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Clínica & Cultura v.III, n.I, jan-jun 2014, 24-33 Sentidos da clínica Meanings of the clinic Teresa Cristina Carreteiro 1 UFF Resumo: Inicialmente, aborda-se a arte japonesa para lançar algumas ideias visando pensar mais tarde a clínica; em seguida, faz-se uma discussão da clínica e das clínicas para relacioná-las a aspectos do contemporâneo. Palavras-chave: clínica; contemporaneidade; escutas disciplinares Abstract: Initially, we approach the Japanese art to present some ideas that aims to think, lately, the clinic; then, we discuss the clinic and the clinics to relate them to some aspects of contemporary world. Keywords: clinic; contemporaneity; disciplinary listening No prefácio de um livro sobre o pintor japonês Hiroshigue (1797_1858), há uma bela frase do escritor Asai Ryoi: “viver somente o instante presente, saber se dar inteiramente à contemplação da lua, da neve, das cerejeiras em flor e dos plátanos floridos, cantar, beber, se divertir, eis o que chamo de mundo flutuante” (1665/1990). O mundo flutuante, ao qual o autor faz alusão, se opõe ao sagrado, imutável. É o mundo em mudança que o pintor Hiroshigue e toda uma escola de estampas japonesas tomam como objeto de suas obras. O mundo que interessa ao pintor tem a mutação como característica importante. O Japão da época, século XIX, é uma sociedade que estava em plena transformação econômica, de costumes, de poder. Havia a formação de uma burguesia urbana, que começava a se deixar levar pelos prazeres. Tais mudanças faziam surgir a figura da evanescência. A pintura deveria marcar o instante efêmero, e o pintor Hiroshigue o fazia com delicadeza; os detalhes eram percebidos assim como o movimento de muitas cenas. No mundo de então, o efêmero não deveria ser caracterizado pela passagem rápida; deveria ser degustado, saboreado, daí a contemplação da beleza e da natureza, que se transformavam. Há aqui dois aspectos a serem ressaltados: contemplação e transformação. Entre as várias temáticas das estampas de Hiroshigue, estão as pontes. A pintura japonesa teve uma grande influência sobre a escola impressionista, e o pintor Claude Monet tinha vários exemplares desse autor, e se inspirava também nele, ao pintar cenas ao ar livre, coloridas e também suas pontes. Ao falar de Hiroshigue ou Monet, pode-se lembrar da frase de Heinrich Wölfflin, famoso historiador da arte, ao dizer: “Todo quadro tem dois autores, o artista e seu 1 Professora titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia, UFF; Pesquisadora do CNPq; Doutorado Psicologia Social Clínica e Pós-doutorado em Paris VII. E-mail: [email protected]

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  • Clnica & Cultura v.III, n.I, jan-jun 2014, 24-33

    Sentidos da clnica Meanings of the clinic

    Teresa Cristina Carreteiro1 UFF

    Resumo: Inicialmente, aborda-se a arte japonesa para lanar algumas ideias visando pensar mais tarde a clnica; em seguida, faz-se uma discusso da clnica e das clnicas para relacion-las a aspectos do contemporneo. Palavras-chave: clnica; contemporaneidade; escutas disciplinares Abstract: Initially, we approach the Japanese art to present some ideas that aims to think, lately, the clinic; then, we discuss the clinic and the clinics to relate them to some aspects of contemporary world. Keywords: clinic; contemporaneity; disciplinary listening

    No prefcio de um livro sobre o pintor japons Hiroshigue (1797_1858), h uma bela frase do escritor Asai Ryoi: viver somente o instante presente, saber se dar inteiramente contemplao da lua, da neve, das cerejeiras em flor e dos pltanos floridos, cantar, beber, se divertir, eis o que chamo de mundo flutuante (1665/1990). O mundo flutuante, ao qual o autor faz aluso, se ope ao sagrado, imutvel. o mundo em mudana que o pintor Hiroshigue e toda uma escola de estampas japonesas tomam como objeto de suas obras.

    O mundo que interessa ao pintor tem a mutao como caracterstica importante. O Japo da poca, sculo XIX, uma sociedade que estava em plena transformao econmica, de costumes, de poder. Havia a formao de uma burguesia urbana, que comeava a se deixar levar pelos prazeres. Tais mudanas faziam surgir a figura da evanescncia. A pintura deveria marcar o instante efmero, e o pintor Hiroshigue o fazia com delicadeza; os detalhes eram percebidos assim como o movimento de muitas cenas. No mundo de ento, o efmero no deveria ser caracterizado pela passagem rpida; deveria ser degustado, saboreado, da a contemplao da beleza e da natureza, que se transformavam. H aqui dois aspectos a serem ressaltados: contemplao e transformao.

    Entre as vrias temticas das estampas de Hiroshigue, esto as pontes. A pintura japonesa teve uma grande influncia sobre a escola impressionista, e o pintor Claude Monet tinha vrios exemplares desse autor, e se inspirava tambm nele, ao pintar cenas ao ar livre, coloridas e tambm suas pontes.

    Ao falar de Hiroshigue ou Monet, pode-se lembrar da frase de Heinrich Wlfflin, famoso historiador da arte, ao dizer: Todo quadro tem dois autores, o artista e seu

    1 Professora titular do Programa de Ps-graduao em Psicologia, UFF; Pesquisadora do CNPq; Doutorado Psicologia Social Clnica e Ps-doutorado em Paris VII. E-mail: [email protected]

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    sculo (Gondar, 2009; VEYNE, 1983, p. 28). Isto nos leva a expandir esta observao e dizer que toda arte ou qualquer outra produo se inscreve em um tempo.

    Iniciar este texto pela arte no foi para discorrer sobre a pintura japonesa, mas para levantar aspectos relacionados com os sentidos da clnica. Abordaremos, posteriormente, dois aspectos presentes na arte japonesa, o mundo flutuante e as pontes. As pontes no so evocadas no seu sentido concreto, mas no de vnculo entre ou de articulao com. E, nesta perspectiva, aborda-se a tessitura entre campos e saberes distintos, na atribuio de sentidos na clnica.

    Pensando clnica e clnicas

    A etimologia da palavra clnica vem do grego klino, que significa leito, repouso. Em meados do sculo XVIII, a prtica da medicina clnica consistia na investigao e no tratamento, a partir dos sintomas apresentados pelo doente ao mdico. A prtica do olhar mdico tornava-se determinante para a compreenso e o tratamento da doena. Era a doena que devia ser desvendada; o doente era passivo frente doena, ele apresentava ao profissional os signos de sua enfermidade. Aquele que desejasse conhecer a doena deveria subtrair o indivduo de suas qualidades singulares (Foucault, 1977, p.14).

    Mais tarde, com Freud, h uma passagem do olhar escuta. No mais o mdico que recebe os signos da doena e os organiza, a pessoa que vai adquirir o lugar de sujeito; ela fala e tem coisas a dizer, tem palavras plenas, outras lacunares. Os sintomas no so mais, como para a prtica da medicina anterior, signos de uma causa que se revelaria a quem sabe v-la e desvend-la, em ocorrncia, o mdico. Com a psicanlise, o sintoma vem no lugar de palavras impossveis, que progressivamente podem se transformar para que o prprio sujeito possa aceder aos seus sentidos (Barus-Michel, 2002) e encontrar novos sentidos.

    A clnica se inscreve agora no trabalho de busca de sentido, favorecendo ao sujeito uma maior propriedade de si, mesmo sabendo que esta sempre ser precria, incompleta. Mas, o saber da incompletude poder estimular nos sujeitos um desejo de continuar em trabalho e, ao faz-lo, tambm buscar novos encontros com os outros reais ou imaginrios.

    No entanto, na passagem do olhar escuta, h um esquecimento no dizer de Birman: o do corpo. Esse autor nos diz: uma parcela significativa da comunidade analtica se esqueceu que a subjetividade sofrente tem um corpo e que justamente neste que a dor literalmente se enraza, junto com o corpo est o afeto, as intensidades afetivas (1999, p.21), que marca os sofrimentos. Isto nos permite ampliar a questo clnica para alm da clnica psicoteraputica ou psicanaltica. Se com Freud foram lanadas as pedras inaugurais para que a clnica no se restringisse somente medicina, o pensamento psicanaltico pode ser estendido tambm s cincias humanas, sociais ou qualquer outra cincia.

    Os sentidos podem ser desdobrados dando lugar a muitas aes e prticas diferenciadas. O inconsciente e o psiquismo no existem somente no mundo psi. Se as

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    cincias so feitas por sujeitos e grupos, os fenmenos psquicos, considerados no seu dinamismo, esto em todas as instncias da vida. Qualquer campo de estudo pode criar encontros potentes com a psicanlise, se os campos do saber se deixam afetar, romper uma posio fixa e rgida. Os encontros intradisciplinares no so tarefas simples, eles implicam poder no abandonar a prevalncia de uma viso disciplinar, mas estar aberto a poder transform-la, se deixar tocar e criar outras teorizaes.

    Entretanto, o mundo atual parece trabalhar na contramo do que foi afirmado acima. As cincias querem mostrar as suas certezas, afirmar o seu poder. A racionalidade instrumental adquire um lugar primordial. Essa mesma ideia se desdobra no campo das subjetividades. Pensar em sujeitos no plenos, cindidos, mesmo cerzidos, parece uma aberrao. Mas, preciso continuar resistindo s ideias, teorias e atitudes que no admitem fendas.

    Qualquer trabalho que se reivindique da clnica deve poder compreender os processos nos quais a experincia social faz sentido para o sujeito individual ou coletivo. Neste aspecto, vale lembrar a famosa frase de Freud em Psicologia das massas e anlise do ego, na vida psquica do individuo considerado isoladamente o outro intervm regularmente como modelo, objeto, suporte ou adversrio, por este fato a psicologia individual ao mesmo tempo e simultaneamente uma psicologia social (Freud, 1921/1997, p. 124). O aparelho psquico nunca um, ele pelo menos dois, ou mais rigorosamente, mltiplo, se levamos em conta a alteridade que preside a sua constituio e os seus remanejamentos (Garcia-Roza, 1991).

    Continuando a ampliar os focos de nossas lentes sobre a clnica, evocamos o conceito de situao (Carreteiro, 1993) que tem um lugar de destaque na obra sartreana e foi tambm bastante trabalhado pelo psicanalista, filsofo e mdico Daniel Lagache ao se referir psicologia clnica. Sartre (1943) considera que s podemos compreender os sujeitos e suas aes se os percebermos como homens em relao. Lagache (1949) postula que a psicologia clnica deve se voltar para o estudo da pessoa total em situao. Cada sujeito se inscreve no mundo em uma perspectiva prpria, o que, para o autor, revela a maneira de ser e de agir de um ser humano concreto, vinculado a situaes.

    Vale recorrer riqueza etimolgica do termo situao. Esta expresso composta por dois radicais stio e ao, o que mostra que tempo e espao se vinculam. Toda situao nos remete a uma complexidade de eixos que a atravessam. Deste modo, todo sujeito individual ou coletivo, sempre mltiplo, complexo. Qualquer clnica deve poder ser um encontro com a multiplicidade de influncias que atravessam o sujeito: tempo; espao; aspectos polticos, sociais, econmicos e tantos outros que esto sempre presentes no implcito das falas, dos sintomas e dos acontecimentos.

    Essas ideias se articulam com a clnica psicanaltica, mas podem tambm redimension-la e encontrar outras clnicas, aquelas que no se circunscrevem a um setting analtico: as clnicas extensas. Se tomarmos Freud no texto Recomendaes aos mdicos que exercem a psicanlise, sobre a tcnica psicanaltica, encontraremos referncias associao livre, atitude recomendada ao paciente, e ateno flutuante, atitude que norteia a escuta do analista. Freud sugere que o analista se abandone memria inconsciente, e acrescenta: deve somente escutar e no se preocupar se est

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    se lembrando de alguma coisa (Freud: 1912/1997, p.150). Sugerimos que se criem outras flutuaes nas escutas.

    Todo sujeito, sendo um sujeito histrico, envolto nas armadilhas e nas artimanhas de seu tempo, mas ele tambm cria possibilidades de resistir s mesmas. neste sentido que ele se faz nico, original, singular. As flutuaes na escuta levam a no s encontrar a memria inconsciente, mas plainar em vrias dimenses scio-histricas. Plainar ainda nos artifcios, emboscadas, construes e produes sociais. Para que no parea muito abstrato, o que sugerimos aqui, fazemos referncia fazemos referncia a trs dimenses sociais muito presentes nos tempos atuais: a gesto da felicidade; o sujeito cerebral (Erhrenberg, 2009) e o contexto de trabalho. Outras dimenses poderiam ser citadas: a escolha destas trs por considerar que interferem de modo integrado na produo das significaes imaginrias sociais (Castoriadis, 1975), as quais no devem escapar de um olhar clinico.

    Estes elementos so citados por se considerar que o estudo, o conhecimento e o aprofundamento das significaes imaginrias sociais pode nos permitir ter outras formas de escutar e atuar nos padecimentos clnicos, venham eles do contexto de consultrio, de intervenes e/ou de trabalhos diversos.

    1 - Gesto da Felicidade O indivduo hipermoderno vive num momento da histria em que as grandes

    transformaes sociais influem de modo intenso nas produes subjetivas (Carreteiro, 1993). Algumas dcadas atrs, podamos constatar que a forte conflitualidade entre as instncias psquicas era um dos traos proeminentes da formao subjetiva. Os trabalhos de Freud e de seus sucessores permitiram elucidar essa questo ao desvelar as formas de conflito entre o eu e as outras instncias psquicas. O superego tinha um papel muito importante, contribuindo na interiorizao de regras sociais que podiam ser facilmente reconhecidas no espao social. A obedincia s normas era considerada uma das dimenses do bom cidado. Nesse cenrio, a conflitualidade resultava da impossibilidade de conciliar os desejos do sujeito com as regras sociais. Em outra obra, O futuro de uma iluso (1927/1997), Freud mostra que qualquer civilizao erguida pela coero e recalcamento das pulses, mas aponta tambm o papel essencial da sublimao na construo das obras civilizadoras.

    O modelo ento vigente colocava o sujeito social em primeiro plano. Esse modelo, construdo sobre o capitalismo industrial, podia ser associado ao ideal democrtico, e enfatizava o sujeito social, trabalhador, cidado, seja o que respeita a ordem social, seja o que queria transformar o mundo. Naquele momento, entre o sujeito individual e social, a primazia era dada ao segundo, sem que o primeiro fosse descartado.

    A conflitualidade estava ento sempre presente e levava ao surgimento de um mal-estar que, segundo Freud (1929/1997), era o resultado da impossibilidade de conciliao entre o desejo e as obrigaes do ser social, e do dilaceramento de todo sujeito humano entre a pulso de vida e de morte. Vrios modos de estar no mundo decorriam da posio de mal-estar. Compreendia-se que os sujeitos individuais eram marcados pela finitude, pela mortalidade, e, consequentemente, pela angstia. No

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    entanto, essa experincia estava eficazmente regulada, levando-se em conta as relaes estabelecidas com um sistema de regras estveis (Birman, 1999; Castel e Haroche: 2002). Elas eram conhecidas e os indivduos sabiam o que se esperava deles.

    Atualmente, a situao bastante diferente. As relaes entre o individual e o coletivo sofreram enormes mudanas, assim como as relaes entre o mundo pblico e o privado (Gauchet, 2002; Enriquez e LHuilier, 2002; Bauman, 2003). H consequncias em todos os campos da existncia gerando novas construes subjetivas e modificando as formas de estabelecimento de laos sociais.

    Se, no momento anterior, enfrentavam-se os conflitos, agora eles so impedidos de ocorrer (Gauchet, 2004). H evitamento da conflitualidade em vrios nveis: com as instituies, com os grupos e consigo mesmo. Os laos sociais vividos atualmente devem ser considerados pouco conflituais. H transformaes na economia psquica havendo uma fragilizao superegoica e uma nfase na economia do gozo. Torna-se importante buscar sempre novos prazeres. Cada sujeito deve ser um gestor eficaz de seus prazeres. Surge uma intolerncia aos conflitos e as frustraes. nesse quadro que se desenvolve e obtm muito sucesso a literatura de autoajuda, que simplifica o sujeito humano, torna-o um operador de bem-estar e de prazer, e acena com promessas de felicidade. No entanto, ela s refora e amplifica o imaginrio social atual. Estamos muito distante das ideias enunciadas por Freud sobre a felicidade, representada por momentos espordicos. O autor diz: O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provm da satisfao (de preferncia, repentina) das necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possvel apenas como uma manifestao episdica. (Freud, 1929/1997, p.24).

    Na atualidade, felicidade compe uma norma a ser alcanada. Os sujeitos devem ser vigilantes aos seus prprios distrbios, aos dos outros e aos das instituies sociais, buscando aboli-los do seu campo para no serem perturbados. Mas, os dispositivos de gesto da felicidade, do bem- estar, se desdobram em outros, igualmente normativos: de controle dos sentimentos, de expanso da eficincia e da eficcia a todos os domnios da vida. Os indivduos se veem e so vistos como se fossem gestores de si, autnomos e independentes. Neste ponto, vale recorrer a Heidegger ao dizer que, na modernidade, h o abandono do pensamento meditante, fruto do pensamento que requer engajamento e forte empenho reflexivo e ocorre atravs de grande esforo. O que se observa o pensamento calculante, que surge da crena da razo como perfeio. O homem acredita que, por seus clculos, vai controlar o que est sua volta (Feijoo, 2004). Tal postura refora o princpio de programao permanente de si. O conjunto destas atitudes ou prticas de gesto de si so fruto do que Enriquez (1997) denomina imaginrio enganador. Esse imaginrio se quer magnnimo e impossibilitado de captar sua prpria posio de limite e aprisionamento.

    2- Sujeito cerebral Erhenberg (2009) aponta como a biologia est tendo uma posio de ascendncia,

    e mesmo hegemnica, sobre as disciplinas psi. Vrios fatores tm contribudo ao incremento desse fenmeno. O avano das imagens cerebrais e as novas tcnicas da biologia molecular tm permitido ver o crebro em ao. A neurologia se apresenta

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    como a chave dos processos de aprendizagem, dos comportamentos sociais, das disfunes neurolgicas e mentais (p.187). H uma identificao entre o conhecimento do crebro e o conhecimento de si mesmo, e a ideia de que, em um futuro prximo, poder-se- modificar o funcionamento cerebral visando aumentar as modalidades de eficincias humanas. Tal concepo, segundo o autor, parte da seguinte representao do individualismo: o homem est fechado na interioridade de seu corpo, lugar de verdade, e em seguida graas ao seu esprito entra em relao com outrem para formar uma sociedade (p.190). Neste sentido, poder-se-ia alterar o funcionamento do indivduo, havendo quase uma neutralizao do social.

    Essas novas construes cientficas produzem marcas subjetivas bastante significativas. A biologista Nancy Andreason continua nessa linha de raciocnio e afirma que as convergncias entre a biologia molecular e a neuroimagem j mudaram a maneira como ns pensamos e o modo de conceber as causas e o tratamento das cincias mentais (Erhenberg, 2009, p.191).

    Tais entendimentos no estariam partindo de ideias de que o sujeito um fardo para si prprio e deveramos poder simplific-lo a engenharia cerebral? As ideias freudianas dos conflitos entre instncias psquicas, campos pulsionais e divises, podem parecer, nesse modelo, pertencentes ao passado. A subjetividade, no dizer de Descombes (citado por Erhenberg, p.200), reduzida a uma subjetividade mnima. Questionamos: haveria, nesta perspectiva, ainda lugar para pensar na histria, nas suas heranas, nas transmisses e suas influncias no presente? Ou elas fariam parte de um tempo que pode ser cindido com o presente?

    No estamos aqui nos opondo aos progressos dessas cincias, mas questionamos algumas ideologias que as sustentam. O avano cientfico na rea mdica de extrema importncia, pois ele permite descobrir a cura de muitas doenas, disfunes, entre outros elementos. Esse lado no parece questionvel. Mas, o que se deve interrogar , de um lado, a euforia que se associa aos avanos neurocientficos e, de outro, os impactos que isto passa a ter nas produes subjetivas. Vale lembrar que a euforia muito difundida pela mdia. Recentemente, a chamada de um programa televisivo afirmava que a imagem cerebral permitiria saber o que as pessoas estariam sentindo. O programa mostrou os progressos da neurocincia, mas no foi apresentado, pelas imagens mentais, o que a pessoa, que era filmada e estava submetida experincia, estava sentindo. No entanto, finalizava com a mensagem que, em breve, daqui a alguns anos, isto poder ocorrer.

    A reduo dos sujeitos categoria mental induz a ideia de que diversas substncias qumicas ou novas tecnologias podem se associar para moldar ou modificar os indivduos. A engenharia do humano j ocorre, facilitada pelas mais diferentes formas de adies lcitas ou ilcitas. As primeiras so veiculadas pela medicina, pelos grandes laboratrios, que descobrem sempre novas molculas com funes importantes (mas, muitas vezes, com efeitos hiperdimensionados) e as repassam aos mdicos e eles a seus clientes.

    Muitas das drogas, ditas ilcitas, tambm tm a funo de produzir novas subjetividades. No se pode ignorar que, por detrs desses contextos, h imprios econmicos farmacuticos de enorme vulto. Mas, o que se pretende frisar, que todo

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    esse contexto contribui para forjar o imaginrio que concebe o indivduo como o mais eficaz possvel, que tolera minimamente limites e que ou banaliza a morte ou se surpreende com o fato da mesma ainda existir. A morte, real ou metafrica, causa surpresa, pois lembra a finitude, o limite; enfim, expresses que deveriam ser banidas do campo do sentir e da existncia humana. Vemos novamente aqui a ao do imaginrio enganador (Enriquez, 1997).

    3- O contexto de trabalho Nas ltimas dcadas, os mercados de trabalho tm passado por grandes

    transformaes, tendo repercusses em todo e qualquer indivduo. As intensas e velozes inovaes tecnolgicas, o incremento da globalizao, o aumento da competitividade no comrcio interno e externo, a reestruturao organizacional e as novas formas de gesto empresarial compem tal cenrio. Esse complexo contexto traz mudanas tanto nas concepes das atividades realizadas, quanto nas novas demandas dirigidas aos trabalhadores. Exigem-se flexibilidade, novas formaes e adaptaes rpidas ao movimento do mercado, tudo acompanhado por uma crescente ateno qualidade. H um paradoxo em se exigir eficcia mxima e obedincia flexibilidade, velocidade e urgncia na execuo das tarefas. Deve-se ser o mais eficaz possvel em um tempo cada vez menor, o que torna o exerccio das tarefas muitas vezes impossvel.

    Exige-se dos trabalhadores qualificados, crescentes conhecimentos, apoiados em tecnologias de ponta. Tal quadro descarta com facilidade empregos e demanda outros profissionais, preparados para a inovao, sendo esta um dos pilares da competitividade (Demo, 1999).

    Todo trabalhador est confrontado com situaes de intensificao, flexibilizao e alongamento do tempo de trabalho (Lhuilier e Roche, 2009). Essas caractersticas no deixam ningum inclume, pois tm incidncia nos coletivos de trabalho e na vivncia da subjetividade.

    Os trabalhadores se veem continuamente confrontados a ultrapassar seus limites (Ehrenberg, 1999) e a realizar tarefas em um tempo cada vez menor. O tempo tornou-se um dos dados mais importantes da hipermodernidade; ele sempre o elemento a ser levado em conta, pois se pensa poder domin-lo. Os objetivos a serem atingidos nos contextos laborais so cada vez mais exigentes. Os trabalhadores, ao no conseguir cumpri-los, tm medo de ser mandados embora e de confirmar o fantasma de serem sujeitos descartveis.

    Na maioria das vezes, quando o trabalhador encontra limites, a lgica de gesto no os relaciona organizao do trabalho, mas a incapacidades dos indivduos, havendo uma reduo do campo coletivo e institucional ao individual.

    O conjunto dessas exigncias causador de stress (Aubert e Pages, 1989), fadigas e depresses (Ehrenberg, 2000). Mas, elas no so expressas em termos coletivos. O indivduo as vive no seu silncio, pois compartilh-las pode parecer uma falta pessoal grave. Contudo, o temor da falha real ou simblica continua a assombrar qualquer sujeito. Nesse caso, podem-se considerar duas consequncias: ou o sujeito vive o cansao de ser si (em francs la fatigue dtre soi) (Ehrenberg, 1998) ou o medo vai realimentar os sistemas de hiperao e o individuo buscar uma melhor performance

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    (Aubert e Gaulejac, 1991). Mesmo se o sentimento de desamparo continua a atravessar os sujeitos, eles vo ser cada vez mais trabalhados por mecanismos defensivos, no permitindo que suas faces sombrias sejam reveladas.

    As trs dimenses que citadas no funcionam isoladas, se associam em sistemas e, cada um de ns, ao ser confrontado com a clnica psicanaltica ou com uma clnica extensa, vai perceber a presena desses elementos.

    Retomando a questo clnica

    A posio clnica constri um deslocamento com a realidade, se aproximando do mundo flutuante, referido no incio do texto, ou seja, a capacidade de ampliar e saborear cada instante, podendo adentrar nele. Ela tem a capacidade potica de criar, a partir de novas focalizaes, outros momentos. Ela deve poder ser diferente do mundo da velocidade, que caracteriza a atualidade em que o agora um modo rpido de encontrar o depois.

    As flutuaes na escuta devem estar tambm atentas a considerar a posio contratransferencial, seja ela na clnica psicanaltica, no campo de pesquisa, de consultoria ou outro. Tais flutuaes nos remetem construo de pontes entre vrios campos disciplinares. Pensar com a contribuio de pontes disciplinares encontra potncias e tambm limites. A disperso pode ser uma consequncia indesejada, o desejo de tudo abarcar, ou seja, o encontro com a onipotncia. No isto o sugerido aqui. Mas, ao contrrio, uma centrao na situao uma atitude de humildade, sabendo sempre que se trabalha na tenso que vai evitar culpabilizar o sujeito (individual ou coletivo) ou vitimiz-lo (Sato e Schmidt, 2004). A postura clnica do profissional deve poder ser intensa e presente, no plena, pois h temores, desejos e contradies. Devemos atentar para poder nos deixar tomar pelo mundo flutuante e no pela exigncia de mudana do mundo, pois, como vimos, elas tm forte peso nas significaes imaginrias contemporneas.

    Finalizando...

    Este texto pretendeu adentrar na complexidade, no se atendo unicamente clnica do setting analtico, mas nas suas mltiplas possibilidades. Quisemos indicar que a perspectiva clnica pode levar a um modo de se pensar na clnica, estabelecendo pontes com outras abordagens e teorizaes. Para Svigny (1993, p.20), a abordagem clnica uma teoria das relaes entre diferentes nveis de aes sociais: o pessoal, o organizacional e o macrossocial. Isto pode levar a diferentes nveis de anlise e de aes.

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    Submetido em maro de 2014 Aceito em maro de 2014