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21 Unidade 2 Ser e pensamento Metafísica, ontologia ou filosofia primeira Na unidade anterior, você estudou que, ainda que suas perguntas e respostas sejam diferentes, a polêmica entre Heráclito e Parmênides gira em torno de uma tarefa comum: a explicação do mundo por um princípio fundamental que é causa e origem de todas as coisas. Platão e Aristóteles prosseguem a mesma tarefa, embora seus resultados se- jam outros. Platão pensava que se adquiria este conhecimento contemplando a forma ou ideia (em grego, eidos) de uma coisa. Sua doutrina considera a existência de dois mundos distintos: o sensível e o inteligível. A rea- lidade não estaria no mundo sensível (onde se encontram os homens e todas as coisas com as quais eles lidam), e sim no inteligível, ou seja, além das sensações, no chamado mundo das ideias. Assim, ele procura- va explicar, por exemplo, como algo pode mudar de forma, de sabor, de cheiro e continuar sendo a mesma coisa. Haveria outro mundo, de onde todas as coisas deste mundo tiram a sua forma, ou seja, a sua realidade. Na teoria platônica, todas as coisas sensíveis seriam apenas có- pias de uma forma ideal. Por exemplo, as diversas árvores existentes seriam reproduções de uma ideia de árvore. Como reproduções, todas as árvores são imperfeitas e apenas se aproximam da forma original de árvore. O mundo sensível é um mundo de aparências ilusórias. Mas, por meio da razão, o homem seria capaz de contemplar o mundo das ideias. Partindo da multiplicidade dos objetos sensíveis poderíamos alcançar a unidade da ideia, assim como retiramos de cada árvore em particular um conceito universal de árvore.

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Unidade 2

Ser e pensamento

Metafísica, ontologia ou filosofia primeiraNa unidade anterior, você estudou que, ainda que suas perguntas

e respostas sejam diferentes, a polêmica entre Heráclito e Parmênides gira em torno de uma tarefa comum: a explicação do mundo por um princípio fundamental que é causa e origem de todas as coisas. Platão e Aristóteles prosseguem a mesma tarefa, embora seus resultados se-jam outros.

Platão pensava que se adquiria este conhecimento contemplando a forma ou ideia (em grego, eidos) de uma coisa. Sua doutrina considera a existência de dois mundos distintos: o sensível e o inteligível. A rea-lidade não estaria no mundo sensível (onde se encontram os homens e todas as coisas com as quais eles lidam), e sim no inteligível, ou seja, além das sensações, no chamado mundo das ideias. Assim, ele procura-va explicar, por exemplo, como algo pode mudar de forma, de sabor, de cheiro e continuar sendo a mesma coisa. Haveria outro mundo, de onde todas as coisas deste mundo tiram a sua forma, ou seja, a sua realidade.

Na teoria platônica, todas as coisas sensíveis seriam apenas có-pias de uma forma ideal. Por exemplo, as diversas árvores existentes seriam reproduções de uma ideia de árvore. Como reproduções, todas as árvores são imperfeitas e apenas se aproximam da forma original de árvore. O mundo sensível é um mundo de aparências ilusórias. Mas, por meio da razão, o homem seria capaz de contemplar o mundo das ideias. Partindo da multiplicidade dos objetos sensíveis poderíamos alcançar a unidade da ideia, assim como retiramos de cada árvore em particular um conceito universal de árvore.

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Para Aristóteles, por outro lado, a forma ou ideia (o que ele cha-ma de substância) não está separada da coisa, em outro universo, mas coexiste com a coisa no próprio mundo sensível. Embora não esteja presente na língua grega, a noção de coexistência está na origem da palavra latina cognoscere, que significa conhecer. Nesse sentido, conhe-cer é “nascer junto”. Assim, meu conhecimento do mundo é o encon-tro entre a presença da coisa e a ideia que tenho dela, entre a realidade material e o pensamento.

Aristóteles também procura o ser (aquilo que faz uma coisa ser o que é) como algo que permanece oculto, muito embora se encontre neste mundo. A afirmação de que a filosofia é a ciência das ciências está baseada na convicção de que existe um primeiro princípio, uma primeira causa que explica todas as consequências. Algo cujo conhe-cimento implicaria a possibilidade de se conhecer as coisas em geral, porque estaria na base de tudo. Isto é o que ele chama substância (em grego, ousia). Trata-se de um princípio que, embora esteja presente em todas as coisas, é ele mesmo invisível. Está para além do mundo físico, por isso seu estudo é chamado metafísica.

Segundo Martin Heidegger, ousia originalmente significa fazenda ou propriedade, o que demonstra a carência de um vocabulário próprio no início da filosofia. Mais tarde, o termo foi traduzido para o latim substantia (substância) pelos autores medievais. De acordo com Suzane Mansion, Platão foi o primeiro a empregar a palavra ousia no sentido de realidade, existência ou essência. Mas no sentido em que Aristóteles a utiliza, ousia significa mais que a realidade; ela é aquilo que faz alguma coisa ser o que é, ou seja, a categoria ou pro-priedade fundamental de tudo o que existe. Todas as outras propriedades de uma coisa são dependentes dela. Por exemplo, só pode existir a cor branca se existir algo branco. Este algo (que pode ser branco, preto, vermelho, pesado, leve, quente, frio, etc.) é a pro-priedade fundamental, a substância, a ousia ou a coisa em si mesma.

Em grego, meta significa “além de” ou “após”. Metafísica, o termo que nomeia uma de suas principais obras não foi criado por Aristó-teles, mas por Andrônico de Rodes, principal organizador dos textos aristotélicos na Roma dos anos 50 a.C. Desde então, metafísica pas-sou a designar a parte da filosofia que investiga o ser, aquilo que está oculto e torna possível a existência de todas as coisas, não sendo ele mesmo uma coisa entre as outras. O próprio Aristóteles havia nome-ado esses escritos como filosofia primeira. Mais tarde o estudo do ser também foi definido como ontologia, termo que remete ao grego to on (o ser). Como explica Marilena Chauí:

O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente. (CHAUÍ, 1994, p. 210)

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A metafísica é o estudo daquilo que está além do mundo físico, no sentido de ser superior a ele e condição de sua existência. Pode pare-cer algo muito complicado, mas não está distante de um pensamento comum a todos nós. Quem nunca se perguntou sobre a causa de todas as coisas? Levada até as últimas consequências, a pergunta geralmen-te nos leva à seguinte encruzilhada: Deus criou o mundo, mas quem criou Deus? Pensamentos assim podem ser considerados metafísicos.

De onde viemos? Para onde vamos? Qual o sentido da vida? Todos encaramos tais perguntas uma vez ou outra. O que nunca nos transformou em filósofos. A diferença da pergunta que nós formulamos e do modo como os filósofos trataram o problema está no modo como eles construíram conceitos. Este é o modo de pensar filosoficamente que precisamos entender.

Platão e Aristóteles procuram o fundamento de todas as coisas. Para responder a esse problema, criam os conceitos de ideia e de subs-tância, encarando a filosofia como ciência capaz de conhecê-las. Ape-sar das inúmeras diferenças entre as teorias, ambos partem de uma certeza: existe algo além de nossas ciências e das crenças comuns, algo imaterial que subjaz todas as coisas e que podemos conhecer por meio da razão. A ciência que permite esse uso radical da razão é a filosofia.

A metafísica modernaDurante séculos, a polêmica entre os filósofos teve um terreno co-

mum: a certeza de que a razão pode conhecer as coisas como são em si mesmas. Para tanto, confiava-se que a substância ou a ideia de uma

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coisa (aquilo que a faz ser o que é) estava presente na própria coisa ou poderia ser pensada a partir dela. Essa certeza é posta em dúvi-da pelos filósofos modernos, estabelecendo novos paradigmas para o pensamento e para as ciências.

René Descartes (1596-1650) é um dos principais responsáveis por essa transformação. Sua obra buscava destruir todos os fundamentos do conhecimento, reconstruindo as ciências por meio de algo que seria ainda mais certo e indubitável. Para isso, não julgava necessário inves-tigar um a um todos os saberes reconhecidos. Seu projeto era ainda mais audacioso. Tratava-se de recusar todos os saberes para começar, desde o fundamento, a construção de um novo saber.

Mas a missão radical de Descartes não ignorava importantes con-ceitos da tradição aristotélica. Na verdade, a negação desses conceitos está na base de seu pensamento. Curiosamente, no entanto, sua defini-ção da filosofia não difere muito do que vimos até aqui. Ele conserva a ideia de que a filosofia busca o conhecimento dos primeiros princípios e, portanto, a tarefa de uma investigação metafísica.

[...] essa palavra, ‘filosofia’, significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria não se deve enten-der apenas a prudência nos negócios, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que ao homem é dado saber, tanto em relação à conduta da sua vida como no que concerne à conser-vação da saúde e à invenção das artes. E, para que esse conhecimento assim possa ser, torna-se necessário deduzi-lo das primeiras causas, de tal modo que, para conseguir adquiri-lo, e a isso se chama exatamente filosofar, cumpre começar pela pesquisa dessas primeiras causas, ou seja, dos princípios. (DESCARTES, 2005, p. 92)

Então, o que muda em Descartes? O que ele quer destruir? Como em todos os desacordos filosóficos, o que difere o projeto cartesiano é seu ponto de partida, ou seja, seu problema ou o problema do seu tem-po. O século XVII conheceu diversas descobertas científicas e algumas alteraram profundamente a ideia que os homens tinham do universo. Veja um exemplo no texto a seguir:

Entre as principais revoluções científicas da modernidade está a teoria que defende o movimento da Terra em torno do Sol, contestando o sistema geocêntrico. No século II, Ptolomeu (cerca de 78-168 d.C.) desenvolveu um modelo científico de representação do movimento dos planetas e corpos ce-lestes. De acordo com esse modelo, a Terra ocupava o centro do universo e permanecia imóvel, enquanto os outros planetas, o Sol e a Lua girariam ao seu redor.

Mas a teoria geocêntrica remete a estudos ainda mais antigos. O próprio Aristóteles foi um defensor da tese de que o Universo, cujo centro seria a Terra, seria finito. Este modelo prevaleceu incontestável durante séculos. Até

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que o astrônomo Nicolau Copérnico (1473-1543) desenvolvesse a teoria he-liocêntrica, que pretendia provar que o Sol está no centro do Universo e que a Terra, assim como os outros corpos celestes, gira em torno do grande astro. Em grande medida, o heliocentrismo também recupera teses da Antiguidade Clássica, como a de Aristarco de Samos (cerca de 310-230 a.C.).

Por meio de cálculos e projeções, o filósofo grego concluiu que o Sol era maior que a Terra e que, portanto, fazia mais sentido pensar que nosso pla-neta se movimentava em volta dele. De qualquer forma, a chamada revolu-ção copernicana é uma das mais importantes hipóteses científicas de todos os tempos, formando as bases da astronomia moderna e alterando profun-damente a visão do próprio homem perante o universo. Tal mudança fez com que a defesa da teoria heliocêntrica por Galileu Galilei (1564-1642) tenha encontrado forte resistência por parte da Igreja Católica, que censurou sua obra e o condenou à prisão.

A metafísica aristotélica não se encaixava nos pressupostos da fí-sica moderna, pois considerava que havia uma analogia entre o pen-samento e a matéria, enquanto a nova ciência pressupõe uma matéria exterior ao pensamento e sobre a qual ele pode agir. Se, para Aristóte-les, conhecer é nascer junto, ou seja, estar a par das coisas como elas são, para a ciência moderna conhecer é dominar com o pensamento.

Vimos que Aristóteles explica a tendência humana ao conheci-mento por meio de uma hierarquia de saberes que começa com as sen-sações. A sensação – principalmente a visão – seria o primeiro passo para o conhecimento de algo. Descartes, pelo contrário, considera as sensações como algo muito enganoso.

Quantas vezes provamos uma coisa que nos parecia ser azeda, mas se mostrou doce em um segundo momento? Quantas vezes pensamos que algo estava próximo e era muito pequeno e descobrimos mais tarde que ele se encontrava a quilômetros de distância e seu tamanho extrapolava nossas medidas? Não é difícil concordar que os sentidos nem sempre mostram a mesma coisa e que às vezes eles podem nos enganar.

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Para Descartes, as sensações não são a base do conhecimento. A experiência do mundo não é apenas desnecessária para a ciência, como pode prejudicar seus resultados. O homem possuiria em si mes-mo outro mecanismo de compreensão que constitui o fundamento de todo o verdadeiro conhecimento.

O projeto cartesiano está baseado principalmente nas verdades matemáticas. Estas são caracterizadas pela exatidão e clareza de seus raciocínios, além da independência em relação a qualquer objeto es-pecífico. Descartes supõe que o mesmo modo de raciocínio possa ser estendido para outras ciências. Como a mesma fórmula matemática pode ser utilizada para contabilizar frutas, animais ou pessoas com a mesma exatidão, seria possível descobrir fórmulas para pensar a verda-de de qualquer coisa nas mais diversas ciências. Seria preciso somente desenvolver um método adequado para evitar as ilusões e conduzir a razão até a verdade.

Método cartesiano: Descartes organiza seu método em quatro partes: 1) aceitar so-mente aquilo que for claro e evidente; 2) analisar aquilo que é tomado como evidente, dividindo-o em quantas partes forem possíveis para tornar seu estudo mais simples e confiável; 3) ordenar estas partes desde as mais simples até as mais complexas, formando novamente um todo estruturado; 4) revisar as partes e sua organização para ter a certeza de que nada foi perdido e que nenhum erro foi cometido.

Esse método começa com o pressuposto de que nada minimamen-te duvidoso pode ser aceito. Para Descartes, é preciso encontrar como ponto de partida uma ideia que seja clara, evidente e indubitável. Essa ideia não pode estar baseada nas sensações. Mas, se posso duvidar do que sinto, não posso de forma alguma duvidar do fato de que duvido. Assim como posso duvidar de tudo o que penso, supondo que todos os meus pensamentos estão errados e me enganam, mas não posso nunca duvidar do fato de que estou pensando. Daí a famosa expressão “penso, logo existo”.

O princípio do conhecimento na teoria cartesiana é o fato de que “eu penso”. A partir dessa certeza, o percurso cartesiano inverte a compreensão do ser presente em Aristóteles. Na teoria do filósofo gre-go, a substância é o fundamento da realidade, enquanto no racionalis-mo cartesiano a causa do ser é encontrada no pensamento.

A crítica da metafísica

Apesar da enorme transformação realizada por Descartes e outros filósofos de seu tempo, também podemos encontrar um terreno co-mum entre eles e os antigos gregos. Toda investigação metafísica clás-sica ou moderna baseava-se na suposição de que a razão pode conhe-

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cer a realidade em si mesma. Mais uma vez, cabe à própria filosofia questionar essa certeza e alterar a base de suas investigações. Um dos marcos desta virada é Kant, que pergunta: O que é a razão? O que ela pode ou não conhecer? Quais as condições do conhecimento?

Immanuel Kant (1724-1804): Um dos principais filósofos da modernidade, que influencia definitivamente uma série de outros pensadores. Seu pensamento pode ser dividido em duas fases: a pré-crítica (1755-1780) e a crítica (a partir de 1781). A principal obra do primeiro período é a Dissertação de 1770, que apresenta temas importantes para a fase crítica, como a questão sobre os limites da razão. Sua principal contribuição para a filoso-fia está justamente no questionamento da razão, ou seja, daquilo que somos capazes de conhecer e dos limites deste conhecimento. É na Crítica da razão pura (1781), que inau-gura a segunda fase e é considerada por muitos sua principal obra, que Kant estabelece as “condições de possibilidade” ou fundamentos do conhecimento científico, separando o uso legítimo da razão e seu uso meramente especulativo.

Kant tem em mente uma intensa disputa filosófica presente em sua época, entre os que acreditavam que as principais ideias humanas são inatas – não dependem da experiência – e aqueles que defendiam a ex-periência como fonte de todo conhecimento. Diante do impasse entre inatistas e empiristas, ele formula outra hipótese e descreve dois tipos de conhecimento: aquele que é dado pela experiência (a posteriori) e o que possuímos independente dela (a priori).

Pois poderia bem acontecer que mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um compos-to daquilo que recebemos por impressões e daquilo que a nossa própria faculdade de conheci-mento (apenas provocada por impressões sensíveis) fornece de si mesma [...]. No que se segue, portanto, por conhecimentos a priori entenderemos não os que ocorrem independente desta ou daquela experiência, mas absolutamente independente de toda a experiência. Opõem-se-lhes os conhecimentos empíricos ou aqueles que são possíveis apenas a posteriori, isto é, por experi-ência. (KANT, “Crítica da Razão Pura” apud SILVA, 1985, p. 194-195)

Nessa composição, Kant responde não apenas àquelas teorias do conhecimento. Ele invalida também a metafísica aristotélica – a busca da substância que explica a existência de todas as coisas – e o raciona-lismo cartesiano – que coloca o “ego pensante” como fundamento de toda a realidade.

Para Kant, a razão pode ser considerada universal apenas por estar presente em todos os seres humanos, não porque ela possa apreender todas as coisas ou porque todas as coisas obedeçam à mesma racio-nalidade. Aquilo que ele chama de razão pura é uma estrutura vazia e sem conteúdos, a partir da qual nós podemos organizar os conteúdos sensíveis. Sem uma razão estruturada a priori, nenhuma experiência faria sentido; mas sem o conteúdo da experiência, a razão permanece-ria oca, vazia e inoperante. Assim, o conhecimento é uma via de mão

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dupla: há algo que o sujeito recebe de fora e algo que ele já possui e utiliza para organizar a experiência. Kant utiliza o conceito de fenôme-no para definir aquilo que se conhece nessa relação.

O fenômeno tem de ser justamente o resultado do encontro entre algo em si (enquanto tal in-cognoscível) e elementos que têm origem no sujeito que se põe a conhecê-lo. (REGO, 2006, p. 164)

Isto é o que a razão pode conhecer: aquilo que o sujeito recebe como dado sensível (porque possui a capacidade de sentir), que orga-niza a partir de conceitos ou categorias que possui antes de qualquer experiência (as noções de causa e efeito, quantidade, qualidade, etc.) e que é formulado como um juízo, ou seja, como negação ou afirmação de certas propriedades a respeito de um objeto. Esse esquema explica, por exemplo, como eu posso afirmar que a sopa está quente e você, a partir do mesmo procedimento, pode concordar ou não sobre a verda-de da minha afirmação.

Mas algumas afirmações não se encaixam nesse esquema. É o caso de todas as afirmações metafísicas, seja o que Platão chamava de ideia, o que Aristóteles chamava de substância ou aquilo que Descartes chamava de ego pensante. Para ficarmos em um exemplo mais próximo, é o caso daquilo que falamos sobre Deus. Pensamos Deus como algo fora do tempo e do espaço, infinito, presente em todo lugar e que não sofre a mesma relação que nós com o mundo material, ou seja, Deus não sente frio e nem é vulnerável a acidentes. Em outras palavras, nós não temos a experiência de Deus da mesma forma como temos a expe-riência de uma árvore, de uma pedra ou de outra pessoa. Então, como podemos falar a seu respeito? Segundo Kant, isto acontece porque, a partir de sua estrutura a priori, a razão pode funcionar pensando algo que não é dado pela experiência.

Sendo assim, se faz sentido pensar em um algo não causado por nenhum outro algo; se o pen-samento de uma tal causa primeira (não causada por nada), isto é, se o pensamento de um tal incondicionado faz sentido, ele só pode fazer sentido se esse incondicionado for “localizado” num domínio outro que não o do mundo fenomênico e sensível. Por definição, esse outro domínio se chama domínio suprassensível, que indica apenas: aquilo que não é fenômeno. (REGO, 2006, p. 175-176)

Questionando a própria razão e seus limites, Kant distingue o uso legítimo da razão na produção de conhecimento científico, que pode ser verificado, e seu uso meramente especulativo, que não pode ser verificado e, portanto, não produz ciência. Entre as coisas que não podem ser cientificamente conhecidas está o suprassensível, o metafí-sico, justamente aquilo que se julgava ser o objeto da filosofia. Depois de Kant, portanto, a metafísica perde seu objeto.

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Se não é possível uma ciência do suprassensível, se os objetos da indagação metafísica não têm nenhuma objetividade [não podem ser objetos do conhecimento], como pode a filosofia, essa ciência sem objeto, continuar a aspirar ao estatuto de ciência, quanto mais ao de ciência suprema? (TORRES FILHO, 1987, p. 14)

Muitos autores assumiram a tarefa de responder a essa questão. Alguns pensaram uma filosofia sem metafísica, outros seguiram de-fendendo uma metafísica sem objeto. O próprio Kant assume que nós temos um acesso ao que está além do mundo físico, mas este acesso não é o mesmo que as ciências possuem a respeito de seus objetos. Para Kant, a tarefa da metafísica é pensar o incondicionado, o que não é necessário ou determinado pela natureza, ou seja, pensar a liberdade humana. Essa liberdade – que não pode ser pensada pelas ciências – é o objeto por excelência da filosofia moral kantiana.

A vertigem do pensamentoKant não encontra uma “substância” porque o fundamental em

sua filosofia não é responder qual é a causa primeira de todas as coi-sas, e sim o que de fato nós podemos conhecer. Ele não parte do pri-vilégio da razão, mas de uma investigação sobre ela. A partir daí, seus argumentos vão se construindo em conflito com os da tradição meta-física, conduzindo a uma resposta bastante diferente. Portanto, o que muda não é simplesmente a resposta ou a tese que é defendida, mas a própria pergunta.

Todo conceito remete a um problema, a problemas sem os quais não teria sentido [...]. Mas tudo muda evidentemente se acreditamos descobrir um outro problema [...]. A ordem mudou, do mesmo modo que a natureza dos conceitos ou que os problemas aos quais se supõe que eles respondam. [...] não se cria conceitos, a não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 27-28)

Embora a pergunta mude radicalmente o problema, sua coloca-ção permanece como principal tarefa para Kant, assim como é para Aristóteles e todos os outros filósofos. É a partir desta indagação dos pressupostos que eles pensam, ou seja, pela crítica dos fundamentos se constrói um edifício conceitual. Vimos que é nesta crítica que o filóso-fo abre espaço para sua atividade. O que nos deixa algumas questões: como se pode questionar e até destruir a base de todo o conhecimento? Será que nossas crenças e ciências são realmente firmes e inquestioná-veis? Podemos acreditar em um fundamento absoluto depois de acom-panhar a constante crítica e autocrítica da filosofia e das ciências?

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Talvez a filosofia nos revele que não existe tal fundamento, ainda que ela própria muitas vezes tenha se justificado por essa busca.

Para Deleuze e Guattari, não existe um fundamento pré-filosófico que sirva de base e guia para a atividade filosófica. Não há um céu para os conceitos, ou seja, não há um lugar de onde se possa tirá-los prontos. Ao mesmo tempo, não se espera construir este lugar. A filo-sofia e sua tarefa de destruição e construção não encontram fim, como afirma Bento Prado Júnior na introdução ao livro dos dois filósofos franceses:

“O chão se abre sob nossos pés e experimentamos a vertigem do pensamento.”

A pendência

Vimos apenas alguns exemplos de como os filósofos constroem seus argumentos e suas teses, podendo discordar inclusive a respeito do que é a filosofia e qual sua tarefa. Então, o que a filosofia tem a dizer sobre nossas profissões e nossas ciências? Seria apenas um passa-tempo? Se ela é incapaz de fornecer um saber prático e até uma única certeza teórica, o que podemos esperar de seu estudo?

Para Bertrand Russell, sua importância reside justamente naquilo que muitos enxergam como sua principal dificuldade ou defeito: a fal-ta de um objeto específico.

O valor da filosofia, na realidade, deve ser buscado, em grande medida, na sua própria incerteza. O homem que não tem umas tintas de filosofia caminha pela vida afora preso a preconceitos derivados do senso comum, das crenças habituais de sua época e do seu país, e das convicções que cresceram no seu espírito sem a cooperação ou o consentimen-to de uma razão deliberada. Para tal homem o mundo tende a tornar-se finito, definido, óbvio; para ele os objetos habituais não levantam problemas [...]. Quando começamos a filosofar, pelo contrário, imediatamente nos damos conta [...] de que até as coisas mais ordinárias conduzem a problemas para os quais somente respostas muito incompletas podem ser dadas. A filosofia, apesar de incapaz de nos dizer com certeza qual é a ver-dadeira resposta para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir numero-sas possibilidades que ampliam nossos pensamentos, livrando-os da tirania do hábito. ( RUSSELL, capítulo XV, 2010)

As ciências também possuem “hábitos” que são continuamente colocados em questão pela filosofia. De fato, muitas ciências nasce-ram da filosofia. É o caso da física, cujo estudo remete às cosmolo-gias dos pré-socráticos. Considerados os primeiros filósofos gregos, procuravam explicar a criação e a existência do mundo por meio de elementos naturais (ar, água, fogo, etc.) que seriam os princípios de toda a realidade. O estudo da física esteve atrelado à filosofia até a

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modernidade. Mas, a partir do século XVII, a física passa a desenvol-ver uma enorme produção de conhecimento prático e especializado, tornando-se uma ciência independente. Suas descobertas invalidam uma série de teorias tradicionais e criam um novo paradigma para o conjunto das ciências.

A psicologia também pode ser considerada uma ciência gerada a partir de investigações filosóficas. Se entendermos a consciência como conhecimento das coisas e re-conhecimento desse conhecimento (refle-xão), podemos dizer que ela sempre esteve entre as preocupações da filosofia. Mas é somente na era moderna que a consciência se torna um objeto específico, ou seja, a razão pretende conhecer o próprio “eu”. O sujeito do conhecimento examina o sujeito do conhecimento. O que ele descobre? Segundo Freud, que existe um limite para o pró-prio conhecimento: aquilo que não pode ser conhecido é o domínio do inconsciente. Mais do que criar a psicanálise como “ciência do incons-ciente”, isso coloca em xeque o próprio princípio de racionalidade que sustentava a filosofia.

Podemos, então, falar de uma tendência ao encolhimento da filo-sofia na medida em que o conhecimento se especializa e se transforma em uma ciência autônoma. A filosofia não possui um domínio espe-cífico. Não seria exagerado dizer que ela fala sobre tudo e sobre nada. Fala sobre tudo, pois busca o fundamento de todas as coisas. Mas, na medida em que é definido um objeto e os pressupostos para o seu estudo, essa investigação se desliga da filosofia e se torna uma ciência particular.

Entretanto, a separação não é completa. A filosofia segue discutin-do os resultados desse novo campo do saber e também seus pressupos-tos. Assim como continua discutindo os resultados e os pressupostos da própria filosofia. A mecânica newtoniana teve grande impacto e estimulou a filosofia da época. Atualmente, quando a teoria da rela-tividade e a mecânica quântica questionam os pressupostos da física de Newton, suscitam questões importantes para a filosofia da ciência. Do mesmo modo, a teoria freudiana abalou a tradição filosófica que definia o homem por sua consciência e racionalidade, mas também fez surgir novos problemas para a filosofia e mantém até hoje um intenso debate com a teoria do conhecimento, a fenomenologia e até mesmo com a filosofia política.

Mas permanece a questão: O que a filosofia tem a dizer? Qual é este outro modo de pensar, diferente de todo raciocínio utilizado em nossas profissões? O que uma ciência sem objeto e sem resultados de-finitivos pode fornecer diante do imenso desenvolvimento tecnológico do nosso tempo? Martin Heidegger é um dos principais filósofos a diferenciar o pensamento filosófico e o raciocínio técnico.

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Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada da racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta doida disparada é ex-tremamente irracional. Talvez exista um pensamento [...] mais sóbrio ainda do que a técnica apoiada na ciência, mais sóbrio e por isso à parte, sem a eficácia e, contudo, constituindo uma urgente necessidade provinda dele mesmo. (HEIDEGGER, 1983, p. 81)

O pensamento filosófico não seria “mais racional”, se entendemos racionalidade apenas como o que dá mais lucro e é mais produtivo. De fato, ele se encontra fora desses termos. Não é racional ou irracional, produtivo ou improdutivo. Ele é apenas pensamento. Algo que em certa medida podemos ter esquecido: simplesmente pensar. A pala-vra pensamento deriva do verbo latino pendere, que significa “estar em suspenso”. Portanto, mais do que um cálculo, o pensamento é uma pendência, algo que está sempre para ser resolvido, mas nunca encon-tra solução. A tarefa da filosofia pode ser esta: manter o pensamento suspenso, provocar o litígio, a disputa, a pendência. Esta é a “urgente necessidade provinda dele mesmo”. Colocar os problemas e encontrar sempre uma nova questão.