesdeeuterminar,levavaomeu prato para fora e me sentava nogramado sob o castanheiro.Uma vez leveipara o tio Julian uma nova folha docastanheiro e a coloquei no peitoril de suajanela.Pareiláfora,embaixodosol,eolheipara ele deitado no quarto escuro e tenteipensar em maneiras de ser mais gentil.Pensei nele deitado ali sozinho, sonhandosonhosdovelhotioJulian,efuiàcozinhaedisse a Constance, “Você pode fazer umbolinho macio para o tio Julian comer noalmoço?”.

“Ela está ocupada demais”, Charlesdeclarou de boca cheia. “Sua irmã trabalhaquenemumaescrava.”

“Podefazer?”,pergunteiaConstance.“Desculpe”,respondeuConstance.“Tenho

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muitacoisaprafazer.”“MasotioJulianvaimorrer.”“AConstance estámuito ocupada”, disse

Charles.“Vaiembora,vaibrincar.”SeguiCharlesumatardeemqueelefoiao

vilarejo.Pareijuntoàpedrapreta,jáquenãoera um dos meus dias de ir ao vilarejo, eobservei Charles percorrer a rua principal.Ele parou e conversou umminutinho comStella, parada sob a luz do sol em frente àcafeteria,eelecomprouumjornal;quandoo vi se sentar no banco com os outroshomensdeimeia-voltaefuiparacasa.Seeufosse ao vilarejo para fazer compras outravez, Charles seria um dos sujeitos queassistiria à minha passagem. Constancemexia no jardim e tio Julian dormia nacadeira ao sol, equandome senteinomeu

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bancoemsilêncioConstance indagou, semolhar para mim, “Por onde você andava,Merricat?”.

“Passeando.Cadêomeugato?”“Eu acho”, disse Constance, “que nós

vamosterqueteproibirdepassear.Estánahoradevocêsossegarumpouco.”

“Esse‘nós’querdizervocêeCharles?”“Merricat.”Constancesevirouparamim,

sentando-se sobre os calcanhares eentrelaçando as mãos à frente do corpo.“Atépoucotempoatráseununcatinhamedado conta do erro que cometi ao deixarque você e tio Julian se escondessem aquicomigo. A gente devia ter encarado omundoetentadolevarumavidanormal;tioJuliandeviaterpassadoessesanostodosnohospital, comboa assistência e enfermeiras

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para ajudar. A gente devia ter vivido quenemasoutraspessoas.Vocêdeveria…”Elasecaloueabanouasmãos, indefesa. “Vocêdeveriateramigoshomens”,disseporfim,eentãocaiunarisadaporquesoavaengraçadoatémesmoparaela.

“Eu tenho Jonas”, retruquei, e nós duasrimosetioJulianacordouderepenteedeuumarisadaquepareciaumcacarejofino.

“Você é a pessoamais boba que já vi navida”, eu disse a Constance, e saí paraprocurar Jonas. Enquanto eu perambulavaCharlesvoltouànossacasa;trouxeojornale uma garrafa de vinho para o jantar e olenço de nosso pai que eu usava paraamarrar o portão com firmeza, visto queCharlestinhaachave.

“Eu poderia ter usado esse lenço”, ele

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reclamoucomirritação,eoescuteidahorta,onde achei Jonas dormindo em umemaranhado de brotos de alface. “É umapeçacara,eeugosteidascores.”

“Eradopai”,Constanceexplicou.“E falando nisso”, aproveitou Charles.

“Umdiadesseseuquerodarumaolhadanorestodasroupasdele.”Elesecalouporumminuto; imaginei que provavelmenteestivesse se sentandonomeubanco.Entãoprosseguiu, calmamente. “E também”, eledisse,“jáqueestouaqui,precisoexaminarapapelada do seu pai. Pode ser que tenhaalgumacoisaimportante.”

“Não a minha papelada”, tio Julianretrucou. “Esse rapaz não vai encostar odedonaminhapapelada.”

“Ainda nem vi o escritório do seu pai”,

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Charlescomentou.“A gente não usa. A gente não toca em

nadaquetemlá.”“A não ser o cofre, claro”, acrescentou

Charles.“Constance?”“Poisnão,tioJulian?”“Eu quero que depois você fique com a

minha papelada. Ninguém mais deveencostar na minha papelada, estáentendendo?”

“Sim,tioJulian.”Eunãotinhapermissãoparaabrirocofre

em queConstance guardava o dinheiro denosso pai.Tinha permissão para entrar noescritório,maseunãogostavaenemsequertocava na maçaneta. Esperava queConstance não abrisse o escritório para

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Charles;ele já tinhaoquartodenossopai,afinal,eorelógiodenossopaiesuacorrentede ouro e seu anel de sinete. Eu estavaponderando que ser um demônio e umfantasmadevia serbemdifícil,mesmoparaCharles; se ele acabasse esquecendo, oudeixasse a máscara cair por um instante,seria logoreconhecidoemandadoembora;precisavatomarocuidadoextremodeusarsempreamesmavozeapresentaromesmorosto e a mesma postura sem nenhumaderrapada; precisava estar sempre atentoparanãosetrair.Euficavaimaginandoseeleretomaria sua verdadeira forma quandomorresse. Quando esfriou e percebi queConstance levaria tio Julian para dentro,deixei Jonasdormindonomaçodealfaceevoltei para casa.Quando entrei na cozinha

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tio Julian estava ensandecidomexendo nospapéisemcimadamesa,tentandojuntá-losnumapilha,eConstancedescascavabatatas.DavaparaescutarCharlessemovimentandolá em cima, e por um instante a cozinhaficouquentinhaeradianteeclara.

“Jonasestádormindonaalface”,comentei.“Nãotemnadamaisgostosodoquepelo

de gato naminha salada”, Constance disseemtomafável.

“Jápassoudahoradeeuterumacaixa”,tioJulian anunciou. Recostou-se e olhou comraiva para os papéis. “Isso tudo tem de serposto numa caixa neste minuto.Constance?”

“Poisnão,tioJulian;vouacharumacaixaparavocê.”

“Seeubotartodososmeuspapéisemuma

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caixaebotaracaixanomeuquarto,aquelerapaz horrível não vai ter como encostarneles.Eleéumrapazhorrível,Constance.”

“Naverdade,tioJulian,oCharlesémuitoagradável.”

“Eleédesonesto.Opaideleeradesonesto.Meus dois irmãos eram desonestos. Se eletentar pegar os meus papéis você tem deimpedir; não posso permitir que mexamcom meus papéis e não vou tolerarintrusões. Você tem de avisar para ele,Constance.Eleéumcanalha.”

“TioJulian…”“Nosentidopuramentemetafórico,posso

lhegarantir.Meusdoisirmãoscasaramcommulheresmuitíssimo cabeças-duras.Trata-seapenasdeumapalavrausada—entreoshomens,minhaquerida;peçodesculpaspor

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sujeitá-la a uma palavra dessas — paraclassificarumsujeitoindesejável.”

Constance se virou sem falar e abriu aportaquedavaparaaescadadoporãoeasfileiras e mais fileiras de alimentos emconserva bem lá no fundo de nossa casa.Desceu a escada sem fazer barulho, eouvíamosCharlessemexendoláemcimaeConstancesemexendoláembaixo.

“Guilherme de Orange era um canalha”,tio Julian falou sozinho; pegou umpedacinho de papel e fez uma anotação.Constancevoltoudoporãocomumacaixatrazida para tio Julian. “Aqui uma caixalimpa”,eladisse.

“Paraquê?”,tioJulianindagou.“Paravocêguardarseuspapéis.”“Aquele rapaz não pode tocar na minha

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papelada,Constance.Não vou admitir queaquelerapazmexanaminhapapelada.”

“É tudo minha culpa”, Constancedecretou, virando-se para mim. “Ele deviaestarnumhospital.”

“Vou botar minha papelada nessa caixa,Constance, minha querida, se você fizer abondadedeentregá-laparamim.”

“Ele se diverte um pouco”, eu disse aConstance.

“Eudeviaterfeitotudodiferente.”“Não teria sido gentil botar o tio Julian

numhospital.”“Mas eu vou ter que botar se eu…” e

Constancesecalouderepenteetornouaseconcentrar na pia e nas batatas. “Ponhonozesnomolhodemaçã?”,elaperguntou.

Fiquei bem quieta, prestando atenção ao

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queelaquasedisse.Otemposeesgotava,secontraía em torno de nossa casa, meesmagando. Imaginei que seria a hora deestraçalharoespelhograndedohall,masospés de Charles desciam pesadamente aescada e atravessavam o corredor eadentravamacozinha.

“Ora, ora, está todo mundo aqui”, eledisse.“Oquevaiterparaojantar?”

NaquelanoiteConstance tocouparanósna sala de visitas, a curva alta da harpalançandosombrasnoretratodenossamãeeas notas suaves se espalhando no ar feitopétalas.Elatocou“OvertheSeatoSkye”e“Flow Gently, Sweet Afton” e “I Saw aLady”, além de outras canções que nossamãetocava,maseunãolembrodosdedosdenossamãeencostaremnascordascomtanta

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leveza, com tanto respiro na melodia. TioJulian se manteve desperto, ouvindo esonhando, e nem mesmo Charles teve aaudáciadepôrospésemcimadamobílianasala de visitas, embora a fumaça docachimbovagueassecontraotetodebolodenoiva e ele se remexesse enquantoConstancetocava.

“Quetoquedelicado”,tioJuliancomentouuma vez. “Todas as mulheres da famíliaBlackwoodtinhamtalentonotoque.”

Charlesparouaoladodalareiraparabaterocachimbonagrade.“Umabeleza”,elogiou,pegando uma das estatuetas de Dresden.Constanceparoudetocar,eelesevirouparaolhá-la.“Évaliosa?”

“Não muito”, disse Constance. “Minhamãegostavadelas.”

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Tio Julian disse, “A minha prediletasempre foi ‘Bluebells of Scotland’;Constance,minhaquerida,vocêpoderia…”.

“Agora não”, Charles disse. “AgoraConstance e eu queremos conversar, tio.Temosplanosparatraçar.”

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Q

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uinta-feira era o dia em que eutinhamaisenergia.Eraodiacertoparame resolver comCharles.De

manhã Constance decidiu fazer biscoitoscondimentadosparaojantar;eraumapena,poissealgumdenóssoubessedissopoderiaterlheditoquenãosedesseaotrabalho,quequinta-feiraseriaoúltimodia.Nemmesmotio Julian desconfiou, entretanto; ele sesentiuumpoucomaisforteaodespertarnaquinta-feira,enofinaldamanhãConstance

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o levou à cozinha, que cheirava bastante abiscoitoscondimentados,eelecontinuouabotarsuapapeladanacaixa.Charlespegarao martelo e achara pregos e uma tábua emartelava sem dó nem piedade o degrauquebrado;dajaneladacozinhadavaparaverque se saía muito mal e fiquei satisfeita;desejei que omartelo golpeasse seu dedão.Permanecinacozinhaatétercertezadequetodosficariamondeestavamporumtempoeentãosubiaescadaeentreinoquartodenosso pai, andando de fininho para queConstancenãonotassequeeuestavaali.Aprimeiraatitudeatomarerapararorelógiode nosso pai, no qual Charles deu corda.Sabia que não o estava usando enquantoarrumava o degrau quebrado porque nãoestava de corrente, e achei o relógio e a

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corrente e o anel de sinete no quarto denossopaijuntocomabolsinhadetabacodeCharlesequatrocaixinhasdefósforos.Nãotinhapermissãoparatocaremfósforos,masde qualquer modo não teria tocado nosfósforos de Charles. Peguei o relógio eescuteiseutique-taque,porqueCharlesderacorda; eu não podia fazê-lo voltartotalmente para onde estava antes porqueele o mantivera funcionando fazia dois outrêsdias,masgireiacoroaparatrásatéouvirum estalidozinho queixoso do relógio e otique-taque cessou. Quando tive a certezade que ele jamais conseguiria fazê-lotiquetaquear outra vez, coloquei-o comdelicadeza onde o havia encontrado; umacoisa,pelomenos,foiliberadadofeitiçodeCharles, e pensei que eu enfim tinha

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rompidosuatensapeledeinvulnerabilidade.Não precisava me preocupar com acorrente,queestavaquebrada,enãogostavadoanel.EliminarCharlesdetudooqueelehavia tocado era quase impossível,masmepareciaquecasoalterasseoquartodenossopai, e talvez depois a cozinha e a sala devisitaeoescritório,eparaconcluirojardim,Charles se perderia, isolado do quereconhecia, e teria de admitir que essa nãoera a casa que tinha vindo visitar e assimteriadeirembora.Altereioquartodenossopaibemrápidoequasesemfazerbarulho.

Duranteanoiteeutinhasaídonoescuroetrazidoumaenormecestacheiadepedaçosdemadeira,galhosquebrados,folhasecacosde vidro e metal do campo e do bosque.Jonas foi e voltou comigo, divertindo-se

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comanossacaminhadasilenciosaenquantotodosdormiam.Quandoaltereioquartodenossopaitireioslivrosdaescrivaninhaeascobertasdacama,epusmeusvidrosemetaise madeiras e galhos e folhas nos espaçosvazios. Como não podia botar os objetosque foram de nosso pai no meu quarto,carreguei-os escada acima sem fazerbarulho, até o sótão, onde todos os outrospertences dele eram guardados. Derrameium jarro de água na cama de nosso pai:Charles não poderia mais dormir ali. Oespelho sobre a cômoda já estavaestilhaçado: não refletiria Charles. Ele nãoseria capaz de achar livros ou roupas eficaria perdido em um quarto de folhas egalhosquebrados.Arranqueiascortinaseasjogueinochão:agoraCharlesteriadeolhar

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láparaforaeverarampaqueiaparalongeedepoisaestrada.

Olheioquartocomdeleite.Umdemônio-fantasmanãoteriafacilidadeemficarali.Euestava de volta ao meu quarto, deitada nacamaebrincandocomJonasquandoescuteiCharlesláembaixo,nojardim,gritandoparaConstance. “Já chega”, ele dizia, “já chegamesmo.”

“O que foi agora?”, Constance indagou;ela foi até a porta da cozinha e escutei tioJuliandizendodealgumcanto,“Mandaesserapaztoloparardeberrar”.

Olhei rapidamente; era óbvio que odegrau quebrado tinha sido demais paraCharlesporqueomarteloeatábuaestavamno chão e o degrau continuava quebrado;Charles subia a rampa, vindo do riacho, e

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carregandoalgumacoisa;mequestionavaoqueteriaachadodessavez.

“Vocêjáouviufalardecoisaparecida?”,eledizia;emborajáestivesseperto,continuavaagritar.“Olhaisso,Connie,olhasóissoaqui.”

“Imagino que seja daMerricat”, declarouConstance.

“Não é da Merricat nem nada disso. Édinheiro.”

“Eulembro”,disseConstance.“Moedasdeprata.Lembroqueelaenterrou.”

“Deveterunsvinteoutrintadólaresaqui;éumabsurdo.”

“Elagostadeenterrarcoisas.”Charles ainda gritava, sacudindo minha

caixa de moedas com violência. Meperguntei se a deixaria cair; gostaria de tervisto Charles no chão, se arrastando à

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procuradasminhasmoedas.“Odinheironãoédela”,elevociferava,“ela

nãotemodireitodeesconder.”Fiquei me perguntando como ele tinha

achado a caixa onde eu a enterrara; vai verque Charles e dinheiro se achavamindependentemente da distância quehouvesse entre eles, ou vai verqueCharlesandava empenhado em escavarsistematicamente cada centímetrodenossoterreno.“Issoéterrível”,elegritava,“terrível;elanãotemodireito.”

“Não faz mal a ninguém”, respondeuConstance. Era perceptível que estavaconfusa e em algum canto da cozinha tioJulianbatucavaechamava.

“Como é que você sabe que não temmais?”, Charles exibiu a caixa em tom

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acusatório. “Como é que você sabe queaquela menina maluca não enterroumilharesdedólaresporaí,emlugaresondeagentenuncavaiachar?”

“Ela gosta de enterrar coisas”, Constancejustificou.“Estouindo,tioJulian.”

Charles seguiu-a porta adentro, aindasegurando a caixa ternamente. Cogiteienterraracaixadenovodepoisqueelefosseembora, mas não estava contente. Fui aopatamardaescadaeobserveiCharlescruzaro corredor emdireçãoao escritório; estavaclaro que botaria minhas moedas de pratano cofre de nosso pai. Desci a escadacorrendo e sem fazer barulho e saí pelacozinha. “Como você é boba, Merricat”,Constance me disse quando passei;espalhava biscoitos condimentados em

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longasfileirasparaqueesfriassem.Eu pensava em Charles. Poderia

transformá-loemmosquitoe jogá-lonumateiadearanhaevê-loenredadoeindefesoese debatendo, preso no corpo de ummosquito agonizante; poderia desejar suamorteatéqueelemorresse.Poderiaamarrá-loaumaárvoreedeixá-loláatéquevirassetroncoeacascacobrissesuaboca.Poderiaenterrá-lo na cova onde minha caixa demoedas de prata estivera segura até elechegar; se estivesse debaixo da terra eupoderiaandarsobreelepisandoforte.

Elenãohavia sequer sedadoao trabalhode tampar a cova. Dava para imaginar eleandandopor lá e notandoo ponto onde osolo forarevirado,parandopararevirá-loedepois escavando como um louco com as

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mãos,fechandoacaraeporfimgananciosoe escandalizado e ofegante ao encontrarminhacaixademoedasdeprata.“Nãopõeaculpaemmim”,eudisseaoburaco;teriadeachar outra coisa para enterrar ali e queriaquepudesseserCharles.

A cova acomodaria com delicadeza acabeçadele.Gargalheiquandodescobriumapedraredondadotamanhocerto,edesenheiumrostocomaunhaeaenterreinoburaco.“Adeus,Charles”,medespedi.“Dapróximavez vê se não fica pegando as coisas dosoutros.”

Fiqueipertodoriachopormaisoumenosuma hora; estava perto do riacho quandoCharlesenfimsubiueentrounoquartoquenão eramais dele e não eramais de nossopai. Por um instante pensei que Charles

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tinhaestadonomeuabrigo,masnadaestavafora do lugar, como estaria se Charlestivesse ido ali para procurar alguma coisa.Maselechegarapertoo suficienteparameincomodar, e por isso, tirei a grama e asfolhasdolugarondeeugeralmentedormiaebalanceimeucobertor,erenoveitudo.Laveia pedra lisa onde às vezes fazia minhasrefeiçõesepusumgalhomelhornaentrada.MeperguntavaseCharlesvoltariaembuscademaismoedasdeprataemeperguntavaseele iria gostar das minhas seis bolinhas degudeazuis.Porfimsentifomeevolteiparaanossacasa,elánacozinhaestavaCharles,aindaaosberros.

“Não dá pra acreditar nisso”, ele dizia,agora jábemestridente, “simplesmentenãodápraacreditar.”

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Eu me perguntava por quanto tempoCharles continuaria a gritar. Ele fazia umruídosombrionanossacasa,esuavozficavacadavezmaisfinaeaguda;talvezseberrassepor bastante tempo começasse a guinchar.Sentei no degrau da cozinha ao lado deJonaseimagineiquetalvezConstancecaíssena risada se Charles guinchasse para ela.Nunca aconteceu, contudo, porque assimqueeleviuqueeuestavasentadanodegrauele se calou por um instante e depois, aofalar, baixou o tom da voz e diminuiu seuritmo.

“Quer dizer que você voltou”, eleconstatou.Nãoseaproximoudemim,massentisuavozcomoseestivessevindoaomeuencontro. Não olhei para ele; olhei paraJonas,queolhavaparaele.

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“Ainda não resolvi o que é que eu voufazer com você”, ele declarou. “Mas seja oquefor,vocênãovaiesquecer.”

“Nãomexe com ela,Charles”,Constancepediu.Tampoucogosteidavozdelaporqueestava esquisita e eu sabia que ela estavaindecisa. “Dequalquermodo, é tudo culpaminha.”Erasuanovaformadepensar.

Pensei em ajudar Constance, quem sabefazê-la rir. “Amanita pantherina”, recitei,“Altamente venenosa. Amanita rubescens,comestível e boa. A Cicuta maculata é acicuta-da-europa,umadasplantassilvestresmais tóxicas se ingerida. A Apocynumcannabinum não é umaplanta venenosa degrandeimportância,masabeladona…”

“Para com isso”, disse Charles, aindacalmo.

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“Constance”, eu disse, “viemos para casaparaoalmoço,oJonaseeu.”

“PrimeirovocêvaiterqueseexplicarparaoprimoCharles”,Constancedecretou,eeugelei.

Charlesestavasentadoàmesadacozinha,a cadeira afastada e virada de frente paramim na soleira da porta. Constance estavaatrás dele, encostada na pia. Tio Julianestava na mesa dele, mexendo nos papéis.Havia fileiras e mais fileiras de biscoitoscondimentadosesfriandoeacozinhaaindacheirava a canela e noz-moscada. Eu mepergunteiseConstancedariaumbiscoitoaJonas junto com o jantar, mas é claro quenãofezissoporqueessefoioúltimodia.

“Agoraescuta”,Charlesdisse.Eledesceracomumpunhadodegalhoseterra,talveza

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fim de provar a Constance que realmenteestavam em seu quarto, ou talvez porquefosselimpá-lodepunhadoempunhado;osgalhos e a terra pareciam deslocados emcima da mesa da cozinha, e imaginei quetalvez um dos motivos para Constanceparecertãotriste fossea terraemsuamesalimpa.“Agoraescuta”,Charlesdisse.

“Nãodáparaeutrabalharaquiseorapaznão parar de falar”, reclamou tio Julian.“Constance,manda ele fazer um pouco desilêncio.”

“Vocêtambém”,Charlesdissenaquelavozsuave. “Eu já aguenteimuitode vocêsdois.Umdevocêsemporcalhouomeuquartoesaiu por aí enterrando dinheiro e o outronemlembraqualéomeunome.”

“Charles”, eu disse a Jonas.Como era eu

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quem enterrava dinheiro, sem dúvida, nãoera a que não lembrava do nome dele; opobrecoitadodovelhotioJuliannãopodiaenterrarnadaenãoconseguiaselembrardonome de Charles. Eu me lembraria de sermaisgentilcomtioJulian.“VocêvaidarumbiscoitoparaotioJuliancomernojantar?”,pergunteiaConstance.“EvaidarumparaoJonastambém?”

“Mary Katherine”, Charles disse, “vou tedarumachancede se explicar.Porque foiquevocêfezessabagunçanomeuquarto?”

Não havia razão para lhe responder. Elenão era Constance, e tudo que eu falassepara ele talvez o ajudasse a retomar seutênue domínio sobre nossa casa. Fiqueisentadanaportaebrinqueicomasorelhasde Jonas, que se agitavam e tremelicavam

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quandoeufaziacócegas.“Responda”,ordenouCharles.“Quantasvezesvouprecisartedizer,John,

que eu não sei absolutamente nada sobreesse assunto?” Tio Julian bateu a mão namesa e espalhou os papéis. “É uma brigaentre asmoças enãomediz respeito.Nãomeenvolvonasbriguinhasbobasdaminhaesposa e recomendo fortemente que vocêtambém aja assim. Não é correto quehomensdignosfaçamameaçaserepresáliasporque as moças se desentenderam. Vocêperde credibilidade, John, perdecredibilidade.”

“Cala a boca”, disse Charles; ele estavagritando de novo, e fiquei satisfeita.“Constance”, ele continuou, baixando umpouco o tom de voz, “essa situação é um

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horror. Quanto antes você sair dela,melhor.”

“… não vou admitir que meu próprioirmãomemande calar a boca.Nós vamosemboradasuacasa,John,seéissomesmooquevocêquer.Eulhepeço,noentanto,quereflita.Minhaesposaeeu…”

“É culpa minha, tudo isso”, Constancedisse. Achei que ela fosse chorar. EraimpensávelqueConstancechorassedenovodepois de todos esses anos, mas eu estavatensa, estava gelada, e nãopodiamemexerparairaoseuencontro.

“Você é perverso”, eu disse a Charles.“Vocêéumfantasmaeumdemônio.”

“Masquediabos?”,Charlesretrucou.“Não dê atenção”, Constance lhe disse.

“NãodêouvidosàsbobagensdaMerricat.”

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“Você é um sujeito muito egoísta, John,talvezsejaatéumsalafrário,egostademaisdosbensmundanos;àsvezesmepergunto,John,sevocêéumcavalheirodeverdade.”

“Isto aqui é um hospício”, Charlesdeclarou com convicção. “Constance, istoaquiéumhospício.”

“Vou limpar o seu quarto agorinhamesmo.Charles,porfavor,nãofiquebravo.”Constance me encarou com fúria, mas euestavatensaenãoavia.

“TioJulian.”Charlesse levantoue foiatéondeestavatioJulian,sentadoàmesadele.

“Você não encoste nos meus papéis”,ordenou tio Julian, tentandocobri-los comas mãos. “Fica longe dos meus papéis, seucanalha.”

“Oquê?”,indagouCharles.

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“Peço desculpas”, tio Julian disse aConstance.“Estenãoéolinguajaradequadoaosseusouvidos,minhaquerida.Sómandeesserapazinhocanalhaficarlongedosmeuspapéis.”

“Olha”,Charlesdisse a tio Julian, “vou tedizer que já estou por aqui. Não vouencostarnessesseuspapéisidiotaseeunãosouoseuirmãoJohn.”

“ÉclaroquevocênãoéomeuirmãoJohn:você é um centímetro mais baixo que ele.Vocêéumrapazinhocanalha,egostariaquevoltasse para o seu pai, que, para minhavergonha,émeu irmãoArthur,edigaaelequefuieuquemandei.Diantedasuamãe,sevocêquiser;elaéumacabeça-duramasnãotemessacoisadesangue.Eladesejavaquearelaçãofamiliarfossecortada.Portanto,não

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faço objeção a que você repita do meuelevadolinguajarnafrentedela.”

“Isso tudo já foi esquecido, tio Julian;Constanceeeu…”

“Eu acho que você se esqueceu de simesmo, rapaz, para usar esse tom de vozcomigo. Acho bom que você estejaarrependido, mas já me tomou tempodemais. Por favor, fique em completosilênciodeagoraemdiante.”

“Sódepoisqueeu tiver terminadocomasuasobrinhaMaryKatherine.”

“Minha sobrinha Mary Katherine estámorta faz tempo, rapaz.Não sobreviveu àmorte da família; imaginei que vocêsoubesse.”

“O quê?”, Charles se virou furioso paraConstance.

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“MinhasobrinhaMaryKatherinemorreuno orfanato, de abandono, durante ojulgamentodairmãpeloassassinato.Maselanão é muito relevante para o meu livro,então podemos dar o assunto porencerrado.”

“Elaestásentada logoali.”Charlesagitouosbraços,orostovermelho.

“Rapaz.” Tio Julian largou o lápis e sevirou um pouco para ficar de frente paraCharles.“Creioqueeujátenhadeixadobemclaro para você a importância do meutrabalho. Você prefere me interromper otempointeiro.Paramimchega.Ouvocêsecalaouseretiradestecômodo.”

Eu ria deCharles e atéConstance estavasorrindo. Charles ficou olhando para tioJulian, e tio Julian, examinandoapapelada,

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disseparasimesmo,“Quecachorrinhomaisimpertinente”,eentão,“Constance?”.

“Poisnão,tioJulian?”“Por que enfiaram meus papéis nesta

caixa?Vouterquetirartudodedentrodelaereorganizar.Esserapazchegoupertodosmeuspapéis?Chegou?”

“Não,tioJulian.”“Ele acha mesmo que é o rei da cocada

preta,né?Quandoéqueelevaiembora?”“Eu não vou embora”, afirmou Charles.

“Vouficar.”“Impossível”, retrucou tio Julian. “Não

temosespaço.Constance?”“Poisnão,tioJulian?”“Vouquerercosteletaparaoalmoço.Uma

bela costeletazinha, bem grelhada. Talvezumcogumelo.”

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“Sim”, Constance respondeu com alívio,“vou começar a fazer o almoço.” Como seestivesse feliz de finalmente prepará-lo, elafoiàmesaparalimparaterraeasfolhasqueCharlesdeixaraali.Arrastou-asparadentrodeumsaquinhodepapelejogouosaquinhonalatadelixo,edepoisvoltoucomumpanoeesfregouamesa.Charlesolhouparaelaepara mim e para tio Julian. Estavanitidamente confuso, incapaz de entenderqualquer coisa que via ou ouvia; era umaimagem prazerosa, ver as primeirasreviravoltas do demônio capturado, e sentimuito orgulho de tio Julian. Constancesorriu para Charles, feliz porque ninguémmais gritava; ela não iria chorar agora etalvezelatambémestivessevislumbrandoodemôniotenso,porquedisse, “Vocêparece

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cansado, Charles. Vai dar uma descansadaatéahoradoalmoço”.

“Dar uma descansada onde?”, elequestionou e continuava bravo. “Não voumexernemumdedoatéquealgumaatitudesejatomadaarespeitodessamenina.”

“A Merricat? Pra que tomar algumaatitude?Eufaleiquevoulimparseuquarto.”

“Vocênãovainemcastigá-la?”“Me castigar?” Eu estava ali de pé,

tremendo contra o batente da porta. “Mecastigar?Você está falando emmemandarparaacamasemjantar?”

E corri.Corri até chegar ao campo, bemnomeiodogramado,ondeeraseguro,emesentei ali, a gramamais alta do queminhacabeça, me escondendo. Jonas me achou eficamos sentados juntos onde ninguém

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jamaisseriacapazdenosver.Passado bastante tempo me levantei

porque sabia aonde ir. Iria à casa deveraneio. Não chegava perto da casa deveraneiofaziaseisanos,masCharlesdeixarao mundo sombrio, e somente a casa deveraneiodariaconta.Jonasnãomeseguiria;elenãogostavadacasadeveraneioequandome viu entrando na trilha coberta defolhagem que ia até lá tomou outro rumocomo se tivesse algo importante a fazer efosse me encontrar em algum lugar maistarde. Ninguém gostava muito da casa deveraneio, eu lembrava. Nosso pai fizera oplanejamento,eseuintuitoeralevaroriachoaté lá perto e construir uma pequenacachoeira, mas alguma coisa tinha entradonamadeira e na pedra e na tinta quando a

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casa foi construída e a estragara. Uma veznossa mãe viu um rato na porta, olhandopara dentro, e depois disso nada era capazdepersuadi-laaentrarlá,eondenossamãenãoia,ninguémmaisia.

Eununcatinhaenterradonadaporali.Osoloestavapretoeúmidoenadaque fosseenterrado ficaria muito confortável. Asárvores se espremiam contra as laterais dacasadeveraneioerespiravamcomforçaemseu telhado, e as pobres flores outroraplantadas ali ou haviam morrido ou setransformado em enormes coisas silvestresdemaugosto.Quandopareiaoladodacasaeolheipara ela, acheiqueerao lugarmaisfeioqueeujátinhavisto;lembreiquenossamãe tinha feito um pedido sério para quebotassemfogonela.

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No interior tudo era umidade e trevas.Não gostava de sentar no chão de pedras,masnãohaviaoutrolugar;antigamente,melembrei, havia cadeiras e talvez até umamesinha, mas agora não existiam mais,tinhamsidolevadasemboraouapodrecido.Senteinochãoenaminhacabeçacoloqueitodos eles nos lugares corretos, no círculoao redor da mesa de jantar. Nosso pai sesentava à cabeceira. Nossa mãe na outraponta.TioJuliansesentavadoladodanossamãe,enossoirmãoThomasficavadooutrolado;aoladodomeupaiseacomodavamtiaDorothyeConstance.EumesentavaentreConstanceetioJulian,nolugaràmesaquemeeradedireito,quecabiasóamim.Aospoucoscomeceiaouvi-losconversando.

“… para comprar um livro para Mary

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Katherine.Lucy,MaryKatherinenãodeviaganharumlivronovo?”

“Mary Katherine devia ter tudo o quedesejasse, meu querido. Nossa filha maisamadatemquetertudooquequiser.”

“Constance, a sua irmã precisa damanteiga.Passalogopraela,porfavor.”

“MaryKatherine,nósteamamos.”“Vocênãodevenuncasercastigada.Lucy,

você temquegarantirqueMaryKatherinenossa filha mais amada jamais sejacastigada.”

“MaryKatherinenuncasepermitiriafazernada de errado; não existe nenhumanecessidadededeixá-ladecastigo.”

“Ouvi falar, Lucy, que criançasdesobedientes são mandadas para a camasem jantar como forma de castigo.Não se

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devepermitirumacoisadessascomanossaMaryKatherine.”

“Concordo plenamente, meu querido.Mary Katherine não deve ser castigadanunca.Nãodevenuncasermandadaparaacamasemjantar.MaryKatherinejamaisvaifazeralgumacoisaquemereçacastigo.”

“Nossa amada, nossa queridíssima MaryKatherine tem que ser protegida e tratadacomcarinho.Thomas,dêoseujantaràsuairmã;elaquercomermais.”

“Dorothy... Julian.Levantem-se quando anossaamadafilhaselevantar.”

“Curvem-setodosdiantedenossaadoradaMaryKatherine.”

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recisava voltar para o jantar; eraessencialqueme sentasse àmesadejantar comConstance e tio Julian e

Charles.Erainimaginávelquesesentassem,comessem o jantar e conversassem epassassemastravessasdeumparaooutroevissemmeulugarvazio.QuandoJonaseeupercorremosatrilhaeatravessamosojardimnaescuridãoqueseacumulava,olheiparaacasa com toda a abundância de amor quecontinha emmim; era uma casa boa, e em

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breve estaria limpa e desanuviada de novo.Parei um instante, observando, e Jonasroçouminhapernaefaloubaixinho,emtomdecuriosidade.

“Estouolhandoanossacasa”,expliquei,eele ficou parado ao meu lado, olhandocomigo.Otelhadoseprojetavafirmementecontraocéu,easparedesseencontravamdeforma compacta, e as janelas brilhavam deumamaneira sombria; era uma casa boa equase limpa. A luz vinha da janela dacozinhaedasjanelasdasaladejantar;estavana hora do jantar deles, e eu precisavachegar.Queria estar dentrode casa, comaportabemfechada.

Quando abri a porta da cozinha paraentrar, senti logoquea casaaindaabrigavaraiva, e me admirei por alguém conseguir

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manter uma emoção por tanto tempo; dacozinha,ouviasuavozcomnitidez,falandosemparar.

“…precisadarumfimnela”,eledizia,“ascoisasnãopodemcontinuardessejeito.”

PobreConstance,pensei,tendodeescutare escutar e ver a comida esfriar. Jonas seadiantoueentrounasaladejantarantesdemim,eConstancedisse,“Aíestáela”.

Parei na porta da sala e observei comatenção por um instante. Constance usavacor-de-rosa e o cabelo estava preso de umjeito bonito; ela sorriu para mim quandoolheiparaela,eentendiqueestavacansadadeescutar.AcadeiraderodasdetioJulianestavabempróximadamesa,esentipenaaoverqueConstancepuseraoguardanaposoboqueixodele;eraumatristezaquetioJulian

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não pudesse comer livremente. Ele comiabolo de carne, além da ervilha queConstance guardara em conserva num diaperfumado de verão; Constance cortara obolodecarneempedacinhospequenosetioJulian amassava o bolo e as ervilhas com acolher e misturava tudo antes de tentarenfiá-lanaboca.Elenãoescutava,masavoznãoparava.

“Então quer dizer que você resolveuvoltar,nãoé?E foibemnahora,mocinha:sua irmã e eu estamos tentando resolvercomolheensinarumalição.”

“Vai lavar o rosto, Merricat”, Constancepediucomdelicadeza. “Epentearocabelo;não queremos que você se sente à mesadesarrumada, e seu primo Charles já estázangadocomvocê.”

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Charles apontou o garfo para mim.“Melhor eu te dizer logo, Mary, que suasartimanhasacabaramparasempre.Suairmãeeudecidimosquejábastadeesconderijosedestruiçõesemauhumor.”

Nãogostavaquemeapontassemgarfosenãogostavadosomdavoznuncacessando;queriaqueelebotassecomidanogarfoeoenfiassenabocaesufocasse.

“Vailogo,Merricat”,disseConstance,“seujantar vai esfriar.” Ela sabia que eu nãojantaria sentada à mesa e que mais tardeserviria meu jantar na cozinha, mas acheiqueelanãoqueriaqueCharlesselembrassedisso e tivesse mais sobre o que reclamar.Sorri para ela e fui para o corredor, a vozaindafalandoàsminhascostas.Faziamuitotempoquetamanhaquantidadedepalavras

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não era enunciada na nossa casa, edemoraria para que todas fossem limpas.Pisei forte ao subir a escada para queouvissemquesemdúvidaeuestavasubindo,mas quando cheguei ao patamar meuspassossetornaramtãosuavesquantoosdeJonas,queestavaatrásdemim.

Constance tinha limpado o quarto ondeele estava vivendo. Parecia bem vazioporque ela só fizera tirar as coisas; elanãotinhanadaparapôrdevoltaporqueeutinhacarregado tudo para o sótão. Sabia que asgavetas da cômoda estavam vazias, e oguarda-roupa, e as estantes de livros. Nãohaviaespelho,eumrelógioquebradoeumacorrenteamassadajaziamsozinhosemcimadacômoda.Constancetinhatiradoaroupade cama molhada, e eu imaginava que ela

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tivesse secado e virado o colchão porque acama tinha sido forrada novamente. Ascortinas compridas sumiram, talvez paraseremlavadas.Eleestiveradeitadonacama,pois estava desarrumada, e o cachimbo,aindaqueimando,estavanamesaaoladodacama; supus que estivesse deitado aliquandoConstanceochamoupara jantar, emepergunteiseeleteriapercorridocomosolhosoquartoalteradodenovoedenovo,tentando achar algum objeto familiar, naesperança de que talvez o ângulo da portadoguarda-roupaoudalâmpadanotetolhetrouxesse tudo de volta. Fiquei sentidaporque Constance teve de virar o colchãosozinha;emgeraleuajudava,mastalvezeletivesseaparecidoeseoferecidoparavirá-loporela.Elatinhaatélevadoumpireslimpo

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paraocachimbodele;nossacasanãotinhacinzeiros, e quando ele estava tentandoachar lugares onde deixar o cachimboConstancepegouumpardepires lascadosnaprateleiradadespensaeosofereceuparaqueeleapoiasseocachimbo.Ospireseramcor-de-rosacomfolhasdouradasnaborda:eram do jogo mais antigo de que eu melembrava.

“Quem usava?”, perguntei a Constancequandoelaos levouparaacozinha. “Ondeestãoasxícarasdeles?”

“Nuncaosviemuso;sãodeantesdeeuvirparaacozinha.Umabisavócomproucomodote e eles foram usados e quebrados esubstituídos e acabaram guardados naprateleiramaisaltadadespensa;temsóessespiresetrêspratosdejantar.”

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“Eles têmde ficarnadespensa”, reclamei.“Nãocirculandopelacasa.”

Constance os dera a Charles e agoraestavam espalhados, em vez de passaremseus tempinhos guardados decentementenumaprateleira.Umestavanasaladevisitase outro na sala de jantar e um, cogitei, noescritório. Não eram frágeis, pois o queestava no quarto agora não tinha rachadoapesardeocachimbosobreeleestaraceso.Soube o dia inteiro que acharia algo ali;arrasteiopireseocachimbodamesaparaacesta de lixo e eles caíram suavemente emcimados jornaisque elehavia trazidoparacasa.

Estava refletindo sobre meus olhos; umdosmeusolhos—oesquerdo—via tudodouradoeamareloelaranja,eooutroolho

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viatonsdeazulecinzaeverde;vaiverqueumolhoeraparaaluzdodiaeooutroeraparaanoite.Setodasaspessoasdomundoenxergavam cores diferentes a partir deolhos diferentes talvez ainda houvesseinúmerascoresnovasasereminventadas.Eutinha ido até a escada para descer antes delembrareterdevoltarparalavarepentearocabelo. “Porquevocêdemorou tanto?”, elequestionou quando me sentei à mesa. “Oqueandoufazendoláemcima?”

“Você faz um bolo pra mim com glacêrosa?”, pedi a Constance. “Com folhasdouradas nas bordas?O Jonas e eu vamosdarumafesta.”

“Talvezamanhã”,disseConstance.“Nós vamos ter uma longa conversa

depoisdojantar”,anunciouCharles.

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“Solanumdulcamara”,eudisseparaele.“Oquê?”,eledisse.“Doce-amarga”, explicou Constance.

“Charles,porfavor,deixaissoparadepois.”“Paramim,chega”,eledeclarou.“Constance?”“Poisnão,tioJulian?”“Limpei o meu prato.” Tio Julian achou

uma migalha de bolo de carne noguardanapo e a enfiou na boca. “O que eutenhoagora?”

“Quemsabeumpoucomais,tioJulian?Éumprazervervocêcomtantoapetite.”

“Eume sinto bemmelhor hoje.Nãomesentiatãodispostohádias.”

FiqueicontenteportioJulianestarbemesabia que ele estava feliz por ter sido tãoindelicado com Charles. Enquanto

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Constance cortava outra fatia pequena debolodecarne,tioJulianolhavaparaCharlescomumbrilhomalignonosvelhosolhos,epercebique ia fazerumcomentário ferino.“Rapazinho”, ele por fim começou, masCharlesderepentevirouacabeçaparaolharocorredor.

“Estou sentindo cheiro de queimado”,disseCharles.

Constance parou e ergueu a cabeça e sevirouparaaportadacozinha.“Éofogão?”,ela disse e se levantou rápido para ir àcozinha.

“Rapazinho…”“Sem dúvida tem alguma coisa

queimando.”Charlesfoiolharnocorredor.“Dá para sentir daqui”, ele anunciou. Meperguntei para quem ele achava que estava

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falando:Constance estava na cozinha e tioJulianpensavanoque iriadizer, e euhaviadeixado de escutar. “Está com cheiro dequeimado”,disseCharles.

“Nãoéofogão.”ConstanceficounaportadacozinhaeolhouparaCharles.

Charles seviroue seaproximoudemim.“Se foi alguma coisa que você fez…”, eledisse.

Eu ri porque estava claro que Charlestinhamedodesubireseguirafumaça;entãoConstance disse, “Charles… o seucachimbo…” e ele virou e correu escadaacima. “Eu pedi tanto a ele”, Constancedeclarou.

“Será que daria início a um incêndio?”,pergunteiaela,eentãoCharlesberrouládecima, berrou, pelo que ouvi, com o som

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exato de um gaio-azul no bosque. “É oCharles”, eu disse educadamente aConstance, e ela correu até o corredor eolhou para cima. “Era isso?”, indagou,“Charles,eraisso?”

“Fogo”, Charles anunciou, tropeçandoescada abaixo, “Corre, corre: a porcaria dacasa está pegando fogo”, ele gritou na caradeConstance,“evocênãotemtelefone.”

“Meus papéis”, disse tio Julian. “Tenhoquejuntarmeuspapéiselevarparaumlugarseguro.”Ele se impeliu contra abeiradadamesaparaafastaracadeira.“Constance?”

“Corre”,mandouCharles, agoranaportada frente, brigando com a tranca, “corre,idiota.”

“Não tenho corrido muito nos últimosanos,rapazinho.Nãovejomotivoparaessa

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histeria;dátempodeeujuntarmeuspapéis.”AgoraCharlesseguravaaportaabertaese

virou no umbral para chamar Constance.“Nãotentecarregarocofre”,eledisse,“põeo dinheiro num saco. Eu volto assim queconseguir socorro. Não entra em pânico.”Ele correu, e o ouvíamos gritar, “Fogo!Fogo! Fogo!” ao correr em direção aovilarejo.

“SantoDeus”,exclamouConstance,quaseachando graça. Em seguida, segurou acadeiradetioJulianparaajudá-loairparaoquarto, e eu entrei no meu quarto e olheipara o segundo andar. Charles deixara aportadoquartodenossopaiaberta,eeuviomovimentodofogoládentro.Ofogoardeparacima,pensei;vaiqueimarascoisasdelesnosótão.Charlestambémdeixouaportada

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frente aberta, e um fio de fumaça descia aescada e avançava lá para fora. Não via amenornecessidadede agir com rapidezoucorrer aos berros pela casa porque o fogonão parecia se apressar. Me perguntava sepoderia subir a escada e fechar a porta doquarto de nosso pai e manter o fogo ládentro,integralmentepertencenteaCharles,mas quando comecei a subir os degraus vium dedo de chama se esticar para tocar otapete do corredor e um objeto pesado seespatifounoquartodenossopai.AgoranãohaverianadadeCharlesali;atéocachimbodeviatersidoconsumido.

“Tio Julian está juntando a papelada”,Constance explicou, entrando no corredorparaficaraomeulado.EstavacomoxaledetioJuliannobraço.

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“A gente vai ter de sair”, constatei. Sabiaque ela estava assustada, então disse, “Agente pode ficar na varanda, atrás dasvideiras,naescuridão”.

“Nós tínhamos arrumado tudo outro diamesmo”, ela disse. “Não tem o direito depegarfogo.”Elacomeçouatremercomoseestivesse zangada, e eu segurei suamãoe aconduzi pela porta da frente e assim queviramos para trás paramais uma olhada asluzes surgiram na rampa de carros com obarulho repulsivo das sirenes e fomosdetidas na soleira da porta, sob a luz.Constanceencostouorostoemmimparaseesconder, e então apareceu Jim Donell, oprimeiroasaltardocaminhãodebombeirose subir a escada correndo. “Saiam docaminho”, ele ordenou, e nos empurrou e

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entrounanossacasa.GuieiConstancepelavaranda, rumo ao canto onde as videirascresciamemabundância,eelasedirigiuaocantinho e se apertou contra as videiras.Segurei sua mão com força, e juntasassistimosànumerosainfantariadehomensatravessando o umbral de nossa porta,arrastando asmangueiras, levando sujeira econfusãoeperigoparadentrodenossacasa.Maisluzessurgiramnarampaesubiramosdegraus, e a frente da casa ficou branca epálida e desconfortável por estar tãoclaramente visível; nunca havia sidoiluminada. O barulho era demais para euouvi-lo todo ao mesmo tempo, mas emalgum lugar do barulho estava presente avoz de Charles, ainda incessante. “Pega ocofrenoescritório”, ele repetiamilharesde

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vezes.A fumaça se espremia porta afora,

passando por entre os homenzarrões queavançavam porta adentro. “Constance”,sussurrei,“Constance,nãoolhaparaeles.”

“Eles estãome vendo?”, ela sussurrou devolta.“Temalguémolhando?”

“Eles estão todos olhando o fogo. Ficabemquietinha.”

Olhei com cuidado por entre as videiras.Haviaumalongafiladecarroseocaminhãode bombeiros do vilarejo, todosestacionadosomaispertopossíveldacasa,etodo mundo do vilarejo estava ali,levantandoacabeçaeobservando.Vicarasrisonhas e carasquepareciamassustadas, eentãoalguémbradou,bempertinhodenós,“Easmoças,eovelho?Alguémviu?”.

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“Elesforamavisadosváriasvezes”,Charlesberroudealgumlugar,“elesestãobem.”

Tio Julian manejava a cadeira de rodasbem o suficiente para sair pela porta dosfundos, pensei, mas o fogo não parecia seaproximar da cozinha ou do quarto de tioJulian; eu via as mangueiras e ouvia oshomensgritarem,eestavamtodosnaescadae nos quartos do segundo andar com vistaparaafrentedacasa.Eunãopoderiacruzaraportadafrente,emesmosepudesselargarConstancealinãoteriacomodaravoltaatéa porta dos fundos sem descer os degraussobaluz,comtodosassistindo.“TioJulianficou assustado?”, murmurei paraConstance.

“Acho que ele ficou irritado”, ela disse.Poucosminutosdepoiscontinuou,“Agente

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vai ter que esfregar umbocadopara ohallficar limpo outra vez”, e suspirou. Fiqueisatisfeita porque ela pensava na casa e seesqueciadaspessoasalifora.

“EoJonas?”,disseaela;“cadêele?”Percebi que ela dava um leve sorriso na

escuridão das videiras. “Ele também ficouirritado”, ela disse. “Saiu pela porta dosfundos quando eu levei o tio Julian paradentroparaelepegarospapéis.”

Estávamosbem.TioJulianerabemcapazde esquecerquehaviaum incêndio caso seinteressasse pela papelada, e praticamentenãohaviadúvidadequeJonasassistiasobassombras das árvores.Quando terminassemde apagar o incêndio deCharles eu levariaConstance de volta para dentro epoderíamos começar a limpar a casa de

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novo. Constance estava mais sossegada,embora houvesse um número cada vezmaior de carros subindo a rampa e otamborilar interminável de pés indo evoltandodoumbraldenossaporta.TirandoJim Donell, que usava um capacete que oproclamava “Chefe”, era impossívelidentificar qualquer outra pessoa, assimcomo não era possível ligar um nome anenhuma das caras diante de nossa casa,olhandoparacimaerindodoincêndio.

Tenteipensarcomclareza.Acasapegavafogo;havia fogodentrodenossa casa,masJimDonell eosoutroshomens, anônimos,de capacete e capas de chuva curiosamentetinham capacidade de destruir o fogo quepercorria os ossos de nossa casa. Era oincêndio deCharles.Quando ficava atenta

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especialmenteaofogoeuconseguiaouvi-lo,um ruído quente cantarolado lá em cima,mas acima e em tornodele, extinguindo-o,havia as vozes dos homens lá dentro e asvozes das pessoas assistindo de fora e obarulho distante de carros na rampa. Aomeulado,Constanceestavaquieta,àsvezesolhando para os homens que entravam nacasa,masdemodogeraltampandoosolhoscomasmãos;estavaagitada,pensei,masnãocorria nenhum risco. Vez por outra davapara ouvir uma voz se sobrepor as outras;Jim Donell berrava uma instrução oualguémnamultidãobradava. “Porquenãodeixar queimar?”, uma voz feminina dissebem alto, aos risos; e “Pega o cofre noescritóriodoprimeiroandar”,eraCharles,asalvoentreopovodafrente.

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“Por que não deixar queimar?”, amulherinsistia em gritar, e um dos homensmisteriosos que entrava e saía pela nossaportadafrenteseviroueacenoueabriuumsorriso. “Nós somos os bombeiros”, elejustificou,“nóstemosqueapagar.”

“Deixaqueimar”,amulhergritou.A fumaça estava em todo lugar, densa e

feia.Às vezes, quando eu olhava, os rostosdaspessoaseramturvadospelafumaça,eelavinha da porta da frente em assustadorasondas. Uma hora aconteceu um colapsodentro da casa e as vozes falavam rápido ecom urgência, e os rostos ali fora serevelavam felizes na fumaça, as bocasabertas. “Pega o cofre”, Charles gritava emdesespero, “uns dois ou três de vocês têmque ir pegar o cofre no escritório; a casa

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inteiravaiexplodir.”“Deixaqueimar”,amulhergritou.Estavacomfomeequeriameujantar,eme

perguntavaquantotempopoderiamfazeroincêndio durar antes de apagá-lo e irememboraeConstanceeeupodermosvoltarlápara dentro. Um ou dois dos meninos dovilarejomargeava a varanda, perigosamentepróximo de onde estávamos, mas olhavaapenas para dentro, não para a varanda, etentavaficarnapontadospéseveralémdosbombeirosedasmangueiras.Estavacansadae queria que aquilo tudo acabasse. Percebientão que a luz diminuía, os rostos nogramadoestavammenosnítidos,eumnovotom se apossava do barulho; as vozes ládentro pareciam mais firmes, menosríspidas,quasesatisfeitas,easvozesdefora

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estavammaisbaixas,edecepcionadas.“Estáseapagando”,alguémdisse.“Sobcontrole”,outravozacrescentou.“Mas causou muito estrago.” Houve

risadas.“Semdúvidafezumabagunçanessacasavelha.”

“Devia ter sido destruída pelo fogo anosatrás.”

“Ecomelasdentro.”Referem-seanós,pensei,aConstanceea

mim.“Então...alguémviuelas?”“Não demos essa sorte. Os bombeiros

botaramelasparafora.”“Quepena.”Aluzestavaquaseapagada.Aspessoasao

ar livre agora estavam à sombra, os rostosestreitoseescuros,comapenasosfaróisdos

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carros a iluminá-los; vi o lampejo de umsorriso, e em outro ponto uma mãolevantada para acenar, e as vozescontinuaramalamentar.

“Estáquaseacabado.”“Beloincêndio.”Jim Donell saiu pela porta da frente.

Todos o reconheciam por causa dotamanho e do capacete que dizia CHEFE.“Digalá,Jim”,alguémberrou,“porquevocênãodeixouqueimar?”

Ele ergueu as mãos para calar todomundo. “O incêndio acabou, pessoal”,anunciou.

Com muito cuidado, ele levantou osbraçosetirouocapacetequediziaCHEFEe,com todos observando, caminhou devagarpelos degraus e foi ao caminhão de

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bombeiros e pôs o capacete no banco dafrente. Em seguida se curvou, procurandoatentamente, e por fim, com todosobservando,pegouumapedra.Emsilêncioabsoluto ele virou lentamente e entãolevantou o braço e lançou a pedra contraumadasjanelasgrandesdasaladevisitasdenossamãe.Ummurodegargalhadassurgiue cresceu atrás dele e então, primeiro osgarotos nos degraus e depois os outroshomenseporfimasmulhereseascriançaspequenas, semoveramcomoumaondaemdireçãoànossacasa.

“Constance”,chamei,“Constance”,maselatampavaosolhoscomasmãos.

A outra janela da sala de visitas seestilhaçou,destavezdedentroparafora,eviquefoidestruídapelalumináriaquesempre

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ficava ao lado da cadeira de Constance nasaladevisitas.

Sobrepondo-se a tudo isso, o maishorrível, estava a gargalhada. Vi uma dasestatuetas de Dresden ser atirada e sequebrar no parapeito da varanda, e outracaiuenãosequebroueroloupelogramado.EscuteiaharpadeConstanceserderrubadacomumlamentomusical,eosomdoqueeusabia se tratar de uma cadeira sendoesmagadacontraaparede.

“Escutem”, Charles disse de algum lugar,“será que alguns de vocês não podem meajudarcomestecofre?”

Logo depois, em meio aos risos, alguémcomeçou, “Merricat, disse Constance, vocênãoquerumaxícaradechá?”.Eraritmadaepersistente.Soua lua,pensei,por favorme

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deixeseralua.Entãoescuteiobarulhodospratos se quebrando enaquele instantemedei conta de que estávamos diante dasjanelas grandes da sala de jantar e elesestavamchegandobemperto.

“Constance”, eu disse, “a gente tem quefugir.”

Ela fez que não, o rosto coberto pelasmãos.

“Daqui a pouquinho eles acham a gente.Porfavor,Constancequerida;fogecomigo.”

“Nãoposso”,eladisse,elogoaliaonossolado, da janela da sala de jantar, um berroemergiu, “Merricat, disse Constance, vocênãoquerirdormir?”,epuxeiConstanceumsegundo antes de a janela se quebrar;imaginei que tivessem atirado uma cadeiranela, talvezacadeiradasalade jantaronde

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nosso pai se sentava e Charles se sentava.“Corre”,eudisse,incapazdeficarquietanomeiode toda aquela barulheira, e puxandoConstance pela mão eu avancei rumo aosdegraus. Quando ficamos sob a luz elajogou o xale de tio Julian no rosto paraescondê-lo.

Umamenininhasaiupelaportada frentecarregandoalgumacoisa,eamãe,logoatrás,segurou-apelapartedetrásdovestidoedeutapasemsuasmãos.“Nãoenfiaessetroçonaboca”, amãe berrou, e amenininha largouum punhado dos biscoitos condimentadosdeConstance.

“Merricat,disseConstance,vocênãoquerumaxícaradechá?”

“Merricat,disseConstance,vocênãoquerirdormir?”

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“Ah não, disse Merricat, você vai meenvenenar.”

Tínhamos de descer os degraus e entrarno bosque para ficarmos seguras; não eralonge,masos faróisdoscarros iluminavamogramado.EumeperguntavaseConstanceescorregariaecairiaaocorreremmeioàluz,mas precisávamos chegar ao bosque e nãohavia outro jeito. Hesitamos perto daescada, nenhuma de nós ousando ir emfrente, mas as janelas estavam sendoquebradas e lá dentro atiravam nossospratosenossoscoposenossapratariaeatéas panelas que Constance usava paracozinhar; eu me perguntava se meubanquinhonocantodacozinhajáteriasidodestruído. Enquanto permanecíamosimóveis por mais um minuto, um carro

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subia a rampa e mais outro vinha atrás;pararam diante da casa, jogando mais luzsobreo gramado. “Masquediabo, oque éque está acontecendo aqui?”, exclamou JimClarke,saltandodoprimeirocarro,eHelenClarke,dooutro lado,abriuabocae ficouencarandotudo.Gritandoeempurrando,esem nos ver, Jim Clarke cruzou a nossaporta e entrou na nossa casa, “Mas quediabo dos infernos, o que é que estáacontecendoaqui?”,elenãoparavaderepetir,edoladodeforaHelenClarkenãonosviu,apenas ficouolhando fixamenteparanossacasa. “Seusmalucos”, JimClarke berrou ládentro,“seubandodemalucosbêbados.”Odr.Levysaiudosegundocarroeavançouemdireçãoà casa. “Seráque todomundoaquienlouqueceu?”,JimClarkedizialádentro,e

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houveumsurtodegargalhadas. “Vocênãoqueruma xícara de chá?”, alguémgritou ládentro, e eles riram. “Tem que derrubartijoloportijolo”,alguémdisse.

O médico subiu a escadinha correndo enosempurrouparaoladosemolhar.“Ondeestá Julian Blackwood?”, perguntou a umamulherjuntoàporta,eamulherrespondeu,“Estálánocemitério,comaterraaengolir”.

Estava na hora; segurei firme namão deConstance e descemos os degraus comcuidado. Ainda não correria porque temiaque Constance caísse, assim eu a leveidevagar escadinha abaixo; ninguém podianos ver alémdeHelenClarke, e ela estavacontemplando a casa. Às nossas costas,ouviaJimClarkegritar;eletentavafazeraspessoas saírem da nossa casa, e antes de

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chegarmos ao último degrau, escutamosvozesatrásdenós.

“Aíestãoelas”,alguémbradou,eachoquefoiStella.“Aíestãoelas,aíestãoelas,aíestãoelas”,eeucomeceiacorrer,masConstancetropeçou e eles nos cercarampor todos oslados, empurrando e gargalhando etentando se aproximarpara ver.Constancetampava o rosto com o xale de tio Julianpara que não pudessem vê-la, e por uminstante ficamos imóveis, presas pelasensaçãodaspessoasaonossoredor.

“Ponham elas de volta dentro de casa erecomecemoincêndio.”

“Nós arrumamos tudo direitinho paravocês, meninas, como vocês semprequiseram.”

“Merricat,disseConstance,vocênãoquer

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umaxícaradechá?”Durante um minuto terrível pensei que

iriam juntar asmãos e dançar em volta denós, cantando. Vi Helen Clarke ao longe,espremida contra a lateral do carro; elachoravaediziaalgoeemboranãodesseparaescutá-la em meio ao barulho sabia queestavadizendo, “Euquero irpara casa,porfavor,queroirparacasa”.

“Merricat,disseConstance,vocênãoquerirdormir?”

Tentavam não encostar em nós; semprequemeviravaelesrecuavamumpouco;umavez, por entre dois ombros, vi Harler doferro-velho perambulando na varanda denossacasa,catandocoisasecolocando-asdelado numa pilha. Eu me mexi um pouco,segurando firme a mão de Constance, e

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quando recuaram nós saímos correndo derepente,emdireçãoàsárvores,masaesposade JimDonellea sra.Mueller sepostaramdiantedenós, rindo e esticandoos braços,entãoparamos.EumevireiedeiumpuxãoemConstance, e corremos,masStella e osmeninos da família Harris passaram nanossa frente, gargalhando, e os meninosHarris berrando, “Lá no cemitério, com aterraaengolir”,eparamos.Depoismevireiem direção à casa, correndo de novo epuxandoConstanceatrásdemim,eElbertocomerciante e sua esposa gananciosaestavam lá, esticando os braços para nosdeter, quase dançando juntos, e paramos.Entãofuiparaolado,eJimDonellparouànossafrente,eparamos.

“Ah não, disse Merricat, você vai me

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envenenar”,JimDonelldissepolidamente,eeles nos rodearam de novo, fazendo umcírculo e tomando o cuidado de semanteremforadonossoalcance.“Merricat,disseConstance, vocênãoquer irdormir?”Acima de tudo havia a gargalhada,praticamenteabafandoocantoeosgritoseosuivosdosmeninosdafamíliaHarris.

“Merricat,disseConstance,vocênãoquerumaxícaradechá?”

Constanceseseguravaemmimcomumadas mãos e com a outra tampava o rostocom o xale de tio Julian. Percebi umaabertura no círculo ao nosso redor e denovocorriemdireçãoàsárvores,mastodososmeninosHarris estavam lá,umnochãodetantogargalhar,eparamos.Torneiamevirar e corri para a casa, mas Stella se

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adiantou, e paramos. Constance seatrapalhavaeeumeperguntavasecairíamosnochãonafrentedeles,ficaríamosdeitadasali onde poderiam nos pisotear com suasdanças, e fiquei imóvel: não tinha comodeixarqueConstancecaíssenafrentedeles.

“Agora chega”, Jim Clarke disse davaranda. Sua voz não era alta, mas todosescutaram. “Já basta”, ele disse. Houve umbreve silêncio respeitoso, e então alguémdisse, “Lá no cemitério, com a terra aengolir”,eagargalhadaseergueu.

“Escutem o que vou dizer”, pediu JimClarke, levantando a voz, “escutem o quevoudizer.JulianBlackwoodmorreu.”

Então enfim fizeram silêncio. Após uminstanteCharles Blackwood disse domeioda multidão ao nosso redor: “Ela matou

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ele?”.Elesseafastaramdenós,dandopassospequenos e lentos, recuando, até haver umamplo espaço vazio à nossa volta eConstance nitidamente tapando o rostocom o xale de tio Julian. “Elamatou ele?”,CharlesBlackwoodtornouaperguntar.

“Ela nãomatou”, disse omédico, paradona soleira da porta de nossa casa. “Julianmorreu como eu sempre soube quemorreria; faziamuito tempo que ele vinhaesperando.”

“Agora vão embora em silêncio”, JimClarke disse. Começou a pegar as pessoaspelosombros,empurrando-asde levepelascostas, virando-as para seus carros e arampa. “Vão logo”, ele pediu, “Houve umamortenestacasa.”

Osilêncioeratamanho,apesardasmuitas

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pessoas andando pelo gramado e seretirando,queouviHelenClarkelamentar,“CoitadodoJulian”.

Deiumpassocautelosorumoàescuridão,puxando Constance um pouquinho paraque me seguisse. “Coração”, o médicoafirmou da varanda, e eu subi mais umdegrau. Ninguém se virou para nos olhar.Portas de carros bateram suavemente emotoresforamligados.Olheiparatrásumavez.Um grupinho estava parado em tornodomédiconaescadinha.Amaioriadasluzesse voltava para outra direção, descendo arampadecarros.Quandosentiaassombrasdasárvores incidiremsobrenós, fuirápida;mais um passo e entramos. PuxandoConstance, me precipitei embaixo dasárvores, na escuridão; ao sentir meus pés

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deixarem a grama da entrada e tocarem omacio solo musguento da trilha queatravessava o bosque e aomedar conta dequeasárvoresnoscercavam,euestanqueiepus os braços ao redor de Constance.“Acabou tudo”, anunciei, e a apertei comforça.“Estátudobem”,eudisse,“agoraestátudobem.”

Conheciaocaminhonastrevasounaluz.Teveummomentoemquepenseiquebomfoi ter arrumado meu esconderijo e orenovado, pois agora seria aprazível paraConstance.Euacobririadefolhas,comoascrianças de uma história, e a manteria emsegurançaequentinha.Talvezcantasseparaelae lhecontassehistórias; lhetrariafrutascoloridas e amoras e água em um copo defolha.Umdiairíamosàlua.Acheiaentrada

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do meu esconderijo e conduzi Constanceatéláealeveiaocantoondehaviaumapilhanova de folhas e um cobertor. Empurrei-acomdelicadezaatéelasesentaretireioxaledetioJuliandamãodelaeacobricomele.Um ronronado baixinho veio do canto eentendiqueJonasficarameesperandoali.

Pusgalhosnaentrada;mesmoseviessemcom luzes não nos veriam. Não era umaescuridão total; conseguia enxergar asombra que era Constance, e quandoencostei a cabeça vi duas ou três estrelas,brilhando ao longe entre as folhas e osgalhosesobreaminhacabeça.

Uma das estatuetas deDresden de nossamãe sequebrou,pensei, e falei emvoz altaparaConstance,“Voupôrmortenacomidadelestodoseverelesmorrendo”.

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Constance se agitou, e as folhasfarfalharam.“Quenemvocê fezantes?”,elaindagou.

Nós duas nunca tínhamos falado doassunto,nemsequerumavezemseisanos.

“Isso”, respondi após um instante, “quenemeufizantes.”

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E

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m algum momento durante a noiteuma ambulância surgiu e levou tioJulian embora, e me perguntei se

teriamsentidofaltadeseuxale,enroladoemvoltadeConstanceenquantoeladormia.Viasluzesdaambulânciasevirandonarampadecarros,comaluzinhavermelhanoalto,eescuteiosruídosdistantesdapartidadetioJulian, as vozes falando com suavidadedevido àpresençadomorto, e asportas seabrindoefechando.Noschamaramduasou

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trêsvezes,talvezparaperguntarsepoderiamlevartioJulian,massuasvozeserambrandase ninguém entrou no bosque. Sentei àmargemdo riacho,desejando ter sidomaisgentil comtio Julian.Ele acreditaraqueeuestava morta, e agora era ele quem estavamorto; curvem-se diante de nossa adoradaMaryKatherine,pensei,oumorrerão.

A água corria com sonolência naescuridão e eu me perguntava que tipo decasa teríamos agora. Talvez o fogo tivessedestruído tudo e voltássemos no diaseguinte e descobríssemos que os últimosseisanoshaviamsidoqueimadoseelesnosaguardavam,sentadosemtornodamesadasala de jantar esperando Constance lhesservir o jantar. Talvez nos pegássemos nacasaRochester, oumorandonovilarejoou

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emumbarconorioounatorrenoaltodeum morro; talvez o fogo pudesse serconvencidoaserevertereabandonarnossacasaeemvezdissodestruirovilarejo;talvezagora os moradores estivessem todosmortos. Talvez o vilarejo fosse na verdadeum grande jogo de tabuleiro, com osquadradinhosbemdemarcados,eeutivesseconseguido passar a casa em que estavaescrito“Incêndio;volteaoComeço”,eagoraestivesse nos últimos espaços, faltando sómaisumarodadaparachegaremcasa.

ApelugemdeJonascheiravaaqueimado.Hoje era odiadeHelenClarke vir para ochá,mashojenãohaveriachá,poisteríamosde arrumar a casa, embora não fosse o dianormal de arrumação da casa. Queria queConstance tivesse preparado sanduíches

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paralevarmosaoriacho,emeperguntavaseHelenClarketentariavirparaocháapesardacasanãoestarpronta.Resolviquedaliemdianteeunãoteriapermissãoparaentregarxícarasdechá.

Quando começou a clarear ouviConstancesemexernas folhase fuiparaomeu esconderijo para estar perto delaquando acordasse.Quando abriu os olhos,olhouprimeiroasárvoressobresuacabeçaedepoisparamim,esorriu.

“Finalmente estamos na lua”, informei aela,eelasorriu.

“Achei que tinha sonhado com aquilotudo”,eladisse.

“Aconteceudeverdade”,respondi.“CoitadodotioJulian.”“Elesvieramdenoiteeolevaramembora,

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enósficamosaquinalua.”“Fico contente de estar aqui”, ela disse.

“Obrigadaportermetrazido.”Havia folhas em seu cabelo e terra no

rosto, e Jonas, que me seguira até oesconderijo, a encarava, surpreso; nuncatinhavistoConstancederostosujo.Poruminstante ela ficou em silêncio, sem maissorrir, retribuindo o olhar de Jonas, sedandocontadequeestava suja, e entãoeladisse, “Merricat, o que é que a gente vaifazer?”.

“Primeiroagentetemquearrumaracasa,apesardenãoserodiacerto.”

“Acasa”,eladisse.“Ah,Merricat.”“Nãojanteiontemànoite”,eulhedisse.“Ah, Merricat.” Ela se recostou e se

desvencilhoulogodoxaledetioJulianedas

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folhas; “Ah, Merricat, pobrezinha”, elaexclamou. “Vamos correndo”, e ela seesforçouparaselevantar.

“Primeiroémelhorvocêlavarorosto.”Ela foi ao riacho e molhou o lenço e

esfregou o rosto enquanto eu balançava oxaledetioJulianeodobravapensandoemcomotudoestavaesquisitoedoavessoestamanhã; nunca tinha tocado no xale de tioJulian. Já percebia que as regras seriamdiferentes,maseraestranhodobraroxaledetioJulian.Maistarde,pensei,euvoltariaaliao meu esconderijo e o limparia, e poriafolhasnovas.

“Merricat,vocêvaimorrerdefome.”“Temos que ficar de olho”, expliquei,

segurandoamãodelaparadesacelerá-la.“Agente tem que ir sem fazer barulho e com

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muito cuidado; pode ser que alguns delesaindaestejamporaí,esperando.”

Entreinatrilhaprimeiro,caminhandoemsilêncio, com Constance e Jonas atrás demim.Constancenãopisavacomasuavidadequeeuconseguia ter,mas fezpouquíssimobarulho e é claro que Jonas não fez ruídonenhum.Tomeiorumoquedavadobosqueaté os fundos da casa, perto da horta, equandochegueiaoslimitesdobosquepareie detive Constance enquanto olhávamoscom atenção se ainda havia alguém porperto. Em um primeiro instante vimosapenas a horta e a porta da cozinha,exatamente comoantes, e entãoConstanceperdeuofôlegoedisse,“Ah,Merricat”,comum gemidinho, e eu fiquei perfeitamenteimóvel, pois a parte de cima de nossa casa

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haviasumido.Lembreiquetinhaficadoparadaolhando

nossacasacomamornavéspera,epensadoem como sempre tinha sido tão alta,alcançandoasárvores.Hojeacasaterminavana soleira da porta da cozinha em umpesadelo de madeira negra e retorcida; viparte da moldura de uma janela aindaamparandoavidraçaquebradaepensei:essaeraaminhajanela;euolhavaporessajanelaquandoestavanomeuquarto.

Nãohavianinguémali,enenhumbarulho.Caminhamos juntas bem devagar emdireçãoàcasa,tentandoentendersuafeiurae ruína e vergonha. Percebi que as cinzastinham caído entre as plantas da horta; aalfaceteriadeserlavadaparaqueeupudessecomê-la,alémdostomates.Ofogonãofora

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para aquele lado, mas tudo, a grama e asmacieiraseobancodemármoreno jardimdeConstance,tinhaumarfumeganteetudoestava sujo. À medida que nosaproximávamos da casa víamos com maisclareza que o fogo não havia atingido otérreo, mas havia se contentado com osquartos e o sótão. Constance hesitou naportadacozinha,masjáaabriramilharesdevezesantesesemdúvidaelareconheceriaotoque de sua mão, então ela pegou oferrolho e o levantou. A casa pareceuestremecerquandoelaabriuaporta,emboramais umabrisa dificilmente fosse capaz deesfriá-laagora.Constancetevedeempurrara porta para abri-la, mas nenhuma vigaqueimadadespencou,enãohouve,comoeumeioque imaginei quehaveria, uma súbita

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precipitação do todo, como se a casa,aparentemente sólida mas na verdade feitaapenas de cinzas, pudesse se dissolver comumtoque.

“Minhacozinha”,Constancedisse.“Minhacozinha.”

Ela parou na porta, observando. Penseiquedealgummodonãotínhamosachadoocaminho certo no meio da noite, que dealgum modo tínhamos nos perdido evoltado por meio da brecha errada notempo, ou a porta errada, ou o conto defadas errado. Constance pôs a mão nobatentedaportaparaseequilibrar,erepetiu,“Minhacozinha,Merricat”.

“Meubanquinhocontinuaali”,constatei.Oobstáculoquedificultavaaaberturada

portaeraamesadacozinha,caídade lado.

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Endireitei-a e fomos lá para dentro. Duasdas cadeiras foram quebradas, e o chãoestava um horror, com pratos e coposestilhaçadosecaixasdecomidadestruídasepapéis das prateleiras rasgados. Potes degeleiaecaldaeketchuptinhamsidoatiradoscontra a parede. A pia em que Constancelavava a louça estava cheia de vidrosquebrados, como se copo atrás de copotivesse sido jogado ali metodicamente, umseguido do outro. Gavetas de prataria eutensílios de cozinha foram puxados equebrados na mesa e nas paredes, e apratariaqueestavanacasahaviageraçõesdeesposas dos Blackwood estava torta eespalhada pelo chão. Toalhas de mesa eguardanapos embainhados pelas mulheresda famíliaBlackwood e lavados e passados

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inúmeras vezes, remendados e acarinhados,foram arrancados do aparador da sala dejantarearrastadosatéacozinha.Pareciaquetodaa riquezaeos tesourosescondidosdenossa casa haviam sido descobertos erasgados emaculados; vi pratos quebradosque tinham saído das prateleirasmais altasdo armário da cozinha, e nosso açucareiropequenocomrosasestavapraticamenteaosmeuspés, as asasdesaparecidas.Constanceseabaixouepegouumacolherdeprata.“Éaestampa que foi usada no casamento danossaavó”,eladisse,epôsacolheremcimadamesa.Emseguida,falou“Asconservas”ese virou rumo ao porão; a porta estavafechada, e eu esperava que talvez não astivessem visto, ou que talvez não tivessemtido tempo de descer a escada. Constance

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escolheubemondepisareabriuaportadoporãoeolhouparabaixo.Penseinospotesemais potes tão belamente conservados emmontes de cacos grudentos no porão, masConstance desceu um ou dois degraus edeclarou,“Não,estátudobem:nãotocaramem nada aqui”. Ela fechou a porta e abriucaminhoatéapiaparalavarasmãosesecá-las num pano de prato pego do chão.“Primeiro,seucafédamanhã”,eladisse.

Jonassesentounaentradasobaluzdosolcadavezmaisforte,olhandoacozinhacomassombro; chegou a levantar os olhos paramimumavez,emepergunteiseeleachavaque Constance e eu tínhamos feito aquelabagunça. Vi uma xícara que não estavaquebrada, peguei e coloquei em cima damesa, e então pensei em procurar mais

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objetosquepoderiamterescapado.LembreiqueumadasestatuetasdeDresdendenossamãehaviasesalvadoaorolarpelogramadoemepergunteisetinhaseescondidobemesepreservado;euaprocurariamaistarde.

Nada estava em ordem, nada foraplanejado; não era um dia qualquer.Constance foi ao porão e voltou com osbraçoscheios. “Sopade legumes”,eladisse,quase cantando, “e geleia de morango, ecanja de galinha, e bife em salmoura.” Elaarrumouos potes namesa da cozinha e sevirou devagar, olhando para o chão.“Pronto”, disse enfim, e foi ao canto pararecolher uma panelinha de molho. Então,numasacadarepentina,largouapanelinhaefoi à despensa. “Merricat”, ela chamou emmeio a risos, “eles não viram a farinha no

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barril.Nemosal.Nemasbatatas.”Acharam o açúcar, pensei. O assoalho

estavaarenosoepraticamentevivosobmeuspés, e eu pensei é claro; é claro que iriamprocuraroaçúcaresedivertiràbeça;vaiverquetinhamjogadopunhadosdeaçúcarunsnos outros, berrando, “Açúcar Blackwood,açúcarBlackwood,querprovar?”.

“Eles mexeram nas prateleiras dadespensa”, Constance prosseguiu, “noscereaisenostemperosenosenlatados.”

Caminhei lentamente pela cozinha,observando o chão. Imaginei queprovavelmentetivessemderrubadocoisasàsbraçadas,vistoquelatasdecomidaestavamespalhadaseamassadascomoseatiradasaoar, e as caixas de cereais e chás e biscoitosamassadassobospéseabertaspelosrasgos.

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As latas de temperos estavam todas juntas,jogadas em um canto, fechadas; imagineiainda sentir o cheiro fraco dos biscoitoscondimentadosdeConstancee emseguidavialgunsdeles,esmigalhadosnochão.

Constance saiu da despensa carregandoumpão. “Olhasóoqueelesnãoacharam”,ela disse, “e tem ovo e leite e manteiga nageladeira.”Comonão tinhamencontradoaporta do porão, não tinham encontrado ageladeira logo ali dentro, e fiquei contentepor não terem descoberto os ovos paramisturá-losàbagunçadochão.

Deumasóvezvitrêscadeirasquebradaseaspusno lugarque lhescabia,emvoltadamesa. Jonas estava acomodado no meucanto, no meu banco, nos observando.Tomeicanjadegalinhaemumaxícarasem

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asa e Constance lavou uma faca paraespalharmanteiganopão.Apesardenãoternotadonaquelahora,otempoeaestruturasistemáticadenossosdiaspassadoshaviamterminado; não sei quando achei as trêscadeiras e quando comi o pão commanteiga,seacheiascadeirasedepoiscomipãoousecomiprimeiroouatésefizasduascoisasaomesmotempo.Constancesevirouderepenteelargouafaca;sedirigiuàportafechadadoquartodetioJulianeentãodeumeia-volta, sorrindo de leve. “Tive aimpressãodeouvireleacordar”,eladisse,etornouasesentar.

Ainda não tínhamos saído da cozinha.Ainda não sabíamos quanto da casa nosrestavaouoquetalveznosaguardasseatrásdas portas da sala de jantar e do corredor.

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Ficamos na cozinha, em silêncio, grataspelascadeiraseacanjadegalinhaeosolqueentrava pela porta, e ainda despreparadasparairemfrente.

“O que é que eles vão fazer com tioJulian?”,perguntei.

“Vão fazer um funeral”, Constanceexplicoucomtristeza.“Vocêse lembradosoutros?”

“Euestavanoorfanato.”“Eles me deixaram ir aos funerais dos

outros. Eu lembro. Vão fazer um funeralpara o tio Julian, e os Clarke vãocomparecer,eosCarrington,ecertamenteapequena sra. Wright. Vão trocar palavrassobre a tristeza que estão sentindo. Vãoficarolhandoseagenteestálá.”

Euossentiolhandoseagenteestava láe

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estremeci.“Vãoenterrá-lojuntocomosoutros.”“Euqueriaenterraralgumacoisapelo tio

Julian”,declarei.Constancesecalou,observandoosdedos

inertese longossobreamesa.“OtioJulianmorreu, e os outros”, ela concluiu. “Boaparte da nossa família se foi, Merricat; sórestouagente.”

“Jonas.”“Jonas.Agoraagentevaisetrancafiarmais

doquenunca.”“MashojeéodiaemqueaHelenClarke

apareceparaochá.”“Não”,elarespondeu.“Denovonão.Não

aqui.”Enquanto ficássemos ali quietas na

cozinhaseriapossíveladiaraverificaçãodo

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resto da casa. Os livros da bibliotecacontinuavam na prateleira, intocados, e euimaginei que ninguém tivesse sentidovontadedetocarnoslivrosquepertenciamàbiblioteca;haviamulta,afinaldecontas,peladestruiçãodebensdabiblioteca.

Constance, que sempre dançava, agoraparecia não querer nem se mexer; ficousentada à mesa da cozinha com as mãosesticadasàsuafrente,semolharadestruiçãoaoredor,equasesonhando,comosenuncativesse acreditado que havia acordadonaquela manhã. “Temos que arrumar acasa”,eulhedisseemtomrelutante,eelamelançouumsorriso.

Quando senti que não poderia maisesperá-la,disse,“Voudarumaolhada”,emelevanteiefuiatéaportadasaladejantar.Ela

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me observou, imóvel. Ao abrir a porta dasala de jantar senti o odor chocante deumidadeemadeiraqueimadaedestruição,evidro das janelas largas caído no chão e oaparelho de chá de prata derrubado doaparador e transformado em figurasgrotescas, irreconhecíveis. As cadeirastambémestavamquebradas;melembravadeterempegadoascadeiraseaslançadocontraas janelas e paredes. Atravessei a sala dejantar e entrei no hall. A porta da frenteestavaescancarada,eosolmatutinoformavadesenhos no chão do hall, encostando noscacos de vidro e tecidos rasgados; passadoumminutoreconhecinopanoacortinadasala de visitas que nossa mãe fizera comquatrometrosde comprimento.Nãohavianinguém lá fora; fiquei parada diante da

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porta aberta e vi que o gramado estavamarcado por pneus de carros e os pés quehaviamdançado, eporondeasmangueirastinham passado havia poças e lama. Avaranda estava imunda, e me lembrei dapilha organizada de móveis parcialmentequebrados que Harler o sucateiro tinhamontadonanoiteanterior.Fiqueipensandose ele planejara vir hoje com umacaminhoneteerecolhertudooquepudesse,ou se tinha feito a pilha apenas porqueadorava enormes pilhas de objetosquebrados e não resistia a empilhar sucatasempre que achava. Esperei junto à portapara ter certeza de que ninguém meobservavaeentãodesciosdegrauscorrendorumoaogramadoeacheiaestatuetainteiradeDresdendenossamãenolugarondefora

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escondida,nasraízesdeumarbusto;penseiemlevá-laparaConstance.

Ela continuava sentada quietinha à mesada cozinha, e quando pus a estatueta deDresdenàsuafrente,elaacontemplouporum instanteedepoisapegounasmãoseaapertoucontraabochecha.“Foitudoculpaminha”, ela afirmou. “De um jeito ou deoutrofoitudoculpaminha.”

“Euteamo,Constance”,eudisse.“Eeuamovocê,Merricat.”“Evocêpodefazeraquelebolinhoparao

Jonas e para mim? Glacê rosa, com folhasdouradasnaborda?”

Elabalançouacabeçaeporummomentoimaginei que não fosse me responder, eentão ela respirou fundo e se levantou.“Primeiro”, anunciou, “vou limpar esta

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cozinha.”“O que é que você vai fazer com isto

aqui?”,pergunteiaela,tocandonaestatuetadeDresdencomapontinhadodedo.

“Botardevoltanolugardela”,eladisse,efui atrás quando ela abriu a porta docorredorefoidocorredoratéaportadasalade visitas. O corredor estava menosemporcalhadodoqueosquartos,poishaviamenos coisa a estraçalhar, mas haviafragmentos tirados da cozinha, e pisamosemcolheresepratos jogadosali.Entreiemchoquequandochegamosàsaladevisitasevimos o retrato de nossamãe nos olhandograciosamentecomsuasaladestruídaaoseuredor. O acabamento branco de bolo denoiva foi escurecido pela fumaça e pelafuligem e jamais ficaria limpo outra vez;

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gosteideverasaladevisitasaindamenosdoque a cozinha e a sala de jantar, já quesempre a mantínhamos tão limpa, e nossamãeamavaaquelecômodo.EumepergunteiquemtinhaderrubadoaharpadeConstanceemelembreideterouvidoseusomaocair.O brocado de rosas nas poltronas estavarasgadoesujo,manchadopelasmarcasdospés molhados que as chutaram e asestamparamnosofá.Asjanelasdalitambémestavam quebradas, e com a cortinaarrancadaestávamosvisíveisparao ladodefora.

“Achoquedáparafecharaspersianas”,eudisse, enquanto Constance hesitava naporta,semvontadedeavançarsalaadentro.Entrei na varanda pela janela quebrada,pensando que ninguém jamais chegara ali

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daquele jeito, e descobri que era fácildestravar as persianas. Elas eram tão altasquantoasjanelas;originalmente,aintençãoera de que um homem com uma escadafechasse as persianas quando o verãoacabasse e a família fosse para a casa nacidade,mastantosanoshaviamtranscorridodesde que as persianas foram fechadas queosganchostinhamenferrujado,eeupreciseiapenas sacudir as pesadas persianas parapuxar os ganchos da parede da casa.Balanceiaspersianasparafechá-las,massóconseguia alcançar o ferrolho mais baixoparatravá-las;haviamaisdoisferrolhosbemacimadaminhacabeça;talvezumanoiteeufosseali comumaescada,masa travamaisbaixa teria de segurá-las por enquanto.Depois de fechar as persianas de ambas as

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janelas altas da sala de visitas, percorri avaranda e entrei, com formalidade, pelaporta da frente e na sala de visitas ondeagora Constance estava parada nasemiescuridão,semaluzdosol.Constancefoi à cornija da lareira e pôs a estatueta deDresden no lugar sob o retrato de nossamãe, e por um breve minuto o espaçosocômodo escuro se uniu de novo, comodeveria ser, e então se despedaçou parasempre.

Tínhamosdetomarcuidadoaoandarporcausa dos objetos quebrados no chão. Ocofredenossopaiestavaaoladodaportadasaladevisitas,eeurieatéConstancesorriu,jáquenãohaviasidoabertoeeraóbvioquefora impossível levá-lo para além daqueleponto. “Loucura”, disse Constance, que

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tocouocofrecomodedodopé.Nossamãesempreficavacontentequando

aspessoasadmiravamsuasaladevisitas,masagora ninguém poderia se aproximar dasjanelaseolharparadentro,eninguémjamaistornariaavê-la.Constanceeeufechamosaportadasaladevisitasaosairedepoisnãovoltamos a abri-la. Constance esperava aolado da porta da frente enquanto eu ianovamenteàvarandae fechavaaspersianassobre as janelas altas da sala de jantar, eentãoentreietrancamosaportadafrenteeestávamosasalvo.Ocorredorestavaescuro,com duas linhas estreitas de luz do solentrando pelas duas vidraças estreitas naslaterais da porta; podíamos olhar lá foraatravésdovidro,masninguémvialádentro,nem olhando de pertinho, pois o corredor

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estavanaescuridão.Acimadenós,aescadaestava preta e levava às trevas ou a quartosqueimados com, o que era incrível,pontinhosde céuaparecendo.Até agora,otelhado sempre nos escondera do céu,maseunãoachavaquehaviaalgumamaneiradeficarmos vulneráveis do alto, e fechei amente contra a ideia de criaturas aladassilenciosas saindo de árvores para seempoleirarem nas vigas queimadas equebradas de nossa casa, espiando láembaixo. Imaginei que seria sensato fazerumabarricadanaescadacolocandoalgumacoisa—uma cadeira quebrada, quem sabe—nafrentedela.Umcolchão,encharcadoeimundo,estavanomeiodaescada;eraláquehaviam ficado com asmangueiras e lutadoparaofogorecuareestancar.Pareiaopéda

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escada,olhandoparacima,meperguntandoaonde nossa casa teria ido, as paredes eassoalhos e as camas e as caixas de objetosno sótão; o relógio de nosso pai foraconsumidopelofogo,alémdascaixinhasempadrão tartaruga. Sentia o sopro de ar naminhaface;vinhadocéuqueeuenxergava,mas tinha cheirode fumaça e ruína.Nossacasaeraumcastelo, comtorreseabertaaocéu.

“Voltapara a cozinha”,Constancepediu.“Nãopossoficaraqui.”

Assimcomocriançascaçandoconchas,ouduassenhorinhasrevirandofolhasmortasàprocurademoedinhas,arrastávamosospésno chão da cozinha, mexendo no lixo decoisas quebradas a fimde achar algo aindainteiro e útil. Depois de examinarmos a

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cozinha de cabo a rabo e na diagonal,acumulamosumapilhapequenadeobjetosúteissobreamesa,ehaviacoisassuficientesparanósduas.Haviaduasxícarascomasasevárias sem, e meia dúzia de pratos, e trêstigelas.Conseguimossalvartodasaslatasdecomida intactas e as latas de condimentosforam organizadas na prateleira delas.Achamos boa parte da prataria e tambémendireitamos boa parte damelhormaneirapossível e colocamos de volta nas gavetascorretas. Como todas as noivas da famíliaBlackwood tinham levado suas pratarias elouçaseartigosdebanhoemesaparaacasa,sempre tivemos dezenas de facas demanteigaeconchasdesopaepásdebolo;osmelhorestalheresdenossamãeficavamemuma caixa à prova de embaçamento no

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aparador da sala de jantar, mas eles oshaviamencontradoeespalhadonochão.

Uma de nossas xícaras inteiras era verdecomointerioramarelopálido,eConstancedissequeeupoderiaficarcomela.“Nuncavininguémusando”,eladisse.“Imaginoqueaavóouatia-bisavódealguémtenhatrazidoesse jogoparaacasaporque foia louçadocasamento. Antes tinha pratoscombinando.” A xícara escolhida porConstance era branca com flores laranja, eumdospratoscombinavacomela.“Lembrode quando usávamos esses pratos”,Constancedisse;“eleseramospratosdodiaadiaquandoeuerapequenininha.Amelhorlouçanaquelaépocaerabrancacombordasdouradas. Então a mãe comprou novaslouçasmelhores,ealouçabrancaedourada

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passouaserusadanodiaadiaeestespratosfloridosforamparaaprateleiradadespensajuntocomosoutrosconjuntosdosquaissósobrava a metade. Nestes últimos anossempreuseialouçaqueamãeusavanodiaadia, a não ser quandoHelen Clarke vinhatomar chá. Nós vamos fazer as refeiçõesfeitodamas”,eladisse,“usandoxícarascomasas.”

Quandojuntamostudooquequeríamosepoderíamos usar, Constance pegou avassourapesadaeempurroutodooentulhopara a sala de jantar. “Agora a gente nãoprecisa mais ver”, ela disse. Limpou ocorredorparaquepudéssemosirdacozinhaparaaportada frente sematravessara saladejantaredepoisfechamostodasasportasquedavamnasaladejantarenuncamaisas

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abrimos. Pensei na estatueta de Dresdenpequeninaecorajosasoboretratodenossamãena salade visitas escura e lembrei quejamais voltaríamos a espaná-la. Antes deConstancevarrerotecidorasgadoqueeraacortinadasaladevisitaseupediqueelamecortasse um pedaço do cordão queantigamente a abria e fechava, e ela cortouumpedaçocomborladouradanaponta;meperguntavaseseriaoobjetocertoaenterraremhomenagemaotioJulian.

Quando terminamos e Constanceesfregou o piso da cozinha nossa casapareceu limpa e nova; da porta da frente àporta da cozinha tudo estava asseado evarrido. Tantas coisas haviam sumido dacozinha que ela parecia vazia, masConstance pôs nossas xícaras e pratos e

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tigelas na prateleira, e achou uma caçarolapara servir o leite de Jonas, e estávamosbastante seguras. A porta da frente estavatrancada e a porta da cozinha estavatrancadaeaferrolhadaeestávamossentadasàmesatomandoleiteemnossasduasxícarase Jonas bebia de sua caçarola quandoouvimos batidas na porta da frente.Constance correu para o porão e eu mecontivesóatéteracertezadequeaportadacozinha estava aferrolhada, então fui atrásdela.Nossentamosnaescadadoporão,noescuro, e prestamos atenção. Ao longe, naporta da frente, as batidas continuavam, edepoisumavozchamou,“Constance?MaryKatherine?”.

“É Helen Clarke”, Constance disse numsussurro.

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“Vocêachaqueelaveioparaochá?”“Não.Nuncamais.”Assim como nós duas sabíamos que ela

faria, ela deu a volta na casa chamandonossos nomes. Quando bateu na porta dacozinha,prendemosa respiração,nenhumadas duas se mexendo, já que a metade decima da porta da cozinha era de vidro esabíamosqueelapoderiaverládentro,masestávamossegurasnaescadadoporãoeelanãoconseguiriaabriraporta.

“Constance?MaryKatherine?Vocêsestãoaí dentro?”Elasacudiuamaçanetacomoaspessoas fazemquandoqueremque a portaseabraepensamempegá-ladesprevenidaeentrardefininhoantesqueatravaseajuste.“Jim”, ela chamou, “eu sei que elas estão ládentro.Dáparaverquetemalgumacoisano

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fogão. Você tem que abrir a porta”, elamandou,levantandoavoz.“Constance,vemaquiconversarcomigo;euquerotever.Jim”,ela disse, “elas estão lá dentro e estão meouvindo,euseidisso.”

“Tenho certeza de que elas estão teouvindo”, Jim Clarke concordou. “Deveestardandoparateouvirládovilarejo.”

“Mas eu tenho certeza de que elasentenderammalopessoaldeontemànoite;tenho certeza de que Constance ficouchateada, e eu preciso falar para elas queninguém quis ofender. Constance, meescuta,porfavor.NósqueremosquevocêeaMaryKatherinevenhamparaanossacasaatéagente resolveroque fazer comvocês.Estátudobem,deverdade;vamosesquecertudooqueaconteceu.”

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“Você acha que ela vai derrubar a casa?”,sussurrei para Constance, e Constancebalançouacabeçasemdizernada.

“Jim, acha que dá para você arrombar aporta?”

“Comcertezanão.Deixaasduasempaz,Helen, elas vão sair quando estiveremprontas.”

“Mas Constance leva essas coisas tão asério.Garantoqueelaestáamedrontada.”

“Deixaasduasempaz.”“Nãosepodedeixarasduassozinhas,essa

éapioratitudepossívelparaelas.Euqueroque saiam daí e venham para casa comigo,ondepossocuidardelas.”

“Parece que elas não querem ir”, JimClarkedisse.

“Constance?Constance? Eu sei que você

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estáaídentro;vemabriraporta.”Pensei que poderíamosmuito bembotar

umpanoouumpapelãoparacobrirajanelada porta da cozinha; seria simplesmenteinsuportávellidarcomHelenClarkevoltaemeia espiando e vendo panelas no fogão.Podíamosprender as cortinas emcimadasjanelas da cozinha, e talvez se as janelasfossem todas cobertas pudéssemos ficarquietas em volta da mesa quando HelenClarke viesse bater na porta e nãoprecisássemos nos esconder na escada doporão.

“Vamosembora”,JimClarkepediu.“Elasnãovãoteatender.”

“Maseuquerolevá-lasparacasacomigo.”“A gente fez o que pôde. A gente volta

outrahora,quandoelasestiveremcommais

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vontadedetever.”“Constance? Constance, por favor, me

responde.”Constance suspirou e tamborilou com

irritação e quase sem fazer barulho nocorrimão da escada. “Queria que ela fosselogo”, ela disse no meu ouvido, “a minhasopavaiferver.”

Helen Clarke chamou diversas vezes,dandoavoltanacasaparachegaraocarro,gritando“Constance?Constance?”comosepudéssemos estar em algum lugar dobosque, talvez no alto de uma árvore, oudebaixo das folhas de alface, ou esperandoatrás de um arbusto.Quando escutamos ocarroarrancar,àdistância,saímosdoporãoe Constance apagou o fogo da sopa e eupasseipelocorredoracaminhodaportada

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frente para me assegurar de que tinhammesmo idoemboraedequeaportaestavabem trancada.Vi o carro virar no final darampa e imaginei ainda ser capaz de ouvirHelen Clarke chamar, “Constance?Constance?”.

“Semdúvidaelaqueriatomarochádela”,disseaConstancequandovolteiàcozinha.

“Nós temos só duas xícaras com asas”,disseConstance.“Elanuncamaisvaitomarcháaqui.”

“Que bom que o tio Julian partiu, senãouma de nós teria que usar uma xícaraquebrada.VocêvaiarrumaroquartodotioJulian?”

“Merricat.” Constance se virou do fogãoparame encarar. “O que é que a gente vaifazer?”

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“Nós arrumamos a casa. Temos comida.NosescondemosdaHelenClarke.Oqueéqueagentevaifazer?”

“Ondeéqueagentevaidormir?Comoagentevaisaberquehorassão?Queroupasagentevaiusar?”

“Paraqueagenteprecisasaberquehorassão?”

“Nossacomidanãovaidurarparasempre,nemasconservas.”

“Agentepodedormirnomeuesconderijopertodoriacho.”

“Não. Tudo bem como esconderijo, masvocêprecisadeumacamadeverdade.”

“Euviumcolchãonaescada.Vaiverqueédaminhacamaantiga.Agentepodepuxarprabaixoe lavar edeixar secar ao sol.Umdoscantosestáqueimado.”

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“Ótimo”, disse Constance. Fomos juntasatéaescadaeseguramosocolchãodeumaforma desajeitada; estava repulsivamenteúmido e sujo. Nós o arrastamos, puxandojuntas pelo corredor, com pedacinhos demadeira e vidro grudando nele, econseguimos empurrá-lo pelo chão limpodacozinhadeConstanceatéaporta.Antesdedestrancá-laolheiparaforacomatenção,emesmodeporta aberta saí primeiroparaolharemtodasasdireções,maseraseguro.Puxamos o colchão até o gramado e ocolocamos no sol, perto do banco demármoredenossamãe.

“Tio Julian se sentava bem aqui”,comentei.

“Seriaumbomdia,hoje,paraotioJulianficarsentadoaosol.”

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“Espero que tenha ficado quentinhoquandomorreu.Quemsabenãoselembroudosolporuminstante.”

“Euestavacomoxaledele;esperoqueelenão tenha sentido falta. Merricat, vouplantar alguma coisa aqui, onde ele sesentava.”

“Eu vou enterrar alguma coisa emhomenagem a ele. O que é que você vaiplantar?”

“Umaflor.”Constancesecurvouetocouogramado com delicadeza. “Alguma floramarela.”

“Vai ficar engraçado, bem no meio dogramado.”

“A gente vai saber por que ela está aí, eninguémnuncavaiver.”

“E eu vou enterrar alguma coisa amarela,

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paramanterotioJulianquentinho.”“Mas primeiro, minha Merricat

preguiçosa,vocêvaipegarumpotedeáguaeesfregaro colchãoaté ele ficar limpo.Eeuvoulavarochãodacozinhaoutravez.”

Seríamos muito felizes, pensei. Haviainúmerascoisasparafazer,eumaestruturatotalmentenovadediasparaorganizar,maspensei que seríamos muito felizes.Constanceestavapálida,eaindaentristecidapeloquehaviamfeitocomsuacozinha,mastinha esfregado cada uma das prateleiras elimpado amesa diversas vezes, e lavado asjanelas e o assoalho. Nossos pratosocupavamsuasprateleirascomvalentiaeaslatas e caixas de comida intactas queresgatamos formavam uma fileiraconsiderávelnadespensa.

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“Eu podia treinar Jonas para nos trazercoelhosparaagentefazerensopado”,eulhedisse, e ela riu e Jonas olhou para ela comserenidade.

“Essegatoestátãoacostumadoaviverdebolinho de baunilha e rum e ovoamanteigado que eu duvido que ele sejacapazdepegarumgafanhoto”,eladisse.

“Acho que eu não ia gostar muito deensopadodegafanhoto.”

“Dequalquerforma,agorinhamesmovoufazerumatortadecebola.”

Enquanto Constance lavava a cozinhadescobri uma caixa de papelão pesada quedesmontei com cuidado, e assim obtivevários pedaços grandes de papelão paratamparapartedevidrodaportadacozinha.O martelo e os pregos estavam no galpão

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ondeCharlesBlackwoodosdeixaradepoisde tentar arrumarodegrau estragado, e eupreguei papelão na porta da cozinha até ovidro ser totalmente coberto e ninguémconseguir espiar lá dentro. Preguei maispapelão nas duas janelas da cozinha e oambiente ficou escuro, porém protegido.“Seria mais seguro deixar as janelas dacozinhaficaremsujas”,eudisseaConstance,mas ela ficou chocada e declarou, “Eu nãomorarianumacasacomjanelassujas”.

Quandoterminamosacozinhaestavabemlimpa, mas não brilhava porque haviapouquíssima luz, e percebi que Constancenão estava satisfeita. Ela adorava sol eclaridade e cozinhar em uma cozinhaadoráveleiluminada.“Agentepodedeixaraportaaberta”,sugeri,“seficardeolhoaberto

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o tempo todo. A gente vai ouvir se algumcarropararnafrentedacasa.Quandoder”,eu disse, “vou tentar pensar num jeito deconstruirbarricadasnaslateraisdacasaparaque ninguém consiga dar a volta e chegaraquinosfundos.”

“Tenho certeza de queHelenClarke vaitentardenovo.”

“Em todo caso, ela não tem mais comoespiaraquidentro.”

A tarde se aproximava; mesmo de portaabertaosolseespalhavanochãoapenasumpouco, e Jonas abordou Constance nofogão, pedindo o jantar. A cozinha estavaquentinha e confortável e familiar e limpa.Seria bom uma lareira ali, ponderei;poderíamos nos sentar ao lado do fogo, eentãopenseinão,jápassamospelofogo.

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“Vou láverificar seaportada frenteestátrancada”,anunciei.

A porta da frente estava trancada e nãohavia ninguém lá fora. Quando voltei àcozinha, Constance disse, “Amanhã eulimpo o quarto do tio Julian. Sobrou tãopoucacasaparaagentequeelatodatemqueestarbemlimpinha”.

“Você vai dormir lá? Na cama do tioJulian?”

“Não,Merricat.Euqueroquevocêdurmalá.Éaúnicacamaqueagentetem.”

“Não tenho permissão para entrar noquartodotioJulian.”

Ela ficou quieta por um instante, meolhando com curiosidade, e entãoperguntou, “Mesmo o tio Julian tendomorrido,Merricat?”.

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“Além do mais, eu achei o colchão, elimpei,eeleveiodaminhacama.Queroelenochão,nomeucanto.”

“Como você é boba, Merricat. Dequalquer forma, acho que nós duas vamosdormirnochãohoje.Ocolchãosóvaiestarsecoamanhã,eacamadotioJuliannãoestálimpa.”

“Possotrazergalhosdomeuesconderijo,efolhas.”

“Paraochãolimpodaminhacozinha?”“Maseupegoocobertor,etambémoxale

dotioJulian.”“Vocêvaisair?Agora?Iratélá?”“Não tem ninguém lá fora”, afirmei. “Já

está quase escuro e é bem seguro ir lá. Sealguém aparecer, fecha a porta e tranca; seeu perceber que a porta está fechada eu

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esperoàmargemdoriachoatépodervoltarcom segurança. E eu levo o Jonas parameproteger.”

Corri até o riacho, mas Jonas foi maisveloz e já estava me esperando quandocheguei ao meu esconderijo. Era bomcorrer,ebomvoltardenovoànossacasaeveraportadacozinhaabertaealuzquentede seu interior. Quando Jonas e euentramos, fechei a porta com o ferrolho eestávamosprontosparaanoite.

“É um bom jantar”,Constance anunciou,entusiasmada e feliz por conta do preparodacomida.“Vemcáesenta,Merricat.”Comaportafechadaelatevedeacenderaluzdoteto, e nossos pratos estavam bemorganizadosemcimadamesa.“Amanhãvoutentarlustraraprataria”,eladisse,“eagente

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temquetrazerascoisasdojardim.”“Aalfaceestácheiadecinzas.”“Amanhã, também”, Constance disse,

olhando os quadrados pretos de papelãoque cobriam as janelas, “vou pensar emalgum tipo de cortina que cubra o seupapelão.”

“Amanhã eu vou fazer barricadas naslaterais da casa.Amanhã o Jonas vai pegarum coelho para a gente. Amanhã eu vouestimarparavocêquehorassão.”

Ao longe, na frente de nossa casa, umcarro parou, e nos calamos, trocandoolhares;agora,pensei,agoravamossaberatéquepontoestamosseguras, eme levantei eaveriguei se a porta da cozinha estavaaferrolhada; não dava para olhar para foraatravés do papelão e tinha certeza de que

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não tinham como olhar para dentro. Asbatidas começaramnaportada frente,masnãohavia tempode garantir que ela estavatrancada. Bateram apenas por um instante,como se soubessemque não estaríamos naparteda frentedacasa,eentãoosouvimostropeçando na escuridão ao tentar dar avoltaparachegaraosfundosdacasa.EscuteiavozdeJimClarke,eoutraquelembreiseravozdodr.Levy.

“Não dá para ver nada”, Jim Clarkeconstatou.“Estáumbreusó.”

“Temumafrestadeluzvindodeumadasjanelas.”

Qualdelas,meperguntei;qualdasjanelasaindatinhaumafresta?

“Elasestãoaídentromesmo”, JimClarkeadmitiu.“Nãotemoutrolugarondepossam

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estar.”“Sóquerosaberseelassemachucaramou

seestãodoentes;nãogostodepensarnelastrancadasaíprecisandodeajuda.”

“Eutenhodelevarelasparacasacomigo”,JimClarkeexplicou.

Elesvieramàportadosfundos;suasvozesestavam bem ali, e Constance estendeu amão para mim por cima da mesa; separecessequeconseguiriamespiarládentropoderíamos correr juntas até o porão. “Aporcaria da casa está toda tampada”, JimClarkereclamou,eeupensei,bom,ah,quebom. Tinha me esquecido de que haviatábuas de verdade no galpão; só tinhapensadoempapelão,queerabastantefrágil.

“Senhorita Blackwood?”, o médicochamou, e um deles bateu à porta.

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“SenhoritaBlackwood?Éodr.Levy.”“EJimClarke.MaridodaHelen.AHelen

estámuitopreocupadacomvocês.”“Vocês se machucaram? Estão doentes?

Precisamdeajuda?”“AHelen quer que vocês venham para a

nossacasa;elaestáesperandovocêslá.”“Escuta”, disse o médico, e pensei que a

cara dele estava bemperto do vidro, quaseencostando nele. Falava num tom bastanteamistoso, e sereno. “Escuta, ninguém vaifazer mal a vocês. Somos seus amigos.Viemosatéaquiparaajudare teracertezade que vocês estão bem e não queremosincomodar. A bem da verdade, a gentepromete não incomodarmais, nuncamais,sevocêsdisseremsóumavezqueestãosãsesalvas.Sóumapalavrinha.”

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“Vocêsnãopodemdeixar que as pessoasfiquem se preocupando com vocês”, JimClarkedeclarou.

“Só uma palavrinha”, disse o médico.“Vocêssóprecisamdizerqueestãobem.”

Elesaguardaram;euossentiaencostandoo rosto no vidro, desejosos de enxergar ládentro.Constancemeolhoudoladoopostodamesaedeuumlevesorriso,eeuretribuio sorriso; estávamos bem protegidas e nãoconseguiamenxergarládentro.

“Escutem”,pediuomédico,eelelevantouavozumpouquinho;“escutem,ofuneraldoJulian é amanhã. A gente achou que vocêsiamquerersaber.”

“Já tem ummonte de flores”, JimClarkecontou.“Vocêsadorariamveraquelemontedeflores.Nósmandamosflores,osWright,

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osCarrington.Euachoqueaimpressãoquevocês têm dos amigos mudaria umpouquinhosevissemasfloresquetodosnósmandamosparaoJulian.”

EumepergunteiporquenossaimpressãomudariaumpouquinhocasovíssemosquemmandoufloresaotioJulian.Semdúvidaquetio Julianenterradoem flores, apinhadodeflores,nãolembrariaotioJulianquevíamostodososdias.Talvezoamontoadodefloresesquentasse tio Julianmorto; tentei pensarem tio Julian morto e só consegui melembrardeledormindo.PenseinosClarkeenos Carrington e nos Wright despejandobraçadasdefloressobreocoitadodovelhotioJulian,desamparadamentemorto.

“Vocêsnãovãoganharnadaseafastandodos amigos, sabe? A Helen pediu para eu

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falarparavocês…”“Escuta.”Euossentiaempurrandoaporta.

“Ninguém vai incomodar. Apenas digam,vocêsestãobem?”

“Agentenãovai ficarvoltando, sabe?Osamigostêmlimites.”

Jonasbocejou.Emsilêncio,Constance sevirou, com cuidado e lentidão, tornando aficardefrenteparaseulugaràmesa,epegouum biscoito amanteigado e deu umamordiscadasilenciosa.Tivevontadederiretampei a boca com as mãos; Constancecomer biscoito sem fazer barulho eraengraçado, como uma boneca fingindocomer.

“Droga”, Jim Clarke exclamou. Bateu àporta.“Droga”,repetiu.

“Pelaúltimavez”,disseomédico,“agente

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sabeque vocês estão aídentro;pelaúltimavez,seráquevocêsnão…”

“Ah, vamos embora”, disse Jim Clarke.“Nãovaleapenatodaessagritaria.”

“Escutem”,disseomédico,eimagineiqueestavacomabocanaporta, “umdiadessesvocês vão precisar de ajuda. Vocês vãoadoecer,ousemachucar.Vocêsvãoprecisardeajuda.Aívocêsvãorapidinho…”

“Deixa elas”, Jim Clarke disse. “Vamosembora.”

Ouvi seuspassosdandoa voltana casa eme perguntei se estavam nos ludibriando,fingindo ir embora e então retornando emsilêncio para ficar calados diante de nossaporta, à espera. Pensei em Constancecomendo o biscoito silenciosamente alidentro e Jim Clarke escutando

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silenciosamente lá fora e um calafriozinhopercorreuminhaespinha;talveznuncamaishouvesse outro ruído no mundo. Então ocarro arrancou na frente da casa e oescutamos se afastar e Constance largou ogarfonopratocomumapancadinhaetorneiarespiraredisse,“ParaondevocêachaqueeleslevaramtioJulian?”.

“Para o mesmo lugar”, Constance dissesempensar,“nacidade.Merricat”,eladisse,derepenteerguendoorosto.

“Sim,Constance?”“Euqueriamedesculpar.Fuimáontemà

noite.”Euestava inertee fria,olhandoparaelae

recordando.“Fui muito má”, ela declarou. “Nunca

deviaterlembradoavocêomotivoparaeles

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todosteremmorrido.”“Então não me lembre agora.” Não

consegui estender o braço para segurar amãodela.

“Eu queria que você esquecesse isso.Nunca quis falar disso, nunca, e peçodesculpaporterfalado.”

“Euboteinoaçúcar.”“Eusei.Eusabianaépoca.”“Vocênuncausavaaçúcar.”“Não.”“Entãoboteinoaçúcar.”Constance suspirou. “Merricat”, eladisse,

“agentenuncamaisvaifalardisso.Nunca.”Gelei, mas ela me deu um sorriso

carinhosoeficoutudobem.“Euamovocê,Constance”,eudisse.“Eeuamovocê,minhaMerricat.”

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Jonassesentounochãoedormiuepenseique não deveria ser tão difícil para mim.Constance devia ficar com as folhas e omusgomaciodebaixodocobertor,masnãopodíamossujarochãodacozinhadenovo.Pusmeu cobertor no canto, perto domeubanco, já que era o lugar que eu conheciamelhor,eJonassubiunobancoesesentoulá,olhandoparamim.Constance sedeitounochãopertodofogão;estavaescuro,masdavaparaverapalidezdeseurostodooutrolado da cozinha. “Está confortável?”,perguntei,eelariu.

“Jápasseimuitotemponestacozinha”,eladisse, “mas nunca tinha tentado deitar nochão.Fui tãocuidadosaqueele temdemeacolher,achoeu.”

“Amanhãagentetrazaalface.”

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A

10

ospoucosarotinadenossosdiasfoisemoldandoecomeçouaseparecercom uma vida feliz. De manhã

quando acordava eu ia logo até o corredorparaverseaportadafrenteestavatrancada.Éramosmais ativas nas primeiras horas damanhã porque nunca havia ninguém porperto.Nãotínhamosnosdadocontadeque,comosportõesabertosea trilhaexpostaàutilização pública, as crianças apareceriam;umamanhã fiquei parada ao ladodaporta

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dafrente,olhandopelavidraçaestreita,evicrianças brincando no nosso gramado dafrente.Talvezospaistivessemmandadoqueexplorassem o caminho e averiguassem seera de fato navegável, ou talvez as criançasnão conseguissem resistir a brincar emqualquer lugar; pareciam apreensivasbrincandonafrentedenossacasa,easvozeseram desanimadas. Imaginei que talvez sófingissembrincar,vistoqueeramcriançasedeveriam brincar, mas talvez na verdadetivessem sido enviadas para nos procurar,sutilmente disfarçadas de crianças. Nãoeram muito convincentes, concluí aoobservá-las; seus movimentos eramdesajeitados,enemumaúnicavezolharam,pelo que pude ver, para nossa casa. Eumeperguntei quanto tempo levariam para

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avançar rumo à varanda e apertar suascarinhas contra as persianas, tentando veratravésdasfrestas.Constanceparouatrásdemimeolhouporcimademeuombro.“Sãofilhosdeestranhos”, eu lhedisse. “Elesnãotêmrosto.”

“Têmolhos.”“Finge que são passarinhos. Não nos

enxergam. Eles ainda não sabem, nãoquerem acreditar,mas nuncamais vão nosver.”

“Imaginoqueagoraquejávieramumavez,elesvirãodenovo.”

“Todos os estranhos virão, mas não têmcomo ver aqui dentro. E agora, por favor,preparameucafédamanhã?”

Acozinhaestavasempreescurademanhãaté eu desaferrolhar a porta e abri-la para

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deixarosolentrar.DepoisJonassesentavanaescadinhaeselavavaeConstancecantavaduranteopreparodenossocafédamanhã.Depois do caféme sentava no degrau comJonas enquanto Constance limpava acozinha.

Fazer barricadas nas laterais da casa foimais fácil do que eu imaginava; conseguiterminar em uma noite, com Constancesegurando a lanterna paramim.De ambosos lados de nossa casa havia umponto emque as árvores e os arbustos cresciampróximos de casa, cobrindo a parte dosfundoseestreitandoatrilhaqueeraoúnicojeitodedar a volta.Leveipeçaporpeçadapilhade sucataqueo sr.Harler tinha feitona nossa varanda e amontoei as tábuas emóveisquebradosnospontosmaisestreitos.

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Na verdade não impediria ninguém deentrar, claro; as crianças poderiam escalarfacilmente, mas se alguém tentasseultrapassar,obarulhoeaquedadastábuasquebradas seriam suficientes para termosbastante tempo para fechar e aferrolhar aporta da cozinha. Tinha encontrado umastábuas em volta do galpão e pregadogrosseiramente em cima do vidro da portada cozinha, mas não gostava de colocá-lasnas laterais da casa como barricada, ondequalquer um poderia vê-las e perceberminhafaltadejeito.Talvez,eudisseamimmesma, eu devesse treinar tentandoconsertarodegrauquebrado.

“Do que é que você está rindo agora?”,Constancemeperguntou.

“Estou imaginando que estamos na lua,

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masquenãoé exatamente comoeuachavaqueseria.”

“Mas é um lugar bem feliz.” Constancelevavaocafédamanhãàmesa:ovosmexidosebiscoitostorradosegeleiadeamora-pretaqueela fizeraemalgumverãodourado. “Agente temque trazer omáximode comidapossível”,eladisse.“Nãogostodepensarnahorta esperandoa gente ir lápara colheroquecresceu.Eeumesentiriabemmelhorsetivéssemosmais comida guardada em casa,emsegurança.”

“Vou subir nomeu cavalo alado e trazercanela e tomilho, esmeraldas e cravo,brocadodeouroecouve.”

“Eruibarbo.”Conseguíamos deixar a porta da cozinha

abertaquandoíamosàhorta,poisveríamos

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claramente se alguém se aproximasse dasminhas barricadas e correríamos de voltaparacasasenecessário.Eucarregavaacesta,e pegávamos alface, ainda tingida pelascinzas,erabanete,alémdetomateepepinoe,mais tarde, frutinhasemelões.Emgeral,eucomiafrutaselegumesaindaúmidosdosolo e do ar, mas não gostava de comerquando ainda estavam sujos das cinzas denossacasaincendiada.Boapartedasujeiraeda fuligem tinhavoadoeo ar em tornodahorta estava fresco e limpo, mas a fumaçaestava no chão e imaginei que sempreestaria.

Assim que nos acomodamos comsegurança,ConstanceabriuoquartodetioJulianefezalimpeza.Tirouascobertasdacama, e os lençóis, e os lavou na pia da

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cozinha e os colocou lá fora para secar aosol. “O que é que você vai fazer com apapelada do tio Julian?”, perguntei, e elapousouasmãosnabeiradadapia,hesitante.

“Acho que vou deixar tudo na caixa”, elarespondeuporfim.“Achoquevoucolocaracaixanoporão.”

“Econservá-la?”“Econservá-la.Elegostariadepensarque

ospapéisdeleforamtratadoscomrespeito.E eu não gostaria que o tio Juliandesconfiasse de que os papéis dele nãoforamconservados.”

“Melhor eu ir lá verificar se a porta dafrenteestátrancada.”

As crianças volta e meia estavam lá, nogramado na frente de nossa casa, jogandoseus jogosdecartasesemolharparanossa

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casa, movimentando-se sem jeito comcorridinhas animadas e se estapeando semmotivo. Sempre que eu me assegurava dequeaportadafrenteestavatrancada,olhavase as crianças continuavam lá. Agora eramuito comum eu ver pessoas percorrendonossatrilha,usando-aparairdeumlugaraoutro, colocando os pés onde antigamentesóosmeuspisavam;imagineiqueusassematrilhasemquerer,comosetodostivessemdeatravessá-la uma vez para demonstrar queera possível, mas pensei que somente unspoucos, os odiosos desafiadores, iam alémdaprimeiravez.

PassavaalongatardesonhandoenquantoConstance limpava o quarto de tio Julian;mesentavanaportacomJonasdormindoaomeulado,econtemplavaahortasilenciosae

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segura.“Olha, Merricat”, disse Constance,

aproximando-se com o braço cheio deroupas,“olha,otioJuliantinhadoisternoseumsobretudoeumchapéu.”

“Eleconseguiaficardepé;elemesmonosdizia.”

“Me lembro vagamente dele, anos atrás,saindo um dia para comprar um terno, eimagino que tenha sido um desses que elecomprou; nenhum dos dois está muitousado.”

“Oqueeleteriausadonoúltimodiacomeles? Que gravata ele estava usando nojantar? Sem dúvida ele gostaria que essesdadosfossemlembrados.”

Elameolhouporumminuto,semsorrir.“É bem improvável que tenha sido um

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desses; quando fui buscá-lo, depois, nohospital,eleestavadepijamaeroupão.”

“Podeserumaboaeleficarcomumdessesternosagora.”

“Eleprovavelmentefoienterradocomumterno velho do Jim Clarke.” Constancevirou-se para ir ao porão, mas parou desúbito.“Merricat?”

“Sim,Constance?”“Você já se deu conta de que esses

pertencesdotioJuliansãoasúnicasroupasque sobraram na nossa casa? Todas asminhaspegaramfogo,etodasassuas.”

“Etudoqueeradelesqueestavanosótão.”“Eusótenhoestevestidocor-de-rosaque

estouusando.”Olheiparabaixo.“Eeuestoudemarrom.”“Eo seuprecisa ser lavado e remendado;

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como você consegue rasgar tanto as suasroupas,minhaMerricat?”

“Vou fazer um terninho de folhas.Agorinhamesmo.Comnozesnolugardosbotões.”

“Merricat,ésério.NósvamosterqueusarasroupasdotioJulian.”

“Não tenho permissão para tocar nascoisasdotioJulian.Precisodeumforrodemusgo, paraosdias friosde inverno, eumchapéufeitodepenasdepássaro.”

“Pode ser ótimo para a lua, DonaInsensatez. Na lua você pode usar umterninho de pelo que nem o Jonas, sedepender demim.Mas aqui na nossa casavocê vai usar uma das blusas velhas do tioJulian, e quem sabe não usa também umadascalças.”

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“Ou o roupão e o pijama do tio Julian,imagino. Não; não tenho permissão paratocar nas coisas do tio Julian; vou usarfolhas.”

“Mas você tem permissão. Declaro quevocêtempermissão.”

“Não.”Ela suspirou. “Bom”, ela disse, “é bem

provávelquevocêmevejausá-los.”Entãoelaparoueriu,emeolhou,eriudenovo.

“Constance?”,eudisse.ElapôsasroupasdetioJuliannoespaldar

dacadeirae,aindaaosrisos,foiàdespensaeabriuumadasgavetas.Eumelembreioqueela estava procurando e também ri. Emseguida, ela retornou e pôs um monte detoalhasdemesaaomeulado.

“Vão lhe cair muito bem, elegante

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Merricat. Olha; como é que você vai sesentir com esta aqui, com bainha de floresamarelas?Oueste lindoxadrezvermelhoebranco? O adamascado, receio eu, é tãoduro que vai ser desconfortável, e além domaisjáfoiremendado.”

Levanteiesegureiatoalhaxadrezcontraocorpo.“Vocêpodecortarumburacoparaaminhacabeça”,sugeri;estavasatisfeita.

“Nãotenhomaterialdecostura.Vocêvaiterqueamarraratoalhanacinturacomumcordão ou deixar ela solta como se fosseumatoga.”

“Vou usar o adamascado como manto;queméqueusamantodedamasco?”

“Merricat,ah,Merricat.”Constancelargoua toalha demesa que segurava e passou osbraçosemvoltademim.“Oquefoiqueeu

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fiz com aminha pequeninaMerricat?”, eladisse.“Semcasa.Semcomida.Evestidacomumatoalhademesa;oquefoiqueeufiz?”

“Constance”, eu disse, “eu te amo,Constance”.

“Vestida com toalha de mesa que nemumabonecadepano.”

“Constance.Nósvamossermuitofelizes,Constance.”

“Ah,Merricat”,eladisse,meabraçando.“Me escuta, Constance. Nós vamos ser

muitofelizes.”Numinstanteeumevesti,semquererdar

a Constance mais tempo para pensar.Escolhi o xadrez vermelho e branco, edepoisdeConstancefazerumburacoparaaminha cabeça peguei o cordão com borladourada que Constance cortara da cortina

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da salade visitas e o amarrei como cinto emeuvisual,pensei,estavaótimo.AprincípioConstance ficou triste e se virou comtristeza aomever, e esfregou furiosamentemeu vestido marrom na pia para deixá-lolimpo,egosteidomeuroupão,edanceicomele,eempoucotempoelatornouasorriredepoisriudemim.

“RobinsonCrusoéusavapelesdeanimais”,conteiaela.“Nãotinharoupasalegrescomcintosdourados.”

“Tenho que admitir que você nunca mepareceutãoanimada.”

“Você vai usar as peles do tio Julian; euprefirominhatoalhademesa.”

“Creio que essa que você está vestindoagora era usada nos cafés da manhã quefazíamosnoverãonogramado,muitosanos

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atrás.Xadrezvermelhoebrancojamaisseriausadonasaladejantar,éclaro.”

“Alguns dias serei o café da manhã deverãonogramadoeemoutrosdiassereiumjantar formal à luz de velas, e certos diasserei…”

“Uma Merricat imunda. Seu vestido éótimo, mas seu rosto está sujo. Nósperdemos quase tudo, mocinha, mas pelomenos ainda temos água potável e umpente.”

UmacoisasobreoquartodetioJulianqueeraumasortegrande:convenciConstanceapegar a cadeira dele e empurrá-la pelojardim para reforçar minha barricada. EraestranhoverConstanceempurrara cadeiravazia,eporuminstantetenteivertioJulianoutravez,passeandocomasmãosnocolo,

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massóoquerestavadapresençadeleeramos pedaços gastos da cadeira e um lençoenfiadodebaixodaalmofada.Acadeiraseriade grande eficácia para a minha barricada,no entanto, sempre fazendo intrusosdesviaremoolharatravésdaameaçavagadofinadotioJulian.MeperturbavapensarquetioJulianpoderiadesaparecerporcompleto,com seus papéis na caixa e a cadeira nabarricadaeaescovadedentesjogadaforaeaté o cheiro de tio Julian sumindo de seuquarto, mas quando a terra estava fofaConstanceplantouumaroseiraamarelanolugardetioJuliannogramado,eumanoitefuiaoriachoeenterreiolápisdouradocomasiniciaisdetioJulianpertodaágua,assimoriachosemprefalariaseunome.Jonasdeupara entrar no quarto de tio Julian, onde

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nuncaestivera,maseunãoentrava.

HelenClarkeveioànossaportamaisduasvezes, batendo e chamando e implorandoque atendêssemos, mas ficamos quietas, equando ela descobriu que não podia maisdar a volta na casa por conta de minhabarricada, nosdisse daporta da frente quenãovoltaria,enãovoltou.Umanoite,talvezadodiaemqueConstanceplantouaroseirade tio Julian, ouvimos uma batidinha bemsuavenaportadafrenteenquantoestávamosjantando à mesa. A batida era leve demaisparaHelenClarke,emelevanteidamesaecorri silenciosamente pelo corredor paraverificarseaportadafrenteestavatrancada,e Constance me seguiu, curiosa. Nosencostamosnaportaeprestamosatenção.

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“Srta.Blackwood?”,alguémchamouládefora, em voz baixa; eume perguntei se eledesconfiavadequeestávamostãopróximasdele. “Srta. Constance? Srta. MaryKatherine?”

Não estavamuito escuro lá fora,mas alidentroondeestávamosnóssóvíamosumaaoutravagamente,duascarasbrancascontraa porta. “Srta. Constance?”, ele repetiu.“Escuta.”

Imaginei que estivesse balançando acabeça de um lado para o outro para secertificardequenãoeravisto. “Escuta”,eledisse,“eutrouxefrango.”

Ele bateu de leve na porta. “Espero quevocês consigam me ouvir”, ele disse. “Eutrouxeum frango.Minhaesposapreparou,assou direitinho, e tem biscoito e torta.

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Esperoquevocêsconsigammeouvir.”Percebi que os olhos de Constance

estavamarregaladosdeespanto.Euafiteieelamefitou.

“Espero mesmo que vocês consigam meouvir, senhoritasBlackwood.Quebrei umadas cadeiras e sinto muito.” Ele bateu naportadenovo,bemsuavemente.“Bom”,eledisse. “Vou deixar a cesta aqui na entrada.Espero que vocês tenham me ouvido.Adeus.”

Escutamos os passos tranquilos seafastando, e depois de um minutoConstancedisse,“Oqueagentefaz?Vamosabriraporta?”.

“Maistarde”,respondi.“Euvenhoquandoestiverbemescuro.”

“Fico me perguntando que tipo de torta

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deveser.Vocêachaqueétãoboaquantoasminhas?”

Terminamosnossojantareesperamostera certeza de que ninguém poderia ver aporta da frente se abrir, e então cruzei ocorredor e destranquei a porta e espiei láfora.Acestaestavananossaporta,cobertaporumguardanapodepano.Eualeveiparadentro e tranquei a porta enquantoConstance tirava a cesta de mim e acarregavaparaacozinha.“Mirtilo”,eladissequando cheguei. “Bem boa, também; aindaestáquentinha.”

Ela pegou o frango, embrulhado emguardanapo, e o pacotinho de biscoitos,tocando em cada um com carinho e comdelicadeza.“Aindaestátudoquentinho”,elaafirmou. “Ela deve ter assado depois do

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jantar para ele trazer logo.Vai ver que elaassouduastortas,umaparadeixaremcasa.Ela embalou tudo quando ainda estavaquentinho e mandou ele trazer. Essesbiscoitosnãoestãomuitocrocantes.”

“Vou pegar a cesta e deixar na varanda,assimeleficasabendoquenóspegamos.”

“Não, não.” Constance me segurou pelobraço. “Só depois de eu lavar osguardanapos;oqueelairiapensardemim?”

Àsvezestraziambaconcuradocaseiro,oufrutas, ou as próprias conservas, nunca tãoboas quanto as conservas que Constancefazia.Normalmente traziamfrangoassado;devezemquandoumbolooutorta,muitasvezesbiscoitos,àsvezessaladadebatataouderepolho.Umaveztrouxeramumapaneladeguisado,queConstancecortoue juntou

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denovodeacordocomsuasprópriasregrasde guisado, e às vezeshaviapotesde feijãocozidooumacarrão.“Somosamaiorceiadeigreja que eles já fizeram”, Constancecomentouumavez,olhandoumpãocaseiroqueeutinhaacabadodetrazerládefora.

Essas coisas eram sempre deixadas naentrada de casa, sempre em silêncio e ànoite. Imaginávamos que os homenschegassem em casa após o trabalho e asmulheres tivessem cestas prontas para elesentregarem; talvez viessem na escuridãoparanão serem reconhecidos, como seunsquisessem se esconder dos outros e nostrazercomidafosseumaatitudevexaminosade tomar em público. Havia muitasmulheres cozinhando,Constance concluiu.“Essa aqui”, ela me explicou uma vez,

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provando o feijão, “é a que usa ketchup, eexageranamão;eaquelaúltimausavamuitomelado.”Vezporoutrahaviaumbilhetenacesta: “Isto é pela louça quebrada”, ou“Pedimos desculpas pelas cortinas”, ou“Desculpe pela sua harpa”. Semprecolocávamos as cestas onde asencontrávamosenuncaabríamosaportadafrentesemqueestivessetotalmenteescuroetivéssemos certeza de que não havianinguém por perto. Depois eu sempreverificavacomcuidadoseaportada frenteestavatrancada.

Descobri que não tinha mais permissãopara ir ao riacho; tio Julian estava lá, e eralonge demais de Constance. Eu nunca iamuito além dos limites do bosque, eConstance só ia até a horta. Eu não tinha

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permissão para enterrar mais nada,tampouco tinha permissão para tocar empedras. Todos os dias eu olhava por cimadastábuasquetapavamasjanelasdacozinhae quando notei frestas pequeninas pregueimais tábuas. Todas as manhãs eu checavalogo se aportada frente estava trancada, etodasasmanhãsConstancelavavaacozinha.Passávamos boa parte do tempo junto àporta da frente, principalmente durante atarde, quando a maioria das pessoas nosvisitava; sentávamos, uma de cada lado daporta, espiandopelas vidraças estreitas queeu havia tapado quase por completo compapelão a fim de que nós duas tivéssemosapenas um buraquinho e ninguémconseguisseverládentro.Observávamosascriançasbrincarem,easpessoaspassando,e

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ouvíamos suas vozes e eram todosdesconhecidos, com seus olhos arregaladose suas malditas bocas abertas. Um diaapareceuumgrupodebicicleta;haviaduasmulheres e um homem, além de duascrianças.Estacionaramasbicicletasnanossarampa e se deitaramno gramadona frentede nossa casa, puxando a grama econversando enquanto descansavam. Ascrianças subiam e desciam nossa rampacorrendo e davam voltas nas árvores earbustos.Foinessediaquesoubemosqueasvideiras estavamcrescendo sobreo telhadoqueimado de nossa casa, pois uma dasmulheresolhoudesoslaioparaacasaedisseque as videiras já tinham quase tapado asmarcas do incêndio. Raramente se viravampara encarar nossa casa de frente, mas

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olhavamde canto de olho ou por cima doombro ou por entre os dedos. “Soube queera uma casa antiga e linda”, comentou amulher sentada no nosso gramado. “Ouvidizerquejáfoiumlugarimportante.”

“Agora parece uma tumba”, disse a outramulher.

“Shh”, disse a primeira mulher, egesticulouemdireçãoà casa coma cabeça.“Ouvidizer”,elafaloualto,“queelastinhamuma escada que era linda. Entalhada naItália,peloqueeusoube.”

“Elasnãovãoteescutar”,aoutradeclarou,entretida.“Equemligaseescutarem,nãoé?”

“Shhh.”“Ninguémsabecomcertezasetemalguém

ládentroounão.Aspessoasdaquicontamumashistóriasexageradas.”

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“Shh. Tommy”, ela chamou uma dascrianças,“nãochegapertododegrau.”

“Por quê?”, questionou a criança,recuando.

“Porque as moças vivem aí e elas nãogostam.”

“Por quê?”, repetiu a criança, parando aopé dos degraus e olhando de relance paratrás,paraanossaportadafrente.

“As moças não gostam de meninospequenos”,disseasegundamulher;eraumadasruins;davaparaversuabocapelalateraleeraabocadeumacobra.

“Oqueelasiamfazercomigo?”“Iamte segurare teobrigara comerbala

cheiadeveneno;ouvidizerquedezenasdemeninos malvados chegaram perto demaisdessa casa e nuncamais foram vistos. Elas

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pegamosmeninose…”“Shh.Sério,Ethel.”“Elas gostam de meninas pequenas?” A

outracriançaseaproximou.“Elas odeiam meninos e meninas. A

diferençaéqueelascomemasmeninas.”“Ethel,paracom isso.Vocêestábotando

medonascrianças.Nãoéverdade,queridos;elaestásóbrincandocomvocês.”

“Elas só saem de noite”, a malvadacontinuou,olhandoascriançascommalícia,“eaí,quandoestáescuro,elassaempracaçarcriancinhas.”

“Eu concordo”, o homem interferiu derepente,“nãoqueroverascriançaschegandopertodemaisdessacasa.”

Charles Blackwood só voltou uma vez.Veio em um carro com outro sujeito no

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final de uma tarde em que estávamosobservando lá fora fazia tempo. Todos osestranhos se foram, e Constance tinhaacabadodeselevantareanunciado“Horadeprepararasbatatas”quandoumcarrosurgiuna rampa e ela se acomodoupara observarde novo. Charles e o outro homemdesceramdocarroemfrenteàcasaeforamdireto ao pé da escadinha, olhando paracima, embora não pudessem nos ver alidentro. Lembrei da primeira vez queCharles aparecera e ficara olhando nossacasadomesmo jeito,masdessavezelenãoentraria.Estiqueiobraçoetoqueinatrancada porta da frente para verificar se estavafechada,edooutroladodobatentedaportaConstance se virou e me fez que sim; elatambém sabia que Charles nunca mais

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entraria.“Estávendo?”,disseCharles,láfora,aopé

dos degraus. “Aí está a casa, como eu tedisse. Não está com a cara ruim de antes,agoraqueasvideirascresceramtanto.Masotelhadofoidestruídopelofogoeointeriordacasafoidevastado.”

“Asmoçasestãoaídentro?”“Claro.”Charles riu, eme lembreide sua

risadaesuaenormecarabrancaedooutroladodaportadesejeiquemorresse.“Estãoaídentro, sim”, ele disse. “Assim como aporcariadeumafortuna.”

“Vocêsabedisso?”“Elastêmdinheiroaídentroquenuncafoi

nemcontado.Trataramdeenterraremtudoqueélugar,etêmumcofrecheio,esóDeussabeondemaiselasesconderam.Elasnunca

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saem, só ficam aí dentro escondidas comessemontedegrana.”

“Escuta”, disse o outro homem, “elas teconhecem,nãoé?”

“Claro.Souprimodelas.Umavezeuvimaquivisitar.”

“Você acha que existe algumapossibilidade de você conseguir que umadelasconversecomvocê?Quemsabeviratéajanela,paraeuconseguirumafoto?”

Charlesrefletiu.Olhouparaacasaeparaooutrosujeito,eponderou.“Sevocêvender,para a revista ou para outro lugar, eu ficocommetade?”

“Claro,euprometo.”“Vou tentar”,Charlesdisse. “Fica lá atrás

do carro, escondido.Com certeza elas nãovão sair se virem um estranho.” O outro

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voltouparaocarroepegouumacâmeraeseacomodoudooutroladodocarro,ondenãooenxergávamos.“O.k.”,eleavisou,eCharlessubiu a escadinha rumo à nossa porta dafrente.

“Connie?”, ele chamou. “Ei, Connie? É oCharles;euvoltei.”

Olhei para Constance e pensei que elanunca tinha visto Charles de maneira tãogenuína.

“Connie?”Agora ela sabia que Charles era um

fantasmaeumdemônio,umdosestranhos.“Vamos esquecer tudo o que aconteceu”,

Charlesdisse.Ele se aproximoudaporta efaloudeformaagradável,comcertotomdesúplica.“Vamosseramigosdenovo.”

Eupodiaverospésdele.Umdelesestava

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batendo sem parar no chão de nossavaranda. “Não sei o que você tem contramim”, ele reclamou, “e estou esperando hátemposquevocêmefaleseeupossovoltaroutra vez. Se eu fiz alguma coisa que teofendeu,peçomildesculpas.”

QueriaqueCharlespudesseveralidentro,pudesse nos ver sentadas no chão junto àslaterais da porta da frente, escutando eolhando seus pés enquanto ele imploravaparaaporta,aummetrodenossascabeças.

“Abre a porta”, ele pediu com bastantedelicadeza. “Connie, você podia abrir aportapramim,paraoprimoCharles?”

Constanceergueuorostoparaondedeviaestar o rosto dele e deu um sorriso dedesagrado. Pensei que devia ser o sorrisoquevinhaguardandoparaCharlescasoum

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diaeleretornasse.“FuiverotúmulodovelhoJulianhojede

manhã”,disseCharles.“VolteiparavisitarotúmulodovelhoJulianevervocêoutravez.”Ele esperou um instante e depois disseembargando um pouquinho a voz, “pusumas flores—você sabe—no túmulo dovelho camarada; ele era um velho bacana esemprefoibemlegalcomigo”.

AtrásdospésdeCharlesviooutrosujeitosaindo de trás do carro com a câmera.“Escuta”, ele chamou, “você está gastandosalivaàtoa.Eeunãotenhoodiatodo.”

“Vocênãoentende?”Charlesdeuascostaspara a porta, mas a voz ainda estava umpouco embargada. “Eu tenho que verConstancemaisumavez.Eufuiacausadetudo.”

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“Oquê?”“Porquevocêachaqueduassolteironasse

trancaram numa casa como essa? Deus étestemunha”, disse Charles, “de que minhaintençãonãoeradequeasituaçãoacabassedessejeito.”

Nessemomento imaginei queConstancefossesepronunciar,oupelomenosdarumagargalhada,eestiqueiamãoetoqueiemseubraço, avisando que ficasse quieta,mas elanãosevirouparamim.

“Sepudesseaomenosconversarcomela”,Charles disse. “Mas você pode tirar umasfotos da casa, comigo parado aqui. Oubatendoàporta;eupoderiabatersempararnaporta.”

“No que depender demim, você poderiaseesticaremfrenteàportaagonizandopor

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causadocoraçãopartido”,ooutrodisse.Elefoi para o carro e pôs a câmera lá dentro.“Desperdíciodetempo.”

“E aquela grana toda. Connie”, Charleschamou alto, “pelo amor de Deus, abre aporta?”

“Sabe”,ooutrodissedocarro,“apostoquevocênuncamais vai ver aquelasmoedasdeprata.”

“Connie”,Charlesdisse, “vocênãosabeoque está fazendo comigo; eu não fiz nadapara merecer esse tratamento. Por favor,Connie.”

“Vocêquer irparaa cidadeandando?”,ooutroindagou.Elefechouaportadocarro.

Charlesdeuascostasparaaportaedepoistornou a se virar. “Está bem, Connie”, eledisse, “chega. Se você deixar que eume vá

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desta vez, nunca mais vai me ver. Estoufalandosério,Connie.”

“Estouindo”,ooutroanuncioudocarro.“Estou falando sério, Connie, estou

mesmo.” Charles começou a descer osdegraus, falando por cima do ombro. “Dáumaúltima olhada”, ele disse. “Estou indo.Umapalavrajámefariaficar.”

Nãoacheiqueele fosseemboraa tempo.Francamente não sabia se Constance seriacapazdeseconteratéeledesceraescadinhaeestarasalvonocarro.“Adeus,Connie”,eledissediantedosdegrauseentãosevirouesedirigiuaocarro lentamente.Olhouporuminstantecomosefosseenxugarosolhosouassoaronariz,masooutrochamou,“Andalogo”, e Charles olhou para trás mais umavez,levantouamãocomtristezaeentrouno

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carro. Então Constance riu, e por uminstanteviCharlesnocarrovirandoacabeçarapidamente, como se ouvisse nossasrisadas, mas o carro arrancou e desceu arampa,enosabraçamosnocorredorescuroe gargalhamos, lágrimas escorrendo pelasnossas bochechas e ecos de nossos risossubindoaescadaarruinadarumoaocéu.

“Estou tão feliz”,Constantedeclarouporfim,ofegante.“Merricat,estoutãofeliz.”

“Euaviseiquevocêiagostardalua.”OsCarringtonpararamocarrona frente

denossacasanumdomingoapósa igrejaeficaram sentados, quietos, olhando nossacasa, como se supondo que sairíamos sehouvessealgoqueosCarringtonpudessemfazerpornós.Àsvezeseupensavanasaladevisitas e na sala de jantar, eternamente

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fechadas, com os cativantes objetosquebrados de nossa mãe espalhados, e apoeiracaindodelicadamenteparacobri-los;tínhamos novos pontos de referência nacasa,assimcomotínhamosumanovarotinapara os nossos dias. O fragmento torto,rompido, que era o que restava de nossaencantadora escada era algo pelo quepassávamostodososdiaseconhecíamosnosmínimos detalhes assim como outroraconhecíamos os degraus em si. As tábuasnas janelasda cozinhaeramnossas, epartede nossa casa, e nós as amávamos. Éramosmuito felizes, embora Constance estivessesempre apavorada com a possibilidade deque uma de nossas xícaras se quebrasse eumadenósprecisasseusarumaxícarasemasa. Tínhamos nossos lugares bem

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conhecidos e familiares: nossas cadeiras àmesa, e nossas camas, e nossos postos aoladodaportada frente.Constance lavavaatoalhademesavermelhaebrancaeasblusasde tio Julian que ela usava, e enquantoestavampenduradosnojardimparasecar,euusava a toalha de mesa de borda amarela,que ficava lindacomomeucintodourado.Os velhos sapatos marrons de nossa mãeforamguardadosnomeucantodacozinha,jáquenosdiasquentesdeverãoeuandavadescalça que nem Jonas. Constance nãogostava de colher muitas flores, mas haviasemprenamesadacozinhaumatigelacomrosasoumargaridas,emboraobviamenteelanunca colhesse as flores da roseira de tioJulian.

De vez em quando pensava nas minhas

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seisbolinhasde gude azuis,mas agoranãotinhapermissãoparairaocampo,eimagineique talvez minhas seis bolinhas de gudeazuistivessemsidoenterradasparaprotegeruma casa que já não existia e não tinhaligação nenhuma com a casa ondemorávamos agora, e onde éramos muitofelizes.Minhas novas salvaguardasmágicaseramatrancadaportadafrente,eastábuasnas janelas, e as barricadas nas laterais dacasa. De noite, às vezes víamosmovimentação na escuridão do gramado, eescutávamossussurros.

“Não faz isso; vai que as moças estãovendo.”

“Vocêachaqueelasenxergamnoescuro?”“Ouvi dizer que elas veem tudo o que

acontece.”

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Então podia haver risadas, que sedissipavamnocalordaescuridão.

“Daqui a pouco vãopassar a chamar istoaqui deAlameda dosAmantes”, comentouConstance.

“EmhomenagemaoCharles,semdúvida.”“O mínimo que o Charles poderia ter

feito”, disse Constance, refletindo a sério,“seriadarumtironacabeçaalinaentrada.”

Descobrimos,aoescutarconversas,queaúnicacoisaqueosestranhosviamládefora,quando ao menos olhavam, era umaestrutura grandiosa e arruinada coberta devideiras, quemal se reconhecia como casa.Eraametadedocaminhoentreovilarejoeaestrada,opontonomeiodavia,eninguémnunca viunossos olhos espiandopor entreasvideiras.

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“Não pode subir essa escadinha”, ascriançasadvertiamumasàsoutras; “sevocêsubir,asmoçastepegam.”

Uma vez, um menino, desafiado pelosoutros,paroudiantedosdegraus,de frentepara a casa, e estremeceu e quase chorou equasesaiucorrendo,eentãochamoucomavoz trêmula, “Merricat, disse Constance,você não quer uma xícara de chá?” e emseguida fugiu, acompanhado por todos osoutros.Nessanoite,achamosnoumbraldaportaumacestadeovosfrescoseumbilhetequedizia,“Elefezsemquerer,porfavor”.

“Coitado do menino”, disse Constance,colocando os ovos em uma tigela que iriapara a geladeira. “Ele deve estar escondidodebaixodacamaaestaaltura.”

“Quem sabe não levou umas boas

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palmadasparaaprenderatermodos.”“Vamoscomeromeletenocafédamanhã.”“Fico pensando se eu conseguiria comer

umacriançaseaoportunidadesurgisse.”“Nãoseiseeuconseguiriacozinharuma”,

disseConstance.“Coitados dos desconhecidos”, eu disse.

“Elestêmtantosmotivosparatermedo.”“Bom”, disseConstance, “eu tenhomedo

dearanha.”“Jonas e eunão vamosdeixar que aranha

nenhuma chegue perto de você. Ah,Constance”, eu disse, “nós somos tãofelizes.”

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SOBREAAUTORA

SHIRLEY JACKSON nasceu emSan Francisco, Califórnia, em1916,efaleceuem1965.Umadas principais autorasamericanas do século XX,influenciou escritores comoStephen King, Donna Tartt,Neil Gaiman e RichardMatheson. Sua obra é leituraobrigatóriaemdiversasescolasdos Estados Unidos, e seu

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trabalho é aclamado porpúblicoecrítica.

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Copyright©1962byShirleyJackson

GrafiaatualizadasegundooAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesade1990,queentrouemvigornoBrasilem2009.

TítulooriginalWeHaveAlwaysLivedintheCastle

CapaeilustraçãoElisavonRandow

PreparaçãoAndréMarinho

RevisãoAdrianaBairradaRenataLopesDelNeroValquíriaDellaPozza

ISBN978-85-438-0934-2

Todososdireitosdestaediçãoreservadosà

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EDITORASCHWARCZS.A.PraçaFloriano,19—Sala300120031-050—RiodeJaneiro—RJTelefone:(21)3993-7510www.companhiadasletras.com.brwww.blogdacompanhia.com.brfacebook.com/sumadeletrasbrinstagram.com/sumadeletras_brtwitter.com/Suma_BR

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It:AcoisaKing,Stephen97885810515291104páginas

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<strong>Ocl&aacute;ssicodeStephenKingemnovaedi&ccedil;&atilde;o.</strong><br/><br/>Duranteasf&eacute;riasescolaresde1958,emDerry,pacatacidadezinhadoMaine,Bill,Richie,Stan,Mike,Eddie,BeneBeverlyaprenderamorealsentidodaamizade,doamor,da

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OlabirintodosespíritosZafón,CarlosRuiz9788543810591680páginas

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<strong>LivroIVdas&eacute;rieOCemit&eacute;riodosLivrosEsquecidos.</strong><br/><br/>Madrid,anos1950.AliciaGris&eacute;umaalmanascidadassombrasdaguerra,quelhetirouospaiselhedeuemtrocaumavidadedorcr&ocirc;nica.Investigadoratalentosa,&eacute;aelaquea

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pol&iacute;ciarecorrequandooilustreministroMauricioVallsdesaparece;ummist&eacute;rioqueosmeiosoficiaisfalharamemsolucionar.<br/>EmBarcelona,DanielSemperen&atilde;oconsegueescapardosenigmasenvolvendoamortedesuam&atilde;e,Isabella.Odesejodevingan&ccedil;asetornaumasombraqueoespreitadiaenoite,enquantomergulhaeminvestiga&ccedil;&otilde;esin&uacute;teissobreseumaiorsuspeito&mdash;oagoradesaparecidoministroValls.<br/>OsfiosdessatramaaospoucosunemosdestinosdeDanieleAlicia,conduzindo-osdevoltaaopassado,

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&agrave;scelasfriasdapris&atilde;odeMontjuic,ondeumescritoratormentadoescreveusobresuavidaeseusfantasmas;aos&uacute;ltimosdiasdevidadeIsabella,comseusarrependimentoseconfiss&otilde;es;eaintrigasaindamaisperigosas,envolvendofigurascapazesdetudoparamanterantigosesqueletosenterrados.

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OsolhosdodragãoKing,Stephen9788581051550216páginas

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AlunetaâmbarPullman,Philip9788543810560504páginas

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SalemKing,Stephen9788581050324264páginas

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Publicadooriginalmenteem1975,SaleméinspiradoemoDráculadeBramStoker.SegundolivrodacarreiradeKing,aobradeuorigemaofilmeOsVampirosdeSalem,dirigidoporTobeHopper,deOMassacredaSerraElétrica.AmbientadonacidadezinhadeJerusalem`sLot,naNovaInglaterra,

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contaahistóriadetrêsforasteiros.BenMears,umescritorqueviveualgunsanosnacidadequandocriançaeestádispostoaacertarcontascomoprópriopassado,MarkPetrie,ummeninoobcecadopormonstrosefilmesdeterroreoSenhorBarlow,umafiguramisteriosaquedecideabrirumalojanacidade.Apósachegadadessesforasteiros,fatosinexplicáveiscomeçamperturbararotinaprovincianadeJerusalem`sLot:umacriançaéencontradamorta,habitantescomeçamadesaparecersemdeixarvestígiosousucumbemaumaestranhadoença.AmortepassaaenvolverapequenacidadecomseutoquemaléficoeBeneMarksão

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obrigadosaescolheroúnicocaminhoquerestaaossobreviventesdapraga:fugir.Masissonãoserátãosimples:osdestinosdeBen,Mark,BarloweJerusalem`sLotestãoagoraparasempreinterligados.

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