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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
SENTIR COM A IMAGINAÇÃO: EDGAR ALLAN POE, AUGUSTO DOS ANJOS E UM GÓTICO MODERNO
Deize Mara Ferreira Fonseca
Faculdade de Letras 2006
Deize Mara Ferreira Fonseca
SENTIR COM A IMAGINAÇÃO: EDGAR ALLAN POE, AUGUSTO DOS ANJOS E UM GÓTICO MODERNO
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciência da Literatura
Orientadora: Profª Drª Vera Lucia de Oliveira Lins
Rio de Janeiro 2006
FOLHA DE APROVAÇÃO
Deize Mara Ferreira Fonseca
Sentir com a imaginação: Edgar Allan Poe, Augusto dos Anjos e um gótico moderno. Dissertação de Mestrado em Ciência da Literatura (Teoria Literária)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, ______de____________de 2006 _________________________________________________________________ Professora Doutora Vera Lucia de Oliveira Lins (Orientadora) __________________________________________________________________ Professora Doutora Lucia Ricotta Vilela Pinto __________________________________________________________________ Professor Doutor Leonardo Pinto Mendes __________________________________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho __________________________________________________________________ Professor Doutor Raimundo Nonato Gurgel Soares
RESUMO FONSECA, Deize Mara Ferreira. Sentir com a imaginação: Edgar Allan Poe, Augusto dos Anjos e um gótico moderno. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006
A partir de uma teorização sobre o Gótico, esta dissertação visa discutir a poética de Edgar Allan Poe, ressaltando seus aspectos góticos; como inauguradora da modernidade literária, ao estabelecer a postura crítica do poeta e o predomínio da imaginação criadora como elementos norteadores de seu projeto literário. O suporte teórico vem da analítica de Immanuel Kant sobre o Belo e o Sublime, dos princípios de crítica de arte estabelecidos pelo Primeiro Romantismo Alemão, em especial pelos fragmentos de Novalis e dos estudos do poeta francês Charles Baudelaire sobre Edgar Allan Poe. O poeta brasileiro Augusto dos Anjos recebe uma leitura comparada com Edgar Allan Poe, bem como uma análise de sua obra, centrada sobretudo nos pressupostos góticos apresentados ao longo deste trabalho. O eixo principal da dissertação é a análise e o comentário de poemas dos dois autores estudados, culminando com uma leitura comparativa de poemas de ambos, cuja abordagem da temática gótica utiliza elementos semelhantes.
ABSTRACT FONSECA, Deize Mara Ferreira. Sentir com a imaginação: Edgar Allan Poe, Augusto dos Anjos e um gótico moderno. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006
Departing from a theory on Gothic, this thesis aims at discussing the poetics of Edgar Allan Poe, standing out its gothic aspects as opening to literary modernity, establishing the critical position of the poet and the predominance of the creative imagination as leading elements of his literary project. The theoretical support comes from the analytical of Immanuel Kant on the Beauty and the Sublime, from the principles of art criticism established by the First German Romanticism, mainly by the fragments of Novalis and from the studies by French poet Charles Baudelaire on Edgar Allan Poe. Brazilian poet Augusto dos Anjos deserves a comparative approach to Edgar Allan Poe, as well as an analysis of his works, centered on the gothic features presented throughout this thesis. The main axis of the thesis is the analysis and commentaries on some poems by both studied authors, culminating with a comparative reading of poems, under the gothic scenery presented by them.
Sumário
Introdução .................................................................................................................10
Capítulo1: América, o Começo.................................................................................14
Capítulo 2: O Gótico, o Sublime e o Poeta Crítico...................................................23
Capítulo 3: Europa: leituras e leitores.......................................................................72
Capítulo 4: Ecos no Brasil: Augusto dos Anjos........................................................95
Conclusão ...............................................................................................................115
Referências Bibliográficas .....................................................................................118
À Memória de meus pais - eterna presença na ausência -
Agradecimentos
À Força Criadora, origem de tudo.
Ao Professor Leonardo Mendes, que ao apresentar-me ao Gótico, mostrou-me que a
Literatura era um caminho possível.
À Professora Vera Lins, pela orientação serena, firme e imprescindível.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, que ao acolher-me mais uma vez, deu-
me a chance de recomeçar.
Aos muitos amigos feitos ao longo desta jornada, em especial Valéria MacKnight e
Bárbara Neves, pelo companheirismo.
E ao André, pelo porto seguro. Sempre.
“Sentir é uma maçada”. Estas palavras casuais de não sei que conviva à conversa de uns minutos, ficou-me sempre brilhando no chão da memória.
A própria forma plebéia da frase lhe dá sal e tempero.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego
Não podemos conhecer nada de exterior a nós próprios que nos supere(..) o universo é o espelho em que podemos contemplar apenas o que aprendemos a conhecer em nós.
Ítalo Calvino
Your worm is your only emperor for diet: we fat all creatures else to fat us, and we fat ourselves for maggots: your fat king and your lean beggar is but variable service, two
dishes, but to one table: that's the end.
Shakespeare, Hamlet, ato IV, cena III
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Introdução
As discussões sobre a modernidade multiplicam-se nesse início de século. Autores dos
mais diversos matizes oscilam entre o historicismo puro e o desconstrutivismo, em tentativas de
apreender a modernidade e seus limites e responder aos questionamentos da contemporaneidade.
Nesse panorama, julgo relevante aprofundar o estudo sobre um autor que, fora da Europa,
conseguiu estabelecer uma obra reconhecidamente seminal para a constituição do imaginário
ocidental moderno: o norte-americano Edgar Allan Poe, nascido em 1809 e morto em 1849.
Vida breve, porém intensamente vivida, inclusive do ponto de vista artístico, Poe não só
construiu a própria obra de forma original e ousada, como tornou-se um teórico cujos insights
permanecem até hoje insuperáveis. Não se concebe o entendimento da moderna short-story sem
passar pelos pressupostos por ele estabelecidos. Da mesma forma, toda a literatura imaginativa
contemporânea, das histórias policiais à ficção científica, deve tributo a Poe.
Porém, mais importante que os possíveis gêneros literários que encontram raízes no
trabalho de Poe, devemos destacar a sua concepção poética, absolutamente moderna e original.
Moderna por partir do primado da imaginação e do desejo para construir uma nova maneira de
pensar poeticamente, em que o imaginar não se torna um irracionalismo sem sentido, mas sim
uma elaboração mental rica e poderosa o suficiente para tentar responder a agudos mistérios da
condição humana, representados pela imaginação gótica.
Muitos nomes são dados às correntes literárias que discutem a imaginação, a fantasia, as
sensações e os sentimentos. Faz parte do senso comum rotular-se o Romantismo (ou
romantismos) como o momento em que há o primado do sentimento sobre a razão. Dessa forma,
11
tem-se a impressão de que a literatura que não trata diretamente de temas “racionais” ou
racionalizantes, pertence ao terreno do lúdico, que não exigiria grande elaboração mental, e que
trataria exclusivamente de transbordamentos emocionais.
Poe trabalha com uma hipótese (e a realiza) em tudo oposta a esta. Ele lida com o
sentimento, mas de forma lógica e organizada, ou seja, ele trata o sentimento com elaboração
artística. Em sua poética, imaginação e sensação cumprem uma função estética: causar um efeito
no leitor. Portanto, ao deslocar o eixo de importância da obra poética do criador para o receptor,
Poe termina por inaugurar a modernidade poética.
Na literatura brasileira, percebo um autor que, algumas décadas mais tarde, também se
livra das amarras da tradição literária e constrói, à semelhança de Poe, uma poética própria: é o
paraibano Augusto do Anjos, “filho do carbono e do amoníaco”, nascido em 1884 e falecido em
1914. Augusto também é inovador, transgressor e inaugura uma forma única de fazer poesia, na
qual ciência, imaginação e ousadia vocabular se combinam numa aventura única na poesia
brasileira, e talvez mundial.
Esta dissertação tem por objetivo discutir a poética de Edgar Allan Poe como construtora
da modernidade, tendo em vista o caráter transgressor de seu diálogo com a tradição romântica
através do gótico. Da mesma forma, pretendo situar Augusto dos Anjos neste mesmo contexto
transgressor. Para isso, pretendo explorar as ligações de Poe com o primeiro romantismo alemão,
bem como o papel de descoberta da obra de Poe por parte do poeta francês Charles Baudelaire.
Parece-me bastante possível que as raízes “decadentistas” de Augusto do Anjos venham dessa
mesma tradição.
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A novidade da poética de Poe não é apenas abordar a temática gótica, literariamente
recorrente desde a ascensão do romance inglês. A questão é o sofisticado aparato teórico e
lingüístico que o poeta utiliza em sua abordagem. O seu ponto de vista de crítico-poeta torna-se
fundamental para entendermos o porquê de seus poemas e contos terem sido consagrados.
A chamada literatura imaginativa sempre teve lugar à margem do cânone. Durante a Idade
Média, quando a historiografia oficial cuidava do religioso, a tradição oral urdia histórias onde o
fantástico e o macabro predominavam, e foram essas histórias da tradição oral que ficaram
presentes até hoje no imaginário popular, tendo sido depois aproveitadas por vários escritores.
Falar da morte, do medo e do horror, portanto, não é nenhuma novidade. Na verdade, o
predomínio da imaginação significa o predomínio do impulso interior do homem, e está ligado à
essência e à busca das origens, de resto, temas bastante caros ao Romantismo.
A questão é que, ao contemplar a necessidade de elaborar de maneira formal a abordagem
desses temas, Poe aproxima-se da visão kantiana do Belo e do Sublime, isto é, poesia não como
forma de comoção, mas de reflexão. Reflexão diante da grandeza da natureza e da dificuldade
formal de traduzir essa grandeza em Arte. Daí, o apelo temático ao fantástico e ao inusitado para
construir o literário.
Em seu livro Fantasy: the literature of subversion, Rosemary Jackson afirma que “The
fantastic traces the unsaid, and the unseen of culture: that which has been silenced, made
invisible, covered over and made “absent””.(JACKSON, 1998, p.4) Ou seja, para tornar esse
invisível em visível, e proferir o improferível, é necessário um grande investimento na forma
poética. É a forma que provoca a reflexão do sujeito, levando-o à elaboração da crítica.
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Assim, devemos ter em mente que, ao lançarem mão de temáticas transgressoras (a morte,
o horror,o crime, o repugnante), tanto Poe quanto Augusto dos Anjos o fazem através de uma
elegância lingüística que acaba por legitimar essas temáticas, tornando-se dessa forma,
transgressores dentro da transgressão.
Os desdobramentos do pensamento de Poe dão-se em várias direções. Para este trabalho,
desejo estabelecer o diálogo da obra de Poe com o primeiro romantismo alemão, do qual ele era
leitor, conforme pode ser atestado por referências literais em várias obras.
Num terceiro momento, abordarei a importância da leitura que Charles Baudelaire fez da
obra de Poe, apresentando-o à crítica e aos leitores europeus, onde encontrou imediata acolhida.
Em seguida, estabelecerei uma leitura comparada com o poeta brasileiro, alguém que a
meu juízo melhor responde à tradição estabelecida por Poe: Augusto dos Anjos, realizador
também de uma poética sofisticada, concebida a partir de temas e palavras até então tidas como
pouco afeitos à poesia.
Concluindo, pretendo fazer uma pequena digressão sobre como o gótico surge presente
hoje, na contemporaneidade, reforçando assim a relevância da leitura Edgar Allan Poe e Augusto
dos Anjos em nossos dias.
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1. AMÉRICA, O COMEÇO
1.1 Edgar Allan Poe e o panorama literário norte-americano no século XIX
As primeiras décadas do século XIX assistiram a um notável acontecimento nos Estados
Unidos: o nascimento de um público leitor. Antes de se definirem como nação – o que
aconteceria na segunda metade desse mesmo século através de uma dolorosa guerra civil – os
EUA já liam. E liam de maneira ora ingênua, ora ousada, como jovem país que eram. Para
compreender como e por que se formou esse público leitor, é preciso investigar o ambiente
cultural norte-americano no pré-guerra.
Por volta dos anos 1840, o país vivia a chamada Era do Homem Comum (The Age of
Common Man). As restrições ao voto foram abandonadas, e a crença igualitária de que todos os
homens (brancos) eram iguais e aptos à liderança tornou-se senso comum. Afirmava-se um novo
nacionalismo, no qual a crença no Destino Manifesto fazia com que a expansão do país fosse
vista como obra e vontade de Deus.(REYNOLDS,1999, p.7)
O desenvolvimento tecnológico também se expandiu enormemente, tanto no campo
quanto na cidade; os níveis de educação e alfabetização, da mesma forma, mostraram grande
ampliação. Do mesmo modo que ocorreu na Europa, o desenvolvimento econômico, apesar de
trazer o progresso, também aprofundou os contrastes sociais e a corrupção política. Em suma, os
EUA tornavam-se um país inserido na “modernidade”, com todas as contradições advindas dessa
condição.
Nesse contexto, surgiu um caldeirão de tendências filosófico-religiosas que ao
misturarem-se com a já existente religiosidade, fruto do próprio processo formador do país,
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marcariam para sempre o imaginário cultural norte-americano, e que iam desde o Unitarismo ao
Transcendentalismo. Basicamente, tais tendências pregavam a simplicidade e uma maneira
renovada e original de louvar a Deus, ou seja, uma fusão das idéias seminais que formaram os
EUA com o espírito contestatório característico de uma sociedade que começava a questionar os
próprios contrastes, frutos de um desenvolvimento eivado de materialismo.
A liberdade de pensamento e o individualismo, característicos do imaginário romântico
desde a Europa, ganharam nos EUA uma coloração ideológica diversa daquela do Velho
Continente. A busca por um novo modelo de sociedade, com valorização do patriotismo e
exaltação da nova e aparentemente infinita fronteira norte-americana, chocava-se de modo
irreconciliável com a realidade de uma sociedade a um só tempo escravocrata e mercantilista. Os
EUA do início dos oitocentos até a guerra civil tornaram-se dessa forma uma terra de paradoxos,
dividida entre os sonhos de pureza e espiritualidade e a realidade de um crescente materialismo.
Nesse caldeirão ideológico formou-se uma avalanche de publicações escritas. Os cinco
periódicos que circulavam em 1794 tornaram-se mais de quinhentos por volta de 1860. A
melhoria do serviço postal e o rápido desenvolvimento da indústria gráfica também contribuíram
de forma significativa nesse processo. Com a facilidade de publicação e circulação, rapidamente
a literatura foi abandonando os contornos didáticos e religiosos que apresentava até então, para
começar a ceder espaço para a literatura imaginativa. Romances, contos e poemas pouco a pouco
foram tomando lugar dos sermões e dos discursos como as principais formas literárias norte-
americanas.
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Dessa forma, tal período, definido por F. O . Matthiessen como American Renaissance,
teve a característica única de formador de escritores profetas e visionários, como Ralph Emerson,
Walt Whitman, Emily Dickinson e também, ao seu modo único, Edgar Allan Poe.
Conforme diz Reynolds:
The emergence of America’s national literature in the first half of the nineteenth century resulted, in large part, from a dramatic shift in the rhetorical strategies of popular texts. Many different kinds of social texts suddenly lost their semiotic equivalences and became colored by a radical infusion of the imaginative. Popular sermons became increasingly dominated by secular anecdote, humor, and pungent images. Popular reform literature moved from staid, rational tracts on the remedies of vice to sensational, often highly metaphorical exposés of the perverse results of vice. Newspapers went through an especially momentous change. The rise of the brash, garish penny papers, supplanting the stodgy sixpennies of the past, brought a new hyperbolic emotionalism and rather amoral exploitation of the tragic or perverse. Even certain papers that tried to remain objective mirrored a society whose republican ideals were mocked by the institution of chattel slavery in the South and the wage slavery in the North. On all fronts, it seemed that signifiers were being harshly torn from signifieds, as religious, political, and even journalistic signs suddenly lacked reliable referents. (REYNOLDS,1988, p.7)
Desse modo, podemos situar o contexto em que surge na literatura norte-americana Edgar
Allan Poe, lembrando inclusive que sua militância como crítico literário em diversos periódicos
forjou sua forma de poeta crítico. Arguto analista, Poe foi capaz não só de elaborar um
pensamento original, como também de traçar o panorama do que era a literatura norte-americana
de seu tempo, criticá-la e reelaborá-la, mostrando outros caminhos.
Edgar Allan Poe nasceu em Boston, Estados Unidos, em 1809 e faleceu na cidade de
Baltimore, também nos EUA, em 1849. É considerado até hoje um dos maiores escritores da
língua inglesa de todos os tempos, não somente pela excelência de sua obra literária, que inspirou
grandes escritores europeus, como por exemplo, Baudelaire; mas especialmente pela discussão
analítica que ele empreende a respeito do fazer literário em seu trabalho crítico.
Conforme salientei, o exercício da crítica por parte de Poe era fundamentado em uma
intensa atividade literária poético-ficcional. Poe sempre se dedicou ao mesmo tempo à crítica, à
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ficção e à poesia. Sem dúvida, podemos afirmar que a crítica de Poe, é antes de tudo, um
exercício poético, ou mais do que isso; um exercício e uma reflexão contínuos sobre o fazer
poético. A obra de Edgard Allan Poe também costuma ser alvo de muitas análises simplistas. Poe
é constantemente chamado de “o criador das histórias de detetive” ou “o mestre do terror”. Isto
quando tais definições não resvalam para o terreno da análise da conturbada vida pessoal do
escritor, mostrando-o como pouco mais que um alcoólatra e drogado que escrevia histórias
aterrorizantes, como se estes fatos autorizassem a definição de sua obra como mero fruto de
delírios psicóticos.
O fato é que o universo ficcional de Poe é rico e multifacetado, e dentre estas múltiplas
facetas destacam-se a consciência da própria estranheza, a busca do autoconhecimento e da
identidade plena, que muitas vezes revela-se frustrante e infrutífera, podendo levar ao desespero
ou até mesmo à morte.
Edgar Allan Poe não é somente um poeta controverso. Ou antes, melhor que defini-lo
como um poeta controverso, mais seguro é defini-lo como ele gostava de se autodenominar:
como um homem de Literatura. Nascido norte-americano, foi na cultura européia que Poe
encontrou melhor recepção crítica. Indubitavelmente, sua dicção é européia, assim como a
ambientação da maior parte de seus contos e poemas. Porém, não devemos ter Poe na conta de
um “norte-americano renegado”, como o tiveram muitos de seus contemporâneos e compatriotas,
incapazes de compreender a genialidade genuinamente americana do poeta. Ressalto aqui o
caráter norte-americano de Poe, por estar ele livre de preconceitos e chavões, e pronto para
desabusadamente, criticar qualquer trabalho escrito que lhe caísse em mãos. O exercício da
crítica, longamente praticado em periódicos da nascente indústria editorial norte-americana,
permitiu a Poe o acesso a grande parte da produção literária dos EUA de então. Sendo ele, como
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podemos deduzir por seus escritos, um admirador veemente da produção européia de seu tempo,
não surpreende que a maior parte de suas críticas recaíssem sobre a literatura popular, a pulp
fiction de então. Tal ficção de entretenimento estava longe do que Poe considerava como
literatura imaginativa de qualidade. Seus elogios ao trabalho de Nathaniel Hawthorne não eram
gratuitos: Poe soube reconhecer no autor de The Scarlet Letter um seu igual: um escritor
comprometido com o desnudamento do imaginário secreto norte-americano. Ainda que se
valendo em seus escritos de cenários e ambientações européias, é na crítica e na construção da
literatura e da mentalidade norte-americanas que Poe está engajado.
As agruras da vida pessoal de Poe são bastante conhecidas e não serão objeto deste
trabalho. Cabe porém ressaltar aqui, que dentre as atividades de escritor, o exercício da crítica
literária jornalística foi o momento de maior estabilidade profissional do escritor, e foi também a
partir da publicação de seus trabalhos em periódicos que Poe começou a ganhar respeitabilidade
literária. Em outubro de 1833 ele recebeu um prêmio de cinqüenta dólares oferecido pelo jornal
The Saturday Visitor, de Baltimore, pelo conto “Manuscrito encontrado numa garrafa”(MS
Found in a Bottle). Foi seu primeiro êxito, e a partir daí sua carreira desenvolveu-se, ainda que de
forma irregular.
Graças ao prêmio recebido em Baltimore, Poe é apresentado a Thomas White, editor do
Southern Literary Messenger, que em 1835 começa a publicar seus contos. Dado o sucesso
alcançado, Poe é convidado para ser redator do jornal, encarregado inclusive das resenhas dos
lançamentos. Foi o início de uma profícua carreira como crítico. Leitor voraz, Poe resenhou e
criticou, muitas vezes com severidade, muitos de seus contemporâneos.
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Como jornalista, Poe mostrou-se um êxito absoluto, permanecendo no Southern Literary
Messenger até 1857. Durante seu tempo como redator, a circulação do jornal passou de
setecentos para três mil e quinhentos exemplares, chamando a atenção de todo o país, ávido de
novidades.
O trabalho de Poe como redator do Messenger era variado e intenso. Escrevia poemas e
republicava outros, fazia resenhas e comentários literários em geral. Nessa época, a cena de
crítica literária nos EUA era ainda incipiente e um tanto superficial. Ela ganhou novos contornos
com a chegada de Poe. Sem dúvida, a seriedade de sua crítica, muito diversa da feita até então
nos EUA, trouxe-lhe vários desafetos. Estes desafetos porém, não ultrapassaram jamais em
relevância os admiradores de sua obra crítica, especialmente no exterior, caso, por exemplo, do já
citado Baudelaire, de Paul Valéry e Mallarmé. (ALLEN, 2001, p.29)
A crítica consistente de Poe, muito além das resenhas, afirmou-se em seus ensaios.Mais
do que pensar sobre o fazer poético, os ensaios revelam uma preocupação e uma reflexão que só
são possíveis dentro de um projeto literário, o que sem dúvida era o objetivo final de Poe. Ele
percebia que a cena literária renovava-se nos EUA e no mundo, e que havia necessidade de um
escopo teórico para essa mudança.
Porém, o que será discutido aqui não é o trabalho de Poe como comentador de obras
literárias (ou resenhista), mas sim alguns de seus poemas e seus escritos a respeito da função
poética em si. Nesse campo, dois de seus ensaios se destacam: “O Princípio Poético” (“The
Poetic Principle”) e “Filosofia da Composição” (“The Philosophy of Composition”). Neste
último, Poe descreve de maneira reflexiva o processo de criação de seu mais famoso poema: “O
Corvo” (“The Raven”). Este poema, traduzido e analisado à exaustão por vários poetas e
20
estudiosos ao longo do tempo, traz em si uma síntese dos princípios que Poe julgava
indispensáveis à composição poética, destacando-se entre eles o efeito. A partir desta
preocupação como o efeito da composição poética sobre o leitor, Poe, de certa forma, inaugura a
modernidade, ao deslocar o eixo de importância da obra poética do criador para o receptor. Este
aspecto será analisado mais detidamente ao longo deste trabalho.
A grande contribuição de Edgar Poe para a crítica poética talvez seja a sua constatação da
possibilidade de se falar racionalmente (ou seja, analiticamente) sobre temas tidos como
“irracionais”. Neste aspecto, talvez Poe tenha sido movido pela sua profunda irritação diante da
ficção popular que se produzia nos EUA de então. Poe ressentia-se da falta de rigor técnico
presente em boa parte da literatura produzida na América da época, conforme cita Reynolds:
In Poe’s eyes, the masses demanded agitation and irrationalism in literature, while more cultivated readers looked for quietude and instruction. This view of the American public as sensation-hungry is visible in much of his literary criticism. For instance, he wrote that respectable quarterly reviews “have never been popular” because they are “too styled…In a word, their ponderosity is quite out of keeping with the rush of the age.” (REYNOLDS, 1988, p.227).
Diante deste exemplo é fácil imaginar porque Poe, muitas vezes, despertou a ira de seus
contemporâneos. Ao mesmo tempo, escritores europeus viram nele a resposta que há muito
buscavam em termos de inovação literária e predominância da imaginação com organização da
inteligência. Curiosamente, quem melhor definiu a relação de amor e ódio entre Poe e a vida
literária norte-americana foi um francês, também considerado maldito em seu tempo e hoje
consagrado como um dos maiores nomes da poesia de todos os tempos: Charles Baudelaire. O
poeta francês ocupou-se não apenas da tradução de várias obras de Poe, mas escreveu uma série
de ensaios em que faz uma defesa veemente e apaixonada da poética e do homem Edgar Allan
Poe. Certamente Baudelaire, mestre da poesia do spleen, viu em Poe uma alma irmã. Em suas
palavras :
21
Repito que, para mim, formou-se a convicção de que Edgar Poe e sua pátria não eram do mesmo nível. Os Estados Unidos são um país gigantesco e criança, naturalmente ciumento do velho continente. Orgulhoso de seu desenvolvimento material, anormal e quase monstruoso, esse recém-chegado na História, tem uma fé ingênua na onipotência da indústria; está convencido, como alguns infelizes de nós, de que ela terminará por comer o Diabo. O tempo e o dinheiro tem aí um valor tão grande! A atividade material exagerada até as proporções de uma mania nacional, deixa nos espíritos bem pouco lugar para as coisas que não são da Terra. Poe, que era de boa cepa e além do mais professava que a grande infelicidade de seu país era não ter uma aristocracia de raça, viu, dizia ele, que entre um sem aristocracia o culto do Belo não pode senão se corromper, diminuir e desaparecer. Poe – que acusava nos seus concidadãos, até no luxo enfático e custoso todos os sintomas do mau-gosto característico dos novos ricos; que considerava o Progresso, a grande idéia moderna, como êxtase de papa-moscas; e chamava os “aperfeiçoamentos” do habitat humano de cicatrizes e abominações retangulares – era lá um cérebro singularmente solitário. Ele não acreditava senão no imutável, no eterno no self-same, e gozava – cruel privilégio numa sociedade amante de si mesma! – desse grande bom senso à Maquiavel que vai à frente do sábio, como uma coluna luminosa, através do deserto da História. (BAUDELAIRE, 2003, p.81)
Neste trecho, Baudelaire não somente celebra a genialidade de Poe, mas faz também uma
análise acurada dos motivos que levaram à sua rejeição no cenário intelectual da América
daquele tempo. As preocupações estéticas de Edgar Poe chocavam-se com o materialismo e o
utilitarismo reinantes em seu meio. Ao advogar a Arte como prazer pela beleza, despojando-a de
qualquer aspecto utilitário ou sensacionalista, Poe colocou-se ao mesmo tempo na vanguarda do
mundo e à margem de sua própria sociedade. Sem dúvida, a modernidade de Poe (e também de
Baudelaire) fica patente neste trecho, inquietante em sua contemporaneidade. Se analisarmos
bem, o pensamento dos EUA de hoje pouco difere do descrito no parágrafo acima.
Uma boa medida do quanto a literatura sensacionalista incomodava Poe pode ser
percebido não em um ensaio, mas no conto satírico “Como escrever um artigo à moda
Blackwood”(“How to write a Blackwood Article”). O Blackwood’s Magazine foi uma publicação
de imenso sucesso na Inglaterra, em especial na era vitoriana, tendo sido publicado entre 1817 e
1980. O periódico notabilizou-se pela publicação de histórias de horror, com toques
sensacionalistas. O conto de Poe, narrado em primeira pessoa, mostra o encontro entre a escritora
22
Psyche Zenobia e o editor do Blackwwod’s Magazine quando este dá a ela a “receita” para
produzir uma boa história de terror:
Perhaps you do might do better. Take a dose of Brandreth’s pills, and then give us your sensations. However, my instructions will apply equal well to any variety of misadventure, and on your way home you may easily get knocked in the head, or run over by an omnibus, or bitten by a mad dog, or drowned in a gutter. But to proceed. ‘Having determined upon your subject, you must next consider the tone, or manner, of your narration. There is the tone didactic, the tone enthusiastic, the tone natural- all common- place enough. But then there is the tone laconic, or curt, which has lately come much into use. It consists in short sentences. Somehow thus: Can't be too brief. Can't be too snappish. Always a full stop. And never a paragraph. Then there is the tone elevated, diffusive, and interjectional. Some of our best novelists patronize this tone. The words must be all in a whirl, like a humming-top, and make a noise very similar, which answers remarkably well instead of meaning. This is the best of all possible styles where the writer is in too great a hurry to think. (POE, 1994, p.653)
O que Poe coloca aqui em tom satírico seria depois posto em termos de teoria literária em
seus ensaios: a importância do tom para a literatura, ainda que o tema fosse o macabro ou mesmo
o grotesco, não estava no fato de o escritor ser um portador de sensações. Não há nada a ser
apenas sentido, mas sim a ser pensado, elaborado, trabalhado artisticamente. A falta de precisão
artística era o que Poe reclamava na escrita popular da América do seu tempo, e ele muitas vezes
tornou essa crítica explícita em sua ficção.
23
2. O GÓTICO, O SUBLIME E O POETA CRÍTICO
2.1 Do Gótico ao Romantismo
É comum encontrarmos nas ruas das grandes cidades grupos de jovens trajando roupas
pretas, usando maquiagem pesada, com adereços extravagantes, como crucifixos, medalhões e
correntes. Dizem adotar uma atitude contestadora em relação à sociedade contemporânea e aos
valores do capitalismo. Intitulam-se góticos, da mesma forma que algumas bandas de rock de
sucesso, como a inglesa Bauhaus (cujo nome é inspirado no expressionismo alemão), famosos
pela atitude ao mesmo tempo contestadora e melancólica. Da mesma forma, filmes de terror,
mistério e suspense são a força motriz da indústria de entretenimento de Hollywood. A chamada
indústria do medo movimenta milhões de dólares todos os anos.
O que tais manifestações têm em comum? Simples. Elas representam a versão
contemporânea de sentimentos ancestrais do homem: a atração pelo macabro, pelo soturno, pelo
inexplicável, e a presença do medo, que repele e atrai o homem ao mesmo tempo, desde eras
ancestrais. Shakespeare, ao construir uma das mais perfeitas representações artísticas da
desumanização de um homem, põe na boca de Macbeth as seguintes palavras: “I have almost
forgot the taste of fears”. O medo é humano, inerente à condição humana, na qual convivem a
certeza da finitude da existência e a incerteza da finalidade da vida.
Desde o princípio de sua existência terrestre, o ser humano, como qualquer outro animal,
guiou-se pelo instinto visando sua autopreservação. Porém, não foi somente o instinto que fez o
homem diferenciar-se dos outros animais e construir civilizações cada vez mais sofisticadas e
com aportes tecnológicos cada vez mais significativos. O que moveu e move o ser humano em
sua jornada evolutiva é uma combinação, nem sempre harmônica, entre razão e sentimento.
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Esta dualidade da psique humana muitas vezes é analisada como antagônica, ou seja, ora
prevalece a razão, ora o sentimento. Inclusive os estudos de periodização literária costumam
enfatizar os movimentos pendulares que guiam as diversas épocas, com a prevalência de uma ou
outra hipótese. Esta visão maniqueísta precisa ser relativizada, já que não há possibilidade de que
o homem seja somente uma coisa ou outra. A dualidade é própria da existência inteligente do ser
humano.
Uma vez recobrado do impulso instintivo inicial, o ser humano percebeu-se como um ser
diferenciado dos outros, ao constatar que por meio de estratégias e instrumentos, ele conseguia
manejar o mundo, mesmo não sendo mais forte ou mais ágil que os outros seres. Diante disto, o
homem voltou-se para a busca de explicações para compreender o mundo que o cercava, sua
própria origem e a razão de sua existência. Já nesse momento prevalece a tensão criadora entre
razão e emoção. O racional busca respostas, porém tais respostas são movidas pelo emocional,
ou, pode-se dizer assim, pelo poético: surgindo daí o mito, a primeira tentativa do homem de
apreender e significar o mundo à sua volta.
O mito pode ser compreendido como a primeira manifestação poética humana. O mito
conta uma história que remete à origem do homem, em que a imaginação tenta dar corpo a uma
necessidade exigida pela razão. (ELIADE, 1972) Em verdade, trata-se da tentativa de sacralizar a
compreensão do mundo, através de uma contestação irrefutável: a finitude da existência humana.
Ao mesmo tempo em que percebe as maravilhas do mundo que o cerca, o homem também
vislumbrou a brevidade e a fragilidade de sua permanência neste espaço: mais do que isso,
percebeu que da mesma forma que não conseguia explicar sua origem sem recorrer ao mítico e ao
sagrado, também não conseguia explicar o que acontecia quando o impulso vital lhe abandonava
o corpo. A existência do homem, cercada de dúvidas, é apenas um passo para sua única certeza: a
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do próprio perecimento. A vida nada mais é, portanto, que uma espera inquieta para um destino a
um só tempo incerto e desconhecido.
Portanto, percebe-se o homem num conflito entre dois estados: a razão que quer
explicações e o sentimento que percebe agudamente a incerteza. Nesses tempos míticos, pela
própria presença do poético, conseguimos perceber a prevalência dos sentimentos. E é de
sentimentos que pretendo ocupar-me agora.
Dentre os sentimentos humanos, o medo talvez seja o mais primitivo e ao mesmo tempo o
mais intenso de todos. É o medo que muitas vezes motiva ou impede o ser humano na realização
de suas principais ações, ainda que nem sempre isto ocorra de forma consciente. E o tipo mais
intenso de medo é exatamente o medo do desconhecido.
Das possíveis representações do medo, o Inferno é sem dúvida a mais presente no
imaginário popular, tendo tido apelo literário desde as épocas mais remotas. A origem da idéia de
um local de expiação e castigo por atos errados perde-se no tempo. A existência de um “local
subterrâneo onde estão as almas dos mortos” (FERREIRA, 2001, p.387) é normalmente aceita,
muitas vezes até por quem nega a idéia contrária, ou seja, a existência do Paraíso.
Literariamente, uma das mais remotas e mais belas (com toda a beleza que o terror pode
ter) descrições do que seria o Inferno, é apresentada por Dante Alighieri (1265-1321) na sua
Divina Comédia:
Per me si va nella, città dolente, Per me si va nell’etterno dolore, Per me si va tra la perduta gente. Giustizia mosse il mio alto fattore: Fecemi la divina potestade La somma sapienza e ‘l primo amore Dinazi a me non fuor cose create
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Se non etterne, e io etterna duro. Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate1. (ALIGHIERI, 1999, p.30-31)
“Deixai ó vós que entrais toda a esperança”.... Por esta frase, percebe-se que o Inferno
concebido por Dante era um local de destino, portanto externo ao homem. Não somente Dante
viu o caminho do inferno como uma jornada: poderíamos citar também os Autos de Gil Vicente,
em que a visão do inferno como castigo aos pecadores é constante.
Enfim, o inferno é sempre visto como um (temido) possível futuro, um local aonde é
possível que cheguemos, e nunca onde podemos já estar. Aqueles que negam a possibilidade da
transcendência na vida humana admitem que o inferno já possa estar aqui, mas não contido no
próprio homem. É o que nos diz Sartre em sua famosa frase: “o inferno são os outros”. Sartre
desejava demonstrar que a “angústia” e a “náusea” existentes na vida humana eram frutos de
conflitos externos, do embate com os outros indivíduos, e não algo presente na própria essência
da natureza humana.
O que o gótico reconhece é exatamente isso: o estranho e o angustiante não são externos,
mas sim, internos ao homem, confirmam claramente que o homem é o inferno de si mesmo. Ele
traz o inferno dentro de si. Essa visão do inferno interior de cada um, que a todos nós devora,
assombra e faz viver, perpassa toda a obra ficcional de Poe, em especial alguns contos e poemas.
As idéias de sentimentalismo, de irracionalidade, de desequilíbrio, sempre estiveram
intrinsecamente ligadas ao imaginário romântico, e por extensão ao gótico
1 Por mim se vai das dores à morada/Por mim se vai ao padecer eterno/ Por mim se vai à gente condenada/ Moveu Justiça o Autor meu sempiterno/Formado fui por divinal possança/Sabedoria suma e amor supremo/ No existir, ser nenhum a mim se avança/ Não sendo eterno, e eu eternal perduro: /Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança !
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É curioso perceber que o ideário gótico em geral sempre esteve à margem, por ser
considerado de mau gosto, violento e pouco sofisticado. E nisso reside a contribuição
indispensável de Poe: ele demonstrou que o mau gosto não estava no gênero ou na temática, mas
na forma como ele era difundido. Daí, sua preocupação estética, que o levou à formulação de
teorias literárias.
O gótico é o reino da imaginação e das descobertas. São fronteiras que se abrem através
do inexplicável de labirintos, catacumbas e masmorras. É o império do buscar, do querer, e mais
do que do saber, do experimentar. É a incerteza, mais do que as certezas do racionalismo e do
cientificismo, que vão trazer a evolução do homem.
Poe reivindica seriedade para falar do horror por entender que essa é a verdadeira face da
condição humana. Viver é a febre que ele identifica igualmente com a morte. Portanto, falar do
horror é falar do absurdo da condição humana: lutar pela vida tendo certeza que o destino final é
a morte.
As origens do termo gótico remontam à Idade Média. O nome é derivado dos Godos, tribo
germânica que vagava pela Europa por volta do século IV procurando criar um reino por sobre os
escombros do Império Romano. Logo o termo tornou-se sinônimo de barbarismo, estranhamento,
daquilo que mais tarde caracterizaria toda a idéia de contracultura: a noção de mundo às avessas.
É sabido que durante o Renascimento houve a valorização dos ideais greco-romanos de beleza,
equilíbrio e sobriedade. Porém, esse interesse pelo mundo clássico também trouxe à tona o outro
lado desse mesmo mundo. As escavações arqueológicas revelaram um mundo de câmaras
subterrâneas e grutas decoradas com esculturas, pinturas e objetos que mostravam faces de uma
cultura greco-romana diferente. Monstros metade homem, metade animal apareciam em cenas
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orgiásticas com seres humanos. Plantas entrelaçavam-se como molduras dessas cenas ao mesmo
tempo repulsivas e fascinantes, que revelavam a face oculta de um mundo aparentemente
equilibrado. As obras de arte que apresentavam essas cenas, por terem sido encontradas em
grutas, tornaram-se conhecidas como grotto-esque (grotesco). Não é por acaso que Poe intitula
sua coletânea de 1840 de Tales of Grotesque and Arabesque. Ele sabe que vai falar de um mundo
terrível, assustador, repulsivo e ao mesmo tempo irresistivelmente fascinante, algo que está
presente na natureza oculta de cada ser humano desde sempre, em todas as épocas, culturas e
lugares “El grotesco es ‘sobrenatural’ y ‘absurdo’, quiere decir que en el se destruyen las
ordenaciones dominadoras de nuestro mundo”.(KAYSER, s/d, p.32)
O nome gótico significou arquitetura antes de significar literatura – a arquitetura medieval
assiste ao surgimento do estilo gótico em 1127, nos contornos da basílica de Saint-Denis, na
então Île-de-France, hoje Paris. O estilo gótico é identificado com o período das grandes
construções: torres altas, espaços amplos, vitrais coloridos deixando passar a luz, buscavam levar
o homem à comunicação direta com Deus. Aliados aos arcos e abóbadas altíssimas, estavam os
ornamentos e esculturas, cujo melhor exemplo são as gárgulas da Catedral de Notre Dame.
Mesmo que esse estilo arquitetônico estivesse fortemente associado à religiosidade cristã-
católica, sua identificação com o excesso e a intensidade são patentes.Vejamos o que dizem
Janson e Janson:
As naves ficaram cada vez mais grandiosas e os contrafortes mais rendilhados, até que, em alguns casos, chegaram mesmo a ruir. Talvez o objetivo de glorificar a ordem divina, como o abade Surger se propusera a fazer, houvesse imperceptivelmente se transformado em uma competição muito semelhante à da Torre de Babel, que, como estamos lembrados, terminou de forma desastrosa. É também surpreendente constatar que tantas construções no estilo conhecido como Gótico Flamboyant (“flamejante”), como é chamada a última fase, tenham permanecido em pé. As formas ondulantes, em curvas e contra-curvas dos lavores em pedra da Igreja de Saint-Maclou de Rouen (fig.136) são tão exuberantes que tentar localizar os “ossos” do edifício transforma-se quase em um jogo de esconde-esconde. O arquiteto tornou-se um virtuose que
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sobrecarrega o esqueleto estrutural com uma trama tão densa e fantasiosa de elementos decorativos, que a estrutura fica quase completamente oculta.(JANSON E JANSON, 2000, p.135)
A arquitetura gótica objetivava um efeito emocional sobre as pessoas, evocando a
sensação de estar à mercê de um poder superior, diante do qual o homem se sente vulnerável e
insignificante. Em suma, um espaço do oculto e do não-explicável.
Convencionalmente, o uso do termo gótico em literatura está associado ao romance
gótico, surgido na Inglaterra na esteira do romance (novel) como uma forma estruturada de
narrativa, a partir do século XVIII. As transformações ocorridas na sociedade inglesa nesse
século explicam o surgimento de uma nova forma de narrativa, em que o eixo das atenções da
trama deslocou-se para o indivíduo e para a afirmação da identidade pessoal. A poesia e o drama
eram formas literárias consagradas desde a remota Antigüidade, o romance, ou narrativa longa,
com complexidade de trama e personagens, firmou-se especialmente a partir do século XVIII,
com as primeiras novels inglesas, que superaram e sofisticaram o modelo dos romances de
cavalaria. O mais significativo produto deste gênero insurgente no século XVIII talvez seja
Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719).
Em seu livro Dez Lições sobre o Romance Inglês no século XVIII, Sandra Vasconcelos
associa o romance gótico inglês à tradição do cultivo do fantástico e do maravilhoso, presente no
imaginário da humanidade desde tempos imemoriais, conforme já discutido neste trabalho:
Modalidade literária das mais antigas e de longa tradição, a fantasia, que sempre esteve presente nos mitos, lendas e no folclore, lança suas raízes também na literatura da desrazão e de terror que se convencionou chamar de “gótica”. A publicação de The Castle of Otranto, de Horace Walpole, em 1764, reintroduziu, por assim dizer, no seio dos ideais neoclássicos de harmonia, decoro e moderação, o horrível, o insano e o demoníaco, escancarando as contradições que marcaram a assim chamada Era da Razão. (VASCONCELOS,2002, p.119)
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Percebe-se facilmente que o romance gótico é a reação de uma sociedade em crise às
certezas iluministas, que já não serviam como resposta às demandas daquela sociedade. É
importante notar também que a palavra fantasia vem do grego φανταζϖ, que significa
manifestar, tornar visível.(JACKSON,1986, p.13) Portanto, a fantasia se constitui em um tipo de
narrativa que estabelece e desenvolve um “antifato”, ou seja, faz o papel do impossível. A
fantasia é uma história baseada em uma aberta violação do que é geralmente aceito como
possível.
O gótico, nascido arquitetura e transmutado em romance, vai consolidar-se no
romantismo como sinônimo de contestação e de busca de respostas para o misterioso e para o
inexplicável. A imagem mestra é novamente arquitetônica: trata-se do labirinto, que sugere um
caminho, uma jornada em busca do desconhecido, das respostas que não estão presentes no
mundo racional e conhecido.
O labirinto apresenta-se desde a Antigüidade Clássica como metáfora de uma tensão
fundamental à condição humana. De fato, desde a aventura de Teseu, o labirinto surge como um
caminho a ser vencido, através do qual um prêmio, uma descoberta, enfim, algum tipo de
compensação será alcançado. Essa imagem é tremendamente poderosa para se compreender o
gótico: é mergulhar no desconhecido, sem saber se o rumo tomado é o da danação ou da
salvação, mas com a certeza de que a busca é que trará o crescimento e a elevação do espírito
humano. Não é por acaso que Poe torna-se o mestre e o criador das tramas detetivescas: ele sabe
que a tentativa de desvendar o desconhecido é, antes de tudo, uma aventura que une o intelecto e
o espírito. Como ele diz no parágrafo de abertura de “The Murders in the Rue Morgue”: “The
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mental features discoursed of as the analytical, are, in themselves, but little susceptible of
analysis. We appreciate them only in their effects. “(POE, 2003, p.75)
Dessa forma, o labirinto torna-se uma metáfora da mente do romântico – é a sua paisagem
interior. E é nesse ponto que o Romantismo encontra o gótico.
O período compreendido entre o final do século XVIII e o início do século XIX foi
marcado por intensas transformações sociais no mundo ocidental. Em 1776 ocorre a chamada
Revolução Americana, seguindo-se em 1789, a Revolução Francesa. Paralelamente a estes
acontecimentos políticos que promoveram intensas mudanças institucionais, no campo
econômico ocorre uma intensa transformação no modo de produção capitalista, que se consolida
com o advento da máquina a vapor, que impulsiona a industrialização de uma maneira jamais
vista.
Obviamente, a arte vai dialogar com essas mudanças. O Romantismo apresenta-se como
uma tradição artística que busca aprofundar a discussão de questões sensíveis ao ser humano,
onde se destacam a busca da verdade interior de cada um, bem como do sentido da vida, em seu
significado mais profundo. A literatura romântica persegue respostas, e usa para isto, muitas
vezes, caminhos instintivos, além da realidade ordinária e das sensações comuns. Isto ocorre
porque a literatura romântica é a representação artística de um momento de crise, de grandes
questionamentos sociais e pessoais, que o racionalismo do séc XVIII já não conseguia dar conta.
A literatura romântica mostra não somente o sentimentalismo, mas especialmente, o espanto do
homem diante de um mundo novo que se descortina. Pode-se, portanto, ter na palavra emoção
com todas as conotações, uma das possíveis traduções do romantismo.
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Porém, há necessidade de se estabelecer os limites dessas manifestações emotivas no
Romantismo. De fato, mais do que o primado da emoção, como é senso comum falar-se sobre o
Romantismo, o que passamos a ter, nesse período, é o início de uma profunda (e até hoje,
infinita) análise sobre o fazer da Arte. Passou-se a discutir não só a natureza, ou a utilidade da
arte – assunto em voga desde a antiguidade clássica – mas também os mecanismos e processos
que levam o artista a produzir sua obra. Nesse campo, é fundamental citarmos os Românticos
alemães, possivelmente os primeiros a pensar de forma diversa do até então vigente, sobre o
conceito de crítica de arte. As relações estabelecidas pelo Romantismo (especialmente o
Romantismo Alemão e sua possível influência na obra de Poe) entre o conceito de crítica e a
própria literatura em si, serão discutidas mais detidamente ao longo deste trabalho.
É sabido que a tradição literária do romantismo anglo-americano apresenta duas vertentes,
que têm suas origens no trabalho de William Blake (1757-1827), poeta e artista plástico,
precursor do romantismo na Inglaterra. Estas duas vertentes podem ser definidas a partir de
distintas visões das relações entre o homem e a Natureza. A primeira vertente vê a Natureza
como o abrigo natural do homem, onde ele encontra respostas para seus conflitos interiores num
ambiente de paz e tranqüilidade. É o reino da inocência e da virtude. A esta tradição pertencem,
entre outros autores, William Wordsworth (1770-1850) e Ralph W. Emerson (1803-1882).
A segunda tradição é aquela a que pertence, entre outros autores, Edgar Allan Poe. É a
visão romântica que percebe a natureza como um local de irracionalidade, um caldeirão onde se
misturam todas as paixões humanas, para bem ou para mal. Essa Natureza não é uma morada
tranqüila, mas sim um lugar desafiador, onde dia após dia o homem enfrenta a fúria cega dos
elementos, e acima de tudo, tem que lidar com a fúria cega de seu maior desconhecido: o seu
próprio íntimo. A vida existe como um confronto de energias contrárias, em que essa dualidade
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da alma se manifesta, havendo em todo ser humano o hortulus animae, esse outro secreto que é
parte integrante e apartada de cada um de nós.
No romantismo gótico está presente a estranheza da alma, o lado sombrio, obscuro,
existente em todos os seres humanos e que todos nós procuramos ocultar, não somente pela
imposição da sociedade, mas, principalmente, pela necessidade de cada um de sobreviver através
do lado solar da própria dualidade. O lado solar é racional, conhecido e habitável. É o que traz o
homem à tona. Já o lado sombrio, quando se torna dominante, leva o homem às trevas do
desconhecido, à descida aos infernos da qual nem o próprio Cristo escapou.
Poe definiu esse turbilhão interior como maëlstrom. É a sua visão do labirinto gótico, que
reflete a paisagem interior de cada um. Esse labirinto, longe de ser uma prisão, é uma busca: a
busca da própria essência. Mas esse não é um processo tranqüilo. É tumultuado, febril e a todo
momento resvala para o abismo, como ocorre com o protagonista de The Strange case of Dr.
Jekyll and Mr. Hyde, romance do autor inglês Robert Louis Stevenson (1850-1894), que é talvez
a história mais famosa de dupla personalidade já explorada pela literatura. No romance, Dr.
Jekyll é um homem aparentemente calmo, plenamente adaptado aos ditames da sociedade
vitoriana a qual pertence. Mas ele é humano, carrega, portanto, o gene da insatisfação. Essa
insatisfação leva-o a buscar, através da Ciência, a resposta para o dilema no qual ele se descobre:
I have been doomed to such a dreadful shipwreck: that man is not truly one, but truly two. I say two, because the state of my knowledge does not pass beyond that point. Others will follow, others will outstrip me on the same lines; and I hazard the guess that man will be ultimately know for a mere polity of multifarious, incongruos and independent denizens. (STEVENSON,1994, p.70)
Essa “legião” de habitantes interiores à qual o protagonista se refere, pode até ser
considerada, numa leitura mística, como um caso de possessão demoníaca. É mais uma
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confirmação de que a busca da Verdade interior passa necessariamente pela descida à mansão dos
mortos.
Sigmund Freud (1856-1939) definiria a estranheza da alma através da palavra alemã
unheimlich, traduzida para o inglês como uncanny, isto é, o estranho. Em um artigo publicado em
1919, Freud analisa o conto (gótico) de E. T. A. Hoffman “O Homem da Areia”. Na descrição
freudiana, “The uncanny derives its terror not from something externally alien or unknown, but _
on the contrary _ from something strangely familiar which defeats our efforts to separate
ourselves from it. ” (FREUD, 1953, p.219). Em sua análise, fica claro que Freud está preocupado
em relacionar o horror vivenciado pelo protagonista do conto com suas teorias psicanalíticas,
como a teoria da repressão e o complexo de castração. Mas o curioso é que, ao longo da análise,
fica patente a idéia de que o “estranho” é algo que provoca medo e horror, mas que tais
sentimentos são internos ao indivíduo. Da mesma forma, Freud reconhece que o “estranho” é
algo que não se pode abordar, ou seja, está na categoria do indizível. Literariamente, a escrita que
nos propomos a discutir aqui, em Poe e em Augusto dos Anjos, está justamente se propondo a
representar o irrepresentável. Em outro ponto de seu artigo, Freud cita Schelling “Unheimlich é o
nome de tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz”. Depreendemos daí
que a literatura gótica pode também ser compreendida como um desvelamento, uma revelação,
algo que tira os véus e mostra verdades escondidas.
Percebe-se claramente que o que apavora na estranheza da alma não é o exterior ou o
desconhecido, mas pelo contrário; é a sua semelhança com o lado racional e tranqüilo da
personalidade de cada um que traz o temor. O que horroriza e ao mesmo tempo fascina, não é a
diferença, mas o quanto aquilo é familiar. É por isso que o lado verdadeiramente mal de um
homem não pode ser visto, faz parte dos segredos que não podem ser revelados, dos livros que
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não podem ser lidos. Estas metáforas dão bem a idéia da dimensão grandiosa da estranheza. A
ambição dos personagens ficcionais não é somente descobrirem-se, mas principalmente,
conviverem com a própria dualidade, numa tentativa de fusão entre o conhecido e o
desconhecido. Em ambos os casos, a tentativa é inútil, leva à frustração, no caso de muitos contos
de Poe, e à morte, no caso do romance de Stevenson.
2.2 O Sublime
Uma teorização sobre o gótico torna-se possível a partir da análise do conceito de
sublime. Tal conceito pode ser mapeado desde Longino até Kant, e sempre é usado para se falar
de uma literatura (ou da Arte em geral) que almeja o ilimitado e o grandioso.
O termo sublime tem suas raízes na Antiguidade. Etimologicamente, vem do latim
sublimis (o que está suspenso na arquitrave da porta). Portanto, a origem do termo vem da
arquitetura, significando, fisicamente, uma posição elevada, acima da cabeça do homem.
O conceito de sublime literário vem merecendo formulações teóricas ao longo do tempo.
A alegação essencial do sublime é que o homem pode, tanto no sentimento quanto no discurso,
transcender o humano. Conforme Helena Barbas: “A antítese clássica entre o Belo e o Sublime
pertence ao domínio das filosofias. Porém o Sublime é um termo literário associado ao êxtase e à
criação poética pelos Antigos, o primeiro deles o Pseudo-Longino. Na linguagem corrente é
entendido como um sinónimo ou superlativo do Belo, um pouco fora de moda.” (BARBAS,
2002).
O texto de Longino, datado do século I, trata do alcance do sublime através do discurso
que buscasse persuadir ou emocionar. Neste contexto, até o silêncio seria uma figura de discurso
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afeita ao sublime, já que representaria a solenidade diante daquilo que transcende.(BRUM, 1999,
p.59)
Edmund Burke escreve, em 1757, o texto que melhor trata a problemática da mudança de
sentido sofrida pelo conceito: An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the
Beautiful. Em Burke, a dor e o prazer do corpo tornam-se instrumentos da experiência estética,
com o prazer ligado à reprodução das espécies e a dor à preservação das mesmas. Haveria,
porém, um caso excepcional, que geraria um “prazer ambíguo”, um delight, um prazer ligado à
dor, que ocorreria ao estarmos expostos à idéia de dor ou perigo, sem que estivéssemos de fato
expostos a eles. Essa sensação, é, para Burke, a experiência do Sublime.
Não é difícil depreendermos que, dessa proposição, advém o conceito kantiano de “prazer
negativo”, que associo a literatura gótica e à tradição romântica a qual pertence Edgar Allan Poe.
O sujeito que experimenta a experiência do sublime vive um impasse, ele sente a sua impotência
diante do indizível. A contribuição de artistas como Poe e dos Anjos é perceberem a existência
desse indizível e transformá-lo em Arte.
O trabalho de Burke irá inspirar Kant, que lhe dedica uma parte de sua Crítica da
Faculdade do Juízo. Em Burke encontra-se uma síntese das inquietações teóricas sobre a arte, em
particular a literária, que atravessam o Empirismo inglês.
De fato, o século XVIII constitui-se em uma época profícua para a discussão de teorias
estéticas. Houve um grande florescimento de novas teorias no período compreendido entre a
ascensão do neoclassicismo e o triunfo do Romantismo. A questão do Sublime é retomada nesse
momento, juntamente com discussões sobre os conceitos de Beleza, Gosto e Imaginação. O
interesse nesses aspectos estéticos revela a efervescência de uma época plena de mudança de
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valores e de paradigmas. Kant fará a síntese fundamental da análise do sublime, através do
filosófico. Ele vai distinguir entre o empírico e o transcendental. O transcendental kantiano
possibilita a experiência de relação inteligente com o mundo, através da faculdade de julgar. O
homem ganha autonomia através de seu juízo, da sua faculdade de julgamento. A proposta
filosófica de Kant defende a existência de conceitos a priori. Isto é, que não sejam reflexos de
objetos exteriores. É o próprio espírito humano que constrói o objeto de seu saber. Dessa forma, a
formulação de conceitos a priori independe das informações da experiência. Todo o esforço de
Kant foi feito no sentido de resgatar o pensamento da armadilha do ceticismo na qual o
empirismo de Hume o havia mergulhado. Tanto na estética quanto no pensamento, a proposta
kantiana será voltada para as características intuitivas e volitivas do homem, o que, em última
análise, levará sempre ao julgamento estético e ao a priori. Percebe-se que esses pressupostos
estão presentes na raiz de toda a idéia de pensamento romântico, com o predomínio do individual,
do subjetivo, e, de modo inequívoco, da imaginação criadora, que impulsiona a criação da Arte.
A concepção de sublime que interessa aqui é exatamente a de Kant, não somente por sua
aproximação com o Romantismo, mas especialmente por fundir sublime, imaginação e reflexão,
que dessa forma, fornece elementos para a teorização das literaturas de Edgar Allan Poe e
Augusto dos Anjos.
Na Crítica da Faculdade do Juízo (1790), Kant discute as idéias do belo e do sublime.
Anteriormente, em um opúsculo de 1764 (Observações sobre o sentimento do belo e do sublime),
ele já havia, superficialmente, começado a tratar da questão do sublime. Mas é na chamada
terceira crítica que ele consolida a analítica do Belo e do Sublime, buscando uma estética crítica,
diversa da visão tradicional e dogmática do Belo.
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Segundo Brum (1999), no juízo estético que analisa o Belo, o espírito se vale da harmonia
entre as faculdades, no sublime acontece um contraste, uma desarmonia entre as faculdades. O
que entra em discordância são a razão e a imaginação, faculdade essa que, segundo Kant, gera as
formas. O sublime torna-se fundamental na analítica kantiana por revelar, via experiência
estética, a finitude do homem, isto é, a morte.
As teorias estéticas de Kant, particularmente a do sublime, são uma síntese, uma
reinterpretação e um aprofundamento do caleidoscópio estético do século XVIII. Kant trouxe
ordem ao caos, ao expressar perfeitamente um sistema filosófico e uma estética que se moldam
perfeitamente às necessidades do seu tempo.
O prazer advindo do Belo e do Sublime não tem ligação com a cognição, não envolve
aspectos cognitivos, porque não proporciona nenhum conhecimento do objeto que o provoca; não
consiste num juízo sobre a perfeição do objeto, pressupõe um “julgamento de reflexão”. Está
conectado à mera representação do objeto. Kant discute o julgamento estético – é essa a sua
preocupação – sob dois pontos de vista: o do Sublime e do Belo. O Belo concorda com o Sublime
porque ambos aprazem por si próprios, não pressupõem nenhum juízo dos sentidos, mas sim de
reflexão.
O Belo tem uma universalidade de aceitação, ainda que subjetiva. O agradável varia de
pessoa para pessoa. Se fosse restrito somente à questão dos sentidos, o Belo seria igual ao
agradável, que é uma questão pessoal. O agradável assemelha-se ao bom, pois ambos envolvem o
interesse, isto é, o conhecimento do objeto. O que o pensamento de Kant estabelece é que a Arte
envolve fruição (ou seja, prazer ou desprazer, ou no caso do sublime, o prazer negativo), e não
conhecimento. Por isso, se estabelece uma relação de subjetividade, que é desinteressada e livre.
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Embora haja pontos comuns entre o Belo e o Sublime, há diferenças. O Belo refere-se a
objetos limitados, a formas, exige um esforço de entendimento. O Sublime encontra-se em
objetos ilimitados, encontra-se sempre acompanhado de uma idéia de totalidade, envolvendo um
esforço de raciocínio (razão). O prazer do Belo advém de um sentimento de avanço de vida,
compatível com a imaginação. O Sublime surge desafiando as forças vitais. Então esse é um
prazer “negativo“, contrariamente ao prazer “positivo” do Belo. O sujeito que vive a experiência
do sublime fica diante de um impasse. Isso ocorre para demonstrar os fins da faculdade do
conhecimento. O sublime remete às idéias da razão, não ao entendimento. O colapso da
imaginação não é o apagamento da razão, porque a razão é inerente ao homem. Ao buscar-se um
mecanismo racional (ou seja, a promoção da razão), chega-se a uma explicação, pelas idéias da
razão.
Na experimentação do Sublime, a imaginação busca representar aquilo cuja representação
é mais fraca, visto que, por seu caráter ilimitado, o objeto do Sublime não pode ser representado.
Essa inevitável falha na imaginação é a fonte das emoções que acompanham o sublime, que
alcançam o efeito pela oposição entre o objeto e as nossas faculdades do conhecimento, mas o
Belo alcança seu efeito através da perfeita harmonia. É sobre a falta de harmonia entre o objeto e
e o sujeito, além do inútil esforço da imaginação para reter e representar o que não tem forma,
que Kant constrói a teoria do Sublime.(MONK,1960, p.9)
Quanto à natureza, Kant afirma ser possível abordá-la sobre o aspecto do Belo, mas não
do Sublime. Para Kant, isso se deveria ao fato de a natureza ser basicamente forma, e o sublime
ser ilimitado. Só pode ser dito que os objetos da natureza despertam o sentimento do Sublime
pela reação da mente diante do objeto. É nesse ponto que a literatura gótica de Poe e Augusto dos
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Anjos se afirma, ao tomar fatos e objetos terríveis da natureza e transformá-los em poesia, em
experiência estética.
Como a razão está sempre em busca da totalidade, e nenhum objeto sensível pode dar tal
sentimento de totalidade, o Sublime não pode ser encontrado na natureza, mas apenas nas idéias
da Razão. No exemplo kantiano, mesmo uma tempestade no oceano não é sublime, é terrível,
embora possa despertar o sentimento do Sublime na mente, por conta da capacidade da mente de
elaborar raciocínios, e porque a mente pode elevar-se acima do sensível e empregar-se em idéias
que envolvam uma finalidade mais alta.
O Sublime é a denominação do que é absolutamente grandioso, e absolutamente
grandioso é o que está acima de qualquer apreensão, o que excede definitivamente qualquer
noção de quantidade. Tal grandeza não existe na natureza, onde todas as magnitudes são
relativas, mas em nossas idéias (imaginação). Mas todas as representações de fenômenos – e essa
é a única maneira de representação da natureza – são limitadas e não suportam o conceito
absoluto de magnitude. Daí o Sublime ser encontrado apenas em nossas mentes. Mesmo assim, a
imaginação tenta representar essa magnitude absoluta, e sua falha indica que a razão exige e pode
conceber a absoluta totalidade: temos uma idéia sobre isso, embora não possamos experimentar
isso. Daí o sublime ser a capacidade de pensar que evidencia a faculdade da mente de transcender
o senso comum.
O sublime sintoniza a mente na emoção. Emoção é vibração, uma alternância rápida entre
repulsão e atração produzida pelo mesmo objeto. É porque a imaginação, ao apreender a intuição
é levada ao ponto do excesso e teme isso, enquanto a razão não acha nada excessivo, na tentativa
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de apreender a magnitude dos fenômenos. É esse jogo entre as faculdades do pensamento
humano que produz a imaginação criadora.
2.3 A imaginação romântica como crítica de arte
Qualquer que seja a visão sobre o Romantismo do século XIX, certamente a sua
manifestação mais patente foi a reivindicação da imaginação como intérprete da experiência,
graças em boa parte a Wordsworth. Aí se estabelece a diferença entre a visão romântica e a visão
pictórica da natureza. A crítica de arte afirma-se definitivamente como intervenção teórica, e não
somente como simples aplicação de normas preexistentes. (LIMA, 1993, p.193) Em outras
palavras, a crítica de arte se objetiva à medida em que se torna exercício teórico. Neste ponto, há
um rompimento com o Iluminismo, porque a discussão, e conseqüente recriação da obra de arte,
trazida pela crítica, substitui o julgamento que tinha um caráter legislador, de aplicação de
padrões ou normas pré-estabelecidas.
Obviamente, o pensamento kantiano se faz presente neste novo conceito de crítica, uma
vez que Kant, em sua terceira crítica, estabelece o juízo estético como forma mais pura de
reflexão. Kant define o juízo de gosto como estético e preocupa-se, inicialmente com a definição
do Belo:
Para distinguir-se se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento do objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade da imaginação(talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de representações , mesmo das sensações, pode, porém, ser objetiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer e desprazer,pelo qual não é designado absolutamente nada ao objeto,mas no qual o sujeito sente-se a si próprio do modo como ele é afetado pela sensação. (KANT,2002, pp. 47-48).
42
Conforme veremos mais adiante, tais conceitos encaixam-se à perfeição com o
pensamento de Poe a respeito do papel da poesia. O belo kantiano é desvinculado de qualquer
interesse. Não tem valor, ou antes, o seu valor é subjetivo, está ligado à imaginação e não ao
sentimento. Liga-se à forma e não a comoção. É a forma que provoca a reflexão do sujeito,
levando-o à elaboração da crítica.
A crítica, portanto, torna-se uma reflexão. Refletir sobre a obra de arte é pensar
esteticamente, o que é exatamente o que faz Poe em seu ensaio “Filosofia da Composição”, ao
descrever passo a passo o processo de criação/elaboração de seu poema “O Corvo” (“The
Raven”).
Kant desvincula perfeição de beleza, contrariando as idéias vigentes no neoclassicismo.
Por isso, ele é considerado um dos inauguradores do pensamento Romântico, em função da
abolição das regras, ou antes, pela substituição das regras pela reflexão.
Porém, Kant não é o único a estabelecer um pensamento reflexivo sobre a arte nesse
período. Historicamente, podemos verificar a existência de um pensamento pendular entre razão
e sentimento. Nessa polaridade, podemos perceber no romantismo uma precedência do
sentimento sobre a razão. Conforme Vizzioli:
Essa mesma polaridade ressurge no Romantismo; só que, ao invés da razão, a precedência cabe ao sentimento. E essa diferença acarreta inúmeras outras no relacionamento dos dois aspectos. De fato, enquanto que no Neoclassicismo o controle da razão se exercia de fora para dentro, com a imposição de modelos ou “formas” preexistentes, no Romantismo a razão devia brotar do sentimento, o grande impulso inicial que propiciaria a estruturação, de dentro para fora, das “formas” adequadas. (VIZZIOLI, s/d, p. 139)
Novamente, percebe-se a importância da “forma” para a arte romântica. Aqui, devemos
entender forma como expressão possível de um estado de alma, que representa um
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transbordamento anterior. Mas para que este estado de alma se expresse como arte, ele necessita
de uma organização, de algo que harmonize. Há, portanto, dentro do Romantismo uma busca
pelo equilíbrio, que não é o equilíbrio da perfeição clássica, mas sim um equilíbrio que possibilite
a expressão da dualidade razão-sentimento.
Na tradição romântica inglesa, o poeta que melhor chegará a este equilíbrio harmônico
será William Wordsworth (1770-1850). É bastante conhecida sua definição de poesia como
“emoção recolhida na tranqüilidade”. Que significa tal definição? Exatamente o que disse
anteriormente Kant, e o que diria mais ou menos à mesma época; Poe: a poesia é um trabalho, um
fazer, cujo primeiro impacto e ponto de partida é a emoção, o transbordamento da alma, mas que
somente se realiza na tranqüilidade, na elaboração pensada. Citando novamente Vizzioli, “o poeta
não deve iniciar a composição durante, ou logo após, o impacto da emoção, mas deve aguardar os
pensamentos que ela por certo estimulará, para que o poema tenha “um propósito digno” e a
necessária objetividade.(VIZIOLLI, s/d, p.143)
Outro fato que constata a reflexividade da poesia romântica são os prefácios e os
manifestos. O mais relevante talvez seja o prefácio de Wordsworth para o seu livro “Lyrical
Ballads” (Baladas Líricas), de 1798. O livro , escrito em parceria com Samuel Taylor Coleridge
(1772-1834), é considerado o marco inicial do romantismo inglês. Neste prefácio, Wordsworth
apresenta e justifica a poesia nova que os leitores irão encontrar ali. Não é somente uma
advertência ao leitor, mas é, principalmente, um pensar, um refletir sobre o fazer poético,
conforme podemos perceber neste trecho:
Desse tipo de versos se distinguirão os poemas apresentados nestes volumes, ao menos por uma marca de diferença, a de que todos eles têm um objetivo meritório. Não que eu tenha sempre começado a escrever cada um com um objetivo distinto, concebido formalmente; mas meus hábitos de meditação, segundo creio, dispuseram meus
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sentimentos de modo que se verá que minhas descrições dos objetos que provocam fortemente esses sentimentos trazem consigo um objetivo. Se esta opinião for errônea, farei pouco jus ao nome de poeta.(...) Pois nossos contínuos influxos de sentimento são modificados por nossos pensamentos, que representam realmente todos os nossos sentimentos passados. (WORDSWORTH,1987, pp. 171-172)
Fica portanto, bastante claro que a idéia de poesia como “meditação” e pensamento, já
estava presente em toda tradição romântica. Em Poe, vamos encontrar a sistematização crítica
destas questões.
2.4. Edgar Allan Poe – o Poeta Crítico
Mario Faustino (1930-1962) traz em seu livro Poesia Experiência, um estudo acurado
sobre o que seria, afinal, a poesia. Em suas palavras:
(...) podemos aproximar-nos um pouco mais de um conceito de poesia(arte poética,é claro) se dissermos que se trata antes de tudo de uma maneira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, da arte de exprimir percepções através de palavras, organizando estas em padrões lógicos, musicais e visuais. (FAUSTINO, s/d, p. 60)
Arguto leitor e crítico da poesia mundial, Faustino, em outra obra, diz de E.A.Poe:
É o teórico que, em ensaios como “The Poetic Principle”, “The Philosophy of Composition”, etc, chamou a atenção para certas distinções fundamentais, a seu tempo desprezadas, entre o que é prosaico e o que é poético, sobretudo para a relevância dos elementos ”imaginação” e “música” em poesia. E, finalmente, trata-se de um dos mais intensos e dramáticos prosadores “poéticos” de todos os tempos. (FAUSTINO, 2004, p.45)
As opiniões de Faustino surgem aqui como ponto de partida para a reflexão sobre o
pensamento crítico de Poe por um motivo muito simples. Faustino foi um poeta crítico do século
XX, contemporâneo, e profundo conhecedor e estudioso do fenômeno poético. Em seu
pensamento, podemos encontrar uma síntese do que se concebe por poesia até hoje, na
contemporaneidade, isto é, poesia como a arte da palavra, como uma forma de ser especial da
linguagem, organizada em padrões que falam aos sentidos humanos de maneira antes de tudo,
organizada e pensada para causar um determinado efeito.
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Ora, este pensamento moderno/contemporâneo sobre o poético é apresentado por Poe em
dois de seus principais ensaios: “O Princípio Poético” e “Filosofia da Composição”. Passemos,
portanto, à análise destes ensaios críticos.
Poe inicia o “Princípio Poético” considerando, de imediato, um aspecto formal da poesia:
a extensão. Para ele, a existência de um poema longo seria uma contradição em termos, uma vez
que o poema só se realizaria no efeito , isto é, no impacto causado no leitor. Tal impacto deveria
advir da leitura feita ‘de uma só sentada’. Dado isto, um poema longo nada mais seria que uma
sucessão de vários poemas curtos – ou antes, de vários efeitos poéticos.
Porém, a mais desconcertante concepção de Poe neste ensaio vem da definição daquilo
que ele considera como o real objetivo da poesia. É nesta definição que ele se aproxima de Kant,
expondo a poesia como elevação da alma (isto é, próximo do conceito estético) e não como mera
satisfação sentimental. O próprio Poe fornece a explicação:
Recapitulemos, então: eu definiria, em suma, a Poesia de palavras como A Criação Rítmica da Beleza. Seu único árbitro é o Gosto. Com a Inteligência, ou com a Consciência, ela só tem parentesco colateral. E, a não ser incidentalmente, não se relaciona, de. modo algum, com o Dever ou com a Verdade. Poucas palavras, porém, de explicação. Aquele prazer que é, ao mesmo tempo, o mais puro, o mais elevado e o mais intenso, deriva-se, asseguro, da contemplação do Belo. Somente na contemplação da Beleza achamos possível atingir aquela elevação aprazível da alma, que denominamos Sentimento Poético e que tão facilmente se distingue da Verdade, que é a satisfação da Razão, ou da Paixão,que é o excitamento do coração. Digo que a Beleza, portanto - usando a palavra como abrangendo o sublime -, digo que a Beleza é o domínio do poema, simplesmente porque é regra evidente de Arte que os efeitos deveriam jorrar, tão diretamente quanto possível, de suas causas: e ninguém foi ainda suficientemente imbecil para negar que a elevação particular em apreço é pelo menos mais facilmente atingível no poema. De modo algum se segue, porém, que os incitamentos da Paixão, ou os preceitos do Dever, ou mesmo as lições da Verdade não possam ser introduzidos num poema, e com vantagem; pois eles podem auxiliar, de vários modos, as finalidades gerais do trabalho: mas o verdadeiro artista sempre se esforçará por harmonizá-los, na sujeição conveniente àquela Beleza, que é a atmosfera e a essência real do poema.(POE,1999 , p. 82)
Deve-se ter em mente que o próprio Poe estabelece que, o que ele chama de Beleza,
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engloba também o Sublime, o que justifica a minha análise de que a literatura de Poe ocupa-se
basicamente do Sublime, conforme aqui exposto.
Por contraditório que pareça, Poe, um poeta romântico por excelência, mostra-se um
crítico bastante cerebral ao estabelecer esta distinção entre alma, inteligência e coração. O
coração seria palco dos instintos sem freios, sem distinção lógica, pura emotividade que não
constrói nada, apenas perturba a percepção. Ora, sem processo construtivo não há arte possível.
Várias vezes, Poe alerta contra poetas que vêem a concepção poética como obra da “inspiração”,
ou de um arrebatamento irresistível dos sentidos. “Muitos escritores, especialmente os poetas,
preferem ter por entendido que compõem por meio de uma espécie de sutil frenesi, de intuição
estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por
trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento”.(POE,1999, p.102)
Já a Inteligência estaria ligada à busca da Verdade, o que na concepção de Poe é uma
questão moral que nada tem a ver com o poético. Isto é, não há e não pode haver conceitos
ideológicos ligados à poesia. A poesia não pode servir de panfleto ou manifesto, ela não
comporta reflexões políticas. Tal aspecto, inclusive, foi duramente criticado por Poe em seus
conterrâneos:
Tem-se suposto, tácita e manifestamente, direta e indiretamente, que o objetivo último de toda Poesia é a Verdade. Todo poema, diz-se, deveria inculcar uma moral, e por esta moral é que deve ser julgado o mérito poético do trabalho. Nós, americanos, temos principalmente patrocinado esta feliz idéia, e nós, bostonianos, mui especialmente, a temos desenvolvido em cheio. Metemos em nossas cabeças que escrever simplesmente um poema pelo poema e confessar que tal foi o nosso desígnio seria confessar-nos radicalmente carentes da verdadeira dignidade e força poéticas: mas o simples fato é que, se nos permitíssemos olhar para dentro de nossas próprias almas, descobriríamos imediatamente ali que, sob o sol, nem existe nem pode existir qualquer trabalho mais inteiramente dignificado, mais supremamente nobre, do que este mesmo poema, este poema per se, este poema que é um poema e nada mais, este poema escrito somente por ele mesmo.(POE,1999, p.79)
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Sendo assim, se a poesia não é passional nem política, o que ela é então, na concepção de
Poe? Simples. Segundo suas próprias palavras, ela é a criação rítmica da Beleza. A poesia não
envolve concepções morais, trata-se em suma, da apreciação do Belo (e , portanto, desligada de
qualquer interesse). O sentido poético é desvinculado da emoção, está, na verdade, ligado ao
estético. Novamente temos aqui a concepção kantiana: juízo estético é o mesmo que reflexão
crítica, é um pensamento que se exerce sobre um objeto. Daí, a vital necessidade das
considerações técnicas e reflexivas na concepção do poema. E é exatamente disso que Poe trata
na “Filosofia da Composição”
Neste ensaio, Poe propõe-se a analisar o modus operandi do poeta, e escolhe a si mesmo e
a sua concepção mais famosa como objeto. O poema “O Corvo” (“The Raven”): ”É meu desígnio
tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição, que o
trabalho caminhou, passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência rígida de um
problema matemático”.(POE,1999, p. 103)
Ao conceber o poema como um problema matemático, Poe não está cometendo nenhum
reducionismo, pelo contrário. Ele estabelece a necessidade do pensar, do raciocínio, do
estabelecimento de princípios e normas para se alcançar o fazer poético. Isto, longe de
desmerecer a poesia, faz dela um verdadeiro trabalho de elaboração da linguagem, que é a
matéria-prima do poético. Ao descrever os passos que utiliza para conceber o poema, Poe está,
antes de tudo, estudando e por que não? - homenageando a linguagem como forma humana de
expressão. O homem é o único ser dotado da faculdade da linguagem, e o poético surge assim
como manifestação mais nobre desta faculdade. Assim sendo, podemos afirmar que a poesia é a
mais rica manifestação da singularidade da natureza humana.
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Poe busca portanto, o Belo (que, como vimos, aqui abarca também o Sublime), que ele
define não como uma qualidade, mas como um efeito, quando concebe o poema. Segundo ele, a
essência do belo está no melancólico, no que fala diretamente à alma. Por isso ele escolhe a morte
da mulher amada como a representação mais perfeita, mais capaz de causar o efeito desejado na
alma do leitor. “A melancolia é, assim, o mais legítimo de todos os tons poéticos“. (POE, 1999,
p.105). A ave (o corvo), portanto, torna-se essa melancolia personificada.
Vê-se, dessa forma, que o objetivo do poético não é comunicar, mas sim ser. A poesia
nasce de um impulso da linguagem – o que marca até hoje a lírica moderna. Essa poesia está
liberta do compromisso de representação, ela não “quer dizer” alguma coisa, ela apenas o é. E ela
só pode ser porque assume o compromisso único com a linguagem, independente do emocional e
do racional. Está ligada à imaginação que apresenta.
O pensamento crítico de Edgar Allan Poe, ao lançar raízes na abertura que foi a crítica do
juízo kantiano, abre portas para todo o pensamento moderno em termos de discussão poética. Ele
redefine os parâmetros do poético ao conceber o Belo como o verdadeiro alvo da poesia. Ele
concebe o Belo, e por conseguinte o poético, como uma elevação espiritual, um prazer estético,
que não vem da exacerbação dos sentidos nem da reflexão moral. Daí, todo o aparato técnico, a
necessidade do raciocínio lingüístico, e não somente do emocional, para a consecução da obra
poética.
Nesse ponto, podemos afirmar que Poe vai inspirar o conceito de poesia que será
discutido e exercido por vários autores (poetas críticos) ao longo do século XX. A poesia pura é
aquela que surge do impulso de linguagem, que não busca comunicação, mas sim apresentação. É
a poesia desprendida de qualquer preocupação conteudística, mas que se cria em linhas sonoras
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de linguagem. É a poesia que liberta a mente de compromisso com o conteúdo, que busca o não-
expresso, que re-elabora a linguagem, valorizando elementos lingüísticos e transformando a
expressão humana em Arte. Ao inaugurar o sentir com a imaginação, Poe está também
inaugurando a modernidade poética.
2.5 Poemas de Edgar Allan Poe
Nesta seção, farei a análise de alguns poemas de Edgar Allan Poe, a partir dos
pressupostos teóricos expostos até aqui.
2.5.1 The Raven – poesia em “making of”
The Raven Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary Over many a quaint and curious volume of forgotten lore -- While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping, As of someone gently rapping, rapping at my chamber door. " 'T is some visitor, " I muttered, "tapping at my chamber door-- Only this and nothing more." Ah, distinctly I remember it was in the bleak December; And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor. Eagerly I wished the morrow -- vainly I had sought to borrow From my books surcease of sorrow -- sorrow for the lost Lenore-- For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore-- Nameless here for evermore. And the silken, sad, uncertain rustling of each purple curtain Thrilled me -- filled me with fantastic terrors never felt before: So that now, to still the beating of my heart, I stood repeating. " 'T is some visitor entreating entrance at my chamber door-- Some late visitor entreating entrance at my chamber door-- That it is and nothing more." Presently my soul grew stronger: hesitating then no longer, "Sir, " said I, "or Madam, truly your forgiveness I implore: But the fact is I was napping, and so gently you came rapping, And so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
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That I scarce was sure I heard you"-- here I opened wide the door-- Darkness there and nothing more. Deep into the darkness peering, long I stood there wondering fearing. Doubting, dreaming dreams no mortal ever dared to dream before: But the silence was unbroken, and the stillness gave no token, And the only word there spoken was the whispered word, "Lenore?" This I whispered, and an echo murmured back the word "Lenore!"-- Merely this and nothing more. Back into the chamber turning, all my soul within me burning, Soon again I heard a tapping somewhat louder than before. "Surely," said I, "surely that is something at my window lattice; Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore-- Let my heart be still a moment and this mystery explore-- 'T is the wind an nothing more!" Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter, In there stepped a stately Raven of the saintly days of yore; Not the least obeisance made he; not a minute stopped or stayed he; But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door-- Perched upon a bust of Pallas just a bove my chamber door-- Perched, and sat, and nothing more. Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling, By the grave and stern decorum of the countenance it wore, "Though thy crest be shorn and shaven, thou," I said, "art sure no craven, Ghastly grim and ancient Raven wandering from the Nightly shore-- Tell me what thy lordly name is on the Night's Plutonian shore!" Quoth the Raven, "Nevermore." Much I marveled this ungainly fowl to hear discourse so plainly, Though its answer little meaning -- little relevancy bore; For we cannot help agreeing that no living human being Ever yet was blessed with seeing bird above his chamber door-- Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door, With such name as "Nevermore." But the Raven sitting lonely on the placid bust, spoke only That one word, as if his soul in that one word he did outpoor. Nothing further then he uttered, not a feather then he fluttered-- Till I scarcely more then muttered, "Other friends have flown before -- On the morrow he will leave me, as my Hopes have flown before." Then the bird said, "Nevermore." Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken, "Doubtless," said I, "what it utteres is it only stock and store
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Caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster Followed fast and followed faster till his songs one burden bore -- Till the dirges of his Hope the melancholy burden bore Of 'Never - nevermore.'" But the Raven still beguiling all my fancy into smiling, Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird and bust and door, Then upon the velvet sinking, I betook myself to linking Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore-- What this grim, ungainly, ghastly, gaunt, and ominous bird of yore Meant in croaking, "Nevermore." This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing To the fowl, whose fiery eyes now burned into my bosom's core; This and more I sat divining, with my head at ease reclining On the cushion's velvet lining that the lamp-light gloated o'er But whose velvet-violet lining with lamp-light gloating o'er She shall press, ah, nevermore! Then methought, the air grew denser, perfumed from an unseen censer Swung by seraphim whose foot-falls tinkled on the tufted floor. "Wretch," I cried, "thy God has lent thee -- by these angels he hath sent thee Respite -- respite the nepenthe from thy memories of Lenore! Quaff, oh, quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!" Quoth the Raven, "Nevermore." "Prophet!" said I, "thing of evil! -- prophet still, if bird of devil! Whether Tempter sent, or whatever tempest tossed thee ashore, Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted -- On this home by Horror haunted -- tell me truly, I implore -- Is there -- is there balm in Gilead? -- tell me -- tell me, I implore!" Quoth the Raven, "Nevermore." "Prophet!" said I, "thing of evil! -- prophet still, if bird of devil! By that Heaven that bends above us -- by that God we both adore-- Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn, It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore -- Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore." Quoth the Raven, "Nevermore." "Be that word our sign of parting, bird or fiend!" I shrieked, upstarting -- "Get thee back into the tempest and the Night's Plutonian shore! Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken! Leave my loneliness unbroken! -- quit the bust above my door! Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door! Quoth the Raven, "Nevermore."
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And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting On the pallid bust of Pallas just above my chamber door; And his eyes have all the seeming of a demon that is dreaming, And the lamp-light o'er him streaming throws his shadow on the floor, And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted -- nevermore!
Mais que um poema, “The Raven” é um manifesto poético, uma obra exemplar. Exemplar
no sentido de ter sido apontado pelo próprio autor como seu trabalho mais depurado, elaborado e
exaustivamente pensado, tendo merecido inclusive posfácio em forma do ensaio The Philosophy
of Composition, em um ato inaugurador de modernidade que se tornaria comum na poesia do
século XX: o poeta se faz crítico, resenhista e investigador de sua própria obra, tal como ocorre
nos making-of do cinema contemporâneo.
No ensaio, Poe desnuda seus métodos e suas intenções na composição do poema, e ao
mesmo tempo inscreve na história da crítica literária uma versão definitiva sobre a modernidade
literária. Caso único na literatura em que a obra e a análise se equivalem e se completam, pois os
pressupostos estabelecidos para a excelência de “The Raven” tornaram-se paradigmas para toda a
literatura moderna, a começar da questão do efeito. Por isso o ensaio é uma filosofia, não tem
esse nome gratuitamente. Poe tem um projeto raciocinado e pensado, de apreensão de forma
poética, que deseja ver refundada. Um poema cujo autor afirma não ter sido em nenhum
momento fruto do acaso, mas sim o resultado de um modus operandi calculado e preciso: ӎ meu
desígnio tornar manifesto que nenhum ponto de sua composição se refere ao acaso, ou à intuição,
que o trabalho caminhou passo a passo, até completar-se, com a precisão e a seqüência de um
problema matemático”. (POE, 1999, p.103)
Poe escreveu cerca de dezesseis versões do poema, algumas chegando até a aparecer em
algumas publicações. Datam de 1842 os primeiros esforços de composição.
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Passemos então à leitura do que Poe elege como obra ao mesmo tempo destinada a
agradar ao público e a crítica, e tal agrado deveria ser fruto de um resultado obtido pela
combinação equilibrada entre efeito, extensão, temática e musicalidade, combinados de forma a
produzir a Beleza, ”única verdadeira tese poética”.
“The Raven” é publicado anonimamente em janeiro de 1845 no Evening Mirror. Em oito
de fevereiro do mesmo ano, é republicado, já com o nome do autor, após um aparecimento com
enorme sucesso no American Whig Review. Poe alcança seu objetivo previsto: é sucesso de
público e crítica.
Ora, beleza e melancolia como formas supremas do poético, conforme já visto, produzem
o elo com o sublime. Como diz Weiskel, ao ler/ouvir “The Raven”, não somos espectadores,
somos arrebatados em nosso entendimento e em nossa imaginação, pela obra cerebralmente
composta pelo poeta.
Uma característica curiosa e exaustivamente lembrada a respeito de “The Raven” é o seu
caráter “narrativo”, isto é, trata-se de uma história, uma pequena aventura fantástica com começo,
meio e fim, com a mesma atmosfera gótica sempre presente nos contos de Poe. A diferença é que
se trata de um poema de cento e oito versos cuidadosamente esmerilhados para formar um
conjunto perfeito de efeito, musicalidade e ritmo poético.
A fórmula inicial do poema “Once upon”, remete à fábula, tem o sabor de uma história a
ser contada, que além de confirmar o já citado caráter narrativo do poema, informa o leitor a
existência de uma atmosfera de predomínio da imaginação e da fantasia, mas a musicalidade
trazida já no primeiro verso pelas aliterações (where, weak, weary), não nos permite duvidar que
estamos diante de um poema.
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O eu lírico, desde o início, pactua com o leitor a idéia central do projeto poético de Poe: a
união da imaginação criadora com o raciocínio crítico, demonstrado na expressão “I pondered”.
A atmosfera é sombria e fantástica: “a meia-noite que apavora”, (midnight dreary) na tradução
machadiana. Aliás, o poema é tão denso que o estudo de suas traduções para a língua portuguesa
(e são dezenas) já mereceriam um estudo aprofundado. (FITTIPALDI, 2006, p.51) Mas é essa
atmosfera gótica que propicia a reflexão do poeta, que medita sobre o desconhecido e o passado:
“curious volume of forgotten lore”. A referência ao saber antigo é a busca romântica das origens
e da natureza das coisas. Como trajetória pessoal, o poema inicia-se no passado, trazendo poeta e
leitor até o presente, projetando um futuro (ou mesmo a eternidade) infinito de sombras , que ao
mesmo tempo em que aprisionam o sentimento do eu-lírico, permitem que ele supere a morte,
através da eternidade, ainda que esse eterno seja marcado pela perenidade da irrealização e da
impossibilidade, trazidas pela palavra nevermore.
Há uma atmosfera onírica de sonho e sonolência , o ritmo do bater de asas da ave “tapping
at my chamber door”, acontece no momento em que o poeta está praticamente adormecido. O
corvo não invade a alcova do poeta, ele bate gentilmente a sua porta. A época do ano também é
determinada: é final de ano (dezembro), encerra-se um ciclo, assim como as brasas que morrem
na lareira e se espalham pelo chão, “como fantasmas”. Acentua-se a atmosfera etérea. Ao mesmo
tempo em que anseia pelo amanhã, busca nos livros (a razão) o consolo pela perda da mulher
amada – o poema segue em sua aposta de unir tematicamente raciocínio e fantasia, enquanto o
jogo rítmico é mantido pelas rimas morrow, sorrow, borrow; Lenore, evermore.
O cenário do quarto, ricamente mobiliado, segundo Poe, para aprimorar o efeito da Beleza
(conforme já explicado anteriormente, a união já pretendida por Poe entre a Beleza e a
Melancolia, trata-se na verdade do efeito do Sublime), possui cortinas púrpuras. O roxo, ou
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púrpura, é a cor tradicional da Quaresma – tempo de reflexão e penitência, que promete levar a
um desfecho de libertação e ressurreição – o que, de resto, já sabemos que não ocorrerá no
poema. O movimento das cortinas tem uma sonoridade melancolicamente sensual (silken, sad,
rustling), imediatamente quebrada pelo terror jamais sentido que o poeta se apressa em afirmar.
Isso se encaixa à perfeição com diversas interpretações da obra de Poe, que vêem sempre o amor
irrealizado presente no trabalho do poeta e contista.
Lenore, Anabel-Lee, Ligea, entre tantas, são amantes mortas, cuja presença
fantasmagórica não permite a conjunção física com o amante, mas ao mesmo tempo, sua
condição de espectro permite que vivam perenemente na alma e na imaginação do eu-lírico.
O poeta tenta vencer o medo, sente a alma fortalecida e se propõe a estabelecer um
diálogo com o até então desconhecido visitante, abrindo a porta – onde só o aguarda a escuridão.
E ao perscrutar a escuridão – nada mais gótico que investigar as trevas – nada encontra. Os
verbos usados (wondering, learing, doubting, dreaming) – são reveladores da ação inquiridora do
poeta, ação esta inútil, já que tudo que ele recebe de volta é o eco da própria voz ao chamar o
nome da amada.
De volta ao quarto, a alma do poeta queima. O leitor, já fisgado, encontra-se no mesmo
estado de excitação do eu-lírico. Estamos no quadragésimo verso do poema, praticamente a
metade, quando surge o personagem título, The Raven. O personagem adentra o cenário. A
janela, aberta com violência pelo poeta, permite a entrada do corvo dos “santificados tempos
ancestrais”. É elegante, mas pouco cerimonioso: entra, pousa acima do busto de Pallas Athena
que está em uma posição elevada (sublimis) no quarto do poeta.
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Uma das alusões mais comentadas do poema é justamente a presença do busto da deusa
Pallas Athena, deusa grega da sabedoria. Conforme o próprio Poe, Pallas foi escolhida pela
sonoridade de seu nome, para firmar um contraste entre o mármore e a personagem da ave, e,
evidentemente, combinar com a erudição do personagem.
Há mais que isso. O corvo pousado sobre Atena remete à imaginação mórbida que se
sobrepõe ao racional, que marca justamente a espiral de desesperança e angústia que o eu-lírico e
o leitor viverão daí em diante. Além de Pallas Athena, outras referências da mitologia clássica se
farão presentes, sempre interagindo e contrapondo-se ao mundo da imaginação fantástica e
fantasmagórica assumido pelo poema. O poeta deseja saber o nome do corvo nos noturnos
domínios de Plutão. Obviamente, o poeta já assume a origem subterrânea do visitante.
A repetição da palavra nevermore é cuidadosamente explicada por Poe e exaustivamente
estudada por vários críticos. De minha parte, creio que, além da sonoridade, o uso do vocábulo
encerra um oxímoro densamente poético. Nevermore (nunca mais), torna-se forever (para
sempre), na medida que a ausência eterna da amada se transforma na presença eterna do corvo,
sendo sempre e nunca, instâncias além do tempo.
A esperança de livrar-se do corvo está na própria desesperança do poeta: outros amigos o
abandonaram, decerto, ao amanhecer (ao findarem as trevas e o sonho), o corvo faria o mesmo. O
poeta interpreta a fala do corvo como um canto fúnebre, o único que lhe teria sido ensinado.
A atmosfera se torna cada vez mais lúgubre, ganhando também uma forte sensualidade
com a fusão de imagens como veludo-violeta sob a lâmpada, onde repousa a cabeça do poeta ao
contemplar os olhos flamejantes do corvo, que queimam o peito do poeta. A mistura de luxúria,
pavor e angústia faz parte da melhor tradição gótica.
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O ar ganha perfume, e outra imagem clássica (Nepente) surge para conseguir o
esquecimento. A essa altura, o sentimento de angústia acentua-se, ante a serena imobilidade do
visitante.
As estrofes quinze e dezesseis trazem curiosos jogos de imagens e palavras. Ao corvo
demoníaco, provável enviado dos infernos, porém chamado de Profeta, faz-se uma pergunta
bíblica : há um bálsamo em Gilead? Convém aqui citar a passagem bíblica:
Estou quebrantado pela ferida da filha do meu povo; ando de luto; o espanto apoderou-se de mim.Porventura não há ungüento em Gileade? Ou não há lá médico? Por que pois não teve lugar a cura da filha do meu povo? (Jeremias,8:21-22)
Não por acaso tais versículos encontram-se no título do Livro do Profeta Jeremias
intitulado A Apostasia do Povo de Deus – O castigo é inevitável. Apostasia, renúncia à fé. O
poeta renunciou ao seu cismar, ao enclausuramento tranqüilo do início do poema, quando ele
vivia a saudade de Lenore de forma reflexiva, à sombra dos livros, protegido pela Razão. A
chegada do corvo subverte o quadro: esse mensageiro infernal rouba-lhe a paz, mostra-lhe a
impossibilidade do esquecimento, a impossibilidade da apostasia. Tanto que o último implorar ao
pássaro é feito em nome “do Deus que ambos adoramos”. A hesitação em definir a origem
demoníaca, divina ou terrena do corvo é explicada pelo próprio Poe na Filosofia da Composição:
Daí para a frente, o amante não mais zomba, não mais vê qualquer coisas de fantástico na conduta do Corvo. Fala dele como “horrendo, torvo,ominoso e antigo”, sentindo da “ave incandescente, o olhar” queimá-lo “fixamente”. Essa revolução do pensamento ou da imaginação, da parte do amante, destina-se a provocar uma semelhante da parte do leitor, levar o espírito a uma disposição própria para o desenlace, que é agora completado tão rápida e diretamente quanto possível.(POE,1999, p.112)
É importantíssimo perceber a intenção de Poe ao justificar o poema neste trecho. Não há
nada de sobrenatural nos acontecimentos narrados no poema. Se as sensações despertadas no
poeta e no leitor pertencem ao domínio sobrenatural, esse sobrenatural ocorre apenas na mente do
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leitor e do eu-lírico, e não na situação em si. Essa “sede humana de autotortura” está
perfeitamente explicada na seguinte passagem de Kant sobre o Sublime: “Disso vê-se também
que a verdadeira sublimidade tenha de ser procurada só no ânimo daquele que julga e não no
objeto da natureza cujo ajuizamento enseja essa disposição de ânimo”. (KANT, 2002, p.102)
Ou seja, o poema é a mais perfeita tradução do sublime, em que uma situação
aparentemente banal (um pássaro que entra pela janela de alguém e perturba o seu repouso),
transforma-se numa espiral de fantasmagoria e suspense, unicamente pelo efeito causado na
mente do leitor, graças a uma trama poética magistralmente urdida, valendo-se dos princípios
poéticos de ritmo, rima e musicalidade. Como diz Eliane Fittipaldi “assim também prevalecem,
neste poema, a emoção estética sobre a mera narração de um fato e a transcendência do verbo
sobre a palavra-clichê esvaziada de sentido” (FITTIPALDI, 2006, p.53). Acrescento: “The
Raven” é a vitória da palavra contra a apostasia da linguagem. É um testemunho de crença na
capacidade da linguagem poética em criar e transformar mundos.
2.5.2 The Bells – A caracterização do gótico
The Bells I Hear the sledges with the bells- Silver bells! What a world of merriment their melody foretells! How they tinkle, tinkle, tinkle, In the icy air of night! While the stars that oversprinkle All the heavens, seem to twinkle With a crystalline delight; Keeping time, time, time, In a sort of Runic rhyme, To the tintinnabulation that so musically wells From the bells, bells, bells, bells, Bells, bells, bells-
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From the jingling and the tinkling of the bells. II Hear the mellow wedding bells, Golden bells! What a world of happiness their harmony foretells! Through the balmy air of night How they ring out their delight! From the molten-golden notes, And an in tune, What a liquid ditty floats To the turtle-dove that listens, while she gloats On the moon! Oh, from out the sounding cells, What a gush of euphony voluminously wells! How it swells! How it dwells On the Future! how it tells Of the rapture that impels To the swinging and the ringing Of the bells, bells, bells, Of the bells, bells, bells,bells, Bells, bells, bells- To the rhyming and the chiming of the bells! III Hear the loud alarum bells- Brazen bells! What a tale of terror, now, their turbulency tells! In the startled ear of night How they scream out their affright! Too much horrified to speak, They can only shriek, shriek, Out of tune, In a clamorous appealing to the mercy of the fire, In a mad expostulation with the deaf and frantic fire, Leaping higher, higher, higher, With a desperate desire, And a resolute endeavor, Now- now to sit or never, By the side of the pale-faced moon. Oh, the bells, bells, bells! What a tale their terror tells Of Despair! How they clang, and clash, and roar! What a horror they outpour On the bosom of the palpitating air!
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Yet the ear it fully knows, By the twanging, And the clanging, How the danger ebbs and flows: Yet the ear distinctly tells, In the jangling, And the wrangling, How the danger sinks and swells, By the sinking or the swelling in the anger of the bells- Of the bells- Of the bells, bells, bells,bells, Bells, bells, bells- In the clamor and the clangor of the bells! IV Hear the tolling of the bells- Iron Bells! What a world of solemn thought their monody compels! In the silence of the night, How we shiver with affright At the melancholy menace of their tone! For every sound that floats From the rust within their throats Is a groan. And the people- ah, the people- They that dwell up in the steeple, All Alone And who, tolling, tolling, tolling, In that muffled monotone, Feel a glory in so rolling On the human heart a stone- They are neither man nor woman- They are neither brute nor human- They are Ghouls: And their king it is who tolls; And he rolls, rolls, rolls, Rolls A paean from the bells! And his merry bosom swells With the paean of the bells! And he dances, and he yells; Keeping time, time, time, In a sort of Runic rhyme, To the paean of the bells- Of the bells: Keeping time, time, time, In a sort of Runic rhyme,
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To the throbbing of the bells- Of the bells, bells, bells- To the sobbing of the bells; Keeping time, time, time, As he knells, knells, knells, In a happy Runic rhyme, To the rolling of the bells- Of the bells, bells, bells: To the tolling of the bells, Of the bells, bells, bells, bells- Bells, bells, bells- To the moaning and the groaning of the bells.
A primeira versão do poema teria sido escrito por volta de 1848 na residência de Marie
Louise Shew, onde Poe estaria hospedado. O poeta teria se queixado à anfitriã sobre a
necessidade de escrever um poema, embora estivesse sem sentimento, sensação ou inspiração. Ao
servir-se de chá, Poe confessou não ter conseguido conciliar o sono, incomodado pelo som dos
sinos de uma igreja nas vizinhanças. Admitiu não ter objeto para escrever o poema e que se sentia
exausto. Marie Louise teria dado a Poe uma pena e um papel, onde teria escrito “The Bells by E.
A. Poe”. Também teria escrito “The Bells, the litlle silver bells”. A partir daí, teria surgido o
primeiro esboço do poema, publicado como curiosidade um mês após a publicação da obra final
em novembro de 1849.
Esse curioso episódio, bem como a clara diferença de elaboração e mesmo extensão entre
o rascunho e a obra final, exemplifica claramente a existência de um árduo processo de
construção poética em Edgar Allan Poe.
O poema é composto de quatro estrofes, cada uma delas evocando diferentes situações, e
graduações de emoções envolvendo os sinos. Os sinos são sempre mensageiros, anunciadores dos
acontecimentos e ao mesmo tempo, descrevem situações, dentro da melhor tradição romântica de
pinçar elementos da natureza e a partir deles, reconstruir (ou dissecar) o universo humano. Em
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“The Raven”, o corvo é esse elemento. Em “The Bells”, embora inanimados, os sinos ganharão
vida e protagonizarão o poema, conduzindo o leitor a uma espiral de emoções.
O aspecto mais óbvio do poema é o sentido onomatopaico: as palavras e seu ritmo
formam um conjunto inequivocamente pensado para que o leitor “ouça” o badalar dos sinos. A
própria repetição de várias palavras (notadamente “bells, bells”) é uma prova do efeito buscado
pelo poeta. O primeiro verso de cada estrofe (ou parte, como prefiro chamá-las), inicia-se com o
vocativo “Hear... bells”, um óbvio apelo ao leitor para que concentre sua atenção na presença
hipnótica e na materialização dos sons dos sinos na obra escrita. Sem dúvida, é um poema que
justifica uma das máximas de Poe “music, when combined with a pleasurable idea is poetry”. E é
poesia para ser lida, falada, declamada em voz alta, interpretada.
Algumas leituras resumem a divisão em quatro partes do poema a uma leitura simplista,
de que seriam as quatro idades do homem, com o poema descrevendo um ciclo do nascimento à
morte, sempre com o sino como pano de fundo, fazendo uma nova cronologia da trajetória da
vida humana. Essa leitura em minha opinião é bastante reducionista, pois deixa escapar vários
aspectos eminentemente góticos do poema, que se constituem em sua maior riqueza.
O primeiro destes aspectos é a presença constante da noite. O ambiente do poema é
sempre noturno, mesmo na parte inicial, em que os sinos pertencem a mundo de alegria (world of
merriment). Podemos perceber o ambiente desta primeira parte como sendo natalino: há trenós e
sinos, e ar gélido da noite, com céu cintilante. O Natal simbolicamente, é uma data contraditória,
visto por muitos como plenamente alegre, e por outros como profundamente melancólico. Dessa
forma, atrás da aparente alegria escondem-se o pungente e o melancólico.
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Pela primeira vez no poema surge um refrão que irá repetir-se no final do poema: the
runic rhyme. As runas têm vários significados, desde antigo alfabeto escandinavo até método
adivinhatório. Rimas rúnicas, além do óbvio ganho rítmico e sonoro, formam uma imagem que
ajuda a criar um mundo fantasioso e onírico.
A segunda parte fala de melodiosos sinos nupciais, que prenunciam um mundo de
harmonia e felicidade. A atmosfera é de volúpia e encantamento, que se desenvolve de modo
ascendente, curiosamente apontando não para o presente, mas para o futuro. Os sinos não são
jubilosos por pertencerem àquele ambiente, mas por, à luz da lua, potencializarem o desejo de
felicidade além daquele momento.
A terceira parte/estrofe, além de mais longa que as anteriores, traz os sinos de bronze (é
conveniente assinalar que há uma graduação do material dos sinos ao longo das estrofes, prata-
ouro-bronze-ferro), que dessa vez não anunciam alegria ou júbilo, mas sim alarme. As imagens
góticas surgem com toda a força: “tale of terror”, “turbulency”. Os sinos se transformam em
arautos de um mundo assustador e indizível: “too much horrified.to speech”- novamente a idéia
do mundo subterrâneo como sendo horrendo demais para ser descrito – sujeito apenas a ser
sentido, mas sempre por intermédio da imaginação alimentada pelo fantástico. O fogo, em
contraste com a pálida face da lua, surge como elemento que reforça os esguichos de terror que
inundam o ar. Não há mais a espiral ascendente da segunda parte, mas um movimento de fluxo e
refluxo, que denota a instabilidade do momento. A sensação de desequilíbrio e desconforto
configura, desta forma, um cenário gótico em sua plenitude.
A última estrofe poderia compor um poema independente, tal a riqueza de imagens e
situações. Ao contrário da agitação da estrofe anterior, há agora um silêncio solene na noite. A
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melodia dos sinos conduz, enfim, à reflexão silenciosa, mas que é uma “ameaça melancólica”. Os
sons dos sinos transformam-se em gemidos que saem das gargantas.
É preciso ressaltar que há uma interessantíssima passagem de personificação dos sinos
nessa estrofe. Paralelamente, surgem as pessoas, “que moram sozinhas nos campanários”.
Descobre-se, portanto, nesse momento, que os sinos não são sinos: são gente, que a cada
momento de suas vidas mostram-se feitas de um material diferente. Ao mesmo tempo, o poema
diz que as pessoas perderam a essência humana: emitem um som abafado e monótono, e que
sentem glória em ter no peito não um coração humano, sujeito a dores e alegrias, mas sim uma
pedra. O poema opera aqui um grande momento gótico: esses seres não são homens nem
mulheres, nem brutos nem humanos: são vampiros, cujo “rei” é aquele que toca os sinos.
A imagem do vampiro, altamente recorrente na cultura gótica, traz a essa passagem do
poema uma inesperada força, pois reforça a idéia de despersonalização da vida humana. Nega-se,
portanto, a essência humana aparentemente presente nos rituais humanos anteriormente citados
(Natal, casamento), e admite-se que ela é dissolvida por um elemento externo (talvez de
existência subterrânea), que dilui os sentimentos e os transforma em apenas sensações. O poeta
assinala o triunfo dessa despersonalização vampírica, ao pedir uma canção elegíaca (paean) aos
sinos, guardiões de um tempo suspenso do qual as pessoas não têm o poder de escapar – tal qual
o eu-lírico do poema “The Raven”.
2.5.3 Alone: a essência do pensamento romântico
Alone From childhood's hour I have not been As others were; I have not seen As others saw; I could not bring
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My passions from a common spring. From the same source I have not taken My sorrow; I could not awaken My heart to joy at the same tone; And all I loved, I loved alone. Then- in my childhood, in the dawn Of a most stormy life- was drawn From every depth of good and ill The mystery which binds me still: From the torrent, or the fountain, From the red cliff of the mountain, From the sun that round me rolled In its autumn tint of gold, From the lightning in the sky As it passed me flying by, From the thunder and the storm, And the cloud that took the form (When the rest of Heaven was blue) Of a demon in my view.
“Alone” é um poema que pode ser lido como uma súmula do pensamento romântico, em
sua vertente gótica. A forma é simples, com versos curtos e rimas emparelhadas (been, seen,
being, spring), exceto no dístico final em que tal seqüência é quebrada, como analisarei adiante.
Desde a infância (a origem, tema caro ao Romantismo) o eu-lírico coloca-se como um
estranho ao seu meio, um outsider. Essa alteridade permite-lhe uma percepção diferente do resto
do mundo, uma independência contestatória, cujas mágoas e paixões não são oriundas da mesma
fonte que as dos demais. Seus sentimentos são solitários, a solidão romântica tradicional é tida
como sinônimo de tristeza e melancolia. Mas merece ser vista também como símbolo de reflexão
e de individualidade – valores românticos sempre presentes na obra de Poe.
O uso de elementos da natureza, outro tema recorrente do romantismo, também serve para
reforçar os aspectos góticos do poema, já que não se trata de uma natureza tranqüila: é a natureza
como maëlstrom: “a most story life – was drawn”. Vida e natureza fundem-se em uma só agonia.
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Lembrando a visão kantiana de sublime , a agonia não está na natureza, mas na percepção que o
indivíduo tem dela, na reação da mente diante do objeto. Se há um poema em que isto se torna
explícito, este é “Alone”. Também está presente a dualidade nessa visão particular de mundo
(from every depth of good and ill).
O dístico final é revelador. Além da quebra das rimas emparelhadas, presentes nos vinte
versos anteriores, a separação do eu-lírico do mundo aprofunda-se totalmente da mesma forma
que a consciência do eu-lírico a respeito da própria estranheza. O céu está azul, mas aos olhos
dele, as nuvens assumem forma demoníaca. Curioso também é perceber o contraste
heaven/demon explicitado no dístico final, além do uso dos parênteses.
O poema “Alone” funciona, dessa forma, como afirmação da individualidade, de uma
visão particular do mundo e da natureza, uma visão gótica, marcada pelo sublime.
2.5.4 Spirits of the Dead – uma visitação poética
Spirits of the Dead Thy soul shall find itself alone - Alone of all on earth - unknown The cause – but none are near to pry Into thine hour of secrecy. Be silent in that solitude, Which is not loneliness–for then The spirits of the dead, who stood In life before thee, are again In death around thee, and their will Shall overshadow thee; be still. The night, though clear, shall frown, And the stars shall not look down From their thrones, in the dark heaven With light like Hope to mortals given, But their red orbs, without beam, To thy weariness shall seem As a burning and a fever
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Which would cling to thee forever. But ‘twill leave thee, as each star In the morning light afar Will fly thee – and vanish Now are visions ne'er to vanish: - But its thought thou canst not banish. The creath of God will be still; And the mist upon the hill By that summer breeze unbroken Shall charm thee – as a token, And a symbol which shall be Secrecy in thee
A temática macabra e sobrenatural perpassa todo o poema. Ao lado disso, há um convite à
razão e à reflexão, e ao mesmo tempo, a montagem de um “cenário”, tal como acontece em
outros poemas de Poe que possuem um certo caráter narrativo.
A alma deve estar só, sem nada ou ninguém que a interrompa. O silêncio é parte desse
momento íntimo de reflexão pura – quase um transe.
Há aqui uma interessante distinção entre “solitude” e “loneliness”. A segunda é a solidão
com o sentido negativo, tradicional, do ser abandonado por outras pessoas. O que o poeta exige
do leitor é “solitude” – uma opção por estar só para poder estar apto a uma busca, provavelmente
a um encontro consigo mesmo.
O poema sugere uma viagem à alma do leitor: que ele sinta-se à vontade para receber a
visita dos espíritos dos mortos, que em vida estiveram ao seu lado, para que possam estar na
morte também. Essa morte não é estática, é dinâmica, tem movimento e pulsação. A vontade
dessas almas “mortas” é forte o suficiente para encobrir a vontade da alma “viva” do leitor em
transe.
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Há uma construção de imagens bastante instigantes, como o “dark heaven”, onde as
estrelas, em seus tronos, dão aos mortais uma luz que deveria ser de esperança, mas que são luzes
que vem de orbes vermelhos, porém sem brilho, que parecerão fogo e febre para o coração do
leitor. É preciso notar que o eu-lírico aqui não participa dos acontecimentos, ele conduz o leitor a
esse mundo noturno de encontros improváveis. Há uma esperança para o leitor, a estranha
visitação terminará com a chegada da manhã – o que não surpreende, dado o aspecto
eminentemente noturno e sombrio de qualquer ambiente gótico. Sim, os espectros desaparecerão,
mas os pensamentos, a idéia deles, não pode ser banida da mente do leitor. Estranhamente, elas se
tornarão o sopro de Deus, misturando-se à névoa sobre o monte. Ou seja, a fusão de imagens
deste final de poema une a razão (thought), o místico (breath of God) e a Natureza Romântica
(must upon the hill, summer breeze), que, juntos, transformam-se em um símbolo de um segredo
que deve ser guardado no íntimo do leitor. A união entre imaginação, natureza e razão assinala
aqui todo um arcabouço poético que sinaliza a poesia como elevação da alma e viagem do
espírito, mediadas pelas dicção poética.
2.5.5 Annabel-Lee, dona do mar
Annabel Lee. It was many and many a year ago, In a kingdom by the sea, That a maiden there lived whom you may know By the name of Annabel Lee; — And this maiden she lived with no other thought Than to love and be loved by me. I was a child and she was a child, In this kingdom by the sea; But we loved with a love that was more than love — I and my Annabel Lee — With a love that the wingéd seraphs in Heaven Coveted her and me.
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And this was the reason that, long ago, In this kingdom by the sea, A wind blew out of a cloud, chilling My beautiful Annabel Lee; So that her high-born kinsmen came And bore her away from me, To shut her up in a sepulchre, In this kingdom by the sea. The angels, not half so happy in Heaven, Went envying her and me — Yes! — that was the reason (as all men know, In this kingdom by the sea) That the wind came out of the cloud by night, Chilling and killing my Annabel Lee. But our love it was stronger by far than the love Of those who were older than we — Of many far wiser than we — And neither the angels in Heaven above, Nor the demons down under the sea, Can ever dissever my soul from the soul Of the beautiful Annabel Lee: — For the moon never beams, without bringing me dreams Of the beautiful Annabel Lee; And the stars never rise, but I feel the bright eyes Of the beautiful Annabel Lee: — And so, all the night-tide, I lie down by the side Of my darling — my darling — my life and my bride, In her sepulchre there by the sea — In her tomb by the sounding sea.
“Annabel-Lee” é provavelmente o último poema do Poe a ser publicado estando o autor
em vida. O poema apareceu no New York Tribune em 9 de outubro de 1849, dois dias antes da
morte de Poe. A cantora folk norte-americana Joan Baez musicou o poema de 1967, sendo esse
mais um dos exemplos da presença da obra de Poe na cultura pop do século XX.
Mais uma vez, há no poema a perfeita fusão entre som (ritmo) e tema, bem como a
existência de uma narrativa, com cenário e atmosfera pré-anunciados.
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A reminiscência do passado é evidente no primeiro verso, tal como em “The Raven”. O
segundo verso é a primeira inserção de um refrão que se repetirá várias vezes no poema,
marcando não apenas o cenário como também a musicalidade do poema: “a kingdown by the
sea”. Ritmicamente, o mar dita o rumo do poema, que se assemelha ao vai e vem das marés. A
evocação de um “reino” sugere a existência de Annabel-Lee como alguém de origem nobre, mais
provavelmente, habitante de um espaço imaginário – um reino de conto de fadas, hipótese
reforçada pela conclusão da primeira estrofe, que oferece o nome da donzela, cujo único
pensamento em vida era amar e ser amada pelo poeta.
Na obra poética de Poe, talvez seja “Annabel-Lee” o poema que mais tenha sofrido com
análises biográficas simplistas: a morte de Virgínia, esposa do poeta, teria sido a motivação para
o poema. O que os responsáveis por tais análises recusam-se a perceber é justamente a
generalidade (e não a especificidade) do tratamento amor-saudade-morte que o poema faz.
Annabel-Lee, portanto, é a personificação do amor, e não de uma amante. É uma idéia,
antes de ser uma pessoa. Por isso, a exemplo de Lenore em “The Raven”, é uma eterna presença
em uma ausência.
Existe também aqui a evocação romântica da infância. Essa infância, porém, não exclui a
intensidade do “amor mais que amor” que une a musa ao eu-lírico. Outro curioso aspecto do
poema é, novamente, a dualidade das criaturas celestiais. Em um momento, são anjos a quem
Annabel-Lee se iguala (“her higborn kinsmen”). Mas tais anjos também são invejosos (do amor
de ambos? Do caráter angélico de Annabel-Lee?), e levam da Terra a musa, através de um vento
noturno e gélido. A mesma natureza que compõe o cenário do idílio amoroso é responsável pela
partida da amada, que como não poderia deixar de ser, ocorre à noite.
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O que seria o fim do romance configura-se, porém, como a eternização do mesmo. O
amor do poeta e de Annabel-Lee é mais forte e mais sábio que os amores comuns, e não pode ser
extinto nem mesmo por criaturas não-terrenas – sejam anjos ou demônios. Novamente a
dualidade céu/inferno se faz presente em uma obra de Poe, não como opostos, mas equiparados,
desta vez em desimportância.
A estrofe final mostra como a cristalização e a eternização do romance ocorre através da
natureza: o brilho da lua, a chegada das estrelas, o vai e vem das ondas, tudo está impregnado da
presença ausente da amada. Annabel-Lee morta é muito mais presente e pujante que qualquer
musa viva, porque é efeito da imaginação do poeta, cuja presença dissolve-se na natureza. O
predomínio da imaginação significa o predomínio do impulso interior do homem e está ligado à
busca das origens. E a única maneira de expressar isso é através da forma artística, somente
alcançada com o trabalho da razão. Como diz Spitzer:
Em vez de dizer que a poesia consiste em “não-palavras” que, tomando distância do sentido, alcançam por meio da prosódia um “sentido-além-do-sentido”, eu sugeriria que ela consiste em palavras, cujo sentido é preservado e que, pela magia do trabalho prosódico do poeta, alcançam um “sentido-além-do-sentido”(SPITZER, 2003:39).
No caso do poema “Annabel-Lee”, o “sentido-além-do-sentido” está no efeito alcançado,
a um só tempo belo e melancólico, tendo como fecho final o uso da palavra sepulcro. Este
sepulcro encerra o caráter gótico e noturno do poema, e simboliza a perpetuação das emoções,
contrastando a prisão do sepulcro e a liberdade do mar, igualados no mesmo mistério e na mesma
presença do Desconhecido.
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3. EUROPA:LEITURAS E LEITORES
3.1 Leituras do Primeiro Romantismo Alemão
Um dos aspectos mais conhecidos da obra de Poe é sua recepção crítica no continente
europeu, superior a que encontrou em seu próprio país, os EUA, aonde só viria a se consagrar
algumas décadas após seu desaparecimento. Há quem afirme que foi a boa receptividade européia
que teria feito a América descobrir esse seu filho pródigo. E é sabido também que um nome
contribui decisivamente para isso: o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867). Os ensaios de
Baudelaire sobre a vida e a obra de Poe, publicados em 1852, foram os primeiros estudos gerais
sobre o autor norte-americano a aparecer em língua não-inglesa. Revisados em 1856, serviram de
prefácio ao primeiro volume da tradução de Baudelaire para os contos de Poe em língua francesa.
Porém, antes de discutir a relação literária entre Edgar Allan Poe e seu leitor Charles
Baudelaire, convém falar de algumas leituras feitas por Poe de autores europeus, em particular,
do Romantismo alemão – leituras essas decisivas na formação do escritor.
Ao longo da obra de Poe, encontram-se várias citações ou referências. São controversas as
informações sobre se Poe teria ou não sido leitor de textos alemães em primeira mão, ou se as
constantes citações sobre literatura alemã seriam fruto de leituras esparsas de trechos traduzidos
para a sua própria língua materna. Meu ponto de vista é de que isso pouco importa: o que merece
ser assinalado é que temos sim, na obra de Poe, inegável parentesco com o primeiro romantismo
alemão dos românticos de Jena, dentre os quais se destacam Friedrich Schlegel (1772-1829) e
Friedrich von Hardenberg, que adotou o nome literário de Novalis (1772-1801).
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Entre Poe e Novalis podemos de imediato estabelecer como ponto em comum: a
brevidade de ambas as existências. É como se por terem vivido intensamente o pensar poético,
tivessem experimentado um tempo de vida além de nossa capacidade ordinária de mensuração.
Esse romantismo primeiro tem duração meteórica, mas é profundamente intenso, do ponto
de vista da experiência estética. É definido não como uma escola propriamente dita, mas sim
como um projeto teórico de literatura. Há um engajamento do poeta no mundo. O real para eles, é
a arte. A idéia é de uma revolução social; pela imaginação produtora, pela poesia.
O grupo do Athenäum, nos cerca dos seis números nos dois anos de duração da revista de
mesmo nome (1798-1800), estabeleceu a possibilidade de uma atividade e de um pensar conjunto
entre pessoas que tinham uma comunhão de idéias. O grupo foi a produção de algo inédito, ao
escrever e pensar sobre poesia, moral e política, sempre em busca de um conceito de obra
literária. Ao reelaborarem a sua forma de pensar, os membros do grupo também reelaboraram o
mundo. A realização mais notável do grupo foram os fragmentos, através quais fizeram ao
mesmo tempo, poesia e filosofia.
No pensamento romântico, o auto-conhecimento é o primeiro pré-requisito para o
entendimento do mundo. O romantismo tem como tarefa repensar a herança do idealismo alemão.
Dessa forma Kant realiza uma “segunda revolução copernicana”, que anuncia uma mudança
radical no entendimento da representação. A crítica passa a ser o cerne do pensamento, pois é
uma investigação a respeito do limite das coisas, ou seja, admite-se que o homem não pode
conhecer tudo, que há limitações para o que a razão humana pode conhecer. O conhecimento
torna-se desta forma , uma saída de si e uma volta a si. Em Kant, a experiência estética é uma
experiência universal, da qual todos participam. Já o juízo (o julgar), deve articular as vivências
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de cada um. Logo, a crítica trabalhará com a dialética do objetivo e do subjetivo. Dessa forma, a
crítica tornar-se-á também criação, pois fará surgir algo novo. A crítica é uma obra nova, infinita
e inacabada, que prescinde de uma organização. A liberdade kantiana é autolimitação, o sujeito se
restringe para conseguir o seu imperativo. O sujeito tem que legislar sobre seus próprios impulsos
para chegar a um objetivo. A legislação da razão é uma idéia que nasce com Kant.
Portanto, há um potencial de reflexão na arte que a torna cada vez maior. O efeito da arte
é prazeroso e intelectual ao mesmo tempo. É o ”pensar poético”.
Walter Benjamin em seu Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão recupera o
pensamento dos Românticos de Jena para o século XX.O conceito da crítica como “meio de
reflexão” é central ao trabalho de Benjamin:
A teoria do conhecimento do objeto é determinada pelo desdobramento do conceito de reflexão em seu significado para o objeto. O objeto, assim como tudo que é efetivo, repousa no medium-de-reflexão. O medium-de-reflexão é, no entanto, de um ponto de vista metodológico ou gnosiológico, o médium de pensar, pois ele é formado segundo o esquema da reflexão do pensar, da reflexão canônica porque nela estão cunhados da maneira mais evidente os dois momentos básicos de toda reflexão: auto-atividade e conhecimento.(BENJAMIN,2002, p.59)
Portanto, conhecer, criticar, analisar o objeto é antes de tudo um processo dinâmico,
somente possível caso o crítico se predisponha a perceber que conhecer o objeto é também
conhecer a si mesmo. Por isso, pode-se pressupor o ilimitado da crítica, pois as interações
possíveis entre o objeto e a obra são ilimitadas. Dessa forma, não há objetos com características
permanentes ou absolutas. Toda caracterização é relativa e dinâmica, porque depende de uma
postura ativa do sujeito, que através de seu pensar, colocará o objeto em sua obra. Ainda segundo
Benjamin, “não há, de fato, conhecimento de um objeto através do sujeito. Todo conhecimento é
um nexo imanente no absoluto, ou, se quiser, no sujeito. O termo “objeto” não designa uma
75
relação no conhecimento, mas uma carência de ligação, e perde seu sentido sempre quando uma
relação de conhecimento vem à luz”.(BENJAMIN, 2002, p.63)
Podemos portanto deduzir que a própria obra de arte já contém a sua crítica, e essa virá à
luz através do pensamento do crítico. Existe, portanto, um elo indissolúvel entre crítica e obra,
como se elas fossem iguais, embora não o sejam, mas tenham a mesma natureza dinâmica.
Dentro dos princípios do Primeiro Romantismo Alemão podemos afirmar que toda a obra de arte
é crítica, na medida em que desperta o médium da reflexão da arte. Na verdade, o autor não
controla a composição da obra de arte. O eu não é infinito, é autolimitado, mas o momento de
reflexão, o pensamento, isto é, a crítica, ilimita a finitude da obra. A obra transcende a si mesma
na crítica. A crítica torna-se, dessa maneira, a superação da obra de arte – superação essa somente
possível porque promove o dinamismo entre sujeito e objeto. Só a crítica permite à obra de arte
avançar, fazer um “salto” sobre si mesma.
Segundo Seyhan (1992), o Athenäum contemplava o projeto de uma enciclopédia
universal, que buscava realizar um projeto de reunificação do conhecimento humano, ou seja,
juntar os fragmentos de experiência humana. Nessa coleta/revisão, o Athenäum acabou tornando-
se uma “biblioteca-laboratório”, em que a crise de representação do final do séc. XVIII terminou
sendo não apenas compilada, mas extremamente investigada em termos de valores morais e
estéticos, o que acabou levando à quebra de paradigmas. Em outras palavras, a reflexão crítica
levada a cabo por estes pensadores/artistas, ocasionou uma revolução no pensamento literário. Na
verdade, os primeiros românticos tentam reconstruir uma idéia de sistema (totalidade orgânica)
através da poesia. Seyhan define assim a relevância dos fragmentos para os românticos de Jena:
“Fragment negates the philosophical postulate of continuous representation and induces cracks in
the fundament of the idea”. (SEYHAN,1992, p.29)
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O fragmento, portanto, ajusta-se a um projeto filosófico-poético que privilegia o uso
dinâmico da formulação de pensamentos e idéias, que busca reinventar o mundo e a percepção
deste. O livre jogo da imaginação é favorecido no fragmento exatamente por essa natureza de
“incompletude” que ele apresenta. O fragmento permite a interação entre quem o formula e quem
o lê, criando um espaço de questionamento ativo, que é justamente o que propicia o advento da
crítica. Por isso, o primeiro romantismo alemão se estabelece como o local em que fazer Arte e
discutir (criticar) essa mesma Arte alcançam o mesmo patamar dentro da experiência estética. É
através dos fragmentos que os primeiros românticos colocarão em prática esse arcabouço teórico.
Todas as leis científicas transformam a percepção pela qual o mundo da experiência se
apresenta para nós em um sistema. Logo, representações formais de percepções não são reflexos
de fenômenos externos, mas sim sínteses autoconstruídas, são elementos de conhecimento. Para
conhecer alguma coisa, precisamos ir além da representação. A representação, por si só, não
constitui conhecimento. Conhecimento exige dinamismo e interação (leia-se, crítica).
Os românticos herdaram o “problema” kantiano da incompatibilidade entre idéia e sua
representação sensível. Assim, a representação torna-se para os primeiros românticos uma
apresentação, ou antes, uma manifestação, que deve fazer presente o que está ausente. Neste
contexto, os fragmentos assumem o papel de instrumento para reconstruir uma idéia de sistema.
O fragmento deve ser lembrado como um pensamento. Seus traços característicos são o
inacabamento, a variedade e a unidade do conjunto. Há uma tensão latente entre o fragmentário e
o sistemático. Sistemático no sentido de pertencer a um sistema – um conjunto de peças que se
move mais ou menos aleatoriamente, que tem um funcionamento mas que não está sujeito a
regras de ordenamento. Já o fragmentário traz em seu bojo um inacabamento que é essencial a
77
sua natureza. O fragmento aponta para além e o aquém da obra, ou seja, tanto o que vem antes
como o que vem depois.
3.1.1 Alguns fragmentos
Convém aqui promover a leitura da alguns fragmentos, para que se possa melhor
compreender a afinidade entre o pensamento crítico dos Românticos alemães e o projeto literário
de Edgar Allan Poe. Opto aqui por alguns fragmentos do Pólen, de Novalis, por ter sido o poeta
alemão citado nominalmente por Poe em seu conto “A Tale of Ragged Mountains”(Uma História
das montanhas Ragged) , que analisarei mais adiante neste trabalho.
Vejamos o que diz Novalis sobre a relação leitor-autor, no fragmento 125:
O verdadeiro leitor tem que ser o autor amplificado. É a instância superior, que recebe a causa já preliminarmente elaborada da instância inferior. O sentimento, por intermédio do qual o autor separou os materiais de seu escrito, separa novamente, por ocasião da leitura, o que é rude e o que formado no livro – e se o leitor elaborasse o livro segundo a sua idéia, um segundo leitor apuraria ainda mais,e assim, pelo fato de a massa elaborada entrar sempre de novo em recipientes frescamente ativos, a massa se torna por fim componente essencial – membro do espírito eficaz.Através da releitura imparcial de seu livro o autor pode ele mesmo apurar seu livro. Com estranhos, o peculiar costuma perder-se, porque é tão raro o dom de adentrar plenamente em uma idéia alheia. Freqüentemente com o próprio autor. Não é nenhum indício de maior cultura, ou de maiores forças, fazer sobre um livro a censura certa. Diante de impressões novas a maior agudeza do sentido é totalmente natural.(NOVALIS,2001, pp.103-105)
Aqui Novalis faz uma curiosa distinção entre instância inferior e instância superior,
respectivamente, autor e leitor. O que faria o leitor ser superior ao autor? Exatamente o ganho da
imaginação, da crítica, e da reflexão. É o que Poe busca quando afirma que a literatura deve
causar o efeito no leitor. A obra de arte em si é inacabada, incompleta. Somente se completará (e
se ampliará, o que é seu destino natural) com a interação com o receptor (leitor, no caso da
literatura). Há uma cadeia contínua de pensamento e reflexão, que torna a obra literária infinita. É
uma experiência dinâmica e criadora. Dessa forma, o germe (auto)limitado (o limite é dado pela
78
linguagem, assim como a forma) da criação individual se desdobra, se multiplica e se
plurissignifica. Eis aí a grandeza da obra de arte, na visão romântica.
Neste fragmento, Novalis também mostra a necessidade da releitura imparcial por parte
do autor. Ou seja, estabelece a imparcialidade, o distanciamento crítico, como condição essencial
para o poeta crítico. De certa forma, o autor deve “sair de si e voltar a si”. Como diz o próprio
Novalis no fragmento 35: “Quem não é capaz de fazer um poema, também só o julgará
negativamente. A genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesmo o produto a ser
criticado. O gosto por si só julga apenas negativamente.” (NOVALIS, 2001, p.122) É necessário
que essa nova impressão crie outra representação. Isso é a crítica. Certamente, ao aprimorar a
obra, o próprio crítico/leitor/autor aprimora a si mesmo.
Essa afirmativa não significa necessariamente que os românticos alemães restringiram o
exercício da crítica aos poetas . Segundo Costa Lima (1989), o que está em jogo é uma separação
absoluta entre os campos da arte e da estética – estética entendida como delimitação de escolas
ou princípios pré-estabelecidos. A auto-reflexão amplia os limites da arte, levando-os a uma
transcendência, entendida aqui como um processo em que a expressão do individual se torna
soberana sobre o mimético. O poeta romântico não se limita mais a imitar a natureza, mas
encontra dentro de si uma força criadora (a imaginação) que pode igualá-lo à natureza ou até
mesmo levá-lo a superar a natureza, através da linguagem, veículo pelo qual o poeta cria o
mundo. Por isso o sublime não está na natureza, mas sim na percepção e na interpretação que o
homem dela faz. Conforme ainda Costa Lima: “A poesia se converte em negadora da realidade,
inclusive da natureza, à medida que se recusa a presença de qualquer centro, seja o das categorias
estéticas, seja o das peculiaridades do sujeito individual. Por seu descentramento, o poético atinge
uma altura muito além do horizonte do romantismo normal”. (LIMA,1989, pp.107-108)
79
Esta “negação” da realidade é que permite a construção de outros mundos. Torna-se a
vitória da imaginação humana individual sobre o caráter totalizante da natureza.
3.1.2 A Tale of Ragged Mountains: Poe, Novalis e o Sonho
No conto ”Uma História das Montanhas Ragged” (A Tale of the Ragged Mountains),
temos o predomínio da narrativa racional para falar de assuntos absolutamente irracionais,
ligados ao ocultismo, ao sonho, e a um possível assassinato. O interesse em analisar este conto
aqui, está exatamente no fato de que nesta narrativa, Poe cita Novalis explicitamente, quanto à
questão do sonho. Daí, me permito pensar que, ao elaborar essa aventura fantástica, Poe tinha em
mente a leitura de algumas idéias de Novalis. Novalis surge, para Poe, como anunciador de uma
visão filosófica do mundo, em que o predomínio do sonho e da imaginação assume um papel
fundamental.
Da mesma forma que Poe valia-se do racional para falar do irracional, e com isso firmou a
sua posição como crítico, da mesma forma Novalis, ao fazer dos fragmentos formas de
pensamento, apontou caminhos para a reflexão literária: ”A arte de escrever livros ainda não foi
inventada. Está porém a ponto de ser inventada. Fragmentos desta espécie são sementes literárias.
Pode sem dúvida haver muito grão mouco entre eles – mas contanto que alguns brotem”.
(NOVALIS,1988, p.93)
Da mesma forma, ouso afirmar que Poe tinha em mente uma idéia semelhante ao escrever
seus contos. Tal gênero literário era então pouco usual na literatura, até o Romantismo. A poesia
e o drama eram formas literárias consagradas desde a remota Antigüidade, o romance, ou
narrativa longa, com complexidade de trama e personagens, firmou-se especialmente a partir do
século XVIII, com as primeiras novels inglesas, que superaram e sofisticaram o modelo dos
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romances de cavalaria. O mais significativo produto deste gênero insurgente no século XVIII
talvez seja Robinson Crusoe, de Daniel Defoe (1719), conforme já comentado neste trabalho.
E quanto ao conto, consagrado em língua inglesa com o nome de short story? Sem
dúvida, é nos Estados Unidos, notadamente com os autores românticos (Poe, Hawthorne e
Melville) que ele se estabelecerá definitivamente como forma literária consagrada, fazendo com
que deixe de ser chamado simplesmente de “tale”. Para tal movimento afirmativo foi de especial
importância a contribuição de Poe não apenas como escritor, mas, fundamentalmente como
crítico. Ao resenhar o livro de contos de Nathaniel Hawthorne (1804-1864) Twice-Told Tales em
1842, Poe estabelece as definições e os critérios do que seria definido como conto (short-story).
Conforme Poe, o conto precisaria garantir uma unidade de efeito, que seria uma espécie de
impacto causado no leitor. Este impacto estaria intimamente ligado à extensão do conto, bem
como a uma certa uniformidade de estilo. Nas palavras do próprio Poe:
But it is of his tales that we desire principally to speak. The tale proper, in our opinion, affords unquestionably the fairest field for the exercise of the loftiest talent, which can be afforded by the wide domains of mere prose. (…)A skilful literary artist has constructed a tale. If wise, he has not fashioned his thoughts to accommodate his incidents; but having conceived, with deliberate care, a certain unique or single effect to be wrought out, he then invents such incidents--he then combines such events as may best aid him in establishing this preconceived effect. If his very initial sentence tend not to the outbringing of this effect, then he has failed in his first step. In the whole composition there should be no word written, of which the tendency, direct or indirect, is not to the one pre-established design. (POE,1842)
Este estabelecimento de parâmetros, em minha opinião, equivale a mais do que crítica:
torna-se um princípio de arte. Ao definir e comentar aquilo que julga ideal e necessário à
narrativa curta, Poe, à semelhança de Novalis, funda um sistema no qual as suas convicções
literárias alcançam a condição de pensamento filosófico.
O seguinte fragmento (29) de Novalis auxilia nessa reflexão:
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O poema do entendimento é a filosofia – É o supremo arrojo, que o entendimento se dá por sobre si mesmo – Unidade do entendimento e da imaginação.Sem filosofia permanece o homem desunido em suas forças essenciais – São dois homens - Um entendedor – e um poeta. Sem filosofia imperfeito poeta – Sem filosofia imperfeito pensador – julgador.(NOVALIS,1988, p.117)
Podemos perceber através da leitura dos fragmentos de Novalis, alguns de seus postulados
filosófico-poéticos. O mais relevante deles talvez seja o predomínio da imaginação. Valorizar o
sonho é valorizar o subjetivo, valorizando o sujeito e a sua interação com as coisas, já que a coisa
em si não é apreensível, os fenômenos é que o são. Daí, o esforço dos Românticos em perceber a
Natureza como linguagem – “o livro do mundo”. O Romântico faz uma decifração do mundo que
não é definitiva: ele decifra o mundo e o mundo volta a se cifrar, pois o mundo está em atividade
permanente.
Temos portanto, o cenário ideal para a predominância da noite e do mistério. O
Romântico busca ver além da aparência, busca o insondável e com isso termina por tornar-se um
profeta. E a noite proporciona isto. A noite abre os olhos do Romântico, torna-se Vida, embora
seja a Morte dos sentidos habituais. Existe, no mistério, na noite, e no sonho, uma possibilidade
de esclarecimento.
É neste cenário que encontramos “A Tale of the Ragged Mountains”. Numa tradução
livre, podemos perceber que desde o título estabelece-se um mistério: as montanhas são
escarpadas, um lugar de difícil acesso. E este lugar se tornará palco de uma viagem física e/ou
psíquica, cujo desfecho nos será totalmente inesperado.
Poe utiliza no conto um narrador em primeira pessoa – característica comum em seus
contos, o que desde já evidencia a busca pela individualidade e ao mesmo tempo por um contato
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íntimo com o leitor. Este narrador não tomará parte direta na história, e funcionará como se o
próprio leitor estivesse contando a história.
É então apresentado a nós Mr. Augustus Bedloe, um homem notável, a respeito de quem o
narrador não pode obter muitas informações, mas cuja aparência física lhe causava perplexidade,
uma vez que, apesar de parecer jovem, havia momentos em que ele dava ao narrador a impressão
de ter mais de um século de idade. Entre as particularidades de sua aparência, temos a curiosa
descrição de seus olhos:
In moments of excitement the orbs grew bright to a degree almost inconceivable; seeming to emit luminous rays, not of a reflected but of an intrinsic lustre, as does a candle or the sun; yet their ordinary condition was to totally vapid, filmy, and dull, as to convey the idea of the eyes of a long-interred corpse. (POE, 2003, p.67)
Logo ficamos sabendo que essa aparência peculiar é devida a alguma doença de fundo
nervoso, e que para obter auxílio e solucionar este problema, Bedloe vinha sendo tratado havia
muitos anos, por um médico, o Dr.Templeton, um velho cavalheiro adepto do mesmerismo. Vê-
se aqui que Poe já estabelece uma ponte com o supra-sensível. Em seguida, tomamos
conhecimento de que médico e paciente tinham uma forte relação de amizade, que fazia com que
Bedloe aceitasse ser alvo de experiências do médico. Tais experiências estavam ligadas à hipnose
e ao sono, e envolviam o uso de morfina.
A respeito do caráter de Bedloe sabemos que “The temperature of Bedloe was, in the
highest degree, sensitive, excitable, enthusiastic. His imagination was singularly vigorous and
creative”(POE, 2003, p.68). Eis aí a justificativa para o que virá a seguir.
Numa tarde de outono, Bedloe sai para passear nas montanhas, conforme era seu costume,
só retornando muitas horas depois, com um relato fantástico de seu passeio. Ele afirma ter vivido
83
uma incrível aventura numa cidade de feição oriental (neste ponto, Poe chega a referir-se aos
Arabian Tales, ou seja, às Mil e Uma Noites), onde teria se envolvido em um conflito entre os
locais, tendo sido alvejado por uma flecha e morrido. Obviamente, neste ponto, o personagem
começa a envolver-nos na fronteira tênue entre fantasia e realidade, conforme vemos a seguir. É
aqui que surge Novalis:
'You will say now, of course, that I dreamed; but not so. What I saw -- what I heard -- what I felt -- what I thought -- had about it nothing of the unmistakable idiosyncrasy of the dream. All was rigorously self-consistent. At first, doubting that I was really awake, I entered into a series of tests, which soon convinced me that I really was. Now when one dreams, and, in the dream, suspects that he dreams, the suspicion never fails to confirm itself, and the sleeper is almost immediately aroused. Thus Novalis errs not in saying that "we are near waking when we dream that we dream". Had the vision occurred to me as I describe it, without my suspecting it as a dream, then a dream it might absolutely have been, but, occurring as it did, and suspected and tested as it was, I am forced to class it among other phenomena.'(POE, 2003, p.71)
O sonho (re) cria uma cisão tempo/espaço que subverte a realidade, mudando o sentido de
representação usual na literatura. O gótico, como expresso no conto, é o instrumento ideal para a
a criação desse efeito.
Diante da revelação, o médico mostra a Bedloe um quadro em que aparece um homem
totalmente semelhante a ele, e revela que o homem do quadro é um velho amigo seu, Mr. Oldeb,
que morrera num levante em Calcutá, há muitos anos. O médico diz também que tal semelhança
física entre os dois foi o motivo que o fez aproximar-se de Bedloe. E o mais importante: tudo o
que Bedloe “viveu” nas montanhas, era o que havia acontecido no episódio da morte de
Mr.Oldeb, do qual o médico tinha sido testemunha e de tudo recordava-se. Por conta destas
lembranças, no mesmo instante em que Bedloe estava nas montanhas, tudo o que estava se
passando com ele estava sendo escrito ao mesmo instante pelo próprio médico, que se achava em
casa naquela tarde.
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O desfecho do conto vem a seguir. O narrador conta ter aberto o jornal da cidade uma
semana depois e ter encontrado a notícia da morte de Mr. Bedloe, causada por um resfriado
contraído durante o passeio às montanhas. Na verdade, a causa mortis não teria sido o resfriado
em si, mas a presença de uma sanguessuga venenosa entre as que teriam sido usadas pelo
Dr.Templeton para tratar o paciente, sendo que somos informados da disparidade de aparência
entre a sanguessuga venenosa e a medicinal.
Nada mais sabemos sobre o destino dos personagens,além do relato que nos faz o
narrador no final do conto:
I was speaking with the editor of the paper in question, upon the topic of this remarkable accident, when it occurred to me to ask how it happened that the name of the deceased had been given as Bedlo. ‘I presume,' said I, 'you have authority for this spelling, but I have always supposed the name to be written with an e at the end.' 'Authority? -- no,' he replied. 'It is a mere typographical error. The name is Bedlo with an e, all the world over, and I never knew it to be spelt otherwise in my life.' 'Then,' said I mutteringly, as I turned upon my heel, 'then indeed has it come to pass that one truth is stranger than any fiction -- for Bedlo, without the e, what is it but Oldeb conversed? And this man tells me it is a typographical error.' (POE, 2003, p.74)
Eis aí os elementos que fazem deste conto um exercício de literatura romântica: o místico,
o labiríntico, o desconhecido, e especialmente, o irrespondido. Ficamos sem saber o que, de fato
ocorreu: se Bedloe era alguém real ou um fantasma de alguém há muito falecido, que por algum
motivo esteve vagando sem sossego, somente assumindo seu sono eterno após um tratamento
científico. Nesse ponto, devemos lembrar que a Ciência, no contexto romântico, é muitas vezes,
vista como o ponto de comunicação possível entre dois mundos.
Na verdade, não importa a resposta, porque ela não existe, a não ser naquilo que se refere
ao exercício da imaginação criadora do artista e do leitor. Dessa forma, a imaginação permite que
85
o leitor seja também um co-autor do texto, que participa de um mundo onírico que é inerente a
todos os homens, conforme diz Novalis em seu fragmento 195:
Está apenas na fraqueza de nossos órgãos, e do autocontacto, que não nos vejamos em um mundo feérico. Todos os contos de fadas são apenas sonhos daquele mundo pátrio, que está por toda parte e em lugar nenhum. As potências superiores em nós, que um dia, como gênios, cumprirão nossa vontade, são agora musas, que nesta fadigiosa trilha nos recreiam, com doces recordações.(NOVALIS, 1988, p.163)
Convém neste ponto discorrer um pouco sobre o que Novalis conceitua como gênio.
“Assim é, portanto, o gênio, a faculdade de tratar de objetos imaginados como se tratasse de
objetos efetivos, e também de tratá-los como a estes”.(NOVALIS,1988, p.49) O gênio, portanto,
nada mais é do que a capacidade humana de viver a imaginação como se verdade fosse, uma vez
que no campo mental não há diferença entre imaginação e realidade, já que a partir da ação
podemos converter o sonhado em vivido, conforme a nossa vontade. Eis o cerne do pensamento
romântico.
É justamente a este mundo pátrio que somos levados pelo conto de Poe. Nesse mundo
pátrio do sonho e da imaginação românticos, é a intuição que nos guia, e não a luz. A luz tem
uma transparência que a torna explícita por si só. Explicar a luz, o dia é como uma descrição:
basta detalharmos o que estamos vendo.
Já a noite é diferente: pela ausência de claridade, ela não pode ser vista, precisa, portanto,
ser decifrada. Essa é a metáfora que carrega a essência do Romantismo.
O conto ”Uma história das montanhas Ragged” é mais um dos experimentos literários de
Poe, em que um fio narrativo bastante cerebral é posto a serviço de uma trama em que o supra-
sensível e o imaginativo se impõem. E ao se imporem levam-nos nós, leitores, ao mundo pátrio
descrito por Novalis, fazendo de cada um de nós seu próprio gênio.
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3.2 Baudelaire, leitor de Poe
A relação de Poe e Baudelaire é uma das mais famosas e discutidas da literatura
ocidental.Os estudos sobre a influência do autor norte-americano sobre o poeta francês expõem
desde uma admiração profunda (que Baudelaire sentiria por Poe) até uma obsessão absoluta que
chegaria ao plagiarismo.
De modo injusto, alguns críticos sustentam que Baudelaire não teria existido sem ter sido
um leitor de Poe, o que é um absoluto exagero, da mesma forma que é excessivo afirmar que Poe
tornou-se respeitado e conhecido somente depois de suas traduções por Baudelaire.
O certo é que a primeira fascinação de Baudelaire a respeito de Poe tem inegável viés
biográfico. Baudelaire teria enxergado em Poe um seu igual, tanto do ponto de vista das
dificuldades da vida pessoal, quanto do mais importante: afinidade quanto a idéias estéticas.
Em uma carta a um crítico, datada de 1864, diz textualmente Baudelaire: “Sabes por que
traduzi Poe com tanta paciência? Porque se parecia comigo. A primeira vez que abri um livro
seu, vi, espantado e maravilhado, não apenas assuntos cogitados por mim, mas frases pensadas
por mim, e escritas por ele, vinte anos antes”. (BAUDELAIRE, 2003, p.7)
Ao contrário do que muitos pensam, não são de Baudelaire as primeiras traduções de Poe
para o idioma francês. Por volta de 1845, “Le Scarabée D’Or” (The Gold Bug), primeira tradução
de um conto de Poe para o francês, é publicado no Révue Britannique de forma anônima. Outras
traduções de outros contos de Poe sugiram em periódicos como o Quotidienne e o Démocratie
Pacifique. Provavelmente foram essas publicações que chamaram a atenção do leitor Baudelaire,
que retoma seus estudos de inglês e busca material original de Edgar Allan Poe, para desenvolver
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o que viria a ser um dos seus mais importantes projetos literários: a tradução, sempre
acompanhada de estudos introdutivos de boa parte da obra em prosa do poeta norte-americano.
A partir da afinidade que Baudelaire sente por Poe é que irá traduzir a sua obra. A
tradução trata de questões históricas e culturais. Benjamin(1992) diz que quando há uma elevação
para a linguagem pura, sem a mera idéia de transposição, é que se dá a tradução. O tradutor deve
encontrar na língua-alvo a intenção do texto, a maneira como o texto é construído, através de sua
forma. O tradutor também é um escritor: sua tarefa é encontrar a intenção do autor no original.
Tal como a crítica, o que mais interessa na tradução é a estrutura da obra. A língua pura serve
como princípio regulativo que vai possibilitar que não se fique preso somente ao conteúdo no
momento da tradução. Conforme diz o próprio Baudelaire:
É preciso, sobretudo, ater-se ao texto literal:certas coisas se teriam tornado obscuras caso eu tivesse querido parafrasear meu autor em lugar de manter-me preso servilmente ao pé da letra. Preferi usar um francês difícil, por vezes barroco, a fim de dar, em toda a verdade, a técnica filosófica de Edgar Poe. (BAUDELAIRE,2003, p.8)
Em 1852 surge o primeiro ensaio de Baudelaire dedicado a Poe “Edgar Allan Poe, sa vie
et ses ouvrages”, na Révue de Paris. Este ensaio apresenta forte viés biográfico, misturado a uma
fascinação com as idéias do “The Poetic Principle”, a ponto de alguns trechos serem transcrição
de trechos inteiros do ensaio de Poe. (PHILLIPOV, 2004) Em 1853 surge a única tradução
conhecida de um poema de Poe por Baudelaire “Le Corbeau” (The Raven), publicada no
periódico L’Artiste. Seguem-se diversas traduções de contos de Poe, trabalho que se seguiria ao
longo dos anos seguintes, paralelamente à publicação de suas obras mais importantes, como Les
Fleurs du Mal (1857).
Tanto Poe quanto Baudelaire percebem a necessidade de conferir um caráter total à
atividade literária: prosa, poesia e crítica (ensaios). Pode-se afirmar, portanto, que ambos
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partilham o mesmo ideal de projeto estético-filosófico-poético. Há um processo evolutivo, uma
construção, nessa recepção a Poe por parte de Baudelaire.
Outro fator que aproxima ambos poetas é a crítica ao panorama cultural em que ambos
estavam inseridos. Tanto Poe quanto Baudelaire condenam o gosto do público pelo prosaico, pela
manifestação artística meramente representativa, massificada, sem espaço para a imaginação ou
para a reflexão. Ambos cobravam dos artistas seus contemporâneos uma postura ativa de
mudança em nome da arte. Os ensaios de ambos têm um caráter retórico, se dirigem de modo
sedutor ao leitor/interlocutor, buscando despertar nesse a consciência da arte como tarefa criadora
que vai além do cotidiano. Essas intervenções têm um tom de manifesto, de inauguração de um
pensamento artístico novo, de um projeto revolucionário, inaugurador da modernidade artística.
É importante pensarmos em Baudelaire como um crítico da modernidade, cindido entre o
horror ao progresso e amor pelas ruas. Há nele uma ambigüidade: ao mesmo tempo em que exalta
a modernidade como uma possibilidade que se abre, critica o progresso em termos de regressão
espiritual.
Nesse ponto, devemos retomar o gótico como elemento fundamental das obras de Poe e
Baudelaire, e como elo que conduz à visão da modernidade. Baudelaire vê a modernidade como
uma constante fusão entre o antigo e o contemporâneo:
”A Modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo: a maior parte dos belos retratos que provêm das épocas passadas está revestida dos cosntumes da própria época”.(BAUDELAIRE, 1988, p.74).
Dessa forma, a modernidade não é meramente uma noção cronológica, mas uma relação,
um modo de lidar do artista com o seu presente, uma confrontação entre passado e
89
contemporaneidade, na qual o artista deverá fazer valer seu poder criativo para impor-se nessa
tarefa de “extrair o eterno do transitório”. De que forma o gótico contribui para isso? Simples. O
gótico se impõe como tradutor da modernidade por permitir a aparição de novas possibilidades de
revelação de aspectos do mundo e do pensamento humano, via imaginação. O gótico prova que o
homem e o mundo são multifacetados, que há camadas subterrâneas que devem vir à tona e
manifestar-se, dando forma à emoções profundas, grotescas, abordando temas e imagens que são
continuamente solapadas no cotidiano, mas que fazem parte da vida. As flores do mal, mais que
um oxímoro, são a afirmação de que o mundo a ser mostrado é o mundo às avessas . É a
experiência do choque , como diz Benjamim, que faz brotar o novo e que permite que o mundo
seja revisto e reinventado a cada contemporaneidade. A imaginação não é apenas reprodução. É a
produção de algo novo, sem compromisso de representar algo de fora, mas de buscar no íntimo
aquilo que é secreto e trazer à tona, por mais estranho que seja. A imaginação produtiva é o
sublime, o que arrebata o entendimento e extrapola. Conseqüentemente, é o que cria e produz o
avanço da Arte. Dessa forma, o artista livra-se do mundo banalizado, e pode repensar a sua
criação.
Uma das aproximações mais discutidas entre Poe e Baudelaire em relação à questão da
modernidade está relacionada ao conto “The Man of the Crowd” (O Homem da Multidão) .
Vários autores (destaco aqui as leituras de Berman e Benjamin) viram neste conto a chave que
Baudelaire usou para discutir o papel da multidão no mundo moderno. De fato, no artigo “O
Pintor da Vida Moderna”, Baudelaire afirma ser o conto “um quadro escrito pelo mais poderoso
autor desta época”, (BAUDELAIRE, 1988, p.167) embora Baudelaire não cite o nome de Poe no
artigo. A leitura do conto serve de pretexto para Baudelaire expor algumas de suas idéias sobre a
Modernidade. Mais tarde, Benjamim (1994) e Berman (1982) também se valem respectivamente
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do conto e do artigo para dissecarem a visão de Baudelaire sobre a modernidade. O que
curiosamente escapa a ambos os críticos, talvez na ânsia de estabelecer uma visão de crítica
social a obra baudelariana inspirada em Poe, é o aspecto eminentemente gótico do conto. O ato
de perder-se na multidão para (des)encontrar(se) de si mesmo é um mergulho gótico por
excelência, conforme veremos a seguir.
O conto inicia-se dessa forma:
It was well said of a certain German book that "er lasst sich nicht lesen"- it does not permit itself to be read. There are some secrets which do not permit themselves to be told. Men die nightly in their beds, wringing the hands of ghostly confessors, and looking them piteously in the eyes- die with despair of heart and convulsion of throat, on account of the hideousness of mysteries which will not suffer themselves to be revealed. Now and then, alas, the conscience of man takes up a burden so heavy in horror that it can be thrown down only into the grave. And thus the essence of all crime is undivulged.(POE, 2003, p.211)
Logo de início, alguns pontos chamam a atenção: a citação ao “germanismo” - sinônimo
de mistério e oculto no parorama literário de então, e a imediata menção ao ilegível e ao
impronunciável. O ambiente gótico explicita-se nas mãos dos “ghostly confessors”, ou seja, são
os fantasmas interiores que povoarão o conto, ainda que disfarçados na variedade de tipos
humanos que o narrador descreverá.
Como em outros contos de Poe, o narrador em primeira pessoa mostra um tom
confessional e de intimidade, bem como de busca de cumplicidade. Ao mesmo tempo, põe em
dúvida a possível confiabilidade do narrador. Não estamos portanto, diante de uma narrativa
objetiva, mas sim de mais uma jornada pessoal, a qual o leitor se verá arrastado.
O conto de Poe inicia-se como uma descrição da vida da Londres moderna, o berço da
Revolução Industrial. (MENDES, 1999, p.145) A parte inicial do conto é interpretada por muitos
críticos como um exemplo de crítica social dentro da obra de Poe. Mas a descrição do ambiente é
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apenas o pano de fundo para a verdadeira discussão proposta pelo autor. Poe vai dissecar a busca
de si que é feita pelo “homem da multidão”, que ao contrário do que possa parecer, não é o
homem “perdido” na multidão, mas sim o próprio narrador.
É curioso observar, antes de mais nada, a contextualização de espaço exterior e interior
(as paisagens) que o narrador apresenta logo no início do conto. É uma tarde de outono – a
estação em que a Natureza se prepara luxuriosamente para os rigores do inverno, quando os
frutos amadurecem e as folhas das árvores se renovam. O narrador está convalescente – isto é, ele
próprio passa por um período de renovação. Ele acaba de vencer um longo período de doença, ou
seja, venceu mais um confronto com a Natureza. Mas ele sabe que essa não foi uma batalha final:
“I felt a calm but inquisitive interest in every thing”.(POE, 2003, p.211) Eis aí, novamente, o
questionamento romântico, também presente na visão de Baudelaire, que iguala a convalescença
à infância, a um novo recomeço, repleto de inspiração.
Nesse início do conto, o narrador se coloca num ponto de observação, numa postura
eqüidistante da realidade. Parece pairar acima da multidão que observa. Aliás, pairar é algo
recorrente na obra de Poe – vide o poema “The Raven”, em que o corvo que contempla
placidamente o poeta, do alto do busto da deusa Athena, é o mensageiro do seu destino. Em “The
Man of the Crowd”, ao assumir essa posição superior, o narrador se coloca acima de seus medos,
angústias e descobertas. É o lado racional assumindo o controle. Ele observa e cataloga friamente
a todos, categoriza as pessoas, se colocando acima delas. Ainda reina a luz do dia. Sua intenção
ainda não é a busca, mas a contemplação da vida. Aí prevalece o seu lado solar.
Mas a noite cai. “As the night deepened, so deepened to me the interest of the scene”.
(POE, 2003, p.214) A chegada da noite é a chave para a mudança da paisagem interior da
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personagem. Sua atitude muda, sua observação não é mais contemplativa – torna-se sequiosa,
nem ele sabe exatamente do quê. É quando surge aquele homem, cujo semblante absorve-lhe toda
a atenção. Não é por acaso que as feições do homem lembram-lhe “pictural incarnations of the
fiend”. (POE,2003, p.215) É o elemento demoníaco que faz sua aparição.
Após ver o homem pela primeira vez, um turbilhão de sentimentos toma conta do
narrador. Sua atitude calma o abandona de vez, ele sai finalmente de seu imobilismo e se põe ao
encalço da estranha figura, numa atitude irracional de querer saber mais sobre aquele homem.
Vejamos o que ele diz:
“As I endeavored, during the brief minute of my original survey, to form some analysis of the meaning conveyed, there arose confusedly and paradoxically within my mind, the ideas of vast mental power, of caution, of penuriousness, of avarice, of coolness, of malice, of blood-thirstiness, of triumph, of merriment, of excessive terror, of intense- of supreme despair. I felt singularly aroused, startled, fascinated. "How wild a history," I said to myself, "is written within that bosom!" Then came a craving desire to keep the man in view- to know more of him. Hurriedly putting on all overcoat, and seizing my hat and cane, I made my way into the street, and pushed through the crowd in the direction which I had seen him take; for he had already disappeared. With some little difficulty I at length came within sight of him, approached, and followed him closely, yet cautiously, so as not to attract his attention” (POE, 2003, p.214).
A noite cai por completo, e começa uma chuva pesada. É aí que o irracionalidade toma
conta da mente do narrador. Seu caminho pelo labirinto começa a ser traçado, ele perderá
completamente a paz. É a sua descida ao maëlstrom. O que ocorre realmente com esta alma
atormentada, nessa jornada noturna? Jamais o saberemos. Sabemos que o homem perseguido
passa por vários lugares, sem se fixar em nenhum, sem que nem nós, nem o narrador, consigamos
saber seus reais objetivos. São livros que não se permitem ser lidos, tal qual acontece com os
subterrâneos de nosso inconsciente, somente revelados a nós através da linguagem simbólica dos
sonhos, sujeitos, portanto, a múltiplas interpretações.
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O final do conto de Poe é frustrante do ponto de vista dos que buscam soluções lineares
numa narrativa. O dia amanhece, segue-se outro dia de perseguição, novamente inútil. O estranho
percebe o narrador, e este segue absorto em sua contemplação. Por quê ? A meu ver, a resposta é
simples. Perseguidor e perseguido são a mesma pessoa. Este “homem da multidão”, que carrega
algo mais intenso que o desespero no olhar (o que pode ser mais intenso que o desespero ? Talvez
a visão da própria imagem real), que ao mesmo tempo desperta piedade e exerce sobre o
narrador uma atração inexplicável, na verdade é ele mesmo.
O homem é o reflexo da paisagem interior do narrador que se materializa, numa
antecipação do que seria comum na literatura do realismo fantástico, um século mais tarde. O
desejo de autoconhecimento do narrador é tão forte, que ao contemplar a multidão e não se
reconhecer, ele força sua mente a criar uma imagem que lhe seja semelhante. Mas a imagem que
surge é o seu lado sombrio, o seu uncanny, que pertence ao mundo do não dito.
“The Man of the Crowd” situa-se, no contexto da obra de Poe, dentro dos desfechos
considerados “insatisfatórios”, que partem do particular para o geral, e abrem uma porta para a
discussão posterior. (MAY, 1991, p.101) É uma benção que tal homem não possa ser
inteiramente conhecido. Eis a mensagem final do conto. Benção para quem? Para o narrador, que
assim escapa da morte no labirinto? Ou para nós leitores, que sofremos a catarse ao não termos
nós mesmos que passar pelo mesmo processo?
O homem da multidão recusa-se a permanecer sozinho. O que é compreensível. Na visão
romântica de Poe, estar sozinho é descobrir-se, e todo autoconhecimento é um processo doloroso,
embora seja a única maneira de pôr em ação a imaginação criadora. Descobrir-se na multidão,
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encontrar a si no meio do caos, é um mergulho gótico, e a compreensão deste fenômeno une as
visões poéticas de Charles Baudelaire e Edgar Allan Poe.
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4. ECOS NO BRASIL: AUGUSTO DOS ANJOS
4.1 Augusto dos Anjos, um gótico brasileiro
Desconcertante. E desafiante. É o mínimo que poder ser dito sobre a poética do brasileiro
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1913), nascido no município de Cruz do
Espírito Santo, no Estado da Paraíba e morto em Leopoldina, Minas Gerais.
Tão controversa quanto a obra de Augusto é a sua fortuna crítica. Poucos autores no
Brasil foram alvo de tantas análises de cunho biográfico, daquelas que insistem em “explicar” a
obra do poeta a partir de aspectos de sua vida privada. Surge daí, desde início, uma aproximação
com Poe, muitas vezes objeto do mesmo tipo de reducionismo. Contribui para essa leitura certa
tragicidade da vida de Augusto: filho de uma família de donos de engenho que viu suas posses
minguaram na virada do século XX, estudante de direito nos tempos da famosa Escola de Recife,
fascinado pelas teorias científicas então difundidas pelo local, sofreu com a perda de entes
queridos como o pai e o filho natimorto (tendo falado explicitamente sobres essas perdas em seus
poemas), morto prematuramente de tuberculose aos 30 anos (ou pneumonia, divergem os
biógrafos), autor de um único livro cujo título dá a falsa impressão de esclarecer tudo: Eu. Parece
ser uma trajetória talhada para explicar uma obra poética. Mas há mais que isso, e discuturei
esses aspectos agora.
A primeira questão que se revela na discussão sobre a obra de Augusto dos Anjos é como
classificá-la em uma escola literária. A poesia brasileira de sua época dividia-se entre o
Parnasianismo e o Simbolismo, dois movimentos muito fortes e representativos. Alguns críticos
encontram na obra de Augusto elementos de ambos estilos. Outra parte da crítica prefere não
arriscar definições, e situa o poeta em uma zona de sombra a que chama de Pré-Modernismo.
96
Como o movimento de 1922 assumiu para si (graças em parte a uma ação quase política da
crítica) a paternidade do modernismo brasileiro, há uma grande dificuldade em perceber em
Augusto certas características inauguradoras do modernismo, até pelo fato de o movimento de 22
ter simplesmente ignorado a obra do poeta paraibano. Por ter mantido a forma fixa em boa parte
de sua poesia, em especial nos sonetos, e por uma leitura equivocada do uso do singular de um
vocabulário dito “científico” (sobre isso falarei mais adiante), negou-se por muito tempo a
Augusto a primazia que lhe convém: a de ter sido um dos primeiros modernos do Brasil.
Outro fator complicador da recepção crítica de Augusto é a sua conhecida popularidade.
Sobre isso, é mais que revelador o depoimento de Fausto Cunha em seu artigo “Augusto dos
Anjos, salvo pelo povo”:
Ouvi falar de Augusto dos Anjos pela primeira vez quando trabalhava numa fábrica de tecidos do interior de Pernambuco. Um fiscal chamado Elias conhecia o Eu quase de cor e declamava poemas inteiros. Todos ouvíamos, impressionadíssimos.Hoje me espanto um pouco pelo fato de ninguém rior quando Elias recitava estes versos grotescos: “Tome, doutor, esta tesoura, e...corte/Minha singularíssima pessoa”. Augusto do Anjos era um poeta popular. Apesar de todos os seus vocábulos inintelingíveis, sua poesia trazia até nós o sopro de uma nebulosa tragédia. O ser humano é uma válvula extremamente sensível, e naquele ambiente de trabalho e miséria mediavais, onde os cavalos de corrida da coudelaria dos Lundgren eram mais importantes que os operários, essa tragédia era profundamente nossa. O povo consumiu umas trinta horrendas edições do Eu. Alguns críticos elogiaram reticenciosamente o poeta, outros abominaram o seu mau-gosto, os parnasianos desdenharam daqueles versos rudes (rudes por serem um produto extremo da saturação parnasiana), mas o povo continuou fiel à sua misteriosa admiração, resistindo à pressão modernista e ao analfabetismo – o maior inimigo e o maior aliado da poesia de Augusto dos Anjos.(CUNHA,1973, p.348)
As tentativas de explicar essa popularidade são várias. Reynaldo Jardim (2001) fala do
caráter “encantatório” do vocabulário cientificista empregado por Augusto. O citado Fausto
Cunha, com o qual concorda Costa Lima (1991), sustenta que o povo, ainda que fosse incapaz de
assimilar o conteúdo dos poemas, percebia pela forma que ali estava presente uma melancolia e
uma miséria semelhante a tudo em suas vidas. De minha parte, afirmo que a musicalidade
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empregada por Augusto em seus poemas, fez com que se tornassem fascinantes aos ouvidos do
povo, causando aquele efeito de que nos fala Allan Poe “music, when combined with a
plausurable idea, is poetry” – obviamente, o prazer aí é o prazer negativo, o sublime, o grotesco,
que permite a aceitação e a assimilação popular de versos como “escarra na boca que te beija”.
Outro aspecto muito difundido sobre Augusto dos Anjos e sua obra é a questão das
influências científico-filosóficas. É sabido que entre 1903 e 1907 o poeta freqüentou e concluiu o
curso de Direito da Faculdade de Direito de Recife, onde então imperava o movimento intelectual
conhecido como Escola de Recife. Foi um movimento cultural de ampla repercussão, que reuniu
pensadores, estudiosos, juristas, sociólogos, poetas, voltados ao debate de mais variados temas
dentro de suas respectivas especialidades. A Escola do Recife não teve um ideário próprio e
definido. Tratou-se de um movimento heterogêneo, uma mistura de filosofia, sociologia, de
correntes literárias e jurídicas.
Nesse ambiente cientificista, Augusto teria travado conhecimento de uma série de
doutrinas baseadas no evolucionismo e no materialismo, a partir de autores com Haeckel,
Spencer, Darwin e Comte. Sem dúvida tais leituras formaram a base cultural do poeta, embora,
ao contrário do que afirmam muitos críticos, Augusto não tenha sido um poeta “científico”.
Ferreira Gullar (1976) aponta as possíveis idéias que Augusto teria elaborado a partir
dessas leituras. De Spencer viria o conceito de que a ciência é incapaz de apreender o
incognoscível. De Haeckel a noção de que a monera estaria na origem de todos os seres animais.
O materialismo (visto aqui, antes de tudo, como uma negação do catolicismo) impregnou o
pensamento de Augusto com a idéia da morte como um fenômeno físico-químico. Schopenhauer
também teria sido uma influência, ao colocar a essência do mundo tendo como base a vontade do
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homem. Chegaria-se dessa forma a uma visão negativa do processo social e do destino dos
homens.
Essa abordagem “científica” da obra do poeta paraibano é feita constantemente com o
intuito de explicar uma de suas características mais desconcertantes: o uso de palavras do jargão
médico-científico em sua poesia. Rosenfeld (1969) é bastante preciso ao falar da “sedução
erótica” que esses vocábulos exerceram sobre Augusto, o que lhe daria uma aproximação com o
expressionismo alemão, especialmente Trakl, G. Benm e G. Heym, todos contemporâneos de
Augusto dos Anjos. Essa aproximação, vista com espanto pelos críticos, pode ser compreendida
com muita lógica se tivermos em mente o caráter gótico da poesia de Augusto do Anjos. Diz
Rosenfeld:
Essa poesia sadomasoquista lança o desafio do radicalmente feio à face do pacato burguês, desmascarando, pela deformação hedionda, a superfície harmônica e açucarada de um mundo intimamente podre. Não só o ser humano, também a palavra e a metáfora tradicionais desintegram-se ante o impacto dessa poesia. Surge, ao lado da montagem do termo técnico no contexto da língua tradicional – a dissociação pelo lingüísticamente heterogêneo – uma metáfora grotesca, “marinista” que opera com o incoerente. (ROSENFELD, 1973, p.315).
O que Rosenfeld chama de “sadomasoquismo” nada mais é que a essência gótica em
plena ação: o lado denso do mundo sendo revelado, a denúncia de um ambiente social em plena
decomposição/transformação, o horror e o choque como formas poéticas de chamamento do
público, enfim, o gótico como estética revolucionária. Tal revolução se expressa em Augusto de
forma muito particular com a transmutação do vocabulário científico. A revolução se opera a
partir do desmonte de um universo vocabular monopolizado por uma classe, que via obra poética,
se populariza, descaracterizando-se, desconstruindo-se e transformando-se, de um modo quase
carnavalizado, sendo apropriada por outra classe social. A subversão gótica em Augusto dos
Anjos assume assim sua face brasileira, nordestina, ao tornar um vocabulário filosófico e europeu
99
em palavras poéticas declamadas de forma emocionada por operários brasileiros. Como diz Lúcia
Helena: “O léxico empregado por Augusto dos Anjos satisfaz a uma ncessidade vital de sua
poesia. Tornados patrimônio de seu texto poético, aqueles termos, anteriormente usados num
contexto técnico, passaram, conotativamente, a denunciar a ciência transviada.” (HELENA,1977,
p. 22).
Portanto, esta subversão do uso da linguagem, além de promover uma evidente inversão
no campo social – daí a dificuldade da alta crítica em lidar com a popularidade da poesia de
Augusto, também nos permite situar o poeta no campo da modernidade estética. Vejamos o que
diz Gullar: ”A poesia de Augusto dos Anjos não nasce de uma assimilação crítica e de uma
superação paulatina das técnicas e valores poéticos, mas de uma conjunção de fatores que o
obrigam a romper com a linguagem (com a visão) poética em voga.” (GULLAR,1976, p.29)
Poesia, antes de tudo, é transformação de linguagem, ou recriação do mundo através da
palavra. Augusto recria o mundo de uma forma gótica, através de vermes que têm vida e agem
sobre os corpos, da morte que se envolve em um processo de transformação da matéria que se
dinamiza, da lua que se transforma em paralelepípedo quebrado, em evidente parentesco
antecipado com a lua cheia de marcas de varíola de T. S. Eliot no poema “Rhapsody on a Wind
Night”.
Em suma, Augusto mostra que não é apenas o abandono de formas fixas ou a mudança
temática que fazem a poesia ser moderna, mas sim, e fundamentalmente, o “trabalho objetivo do
poeta sobre a linguagem visando exprimir a complexidade desse mundo concreto e dinâmico.”
(Gullar, 1976, p.30). Não é apenas usar palavras do cotidiano na poesia, mas também introduzir
no mundo poético (e popular) palavras que pertencem originalmente a outro universo vocabular
100
(no caso, o científico) e transformá-las em veículo de tradução de um mundo subterrâneo, que
existe e que clama por vir à luz.
Portanto, o poeta moderno é aquele que poetiza a linguagem, que transforma, com uso de
trabalho e imaginação, a palavra em poesia. E com a poesia, cria um mundo transformado, e que
no caso da poesia gótica, é um mundo nem sempre óbvio, mas sempre um mundo oculto que se
revela e questiona a realidade, e sobretudo, a percepção do leitor.
4.1. Os poemas do EU
Eu, único livro de Augusto dos Anjos, surge em 1912, ignorado pelo público e pela crítica
nesse primeiro momento. Recusados pelos editores, os manuscritos tiveram seus custos editoriais
bancados por Augusto em parceria com seu irmão Odilon. Em 1920, já morto o poeta, uma
edição financiada pelo governo da Paraíba, por iniciativa do amigo e admirador da obra de
Augusto, Osíris Soares, começa a merecer a atenção da crítica. Mas é em 1928 que surge a
terceira edição que se esgota em quinze dias, aquela a partir da qual Augusto será conhecido
como o poeta “da morte e da melancolia”.
4.1.1 Debaixo do Tamarindo: lembrança e eternidade.
Debaixo do Tamarindo No tempo de meu Pai, sob estes galhos, Como uma vela fúnebre de cera, Chorei bilhões de vezes com a canseira De inexorabilissimos trabalhos! Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos, Guarda, como uma caixa derradeira, O passado da Flora Brasileira E a paleontologia dos Carvalhos!
101
Quando pararem todos os relógios De minha vida e a voz dos necrológios Gritar nos noticiários que eu morri, Voltando à pátria da homogeneidade, Abraçada com a própria Eternidade A minha sombra há de ficar aqui!
O soneto reúne alguns elementos constantemente apontados na poesia de Augusto: a
reminiscência da casa e da morte do pai, palavras que causam estranhamento, como
“inexorabilíssimo” e “palenteologia”. Na verdade, trata-se de uma combinação genial de
simbiose entre a natureza e o ciclo da vida, do qual a morte é parte integrante e necessária.
A morte do pai confunde-se/compara-se com uma vela fúnebre acesa, ou seja, uma vigília
constante e lamentosa, cujo trabalho, porém, é inevitável (inexorabilíssimo), por fazer parte de
um sistema maior.
A árvore guarda, mesmo na morte, um aspecto de aconchego e consolo. A natureza é
inventário e caixão, princípio e fim. O grande achado é o verso’palenteologia dos Carvalhos’ – a
história da família é analisável como um fóssil, ao mesmo tempo acabada e eterna.
Os tercetos falam também do tempo. Os relógios da vida pararão, e haverá gritos. Mas o
poeta voltará a terra, à natureza, onde há a Eternidade, e mais que isso: a homogeneidade.
A morte é a grande igualadora dos seres e das lembranças, a sombra do poeta se igualará à
sombra da árvore, e ambos permanecerão.
4.1.2 Asa de corvo – Uma metomínia?
Asa de Corvo
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Asa de corvos carniceiros, asa De mau agouro que, nos doze meses, Cobre às vezes o espaço e cobre às vezes O telhado de nossa própria casa... Perseguido por todos os reveses, É meu destino viver junto a essa asa, Como a cinza que vive junto à brasa, Como os Goncourts, como os irmãos siameses! E com essa asa que eu faço este soneto E a indústria humana faz o pano preto Que as famílias de luto martiriza... E ainda com essa asa extraordinária Que a Morte - a costureira funerária - Cose para o homem a última camisa!
Um dos biógrafos de Augusto dos Anjos afirma ter sido Edgar Allan Poe, juntamente com
Shakespeare, dois autores que mais o teriam impressionado como leitor. (BARROS,1973, p.354)
Obviamente não podemos afirmar se Augusto teria de fato lido “The Raven”, mas é irresistível
perceber os ecos do corvo de Poe no soneto de Augusto.
O termo ‘asa negra’ é bastante comum na fala do povo brasileiro, como símbolo de mau
agouro. A asa do corvo ‘paira’ sobre a vida do eu lírico de maneira constante, no tempo e no
espaço (doze meses, casa), tornando-se assim, presença constante e íntima como o corvo de Poe.
O eu-lírico se iguala a essa presença nefasta, harmoniza-se com ela, irmão gêmeo, siamês até. O
poema se torna um metapoema: faço esse poema com essa asa negra, com essa sensação. Ela é
minha matéria-prima de trabalho, tão concreta e laboriosa como o tecido para a fábrica – o
mundo moderno da indústria e da utilidade magistralmente fundido com o mundo sobrenatural da
superstição e do mistério. A morte, sempre ativa e dinâmica na poesia de Augusto, torna-se a
artífice do destino – o homem não apenas morre, mas veste-se com a camisa cosida pela própria
morte, que se personifica e se torna operária da fábrica dos homens. Deve ser destacado também
103
o uso das aliterações em /z/ que criam uma atmosfera sonora que complementa perfeitamente os
sentidos do poema, criando um ambiente em que a presença constante da morte se anuncia e se
perpetua.
4.1.4 A Idéia: o caminho físico do poema
A Idéia De onde ela vem?! De que matéria bruta Vem essa luz que sobre as nebulosas Cai de incógnitas criptas misteriosas Como as estalactites duma gruta?! Vem da psicogenética e alta luta Do feixe de moléculas nervosas, Que, em desintegrações maravilhosas, Delibera, e depois, quer e executa! Vem do encéfalo absconso que a constringe, Chega em seguida às cordas do laringe, Tísica, tênue, mínima, raquítica ... Quebra a força centrípeta que a amarra, Mas, de repente, e quase morta, esbarra No molambo da língua paralítica.
“A Idéia” é um soneto sobre a imaginação criadora. Surge a idéia de transformação da
matéria bruta que se transmuta em estalactites de luz: é a noção de sentimento que somente pode
tomar forma artística através da criação.
A segunda estrofe traz uma curiosa fusão entre o material e o imaterial: a psicogenética se
junta à fisiologia do “feixe de moléculas nervosas”: é o poeta querendo, novamente, conferir uma
forma física, palpável, ao processo criativo. Os verbos de ação que fecham a estrofe transmitem a
noção de algo dinâmico, elaborado, com um propósito definido – em suma, o efeito.
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É fundamental também notar o uso da forma fixa (soneto) para falar dessa materialização
do poder criador. ”A Idéia” é um poema sobre o fazer poético, que ao tentar uma descrição
mecânica do ato criativo, cria um bailar de gestos e palavras. O caminho físico da idéia pelo
corpo humano é o caminho do leitor pelos meandros do poema. A língua, portadora da forma
final, e expressão da idéia, é menor que a própria idéia (imaginação), enfraquecida pela viagem
pelo corpo humano. A língua é apenas um molambo, incapaz de dar conta da grandeza da matéria
bruta inicial, ainda que “domada” pelo caminho da forma. É essa a tarefa do poeta moderno: dar
forma ao que não tem forma, transformando em Arte o que era apenas sensação.
4.1.3 – A um mascarado: vida e mistério
A um Mascarado Rasga essa máscara ótima de seda E atira-a à arca ancestral dos palimpsestos.. É noite, e, á noite, a escândalos e incestos É natural que o instinto humano aceda! Sem que te arranquem da garganta queda A interjeição danada dos protestos, Hás de engolir, igual a um porco, os restos Duma comida horrivelmente azeda! A sucessão de hebdômadas medonhas Reduzirá os mundos que tu sonhas Ao microcosmos do ovo primitivo... E tu mesmo, após a árdua e atra refrega, Terás somente uma vontade cega E uma tendência obscura de ser vivo!
O ambiente gótico se presentifica no soneto a partir do título. Máscaras são símbolos de
oculto desde as mais remotas eras, e também podem ser entendidas como tentativa de proteção
contra a realidade exterior. Aqui, o eu-lírico dirige-se ao mascarado e o incita a rasgar a máscara,
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isto é, a revelar-se e expor-se ao mundo, já que é noite, e a noite é o momento ideal para a
revelação dos segredos e para a manifestação e concretização dos instintos, inclusive os de
natureza sexual.
A máscara deve ser despida e atirada a um tempo em que as memórias serão apagadas, daí
a arca dos palimpsetos – como se fosse dada ao mascarado a chance de apagar o seu passado e
recomeçar do zero. A noite também pode ser uma oportunidade para o recomeço.
Essa oportunidade, porém, não será gratuita: sem protesto, o mascarado deverá engolir a
podridão, condição essencial para a purgação que o poeta propõe à personagem. Está presente um
sentido de animalização (“igual a um porco”), que faz parte do campo semântico de inversão
proposto pelo poema. Com a passagem do tempo (“a sucessão de hebdômadas medonhas”), o
mergulho gótico fará o mascarado retornar à origem de todas as coisas: o ovo primitivo.
Mais uma vez, a noção do ciclo evolutivo que propõe um eterno retorno às origens se
apresenta. Ao fim do processo, apenas a Vontade e a consciência de ser vivo restarão à
personagem, o resultado desse processo de autoconhecimento é a consciência do impulso vital do
ser humano e de sua eterna transitoriedade.
4.1.4 O Poema Negro
Poema negro A Santos Neto Para iludir minha desgraça, estudo. Intimamente sei que não me iludo. Para onde vou (o mundo inteiro o nota) Nos meus olhares fúnebres, carrego A indiferença estúpida de um cego E o ar indolente de um chinês idiota!
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A passagem dos séculos me assombra. Para onde irá correndo minha sombra Nesse cavalo de eletricidade?! Caminho, e a mim pergunto, na vertigem: -- Quem sou? Para onde vou? Qual minha origem? E parece-me um sonho a realidade. Em vão com o grito do meu peito impreco! Dos brados meus ouvindo apenas o eco, Eu torço os braços numa angústia douda E muita vez, à meia-noite, rio Sinistramente, vendo o verme frio Que há de comer a minha carne toda! É a Morte -- esta carnívora assanhada -- Serpente má de língua envenenada Que tudo que acha no caminho, come... -- Faminta e atra mulher que, a 1 de Janeiro, Sai para assassinar o mundo inteiro, E o mundo inteiro não lhe mata a fome! Nesta sombria análise das cousas, Corro. Arranco os cadáveres das lousas E as suas partes podres examino... Mas de repente, ouvindo um grande estrondo, Na podridão daquele embrulho hediondo Reconheço assombrado o meu Destino! Surpreendo-me, sozinho, numa cova. Então meu desvario se renova... Como que, abrindo todos os jazigos, A Morte, em trajes pretos e amarelos. Levanta contra mim grandes cutelos E as baionetas dos dragões antigos! E quando vi que aquilo vinha vindo Eu fui caindo como um sol caindo De declínio em declínio; e de declínio Em declínio, como a gula de uma fera, Quis ver o que era, e quando vi o que era, Vi que era pó, vi que era esterquilínio! Chegou a tua vez, oh! Natureza! Eu desafio agora essa grandeza, Perante a qual meus olhos se extasiam. Eu desafio, desta cova escura,
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No histerismo danado da tortura Todos os monstros que os teus peitos criam. Tu não és minha mãe, velha nefasta! Com o teu chicote frio de madrasta Tu me açoitaste vinte e duas vezes... Por tua causa apodreci nas cruzes, Em que pregas os filhos que produzes Durante os desgraçados nove meses! Semeadora terrível de defuntos, Contra a agressão dos teus contrastes juntos A besta, que em mim dorme, acorda em berros Acorda, e após gritar a última injúria, Chocalha os dentes com medonha fúria Como se fosso o atrito de dois ferros! Pois bem! Chegou minha hora de vingança. Tu mataste o meu tempo de criança E de segunda-feira até domingo, Amarrado no horror de tua rede, Deste-me fogo quanto eu tinha sede... Deixa-te estar, canalha, que eu me vingo! Súbito outra visão negra me espanta! Estou em Roma. É Sexta-feira Santa. A trava invade o obscuro orbe terrestre No Vaticano, em grupos prosternados, Com as longas fardas rubras, os soldados Buardam o corpo do Divino Mestre. Como as estalactites da caverna, Cai no silêncio da Cidade Eterna A água da chuva em largos fios grossos... De Jesus Cristo resta unicamente Um esqueleto; e a gente, vendo-o, a gente Sente vontade de abraçar-lhe os ossos! Não há ninguém na estrada da Ripetta. Dentro da igreja de São Pedro, quieta, As luzes funerais arquejam fracas... O vento entoa cânticos de morte. Roma estremece! Além, num rumor forte Recomeça o barulha das matracas. A desagregação da minha Idéia Aumenta. Como as chagas da morféia
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O medo, o desalento e o desconforto Paralisam-me os círculos motores. Na Eternidade, os ventos gemedores Estão dizendo que Jesus é morto! Não! Jesus não morreu! Vive na serra Da Borborema, no ar de minha terra, Na molécula e no átomo... Resume A espiritualidade da matéria E ele é que embala o corpo da miséria E faz da cloaca uma urna de perfume. Na agonia de tantos pesadelos Uma dor bruta puxa-me os cabelos. Desperto. É tão vazia a minha vida! No pensamento desconexo e falho Trago as cartas confusas de um baralho E pedaço de cera derretida! Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme Eu, somente eu, com a minha dor enorme Os olhos ensangüento na vigília! E observo, enquanto o horror me corta a fala O aspecto sepulcral da austera sala E a impassibilidade da mobília. Meu coração, como um cristal, se quebre O termômetro negue minha febre, Torne-se gelo o sangue que me abrase E eu me converta na cegonha triste Que das ruínas duma casa assiste Ao desmoronamento de outra casa! Ao terminar este sentido poema Onde vazei a minha dor suprema Tenho os olhos em lágrimas imersos... Rola-me na cabeça o cérebro oco. Por ventura, meu Deus, estarei louco?! Daqui por diante não farei mais versos.
O poema é, antes de tudo, uma sucessão de imagens, que a exemplo do “The Raven” de
Allan Poe, começam com um estudioso entediado – a racionalidade tentando inutilmente vencer a
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imaginação inquieta: “Para iludir minha desgraça, estudo”(AA)/”Once upon a midnight
dreary(..)over many a quaint and curious volume of forgotten lore”(EAP).
Podemos perceber em ambos poemas que a passagem do tempo é fortemente marcada. No
Poema Negro, temos duas dimensões de tempo que correm paralelas: a noção do tempo da
eternidade: ”A passagem dos séculos me assombra”, e o tempo da viagem onírica do poeta, que é
o próprio poema.
O título do poema já traz em si a carga semântica da transgressão. Numa época em que
poesia era sinônimo de “obra de ourivesaria”, o título “Poema Negro” já é antitético.Afirma-se
como poema, como obra de arte, mas também é um desafio: falará do lado negro da alma. Mas a
preferência pela temática mórbida é uma pista falsa, como veremos a seguir.
Na primeira estrofe, podemos perceber a inquietação do eu-lírico, que a despeito de
buscar o racional – pelo estudo- sabe que ali não estarão todas as respostas. Ele observa o mundo,
mas está além dele: seus olhos são fúnebres, mas são ao mesmo tempo, indiferentes e estúpidos.
Essa sensação de externalidade é marca ao longo do poema: o eu-lírico percebe a passagem veloz
do tempo, enquanto busca sua origem – um questionamento efetivamente romântico.
As cinco estrofes seguintes são dedicadas a uma característica bastante evidente em
Augusto: a fascinação física pela morte e pela decomposição. Toda essa passagem é sensorial,
sinestésica: a morte tem língua e boca, é uma devoradora de corpos.
É importante aqui entender qual é a visão de morte que Augusto apresenta. Muitos
teorizam sobre o assunto, identificando o fascínio pela morte como sintoma de pessimismo,
depressão e morbidez. Uma leitura mais atenta, porém, nos informa que essa é uma idéia
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equivocada. A morte de que Augusto fala é uma “carnívora assanhada” – é ativa, vibrante, chega
mesmo a ser sensual – sua fome por corpos humanos, ou seja, por vida, é insaciável. “O mundo
inteiro não lhe mata a fome”. O poeta sabe que seu destino de homem está inexoravelmente
ligado a esse devorar. Temos aqui uma aproximação com o “Une Charogne” de Baudelaire,
poema no qual o eu-lírico oferece à amada, em lugar de um bucólico passeio, a visão de uma
carniça como objeto de contemplação do destino final de todos os seres. A tentativa de fuga desse
destino sempre reduz o homem a pó.
A esta altura, podemos depreender a presença marcante do aspecto gótico, entendendo o
gótico como estética de excesso, liberdade e transgressão, a rebelião do imaginativo contra a
tirania do racional. A imaginação gótica volta-se para o fundo da natureza humana. Em suma, o
gótico apela para a origem da criação através do caos.
É importante ressaltar a atmosfera de espanto e descoberta que está presente em todo o
poema. Não se trata de uma elegia da morte: é a busca de um recomeço para uma vida diversa da
ordinária. “Vi que era esterquílio” – o esterco é o resto de um processo, mas é também
fertilizante, ajuda a gerar novas vidas.
Por isso, o poeta sente-se um estranho na Natureza: tal como em Poe, a “velha nefasta” é
para Augusto dos Anjos um útero hostil, do qual ele tem que se desprender para conseguir o
próprio renascimento. O poeta se rebela contra a Natureza porque ele também é uma força
criadora.
A partir da décima segunda estrofe, há um ponto de inflexão no poema. Na sucessão de
visões do poeta, surge um elemento clássico: Roma, onde, curiosamente, surge outra transgressão
gótica: a imagem do Cristo na cruz, que em lugar de despertar a usual piedade, revela um desejo
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de comunhão física, tal qual ocorrera antes na relação do poeta com a morte. A sexta-feira santa
romana torna-se brasileira, barroca, com o som das matracas. Jesus não morreu, transmutou-se na
natureza brasileira , que diversa da “semeadora terrível dos defuntos” das estrofes anteriores, é
uma natureza que acolhe o poeta, pois ela é parte dele, “resume a espiritualidade da matéria”- um
oxímoro definidor dos anseios do eu-lírico, que expressa o desejo de unir o científico e o
religioso, em verdadeiro milagre de re-criação.
As quatro estrofes finais resumem a viagem gótica do poeta. O mundo e a natureza
dormem. O mundo material, representado pela mobília impassível e pela inutilidade do
termômetro, torna-se hostil ao Poeta. O poema foi um exercício exaustivo: o poeta tem o “cérebro
oco”, ao contrário do leitor, que se encontra absolutamente embriagado pela profusão de imagens
e sensações. Está criado o efeito poético. A ameaça ao leitor “Daqui em diante não farei mais
versos”, apenas nos aguça a vontade de acompanhar o poeta em outras viagens.
4.2 – Os Vermes: deuses conquistadores em Poe e Augusto dos Anjos
Nesta seção, farei uma leitura comparativa dos poemas “O Deus Verme”, de Augusto do
Anjos e “The Conqueror Worm”, de Edgar Allan Poe.
The Conqueror Worm Lo! 'tis a gala night Within the lonesome latter years! An angel throng, bewinged, bedight In veils, and drowned in tears, Sit in a theatre, to see A play of hopes and fears, While the orchestra breathes fitfully The music of the spheres. Mimes, in the form of God on high, Mutter and mumble low,
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And hither and thither fly- Mere puppets they, who come and go At bidding of vast formless things That shift the scenery to and fro, Flapping from out their Condor wings Invisible Woe! That motley drama- oh, be sure It shall not be forgot! With its Phantom chased for evermore, By a crowd that seize it not, Through a circle that ever returneth in To the self-same spot, And much of Madness, and more of Sin, And Horror the soul of the plot. But see, amid the mimic rout A crawling shape intrude! A blood-red thing that writhes from out The scenic solitude! It writhes!- it writhes!- with mortal pangs The mimes become its food, And seraphs sob at vermin fangs In human gore imbued. Out- out are the lights- out all! And, over each quivering form, The curtain, a funeral pall, Comes down with the rush of a storm, While the angels, all pallid and wan, Uprising, unveiling, affirm That the play is the tragedy, "Man," And its hero the Conqueror Worm. O Deus-Verme Fator universal do transformismo. Filho da teleológica matéria, Na superabundância ou na miséria, Verme -- é o seu nome obscuro de batismo. Jamais emprega o acérrimo exorcismo Em sua diária ocupação funérea, E vive em contubérnio com a bactéria, Livre das roupas do antropomorfismo.
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Almoça a podridão das drupas agras, Janta hidrópicos, rói vísceras magras E dos defuntos novos incha a mão... Ah! Para ele é que a carne podre fica, E no inventário da matéria rica Cabe aos seus filhos a maior porção!
Os poemas fazem uma encenação dramática do domínio do corpo humano pelos vermes.
Ambos se valem de rimas e ritmo para acentuar a dramaticidade de seu tema.
O poema de Poe cria uma atmosfera a partir de um teatro imaginário. Há um chamamento
ao leitor: “Lo! This is the gala night” – algo muito importante será encenado, e merece a máxima
atenção. Os espectadores são seres celestiais, vestidos de forma etérea, mas já com os olhos
marejados – sinal que sua compaixão já foi despertada, por saberem de antemão o desfecho do
drama. Na verdade, o leitor será um espectador privilegiado, pois assistirá a encenação, mas não é
de fato parte da platéia, é como se estivesse nos bastidores. Com isso, cria-se um afastamento que
somente fará acentuar na mente do leitor o impacto final do drama-poema.
Os atores apresentam essa enorme contradição: embora feitos à semelhança divina, não
têm controle sobre seus próprios atos, já que se comportam como títeres. Estão à mercê de seres
informes, que com imensas asas (condor wings) espalham males invisíveis sobre eles. A imagem
remete de imediato ao “Asa de Corvo”, de Augusto. A terceira estrofe informa o movimento de
eterno retorno de um ciclo que envolve Loucura, Pecado e Terror – é a vida humana vista sob a
ótica da visão gótica do mundo.
As duas últimas estrofes encenam o drama final: uma nova personagem assoma ao palco,
disforme, sangrenta, horrível e implacável, derrubando os atores um a um: não são os atores
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vampirizados nem os anjos pálidos os heróis do drama que se chama “Homem” – é o verme que
vence.
O mesmo é visível no soneto de Augusto. Aqui não há comparações: o verme está, desde
início, no plano principal, e sempre visto como agente de transformação, cuja presença é
universal: na superabundância ou na miséria. Além disso, ele é fecundo: acasala-se com a
bactéria, janta e almoça e tem filhos, para os quais guarda ‘a maior porção’ dos despojos
humanos. Há uma afirmação clara em ambos poemas: o verme é o herói, ele herdará a terra. A ele
pertencem a vida e a morte, pois somente ele é capaz de, a partir da morte, criar vida. Ambos
poemas usam imagens de devoramento, com palavras como “food” e ”rói”. O verme se alimenta
do pavor e da fragilidade humanos, tornando-se, por isso, superior ao homem, pois o transcende,
alimenta-se de matéria morta, ou seja, da fraqueza e da finitude do homem. O verme também não
respeita nenhum tipo de hierarquia social: hoje devora o rei, amanhã o mendigo, como diz
Hamlet. Ou seja, o verme também se torna vencedor por subverter a ordem social, criada pelo
homens, reduzindo todos a mesma materialidade. Essa materialidade revela a verdade sobre o
homem: somos todos pó, “cadáveres adiados”. As máscaras sociais apenas tentam escamotear
essa realidade. A poesia gótica, dessa forma, desvenda a hipocrisa das organizações humanas.
Percebemos que, de forma poética, ambos poemas encenam o drama da morte como uma
fase do ciclo da vida em que há uma transformação dinâmica, ainda que macabra, mas que é
geradora de uma forma diferente de existência. O desaparecimento do homem é a vitória do
verme, da mesma forma que, fazer poesia em torno do macabro revela múltiplas possibilidades
do pensar poético.
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Conclusão
Muito se discute nos dias de hoje sobre a relevância ou não do estudo de autores do século
XIX, ou mais antigos. Parece que somente os contemporâneos têm a primazia de promover o
entendimento do atual, porque os antigos estariam ultrapassados, e mais do que isso, porque tudo
o que havia para ser dito já o teria sido, e comentado à exaustão.
Considero, porém, fundamental, procurar as origens do pensamento moderno para melhor
entendermos a literatura e o mundo de hoje. Quando procedemos dessa forma, percebemos que
grandes novidades na verdade vêm de longe, e que, por mais que releituras sejam relevantes, elas
valem muito pouco se não chegarmos a conhecer as obras que as originaram.
A indústria contemporânea do entretenimento, notadamente o cinema, ocupa-se
grandemente dos gêneros de terror e suspense,com grande sucesso, sem se dar conta do quão
profundo no sentimento humano estão as raízes dessa predileção. A imaginação gótica, de
inspiração medieval e notadamente popular, faz parte da condição do ser humano, em sua busca
eterna pelas raízes e pelo real significado de estar no mundo.
Pretendi com este trabalho situar a poética de Edgar Allan Poe como fundadora da
modernidade, a partir de seus aspectos góticos, que ao criarem um ambiente de transgressão,
permitem a discussão de aspectos ocultos da vida humana e da sociedade de um modo geral,
ainda que nem sempre de maneira explícita. Para isso, é necessário que esse lidar com o
subterrâneo seja acompanhado de uma profunda reflexão crítica e de um trabalho de reinvenção
da linguagem, trabalho esse em que o brasileiro Augusto dos Anjos também se destacou.
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O estranhamento, combinado com o apuro lingüístico e artístico conduz à modernidade
por firmar o papel decisivo do leitor e, ao mesmo tempo, exigir o rigor artístico do artista/poeta,
para que ele não caia no banal, no lugar comum que Baudelaaire chamou de “preguiça de
imaginação”. Dessa forma, as contradições do mundo contemporâneo podem se tornar
representáveis e serem objeto de reflexão apenas se houver o cuidado com a elaboração artística,
o que é justamente o oposto do que ocorre hoje, com a explosão do midiático e do descartável. A
cultura de massa contemporânea vale-se do gótico e do sublime por saber que as raízes dessas
formas de apreensão do mundo estão no cerne da alma humana. Mas não consegue ser de fato
questionadora, nem transformar, exatamente por falta de rigor artístico.
Nunca a imaginação criadora foi tão necessária à restauração do espírito humano. Mas o
que temos hoje é o predomínio do repetitivo e do banal, do que choca sem criar. O choque, sem o
viés criativo, torna-se anestésico. Hoje, os olhares multiplicam-se, mas a imaginação, embotada,
falha, pelo exaurimento dos sentidos. O excesso tecnógico não criou um novo mundo: apenas
saturou os problemas de sempre. A banalização do horror no mundo contemporâneo matou a
imaginação. O mundo a ser representado é grotesco, mas as representações correntes ocorrem
sem nenhuma mediação da mente, condição indispensável, segundo Kant, para que a experiência
do sublime seja transcendente.
Paul Crowhter (apud BRUM, 1999) afirma que o sublime kantiano traz chaves
importantes para a apreensão da modernidade. Se o sublime proporciona uma experiência moral,
mesmo indireta, se nos expõe à nossa finitude, talvez possa despertar nos homens uma nova
atitude diante da vida. Isto é, a experiência do sublime seria capaz de humanizar. Nesse caso, o
deslocamento da experiência estética viria da natureza para a experiência urbana, o
incomensurável, presente no mundo tecnológico do século XXI. Isto porém, só se tornará
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possível no mundo contemporâneo se os artistas souberem retomar a lição inicial da
modernidade: reelaborar o mundo através da imaginação criadora, permitir que as mentes dos
autores e do público partilhem de fato da criação da experiência estética, ou seja: que a
linguagem não se perca no “molambo paralítico” do mundo visual de hoje, mas que faça valer a
sua natureza criadora e renovadora.
Creio que Edgar Allan Poe e Augusto dos Anjos, com sua sensibilidade e talento, se
fazem necessários no mundo de hoje, como exemplos daquilo que a imaginação humana é capaz
de fazer. Eles mostram que o gótico pode ser a saída para recriar o mundo.
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